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A Evolução
Autor: Alberto Grimm
O que é Real?
Não podemos mensurar o valor de uma coisa, se a esta já se
atribui um valor...

Naquele dia, um pouco antes do amanhecer artificial, ele


percebeu que havia alguma coisa estranha; estranha por
não ser capaz de compreender sozinho. Mas tinha
certeza de uma coisa, um algo mais estava presente
naquele ambiente.

Abriu a janela virtual do seu quarto e olhou para o lado


de fora, e viu que a definição da imagem da rua não
estava muito clara. As cores estavam um pouco
esmaecidas, embaçadas, desfocadas e instáveis, e em
alguns pontos quase opacas. Fechou a janela virtual e
virtualmente sentou em sua cama, tentando pensar um
pouco.

Como não conseguia pensar sozinho, resolveu acessar


um banco de memórias remoto para ver se já existia lá,
alguma ideia pronta que servisse de base para o
pensamento que não era capaz de elaborar por si só,
naquele momento. No entanto, não seria uma pesquisa tão simples, pois sequer sabia o que iria
procurar. E de fato pode comprovar que algo estranho estava acontecendo, uma vez que não
conseguia sequer acessar o banco de memórias.

Por alguma razão desconhecida, o servidor estava fora do ar. Ficou desesperado, pois acabara de
se dar conta de que era incapaz de pensar, que dependia completamente dos pensamentos que
pegava emprestado da Central de Pensamentos, ou do Cérebro Coletivo, como era mais
conhecido o sistema. Percebeu naquela hora, que sua vida psicológica e emocional dependia
inteiramente de um servidor, um computador remoto, de uma simples máquina, que sequer sabia
onde estava.

Olhou à sua volta, no ambiente virtual onde se encontrava, e percebeu que o cenário construído
de acordo com suas preferências, começava e se diluir, dando espaço para que um cenário padrão
ficasse em seu lugar. Aquilo era um sinal claro de que alguma anomalia estava acontecendo no
Centro de Controle de Mentes. Viu que o amanhecer artificial mostrava-se instável, mais
parecendo uma tarde, um indício claro de que o sistema passava por problemas.

Acomodou-se melhor em sua cama virtual, tentando pensar em alguma coisa sozinho. Mas era
dependente demais, jamais pensara sozinho antes, não sabia como fazer, não sabia como pensar.
Naqueles tempos, era mais prático e comum pegar um pensamento já pronto, existiam tantos, até
se podia escolher por temas. Na escola virtual, todos recebiam links com os endereços dos

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pensamentos que poderiam usar nas diversas situações do dia a dia, e desse modo, era só Copiar
e Colar, não precisavam pensar, nem desligar a máquina de simulação de mundo virtual que já
recebiam como implantes em seus cérebros, desde o nascimento.

Lembrou de um dia quando a bateria que mantinha o mundo virtual permanentemente ligado,
deu pane. Felizmente fora um problema passageiro, que não durou mais que alguns segundos,
mas a visão de realidade que tivera foi horrível. Viu-se de repente num imenso recinto
fechado, sem janelas, com uma aparência horrível, que não conseguia compreender, e viu
também dezenas de outros iguais a ele, enclausurados em pequenos casulos enfileirados e
empilhados uns sobre os outros, em um corredor tão longo que o fim não conseguira enxergar.
Mas, como o sistema voltou a funcionar logo, como num piscar de olhos, tudo aparentemente,
não passara de um breve sonho, ou pesadelo para ser mais preciso.

Mas agora, o servidor do mundo virtual onde vivia, estava com problemas operacionais, e um
novo modelo de mundo estava se sobrepondo ao modelo onde já estava acostumado a viver. Se
no outro, sempre acordava com um dia ensolarado, de uma natureza viçosa e exuberante, no
novo, o modelo alternativo e emergencial, este iniciava com uma tarde chuvosa, com ruas
alagadas e ventos frios. E havia outro problema: Ele não sabia pensar, e logo não sabia o que
fazer numa situação daquela natureza.

Nesse momento ele escutou uma voz conhecida, era do gerenciador do sistema operacional, e
dizia: “Atenção à todos os conectados, o sistema nesse momento apresenta uma
instabilidade temporária, e enquanto realizamos os ajustes necessários, todos viverão
durante algumas horas, num mundo virtual alternativo. Logo, um Avatar, um Orientador,
Guru, se apresentará para guiá-los através desse nesse novo mundo, e esperamos voltar ao
normal em algumas horas, ou dias...”.

O seu quarto com janela para um jardim florido à beira mar, logo fora substituído por uma
paisagem melancólica, um entardecer nublado, com pouca luz, o que claramente indicava que o
sistema procurava com isso economizar energia. Correu para a cozinha e lá encontrou uma
simples mesa com torradas de pão amanhecido e chá frio sem açúcar, um cenário muito diferente
da exuberante variedade de outros dias, onde quase não existia espaço para tamanha diversidade
de alimentos frescos.

Sua Mente virtual de última geração, com banda ultra-larga de recepção, fora substituída por um
modelo simples, com baixa resolução gráfica e conexão discada sem filtro para eliminar ruídos.
O padrão para demonstrar desespero ele ainda lembrava claramente, por isso não precisou
acessar o banco de pensamentos para simular tal sentimento. Se ao menos soubesse pensar
poderia encontrar uma solução alternativa menos traumática, mas, seu cérebro se recusava a
fazer isso, estava atrofiado, fossilizado demais por falta de uso.

Gritou pela sua mãe virtual e esta não respondia. Dirigiu-se ao seu quarto e a porta estava
trancada por dentro. Bateu na porta virtual e nem o som do toque na madeira conseguia escutar.
Escreveu num pedaço de papel virtual a frase: “Mãe, você está ai?”, e colocou por baixo da
porta. Mas como a conexão estava lenta a espera parecia uma eternidade. Por fim ela respondeu,
foi uma resposta automática, um simples “Positivo!”, uma resposta pré-gravada. “A coisa

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parece muito séria”, concluiu desolado.

O que fazer diante de tal cenário? E se o sistema perdesse a identidade virtual de cada um dos
conectados, ele deixaria de existir, perderia seus amigos virtuais, seu emprego virtual, sua vida
pessoal virtual, sua família. Percebeu que já se sentia diferente. Isso ocorrera porque, certamente,
devido ao problema, o sistema trocara sua personalidade original, construída em 3D, com
gráficos, sons e sensibilidade de ultima geração, por uma mais simples, alternativa, ainda
primitiva, sem imagens em alta definição, que insistia em querer rezar e fazer promessas, do tipo
pagar penitências, dar oferendas aos santos, como oferta ou forma de pagamento para a resolução
de problemas pessoais.

Então tudo apagou, e apenas uma música ambiente se podia ouvir, e no fundo escuro do seu
quarto virtual, podia enxergar um pequeno ponto verde piscando alternadamente. Depois viu
uma mensagem luminosa no mesmo ponto: “Aguarde, sistema operacional sendo
reinicializado...”.

É tudo que lembra, além da sensação de que esquecera alguma coisa, pois ao acordar estava
diante do seu quarto habitual, com janela de frente para a praia, foi quando sua mãe virtual
entrou e lhe perguntou: “Você também sentiu alguma coisa estranha há pouco tempo
atrás?”.

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Os Sobreviventes
Autor: Alberto Grimm
Os Pedradores não se preocupam com o Dia
Seguinte
Não é o valor do ouro que atrai o homem, mas o valor que esse homem
passa a ter quando o possui...

Do ponto onde se encontrava, ele podia ver quase toda cidade, ou o


que restara dela. Não restara muita coisa, apenas alguns esqueletos
daquilo que um dia fora os mais altos arranha-céus daquele país. O
resto era apenas uma massa uniforme de entulhos, onde era
impossível encontrar alguma coisa, que permitisse identificar o que
fora aquilo, ou parte daquilo, um dia.

O espesso manto negro que cobria o céu, ainda não se dissipara


totalmente, mas alguns discretos focos de luz do sol, como se fora
pequenas chamas de um amarelo pálido, já podiam ser vistos em
dois ou três pontos por trás das nuvens. Eram poucos, apenas cinco
pontinhos haviam sido mapeados em todo o planeta, sem mudança
alguma nos últimos 1500 anos. Mas aquilo já representava um
progresso importante, perto dos 80.000 anos de escuridão quase
total de antes.

Naquele mundo quase sem cor, pouca coisa havia para se observar.
As plantas eram mirradas e aquelas que eram consideradas
gigantes, não mediam mais que dois palmos de altura. Suas folhas
agora possuíam uma cor acinzentada, e as árvores frutíferas, além
de produzirem poucos frutos, dois ou três por safra, só produziam
variedades envenenadas. O ar também se tornara excessivamente
tóxico, e uma neblina permanente tornava a visão de qualquer um, eficaz apenas para curtas
distâncias. Para médias ou longas distâncias, todos se contentavam em apenas contemplar
silhuetas difusas se esgueirando por dentre a névoa.

Com o tempo, às gerações sobreviventes desenvolveram a capacidade de se adaptar a tais


condições ambientais, assim como a de enxergar na escuridão quase total. Graças a isso, ele
podia enxergar a cidade do ponto onde agora se encontrava. Não estava sozinho, dois amigos o
acompanhavam. Aquela cidade por muito tempo ficara de quarentena, e só nos últimos cinco
anos, as autoridades haviam permitido aos sobreviventes, pouco a pouco, a retornarem para
tentar recolonizar o lugar.

Como ainda era uma situação incerta, o governo criara incentivos especiais para aqueles que
desejassem estabelecer moradia no local. Cada um receberia um bônus alimentação, suporte à
moradia, e um emprego vitalício, onde estaria garantido por toda vida, um cargo de supervisor
especial da secretaria do meio ambiente.

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O trabalho de cada um deles era simples. Deveriam se estabelecer no local, e ao mesmo tempo
explorar as regiões mais próximas, efetuando medições dos níveis de poluição ambiental ainda
existente. Feito isso, deveriam manter informadas as autoridades, através de relatórios mensais.
Para tornar a tarefa possível, cada supervisor receberia um medidor portátil, que seria usado para
coleta, análise e posterior compilação dos dados, que seriam transformados nos relatórios.

O treinamento necessário para se tornar um supervisor, incluía lições de sobrevivência a


ambientes de extremo risco. Assim, aquele pequeno grupo, na verdade representava uma força de
elite dentre os sobreviventes. Esse cuidado excessivo tinha uma razão de ser. Aquela não era
uma cidade comum, já fora um local temido por todos antes da destruição, uma verdadeira lenda
viva do pavor, o argumento preferido das mães para assustar filhos desobedientes.

Como cenário das lendas mais temíveis, diziam que monstros de caudas longas comedores de
crianças, eram seus habitantes mais amistosos. Eles próprios lembravam claramente quantas
noites ficaram sem dormir, pois suas mães diziam que crianças que cometessem alguma
traquinagem, ao dormirem, seriam levadas para lá. Desse modo, sabiam agora o motivo das
lendas criadas sobre aquele lugar. Havia de fato uma zona proibida, da qual ninguém, sob
nenhuma justificativa, deveria se aproximar, e esse era o motivo.

Eles agora conheciam o motivo, pois nas primeiras tentativas de repovoar a cidade, dezenas de
grupos haviam desaparecido misteriosamente naquela localidade. Só depois de muita pesquisa,
de consulta a antigos mapas da região, é que haviam descoberto a causa. Para as centenas de
pioneiros que no passado, disso ainda não sabiam, nada mais poderia ser feito. Mas, para as
futuras gerações, havia uma chance, desde que o local fosse devidamente isolado.

Essa também era uma de suas tarefas, era uma missão secreta, por isso tanto treinamento
recebido. Nunca poderiam revelar a mais ninguém o que lá encontrariam, e deveriam assim,
definir os limites, até onde os futuros habitantes do lugar teriam permissão de ir. Assim, todo
cuidado ao se aproximarem da zona proibida, era pouco.

Usavam roupas especiais, e máscaras contra qualquer tipo de toxidade ambiental. De certo modo,
não havia outra preocupação em explorar aquela cidade fantasma, pois nenhuma outra forma de
vida inteligente conseguira mais se desenvolver diante de tão inóspitas condições, assim não
precisariam temer eventuais criaturas inamistosas.

Eles eram sem dúvida, a última espécie inteligente sobre o planeta, graças a sua espetacular
capacidade de adaptação, mesmo aos mais extremos desvios climáticos. Bem treinados, prontos
para sobreviverem ante as mais precárias condições, bem equipados e cautelosos, seu único
inimigo era sem dúvida a temida zona proibida.

Por isso mesmo, quando se aproximaram do local, uma grande tensão era evidente em todos. Era
uma visão assustadora, aqueles altos muros de pedra negra, parcialmente destruídos pela erosão
da chuva ácida, a esconderem em seu interior, o motivo dos maiores pesadelos daquela
civilização. Eles podiam ler um nome na fachada do prédio principal; daquilo que um dia já fora
uma fábrica, a maior do mundo na fabricação de um produto chamado inseticida.

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Era uma visão temível; mas eles como os melhores dentre os melhores da sua espécie, não
podiam se deixar levar por antigos temores; afinal de contas, tinham uma importante missão a
cumprir. Podiam ler o nome que milagrosamente resistira quase intacto à destruição do prédio. E
um deles leu a palavra da fachada em voz alta: "DETEFON1."

E o chefe da equipe engoliu um seco e disse: “O medidor informa que a área ainda é
altamente tóxica, para nós, as Baratas. Felizmente estamos com roupas especiais e
máscaras.”

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Detefon, é o nome comercial de um veneno multi-uso, que se tornou famoso por ser um dos primeiros a ser
fabricado.

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Medo
Autor: Alberto Grimm [1]

Seria o Medo nosso maior Vilão?

O Medo é a principal autoridade que rege, que condiciona as


ações do nosso viver...

Primeiro o cachorro deu um longo e amargurado uivo,


depois começou a latir com vigor. Ele abriu devagar
uma pequena fresta na porta que dava para a parte de
trás da casa, e com cuidado, olhou na direção da casinha
do cachorro, que ficava lá num cantinho, encostada no
muro, nos limites do fundo do quintal, para ver se via
alguma coisa de anormal, algo que justificasse toda
aquela agitação do animal.

Nada, não viu nada. Mas, o cachorro pareceu vê-lo, pois


olhou em sua direção e começou a acenar com alegria o
rabo. Ele criou coragem, abriu a porta, e na ponta dos
pés, olhando para todos os lados, foi até lá dar uma
espiada.

Lá chegando, o percebeu inquieto, agitado, querendo a


todo custo soltar-se da corrente. O ambiente estava
silencioso demais, sem brisa, e nem o pequeno Bacurau
que residia nas redondezas, a julgar pela ausência do seu
canto com o qual já se acostumara, se mostrava presente naquele momento.

Olhou em volta pensativo, e cismado, resolveu levá-lo para dentro da casa. O animal parecia
contente com aquele gesto, e também tinha pressa em entrar logo. Puxava a corrente com força, e
só ficou quieto, quando dentro de casa, viu que a porta fora trancada.

Certamente que o pequeno animal vira alguma coisa estranha, ou não estaria agindo daquela
forma, não era do seu feitio. Observou como ele parecia agradecido por ter entrado, e foi
recostar-se num canto, meio escondido, encolhido, e de lá o fitava nos olhos, como se quisesse
lhe dizer alguma coisa.

Então apagou as luzes e permaneceu atrás da porta, olhando para o lado de fora, pelo buraco da
fechadura. Era noite clara, mas estranhamente silenciosa. Nem os ruídos dos bichos noturnos se
ouvia. Certamente que tinha alguma coisa errada por ali. Sua imaginação entrou em ação, e já
iniciou sua frenética jornada em busca de alguma coisa fantástica para ilustrar a situação. Era
apenas uma questão de tempo, pois certamente ela acabaria por encontrar algo que, se não
explicasse o fato, cuidaria de deixá-lo no mínimo nervoso.

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Então ele escutou lá fora um barulho, como o trote de um cavalo. Depois um ruído que se
assemelhava a alguém, ou um animal, se coçando furiosamente. Até aí tudo estava bem, não
fosse a horripilante gargalhada que ouviu em seguida. Sentiu suas pernas fraquejarem e o sangue
gelar, depois um longo arrepio percorreu todo o seu corpo, deixando seus pelos eriçados como
duros espinhos.

Pronto, era o material adicional que sua imaginação precisava para dar cor, forma, e até um
motivo para aquilo que estava lá fora. Só podia ser algo monstruoso, um demônio, ou coisa pior,
se é que isso era possível. Que soubesse, animal algum andava como se fora um cavalo e ainda
por cima gargalhando. Mas, a questão agora era: O que tamanha e tão bizarra aberração estaria
fazendo logo no seu quintal?

Esperou que a suposta besta entrasse no campo de visão que lhe permitia o pequeno buraco na
porta, e nesse momento, quase que seu coração salta pela boca, pois o cachorro, subitamente
levantou do seu canto e partiu rosnando ferozmente em direção à porta. Ele se agarrou com o
animal, e tapando sua boca, voltou a observar pelo buraco, a situação lá fora.

Nesse momento, aquilo, o que quer que fosse, começou a cheirar a porta. Nos seus braços, o
cachorro tremia mais que ele, e vez por outra, tentava se soltar para ir se esconder em outro
lugar.

E a coisa lá fora, permanecia diante de sua porta. Respirava como se fosse um grande animal,
inquieto, ofegante. Ele ficou tentado a olhar pela fresta, mas seu corpo não obedecia à sua
vontade. Começou a imaginar o que poderia ser aquela coisa. Pelo vulto que vira, tinha certeza
que não se tratava de um cavalo, mas, o ruído dos seus passos certamente eram de cascos. Então,
aquela estranha besta, encostou-se na sua porta.

Ele podia sentir o bafo quente da sua respiração soprando pela fresta de baixo, e um ruído como
se fossem unhas, longas e fortes como garras, riscando a madeira. Percebeu que, o que quer que
fosse, estava olhando pela abertura de baixo da porta, vasculhando o interior da casa. Ele por sua
vez, estava completamente petrificado, colado à parede ao lado da porta, imóvel e sem respirar.
E do outro lado, o estranho visitante, bufava pelo nariz e boca, enquanto arranhava a porta
grunhindo, provocando pavorosos sons.

Passados alguns instantes, a julgar pelos ruídos, começou a caminhar lentamente, trotando como
fosse um cavalo, se afastando da porta. Foi então que, num ímpeto de coragem ou loucura, ele
resolveu olhar através do buraquinho na fechadura, para os fundos da casa.

E, lá no meio do seu quintal, inicialmente de costas para ele, pode ver um vulto, que mais parecia
uma figura humana. Era esguio, de compleição atlética e enorme; braços longos e ágeis, que
mais pareciam tentáculos metálicos, e vestia uma longa capa preta e um chapéu de abas largas.
Ficou tão nervoso, que seus olhos embaçaram.

Esfregou os olhos, e ao focar outra vez o olhar para fora, quase cai de costas com o que viu. A
aparição, seja lá o que fosse, estava olhando na sua direção, imóvel, como se o estivesse vendo,
com um sorriso largo e brilhante estampado no seu horrível, pálido, indescritível, maligno rosto.

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Pensou consigo: “O que danado é isso. Será que ele me viu?”. De fato, seus pés eram como
cascos de cavalo, e nas extremidades de suas mãos, longas e afiadas garras se moviam inquietas,
como uma gigantesca e faminta ave de rapina, diante da caça a ser abatida. Olhou outra vez, e a
coisa realmente olhava em sua direção, com um sorriso nos lábios, que exibiam fileiras de
pontiagudos e enormes dentes, de um predador implacável.

E como que, para confirmar seus temores, a coisa fez um gesto com a mão direita espalmada em
sua direção, como se pedisse para esperá-lo, deixando claro que sabia estar sendo observado, por
alguém que estava do outro lado da porta.

Urinou-se todo, e em sua garganta, a sensação de que estava entalado com um ovo, de uma
consistência sólida, porosa, áspera, que não subia, nem descia. Sentiu falta de ar e começou a
suar frio, seus olhos não piscavam, suas pernas não mexiam, perdera completamente a
coordenação voluntária de todos os músculos do corpo. O cachorro, aproveitando-se da sua
súbita incapacitação, desaparecera casa adentro.

Então, ouviu que a coisa lá fora se aproximou da porta num rápido galope, e começou a forçá-la.
Depois, começou a bater com extraordinário vigor na madeira. Nesse momento, ele percebe, que
as dobradiças da porta, estão cedendo.

Mas, ali, recostado à parede, completamente indefeso, sem forças sequer para gritar, a última
coisa que viu foi quando os pedaços de madeira da porta, totalmente destroçada, foram
arremessados para dentro da casa.

Acordou assustado com os latidos do cachorro. “Ufa, Tudo não passou de um sonho...”,
sussurrou aliviado, mas, ainda paralisado pelo temor. Em seguida o cachorro deu um longo e
amargurado uivo, depois começou a latir com mais vigor.

Ele pulou da cama como se impulsionado por uma mola, correu para a cozinha, abriu devagar uma
pequena fresta na porta que dava para a parte de trás da casa e, com cuidado, olhou na direção da
casinha do cachorro, que ficava lá num cantinho, encostada ao muro, nos limites do fundo do quintal,
para ver se via alguma coisa de anormal, algo que justificasse toda aquela agitação do animal.

Nada, não viu nada. Mas, o cachorro pareceu vê-lo, pois olhou em sua direção, e começou a acenar com
alegria o rabo. Ele criou coragem, abriu a porta, e na ponta dos pés, olhando para todos os lados, foi até
lá dar uma espiada.

Foi aí que lembrou já ter visto aquela cena...

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A Mansão Mal Assombrada


Autor: Alberto Grimm [1]

Não é na Escuridão que está o motivo dos nossos Medos

Para compreender o que desconhecemos, primeiro precisamos


aceitar que ainda não compreendemos...

A casa era imensa e estava localizada em meio a um pequeno


bosque, às margens de um lago profundo e de águas calmas,
que embora límpidas, eram escuras. Tinha uma fama e tanto,
de mal assombrada é claro. Ninguém conseguia passar uma
noite lá dentro. Morar ali, nem pensar. Possuía muitos
quartos em seus três andares construídos sobre uma sólida
laje natural de pedra negra, uma espécie de basalto raro,
quase à beira de um penhasco digno de por medo nos mais
intrépidos alpinistas ou demais pré-suicidas praticantes de
desafios radicais.

Passados dezenas de anos, ainda permanecia majestosa e


firme, apesar das paredes sujas devido à falta de manutenção. Seus donos eram prósperos, mas o
tempo implacável lhes tirara tudo. Agora, embora não mais existissem, ao menos fisicamente, lá
estava sua robusta morada, feita para durar mais que todos da sua linha de descendência. Pouco
se sabia sobre os acontecimentos que culminaram com o início das assombrações no local, mas a
história era clara: os fantasmas do lugar não eram nada amigáveis com os visitantes.

Os últimos enxotados fora um grupo de religiosos, que resolveram fazer um exorcismo para
limpar a casa. Naquele grupo, organizado como uma espécie de liga da justiça divina contra as
forças do mal, todas as religiões enviaram seus mais competentes, ilustres e sábios ministros.
Conta-se que logo na entrada, um deles ficou completamente surdo com o sopro que um dos
fantasmas deu nos seus ouvidos; nos dois ao mesmo tempo. Ficou desorientado por um tempo,
sem saber nem onde estava, nem qual era seu nome. Depois, embora recobrasse a razão,
permaneceu por um bom tempo sem a audição.

Sorte que, por ser sábio, conhecia a linguagem dos sinais, motivo pelo qual, pode continuar se
comunicando com os demais membros do grupo. Depois chegou a imaginar que fora beneficiado
pela brincadeira da assombração, uma vez que os sons assustadores dos fantasmas arruaceiros
não mais o perturbariam naquela noite. Infelizmente, para todos os presentes, a coisa não era tão
simples assim. O fato é que, todos foram expulsos da casa poucas horas depois, mas não sem
traumas psicológicos preocupantes.

