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2013
Diálogos, afetos e pensamento lírico:
a poesia de Cecília Meireles
UFRJ
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Faculdade de Letras
Examinada por:
___________________________________________
Presidente Profa. Dra. Vera Lucia de Oliveira Lins (UFRJ/ Ciência da Literatura)
_____________________________________________
Profa. Dra. Beatriz Resende (UFRJ/ Ciência da Literatura)
___________________________________________
Profa. Dra. Regina Aída Crespo (UNAM/ Centro de Investigaciones sobre América
Latina y el Caribe)
____________________________________________
Prof. Dr. Marcelo Diniz (UFRJ/ Ciência da Literatura)
__________________________________________
Prof. Dr. Jorge Fernandes da Silveira (UFRJ/ Letras Vernáculas)
A Vera Lins, minha orientadora, que acompanhou e sempre apoiou as tantas histórias de
vida e poesia aqui presentes, pelo que aprendi com a sabedoria de seus diálogos.
A Francisco Kochen, que transformou minha vida em poema de amor imenso, pelas
aulas de azul e por ter me inserido na beleza das imagens mexicanas.
A Ieda Magri, amiga de diálogos infinitos, pelas boas leituras sempre tão amorosas e
pelo apoio e incentivo fundamentais.
Aos amigos da Faculdade de Letras da UFRJ: André Vinícius Pessoa, Ana Maria
Bernardes e Clarissa Pena.
Aos funcionários da Fundação Casa de Rui Barbosa (em especial a Leonardo Cunha e
Cláudio Vitena), Fundação Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro e Real Gabinete
Português de Leitura (em especial a Vera Lúcia de Almeida).
A amiga Diana Lopez Font, pela hospitalidade generosa e pela afetuosa convivência
durante a primeira estadia na Cidade do México, e que transformou belamente minha
vida.
A Clara Zuñiga, Joana Araújo, Juliana Rondon, Leandro Pimentel, Luciana Fleischman
e Sidnei Cruz pelo conforto vital de suas amizades.
A minha família mexicana, pela amorosa acolhida: La abuela Evelia Beristain, aos tios
Kochen, Evelia, Viviana e Juan, a tia Carolina Rodriguez, e aos tios Salvador Lutteroth
e Férmin Sánchez. Aos primos Matias, Gala, Juan e Fed. E a Olmo Kochen, pelo
carinho das deliciosas cenas.
Aos amigos no México, pelo afeto da recepção: Gerardo Hellion, Rodolfo Mata,
Enrique Rodríguez, Javier Malpica, Mônica Brozon, Ana Romero, Juan Carlos
Quezadas, Costanza Patán, Enrique Brozon, Sara Gabriela, Fernando Corona, Leopoldo
e Tere Vidal.
A Sra. Alicia Reyes e a Eduardo Mejía da Capilla Alfonsina, pela cuidadosa atenção.
A escrita de cartas foi uma atividade constante para Cecília Meireles. Por seu caráter
lacunar, fragmentário e de índice de afastamento físico as correspondências estão em
afinidade com dimensões fundamentais da vida e da obra da poeta: distância e ausência.
Assim, tomando as cartas por elemento importante na construção de sua obra, propomos
uma leitura da poesia de Cecília Meireles em conjunto com algumas cartas que ela
trocou entre 1930 e 1960 com amigos e escritores. Entre eles, Isabel do Prado, cuja
correspondência apresenta uma espécie de diário de construção de o Romanceiro da
Inconfidência, e com o poeta e intelectual mexicano Alfonso Reyes, um dos principais
críticos e ensaístas da América Latina no século 20.
A correspondência de Cecília pode ser tomada como espaço autobiográfico de
exercício de construção ficcional e diálogos interculturais, o que contribuiu para uma
dicção singular da poeta e acabou por colocá-la em um lugar excêntrico em relação aos
seus contemporâneos modernistas. As cartas dirigidas à amiga Isabel do Prado,
pesquisadas no acervo da Casa de Rui Barbosa, constituem material valioso para
refletirmos sobre a relação entre autobiografia e poesia na obra de Cecília, na escrita das
cartas como lugar de construção de sua obra, e na importância das redes de amizades
entre escritores para o fortalecimento cultural de uma sociedade.
