Você está na página 1de 1

AS CIDADES

OCULTAS
4

Repetidas invasões afligiram a cidade de Teodora ao longo dos séculos de sua


história; para cada inimigo desbaratado, surgia um novo que ameaçava a
sobrevivência dos habitantes. Depois de expulsar os condores do céu, foi necessário
enfrentar a proliferação das serpentes; o extermínio das aranhas permitiu que as
moscas se multiplicassem e negrejassem; a vitória sobre os cupins deixou a cidade à
mercê das traças. Uma a uma, as espécies incompatíveis com a cidade sucumbiram e
foram extintas. Graças à fúria de dilacerar escamas e cascos, de arrancar élitros e
penas, os homens deram a Teodora a imagem exclusiva de cidade humana que ainda
a caracteriza.
Mas antes disso, por longos anos, permaneceu incerto se a vitória final não seria da
última espécie a prosseguir disputando com os homens a posse da cidade: os ratos.
Para cada geração de roedores que os homens conseguiam exterminar, os poucos
sobreviventes davam à luz uma progênie mais aguerrida, invulnerável às armadilhas e
refratária a qualquer veneno. No decurso de poucas semanas, os subterrâneos de
Teodora se repovoavam de hordas de ratos. Finalmente, numa derradeira hecatombe,
a mortífera e versátil engenhosidade humana venceu os superabundantes
comportamentos vitais dos inimigos.
A cidade, grande cemitério do reino animal, fechou-se asséptica sobre as últimas
carniças enterradas com as últimas pulgas e os últimos micróbios. O homem
finalmente havia restabelecido a ordem do mundo que ele próprio transtornara: não
existia nenhuma outra espécie viva para recolocá-lo em dúvida. Como recordação do
que era a fauna, a biblioteca de Teodora conservaria em suas estantes os tomos de
Buffon e de Lineu.
Ao menos era nisso que os habitantes de Teodora acreditavam, longe de supor que
a fauna esquecida estava se despertando do letargo. Relegada por longas eras a
esconderijos apartados, desde que fora despojada do sistema das espécies agora
extintas, a outra fauna retornava à luz dos porões da biblioteca onde se conservavam
os incunábulos, saltava dos capitéis e dos canais, empoleirava-se no travesseiro dos
dormentes. As esfinges, os grifos, as quimeras, os dragões, os hircocervos, as harpias,
as hidras, os unicórnios, os basiliscos retomavam a posse de sua cidade.

Você também pode gostar