O que mais impressionou ao grupo foi que, ao iniciarem o exorcismo, ao pronunciarem as primeiras
palavras sagradas, os fantasmas completavam em voz alta toda a ladainha restante, inclusive com os
cânticos dos rituais solenes, e ainda ensinaram aos religiosos algumas técnicas secretas que estes

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desconheciam. Sem contar que havia um coro de fundo, que recitava em tom canônico, como a imitar
os cânticos gregorianos, todos os salmos bíblicos, ora em Latim, ora em Aramaico. Saíram da casa
moralmente arrasados, psicologicamente desorientados, questionando a própria fé.

Mas, sem dúvida, o que mais abalou a autoestima do grupo, foram as palavras finais daquele que
parecia ser o fantasma chefe. Dissera em tom solene: “Voltem sempre e assim podemos ficar longas
horas discutindo sobre todos os livros sagrados. Gostamos de realizar seminários para falar de coisas
religiosas, doutrinas secretas e coisas assim. Nossas reuniões são sempre às terças e quintas, meia
noite em ponto. Vocês são, a partir de hoje, nossos eternos convidados; não é pessoal?”. Um gemido
horripilante, algo como “Hum, hum...”, em forma de coro, parecia ser a concordância do restante da
comunidade fantasmagórica.

Detalhes à parte, uma nova família que ora estava chegando ao local, parecia não se importar com
aquelas lendas e relatos assombrosos. Observaram a imponente fachada da enorme mansão, e aquela
que parecia a matriarca comentou: “Pelo menos espaço teremos de sobra a partir de hoje!”.

Entre eles, uma criança, que segurava na mão direita uma revista em quadrinhos, cujo título era,
“Histórias Assombrosas”, voltou-se para a senhora que fizera o comentário e disse: “Mãe, quero ver os
fantasmas da casa, será que posso? A senhora deixa?“

"Deixa de coisa menino”, ressaltou a senhora em tom resignado, “fantasmas é coisa de gente, existem
para os seres humanos. Eles aparecem e assustam pessoas. Somos Ratos, e fantasmas não assustam
Ratos”

Meio desolado e olhando para o rabinho que dava voltas no ar, ele suspirou, pegou sua mochilinha e
subiu lentamente os degraus em direção à porta principal da casa.

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Os Criadores de Problemas
Autor: Alberto Grimm [1]

Problemas para alguns, soluções para Outros

Não é o valor do ouro que atrai o homem, mas o valor que esse homem passa a ter
quando o possui...

Naqueles dias, onde uma nova mentalidade já fazia parte


daquela avançadíssima civilização, onde as pessoas viviam quase
eternamente, onde tudo era harmonia, como era de se esperar,
todos os problemas haviam sido erradicados da existência
humana. E, a princípio, a coisa ia muito bem.

Havia apenas um governo central para gerenciar o mundo,


uma vez que todas as nações agora eram consideradas uma
só. Um só idioma, uma só moeda, um só pensamento, e
assim por diante. Como não existia mais violência, repressão
não era mais necessário. Assim não mais existiam forças
armadas ou seguranças. Também, como não havia mais miséria nem
desigualdade social, não existiam mais políticos, nem organizações de caridade, nem salvadores,
nem religiões, uma vez que nada mais existia para ser salvo, ou justiçado.

Por trás de tudo isso, havia apenas o grande Governo, popularmente conhecido como o
“Mecanismo”. Ninguém sabia onde era sua sede, nem a aparência que possuía, sabia-se apenas
que ele era imortal. Mas fora criado por uma civilização do passado, antes da destruição total,
que dera origem a nova. Por isso alguns argumentavam que sua base era no espaço, na órbita da
terra, daí o costume de alguns, de erguerem os olhos ou mãos para o céu, sempre que desejavam
pedir alguma coisa, por insignificante que fosse.

Era o “Mecanismo”, o governo perfeito. Sua mente era imparcial, sem sentimentos, e por isso
mesmo, os pequenos delitos eram sempre julgados de forma justa, imediatamente, sem papelada,
sem advogados, sem protelações. Ele conseguia ver todos os cidadãos do mundo, ao mesmo
tempo. Era capaz de bisbilhotar suas vidas 24 horas por dia, de saber o que faziam, mas sem
interferir, a menos que fosse necessário. Nesse caso, interferia de modo exemplar, sem delongas,
sem muita conversa, já que ele sabia tudo, e julgamentos eram desnecessários. E nada passava
sem que não visse. E a vida prosseguia em seu ritmo corriqueiro.

Mas apesar de tanta perfeição, com o advento da vida eterna, a vida não era uma coisa assim tão
maravilhosa, ao menos para os mais experientes, os mais antigos. Naqueles tempos de vida
eterna, chamar alguém de velho ou idoso, era pura falta de bom senso, ou estupidez, pois todos
só envelheciam – o termo correto era amadurecer - até uma certa idade. Além desse ponto de
maturação, que se chamava de processo biológico natural de desenvolvimento físico, o indivíduo
simplesmente parava de se desenvolver, ou “envelhecer”, como era conhecido aquele fenômeno,
ou processo, agora citado apenas nas cartilhas pré-históricas.

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Como ninguém mais morria, ao menos de causas naturais, ou doenças, a procriação natural fora
erradicada da face da terra. Agora só os nascimentos “especiais”, as chamadas reposições
acidentais, eram permitidos, assim mesmo nos laboratórios oficiais, controlados pelo
“Mecanismo”. E todos já nasciam programados para ter uma profissão, um objetivo de vida,
uma ideia do que seria felicidade, e certas predisposições ou habilidades previamente
homologadas pelo “Mecanismo”, de acordo com a função que o cidadão iria desempenhar em
sua região.

Nesse tempo, a humanidade, apesar de não mais ser dividida por nações, apesar de possuir um só
gerenciamento central, ainda precisava de gerentes regionais, até como forma de organizar
melhor as ações para aqueles “bairros”. Assim eram chamados os países, já que
geograficamente, em relação ao problema das longas distâncias, separando uns dos outros, a
coisa não mudara muito. Assim havia o bairro europeu, o americano, o africano e assim por
diante, cada um com o seu Representante. Eventualmente, o “Mecanismo” reunia todos aqueles
representantes dos bairros da humanidade, para traçar novas metas de ação, projetos mais
voltados à qualidade de vida material, ou, às vezes mental.

E numa dessas reuniões ele ouviu, isso na verdade ele já o sabia, que as pessoas, começavam a se
entediar, com a sempre inflexível repetição das coisas da vida. Ocorre que passados milhares de anos,
algumas delas, começavam a se dar conta de que nada de novo acontecia em suas vidas. As novidades
eram apenas velhos hábitos e costumes, velhas práticas levemente modificadas ou maquiadas,
adaptadas aos novos tempos para dar a sensação de “novo”, e essa “constatação”, de que tudo era
uma entediante repetição, cada vez ficava mais clara, perturbando-as de modo avassalador.

Passados milênios vivendo numa mesma humanidade, dentro dos mesmos e velhos hábitos disfarçados
de novos modismos, ele, o ser humano, começa a se entediar de tudo, o que se torna um problema para
o “Mecanismo” resolver. Sim, porque as pessoas, em suas preces particulares, agora estão incluindo
essa ressalva: “Livre-nos do Tédio nosso de cada dia...”, e algo precisava urgentemente ser feito para
evitar a insurgência.

E como resolver esse problema, era a pauta daquela urgente reunião. Os representantes dos “bairros”
em volta de uma mesa, e no meio daquela sala, apenas a voz do “Mecanismo” eles podiam ouvir, e com
ela livremente interagir. E o Mecanismo, que a tudo ouvia, e tudo sabia, sobre todas as coisas e pessoas,
começou dizendo: “Lembro que na pré-história, eles rogavam para se livrarem dos problemas de cada
dia. Mas, agora, parece que não ter problemas tornou-se um pesadelo para todos. E ansiosos por
descobrirem uma forma de tornar suas vidas menos apáticas, rogam pela volta dos problemas, vá
entender...”, acrescentou bem humorado o “Mecanismo”.

Depois acrescentou: “Fundaremos então escolas que ensinarão as pessoas a criarem seus próprios
problemas, a serem infelizes. Isso vai requerer também a criação de Escolas que as ensinarão a
resolver estes problemas, e a criarem outros. Também, as pessoas não mais viverão eternamente, e
ficarão doentes. Com essas medidas simples, já terão um montão de problemas para encher os dias
que agora são considerados “vazios”. Numa segunda etapa, dividiremos o mundo em países

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separados, cada qual agora com seu próprio governante, e não mais haverá o poder central. Voltarão
os políticos, e os corruptos, e enganadores, e exploradores do povo, e com o tempo, a depender da
pressa e necessidade de cada um, logo o caos será restaurado aos seus dias, talvez maior que antes.
Assim, poderão ser infelizes, mas sem o referido tédio que a todos incomoda, isso enquanto viverem,
já que não mais serão eternos."

"Que assim seja feito!”

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O Inventor de Hábitos
Autor: Alberto Grimm [1]

Conduzir pelas rédeas um Animal, depois de Domesticado, isso é muito


Fácil...

Consumir dá uma sensação de "poder". Ter "poder" dá uma sensação de


conquista...

De tanto se criar coisas, produtos para qualquer fim, com ou sem


utilidade, a indústria de bens de consumo, de repente se encontrava
diante de um grande problema: “Não havia mais nada, nadinha,
para ser inventado”.

Na verdade esse já era um problema antigo, uma vez que todos os


novos produtos lançados no mercado eram apenas novas versões,
quer dizer, os antigos, levemente maquiados, para lhes dar uma
aparência de coisa nova. Mudava-se uma cor, acrescentava-se um
botão, ou uma mesma função com outro nome, mas tudo não
passava de coisa velha remodelada, mascarada.

Mas agora, depois de anos remodelando antigos produtos, os usuários se negavam a trocá-los por
“novos modelos”, uma vez que finalmente se perguntavam: “Por que estamos fazendo isso, se
o antigo faz a mesma coisa que o novo?”

As campanhas tentando convencê-los a mudar de modelo, por esse ou aquele motivo, ou pela
maior comodidade que o “novo” modelo supostamente iria proporcionar, se mostravam
ineficazes. Claro, o sinal de alerta acendera em toda indústria do consumo. Tratava-se um algo
grave, muito grave, uma crise sem precedentes. Sem dúvida, algo precisava ser feito com
urgência

"Precisamos criar um novo hábito nas pessoas. Mas, como fazer isso se todos já foram
tentados e explorados à exaustão?”, falou desesperado o coordenador daquela reunião, onde os
mais criativos diretores de publicidade do mundo estavam presentes.

"Não tem outro jeito”, concluiu frustrado. “Precisamos consultar o Oráculo!”, sentenciou
depois de muito relutar.

Não era coisa simples consultar o Oráculo. Para que ele atendesse, uma condição se fazia
necessária, e caso essa condição não fosse preenchida, havia, para o inquisidor, um castigo.
Castigo exemplar, sumário, a todo questionador, que ao pedir um conselho sem antes ter
explorado todas as possibilidades de solução do problema, se atrevesse a perturbá-lo. Que
castigo seria, isso ninguém nunca ficou sabendo, uma vez que, todos “felizardos” que até então
lhe apresentaram “falsos problemas”, haviam desaparecido para sempre.

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"Este é de fato um problema sério, um problema real!”, atestou finalmente o Oráculo, para o
alívio do ansioso e aflito grupo.

Era o Oráculo, um supercomputador revestido com forma humana. Dotado de uma


extraordinária e lógica Inteligência Artificial, alimentada por todo conhecimento da humanidade,
agia como gente. Ficava ele, numa ampla sala, iluminada por uma discreta luz azul indireta, que
lhe exibia apenas os inexpressivos traços faciais, e onde recebia seus convidados. E ele dá a
solução:

"Criar um novo hábito é muito simples, difícil mesmo é eliminar um antigo. Assim, a
solução para o problema está exatamente nessa verdade que podemos tratar como um
Axioma. Se todos gostavam de comprar, é porque todos gostavam de ter alguma coisa. Ter
não significa necessariamente possuir concretamente uma “coisa”, mas antes disso, é um
posicionamento mental. Por exemplo, Alguns são feios mas se acham bonitos; outros são
bonitos e se acham feios, e essas coisas não são concretas, tocáveis, são atitudes mentais,
comportamentos ajustáveis”.

"O problema é que antes, vocês vendiam apenas produtos para atender às necessidades
materiais, físicas. Agora, deve-se mudar o foco. Vendam produtos que atendam às
necessidades mentais. Por exemplo, por que não criar um aparelho, tipo telefone celular,
equipado com um “dispositivo revolucionário”, capaz de dar “coragem”, ou maior
“importância” ao seu feliz dono? Pode ser também outra coisa qualquer, que, de posse
daquele individuo, lhe dê a sensação de que ele pode se tornar qualquer coisa, isso
psicologicamente falando. Na dúvida se a coisa prometida é ou não real, ele tem o produto,
que pode ver e tocar, e claro, todo um condicionamento feito pela maciça publicidade que
apoiará cada lançamento. Podemos, com isso, fazer um individuo pensar o que quisermos
que pense...”

"Lembrem-se, uma atitude mental, com um “produto” que a “acione”, que sirva como uma
espécie de gatilho ou chave ativadora para o seu feliz proprietário, é sem dúvida, outra
coisa. Mas, a abordagem deve ser direta, do tipo: Compre nosso aparelho e se torne a mais
desejada, ou o mais desejado. Compre nossos produtos e mostre para os outros o quanto é
inteligente, ou sábio, e coisas assim. Desse modo, pouco importa ao comprador a utilidade
material, funcional, do aparelho ou objeto. Isso significa dizer que, podemos vender
produtos sem nenhuma função, ou, sem nada dentro, que concretamente não servem para
nada... Pensem nisso, e passem bem!”

Nas criativas mentes dos presentes, as ideias já brotavam aos montes. Era a certeza de uma nova era na
indústria do consumo. Novos milhões os aguardavam. Talvez fosse necessário, a partir daquele
momento, repensar uma maneira de construir galpões maiores, especialmente projetados para guardar
todo aquele lucro esperado.

E assim foi; e tudo aconteceu conforme o previsto...

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A Fórmula da Necessidade
Autor: Alberto Grimm [1]

Nem toda Necessidade é coisa Necessária

Adágio publicitário: "O Segredo é fazê-los crer que precisam


daquela coisa..."

E um cientista, o maior matemático de todos os tempos,


depois de muitos cálculos e pesquisas, chegou à
conclusão, e agora era capaz de provar através de
fórmulas matemáticas, que o ser humano precisaria de
certos “itens”, e estes poderiam ser objetos, ideias ou
outras coisas abstratas, que seriam imprescindíveis ao
seu viver. Era uma questão de necessidade, e agora era
oficial, científico, e a fórmula provava isso. Isso
significava dizer que, se a fórmula provasse, o indivíduo
não mais poderia viver sem aquela referida coisa.

Assim, por ser capaz de provar suas conclusões, ele


desenvolveu um método, uma técnica infalível para avaliar se alguma coisa existente, objeto,
palavra, crença ou qualquer outra, era ou não necessária, vital, ao ser humano. Era algo como ser
capaz de traçar o perfil de potencial de venda de qualquer produto existente, recém lançado ou
por lançar, no mercado de consumo. Com a aplicação do tal método e comprovação através de
sua fórmula, ele poderia afirmar se aquela coisa seria ou não de uso obrigatório pela sociedade, o
que induziria o ser humano a comprá-la, mesmo sem saber o motivo pelo qual o estaria fazendo.

Foi um alvoroço, um rebuliço sem precedentes no mundo acadêmico e da pesquisa científica, e


logo foram organizados seminários e conferências para que o resto do mundo tomasse
conhecimento da coisa. Era sem dúvida uma novidade, pois a partir de agora, através de fórmulas
científicas, estava comprovado que o ser humano, de qualquer parte do planeta, não importasse
crença, raça, nacionalidade ou nível social, não poderia sobreviver sem algumas “coisas”, que
aquele método era capaz de identificar com clareza. Ora, isso sempre fora o sonho de qualquer
campanha de publicidade, dos governos, dos ministros religiosos, enfim, de todos que desejavam
descobrir métodos para controlar e manipular a vontade das pessoas. E por isso, aquilo se tornou
uma questão de segurança mundial.

"Não adianta”, disse ele, “A fórmula e todo roteiro para a aplicação da técnica, está em
minha cabeça, e apenas lá. Nem uma linhazinha do processo foi documentado em papel, ou
qualquer outro meio onde se possa escrever. Não tornarei de uso público, é perigoso, será
para sempre um segredo só meu. Mas, para alguns, poderei calcular se seus produtos ou
ideias são, ou se tornarão, de uso obrigatório, e ainda poderei dizer o que falta no produto,
para que ele se enquadre como de “necessidade vital”. E tudo isso, é claro, pago, e muito
bem pago, afinal de contas, a fórmula já atestou que o uso dela mesma é uma necessidade
vital”.

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E todos queriam saber se seus produtos “seriam aprovados” pela fórmula. Passando pela
fórmula, um objeto, uma ideia, ou qualquer outra coisa, o sucesso estava garantido, afinal de
contas, cientificamente, era uma prova incontestável de que o ser humano “não mais poderia
viver sem aquele item que fora autenticado”.

E antes de entrar no mercado como uma “Espécie de selo de qualidade”, o selo mais desejado
do mundo, que apenas alguns felizardos poderiam estampar em suas marcas, criou-se um órgão
regulamentador oficial para fiscalizar o procedimento. Ideias ou produtos não autenticados ou
homologados pela fórmula, mas que usassem o selo sem autorização, seriam sumariamente
retirados de circulação e seus responsáveis punidos com o exílio perpétuo. Isso porque, depois da
coisa cientificada e aprovada pela fórmula, no cérebro das pessoas, aquela simples informação
acionaria uma espécie de comando mental, criando nelas uma depedência psicológica, e as
pessoas não mais poderiam viver sem aquela coisa. Por isso, criar “falsas dependências”, se
constituía um crime sem direito à fiança. Mas ficou combinado, que alguns vícios seriam
liberados.

E o primeiro produto aprovado pela fórmula, como de necessidade indispensável à existência


humana, foi um pequeno aparelho eletrônico, na verdade uma versão móvel de telefone. E logo
todos se perguntavam: “Nossa! Como foi que conseguimos viver até hoje sem isso, como era
possível?”. Depois vieram os livros, quer dizer obras impressas, que, segundo a fórmula, todos
precisavam ler, na verdade, não mais poderiam viver se não os lessem.

E como as crianças pequenas ainda não eram capazes de ler e entender o que estavam lendo, seus
pais e educadores se encarregariam de lhes passar o conceito por trás das páginas. Depois vieram
as ideias e modo de pensar que todos deveriam adotar como norma de vida, e assim por diante.

E uma criança implica com sua mãe: “Mãe, eu não aceito que o Universo foi criado por uma
explosão chamada Ping Pong, nem que o mesmo é quadrado e arredondado nas pontas!”. E
sua mãe tentando convencê-lo: “Mas filho, está comprovado pela fórmula, precisamos
pensar assim, você precisa aceitar essa verdade, essa informação é indispensável à nossa
vida!”.

E insiste o pirralho: “Para mim não é; não preciso disso para nada. Não há quem me faça
mudar de ideia!”. E sua mãe resolve a questão: “Está bem, você aceita a ideia e eu compro
aquela bicicleta azul que você pediu!”. Feliz da vida ele concorda: “Aquela aprovada pela
fórmula, que tem o selim com som MP3 polifônico?”.

Em outro lugar do mundo, cultura diferente, outra criança pergunta à sua mãe: “Mãe, por que
precisamos acreditar que o homem se desenvolveu a partir de uma Barata geneticamente
modificada, se no tempo de Charles Ratwin, o criador da teoria da evolução, ainda não
existia a fórmula?”.

"Ora filho, se a fórmula atestou, tá atestado”.

E desde aqueles tempos, qualquer coisa que fosse atestada pela fórmula como de necessidade

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vital à humanidade, seria consagrada como uma lei, um quesito que se tornaria parte integrante
daquele homem. Palavras, frases, ideias, conceitos que as pessoas deveriam repetir como parte
de suas personalidades, tudo isso passaria pela aprovação da fórmula.

E então aconteceu aquilo que ninguém esperava. A fórmula atestou, provou que os homens, na
verdade, não eram homens, apenas ainda não haviam se cientificado do fato. Mas agora que a fórmula
atestara, todos deveriam cumprir seus destinos. Não se tratava de uma escolha, a fórmula atestara que
os homens eram na verdade, Ratos urbanos, da espécie Gabirus Erectus.

Assim, desde então, nos tornamos Ratos urbanos, vivendo em imensas cidades degradadas, mas com
uma diferença, agora conscientes disso. E finalmente, antigos adágios tomaram seu devido lugar.
Dizemos agora: “Degrade sua cidade e viva feliz”, ao invés do antigo: “Cuide e conserve a sua cidade e
viva feliz”.

E por milhares de anos vivíamos felizes e conformados. Mas, agora, e eis que nos chega a notícia de que
outro cientista, um cientista Rato é claro, acaba de compilar uma nova fórmula, um novo teorema, que
prova que nós Ratos, somos na verdade humanos não conscientes. Pessoalmente eu não caio mais
nessas histórias, especialmente nessas ideias mirabolantes criadas por Ratos cientistas. Imagine só,
dizer que nós somos humanos, e ainda querer provar através de fórmulas que isso é verdade!

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Mudanças Genéticas
Autor: Alberto Grimm [1]

Às vezes, Mudar para Melhor, para muitos, pode significar o Pior...

Quem está com dor não espera para resolver no dia seguinte...

Depois de enriquecer como dono de uma fórmula mágica capaz de acabar de vez com a calvície,
aquele cientista, que passou a enfrentar sérios problemas por não ter mais onde guardar tanto
dinheiro, resolveu reunir a imprensa para tornar público seu grande segredo.

"Observando o coco, a fruta, percebi como ela era peluda. Aí foi fácil isolar o gene
responsável por criar cabelo em uma quenga de coco, depois foi só aplicar o princípio à
genética humana, e o resto da história, bem, essa parte todos já conhecem!”

Todos se entreolharam pasmos, como era possível algo tão simples ser a solução de um dos
maiores dilemas da vaidade humana. Mas a bomba maior ainda estava por vir, pois naquela
ocasião, ele, o grande inventor, faria outra revelação, esta capaz de resolver quase todos os
problemas da humanidade. E em meio à agitação que acabara por se formar diante do exposto,
ele pede silêncio, e calmamente acrescenta:

"Senhores, acabo de descobrir a célula tronco de todos os vegetais existentes em nosso


planeta. Isso significa simplesmente que, a partir de agora, sem nenhum processo
transgênico, podemos transformar qualquer vegetal em outro vegetal. Por exemplo,
podemos transformar um grão de arroz, em milho, e assim por diante. E mais, podemos
transformar capim em árvores frutíferas etc. Usem então a vossa imaginação, para
sentirem o poder dessa descoberta! E mais, logo faremos a mesma coisa com os minerais!”

A coisa era maior do que suas palavras podiam expressar naquele momento. Os alimentos agora
podiam ter sabores, qualquer sabor, ou sabores mistos, ou cores, ou cheiros, ou as vitaminas
desejadas. Assim, agora era possível produzir feijões do tamanho de abóboras, dotadas
naturalmente de complexos vitamínicos, e com sabores variados. Isso resolvia de vez a questão
da fome e dos combustíveis bio-renováveis, uma vez que um gramado de tamanho médio, podia
se transformar num imenso canavial, com canas de caules tão grossos, ou mais, que o tronco de
um Baobá[2].

Seguindo esse princípio, mesmo o lodo dos esgotos ou terrenos úmidos, podia ser convertido em
imensas plantações de qualquer coisa, e mesmo de arroz, com grãos do tamanho de melancias
gigantes, vitaminados, imunes a todas as pragas, resistentes ao calor e frio, a seca, etc.