Outro corpus de relevo é a correspondência com o poeta mexicano Alfonso
Reyes, que se encontra no Museu Capilla Alfonsina, na Cidade do México. Neste caso,
a importância explica-se por aí encontrarmos um dos pontos fortes da articulação
político-estético-cultural empreendida pela autora, sobretudo no que se refere à
Educação e à Cultura mexicana como parâmetros para as transformações sociais
idealizadas por Cecília Meireles para o Brasil e às tentativas de diálogos entre o Brasil e
a América Latina.
RESUMEN
La escritura de cartas fue una actividad constante para Cecilia Meireles. Debido a su
naturaleza incompleta, fragmentaria e de índice de aislamiento físico, las cartas
mantuvieran una relación de afinidad con dos dimensiones fundamentales de la vida y
obra de la poeta: la distancia y la ausencia. Así, tomando las cartas como un elemento
importante en la construcción de su obra, proponemos una lectura de la poesía de
Cecilia Meireles paralela a la de algunas de las cartas que intercambió entre 1930 y
1960, con amigos y escritores. Entre ellos, se eligieron a Isabel do Prado, cuya
correspondencia se presenta como una especie de diario de la construcción del
Romanceiro da Inconfidência, y al poeta e intelectual mexicano Alfonso Reyes, uno de
los principales críticos y ensayistas de América Latina en el siglo 20.
Las cartas de Cecilia pueden ser analizarse como espacio autobiográfico de ejercicio de
construcción ficcional y diálogos interculturales, lo que contribuyó para la dicción
exclusiva de la poeta y, finalmente, la puso en un lugar excéntrico a de sus
contemporáneos modernistas. Las cartas enviadas a su amiga Isabel do Prado,
depositadas en el archivo de la Casa de Rui Barbosa, constituyen un valioso material
para reflexionar sobre la relación entre poesía y autobiografía en la obra de Cecilia,
sobre la escritura de las cartas como un lugar para construir su obra, y sobre la
importancia de las redes de amistad entre los escritores para el fortalecimiento de la
cultura de una sociedad. Cecília envió varias cartas al poeta mexicano Alfonso Reyes,
que forman parte del acervo del museo Capilla Alfonsina, en la Ciudad de México. Esta
correspondencia fue importante porque representó uno de los puntos fuertes de la
articulación político-estético-cultural llevada a cabo por Cecília Meireles, especialmente
en relación con la educación y la cultura mexicanas, que la poeta utilizó como
parámetros para las transformaciones sociales que deseaba para Brasil y con su interés
por el diálogo entre Brasil y América Latina.
Sumário
Pensamento lírico 15
Podemos então pensar em três vias possíveis para essa abordagem de si como
possibilidade de encontro com o outro: o saber teórico-especulativo, a experiência da
vida, e a reflexão ficcional empreendida pelo poeta – entendendo o ficcional como
próprio também à poesia, e não limitando-o à prosa, como ocorre com frequência. Desse
modo, a capacidade de investir pela via ficcional no conhecimento de si, somada aos
diálogos que o poeta mantém com seus pares – críticos, teóricos e poetas –, é o que
1
―O primeiro estudo do homem que quer ser poeta é o seu próprio conhecimento, inteiro, ele procura a
sua alma, a inspeciona, a tenta, a aprende. (...) Com efeito, EU é outro. Se o cobre acorda clarim, a culpa
não é dele. Para mim, é evidente: assisto à eclosão do meu pensamento: fito-o, escuto-o: dou com o golpe
de arco no violino: a sinfonia tem um estremecimento nas profundidades ou salta de súbito para a cena‖.
(Rimbaud, A.―Lettre du voyant‖. Carta de um vidente. Trad. da autora).
15
tornaria pertinente a hipótese de um pensamento lírico, constituído pelos diálogos,
afetos e pela construção da linguagem poética.
Nesse sentido, trazer os diálogos entre escritores como fonte de aproximação
desse pensamento lírico pode ser uma maneira de ampliar as margens da pesquisa sobre
a lírica moderna. Tendo em vista a poesia produzida a partir de Charles Baudelaire,
refiro-me à ―modernidade poética‖ pensando na ideia de ―exploração dos poderes de
uma linguagem desviada do seu uso comunicacional‖, como expressou Jacques
Rancière, em A partilha do sensível (Rancière, 2005, p. 38).