E mais importante, ele estava disposto a abrir mão da patente, torná-la pública, genérica, para
que todos pudessem se beneficiar daquele processo. Mas, antes de tornar público sua descoberta,
para testar a viabilidade de um projeto de tal magnitude, de repente colocado em mãos dos
cidadãos comuns, ele patrocinaria uma comunidade, onde iria simular a aplicação da técnica, e
assim, poderia aferir os resultados.

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Seria uma espécie de piloto de provas. E dentre os integrantes, ter-se-ia representantes de todas
as classes sociais, credos, preferências, manias, enfim, um microcosmo da humanidade. Se a
coisa funcionasse ali, se não houvesse desentendimentos ou conflitos de interesses, funcionaria
no resto do mundo, em qualquer parte.

E como todos queriam participar do projeto, logo, antes de tudo, uma grande confusão teria que
ser resolvida. As instituições políticas, grupos religiosos, grupos étnicos, grupos sem grupo,
contestadores, como sempre, queriam lugar de destaque no projeto. Seriam privilégios
proporcionais ao tamanho de sua presença social, ou importância perante a opinião pública. E
aqueles contrários às mudanças transgênicas, também logo reclamaram do seu espaço,
argumentando que precisavam ver de perto os efeitos daquela coisa. É claro que se houvesse
entendimento, teria lugar para todo mundo.

O problema maior era então a reivindicação de privilégios, cotas diferenciadas, situações mais
favoráveis para uns, afinal, hierarquia e status social, deveria ser levado em conta. Criaram-se novas leis
para organizar a coisa, revogaram-se outras, anularam-se outras tantas, e logo o projeto teve início, ao
menos o processo de seleção dos candidatos.

E nesse vai e não vem, Passaram-se então muitos anos, desde o anúncio da coisa, até o fim das
discussões reivindicatórias. E quando tudo parecia resolvido, descobre-se que o cientista, detentor único
da fórmula mágica, já não mais existia. Sendo excêntrico, não costumava anotar em lugar algum suas
descobertas, e assim, tudo se perdera, para sempre.

Ao que alguém no meio da multidão lamenta: “Parece que a resolução de um problema não é a coisa
que se busca, mas antes disso, a multiplicação desse mesmo problema”.

Moral da história: A quem está realmente com fome, pouco importa a origem do alimento.

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Os Depredadores
Autor: Alberto Grimm [1]

Prevenir não seria mais Sensato que Remediar?

Cometer um erro é relativamente fácil, permanecer nele, mais


ainda...

A ideia era bastante simples, recolher o lixo e


transformá-lo em um produto economicamente viável,
uma fonte de lucro. O problema é que aquele não era
um lixo comum, tratava-se do lixo do lixo, ou seja,
aquele refugo que já foi reciclado muitas vezes, as
sobras das sobras, coisa imprestável, aquilo que
representava uma ameaça, uma degradação, até para o
próprio lixo.

No princípio não parecia uma questão digna de atenção,


uma vez que existiam muitas áreas disponíveis para
aterro desses dejetos, ou a escória dos refugos como era
mais conhecido. Mas, com a ampliação dos limites
urbanos das grandes cidades, que a cada dia se
expandiam mais, estes preciosos espaços foram requisitados a preço de ouro, pelos ávidos
construtores de moradias.

Eram espaços por demais nobres para serem ocupados pelo lixo dos lixos, por isso, sem mais
aterros disponíveis para abrigar tão indesejável inquilino, uma urgente solução precisava ser
criada, afinal de contas, o lixo crescia todos os dias, o espaço para abrigá-lo, não. E a população,
alheia a tudo isso, contribuía como podia para agravar ainda mais o problema, ou seja,
produzindo mais lixo. Ninguém queria deixar de trocar seus objetos considerados obsoletos, pelo
modelo da moda, apenas por causa de um “alienado” movimento ecológico.

"Por que exatamente eu tenho que pagar o pato?”, era a questão que corria de boca em boca.
E ninguém queria nem sequer pegar no pato, muito menos pagar o pato. A indústria do consumo
por sua vez, dizia fazer sua parte. “Temos centros de reciclagem para todos os nossos dejetos,
e tudo tem um destino certo.”, afirmavam. E tinha mesmo, o lixo, o mesmo monturo que agora
se tornara um problema sem uma aparente solução.

"É uma questão de sobrevivência para a própria indústria. Logo, no ritmo que vamos,
ninguém vai querer comprar mais nada, simplesmente, porque não terão onde jogar fora
os produtos que deveriam ser substituídos. E, talvez, seja até instituída por lei, uma taxa,
que será cobrada de cada indivíduo, apenas para que tenha o direito de jogar lixo fora.”,
desabafou um dos encarregados de bolar uma saída para o dilema.

E alguém teve a ideia de usar esse refugo para fazer tijolos, os tradicionais, que seriam usados

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em casas populares. Ocorre que, na feitura de cada tijolo, o dobro do lixo reciclado era gerado, o
que tornava aquela solução quase um ato terrorista.

E surgiu um novo movimento, o de racionamento do lixo caseiro. Cada cidadão era obrigado,
por lei, a gerar uma cota diária de lixo, cota esta flutuante, estipulada pela bolsa de valores, que
variava de acordo com a disponibilidade de novos espaços, naqueles já saturados e esgotados
aterros sanitários. Com uma predisposição inata para criar tanto lixo, logo um ancestral mito,
citado nas antigas escrituras, voltou com grande força ao meio social.

Afirmava esse mito dos antigos, que teria o homem se originado como criatura, como ente
biológico e racional que era, a partir da costela de uma barata, daí sua compulsão natural para
transformar seu planeta num imenso santuário de lixo. Mas não havia um consenso no meio
científico, pois alguns estudiosos diziam tratar-se, na verdade, da costela de um rato, o que daria
no mesmo, já que ambos têm no lixo sua ideia de paraíso.

E eles explicavam o aparente motivo da existência dessas duas correntes científicas. "No
original em Aramaico, a língua extinta das antigas escrituras, o termo "Baratus Costellus"
foi traduzido de forma incompleta, e apenas parte do texto foi considerado, ou seja, "Ratus
Costellus".

Detalhes a parte, a questão é que o problema persistia e precisava de uma ação imediata e
enérgica da parte do estado, da parte de todos, ou o caos assumiria de vez o posto que por tanto
tempo afirmara, por direito de herança, merecer ocupar, dentro dos grandes centros urbanos.

"E se colocássemos escondido dentro de caixinhas decoradas de vários tamanhos, ou coisa


semelhante, esse refugo do refugo, em sua forma desidratada, o que não geraria mais lixo, e
lançássemos no mercado como uma espécie de produto revolucionário que todos deveriam
ter?”, sugeriu alguém.

Era uma boa ideia, na verdade excelente, uma vez que, apesar do pequeno volume de cada
caixinha, se vendida aos milhares, ou milhões, resolveria de forma criativa o problema. Sem
contar que, cada feliz possuidor, sem o saber, faria de sua própria casa um pequeno depósito de
lixo, o que seria até uma espécie de vingança do lixo. E ainda, como produto, a depender do
marketing e da abordagem publicitária a ser empregada, poderia se tornar um artigo de luxo, de
exportação, levando discretamente a bomba oculta para outras e distantes paragens.

Seria fabuloso se a coisa lograsse êxito, pois a indústria teria em mãos a mais revolucionária
forma de ganhar dinheiro, cuja matéria prima era abundante, e ainda por cima, os produtores lhes
pagavam para se livrar dela. Seria a primeira vez na história da economia, que um segmento
produtivo ganharia dinheiro para obter a matéria prima, e também ao vender os produtos
fabricados a partir desta.

"Senhores o futuro é extraordinariamente promissor. Se a abordagem publicitária vingar,


ganharemos rios de dinheiro vendendo o lixo que nem o lixo aceitaria, e ainda faremos com
que seus felizes proprietários, se sintam realizados com isso. Explorando um pouco mais a
ideia, por que não usarmos também para fabricarmos tijolos decorados, não o modelo

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tradicional, mas do tipo que nem de pintura adicional irá precisar. Será uma revolução, e
um excelente meio de nos livrarmos de ainda mais lixo”.

O projeto estava definido. Uma linha inicial de dois produtos seriam os carros chefes da
empreitada. As Caixinhas da Felicidade, em cujo interior depositariam o lixo prensado, seriam
ricamente decoradas por fora com símbolos tradicionais da sorte ou estampas variadas, até ao
gosto do freguês. Teriam aparência de coisa sólida, e era um objeto de decoração, que deveria ser
colocado em prateleiras, estantes, sempre à vista, até como símbolo de status, ou apenas
indicando que aquela família estava em dia com a moda.

Seriam hermeticamente fechadas, lacradas, invioláveis, inquebráveis, quesitos necessários, até


como forma de nunca descobrirem qual o seu conteúdo, mas que ajudaria e muito aos criadores
das campanhas publicitárias na promoção do produto. Por fora brilhantes, polidas, cantos
arredondados ou apenas suavizados, algumas com cheiros especiais, de fato, um objeto que logo
se tornaria um artigo de luxo, uma evidência de status social.

De tamanhos variados, o protótipo foi disputado quase às tapas pelos próprios idealizadores, isso
já era um claro indício de como seria a aceitação lá fora. Enquanto que os tijolos decorados, ou
simplesmente coloridos, seriam apresentados como uma tendência, um conceito revolucionário
no segmento da construção civil. Chegariam ao mercado em dois tamanhos: Tijolo inteiro e meio
tijolo, até porque não dava para quebrá-lo, caso o pedreiro precisasse fazer um ajuste necessário.
Deu tão certo que precisaram criar várias fábricas em separado apenas para esse produto.

A abordagem de marketing das Caixinhas Decoradas foi singular. Famosos mostravam as suas,
debates foram organizados para explicar o novo fenômeno, e aquilo passou a representar uma
espécie de perfil do seu feliz possuidor, um crachá que revelava sua personalidade, seus gostos
pessoais, a qualidade de sua posição social. Designers eram especialmente contratados para a
criação de modelos exclusivos, coleções limitadas, edições de luxo. E o mercado antes
inexistente para os dois produtos, prosperou sem que houvesse registro histórico de fato
semelhante.

E cresceu tanto o consumo que a matéria prima ameaçou ficar escassa. E os produtores de lixo do lixo já
não mais pagavam para se livrar de tão valiosa mercadoria. E a coisa se inverteu. A lei que obrigava os
cidadãos a produzirem pouco lixo foi revogada, substituída por outra que incentivava a produção. E com
lixo agora valendo tanto dinheiro, degradar como nunca o meio ambiente, se tornara o mais rentável
empreendimento da história de todas as civilizações, sendo mesmo considerado pelos governos, um ato
de cidadania e atitude patriótica.

Foi quando surgiram as campanhas de incentivo à produção da tal matéria prima, e uma delas dizia
assim: “Se agora o lixo é um amigo do homem, porque não transformar o mundo numa enorme
lixeira, onde poderemos, enfim, viver, num ambiente digno do nosso status?”.

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Efeito Colateral
Autor: Alberto Grimm [1]

O Questionamento não é um Atributo do Imprudente

Cometer um erro é relativamente fácil, permanecer nele, mais


ainda...

Depois das muitas mudanças na genética de tudo que era


dotado de vida sobre a terra, muitas coisas aconteceram.
E Novas espécies animais surgiram. No principio eram
apenas animais feitos “sob encomenda” para entreter as
crianças. Sim, a moderna ciência era capaz de criar, por
exemplo, um animalzinho novo, como nos joguinhos de
computador, onde as crianças misturavam os pedaços, as
partes, de diferentes espécimes, para dar origem a algo
bizarro, ou engraçado, como diziam.

Agora eles podiam fazer isso com animais de verdade.


Era simples, bastava chegar no balcão de uma das lojas
credenciadas, e solicitar o animal desejado, por mais
estranho e improvável que pudesse parecer. A própria
criança podia desenhar o modelo em um dos simuladores disponíveis para isso. Em dois dias
estava pronto, já no tamanho grande, de acordo com as preferências do cliente.

E por um bom tempo, o sonho de consumo entre as crianças, era um modelo que falava e lia
contos para elas dormirem. Era a sensação e o “Hit” da moda das maciças campanhas
publicitárias, que incitavam as crianças a terem um. Seus olhos eram de gato, o que era ideal para
ler no escuro. Sua voz era humana, suave, como a voz de um grande orador, ou oradora, ajustada
especialmente para os sensíveis ouvidos infantis. Seus dedos aveludados, assim podiam acariciar
os pequenos fazendo um temporário papel de mãe, ou babá.

Use sua imaginação e lá estava o animal correspondente. E se espalharam sobre a terra, e se


multiplicaram, dando origem a outras tantas espécies exóticas. E para aqueles que não
gostavam de animais, mas apenas das suas carnes, era possível criar espécimes apenas para o
corte, de acordo com o gosto de cada um. Podia ser com diferentes sabores, ou já temperados, e
assim por diante.

Não havia um limite ético estabelecido onde a ciência pudesse afirmar: “Aqui nós paramos.
Desse ponto em diante não é possível continuar.” E tudo era feito para servir ao novo homem.
Este, aliás, geneticamente modificado, de modo a não padecer mais de nenhuma doença. O que
no princípio fora um grande problema para os médicos, e políticos, e todos aqueles, que não mais
podiam lucrar ou se promover motivados pelo caos na saúde, ou sofrimento daquele povo. Sem
falar no prejuízo das grandes corporações farmacêuticas.

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Estas, aliás, deram a volta por cima, e agora dominavam o império das mudanças genéticas.
Dinheiro, ganhavam agora mais do que no tempo das grandes doenças, das pandemias, onde a
desarmonia predominava, o que fazia os saudosistas do caos verterem lágrimas verdadeiras.
“Bons tempos das grandes pragas, dos bajuladores, quando nos idolatravam em busca de
conforto; das doenças crônicas, quando sabíamos que nossa medicação, além de não curar,
criava dependentes. Dependentes que eram fiéis, e sempre voltavam espontaneamente às
farmácias, e postos de saúde. Nossa, quanta saudade...”

E os animais ganharam inteligência. Sensatez não, afinal eles tiveram como professores os
humanos. E mudaram também os insetos, e mesmo os espécimes virais. Mas a história não
poderia ter sido escrita de outra forma. Com o aumento da expectativa de vida para um patamar
quase infinito, logo todos se perguntavam se o paraíso não seria algo semelhante a aquilo que ora
já experimentavam na terra.

Sendo assim, não precisava ninguém se mudar, quer dizer, morrer para desfrutar de tal benesse.
Se mudar para quê, se ali já estava tudinho? Tudo que se poderia esperar de um paraíso, e ao
vivo, literalmente falando, e podendo ser usufruído imediatamente, sem obrigações, sem taxas,
sem rituais, sem filiações sectárias, sem a intermediação de nenhum ministro religioso, sem
esforço, ou idolatrias, ou penitências de nenhuma espécie.

Sem objetivos, com uma sobrevida quase interminável pela frente, encontrar coisas para se
manter ocupado, se tornara o grande problema de todas as nações. E achar maneiras criativas
para preencher um longo e tedioso dia, torna-se a única motivação daquela humanidade. Por isso
tudo era permitido.

E Ninguém mais adoecia, nem precisava tomar remédio, nem se curvar aos deuses para se obter
cura ou saúde, ou bens materiais, afinal isso já se possuía, de berço, sem obrigação nenhuma a
cumprir. E o imenso tédio de se viver centenas de milhares de anos, sem a promessa de um
paraíso a lhes esperar em lugar incerto, e sempre repetindo as mesmas coisas, levou esse homem
à insensatez, e da insensatez à total destruição.

Por isso sobraram apenas os escombros das grandes cidades, e as cinzas das grandes florestas, e
o deserto de pedregulhos e lama onde antes existiam os mares e as águas límpidas.

Explorando aquele ambiente sabidamente hostil, que restara, onde o perigo poderia estar à
espreita dos descuidados, o explorador se deteve no alto da colina e observou pacientemente o
cenário desolado, misterioso, silencioso, que não exibia o real perigo oculto em suas sombras;
sombras que, como espectros fantasmagóricos de uma alucinação, se erguiam impassíveis, diante
de seus olhos atentos.

Ali já fora uma grande e próspera cidade. Milhares de pessoas a circularem em suas largas e
suntuosas ruas, e lojas, despreocupadas e imersas em seus mundos particulares, indiferentes, a
consumirem qualquer coisa, como autômatos programados, até que o dia “X” chegara sem
prévio aviso. E apenas os escombros chamuscados em contraste com aquele céu sempre
cinzento, sem expressão, era o que agora se via. Quem, dos dias de glória imaginaria aquele final
como ponto de chegada para aquela avançadíssima civilização?

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E o explorador conhecia bem toda história. Afinal, seus ancestrais viveram entre aqueles
habitantes. Foram concebidos a partir da ciência deles. Lembrou das antigas escrituras, onde o
homem dito civilizado, que exaltava sua compaixão para com a vida, desprezava os animais ao
tê-los como fonte preferida de sua alimentação. Aliás, essa sempre fora uma questão que
pessoalmente o incomodara por uns tempos. Se aquele homem dizia prezar pela vida, por que
desprezava a vida dos demais seres vivos? Lembrou que isso fora assunto para sua tese de
doutorado.

Do ponto de observação onde estava, pode ver se esgueirando entre as sombras, uma das
criaturas híbridas, esta meio homem, meio verme, uma espécie natural, uma evolução do próprio
homem bárbaro que restara após a destruição. Como a genética de ambos, verme e homem eram
semelhantes, fora uma questão de adaptação, um processo seletivo natural, sua adaptabilidade ao
novo e inóspito ambiente. Assim surgira o “Homus-rasterus”, uma temível espécie predadora
de todos os outros animais.

Tratava-se de um inimigo natural de todos, até de si próprio, por isso todo cuidado com ele era
pouco. Mas, era pouco inteligente, a exemplo do seu antecessor. Preocupava-se apenas em caçar
e depois comemorar suas conquistas, sem se preocupar com o dia seguinte. Particularmente,
pensava o observador, aquela espécie era uma ameaça ao equilíbrio de qualquer mundo que
prezasse pela harmonia. Por isso deveriam ser mapeados para depois serem isolados dos demais.
E esse, naquele momento, como observador, era seu papel.

Felizmente, graças às mesmas mudanças genéticas responsáveis por tudo que acontecera, agora a
raça predominante naquele mundo era outra. Um novo “ser”. Este, mais respeitador do seu
próximo, mais coerente em seus princípios morais. Lembrou que antes do “grande dia”, sua
espécie fora uma subjugada do poderio e crueldade dos antigos habitantes, os humanos, servindo
apenas como material para suas pesquisas. Mas agora estavam livres para sempre do império da
crueldade humana. Ele, um simples Rato Branco, agora com maior capacidade intelectual,
maior que a dos antigos dominadores.

Com maior estatura, caminhando sobre duas pernas, com mãos e braços plenamente
desenvolvidos, sem rabo e com um rosto de aspecto humano juvenil, deixara de rastejar desde
tempos imemoriais, Caminho inverso ao que seguiu seu antigo dominador.

Sem perder mais tempo, transmitiu à sua base o local que deveria ser considerado de alto risco
para os seus, uma vez que a presença do temível “Homus-rasterus”, fora ali detectada.

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A Missão
Autor: Alberto Grimm [1]

Há um Limite para a Ciência?

Importante não é conseguir, mas valorizar a conquista...

Evolução era coisa do passado, o termo mais usado era, naquele momento, Modificação
Genética Programada. Se num primeiro momento da história evolutiva dos seres vivos, os mais
capazes serviam de matrizes para as classes sucessoras, agora, com o progresso de sua ciência,
isso não era mais necessário. Todo projeto de seres vivos, naquela civilização, podia ser
idealizado, programado, e depois, colocado em prática.

Assim, os habitantes de agora, representavam, antes de tudo, a mais ousada obra jamais feita
pelos cientistas. Era um processo evolutivo forçado, feito literalmente de forma manual, pelos
autores do projeto. E o resultado, seres inteligentes, conscientes do seu papel naquele mundo,
mas sem esquecer suas origens. E era do que se ocupava naquele instante aquele singular grupo
de cientistas, arqueólogos.

Cuidado extremo em preservar intocado o ambiente recém descoberto, era a maior preocupação
do grupo de apoio. Salteadores, ladrões de relíquias, disso deveriam preservar aquele imenso
sitio, antes citado apenas nas lendas e folclore daquele povo. Deveria, portanto, ser uma
investigação discreta, sem a presença dos meios de comunicação, longe da possibilidade de

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tornar público tão espetacular achado.

Não podiam correr tal risco, seria imprevisível a repercussão, poderia alterar todo lastro histórico
daquela avançadíssima civilização, sua origem, seu futuro. Sequer a equipe de segurança poderia
se aproximar dos intrigantes vestígios que ora, à flor da terra, se podia ver. Uma catástrofe
natural, uma calamidade, uma sucessão de terremotos, furacões, enchentes, foram as causas da
descoberta, e alguns anos depois, enquanto ainda tentavam medir o tamanho dos estragos, a
surpresa do achado, tornara tal contabilidade coisa sem importância.

Caminhando com dificuldade sobre o relevo do terreno dilacerado pela natureza, aquilo que
agora podiam vislumbrar, deixou-os petrificados, por vários minutos estáticos, como estátuas
vivas, sem respirar, e só quando já lhes incomodava a faltar de ar, recobraram o fôlego e a razão.

Há dois anos atrás, antes que as rachaduras do terremoto escoassem suas águas, aquilo já fora um
lago, o maior existente em todo planeta. Por isso nunca haviam encontrado as ruínas que ali, por
milênios se ocultara. Tratava-se de uma cidade, uma megalópole, cujas ruas e praças,
cuidadosamente traçadas, agora se podia ver. Sem dúvida, um digno espetáculo para a ciência.

A maior parte daquelas construções ainda estava debaixo da terra, ou lama, mas, o pouco que se
podia ver, já significava o muito que sempre sonharam encontrar um dia. Eram edificações
magníficas, gigantescas, feitas com extremo zelo e delicadeza. Detiveram-se diante de uma
delas. As imensas janelas, ainda com sua madeira original, pintadas numa cor agora inexistente,
enfileiradas lado a lado naquelas imensas e sólidas paredes de tijolos e concreto, tudo
milagrosamente conservado, indicava que ali já fora um enorme casarão.

As telhas gigantes, algumas inteiras, ainda cobriam parte daquele espaço. Nos demais cômodos,
onde as paredes não mais existiam, formas constituídas de vários materiais desconhecidos,
objetos de variados tamanhos, ainda careciam de um estudo mais demorado, para lhes definir
uma utilidade, um nome. Era difícil para o grupo organizar as ideias com suas mentes
completamente tomadas de encanto e admiração por tudo aquilo. Ao se aproximarem da imensa
porta da edificação ainda de pé, a ansiedade entre os presentes, era impossível de conter.

"Portas de tal magnitude, só mesmo, segundo os relatos pré-históricos, podiam ser


encontradas, nas moradas dos antigos deuses...”, comentou quase sem voz o chefe do grupo
de batedores. Não era fácil, afinal, ciência e crença agora estavam face a face, e o que antes era
lenda, naquele momento tornara-se coisa concreta, tão real quanto a expectativa que existia
dentro de cada um. O que descobririam ali naquelas ruínas; o que o destino lhes reservara para
aqueles dias?

Falar em dormir soava quase como uma blasfêmia, tão improvável quanto encontrar um político
que apenas falasse a verdade. E a noite fora de planejamento intenso, marcação dos primeiros
pontos a serem explorados. Tudo precisava ser cuidadosamente examinado, sem retirar nada do
local, pois só assim seria possível traçar um caminho lógico, dos últimos acontecimentos que
marcaram aquela antiga civilização.

"E se encontrarmos vestígios dos antigos habitantes?”, questionou, sem obter respostas, meio

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inseguro, um deles, no intervalo de um dos longos e repetidos lapsos de silêncio, que, com
frequência, tomava conta de todo grupo. Conheciam bem as lendas, estava tudo bem
documentado, e se estavam ali à espera de um amanhecer para iniciar a exploração, deviam isso
a ciência dos antigos, que, com sua avançadíssima genética, tornara isso possível.