Por essa concepção de modernidade, dilui-se um aspecto tão presente no século
XXI: o de tornar descartável o que já não mais corresponde ao anseio da novidade
ditada por uma política do consumo. Desse modo, os diálogos do passado recuperam
suas vozes e dilatam as possibilidades de percepção que temos de nosso tempo.
O fato é que a necessidade dos vazios e do silêncio se evidencia em tempos de
oferta de felicidade eterna e de falta de aceitação da finitude humana, próprios de um
sistema que toma o consumo e a novidade como necessidades vitais. Nesse sentido, a
linguagem poética se coloca como resistência, utopia, pois se apresenta como
possibilidade de reconquista do vazio e do silêncio intrínsecos à humanidade.
Na poética de Cecília Meireles há um convite obstinado ao silêncio, necessário
ao movimento de encontrar a si e ao outro. Como lemos em um dos versos de ―Auto-
retrato‖:
16
redondilhas, plasmada por referências de poetas árcades, simbolistas, modernistas,
romanceiros e cancioneiros.
O impulso para a exploração da linguagem efetuado pela poeta surge talvez
desse lugar excêntrico, acentuado, inclusive, pela tímida inserção do movimento
simbolista no Brasil e pela vocação brasileira por uma alegria solar ―que sintonizava
com o nacionalismo ufanista propagado por um modernismo hegemônico futurista e
construtivo que acabou por atrofiar um outro veio do moderno‖, o que resultou, segundo
a análise de Vera Lins, num recalque do trágico (Lins, 2005, p. 66).
É instigante pensar nos porquês da opção por essa alegria solar e efusiva à
consciência do transitório, da melancolia e da dor; inevitável àqueles que intencionam
construir uma reflexão consistente sobra a vida e a arte. Afinal, como observou Adorno,
―nenhuma obra de arte moderna que valha alguma coisa deixa de encontrar prazer na
dissonância e no abandono‖ (2006, p. 62).
O poema ―Improviso‖, de Belo Belo (Bandeira, 1967, p. 324), que contém o
conhecido verso ―Cecília, és libérrima e exata‖, é fonte interessante para pensarmos em
como se apresenta, na obra da autora, a potência expressiva do silêncio. Ao chamá-la
―diáfana‖, Manuel Bandeira aproxima o leitor da camada que Cecília parece ter
incessantemente perseguido em sua poética: a capacidade estética manifesta na
qualidade translúcida do não-dito. O que nos mostra que o processo de comunicação,
como nos diz Wolfgang Iser, não se realiza através de um código, ―mas sim através da
dialética movida e regulada pelo que se mostra e se cala‖ (Iser, 1996, p. 90).
Negação e lacunas estão intrinsecamente ligadas na teoria de Iser. São elas que
―conferem ao texto ficcional uma densidade característica, por meio de omissões e
cancelamentos, revelando traços não-explicitados‖ (Iser, 1999, p. 31).
A incerteza move a obra de arte e a constitui. Essa porosidade, por onde circula
o movimento de produção na recepção da arte, é intensificada na linguagem poética. Por
isso, procuraremos pensá-la a partir do discurso também fragmentado e poroso das
correspondências.
No Capítulo I trataremos das relações entre cartas, amizade, pensamento e
poesia, a partir das correspondências de Cecília Meireles com Dulce Lupi Osório de
Castro, Diogo de Macedo, Afrânio Peixoto, Fernanda de Castro, Alberto de Serpa,
Isabel do Prado, Mário de Andrade e Alfonso Reyes. O Capítulo II traz a discussão
17
sobre uma rede latino-americana que despontou nos anos 1940, constituída pelos poetas
Cecília Meireles, Alfonso Reyes e Gabriela Mistral e que tinha por objetivo comum a
proposta de uma formação humanista para a América Latina. Os diálogos interculturais,
tão presentes na poética de Cecília, são o tema do Capítulo III que apresenta a discussão
sobre a modernidade estética de sua obra. Por fim, no Capítulo IV, o tema é a questão
autobiográfica nas cartas e nos poemas, desde a perspectiva do autorretrato, pensando
nas relações da obra da poeta com as artes plásticas.
18
I. Correspondência e amizade: construindo horizontes
19
Uma das intelectuais mais atuantes do século XX no Brasil, Cecília Meireles
cultivava com esmero o exercício da correspondência, que manteve com poetas e
intelectuais brasileiros e estrangeiros; entre eles Mário de Andrade, Alfonso Reyes,
Armando Cortês-Rodrigues, Alberto de Serpa, Diogo de Macedo, Fernanda de Castro,
Maria Vallupi, Augusto Meyer, Isabel do Prado, Gabriela Mistral e Carlos Drummond
de Andrade.
No âmbito do que Manuel Bandeira chamou de ―cartas de minha gente‖, temos a
publicação da editora Moderna, Três Marias de Cecília, que traz ao leitor as cartas e
cartões-postais que Cecília escreveu às filhas entre os anos 40 e 48, durante as diversas
atividades de difusão cultural em que esteve envolvida pelo Brasil e no exterior.
As correspondências de Cecília já foram fonte de pesquisa para estudos
significativos que compõem sua bibliografia crítica, como os de Leila Gouvêa, Valéria
Lâmego, Ana Maria Domingues de Oliveira, Jussara Santos Pimenta e Fernando
Cristovão2.
O que proponho é uma leitura da poesia de Cecília Meireles em conjunto com
algumas cartas que ela trocou entre 1930 e 1960 com amigos e escritores. Entre eles,
Isabel do Prado, cuja correspondência apresenta anotações sobre a criação de o
Romanceiro da Inconfidência3, e com o poeta e intelectual mexicano Alfonso Reyes,
um dos principais críticos e ensaístas da América Latina no século 20.
Cartas e documentos manuscritos da autora, de que se têm notícias, encontram-
se espalhados por países como Brasil, México, EUA e Portugal, onde a atuação de
Cecília já é bastante conhecida, sobretudo pelo estudo de Leila Gouvêa, Cecília em
Portugal (2001).
No Brasil, a correspondência com a amiga Isabel do Prado e com os escritores
Alberto de Serpa e Augusto Meyer é parte do acervo da Fundação Casa de Rui Barbosa,
no Rio de Janeiro. Há também cartas datilografadas e manuscritos da autora que foram
2
Cf.: Cristovão, 1982., Lâmego, 1996. Gouvea, 2001. Oliveira, 2001. Pimenta, s/d: neste artigo a autora
apresenta a localização das correspondências mais conhecidas de Cecília e os acervos onde estão
localizadas.
3
Cf.: Bonapace, 1974. Adolphina Portella Bonapace foi professora da Faculdade de Letras da UFRJ. Este
estudo foi sua dissertação de mestrado. Com prefácio de Afrânio Coutinho, o trabalho apresenta uma
leitura do Romanceiro da Inconfidência a partir de uma ampla pesquisa em documentos históricos da
Inconfidência, em particular os Autos de Devassa.
20
cuidadosamente guardados por seu amigo Darcy Damasceno, no arquivo que ele doou à
Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. No México, as cartas trocadas com Alfonso
Reyes são parte do acervo da Capilla Alfonsina, museu que abriga a obra do escritor, na
Cidade do México.
Em ―Cartas inéditas de Cecília Meireles a Maria Valupi‖ (1982), Fernando
Cristovão destaca a relação intrínseca que há entre o exercício da escrita das cartas e a
poesia na obra de Cecília Meireles, observando que em ambas está presente ―a
profundidade das ideias e sentimentos‖.
A correspondência com Maria Valupi, pseudônimo da poeta Dulce Lupi Osório
de Castro (1905-1977), aconteceu em um dos momentos mais difíceis da vida de
Cecília, quando ela acabara de perder seu primeiro marido e pai de suas três filhas, o
artista plástico Fernando Dias Corrêa. As duas cartas à Dulce datam de 1937 e 1938 e
mostram, sobretudo em suas linhas iniciais, a atitude contemplativa e reflexiva de
Cecília, em sintonia com o que observa Cristovão sobre o poema que ela dedica à amiga
portuguesa e que, assim como as duas cartas, ele reproduz na íntegra em seu artigo.
Sobre o poema, ele diz encontrar ―a inspiração de quantos retratos esboçou em seus
livros de poemas: a mesma contemplação terna, a mesma atitude metafísica, a mesma
utensilagem simbolista verbal do mar, das pedras preciosas, duma vaga e indefinível
música‖ (Cristovão, 1982).