Muitos foram necessários para mover, o suficiente para que pudessem entrar no recinto, a
monumental porta de madeira maciça, um dos mais extraordinários vestígios dos antigos
habitantes. Era um ambiente amplo, com mais de um pavimento e vários recintos com portas
fechadas. A iluminação que atravessava o telhado incompleto tornaria o trabalho, a busca por
respostas, mais fácil. Ainda assim, não abriam mão de suas potentes luminárias e lanternas
artificiais.

Livros imensos, grande parte deles bem maiores que um indivíduo, podia se ver nas prateleiras
de uma grande biblioteca, assim como máquinas primitivas, restos de aparelhos eletrônicos
arcaicos, bem desgastados pelo tempo. E tudo isso, deixavam-nos estupefatos, sem saber por
onde começar. Mas, nada comparado com a descoberta que fariam em um dos imensos quartos.
Demorou para que conseguissem se recompor, para que a razão plena outra vez os tornassem
lúcidos. Parecia um desses sonhos onde não se consegue despertar.

A escrita era clara e bem conhecida por todos os presentes. Tratava-se da língua daqueles que um
dia foram chamados de deuses, os mesmos precursores da ciência genética que havia criado a
base da atual civilização. Uma das duas cientistas do grupo, doutora em antropologia, examina
então comovida, o magnífico achado, enquanto as lágrimas encharcam seus delicados olhos. A
lápide ao lado do corpo explicava tudo, e ele, o esqueleto, fora ali deixado com esse propósito.

Agora, diante da evidência de que finalmente encontraram os restos da antiga civilização, local onde
viveram seus criadores, eles contemplam o imenso esqueleto de 1,80 de altura, de um deles. O cientista
chefe, do alto dos seus 12 centímetros de estatura, o maior dentre o grupo dos indivíduos ali presentes,
não consegue ficar impassível diante do gigante, e se emociona tomado pelo pranto.

Eles que agora eram capazes de pensar, de construir máquinas sofisticadas, de modificar geneticamente
qualquer estrutura viva, sem esquecerem que um dia, já foram simples macaquinhos, a menor espécie
de saguis. Pequenos símios que se comunicavam entre si através de gestos e guinchos, caminhando de
forma precária apoiados em quatro patas, longe da aparência humana que ora possuíam. E tudo isso,
deviam aos seus criadores, que num dia remoto os modificaram geneticamente, dando-lhes o atual
aspecto, e desde o grande cataclismo, eram as únicas formas de vida inteligente sobre a terra.

Os Homus-saguis, agora aptos a recriar seu antigo criador, seus deuses, aptos a transformarem, mais
uma vez, sua própria civilização, recriando todos os novos indivíduos, a partir daquele dia, de fato, como
diziam as antigas lendas e escrituras, à imagem e semelhança do seu criador.

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O Intérprete
Autor: Alberto Grimm [1]

Não existe Mistério, apenas falta de Interpretação

Diz um antigo adágio: "Descobrir é a arte de


revirar o que agora não serve, em busca do
que serve..."

Diante deles, um imenso corredor


revelava que antes de existir qualquer um
de sua espécie sobre aquele solo, outros
seres mais avançados, também por ali já
haviam passado. Pelo menos aqueles
sabiam erguer paredes bem feitas,
cobertas de argamassa de primeira
qualidade, que mesmo depois de passados
centenas de anos, sabia-se lá quantos,
ainda permaneciam impecáveis, como se
o pedreiro acabasse de dar os retoques
finais. “Pelo menos em acabamento
fino de ambientes eles eram
superiores...”, comentou um dos cientistas ali presente, intrigado com a predisposição natural de
sua raça, em não ser muito amiga de ambientes asseados.

Ao descerem até o local das escavações mais recentes, entraram em uma sala, onde se podia ver
uma grande mesa, cercada por enormes cadeiras, e arrumada como se um jantar estivesse para
ser servido. Certamente que aquele jantar nunca se realizou, pois um evento catastrófico, o
mesmo que dizimara toda aquela antiga civilização, acontecera de forma inesperada, antes que
alguém fosse capaz de perceber alguma coisa. Vultos cobertos de pó e sentados em volta da
grande mesa, como numa espécie de obra bizarra, indicavam que os personagens ainda estavam
ali presentes, ao menos o espectro de suas formas, ou o que restara delas.

Observando de perto, perceberam os cientistas, que não poderiam tocar em nenhum deles, pois
apenas uma fina camada de poeira acumulada com o tempo e solidificada pela umidade, é que
ainda os mantinham na posição de sentados. Com o equipamento certo, as modernas máquinas
de ressonância, poderiam ver o que havia escondido dentro de cada um daqueles invólucros.

Eram seres enormes, bem maiores em tamanho que eles próprios, e a julgar pelas primeiras
imagens obtidas no local, também radicalmente diferentes em aspecto físico. Era sem dúvida
uma descoberta sem precedentes na história daquele mundo, a maior e mais importante até
aquele momento. Examinando mais aquele sítio, descobriram que também, aqueles antigos
habitantes, dormiam em camas, que proporcionalmente aos seus tamanhos, eram enormes.

Como o sítio era vasto, a descoberta mais importante de todas só iria acontecer algumas semanas

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depois. Tratava-se de uma biblioteca, e de lá saíram os livros que estavam escritos em uma
língua incapaz de ser interpretada, até pelos mais destacados cientistas e arqueólogos existentes
até então. E quando todos já se davam por vencidos, afinal não havia chance nenhuma de se
traduzir uma linha sequer de tal escrita, uma nova e desconcertante descoberta mudou tudo.

Encontrara-se um decodificador, uma espécie de livro que era uma chave mestra, uma espécie de
Pedra de Roseta2, capaz de decifrar tudo que fora escrito por aquele misterioso povo.
Estranhamente, o livro decodificador, estava escrito numa língua bem próxima daquela que todos
atualmente falavam. Não era um dialeto igual, mas a raiz da linguagem, a estrutura morfológica e
mesmo o significado de várias palavras, indicavam que possuíam uma origem comum. Nota-se
então que o livro fora escrito numa data posterior a dos textos encontrados no estranho dialeto.

Isso significava dizer que, os autores do livro decodificador, não foram os mesmos autores dos
textos originais guardados na biblioteca. Certamente que fora obra de outra civilização, uma
posterior, que conhecendo a escrita antiga, e prevendo que tudo poderia se perder, criara o
decodificador. Estava escrito em papel indestrutível, imune às reações orgânicas e químicas
naturais, não sujeito então à ação do tempo, daí seu perfeito estado de conservação.

E quando os cientistas chegaram a uma conclusão, perceberam que parte daquilo que ora
tomavam conhecimento, já fazia parte da sua mitologia, e de antigas tradições há muito
esquecidas no tempo. Então uma grande conferência foi organizada para informar da conclusão
das descobertas. Em primeiro lugar ao mundo acadêmico, e depois em parte, à grande população.
E, a partir daquele dia, apenas a imaginação dos mais criativos indivíduos daquele povo, não
seria suficiente para prever o que viria pela frente; o que mudaria em seu já tumultuado mundo.

No primeiro diagrama exibido no telão pelo coordenador do grupo de pesquisadores, um ente de


grande porte podia ser visto, e isso logo causou agitação entre todos os convidados. “Senhores”,
começou o expositor, “precisamos mais do que nunca de nossa mente de cientistas e
pesquisadores. Isso significa, uma mente que deve estar sempre aberta, livre de dogmas e
disposta a questionar toda verdade, até essa que até então conhecemos, e que rege nossos
passos e crenças, pois sem isso, talvez não possamos prosseguir”.

A ilustração mostrava um ser semelhante em aparência a eles próprios, ao menos em alguns


pontos, especialmente no fato de andarem eretos, além de possuírem olhos e boca frontais e um
abdômen bem desenvolvido. Mas as semelhanças acabavam por aí. “Eles também se
comunicavam, como nós, através de palavras, e também possuíam boca, língua, e claro,
ouvidos...”, informou o relator.

Mas a revelação que viria a seguir era uma verdadeira provação, até para o mais cético de todos
os céticos, entre aqueles que ali estavam presentes. Depois de uma longa pausa, falando com
aparente emoção, o cientista chefe, declara:

"Somos na verdade, os últimos descendentes desses antigos seres. Somos uma nova espécie

2
A pedra de Roseta, era um bloco de granito negro que foi encontrada no Egito em 1799. Nela estava escrito um
decreto sacerdotal do Egito antigo em três línguas. Hieróglifos, Demótico egípcio e Grego clássico. Graças a isto, foi
possível a interpretação dos hieróglifos egípcios como hoje os conhecemos.

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desenvolvida através de engenharia genética, a partir do DNA3 original deles. Criados de


modo a nos tornar mais resistentes, ainda mais adaptáveis, e com mais possibilidade de
sobreviver às intempéries que sabiam iria atingir aquela antiga civilização. Podemos dizer
que fomos criados para uma nova realidade, para um mundo onde eles próprios, com essa
estrutura que podemos ver no telão, não conseguiriam sobreviver. Somos seres híbridos,
isso quer dizer que o DNA original deles, foi misturado ao DNA de outra espécie também
existente naqueles dias, e disso resultou o que agora somos...”

Quase não dava mais para continuar, pois a inquietação entre os presentes só aumentava. Mas a
autoridade e reputação daquele grupo de cientistas responsáveis pela descoberta, estudo e
tradução de tudo que fora encontrado, especialmente do relator, era naqueles assuntos,
inquestionável. E o papel de todos os espectadores, também indivíduos de ciência, seria deixar
de lado todas as resistências pessoais, e se abrirem de vez para a nova realidade, irrefutável, por
se basear em fatos concretos, comprovados, assim como exige tudo que se presta a ter apoio e
reconhecimento cientifico. E prossegue ele:

"Aqueles seres atingiram um grande progresso cientifico, e ao seu DNA pessoal,


acrescentaram o DNA de outro ser existente, este capaz de proezas quando o assunto era
sobreviver em ambientes inóspitos, impróprios à vida, ao menos para o modo como viviam
naqueles tempos. Senhores, podemos então chamá-los de nossos Criadores, já que a partir
de si mesmos, nos criaram como somos agora...”, suspira. Toma um gole de água, observa o
salão onde agora o silêncio é apenas quebrado pelo barulho da central de ar, se afasta da tribuna
e se dirige ao meio do palco, e percorre a si mesmo com os olhos, e voltando-se para o auditório
diz para todos:

"Somos uma evolução podemos afirmar. Em comparação aos nossos criadores, que possuíam apenas
dois braços, dependiam de uma enorme quantidade de alimentos e energia para manter sua altura
média de 1,80 centímetros, e não podiam, como nós, que hoje temos apenas quinze centímetros de
altura, voar. No entanto, herdamos muita coisa deles, até o nome da espécie, e se hoje, como eles,
somos chamados de HUMANOS, nosso parente secundário, de onde foi extraído o DNA que nos deu a
adaptabilidade e capacidade de sobreviver nos ambientes mais improváveis, de nos alimentarmos de
quase tudo, aquele do qual herdamos maravilhosos quatro braços e asas, chamava-se simplesmente,
BARATAS.”

3
O DNA, é uma sigla usada pela ciência para designar os caracteres hereditários, uma espécie de assinatura
biológica que possui cada espécie viva sobre a terra, transmitida para todos os seus descendentes.

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O Coral
Autor: Alberto Grimm [1]

Ausência de Acuidade, excesso de vaidade...

Um tesouro pessoal quando se torna público, logo desperta a cobiça de muitos...

Minha mãe me explicou direitinho o que significavam os vários tipos de


sons. Ela disse que os sons das vozes podem ser graves ou agudos.
Grave é o som mais alto, o mais forte, o mais grosso. O agudo é o
som mais fino, mais baixo. Assim, uma voz fininha como a minha é
aguda, e uma voz como a dela, que é mais grossa, é grave. Depois ela
complicou tudo quando disse: “Tenor é o cantor de voz fina, ou
aguda, enquanto que Baixo é o cantor de voz mais alta, ou grave.”
Preferi ficar com a primeira explicação, pois essa eu entendi bem.

Em nossa escola, nos ensinam a cantar todas manhãs. E antes mesmo


de qualquer atividade, logo nos reunimos para cantar. Para falar a
verdade, adoro cantar. Também gosto de observar meus amiguinhos
cantando. Fico prestando a atenção para ver que tipo de voz eles
possuem. Percebo que às vezes muda muito. Ora é grave, ora é agudo,
ou ambos; nunca é uma coisa só. Mas a minha voz é sempre fininha, é
uma coisa só. Perguntei para ela, por que cantar é tão bom, e ela me respondeu
que, cantar é melhor que chorar. Perguntei se ela chorava e ela disse que não, simplesmente
porque cantava. Fiquei pensando um pouco naquilo, e vi que era assim mesmo.
Lembro de um dia que estava sem vontade de cantar, e logo senti vontade de chorar. Será que
cantar é o contrário de chorar? Talvez seja por isso que na porta da escola tem uma placa onde
está escrito: “QUEM CANTA SEUS MALES ESPANTA.”

Outro dia, no pátio de um supermercado, vi uma menina chorando. Perguntei a minha mãe
porque ela estava chorando, se era porque não sabia cantar. Minha mãe disse que não. Disse que
ela chorava porque sua natureza era diferente da nossa. Disse que ela possuía uma natureza
complexa, e que desde cedo aprendiam logo a serem infelizes. Por isso mesmo nunca se
contentavam com aquilo que já possuíam, com aquilo que a natureza mãe lhes deu. Assim,
criavam muitas necessidades, tinham muitos desejos, e ela estava chorando exatamente porque
um dos seus desejos não fora realizado. Perguntei se aquela mulher de cara brava, ao seu lado,
era a mãe dela, e minha mãe disse que sim. A menina olhou para nós e por um instante ficou
quieta. Depois saímos de lá, sem saber o resultado final.

No dia seguinte, contei para minha professora aquele fato. Ela então nos falou sobre os
estranhos, sobre como são perigosos, sobre como não devemos confiar neles. Então nos contou a
história de um cantor famoso, que gostava de ensinar às crianças a arte do canto. Perguntei se
aquilo não era uma lenda, pois lá em casa também ouvira falar dele, só que meus pais nada mais
acrescentaram. Ela disse que não era lenda, tudo acontecera de verdade, que ele realmente
existira. E contou sua história.

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Ele criou os corais. Sua voz era incomparável, e era ainda capaz de cantar em todos os tons.
Criava músicas de improviso. Como ele ninguém fazia igual, e nem por isso era vaidoso. Não
gostava de competir nos torneios da comunidade, pois dizia que isso dividia os indivíduos, criava
desunião, tirava a espontaneidade de ser de cada um. Nunca competiu, e defendia que isso era a
causa do todo desentendimento que existe nos relacionamentos.
E explicou, se alguém tinha ciúmes dos feitos do outro, logo queria competir, ou para se igualar,
ou para superar. Mas no final, quem saia ganhando se a competição sempre continuava? E ele
dizia: "Se alguém ganha, quer ganhar sempre. Assim, a alegria do prêmio logo se
transforma em inquietação, pois estará sempre preocupado em não perder".

E ele ensinava pessoalmente o canto às crianças. Gostava de fazer isso de forma voluntária, mas
ressaltava que não estava a mando de ninguém. Fazia isso porque era sua vocação. Fazia porque
dizia que ensinar alguém a ser livre, a não depender de favores nem dos opressores, era a
verdadeira felicidade a ser conquistada. Nunca se preocupou em escrever nada sobre o que
ensinava, pois dizia que para aqueles aos quais ensinava, o que aprendiam já ficava escrito em
suas almas, em seus espíritos, e isso lhes bastaria.

Terminada a história fomos cantar mais uma vez, antes de voltar para casa. Nesse dia fiquei pensando
naquele cantor da história. Quando fui dormir, de repente me lembrei da história de outro cantor
famoso, este bem vaidoso, que inventara um ritmo diferente, onde se cantava do fim para o começo.
Era engraçado como cantava, e todos riam muito com as caretas que fazia, quando se engasgava com
alguma palavra. Minha mãe disse que suas músicas eram de duplo sentido; quer dizer, parecem dizer
uma coisa, mas é outra coisa o que realmente significam. Mas, aqueles que o ouvem sabem bem o que
significam suas palavras, por isso o adoram.
Então, um dia, quando estávamos na hora do recreio, fiquei sabendo que ele estava visitando a nossa
escola. Foi uma correria, pois todos queriam conhecê-lo pessoalmente. Não parecia ser arrogante como
disseram, na verdade era muito simples, e logo as crianças gostaram do seu jeito brincalhão. Então,
antes de começar a falar, ele cantou um pouco. E disse antes de começar: “Vou cantar de modo normal,
mas apenas para vocês.” Não compreendi bem o que queria dizer com modo normal, mas depois
entendi tudo. E foi maravilhoso seu canto, o mais extraordinário que jamais havia presenciado, e todos
por igual, ficaram extasiados com tão bela voz.
Era um dia especial, pois ele ia fazer uma palestra para todos na escola. Então, ficamos sabendo que ele
fora um dos alunos mais aplicados do cantor que se tornara uma lenda viva. E foi justamente falando
sobre seu mestre, que ele iniciou a palestra. E ele falou para todos.

"Não devemos nos enganar, pois a vaidade pessoal de um pássaro é nosso mal maior. Nosso mestre
não era um pássaro vaidoso, mas era ingênuo, e por isso pagou o preço. Ao exibir seu canto, logo
chamou a atenção dos humanos, e estes o capturaram para ter apenas para si tão maravilhosa voz.
Ele, claro, nunca mais foi capaz de cantar outra vez. Por isso, publicamente, canto de trás para frente,
um canto que soa horrível para o ser humano egoísta que deseja nos capturar. Logo, nunca serei
desejado. Por isso aprendam. Basta saber que sabemos. É tolice exibir nosso saber publicamente em
busca de glórias, pois a glória que buscamos pode ser simplesmente o meio de promover outros, ou
trazer para nós a infelicidade."

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Mais um Dia de Trabalho


Autor: Alberto Grimm [1]

No Trabalho por Vocação, as tarefas se tornam Diversão...


A única coisa que se consegue sem esforço é o Fracasso...

Gosto de ficar aqui na janela da minha casa refletindo. Posso ver alguns se preparando para mais
um dia de trabalho. Às vezes fico pensando quantos somos. Estas coisas de superpopulação, falta
de alimentos e de moradia para todos. Penso mais, e tento compreender o que esperamos obter
no final da vida, qual a nossa origem, e se alguém já descobriu isso. Também é um mistério para
mim, o tempo de permanência de cada um na terra. É uma coisa tão misteriosa que nunca ouvi
alguém dizer que sabia.
Mas trabalhamos tanto, que logo nossos pensamentos são tomados pelas atividades diárias. Mas
sei que preciso explorar isso com mais cuidado, com mais calma, pois vontade não me falta, mas
tempo que é bom. Além de curiosidade, sinto uma natural falta destas respostas. Sei que pode ter
chegado a minha hora de questionar tais coisas. É como se dentro de mim, existisse outro
indivíduo, me lembrando de tudo isso.

Depois da chuva da noite anterior, as ruas estavam intransitáveis. Também chovera sem parar
por muitas horas seguidas. Não lembro de nenhuma trégua, até parecia que a natureza quisera se
vingar do sol que fizera durante toda semana. Aprendi com meus pais a ser paciente, e da janela
da minha casa, observei tudo com cautela, pois mesmo que estivesse com pressa, nada
conseguiria naquela chuva. Naquela noite, a mulher da casa ao lado, chamara tanto palavrão com
as goteiras do seu telhado, que em um dado momento, ficou sem repertório. Ai chutou as latas
que usava para aparar a água. Pelo barulho das panelas se chocando contra as paredes, fiquei
imaginando o caos que deveria estar lá dentro.
Fiquei com pena do marido dela, quando o telhado afundou com seu peso. Ele se estatelou por
cima do armário, onde guardava uma coleção de pratos raros, que ela preservava com extremo
zelo. Ela usava aquela coleção de pratos decorados, como enfeites para as ocasiões especiais, e
ele quebrou tudo. Aí sim, nunca vi tanto palavrão em minha vida, e se ainda havia uma chance
remota de se colar os cacos, ela desfez ao quebrar o que já estava quebrado.
Reduziu tudo a quase pó, com a primeira coisa pesada que sua mão conseguiu pegar no meio
daquela confusão. O pior aconteceu quando ela percebeu o que era aquele objeto, que lhe servira
tão bem de instrumento, para esfarelar os cacos. Era uma panela de pressão novinha, que
comprara um dia antes. Juntara dinheiro durante meses, e sempre que passava na vitrine,
conversava com a panela como se fosse um ser vivo, e dizia: “Hoje falta ainda menos para você
ser minha...”

Agora lá estava a panela, cheia de hematomas e machucados, mais parecendo um achado


arqueológico, daqueles que uma equipe de cientistas é chamada apenas para descobrir, e chegar a
um consenso, sobre que objeto é aquele que acaba de ser encontrado. E então ela lembrou, que a
panela estava cheia. Cheia com o feijão que cozinhara para toda semana, e que já se preparava
para levar ao congelador, distribuídos em vários potinhos de plástico, embalagens vazias de
margarina. A natureza parecia não se importar com seu drama, e para ela, mais parecia que tudo
aquilo, era na verdade, uma espécie de oração de agradecimento pela chuva, pois mandava água

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com ainda mais de intensidade.

Mas agora estava tudo tranquilo. Amanhecera, e lá reinava o mais absoluto silêncio, tinham ido
para a igreja. Na rua as pessoas escolhiam com extremo cuidado o lugar certo para pisar, pois
aquela lama, que vinha dos esgotos entupidos pelo lixo, era a quase certeza de uma doença. Mas
o sol, felizmente, já começava a sair radiante no horizonte. Nossos meteorologistas, que ao
contrário dos “outros”, são de fato infalíveis, recomendavam prudência ao sairmos à rua.
Alertavam que devíamos resolver logo nossas pendências, e voltarmos com a maior brevidade
possível para casa, pois o tempo continuaria instável.
Particularmente, nunca gostei de chuva, mas ela é necessária à manutenção da vida, inclusive da
nossa. Imagine um mundo sem os vegetais, seria o caos. Fico até angustiado só de pensar. Mas
nossa sobrevivência e longevidade sobre a terra, se deve a nossa grande adaptabilidade, a
qualquer tempo e situação. Com o tempo, aprendemos a sobreviver com o que estiver em nossas
mãos, e podemos transformar em alimento, quase tudo que encontramos na natureza. Só que,
com os vegetais, a coisa fica bem mais simples, pois o processo de transformá-los em alimentos
é mais rápido. E pensar que um dia, aconteceu uma grande enchente, que cobriu toda a terra de
água.

Naqueles tempos, a destruição foi completa, e apenas um homem com um grande barco
conseguiu se dar bem, ou será que foi lenda? Felizmente, nesse grande barco, havia espaço para
todo mundo, e graças a isso, nossos antepassados puderam relatar depois, o que de verdade
aconteceu. Bom, pelo menos essa é a versão que conheço. A coisa que não gosto com a
aproximação do inverno, é a dificuldade de ir trabalhar, e muitas vezes, temos que fazer hora
extra para compensar, isso inclui trabalhar à noite e coisas assim.
Às vezes, acho engraçado certas coisas, que mesmo sem querer, escutamos aqui nessa casa. Uma
coisa que achei curiosa, foi o caso dos nossos vizinhos. Pela manhã, depois que a chuva passou,
quando deveriam consertar seu telhado, foram para a igreja pedir proteção para a casa. O fato
curioso é que escutei a mesma mulher dizer, que na chuva da semana passada, o que desabou foi
o teto da igreja. Fiquei aqui pensando se isso não era uma grande contradição. Se lá, que
supostamente era a fonte protetora, por que não protegera a si próprio? Mas, como não consigo
ainda compreender estas coisas, fiquei quieto.

Gosto do meu trabalho, pois me sinto importante com o que faço. Às vezes eu acho que ao me sentir
importante, posso ficar frustrado no futuro, quando precisar me aposentar, quando não mais serei
importante, quando não mais serei necessário, e aí serei substituído por outro. Mas enquanto isso não
acontece, gosto do que faço, e psicologicamente já me preparo para o dia quando não mais for capaz de
trabalhar. Somos muitos, e meu trabalho basicamente é observar, melhor dizendo, encontrar coisas.
Não são coisas que se perderam, apenas coisas que estão espalhadas por aí, coisas que possam nos
servir, e isso, depois de muito aprendizado, sei fazer bem.
O sol está saindo pra valer, e posso sentir sua brisa quente em meu rosto, quer dizer, em minhas
anteninhas. Considero minha função no formigueiro importante, pois sou uma Formiga daquelas que
vai na frente, para encontrar aquilo que podemos usar para fazer alimento. Sou um explorador, ou
melhor, um batedor, e tão logo encontro alguma coisa, aviso aos operários, que se encarregarão do
transporte. Adoro o que faço.

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Uma Lição de Ecologia


Autor: Alberto Grimm [1]

A Imaginação será para sempre o Oposto da Realidade

Um tesouro pessoal quando se torna público, logo


desperta a cobiça de muitos...

O fato é que a sala estava quieta demais. Não se


via sinais de nada que sugerisse algum tipo de
movimento, de pessoas, animais domésticos,
especialmente insetos, nada. Era comum ter
alguém na sala àquela hora, então imaginei que
havia perdido a noção do tempo e já era muito
tarde. Fiquei espantado quando olhei para o
relógio de parede e vi que ainda era muito cedo.
Algo muito estranho estava acontecendo ali.
Fiquei estático no meu canto, à entrada da porta,
sem fazer nenhum ruído. Aguçando meus
ouvidos tentei captar algum barulho que me desse
alguma pista do que podia estar acontecendo
naquele local.

O silêncio era tanto que meus ouvidos podiam mesmo captar o zumbido do silêncio. Olhei para
todos os lados e tudo permanecia igual, imóvel, nenhum sinal de vida. Se quisesse descobrir o
que estava acontecendo, teria que explorar mais o local, mas sem fazer barulho. Senti minha
pulsação aumentar e tive que respirar fundo várias vezes antes de resolver dar o primeiro passo,
afinal, não tinha a menor ideia do que iria encontrar pela frente. Lembrei de uma história onde
uma família inteira desaparecera enquanto dormiam.

Lembro das especulações na época. Os jornais logo noticiaram que haviam sido sequestrados por
seres do espaço. Outros afirmavam que eles teriam desaparecido, quando o filho menor abriu um
livro secreto do pai que era arqueólogo, e sem saber o que estava fazendo, pronunciou palavras
mágicas. Como resultado, um portal de outra dimensão se abrira, arrastando a todos para dentro,
para sempre.

Não sei o que disseram os jornais e revistas, talvez nem tenham dito nada, quando eles voltaram
da viagem de férias, contrariando todas as histórias a respeito deles, dizendo aos vizinhos que
simplesmente saíram à noite, sem ninguém ver, apenas porque sua criança era sensível aos raios
ultravioletas do sol. Lembro de minha mãe falando de uma lenda quando eu era criança. Dissera
que, de tempos em tempos, casas que eram construídas sobre portais dimensionais, sumiam
misteriosamente sem deixar vestígios.

Bem, pelo menos, a casa ainda estava ali inteirinha. Pelo canto da parede, caminhei devagar, e a
cada passo que dava prendia a respiração. Um pó branco, podia ser visto perto de um vaso de

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planta à entrada da outra sala, a sala de estar. Antes de prosseguir, numa velocidade
surpreendente, minha imaginação começou a trabalhar mil ideias, tentando acomodar uma delas
que fosse a mais sensata para explicar o que era o tal pó.

De repente podia até nem ser pó, pensei. Podia ser outra coisa. Por um instante esqueci de todo
resto e fiquei criando coisas à respeito daquela matéria branca com jeito de pó. Então tomei um
grande susto. Ouvi um ruído como um gemido, e depois um som que sugeria algo caindo no
chão. Meu coração disparou de vez e senti um arrepio percorrendo todo o meu corpo. Meus
olhos petrificados, impossibilitados de pestanejar, olhavam ansiosos para a entrada da sala de
estar, pois a qualquer momento, alguma coisa desconhecida, poderia sair de lá.

Agora não podia mais recuar. Eu estava completamente exposto e me faltavam forças para reagir
e até para correr. Então tudo ficou quieto outra vez. Nunca pensei que minha imaginação fosse
tão ágil em potencializar todos os meus medos. E logo que tentava desfazer alguma ideia bizarra,
ela logo colocava outra na fila.

Num momento de lucidez, não sei como, cheguei a pensar que ela, minha imaginação, era meu
maior inimigo. Percebi então que era mesmo, pois sempre que eu removia um medo apelando
para o bom senso, ela lançava novas e fantásticas teorias sobre quase todas as coisas capazes de
me fazer medo. De real havia apenas a casa sem pessoas, e apenas aquele ruído, que como não se
repetiu, podia mesmo ter sido minha imaginação que o criara, e mais nada.

No entanto, ela, minha imaginação já me convencera várias vezes, num curto espaço de tempo,
que minhas horas estavam contadas. Encostei-me na parede e me arrastei para mais próximo da
entrada da sala de jantar por onde eu entrara. Não sei como fiz isso, e então comecei a sentir algo
estranho. Era um cheiro como de uma flor, um cheiro meio adocicado, muito suave.

Os móveis então começaram a ficar tortos, deformados, e alguns com uma aparência, como se
estivessem derretendo. Tentei sair dali e vi que meus movimentos estavam afetados, meus músculos
dormentes, e os móveis continuavam a derreter. Vi quando minha mãe entrou correndo na sala, usava
uma coisa engraçada no rosto, parecia uma máscara contra gases, sua voz estava esquisita, como se
estivesse brincando de imitar um pato. Ela me pegou pelo braço e me tirou da sala. E enquanto me
arrastava para fora, me repreendeu severamente dizendo:

"Menino, já não te disse que quando os moradores dedetizarem a casa, você deve ficar de fora? De
que adianta entrar numa casa onde não existem insetos? É certo que nós as Lagartixas somos
vacinadas contra o DDT[2], mas ele provoca dores de barriga e urticária, desmaios, e até alucinações.
Ainda bem que voltei mais cedo do mercado, pois não me saía da cabeça que você estava por aqui.”

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Um Exercício de Atenção
Autor: Alberto Grimm [1]

Plena Atenção, Eficaz Ação

Para o bom observador, uma tarefa complexa, tende a se tornar coisa bastante simples...

De onde ele estava, podia ver todo movimento da casa. Era


começo de inverno, e nessas ocasiões a casa ficava repleta de
mosquitos. Bastavam os primeiros trovões, e então todos saiam
de suas tocas, para fundarem novas colônias. Quantos insetos
existiriam no mundo dos insetos? Ele conhecia muito pouco
sobre suas origens, uma vez que se especializara desde cedo,
apenas em seus hábitos naturais, que era a coisa necessária à
sua sobrevivência.

Afinal de contas, aquilo era a única coisa que para ele


importava. Mas agora, refletindo melhor, era estranho
aquele sentimento, aquele questionamento. Era algo que
vinha do fundo da sua mente, ou seria alma? Era um
pensamento que não conseguia reter. Questionar a
origem das coisas era uma novidade para si. Lembrou
que entre seus amigos, nunca escutara conversa alguma
sobre isso, pois a coisa era considerada uma espécie de tabu, algo que devia ser, naturalmente,
evitado.

Pensou em ir falar com a sua mãe sobre aquilo, talvez ela soubesse mais para lhe esclarecer, nem
que fosse o básico. Ao contrário dos outros da sua idade, ele conversava coisas assim com sua
mãe. Ela sempre lhe dera essa confiança, tanto que agora a considerava, além de mãe, como uma
grande amiga. O problema é que se aproximava da hora do jantar, e todos aqueles insetos pelas
paredes da casa, desviavam sua atenção, disso que classificou como um chamado interior.

Essa dúvida teria que esperar um pouco mais. Depois de anos de prática, talvez fosse próprio de
sua fisiologia, pois conseguia, se quisesse, ficar completamente imóvel. Algumas vezes fazia de
propósito, apenas para ver a reação das pessoas da casa. Como as pessoas da casa já o
conheciam, não se importavam com isso. Assim, ele ficava um tempão, estático, parado. Podia
ser na sala, podia ser no quarto, e todos respeitavam, deixando-o quieto.

Lembrou de um documentário sobre um campeão olímpico. Disseram no filme, que ele era capaz
de andar tão sutilmente, que parecia estar parado. Seus amigos também diziam o mesmo a seu
respeito. E embora a convivência na casa fosse boa, sabia que não podia haver exageros. Ser
discreto era a certeza de um convívio harmonioso. A correta higiene, também era um fator de
longevidade, pois as pessoas gostam de ambientes limpos, ao menos aquelas que ali moravam.

E como ele também era um morador do local, seguia as regras da casa. Mas isso não era

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problema, pois desde cedo, aperfeiçoara suas técnicas de limpeza. Uma senhora mais velha, que
ele considerava como uma segunda mãe, o ensinara muita coisa, que agora sabia ser bastante útil
e necessário para uma vida saudável.

Sobre insetos ele conhecia bastante. Sabia por exemplo, que eles não conseguem ficar voando
para sempre, e eventualmente, precisam pousar nas paredes ou no chão, para descansar um
pouco. Era nesse momento que ele deveria agir. Se eles descansassem o bastante para alçar vôo
outra vez, sua investida seria em vão. Assim, o ideal era fazer a abordagem, imediatamente, logo
após seu pouso. Havia uma tolerância do tempo de permanência deles na mesma posição, após o
pouso, e embora nunca soubesse de quanto era esse tempo, a prática que tinha desenvolvido com
a experiência, superava essa falta de informação.

Os menores eram mais irrequietos, mas em compensação, permaneciam parados nas paredes
mais tempo que os maiores. Estes, os maiores, além de muito rápidos na retomado de seus vôos,
quase não ficavam parados, por isso eram mais difíceis de serem capturados. Naquele momento,
observando as coisas à sua volta, se deu conta do quanto era imenso o mundo fora daquela casa.
Mas, ele era muito apegado àquela família. Ali todos o tratavam bem. Era uma comunhão onde o
respeito mútuo predominava.

A verdade é que se sentia bem ali dentro, pois não havia muito barulho e as pessoas adoravam coisas,
tais como, comida orgânica, biodiversidade, equilíbrio natural das espécies. Mantinham enfim, uma
postura ecologicamente correta, por assim dizer. Por isso mesmo, não tinha problemas de alergias com
os inseticidas, o que certamente não aconteceria, por exemplo, na casa do vizinho, onde a toda semana,
uma nova marca de veneno era testada.

Aprendera na escola, que uma classe de insetos do tipo joaninha, ou percevejos do mato, deveriam ser
evitados, pois exalavam um forte e tóxico cheiro quando se sentiam ameaçados. Ele lembrava da
história de uma guerra entre os primeiros clãs das lagartixas, onde uma bomba de essência de joaninha
fora lançada sobre uma cidade distante, no oriente, e diziam que por lá, nunca mais foi visto nenhuma
lagartixa.

Mas, ali naquela casa era diferente, pois ele, como Lagartixa, era muito bem vindo, e era até
considerado um elemento necessário à limpeza, e como fator de equilíbrio natural do nível de insetos,
daquele ambiente.

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Dúvidas Existenciais
Autor: Alberto Grimm [1]

Quando termina um Sonho e Começa a Realidade?

Uma ação não depende da vontade, mas do "querer" em tornar


concreta essa vontade...

Não acontecera em apenas um dia, ou do dia pra noite,


como costumava dizer. A coisa ocorrera de forma
gradual, progressiva, como uma sementinha que depois
de fertilizada, sem saber por que, querendo ou não, brota
da terra e se transforma numa plantinha.

Aquele não era um dia igual aos outros, tudo parecia


diferente. A começar pela falta de coragem em levantar
da cama. Não que isso fosse uma coisa desagradável, o
ficar na cama e dormir mais um pouco, mas comparado
com os dias normais, motivado para trabalhar como
sempre fora, isso era uma novidade. Tão nova que se
pôs a pensar. Aliás, o fato de parar para pensar, isso
também era outra novidade.

E nessa leva de pensamentos, incomum para o seu perfil sempre inquieto e ansioso, começou a
fazer uma retrospectiva de sua vida. Ainda foi ao espelho, olhou de perto para ver se era ele
mesmo, depois retornou à cama. “Talvez precise de um pouco mais de sono, deve ser isso...”,
sussurrou.

Mas não sem antes constatar uma coisa estranha. Tudo estava silencioso demais para ser normal.
Apurou a audição em busca de algum barulhinho, por menor que fosse, e nada, nadinha.
Definitivamente, algo estava errado, ou diferente com aquele dia. Morava em meio a uma rua
barulhenta, vizinhança barulhenta, residências coladas umas nas outras, numa casa de paredes
tão finas quanto papelão grosso, de onde era possível escutar os cochichos dos vizinhos, daí o
espanto.

No entanto, estes detalhes ficariam para depois, uma vez que seu cérebro já começara a fazer um
inventário de todo o seu viver.

Nascia o indivíduo, sem depender da sua vontade, depois, iria crescer, mas não sem antes
aprender um montão de coisas, ideias e pensamentos, as coisas que já existiam no mundo, antes
de sua existência. Mas, se todas as coisas que aprendera, ideias, tradições, crenças, superstições,
tudo isso já existia no mundo antes do seu nascimento, então, o que ele era, senão uma espécie
de máquina de repetir, sem pensar, todo esse conhecimento já existente?

No que ele pensava senão naquilo que todos já pensavam? Afinal, ele não repetia, não imitava,

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como aprendera desde cedo, através de livros, do que disseram os outros, o que deveria fazer, no
que deveria acreditar, o que deveria desejar, o que era o melhor para ele, e tudo o mais? Existia
algo de autêntico nele, quer dizer, que fosse só seu, que não tivesse sido dito, escutado, repetido
de mais ninguém? Existia nele algo original, que não tivesse saído das páginas dos livros, da
tradição, dos gabaritos que todos seguiam como se fossem robôs a executar uma tarefa cega?

Do que tinha medo? Será que seus medos eram só seus, ou mais alguém tinha um medo em
comum? E suas angústias pessoais, e sentimentos, e seus objetivos de vida, e os motivos pelos
quais ficava triste, afinal, existia alguma coisa que não fosse também coisa comum de todos?
Percebeu que não, uma vez que todos, assim como ele, aprenderam a ser “gente” seguindo uma
mesma cartilha.

Então escutou um barulho, mínimo, tão discreto que duvidou que o fosse. Esperou quieto que se
repetisse para ter certeza de que ouvira. Não se repetiu. Ficou na dúvida se ouvira ou não. Mas
aquilo fora suficiente para trazê-lo de volta à realidade, que era o silêncio absoluto que reinava
naquele dia. Seu corpo parecia mais pesado que de costume, parecia imantado pela cama, daí a
dificuldade em levantar-se, e analisar o que estava acontecendo, se é que isso era possível.

Resolveu que contaria até três. No três, levantaria de qualquer maneira. Abriu a janela do seu
quarto e constatou, espantado, que ainda era noite, embora seu relógio de cabeceira lhe dissesse o
contrário. “Será um eclipse total do sol, ou uma espécie de fim do mundo?”, especulou em
busca de uma explicação, um ponto de partida para compreender o fenômeno. Só nesse momento
lhe ocorreu de ir aos demais cômodos da casa em busca dos seus parentes. Afinal de contas, não
morava ali sozinho.

Ao sair do quarto percebeu que não estava em sua casa. Trancou a porta e retornou à cama. “A
coisa é pior do que eu pensava...”, comentou consigo mesmo, enquanto tentava, mentalmente,
encontrar uma pista que o levasse a compreender o que estava acontecendo. E se gritasse bem
alto? Pelo menos, outros poderiam ouvir e responder com alguma espécie de barulho, o que já
seria um indício de normalidade. Mas, sem saber onde estava, podia ser imprudente. E se tivesse
sido sequestrado e aquilo fosse um cativeiro?

Pegou seu celular e percorreu sua lista de contatos. Faria uma ligação para alguém, falaria
alguma coisa, usaria uma desculpa qualquer como motivo, o importante era ouvir a voz de outra
pessoa. Tudo fora de área ou desligado. Pronto, aquilo só podia ser um sonho, um sonho não, um
pesadelo. E se fosse, de cara, já seria a coisa mais estranha que jamais lhe acontecera.

Como poderia ser um sonho se ele estava desperto, vigilante, consciente, ali, olhando para si
mesmo no espelho, beliscando-se e sentindo na pele, repetindo seu nome e escutando sua própria
voz? Viu então que estava vestido com uma roupa nova, de sapatos, inclusive. Será que, sem o
saber, havia morrido?

Não tinha mais jeito, aquilo já era demais, resolveu sair daquele quarto, que não era o seu, e
explorar o lugar onde se encontrava.

Viu-se diante de um corredor com várias portas dos dois lados. Um hotel talvez, ele pensou,

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embora não tivesse a mais vaga lembrança de ter, no dia anterior, se hospedado em qualquer
lugar. Só então percebeu que não lembrava do dia anterior, nem da semana anterior, apenas de
quem era, do seu nome, do nome dos seus pais, embora não lembrasse de seus rostos.

"Será que sou viciado em drogas e isso é a consequência, uma espécie de efeito colateral?”,
pensou desesperado. Mas não havia indícios de nada disso, e ainda por cima, que lembrasse, não
tinha vício algum, por isso descartou a ideia imediatamente.

Bateu na primeira porta no corredor. Valia a pena o vexame de alguém aparecer perguntando o
que queria, pois o importante era ver gente. Nada, silêncio absoluto do outro lado. Tornou a
bater, repetidas vezes, com mais força. Repetiu o mesmo em todas as portas que existiam
naquele corredor, e nada.

Uma das portas se abriu ao ser chutada na aflição. Entrou vagarosamente. Primeiro espiou lá dentro,
ainda da porta, depois percorreu o recinto. Vazio, cama arrumada, móveis nos lugares, limpos, sem
vestígios de poeira. Armários sem roupas, geladeira vazia, sem retratos nas paredes, nenhuma presença
humana.

Ligou a TV; fora do ar. Desceu as escadas, chegou à porta da frente daquela estranha hospedaria. Abriu
e, a exemplo do que já vira de sua janela, tudo escuro. Luzes dos postes amareladas, quase sem cor,
pouco brilho, piscando, como se fossem apagar a qualquer momento.

Deu um grito, um imenso e duradouro grito, não tinha mais nada a perder. Nesse momento pareceu cair
dentro de um bueiro que não vira, na rua por onde caminhava. Caiu sentado, em sua cama,
desorientado, sem saber de que lado estava a porta do quarto, sem noção de tempo.

Sua mãe apareceu à porta, assustada com o grito que dera. “O que houve, não me diga que andou
sonhando outra vez que era gente?”, foi logo perguntando.

"Acho que sim. Foi isso que aconteceu...”, murmurou já recuperado da estranha experiência. Mas,
esquisito mesmo, era, para ele, uma Lagartixa, sonhar repetidas vezes que, de repente, se transformara
em gente.

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O Mistério
Autor: Alberto Grimm [1]

O Problema das Palavras é que mudam de significado conforme sejam


os Ouvidos que as Escutam...
Ora, por que maldizer a escuridão? Acaso, esquece o homem que, sem ela,
não teria criado a luz artificial, o que tornaria seus dias mais longos?

Andando por aquelas ruas desertas, tarde da noite, ele percebeu que
não estava sozinho. Por um instante ficou imóvel para escutar aquilo
que julgava ser passos, enquanto seus olhos vasculhavam à sua volta
em busca de vultos ou movimentos estranhos. Como não viu nada,
pensou ser coisa de sua imaginação.

Começou outra vez a caminhar, dessa vez mais lentamente e, uma


vez mais, julgou ouvir passos que não eram os seus. Encostou-se na
parede, e por um momento, ficou sem respirar. Isso o permitiria
aguçar os sentidos e ouvir com mais clareza. E nada, apenas o
incrível silêncio da noite. Sua mente já começava a trabalhar com
muitas possibilidades.

Era como naquelas horas quando se escuta um barulho qualquer e sons estranhos parecem se
intrometer no meio. Lembrou de uma explicação que ouvira sobre isso, disseram: “As palavras
quando são pronunciadas, acabam por criar entre elas, quer dizer, no intervalo entre uma
e outra, sons inexistentes...”. De fato, bem que podia até ser aquilo.

Depois ele pensou: “Quem se interessaria em seguir-me no meio da noite?”. Estava Claro que
aquilo era coisa de sua mente, apenas mais uma de suas brincadeiras sem explicação, ou graça.
Lembrou então do dia que acordara em meio a um grande barulho, onde levara um susto tão
grande, que ao invés de correr da cama em direção à porta, correu em direção à parede.
Simplesmente ficara desorientado, sem saber se era manhã ou noite, ou onde estava, ou se tinha
um nome.

Depois de se chocar contra a parede, ele chegou a duvidar se realmente existira o tal barulho, ou
não fora uma invenção de sua mente. Mas agora era diferente, pois estava bem acordado. Mas
sua imaginação já iniciara um processo irreversível de criar as mais estranhas possibilidades para
explicar aqueles supostos passos que escutara. Este era um grande problema, uma vez que ela
sempre criava coisas que não existiam, e até que tudo ficasse esclarecido, nem ela desistiria da
busca, nem ele deixaria de ter medo.

Ele pensou sobre isso, no porque a mente inventa as coisas e estas parecem ser de verdade.
“Deviam explicar isso na escola”, comentou tentando distrair-se. Mas, na escola só explicavam
coisas bobas, que de nada serviriam para acalmá-lo naquele momento de medo. De que lhe
serviria, por exemplo, saber naquele instante, que um triângulo possui três lados, ou que a lua é o
satélite da terra?

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Olhou para cima e viu dezenas de pontinhos brilhantes, que chamavam de estrelas, e estes mais
pareciam rir de sua incapacidade em vencer o próprio medo. Ali, naquele espaço inalcançável,
tudo parecia tranquilo, e a existência dos seus problemas, da sua angústia em não saber resolver
aquela questão, nada, para aquela imensidão, significava.

Escutou ao longe os latidos dos cachorros na noite, que pareciam combinar entre si, quando
deviam iniciar e parar a latumia, na maioria das vezes sem motivo algum. Bastava um começar, e
logo os outros o imitavam, como se aquilo fosse, entre eles, uma conversação à longa distância.
De repente até que podia ser mesmo.

Como estava numa rua principal, andou mais um pouco e entrou num beco. Ali permaneceu
quieto e oculto pela escuridão do mesmo, enquanto aguardava a passagem do seu suposto
seguidor. Depois pensou se não seria pior, pois ao passar diante do beco, ele com certeza o veria
na hora. Escondeu-se atrás de uns sacos de lixo que estavam ali próximos e lá permaneceu,
enquanto sua mente fazia de tudo para atormentá-lo, com suas ideias mais esquisitas.

Do ponto onde se encontrava, podia ver um pequeno trecho iluminado da rua principal, como se
fora uma janela. Então escutou os passos, e como estava imóvel, respirando a longos intervalos
para não atrapalhar sua audição, aquele barulho de modo algum podia ter como origem ele
próprio. Se ficou aliviado em saber finalmente que os passos não era coisa de sua imaginação,
logo seus pensamentos, como se fosse um conselheiro cruel que o detestava, iniciaram um novo
processo para tentar explicar o que viria a seguir. “Se pelo menos eles se aquietassem,
ajudariam tanto...”, se referiu amargurado, aos seus pensamentos.