E é tomada por esse gosto pela reflexão filosófica, que irá marcar toda a sua
obra, que Cecília se dirige à amiga, tanto no poema que lhe dedica, quanto em seu
discurso epistolar, como mostra o seguinte trecho:
O longo parágrafo com que Cecília inicia esta carta, e do qual o extrato acima
faz parte, é concluído com um pedido de desculpas pelo repentino desabafo metafísico,
21
ao que segue uma justificativa: ―Perdoa uma introdução quase filosófica. Voltei agora
da aula na Universidade, onde discorri sobre Confúcio‖; como se o retorno à realidade
fosse urgente e necessário. Podemos perceber assim que era o próprio cotidiano, da lida
com a matéria filosófica, que a impulsionava ao pensamento abstrato. Por essa época,
Cecília dava aulas na Universidade do Distrito Federal no Rio de Janeiro, atual UFRJ, e
a Filosofia era parte do programa que trabalhava com os alunos. Textos como
―L‘energie spirituelle‖, de Henri Bergson e ―La langage et la pensée ‖, de Henry
Delacroix, eram parte da bibliografia de seu curso4.
O que temos portanto é a relação intrínseca entre a vida e a produção literária da
poeta, da qual as cartas podem ser consideradas parte integrante. Nesse trecho inicial da
carta à amiga Dulce, lemos, como observou Fernando Cristovão em relação ao poema,
―a contemplação terna e a atitude metafísica‖. Estamos então diante da ―serena
desesperada‖.
E aqui observamos um ponto de conexão interessante entre poesia, cartas e
autobiografia. À doce Dulce, ―agora vinda à tona, com o enigma e o verso‖, Cecília
escreve:
4
Cecília também apresentava aos seus alunos a Literatura do Oriente, textos Bíblicos, ensaios sobre o
teatro indiano, como por exemplo na aula do dia 7/11/1937, quando trabalhou o clássico Mahabarata, ou
no dia 12/11/1937, em que propôs a análise de Ramayana e começou a introduzir os assuntos das aulas
seguintes, sobre livros chineses e japoneses. As anotações de Vera Teixeira, que taquigrafou as aulas
dadas por Cecília na Universidade do Distrito Federal (UDF), em 1937, no curso Técnica e Crítica
Literárias, mostram o currículo ousado que ela apresentava aos alunos. (Acervo Darcy Damasceno. Seção
manuscritos. Biblioteca Nacional, RJ). A UDF foi criada em abril de 1935 e foi inicialmente composta
por cinco escolas: Ciências, Educação, Economia, Direito, Filosofia e Instituto de Artes. A ideia era
formar quadros de intelectuais para o país. Anísio Teixeira esteve à frente da Universidade que, com a
instauração do Estado Novo, em 1937, acabou sendo incorporada à Faculdade Nacional de Filosofia da
Universidade do Brasil, criada em 1939, e que hoje é a atual Universidade Federal do Rio de Janeiro
(UFRJ). (CPDOC-FGV)
22
Esta que, tanto na carta quanto no poema, com ternura, de longe contempla, nos
faz pensar na navegadora de Vaga Música, que buscava ensinar a primavera às areias e
gelos:
Se te perguntarem quem era
essa que às areias e gelos
quis ensinar a primavera;
(...)
essa que sofreu de beleza
e nunca desejou mais nada;
que nunca teve uma surpresa
Um epitáfio é uma elegia a um morto, uma inscrição tumular, e este poema que
integra Vaga Música (1942) é uma mostra de como o tema da morte está presente na
poética de Cecília Meireles. A dor da morte foi uma constante em sua vida, ela padeceu
com a perda precoce dos pais, da avó Jacinta, que a criara, e depois com a viuvez.
Desde a morte, a poeta parece buscar o mistério da vida.
Um dos poemas mais representativos desta temática na poética ceciliana é a
longa ―Elegia‖ que ela escreveu em homenagem à avó Jacinta Garcia Benevides e que
encerra os poemas de Mar absoluto5. Na epígrafe está um trecho de Lettres à un jeune
poete, de Rilke. Aqui reproduzimos do original o parágrafo completo:
5
Sobre o tema da morte em Cecília há o ensaio de Ana Maria Domingues, ―Cecília Meireles e a
reinvenção da morte‖, em que ela faz uma análise justamente da ―Elegia‖, de Mar absoluto. A autora
defende que a morte na poética ceciliana não representa uma aniquilação, mas sim ―um patamar de
perfeição inatingível durante a vida‖. Disponível em http://cpd1.ufmt.br/meel/arquivos/artigos/33.pdf
23
Que soberania na calma que contém esses sons, tais forças em movimento!