E à medida que os passos se aproximavam da entrada do beco, mais a sua mente brincava de
torturá-lo com as mais estranhas e horripilantes fantasias. Observando melhor, percebeu que em
meio à enxurrada de pensamentos, que brigavam entre si por um pouco de atenção, nenhum
havia para motivá-lo, para lhe dar ânimo, mas apenas para dar-lhe desânimo, aflição, e cada vez
mais medo.

Viu uma sombra se aproximando lentamente da entrada do beco, e seu coração disparou, enquanto já
imaginava em que direção deveria correr para escapar do perigo. Mas, de repente, a poucos passos da
entrada do beco, a sombra projetada no chão, parou de mover-se e ali permaneceu como de vigília. De
olhos fixos, ele observava a sombra para ver ela se movimentava, e foi nesse momento que aconteceu
um verdadeiro milagre.
Ele descobriu que aquele beco era onde ficava a sua casa. Lembrou ao sentir o peculiar cheiro de lixo
sobre o qual sua mãe dizia sempre: “Não é todo mundo que tem o privilégio que nós temos. Enquanto
outros precisam andar muito para encontrar um lixo, nós já moramos em frente a um de primeiro
mundo”. E animado ele viu o buraco onde morava, e entrou lá sossegado.

Afinal de contas, nunca se sabe, aquilo bem que podia ser um Gato, o pior pesadelo de um Rato.

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O Vampiro
Autor: Alberto Grimm [1]

Onde se Escondem os nossos Medos?

Talvez o medo só exista porque nos recusamos a examiná-lo de perto...

Definitivamente, aquela noite não era qualquer noite. Parecia mais escura que a mais escura
daquelas já presenciada por ele, e também a mais fria, a mais silenciosa, assustadora, quieta
demais. Nem grilo estava de plantão naquele dia, quer dizer noite. Olhou da porta antes de sair à
rua, fechou os olhos para não distrair os ouvidos, em busca de algum barulho que quebrasse
aquele silêncio quase absoluto, quase, porque os seus passos, estes, ele podia escutar.

A noite avançara depressa demais, tanto que só conseguiu dar-se conta da coisa, quando o
homem do sino passou pela rua. Ele era bastante pontual. Seis horas, nove horas, dez, onze e
meia noite. Tocava o sino e anunciava a hora correspondente. Depois, sumia tão misteriosamente
quanto tinha aparecido. Parecia vir do nada e, simplesmente, se materializava para anunciar as
horas. Numa mão uma lanterna a gás, na outra o sininho que parecia ecoar por toda cidade.

"Meia noite e o tempo está muito frio...", anunciou naquele momento.

Uma lua pálida e enorme parecia negar-se a caminhar pelo céu, pois, até onde lembrava, ela
permanecia estática no mesmo lugar, como se estivesse magneticamente presa no fundo negro do
espaço. O frio era intenso e o vento só piorava as coisas. Mesmo agasalhado tremia da cabeça
aos pés. Apressou os passos em direção à sua casa, e mentalmente, começou a traçar o melhor
caminho para chegar mais depressa.

Por onde passava poucas janelas ainda estavam iluminadas. Quase certo era que a maioria já
tinha se recolhido. Uma neblina estática que mais parecia vapor congelado cobria boa parte das
ruas, o que parecia sufocar a luz dos lampiões dos postes de iluminação pública. Lembrou das
histórias de assombrações, das verdadeiras aberrações que escolhiam noites como aquela para
perseguir os mais imprudentes. Sentiu um calafrio a lhe percorrer o corpo e apertou ainda mais
seus passos.

Foi quando viu o estranho vulto numa esquina próxima, no meio do trajeto por onde iria passar.
Parou e ficou a observar aquela singular figura negra por um instante. Estava ele imóvel, bem
abaixo da escassa luz do poste, e parecia olhar na sua direção. Vestia uma longa capa negra de
gola alta, no alto da cabeça uma cartola, e na mão esquerda segurava uma longa bengala, mas
estava longe demais para que pudesse vislumbrar seu rosto. E em seus pensamentos, naquele
momento, nenhuma coisa positiva se fazia presente.

Pensou em ir para o outro lado da rua, para a outra calçada, ou mesmo em dar meia volta e
retornar. Mas isso seria um vexame, caso o estranho não fosse nada daquilo que ele estava
pensando. Na dúvida, parou de caminhar. Ficou ali, parado, observando o misterioso vulto, assim
como este, também parecia olhar em sua direção. Não seria nada demais correr e se afastar dali,

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afinal, quem tinha os motivos para isso era ele. Medo é medo, e prudência em excesso não faz
mal a ninguém.

Mas, e se o estranho, ao perceber sua manobra evasiva, corresse atrás? Como desejou que o
homem das horas aparecesse outra vez, mas sabia que isso não mais seria possível naquela noite.
Àquela hora já devia estar dormindo, afinal de contas já cumprira sua missão naquele período.
Lembrou das palavras que sua mãe dissera: "É um perigo para as pessoas que andam tarde da
noite pelas ruas do centro. Dizem que por lá, depois da meia noite, perambula pelas ruas
desertas, um temível Vampiro, faminto, em busca de vitimas desavisadas...".

Sentiu um nó na garganta e um desconforto à boca do estômago. E, naquele frio de congelar,


começou a suar frio. Não sabia o que fazer. Procurou em sua sacola alguma coisa que pudesse
usar como arma. "Talvez", pensou, "ao me ver mexer na sacola, ele ache que possuo uma arma e
pense duas vezes, desistindo de me atacar.". Procurou posicionar-se sob a parte mais iluminada
do ponto onde se encontrava, para que o esranho o pudesse ver claramente, e despejou no chão
todo conteúdo do seu alforje.
Fingiu que procurava com disposição alguma coisa em meio aos objetos, isso, decerto, teria
algum efeito psicológico sobre o incógnito personagem e suas intenções. Distraído como estava,
só percebeu que a misteriosa sombra, aparentemente humana, havia desaparecido, ao erguer
novamente os olhos. Apavorado olhou à sua volta. Correu para o meio da rua de onde teria uma
melhor visão de toda a área.
Mas, não o viu. Será que seu plano dera certo? Era a única e mais lógica explicação que tinha
naquele momento. Sentiu-se momentaneamente vitorioso e seguro. Mas, e se ele se escondera
em um dos muitos becos, pelos quais ainda teria que passar até chegar em sua casa? Podia ser
isso, afinal de contas, um Vampiro não é nenhum bobo, e pelo que se sabe, sempre ataca suas
vítimas de surpresa.
Que vontade de gritar. Como estava arrependido de ter ficado até tão tarde na rua. E se ele se
transformasse também em Vampiro depois de atacado? Sim, diziam que era assim, aqueles atacados
pelos vampiros, se transformavam em Vampiros, zumbis, mortos vivos, parasitas que vagueiam sem
rumo pelas noites de lua cheia, em busca de sangue, por toda eternidade. O que pensariam seus pais,
especialmente sua mãe, ao ficar sabendo que seu filho, agora, era um Zumbi da meia noite?

Como achou forças para reagir nem ele sabe, mas, de repente, como se tivesse sido atingido por um raio
de energia pura, saiu em desembalada carreira, só parando quando chegou à porta da sua casa. Sua
mãe o aguardava ansiosa na sala. "Meu filho", ela exclamou alegre. "estava preocupada com sua
demora..", e o abraçou.

"A senhora não sabe de nada. Acabo de escapar de um Vampiro de verdade lá no centro da cidade!",
falou nos espaços entre uma tomada de fôlego e outra.

Então, lhe sorri docemente a mãe, e fala carinhosamente:

"Oh querido, onde já se viu. Já te disse dezenas de vezes e vou repetir agora uma vez mais. Vampiros
não atacam Lagartixas, como nós, só pessoas. Por isso mesmo, não precisa temê-los outra vez...".

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Um Milagroso Dia
Autor: Alberto Grimm [1]

Haveria um Limite para a Ganância Humana?

Se há um evidente progresso material, ainda carecemos de progresso psicológico, ou discernimento...

A descoberta ocorrera por absoluto acaso. Ele investigava um modo de aumentar a


capacidade de resistência de um alimento, um vegetal, contra as pragas inimigas da
sua espécie, quando, sem que esperasse, aconteceu o fenômeno.

Mas ele não aceitou aquela “coisa” de imediato. Era extraordinário demais para ser
verdade. Talvez, na realidade, tudo aquilo não passasse de um sonho, do tipo lúcido,
daqueles que imitam com perfeição a mais pura e bruta realidade. Então, testou; testou
outra vez, e mais outra. Tudo certinho, da parte dele não havia dúvida, aquilo parecia
ser coisa verdadeira. Chamou seu assistente de confiança, repetiu o teste dezenas de
vezes. Mudou o gabarito de teste, alterou as posições das cobaias, e tudo se repetiu
como da primeira vez.

Não tinha para onde correr, era aquilo mesmo. Algo novo, ali, havia sido, por acaso,
descoberto. Talvez, tratar-se-ia da maior descoberta de todos os tempos, desde que o
homem se firmara sobre dois pés na superfície da terra. Não dormiu nos dias que se
seguiram, estava ansioso demais. Usou esse tempo para refletir, e em vez de descanso,
preferiu realizar novos testes, para comprovar que não estava delirando, ou sob efeito
colateral de alguma substância que involuntariamente aspirara no laboratório.

Sem ter mais como contestar o fato, comprovada a descoberta, o próximo passo seria
tornar público tal advento. Mas, como anunciar uma descoberta de tal vulto? Isso,
certamente, iria abalar todas as estruturas sociais e materiais do mundo que conhecia.
Alguns iriam adorar a novidade, outros, no entanto, iriam detestar. Colocando numa
balança, onde os contras e os prós seriam medidos, avaliados, ponderados, claramente,
havia uma desproporção nos pesos que seriam colocados nos pratos daquela balança,
isso quando se considerava, por exemplo, o poder de cada um deles.

De um lado uma maioria barulhenta, mas sem voz ou poder suficiente para gritar e se
fazer ouvir; do outro, uma minoria silenciosa, esta, capaz de, sem gritar ou fazer
alarde, impor sua vontade, passar por cima de tudo, de se fazer ouvir à força, se fosse
necessário. Eram estes os dois pesos que precisava comparar, antes de revelar aquela
extraordinária novidade.

Proporcionalmente, o lado menos pesado, ou seja, a maioria, esta se beneficiaria com a


coisa. Mas, havia o lado mais pesado, o mais forte, o dominante, que apesar de menor,
era o dono da palavra final, e representava o poder regente. E era essa corriola
autoritária, que na hora de fechar a conta, acabava por definir tudo. Na visão daquele
misterioso grupo, todos os itens supostamente necessários ao bem estar de cada
indivíduo, teriam de ser avaliados, antes de aprovados para uso, pelos seus
intransigentes censores.

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Resolveu fazer um teste antes de anunciar publicamente o evento. Reuniu a alta cúpula
do laboratório para o qual trabalhava, e perguntou: “E se, apenas imaginem a coisa,
descobríssemos um produto, cuja matéria prima é abundante na terra, que
fosse capaz de livrar cada individuo da espécie humana, da maioria de suas
doenças, com uma única dose, tomada em qualquer estágio etário?”.

"Seria um desastre em todos os sentidos”, sentenciou sem pensar muito um dos


diretores presentes. “Imagine o caos em todas as instituições. Os médicos que
ficariam sem ter o que fazer, e também os hospitais, clínicas, sem contar com
toda uma gigantesca estrutura de ensino que seria destroçada. As indústrias
farmacêuticas idem, políticos, governos; e as religiões que não mais poderiam
fazer circo com seus milagres, enfim, todos seriam drasticamente, seriamente
prejudicados, com tal calamidade!”.

"Num mundo sem doenças, até os santos, antes necessários para atender as
preces dos doentes, seriam sumariamente deixados de lado. Pense num
grande problema, o maior de todos, e teria como causa isso que acabou de
colocar como possibilidade.”, completou emocionalmente alterado, de punhos
cerrados, bufando pela boca como um animal raivoso.

Diante daquele consenso, já que ninguém mais se pronunciara, estava claro que espaço
para sua descoberta, ali não havia. Por isso, até como justificativa para a convocação
daquela reunião, resolveu apresentar um novo projeto, na verdade uma variação
daquele que utopicamente pretendeu mostrar. Tratava-se da criação de um aditivo,
capaz de tornar todas as plantas do mundo imunes a qualquer tipo de praga, com uma
única aplicação. Sendo uma fórmula exclusiva, secreta, de propriedade do laboratório,
isso certamente, agradaria a todos.

E agradou. “Ficaremos ainda mais ricos”, foi a única frase pronunciada após a
exposição. “Mas esperem, há um discreto efeito colateral, cujas consequências
para os consumidores, por exemplo, dos vegetais comestíveis, ainda estou
avaliando...”, alertou em meio à balbúrdia motivada pela promessa de lucros que se
formara no auditório.

"Esqueça esse insignificante detalhe. Diante da possibilidade concreta de


transformarmos pedra em ouro, você está preocupado com as migalhas?
Senhor, para nós o que importa é o dinheiro, do efeito colateral cuidaremos
depois. Além disso, como você mesmo afirmou, é discreto, então, quem se
importa?”, finalizou o mesmo diretor, ainda sob efeito hipnótico da notícia anterior, ou
seja, da perspectiva de grandes lucros.

Com o produto no mercado, com os cofres do seu patrão cada vez mais cheios de
dinheiro, de volta ao laboratório, frustrado com o destino obscuro de sua maior
descoberta, aquela que jamais se tornaria acessível ao público, resignado, continuou a
estudar os efeitos colaterais pela ingestão dos alimentos geneticamente
modificados.

Ratos foram os pilotos involuntários daqueles testes. Nos primeiros exemplares


estudados, observou uma discreta modificação nas extremidades de suas patas, como
se fossem dedos, semelhantes a dedos humanos, apenas com unhas um pouco mais

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compridas. Pouco depois constatou que alguns, além de perderem, sem danos
aparentes à saúde, as suas caudas, eram capazes de caminharem em pé, apoiados
sobre as pernas traseiras. Em breve, tinha diante de si, diversos animais, que a
exemplo dos alimentos que ingeriam, haviam sofrido uma espetacular modificação
genética em sua fisiologia.

Comunicou aos seus patrões e eles ignoraram o fato. “Senhor, Rato não é gente, e
gente não é Rato!”, foi a resposta unânime. Mas, não foi que aconteceu, e em pouco
tempo, os efeitos, também nos humanos se fizeram notar.

Coisa discreta à princípio, tão discreta que eles, os humanos, não perceberam a
mudança que ocorria em suas fisiologias. Ao contrário, alguns cientistas logo chegaram
à conclusão, de que aquilo, na verdade, tratava-se de uma evolução natural da espécie,
uma atualização daquilo que já era naturalmente superior dentro do reino animal. Claro
que estavam falando deles próprios, os humanos.

E, se de um lado os Ratos evoluíam escondidos nos porões do laboratório, do outro, os


humanos também passavam por importantes modificações genéticas. Logo os Ratos
foram soltos nos esgotos e de lá, evoluíram, vieram para a superfície, se tornaram o
que são hoje, a espécie dominante, os Homus ERatus. Do outro, os homens, voltaram
para o seu lugar de origem, os esgotos, transformados nos Ratos que hoje são.

Moral da História: Algumas vezes, aquilo que parece um progresso é na


verdade um retrocesso.

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A Marca
Autor: Alberto Grimm [1]

Um Problema bem compreendido já é sua própria Solução

As melhores ideias sempre ocorrem quando não temos nenhum


interesse nelas...

Aquele era um problema muito sério. Talvez fosse o maior


já enfrentado por eles, uma vez que aparentemente não
havia saída à vista.

A ideia era maravilhosa, espetacular, talvez a mais criativa


que já saíra de suas cabeças, daquele grupo de
pensadores, doutores em produzir bens de consumo para
as massas. Mas, diante daquele impasse, toda aparente
confiança e a criatividade exemplar daqueles que eram
chamados carinhosamente de “Magos das Ideias”,
agora, parecia cair por terra.

"Não pode ser verdade”, exclamou o diretor de criação.


“Como podemos vender a nossa melhor e mais
espetacular criação diante desse extraordinário
impedimento, que agora se apresenta? É como se,
de repente, tivéssemos disponível todo dinheiro de mundo, e nada nos
restasse para comprar!”

E quem era capaz de dizer alguma coisa? O que poderia, enfim, ser dito numa hora
daquelas? E apenas das lembranças dos felizes dias, das lucrativas campanhas de
lançamento do passado, podiam agora se orgulhar.

"Vocês têm certeza disso? Vocês olharam em todos os lugares, pesquisaram


tudo?”, perguntou pela décima vez em um minuto, como se as respostas anteriores
não significassem aquilo que diziam, o coordenador de lançamentos de novos produtos.

Na verdade, o grupo já tivera um problema semelhante no passado, lembravam bem.


Ocorre que, depois de esgotarem-se todas as possibilidades imagináveis de
incrementos para atualizar um novo produto, descobriram estupefatos, que nada mais
era possível acrescentar à nova versão que pretendiam lançar. Tudo já fora
acrescentado, e o último lançamento, aquele que ora precisava ser substituído, ou
atualizado conforme diriam as campanhas publicitárias, já vinha com trezentas funções
incorporadas. Algumas para nada serviam, outras jamais foram testadas, mas como
combustível para incentivar as vendas, a estratégia, até então, funcionara à perfeição.

Resolveram o problema transformando o novo produto em dois; um modelo de Luxo e


outro Superluxo. Na verdade eram exatamente iguais, exceto pelas cores e disposição
dos botões do aparelho, ou funções, que, apesar realizarem exatamente as mesmas
tarefas, agora estavam em locais diferentes do console. E assim, cada um dos modelos,

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na verdade idênticos à versão anterior, agora podiam ser lançados como “novos”. Isso
lhes daria uma sobrevida de seis meses a um ano, tempo suficiente para pensarem
noutra coisa, talvez, quem sabe, transformarem os dois em quatro. Era um caso a ser
pensado, no futuro.

Mas agora o problema era mais sério. Naquele mercado saturado de produtos e marcas
para todas as necessidades humanas, onde um novo lançamento ocorria a cada
segundo, onde cada novo item obrigatoriamente precisava ter um no me registrado, até
como forma lógica para que o consumidor fosse capaz de se referir a ele na hora da
compra, uma coisa que já se tornara escassa, agora parecia não mais existir.

Um Nome. Sim essa coisa era um nome, uma simples identidade para que o produto
pudesse de fato existir, frequentar as prateleiras de uma loja, possibilitar que os
compradores e vendedores o identificassem; permitir que as campanhas publicitárias o
promovessem para o consumo das massas. Como promover uma coisa sem nome?
Como criar na mente do consumidor um desejo por algo que não podia ser chamado de
nada?

Como se faz para se chamar uma criança sem que haja um nome a ela associado?
Como se faz com um gato, com um som labial, um som genérico para todos os gatos?
Mas, como então chamar um gato específico, aquele de estimação, em meio à dezenas
de outros? Como poderia ele, o gato, saber que o “chamado” era para ele apenas, e
não, para qualquer um daquele grupo?

Assim era o dilema que ora se apresentava diante de todos. Como dar um nome a um
objeto, se naquele momento, não mais existiam nomes disponíveis para rotular coisa
alguma? Sim, era isso mesmo, para se registrar comercialmente um produto, uma
marca, não mais existiam nomes disponíveis, pois todas, absolutamente todas as
combinações de vocábulos e letras, todo conjunto de letras que pudesse se constituir
em nome para alguma coisa, já haviam sido usadas, e registradas.

Nenhuma palavra de dicionário, ou livros, estava mais disponível, todas já tinham um


dono, um produto a ela associada. Letras iguais, diferentes, conjuntos de consoantes,
ou vogais, ou letra com números, ou símbolos gráficos, tudo, enfim tudo, já fora usado,
nada mais restara para se usar.

"Podemos usar desenhos para lhe dar um nome!”, falou alguém.“Sim, mas na
hora de nos referirmos ao produto, precisamos dar um nome a esse desenho, e
aí, nada feito, voltamos à estaca zero!”, concluiu outro.

"Mas, e se esse produto”, articulou alguém, “fosse o primeiro produto sem


nome?”

"Como sem nome? Você quer dizer, sem um nome comercial, sem uma
identificação pessoal, sem um nome de batismo?“

E reafirma o outro: “Isso mesmo, sem nome de batismo. Simplesmente, sem


nome!”

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Era sem dúvida a mais fantástica ideia jamais imaginada. Um produto sem nome, o
primeiro e único jamais existente, e mais ainda, nenhum outro fabricante poderia
reutilizar o mesmo conceito. Seria acima de tudo um produto conceitual, artístico, uma
revolução em seu tempo, uma ideia compatível com a revolução que pretendia ser o
próprio produto. Já chegaria no mercado de forma revolucionária, inovadora, nem
precisava ser uma coisa nova de fato, pois apenas o seu nome, ou não nome, já o
venderia naturalmente como coisa nova.

E assim, nasceu o primeiro, e único, produto sem nome da história, um avassalador


sucesso de vendas, e imagine só, estava apenas na versão 1.0.

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A Espera
Autor: Alberto Grimm [1]

Propaganda: Arte de Convencer alguém de que coisas Desnecessárias


são Necessárias...

Descobrir é a arte de revirar o que agora não serve, em busca do que serve...

A sensação não era nada boa. Fazia muito frio, e ele, sem compreender bem o que
estava acontecendo, caminhava por uma trilha de terra em meio à densa mata
fechada, de onde, sequer podia enxergar a luz do sol, se é que naquele lugar existia tal
coisa. Estava meio confuso, meio não, completamente. Sequer conseguia pensar de
forma ordenada. Sua mente não conseguia se fixar em ponto algum, e suas lembranças
mais pareciam um amontoado de coisas pelo avesso. Em resumo, dentro de sua
cabeça, nada fazia sentido.

Tentou lembrar como chegara naquele lugar e nada, nadinha, nem adiantava insistir.
Como seria possível alguém chegar a algum lugar sem ter lembrança de como lá
chegara? Será que ele morrera, que aquela era a sensação de alguém morto? Olhou
para seu corpo em busca de respostas, e percebeu que vestia um agasalho para frio, e
assim deduziu que havia se preparado para estar ali. A questão era, onde?

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Olhou para trás e via apenas uma longa trilha, estreita, sinuosa, aparentemente sem
fim, uma visão semelhante a que tinha à sua frente. Dos lados, árvores, de todas as
cores e alturas, e um silêncio que o fizera concluir, ou que podia estar com problemas
de audição, ou que ali não existiam sons. A coisa aparentemente era bastante séria,
pois sequer conseguia lembrar do próprio nome; do lugar onde morava, nem pensar.
Era como se estivesse vazio, oco, sem mente.

Então começou a escutar um barulho de vozes, como se um grupo de pessoas se


aproximasse de onde ele se encontrava. Assustou-se e logo pensou em correr, mas
estava com um problema, pois não conseguia distinguir de que lado vinha aquele
murmúrio, de modo que, ir em qualquer das duas direções, indo ou voltando, era
arriscado. Num ímpeto de coragem, decidiu correr para frente, sem olhar para trás, e
para aumentar sua aflição, as vozes se aproximavam cada vez mais dele. E em meio às
vozes atrás de si, ele escutou pronunciarem um nome, que até poderia ser o seu, se
soubesse qual era. E alguém lhe diz: “Fulano, não adianta se apressar, aqui tem o
que você procura!”

Por isso mesmo, quase morre de susto, quando alguém tocou nas suas costas,
dizendo: “Está na hora...”. O grito que saiu de sua garganta, resultado do imenso
pavor que sentiu, era de fato estranho. Não foi um grito que saiu de imediato, mas uma
espécie de grito gradual, isto é, que ia aumentando de volume aos poucos, como se
obedecesse ao girar do botão de volume de um rádio, cuja engrenagem estivesse falha.

Acordou tentando se segurar em alguma coisa, como se estivesse caindo de uma cama,
da qual de repente lhe tirassem o lastro. Segurou num pé; isso mesmo, num pé
descalço, de alguém que dormia ao seu lado, juntamente com mais uma centena de
outras pessoas, naquilo que parecia uma imensa fila de espera.