E quando pensamos que a isso se soma a presença do mar, no entanto,
distante e que ela se parece ao som mais íntimo de uma harmonia pré-
histórica, então podemos desejar-lhes que se abandonem com fé e paciência
a ação desta magnífica solidão. Nada mais poderá privar sua vida. Ela
transcorrerá em silêncio de um modo contínuo e eficaz como uma força
desconhecida em tudo que você viver e fizer como faz em nós o sangue de
nossos ancestrais que forma, com o nosso, esta coisa inigualável que não se
repetirá em outro lugar, que nos representa em cada turno de nossas vidas.6
6
Quelle souveraineté dans le calme qui contient de tels bruits, de telles forces en mouvement ! Et quand
on pense que s‘y ajoute la présence de la mer pourtant lointaine et qu‘elle y résonne comme le son le plus
intime d‘une harmonie préhistorique, alors on ne peut que vous souhaiter de vous abandonner avec foi et
patience à l‘action de cette solitude magnifique. Rien ne pourra plus en priver votre vie. Elle agira en
silence d‘une manière continue et efficace comme une force inconnue sur tout ce que vous vivrez et ferez,
comme fait en nous le sang de nos ancêtres qui forme avec le nôtre cette chose sans équivalence qui
d‘ailleurs ne se répétera pas, que nous représentons à chaque tournant de notre vie. Em:
http://c.hartmann.perso.sfr.fr/lecture/html/Rilke_Lettres_a_un_jeune_poete.html. (trad. da autora). Cecíla
foi tradutora de Rilke, o resultado de seu trabalho pode ser conferido na seguinte edição que realizou em
parceria com Paulo Rónai: Cartas a um Jovem Poeta (trad. de Paulo Rónai) e A Canção de Amor e de
Morte do Porta-Estandarte Cristóvão Rilke (trad. de Cecília Meireles), ed. Globo, 8a edição, 1976.
24
O que sentimos é que a morte é vista como parte dos ciclos da natureza. E a
tristeza, o lamento da poeta, é não poder mais compartilhar com a avó dessa vida
pulsante.
A oitava parte remete ao presente, e é cheia de pesares: ―Hoje! Sem cigarras nem
pássaros.‖ Mas uma estrofe mostra o poema como lugar de encontro, nos leva a pensar
na epígrafe, o encontro dos sangues e do que é ancestral, como se a morte aqui
apresentada fosse a tônica do que nos faz reviver:
25
O modo antigo de um morto é o que este era em vida, e o poeta ―irmão das
coisas fugidias‖ (―Motivo‖, de Viagem) pode, no poema, tornar a esse ―modo antigo‖ e
fazer da morte uma nova vida, a vida do poema.
Em 1964, poucos meses antes de morrer, Cecília concedeu uma longa entrevista
ao jornalista Pedro Bloch, publicada no número 630 da hoje extinta Revista Manchete
(edição de 16/05/1964). Em um dos momentos, a poeta revela a perspectiva quase
missionária que tinha em relação à realização de sua obra e ainda sua peculiar
concepção de autoria:
26
e atrasaram-me na morte.
Vive! - clamam os que se foram,
ou cedo ou irrealizados.
Vive por nós! - murmuram suplicantes.
Nos versos desta última estrofe lemos a auto incumbência missionária de Cecilia
de dar voz aos mortos. E mais uma vez estamos diante da correspondência entre poesia
e discurso epistolar na obra da poeta. Durante o processo de criação de o Romanceiro da
Inconfidência, nas cartas enviadas pela poeta à amiga Isabel do Prado, no ano de 1949,
Cecília conta da relação peculiar que tinha com as personagens, a quem chama ―meus
fantasmas‖. Assim lemos, por exemplo, no seguinte trecho de uma das cartas onde ela
conta que conseguira uma licença de suas atividades como docente, e que estava em
Ouro Preto quando precisou voltar às pressas ao Rio pois uma das filhas se operara do
apêndice e outra estava com amigdalite. Nessa missiva, Cecília queixa-se também do
excesso de atividades em que estava metida, o que a impedia de se dedicar como
gostaria a elaboração de sua poesia.