A principio ainda estava desorientado, sem saber onde estava, sem saber onde ficava o
norte ou o sul. Parecia ter perdido o juízo, e sua mente, mais se assemelhava a um
sistema operacional de computador contaminado com um vírus, que o tornava
demasiado lento. Mas, quando a mesma voz que o acordou, tornou a falar, sua razão
começou a voltar para casa. Dizia ela: “As portas já vão ser abertas...”.

Lembrou então que estava, juntamente com uma centena de outras pessoas, numa
imensa fila de compradores compulsivos, à espera do grande lançamento, de um novo
e revolucionário produto, uma singularidade, que viciados, aliendados, em consumo,
como ele, faziam questão de ter em primeira mão. Tratava-se de um novo aparelho
eletrônico, um celular, cujo diferencial era não possuir botões, funcionava por comando
de voz, e apenas seu dono poderia operá-lo. Nada que o tornasse superior aos modelos
anteriores, não fosse o exclusivo recurso de mostrar aos seus usuários, em tempo real,
em gráficos coloridos, diversos modelos deles disponíveis, a temperatura do centro da
Terra.

Sem compreender muito bem porque precisava daquele aparelho, o fato é que ele
estava naquela fila. Também, subitamente, como se seu cérebro iniciasse um processo
de auto-limpeza, onde coisas sem explicações não teriam mais espaço para ficar, não
compreendia por que precisava saber da temperatura do núcleo da Terra 24 horas por
dia, em tempo real. Que utilidade aquilo teria para si? Percebeu que, pela primeira vez

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em sua vida, estava pensando, questionando alguma coisa. Lembrou que isso talvez
fosse um reflexo daquele sonho “diferente”, que tivera.

E muitos outros pensamentos questionadores, estranhos para ele, uma vez que se
acostumara desde pequeno a simplesmente seguir a onda da vez, sem refletir,
invadiam sua mente, como se fossem os antigos moradores, há muito despejados, mas
que agora, tomados de uma nova motivação, reivindicassem sua antiga morada. Não
era uma sensação ruim, mas antes disso, estranhamente motivadora. Lembrou das
campanhas de consumo anteriores, nas quais fora envolvido, levado a consumir sem
pensar, sem questionar se de fato eram necessidades, ou simples compulsão sem
motivo.

Lembrou dos tantos aparelhos, todos ainda funcionando bem, que já possuía em casa,
que eram substituídos quase como uma obrigação, a cada nova campanha, apesar de,
agora percebia, não haver motivo coerente, lógico, racional, para isso. Ficou assustado
com aquele percebimento, e pela primeira vez sentiu que sempre fora um autômato
movido pela vontade de terceiros. Sentiu um misto de revolta e um tanto de liberdade,
pois sabia que, a partir daquele ponto, não mais conseguiria ser um “boneco movido
pela corda alheia”. A sensação era que acordara de um longo e perturbador sono, em
todos os sentidos.

Achou graça ao observar seus amigos, ali ao seu redor, naquela imensa fila de espera,
onde passaram a madrugada, a troco de nada, discutindo tolices como os benefícios de
se possuir um celular que, além de fazer aquilo que todos os demais já faziam, era
capaz de mostrar em tempo real, a temperatura do núcleo da Terra. Saindo dali, depois
se reuniriam, como das outras vezes, cada um tentando configurar seu aparelho, com
um padrão diferenciado, embora fossem todos iguais. Depois iriam para suas casas, e
lá permaneceriam, diligentes, em estado de espera, até a próxima campanha, o
próximo comando, a ordem de como deveriam agir. E depois, pensou, quem poderia
garantir se aqueles números seriam de fato da temperatura do centro do planeta, afinal
de contas, quem iria lá, com um termômetro, para conferir?

De fato, estava pensando, sentia uma liberdade estranha, não por ser esquisita a
sensação, mas porque sentia uma segurança, uma confiança em si, que nunca
experimentara antes. E sem dizer nada, já que nenhum dos demais teria ouvidos, ou
olhos, para qualquer outra coisa, Se afastou sem ser notado, sem explicar nada a
ninguém. Estava, pela primeira vez em sua vida, consciente de uma ação sua.

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Razão Social: Grandes Empreendimentos Ambientais


Autor: Alberto Grimm [1]

Tudo é Matéria Prima, até o Lixo do Lixo

Descobrir é a arte de revirar o que agora não serve, em busca do que serve...

A ideia era simples: Se o problema era mundial, por que não juntar esforços para
resolver em conjunto tal questão? Não se tratava de um problema de uma ou outra
nação, ou cidadão, ou etnia, ou partido político, mas de todos. E alguém questionou por
que, ao invés de cada um ter um espaço apenas para o seu, muitas vezes um espaço
que poderia ser utilizado para “coisas mais nobres”, não se usava uma área de
inutilidade pública comum, para centralizar tudo.

"E o que você entende por espaço de inutilidade pública comum?”, logo
questionou um dos presentes ao debate.

"Que utilidade tem um imenso deserto, por natureza deserto, onde a única
coisa visível é poeira, e cujo único papel aparente é servir de cenário para
fotógrafos e produtores de filmes, quando desejam retratar a suposta
paisagem de outro planeta?”

"As nações envolvidas no consórcio, pagariam ao país dono do deserto, uma


espécie de taxa de permanência, ou alocação da área, e todos sairiam
ganhando. Primeiro as nações inquilinas, que se livrariam dos seus problemas,
e depois a nação hospedeira, que finalmente poderia obter algum lucro com

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aquele espaço sem nenhuma utilidade...”, foi a conclusão do seu convincente


argumento.

Era sem dúvida uma ideia tentadora, perfeita demais para ser realidade, por isso todos,
deixando de lado as vaidades pessoais, especialmente aqueles que desejariam ter suas
próprias opiniões aprovadas e reverenciadas, por falta de melhor alternativa no
momento, aprovaram o projeto.

O problema era que, o acúmulo de lixo nas grandes cidades, mesmo depois das
maciças campanhas de reciclagem, de reutilização de todos os tipos de resíduos,
tornara-se uma calamidade. Afinal de contas, uma hiper-população produzindo
toneladas de lixo por dia, não era uma coisa simples de resolver. E havia o lixo do lixo,
a sobra dos resíduos reciclados, a ponto de se criarem verdadeiras cidades apenas para
guardar lixo. Ocorre que o lixo ocupava áreas maiores que as grandes cidades, espaço
precioso que poderia ser ocupado com, por exemplo, novas cidades, repletas de novos
compradores em potencial.

Por isso o lixo tornara-se o principal problema do mundo moderno, já que ninguém,
nenhuma sociedade poderia viver sem fabricar “coisas” para vender. Ocorre que,
aparentemente, aquele ciclo de fabricar e vender, era o único motivo coerente que
justificava a existência humana sobre o planeta. Imagine, pensavam todos, um mundo
onde ninguém fabrica e ninguém compra alguma coisa? Seria o pior pesadelo dentro da
cadeia existencial do homem, uma quebra no nosso elo evolutivo.

Desse modo, a ideia de centralizar todos os lixos do mundo num só lugar foi tão bem
recebida. O deserto era o local perfeito. Tratava-se de uma área enorme, suficiente
para muito lixo, o que daria grande liberdade para os fabricantes e compradores de
bugigangas, exercitarem ao máximo, seus impulsos existenciais, ou seja, produzir lixo
à vontade.

Seria então criado um governo central para administrar a nova Nação, e cada grande
cidade produtora de lixo, se encarregaria de transportar para o novo destino todos os
seus resíduos. Isso sem dúvida seria a solução para muitos problemas, e certamente
que criaria uma nova economia globalizada, baseada inteiramente no lixo. Fábricas de
reprocessamento, usinas de energia, produtos recicláveis de todos os tipos, e tantas
outras, tudo baseado no lixo. Era sem dúvida de um potencial avassalador, a perder de
vista em resultados econômicos, mesmo pelos mais capazes calculistas.

Como a estrutura da organização foi concebida é outra história, mas a coisa acabou
finalmente sendo feita. E prosperou, e o deserto logo se tornaria um espaço dos mais
cobiçados, dos mais caros e valorizados do mundo, a ponto de grandes nações
incentivarem a degradação dos seus ambientes, apenas com a intenção de criar seus
próprios desertos regionais.

E a grande “Nação Lixo”, que recebeu o apelido de Província dos Empreendimentos


Ambientais, logo se tornou próspera, populosa, com muitas indústrias, tanto que, o lixo
outra vez se tornara um problema. Mas, dessa vez, não porque era um incômodo, e sim
porque, com o aumento da demanda da matéria prima lixo, o lixo, se tornara uma
mercadoria valiosa demais, comercializada nas bolsas de valores, sujeita à grandes

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especulações.

Tudo era então feito de lixo, até o próprio lixo. Assim criaram-se organizações para
classificar o lixo de acordo com sua qualidade. E havia o lixo que resistia mais à
degradação, e este era o lixo modificado geneticamente, e assim por diante.

Então, surgiu um problema que ninguém, em seu juízo perfeito, jamais poderia supor
que um dia ocorreria. Com a crescente demanda por cada vez mais lixo, começa a
faltar lixo no mundo. E logo, preocupados com o problema, as grandes nações
promovem campanhas maciças para que as pessoas produzam mais lixo, e como nem
isso resolve, as indústrias passam a fabricar, não objetos e produtos que um dia se
tornarão lixo, mas o próprio lixo em si.

E das linhas de produção, o lixo é produzido agora em massa. E novas campanhas


incentivando empresas e pessoas a produzirem mais e mais degradação ambiental,
ações que se reverterão depois na produção de mais lixo, são lançadas. Assim, poluir e
sujar torna-se uma qualidade desejável, um fator que dá status às nações. E em meio a
tanto lixo, comprar, não mais um produto que um dia, pela obsolescência se tornaria
lixo, mas o lixo produzido pelas grandes indústrias, se tornou uma necessidade
humana, um fator de status social diferenciado para o cidadão.

Era algo capaz de conferir ao cidadão comum, o desejado título de “Degradador


Honorário da Humanidade”, uma honra com direito a referência nos livros de
história, uma qualificação que logo se tornaria o objetivo dde vida, a pauta de todas as
religiões, a razão existencial, desse novo homem.

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Um Estranho Fenômeno
Autor: Alberto Grimm [1]

Um Mito, de tanto repetir, se torna uma falsa Verdade

As crenças não existem sem os homens; Os homens não existem sem as crenças...

Os primeiros a presenciarem o fenômeno foram as crianças. Brincando no pátio da


escola, de repente viram que o chão tremia, e mais ainda, das profundezas vinha um
barulho estranho, como uma imensa pedra rolando ladeira abaixo, como o som de um
grande trovão.

E algumas, espantadas, já que eram muito pequenas, ainda se arriscando a pronunciar


as primeiras palavras, balbuciavam: “Tuu-pan, tuu-pan...”, que era o barulho que
fazia um pequeno trem de brinquedo, muito popular entre elas.

E enquanto empurravam o trenzinho, este emitia um barulho simulando o ruído do


motor. E fazia “Tuu-pan, tuu-pan”, numa batidinha sempre regular, hipnótica, como
um pedaço de pau se chocando contra outro.

O fato é que logo a coisa ficou conhecida por esse nome. E logo os mais velhos
trataram de analisar a questão. O pátio ficou interditado naqueles dias, enquanto o
conselho de anciãos se reunia para estudar o problema com mais profundidade.

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E um deles foi logo dizendo: “Não sei se perceberam, mas, se ninguém caminha
ou brinca sobre o pátio, nada acontece. A terra não treme, o barulho do trovão
não aparece. É como se fosse um fenômeno inteligente. Outra coisa, o ruído
que vem do chão, é como se alguém cutucasse a terra por baixo, com uma
grande vara, ou um cajado mágico...”

"De fato é assim”, completou outro. “Seria então uma espécie de mensagem dos
mundos ocultos? Uma espécie de divindade querendo se comunicar conosco?”

"Você quer dizer, uma espécie de Deus, tentando expressar seus sentimentos?
Seria esta então a sua linguagem para se comunicar conosco? Se assim for,
podemos testar a veracidade dessa ideia. Basta que batamos naquele chão, e
se ele responder, está feito, é isso mesmo!”, sugeriu apressado o mais antigo do
grupo.

E foram fazer o teste. Alguém bateu com os pés duas vezes no chão e ficaram
esperando uma resposta. Nada, só o silêncio. “Vai ver que não foi forte o
suficiente, ou ele pode estar em outro lugar, ou muito ocupado. Deixe-me
tentar com a bengala.”, disse o membro mais antigo do conselho.

E ele deu uma grande bordoada no chão. Todos esperaram um pouco em silêncio, e
como a resposta não vinha, resolveu mudar de tática. Agora, enquanto batia o cajado
com força, também gritava repetidas vezes: “Grande divindade do Trovão, se estás
a nos escutar, responda agora!”. E de repente, o chão começou a tremer com força,
e o barulho do trovão surgiu ecoando por todo o pátio.

Todos se curvaram no chão prestando reverência, diante da resposta do fenômeno.


Estava comprovado, aquilo de fato era uma coisa inteligente, capaz de conversar com
eles, um Deus do Trovão. E logo o conselho convocaria uma grande reunião na
comunidade, mas não sem antes decidirem eles próprios, o que deveriam fazer com
aquela novidade. Sim, porque estavam diante de um evento extraordinário, afinal de
contas, não era toda hora que o chão se comunicava com alguém respondendo como
um trovão.

E a reunião começou com a seguinte sugestão: “Bom, já sabemos tratar-se de um


ser superior, um Deus, agora só precisamos organizar a coisa, est abelecer
uma forma padronizada de comunicação entre nós e ele, e mais importante,
descobrir para que isso nos serve”

"Talvez”, disse outro “sirva para provar que, se somos capazes de conversar
com um ser tão poderoso, que por sua vez é capaz de fazer o chão tremer e
trovejar, é porque somos também seres superiores aos demais, quer dizer,
uma espécie de povo escolhido!”. Pronto, aquilo era tudo que todos, de alguma
forma, embora não tivessem se expressado antes, também achavam.

"Precisamos organizar a coisa, dar um nome, criar regras, rituais de


invocação, datas festivas, feriados, um livro sagrado com todas as regras de
comportamento, e assim por diante. Outra coisa, o pátio será a partir de agora
considerado um lugar sagrado, um templo, lugar onde apenas alguns
escolhidos, pelo conselho é claro, poderão se comunicar com o novo Deus do

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Trovão. Assim, os escolhidos poderão conversar com o “ser superior”, e decidir


o que é melhor para a população”. Todos estavam de acordo.

"Por que não o deixamos com o nome que já lhe é popular, o Tuu-pan?”, e
como todos concordaram, aquele ficou sendo o nome do deus do Trovão. Mas logo
começaram as brigas internas, afinal, ninguém queria deixar de ser um merecedor de
falar com aquela entidade divina. Regras foram criadas para determinar quais seriam os
escolhidos, e cultos para reverenciar a entidade foram organizados.

E havia dias em que a entidade não respondia aos seus apelos, e eles logo imaginam
que aquilo seria um sinal de catástrofe para o seu povo. Então sacrifícios e oferendas
eram feitos em nome da entidade. Os sacerdotes do novo culto, faziam ladainhas,
batiam com suas bengalas dia e noite no solo sagrado, até que a resposta vinha em
forma de trovão, e o chão tremendo.

E muito tempo depois, a divindade, começou a emitir novos sons, e logo os intérpretes
se encarregaram de imitar aqueles estranhos sons que vinham do chão. Surgiam eles
logo após os trovões, ou mesmo durante. Isso tornava a coisa um pouco difícil de
interpretar e, consequentemente, de reproduzir. Mas assim mesmo, depois de muitos
estudos, eles conseguiram reproduzir.

Aquilo se tornou então o hino à divindade, uma espécie de Mantra 4, e todos nos cultos
pronunciavam as tais palavras. E nas escolas, as crianças já eram ensinadas a
pronunciar a frase. Não era fácil reproduzir aqueles ruídos, que soava mais ou menos
assim: “Saiam do forro da minha casa seus ratos miseráveis!”. Para um Rato,
não era nada fácil pronunciar sons daquela natureza, mas eles, com grande esforço,
dedicação e aplicação perseverante, conseguiam.

4
Mantras, são palavras ou sons, que de acordo com a tradição religiosa, tende a evocar energias
sagradas para aqueles que as pronunciam.

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iNada, uma Revolução Tecnológica


Autor: Alberto Grimm [1]

Será que Podemos criar um novo Comportamento sem precisar Imitar


Ninguém?
Frase de um agente publicitário:

"O problema não é convencer, mas manter viva a ideia de que aquilo é realmente necessário..."

Estavam todos eufóricos, mas diante de um grande impasse. O produto era


revolucionário, mas havia um enorme problema, não tinha utilidade nenhuma, ou
seja, não servia para nada; pelo menos nada que pudessem naquele momento
vislumbrar. E o departamento de ideias foi chamado para ver se encontrava alguma
utilidade para o objeto.

E após muitas reuniões seguidas de debates, nada se conseguiu.“Isso não pode estar
acontecendo. É um produto bonito, perfeito em formato e tamanho. Vejam que
beleza de desenho, e não serve para nada!”, comentou desolado o pesquisador
chefe.

"Já sei", disse outro, “o departamento de publicidade pode nos ajudar a


encontrar uma solução. Eles são criativos, vão acabar achando uma utilidade
para isso”.

E todos concordaram. Foram então consultar o departamento, e a resposta foi simples


e enfática: “Pode trazer para examinarmos. Fabricar pode não ser um problema
nosso, mas vender qualquer coisa, isso é!”.

Contente com a possibilidade, a comissão de cientistas ainda duvidou: “Olha que isso
não é qualquer coisa, pode ser um desafio até para vocês”. E o chefe da
publicidade riu e disse: “Somos movidos à desafios!”, e em seguida lembrou do
famoso caso do aparelho de barbear a laser, capaz de remover de vez os pelos de
qualquer pessoa. O problema é que sem pelos, não haveria mais a necessidade do
usuário comprar o aparelho, o que o tornaria um objeto descartável, feito para ser
usado uma vez apenas, constituindo um grande problema para a empresa. Mas bastou
uma abordagem inteligente, um ajustezinho, e foi um sucesso de vendas, que durava
até os dias atuais.

E eles trouxeram o novo e revolucionário invento. E o chefe dos publicitários foi logo
perguntando: “O que ele faz?“.

"Nada, ele não faz absolutamente nada!”, disse o cientista chefe. Os publicitários
se entreolharam por um instante, e depois de cada um examinar pessoalmente o
pequeno acessório, comentaram: “É bonitinho. Mas não faz nada; quer dizer, não
serve para nada mesmo?“

"Não, nada!”, foi o coro unânime dos cientistas.

"Mas, se não serve para nada, por que foi criado?”.

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Aquela era uma pergunta interessante, uma vez que nenhum dos cientistas sabia
responder de forma convincente. E um deles disse: “Foi criado, porque ninguém
jamais havia criado antes um utilitário absolutamente sem função nenhuma!”.
O chefe dos publicitários sorriu e disse: “Vai ser um sucesso de vendas!”. Os outros
não conseguiam acreditar naquilo que acabavam de ouvir.

Pensavam com seus botões: “Como uma coisa que não serve para nada pode se tornar
um sucesso de vendas?” Perguntaram então: “Estamos tão curiosos que
gostaríamos de acompanhar a elaboração da campanha. Podemos?”.

"Claro que sim”, disse o outro, “Afinal, vamos precisar de mais informações
técnicas sobre essa pequena maravilha capaz de não fazer nada!”

A confiança do chefe da publicidade contagiou à todos. E no dia e hora marcada para


início dos trabalhos, o inventor foi pessoalmente explicar sua criação à equipe
publicitária. Ele disse:

"Como podem ver, é um aparelho pequeno, leve, fininho como um cartão de


crédito, o que permite guardá-lo com facilidade em qualquer lugar. Mais ainda;
é todo revestido de titânio prensado, última palavra em materiais duráveis.
Assim, tem um tempo de vida útil estimado em 300 anos. É a prova de água,
de fogo, de choques, de quedas, uma vez que não tem nada dentro, e,
portanto, nada que possa ser danificado, e não usa bateria. Mas é uma grande
descoberta de nossa equipe de inventores, especialmente a cor, que é uma cor
inexistente...”.

E antes que pudesse concluir, o chefe dos redatores completou: “É por isso que será
um sucesso! E mais, ainda não precisa de baterias, é perfeito!”. E ele explicou
como fariam a abordagem.

"Vamos convencer as pessoas, das vantagens em se possuir um objeto que


não serve para nada. Num mundo onde tudo tem uma utilidade, mesmo que
não seja uma necessidade, este produto se destaca por não servir para
absolutamente nada. Trata-se de algo, portanto, que ninguém ainda possui,
diferente de tudo. Todos desejarão um. Depois convenceremos todos, de que
possuir dois é melhor que um, para um caso de eventual perda acidental.
Vamos enfatizar na campanha, que tal objeto é uma revolução na conduta do
homem desse novo século. Um homem que já possui tudo, e que agora
demonstra seu poder de transformação e desapego ao não desejar nada, pois
é exatamente o que lhe proporcionará o objeto, nada!”

Foi um espetacular sucesso, campanha, produto e as vendas. E aquela indústria


precisou mesmo criar novas linhas de montagens para atender os pedidos que não
paravam de chegar. Novos modelos foram lançados, novas cores inexistentes, ou até
existentes para atender as preferências de alguns grupos, e todos com a mesma
característica que ajudou a torná-lo o objeto de desejo mais cobiçado do mundo, não
servir para absolutamente nada.

Passados os anos, o mercado já saturado de tantos objetos de fazer nada, os “iNadas”

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como foram chamados, o departamento de publicidade é convocado para resolver uma


nova questão: Como fazer para manter, ou mesmo incrementar, o volume de
vendas do produto? Eles sorriram e disseram:

"Isso é muito simples. Agora vamos adicionar qualquer coisa ao aparelho e


anunciar que se trata de uma renovação daquilo que já era novo. Por exemplo,
vamos acrescentar ao aparelho de fazer nada, botões coloridos, que também
não fazem nada, e pode ter certeza de uma coisa, o sucesso será maior que o
modelo original”

E foi.

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Uma Habilidade Social


Autor: Alberto Grimm [1]

Num Mundo de Contradições, será que podemos ser Diferentes?

Parece que os elogios se transformaram no bem mais desejado


pelo homem...

Os elogios era uma forma das mais eficazes para


aproximar pessoas, especialmente quando o
tamanho dessa aproximação, dependia da
qualidade do agrado, quer dizer, da qualidade do
elogio. Assim, elogiar a aparência da outra pessoa
já era um bom começo, era por assim dizer, a
regra básica geral. Depois, o visitante poderia
incrementar um pouco enfatizando as qualidades
profissionais, ou habilidades pessoais, do anfitrião.
Deveria apenas ter o cuidado de, ao fazer isso,
deixar bem claro que as habilidades que este
possuía, eram incomparáveis, superiores, quando
comparadas ao resto da humanidade.

Para o elogio ter o efeito desejado, o importante


era salientar que as qualidades do elogiado eram
únicas. Durante a conversa, deixar a impressão de que ficara impressionado com o
conhecimento do visitado, e que aprendera muito naquele dia, mesmo que o assunto
fosse dos mais banais e medíocres. Este era um dos mais cobiçados elogios indiretos, e
por ser indireto, mexia profundamente com a autoestima do anfitrião. Elogiar virtudes
também tinha uma alta pontuação, mas havia um elogio que era imbatível, e este era
elogiar os filhos daqueles a quem se desejava agradar.

Pais sensatos, sensato do ponto de vista dos pais, só faltavam colocar os filhos em
vitrines, de modo que todos os visitantes pudessem vê-los, e claro, elogiá-los. Ora de
que adiantaria exibir os filhos em verdadeiros palcos montados só para isso, se não
fossem os esperados elogios. Eram tão desejados e aguardados, a ponto de fingirem
para os presentes, que havia uma grande harmonia e entendimento entre todos
residentes da casa. A razão desse comportamento, ela, por ser ainda muito jovem, não
compreendia bem. Mas, já sabia que seus pais ficavam extasiados, realizados, como se
os elogios, de alguma forma fossem dirigidos a eles próprios.

Lembrou da visita de outro casal, quando, sem que seus pais esperassem, foram logo
dizendo: “Nossa, que menina linda”; e voltando-se para o marido, a mulher disparou
sem piedade: “Ô Fulano, você não percebe claramente nela, todos os aspectos
das crianças índigo?[2]”

Como se seus pais não compreendessem bem sobre o que falavam, ela explicou: “Não
tem nada que ver com marca de Jeans. É um novo conceito antropológico. Tais
crianças, são consideradas os seres da nova era. São mais inteligentes, mais

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tudo. Dizem ainda que marcarão uma nova geração de homens e mulheres.
Tais indivíduos serão responsáveis pela criação de uma nova e superior raça,
que habitará uma terra, onde o sentimento de justiça é o padrão”.

Ao que seu marido, com a cara mais dissimulada do mundo, se esgueirando para ouvir
os detalhes de uma notícia na televisão, disse: “Sem dúvida, ela é um deles”. Aquilo
foi demais. Quase que seus pais não os deixam ir embora. Se o sentimento de vaidade
fosse uma droga, naquele dia, eles receberam uma overdose.

E aquele casal foi assunto de vários dias. Receberam muitos e grandes elogios, até que
seus pais descobriram que eles haviam dito a mesma coisa, com a filha do vizinho. Mas
agora era diferente, pois os visitantes eram um padre e uma freira, ambos
pertencentes a uma ordem chamada de, os Vigários Justos, ao menos era o que diziam
ser. Estavam em visita às casas daquela rua, apenas como uma forma de fazerem uma
pré-apresentação, do novo pároco da igreja local.

Os dois eram na verdade, uma espécie de comitê de apresentações, aqueles que


preparavam o terreno para a entrada triunfal do vigário de fato. Este acabou chegando
poucos minutos depois. Os quase quarenta graus que fazia à sombra, não era um
argumento suficientemente capaz de fazê-los abrir mão das grossas mantas que
vestiam, e de dentro das quais emergiam como verdadeiros seres espaciais.

Ele olhou tudo em volta, e depois de ter a mão beijada pela sua mãe, sentou em
posição de destaque, no pequeno círculo improvisado que se formara na sala.
Lamentou-se do estado da paróquia o tempo todo, mas só conseguiu uma doação
quando comentou: “Vejo que são um casal ímpar aqui no bairro. Não comentem
com outros, mas não encontrei ninguém que se compare a vocês,
especialmente em qualidade moral, justeza e bom senso. Este fica sendo um
segredo apenas nosso”.

Embora isso já bastasse para conseguir com folga a doação que era o verdadeiro
motivo da visita, num golpe de misericórdia, para se assegurar de que não haveria
desistência, quanto à doação é claro, ele se virou para ela e disse: “Essa garota é um
ser abençoado, que conseguirá atingir todos os seus objetivos materiais e
espirituais, nessa vida. Vê-se pelo rosto o quanto é inteligente, além de bela”.
Pronto, aquilo foi demais, conseguiu mais do que esperava, apenas com o acréscimo
desse providencial realce.

Não é preciso imaginar a cara dos seus pais, ao descobrirem, conversando com o
vizinho, que o vigário repetira a mesma coisa também na casa dele. Ao que seu pai
acrescentou inconsolável: “Eu sei que mentir é uma habilidade social, e todos
precisam mentir para que haja compreensão e entendimento entre as pessoas.
Mas, quando uma mentira é um elogio, a coisa deveria ser personalizada, é
mais uma questão de respeito. Imagine se digo que seu filho é inteligente, e
que é o melhor em matemática. Ao dizer a mesma coisa sobre o filho de outro,
posso até repetir que ele é igualmente inteligente, mas devo ter o cuidado de
dizer que ele é o melhor em outra matéria; pelo menos isso. Um elogio deve
ser único, ou não é elogio”. E o vizinho: “Concordo”.

Horrorizada com tanta dissimulação, ela prometeu a si mesma, nunca mais mentir,

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uma mentirinha sequer que fosse. Assim, já no dia seguinte, ao chegar à escola para
mais um dia de aula, estava determinada a cumprir aquela resolução a todo custo. E
logo na entrada, ouviu sua professora comentar para a menina mais rica da classe:
“Linda a sua bolsa nova...”. Ao que a menina lhe sorriu transbordando de
contentamento, feliz por constatar que sua bolsa de grife havia sido notada.

Mas ela não deixou de graça e retribuiu num sorriso: “Meu pai disse que a senhora
é a melhor professora que já tive”. Pronto, estava com a possibilidade de revisão de
todas as provas do semestre assegurada. Ela então percebeu o quanto seria difícil sua
tarefa: viver num mundo de dissimulados e lutar contra todos. Será que valia a pena;
será que conseguiria?

Ocorre que ela achava aquela garota, além de arrogante, dissimulada, com um
verdadeiro rei na barriga, e por isso mesmo, apenas eventualmente a cumprimentava.
Definitivamente, não pertencia ao seu grupo de interesses, ou achava que não.
Observara a tudo aquilo horrorizada, e se questionava como nunca fora capaz de
perceber o fato, apesar de tudo acontecer, o tempo todo, bem debaixo do seu queixo.
Então, como se a vida das pessoas fosse um calvário de testes permanentes, a garota
metida, virou-se de sua carteira e lhe sorriu.

Em seguida, baixou a cabeça, e retirou de dentro de um pacote que estava sobre o


colo, um pequeno embrulho. Levantou-se com ares de “ser” superior e se dirigiu até
ela. E sem que ela fosse capaz de compreender o que estava acontecendo, esticou o
braço e disse: “Tome, me lembrei de você quando fui às compras ontem”. Era a
lapiseira dourada que a fazia sonhar quando passava diante da vitrine, onde estava à
mostra.

O que fazer num momento como esse senão aceitar? Mas a garota metida foi mais
longe, e lhe cochichou: “Nunca lhe disse pessoalmente, mas acho você a pessoa
mais autêntica dessa sala, e também a mais inteligente”. Pronto, aquilo foi
demais para que ela pudesse suportar em silêncio, precisava dizer alguma coisa, era
até uma questão de bom senso, de educação por assim dizer.

Então, embora não compreendesse porque dizia aquilo, já que a coisa toda mais
parecia um reflexo mecânico incondicionado, algo como a reação de palmada à picada
de um inseto, ela respondeu num sussurro: “Nossa, é a lapiseira que sempre
desejei. Você é uma pessoa maravilhosa fulana. Também nunca lhe disse, mas
admiro você demais. Muito obrigada de coração”.

Só então ela se deu conta do que acontecera, e talvez fosse hora de rever a resolução
que tomara pela manhã. Não que a estivesse abandonando, mas, talvez fosse o caso de
não ser tão inflexível. Talvez a coisa, com o tempo, aos poucos, fosse acontecendo
naturalmente. Sorriu contente por concordar consigo mesma.

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O Segredo
Autor: Alberto Grimm [1]

Quanto mais à mostra, mais oculto estará...

Nossa imaginação é capaz de criar os mais absurdos e bizarros pensamentos, no entanto, é incapaz de
desfazer suas criações...

Aquele não era um dia como os outros, pois pela primeira vez desde que se entendia
de gente, um evento muito especial, quer dizer diferente, aconteceria na escola. E o
diretor em pessoa avisara a todos na semana anterior: “A camiseta especialmente
feita para o evento, já está à venda na secretaria. Só poderá entrar na escola
nesse dia, quem estiver vestindo uma. Como é uma ocasião única, pais, irmãos
e amigos também estão convidados; desde que comprem a camisa, é claro.”

No entanto, ele não conseguia tirar da cabeça, a ideia de que tudo aquilo era apenas
uma grande jogada do diretor para arrecadar dinheiro fácil dos curiosos. No final, como
das outras vezes, um palestrante qualquer, vindo não se sabe de onde, falaria um
monte de bobagens e pronto.

Mas, como era uma surpresa, e ninguém sabia do que se tratava, a própria expectativa
do mistério, fora a melhor publicidade para aquecer o acontecimento. Enquanto isso, a
encarregada de vender as camisas, que por ser a dona da escola, conhecia bem todos
os segredos internos da casa, tentando conter a histeria coletiva dos alunos, misturados
aos pais, tios, irmãos e primos, que também se acotovelavam na secretaria em busca
de uma camisa. E desorientada diante de tanta gente, que mais pareciam disputar o
último exemplar de alguma coisa gratuita, sem querer, deixara escapar uma frase
muito estranha.

Ela dissera, na verdade gritara: “Povo mal educado; se tivessem professores de


verdade, não se comportariam desse modo!” Suas palavras, claro, não foram
ouvidas pela massa enfurecida em busca do seu único objetivo naquele momento, que
era conseguir uma camisa. E, a julgar pela reação de todos, mais parecia que teria
dito: “Corram, que agora é tudo de graça!”

Apesar de quase ninguém lhe dar ouvidos, ele ouvira bem suas palavras. Estava bem
claro o que dissera, e isso embora, aparentemente, para os demais nada significasse,
para ele tinha uma importância, um impacto especial, e apenas confirmava uma antiga
suspeita, que era só sua.

Claro que naquelas palavras não havia nada de mais, era apenas um desabafo
espontâneo. Mas, aquilo, de alguma forma, mexera profundamente com ele. E no dia
anterior ao proclamado evento, o que fizera em aula, fora apenas uma análise
complementar, para acrescentar mais informações ao estudo que já iniciara há vários
anos atrás, e este era, observar como agiam os professores.

Lembrou do primeiro fato estranho nesse sentido. Acontecera num dia em que chegara
cedo, quando ainda as salas sequer haviam sido abertas. Então, sentado num banco ao

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lado da secretaria, ele escutara um barulho estranho vindo da sala secreta. A sala
secreta, era um quarto dentro da secretaria, cuja porta ninguém jamais vira aberta. O
que havia lá dentro, ninguém sabia, e a chave, da qual só havia um exemplar, o diretor
a carregava amarrada no pescoço, como se fosse o colar mais precioso da terra. Ali só
entravam ele e sua mulher, a mesma encarregada de vender as camisetas.

E ao barulho estranho, uma espécie de zumbido, como uma broca de dentista gigante
perfurando o maior dente da história, seguiu-se o cochicho de alguém que dissera:
“Você não a programou com as aulas de hoje. Agora teremos que reinstalar
todo sistema operacional outra vez.” E outra pessoa respondeu: “Não dá tempo,
uma nova carga do sistema leva no mínimo duas horas. O Jeito é deixar assim
mesmo. Acho que ninguém vai perceber o problema, e a noite nós
consertamos.”

E então, poucos minutos depois, ele vira saindo pela porta da sala secreta, sua
professora, seguida pelos demais professores da escola. Até aí, a única novidade era o
fato de ter visto pela primeira vez a porta da sala secreta aberta, e de saber que os
professores ficavam lá dentro, antes de se dirigirem às suas respectivas salas de aula.

O problema foi na hora da aula, quando sua professora começou a repetir a aula do dia
anterior. Até aí também não havia grandes novidades, pois era quase tudo igual, e a
mudança era quase sempre a mesma. Mudava-se apenas o número da página do livro,
a parte onde os alunos deveriam abri-lo naquele dia. Num dia normal, a única coisa que
não se repetia era o número dessa página. No mais, se comportava sempre igual, como
a seguir à risca um roteiro, um gabarito, um manual de procedimentos implantado em
seu cérebro. Seus gestos, suas palavras, as expressões, o modo de rir, de se exaltar,
tudo parecia uma representação habilmente coreografada, sem sentimentos, fria, como
se fosse uma máquina.

E naquele dia, ela cumprimentou a todos por igual, como fazia todos os dias. E a
primeira atitude suspeita foi quando começou a fazer a chamada sem olhar para a
caderneta de frequência. Olhar fixo no fundo da sala, sem mover o rosto ou os olhos,
expressão passiva, ignorando inclusive os faltantes, ignorando qualquer coisa, como se
executasse uma operação mecânica impossível de ser interrompida depois de iniciada.
Ao final, abriu e fechou a caderneta sem olhar suas folhas, e começou sua prática do
dia.

Então ele percebeu que ela fizera aquele mesmo procedimento no dia anterior,
exatamente daquela forma, repetindo até um pigarro após mencionar o nome do
terceiro aluno. Aliás, aleatoriamente, ela sempre intercalava um pigarro, exatamente
igual em intensidade e duração, entre uma ou outra chamada. Aquilo era tão previsível,
que muitos alunos até apostavam para ver após o nome de quem ela iria pigarrear
naquele dia. Mas, naquele dia, não houvera variação, repetira tudo por igual.

Pediu para abrirem na mesma página do dia anterior, fizera os mesmos gracejos, os
mesmos comentários sobre o tempo, a mesma observação sobre uma notícia do dia
anterior, como se esta fora uma notícia daquele dia. Podia ser apenas uma distração
que passaria despercebida diante de todos, desatentos como estavam, entretidos, e
conversando sobre as últimas novidades que cada um trouxera de casa, desde a aula
passada.

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Mas não para ele, que sempre anotava todas as reações dos professores, seus gestos,
e também gravava em um pequeno gravador, a aula inteirinha. Por isso mesmo pode
comprovar, depois de comparar, que ela repetira a aula do dia anterior na íntegra.
Todas as palavras e entonações, todas as sílabas e gestos, tudo, absolutamente tudo,
como se fosse uma máquina, que por alguma razão operacional, não fora atualizada
para a aula daquele dia.

A curiosidade do ignorante além de não desvendar os grandes segredos ainda ajuda a perpetuá-los...

Então lembrou do momento em que estivera na secretaria, antes do início das aulas, do
comentário que ouvira, das palavras de alguém que dissera: “Você não a programou
com as aulas de hoje...”

"Ela”, fora a palavra usada pelo falante misterioso. E como só havia uma professora
naquela escola, sendo os demais professores, era coincidência demais. E agora, lá
estava ela, quase que a confirmar aquelas palavras, e agindo como se estivesse
vivendo no dia anterior. Seria ela uma máquina?

Esse pensamento não era novo para ele, uma vez que todos os professores agiam
como máquinas. Eram previsíveis, apenas repetiam as coisas dos livros, o que não
havia nada de novo. Faziam sempre os mesmos e vazios comentários, como se
interpretassem para uma platéia de outras máquinas audientes, agindo como seres
sem vontade, sem sentimentos. Até quando riam, parecia se fazer ouvir o barulho das
engrenagens a mover os músculos dos seus maxilares.

Teve receio de que seus pensamentos pudessem ser escutados por alguém, e tentou

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pensar em outra coisa. Mas agora, observando com mais atenção, podia ver claramente
que sua professora possuía todas as características de uma máquina. Suas respostas,
para todas as questões levantadas pelos alunos, eram mecânicas. Não ouvia o que
falavam, e como uma autoridade legisladora, apenas estava ali para informar dos
deveres de cada um, não para orientá-los.

Lembrou de todos os dias anteriores, de todos os anos, desde que começara a estudar.
Lembrou dos comportamentos mecânicos e sempre como que obedecendo a uma
coreografia ensaiada, que todos adotavam por igual. Pareciam fingir que eram
humanos, mas no final, abandonavam a ideia e acabavam sendo eles mesmos, robôs,
animados por uma fonte de energia misteriosa, já que nunca conseguira ver suas
baterias.

Matérias e mais matérias inúteis, sem que ninguém parasse para justificar o motivo de
tanta coisa desnecessária, que simplesmente despejavam para os inexpressivos e
indiferentes alunos. Era uma rotina assustadora e sem finalidade objetiva alguma.
Lembrou da série de aulas, onde ficara sabendo tudo sobre a dieta básica dos animais
pré-históricos. Se isso na vida prática serviria para alguma coisa, naquele momento não
tinha como saber, embora desconfiasse que não.

Chegou ainda mais cedo no outro dia, tão cedo que teve que pular o muro da escola.
Escondeu-se atrás de uma moita ao lado do jardim da secretaria, perto de uma janela
falsa junto à sala secreta. Estava mesmo disposto a ouvir os “ruídos” que vinham lá
de dentro. Talvez, estes pudessem lhe responder, esclarecer, alguma coisa. E acabou
por escutar a conversa que rolava lá dentro.

"Pronto”, dissera a mesma voz do dia anterior; “instalei um sistema operacional


novinho na professora, com um pacote de atualização dinâmica. Também
reinstalei seu sistema de som, o que permite agora um vocal estéreo perfeito,
assim poderá emitir um pigarro em 64 canais. Ainda coloquei nela um
mecanismo, que irá permitir, num caso de pane como o de ontem, que dê a
aula repetindo trechos aleatórios de várias outras aulas, o que dará aos alunos
a impressão de que aquilo é matéria nova.”

E a outra voz comenta: “Brilhante essa rotina, esse código de programação


novo!” Ao que completa o outro: “Baixei na internet ontem...”

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Um Estranho Pesadelo
Autor: Alberto Grimm [1]

Mesmo sem Causa, Medo é Medo

Nossa Imaginação é capaz de criar muitas Coisas, mas incapaz de


desfazer mesmo a mais simples delas...

Naquele dia, ao acordar, antes de abrir os olhos, ele


permaneceu quieto, imóvel por algum tempo, tentando
ouvir algum barulho dentro da casa. Escutou o latido
de um cachorro ao longe, depois, como que
respondendo ao chamado do primeiro, outro, depois
outro, depois uma pausa. Ainda devia ser noite,
pensou, pois cachorro só latia daquela maneira à noite.
Continuou ouvindo e depois tudo ficou quieto outra
vez. Ouviu o barulho de um carro vindo de algum
lugar, e depois apenas o silêncio, daquilo que, de
acordo com seu ponto de vista, ainda era noite.
Mantinha os olhos fechados para ver se ainda
lembrava do sonho que tivera. Fora um pesadelo e
tanto. Sonhou que estava num lugar, onde todas as
coisas eram de uma cor apenas. As casas, o céu, a
água, os habitantes, os objetos, enfim tudo de uma só
cor, verde. A noite era verde, o dia era de um verde
mais claro que o verde da noite; as nuvens eram verdes. Ficara apavorado no sonho,
pois não conseguia lembrar como eram as outras cores, apesar de ter o nome de todas
na memória. Fora terrível tudo aquilo, lembrava angustiado. Mas, felizmente, tudo já
passara, agora era um novo dia.

Então, ao abrir os olhos, percebeu que estava tudo escuro. Arregalou bem os olhos e
olhou em volta, em busca de pelo menos um vestígio de luz, qualquer coisa que fosse,
mas não conseguia ver nada. Seu coração deu um sobressalto, será que ficara cego?
Aproximou bem as mãos, à altura dos olhos, e nada, apenas a escuridão é o que
conseguia enxergar. Levantou da cama e saiu tateando pelo quarto em busca da janela.
Depois de esbarrar em quase tudo que havia lá dentro, finalmente a encontrou e a
abriu. Mas para sua surpresa, lá fora também estava tudo na mais completa escuridão.
Apurou bem os ouvidos, e nesse momento conseguia escutar vozes baixinhas de
pessoas que passavam na rua. Esforçou-se ao máximo para visualizar algum ponto de
luminosidade, qualquer coisinha que fosse, e nada.

Não havia outra resposta, ele, com absoluta certeza, por alguma razão misteriosa, sem
aviso prévio ou sintoma, ficara cego, só podia ser isso. Fechou a janela, e tateando no
escuro, voltou para a cama. Talvez aquilo fizesse parte do seu pesadelo, do sonho do
mundo verde, uma espécie de segunda parte, uma continuação, bem que podia ser
isso. Quem sabe se aquilo, dentro daquele mundo verde, não era, por exemplo, uma
espécie de noite. Mas, e se não fosse? E se tudo aquilo fosse real?

Começou a imaginar um monte de coisas possíveis, caso não conseguisse mais

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enxergar. Se estivesse cego, não mais conseguiria assistir televisão, nem ler
quadrinhos. E as cores, nunca veria nenhuma delas, nem as plantas, nem as pessoas,
nem a chuva, nem o que não presta, nem o que presta, nada, nadinha. Ficou
horrorizado com a ideia. Poderia pegar nas coisas, e imaginar o que eram apenas com a
lembrança que teria de cada uma delas. Mas e se fossem de cores diferentes daquelas
da sua lembrança? Isso nunca mais poderia ver.

Mas, aquilo podia ser um eclipse, o maior de todos os tempos. Um eclipse tão
poderoso, que afetara até as lâmpadas elétricas da terra. Lembrou que possuía uma
lanterna em seu armário, o problema era achar o armário. Achando o armário e a
lanterna, se conseguisse acender sua luz, e se conseguisse enxergar sua luminosidade,
pronto, estaria salvo. De repente ficou confuso diante de tantas possibilidades, e aquela
que menos o agradava, era o ter ficado cego. Seus amigos ficariam velhos e ele não
conseguiria ver isso. Para ele, todos teriam o mesmo rosto pelo resto da vida. Teriam
sempre a cara de meninos, seriam velhos com rostos de crianças, resultado da última
imagem de cada um, que ficara registrado em sua memória.

Essa ideia lhe pareceu assustadora e estranha. E os modelos novos de carros, e de


qualquer coisa, seriam para ele, todos antigos, iguais aos últimos que vira antes de
ficar cego. Se não tivesse mesmo jeito, se aquilo fosse real, pelo menos restava um
consolo, ninguém envelheceria em seu pensamento, e nada mais ficaria velho ou se
acabaria. Mas, também não haveria futuro algum, pois esse seria sempre o mesmo,
pois com a ausência de novas imagens, seria para sempre igual ao seu passado.

No escuro absoluto, vagueou em busca de pistas que o levassem até o armário. Ficou
imaginando que, se de repente a luz voltasse, deveria ficar surpreso com o estado do
seu quarto, pois certamente que tudo estaria revirado. Ao chegar ao armário, ele
descobre que a porta está trancada e que não lembra onde está a chave. Talvez no
meio da bagunça do quarto. Então ele começa a forçar a porta tentando arrombá-la, e
nesse momento é que escuta alguém batendo à porta do quarto.
Erguendo a cabeça para escutar melhor, ele tenta se dirigir para a porta, guiado pelo
barulho. Por sorte a chave está na fechadura e ele então a abre. É sua mãe, dá para
saber pela voz, pois não consegue ver nada. Ele está trêmulo e se abraça com aquela
que parece ser sua mãe, isso a julgar pela voz. Mas, e se fosse alguém imitando a voz
dela apenas para enganá-lo no escuro? Afastou-se assustado, tropeçou em alguma
coisa, e caiu no chão.

Sua cabeça bateu com força em algo duro, e então ele percebeu que, definitivamente,
aquilo era real. Abriu o maior berreiro de sua vida, e então percebe que há mais
alguém com sua mãe, e pela voz , trata-se de outra mulher. Ele sente que ambas o
seguram pelos braços, e a outra estranha mulher exclama: “Nossa, o quarto está
uma bagunça.”

Ao que sua mãe comenta: “Na semana passada ele inventou de colocar óculos de
lente verde, e passou o dia inteiro, dizendo que estava vendo tudo verde.
Agora, de vez em quando, sempre que inventa de dormir com esse protetor de
olhos contra claridade, acorda assim, esquece que o está usando, e faz esse
alvoroço todo...”

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Notas sobre O Autor

[1] Alberto Grimm, é escritor de histórias infantis, e agora nos presenteia com seus
contos, como um eventual colaborador do Site de Dicas.
Os contos são fábulas modernas, das quais sempre podemos extrair formidáveis lições
de vida, que muito favorece à reflexão.
O autor é Doutor em Filosofia e graduado também em Publicidade e Design Gráfico.

Observação: O autor não possui Website ou página pessoal no Facebook ou em


qualquer outra Rede Social.

email: alberto.grimm@gmail.com

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