27
Levando em conta a observação feita por Fernando Cristovão, de que ―a
profundidade das ideias e sentimentos‖ está presente nas cartas e na poesia de Cecília,
pensaremos também na conexão entre a ausência e a distância, que tanto caracterizam o
movimento do discurso epistolar, quanto são ícones da obra poética de Cecília.
Ausência e distância fazem parte da morte, e da vida. Desse modo, a constante
do tema da morte é somada ao incansável trabalho de construção de uma obra
constituída por uma vitalidade impressionante, que se dispõe ao leitor nas múltiplas
formas da produção textual pela qual Cecília se expressou, mostrando assim o profundo
engajamento com a vida e a face de uma escritora comprometida em estabelecer
diálogos e cultivar as relações afetivas.
Fernando Cristovão também chamou a atenção para o desafio que a poesia de
Cecília Meireles representa para a crítica literária, por se tratar de uma ―poética dum
caminho próprio não enquadrável no esquema relativo da estrutura reconhecida
oficialmente‖. Em ―Compreensão portuguesa de Cecília Meireles‖ (1978), Cristovão
desenvolve um estudo sobre a recepção da poesia da autora em solo português e as
alteridades que apresenta se comparada à recepção no Brasil.
Foi com estranhamento e desconfiança que a crítica brasileira a recebeu no
primeiro momento. O maior exemplo disto foi a polêmica em torno do prêmio da
Academia Brasileira de Letras, em 1938, ao seu livro de poemas Viagem7.
A comissão julgadora ficou dividida em dois grupos. Um, liderado por Cassiano
Ricardo, defendia a premiação de Viagem, e o outro, conduzido por Fernando
Magalhães e Olegário Mariano, reivindicava o prêmio para o livro Pororoca, de
Vladimir Emmanuel. Um dos pontos de divergência foi sobre a questão da
nacionalidade. Para o grupo favorável à obra de Emmanuel, impregnada de vocabulário
indígena e paisagens típicas, Cecília era uma escritora muito mais ibérica que brasileira.
Margarida Maria Gouvêa, no ensaio ―Da universal inquietude‖, a propósito da
correspondência de Cecília ao poeta português Armando Côrtes-Rodrigues, faz a
seguinte análise sobre a questão do nacionalismo na obra da poeta:
7
Ver mais em: Lâmego, 1996, p.39 e 40 e Anjos, 1996. Esta dissertação apresenta ainda um panorama da
recepção crítica à obra de Cecília no Brasil e em Portugal. Ver outros estudos sobre estes assuntos em:
Oliveira, 2001.
28
A representatividade de Cecília no espaço cultural da língua portuguesa
decorre da riqueza dos seus temas: os problemas humanos, a condição de ser
homem numa sociedade injusta, a profundidade da análise dos conflitos,
enfim, uma temática que se prende muito mais à condição humana do que a
circunstâncias de quaisquer regionalismo ou mesmo de um nacionalismo
brasileiro (Gouvêa, 2001, p. 122).
Em um texto que escreveu para a Revista Realidad, ―Carta del Brasil‖ (1947),
que iremos discutir mais adiante, Cecília explica a ideia que defendia do que é ser
brasileira: ―Ser brasileira implica ao mesmo tempo ser geograficamente americano e
historicamente um vasto europeu, de muitos cruzamentos‖ (p.104).
Os poemas de Viagem mostram justamente esse interesse pelos diálogos
múltiplos e desconhecidos, como sintetiza o seguinte verso de ―Diálogo‖: ―Minhas
palavras são a metade de um diálogo obscuro/ continuando através de séculos
impossíveis‖.
Apesar das divergências entre os julgadores, a premiação de Viagem foi apoiada
pela maioria dos críticos e também pelos modernistas de 22. O amigo Mário de Andrade
dedicou um estudo ao Viagem, que seria publicado anos mais tarde em O empalhador
de passarinhos. Nele, Mário exalta a qualidade artística da poeta, justamente por seu
ecletismo:
29
Ela é desses artistas que tiram seu ouro onde o encontram, escolhendo por
si, com rara independência. E seria este o maior traço de sua personalidade,
o ecletismo, se ainda não fosse maior o misterioso acerto, dom raro com que
ela se conserva sempre dentro da mais íntima e verdadeira poesia (Andrade,
1955, p. 71)
Diogo de Macedo (1889- 1959), escritor e escultor português, logo que recebeu
seu exemplar de Viagem, escreveu uma bela carta de agradecimento à amiga. Ele fala
das cartas e dos poemas de Cecília como uma mostra da capacidade da poeta de criar
―formas novas‖ e nos transmitir o que ele considera a parte digna da vida: o sonho e as
ilusões. Aqui transcrevo um trecho:
A minha coragem de hoje, devo-a a sua Viagem, que recebi há duas horas
(...). Os poetas são generosos. Por isso nos seus versos, como numa
confissão de beleza, nos abrem o próprio coração, e nos aceitam como
amigos a quem nos fazem confidencias (...).
Querida Cecilia! A Terra é que não a merece. Os seus versos dum lado, as
suas cartas do outro, provam-me que você nasceu cá embaixo por traição,
para sofrer injúrias e injustiças no contato com a vida, embora seja dela que
você extrai a sua maravilhosa obra, sublimando-a através de sua imaginação
de poetisa por graça de Deus, com uma liberdade preciosa de mulher, que
por uma sensibilidade privilegiada, e usando de formas novas e muito
pessoais, nos transmite a única parte dela digna de ser vivida, que é o sonho,
o deslumbramento adorável das ilusões (Carta de Diogo de Macedo à
Cecília Meireles, 18 de setembro de 1939)8.
Nessa mesma data, Cecília recebeu a carta (em papel timbrado da Academia
Brasileira de Letras) de Afrânio Peixoto (1876-1947), crítico e historiador que fazia
parte da Academia Brasileira de Letras. Também demonstrando seu agradecimento
pelos versos de Viagem, ele revela sua grande admiração pela poeta.
8
Arquivo Darcy Damasceno. Seção de manuscritos da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro. Loc.
26,4,31.
30
Dona Cecilia, minha senhora, ia dizer meu poeta...
Mil graças pelo seu livro ―Viagem‖, coisa tanto do meu agrado, única que
ora fosse fazer, ao sonho, e em companhia da musas... Já de longe lhe foi
uma declaração. Desde ―Nunca mais‖: era meu único poeta, no Brasil,
mesmo fora do Brasil.(...). Dona Cecilia, como lâmpada votiva, ficou,
sempre, ela mesma: aclarando... a caminhada de Psyche. ―Não sou alegre
nem triste: sou poeta‖. Canta. Cante, como a outra, primeira? primavera?
Cecilia, tangia música... Minha senhora e musa, obrigado! Vou viajar... ao
sonho! (Carta de Afrânio Peixoto para Cecília Meireles, 18 de setembro de
1939)9.
9
Idem. Loc. 26,4,38.
31
digo que não cairei com uma fadiga permitida,
que não apagarei este desenho puro e ardente
com que, de fogo e sangue, foi traçada a minha imagem.
Em duas cartas escritas por Cecília aos amigos e poetas portugueses, Fernanda
de Castro (1900- 1994) e Alberto de Serpa (1906- 1992), lemos suas considerações
sobre o episódio da polêmica premiação da Academia Brasileira de Letras. A carta à
Fernanda é de dezembro de 1938, Cecília pede a ajuda da amiga pois recebera um
convite para publicar o livro (Viagem). De certo, Fernanda foi uma das que primeiro leu
esses poemas, pois Cecília os havia dado a ela antes de enviá-los ao concurso.
Justamente por isso, ela escreve à amiga:
32
colocação. Essa eu acho que nem Deus se lembra mais qual seja. Lembro-
me apenas que o critério foi este: alternar poemas em prosa, canções, e 13
epigramas. Os epigramas estão distribuídos proporcionalmente, e o livro
termina exatamente com o que diz: ―Passaram os reis coroados de ouro‖.
10
Arquivo Darcy Damasceno. Seção Manuscritos da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.
33
Mas os inimigos se rebelaram, e, cinco meses depois, Cecília narrou a Alberto
de Serpa sua versão sobre o episódio. Segundo ela, a relutância de dois dos jurados em
lhe conceder o prêmio era fruto de uma implicância pessoal.
Assim conta ao amigo:
11
Fundação Casa de Rui Barbosa.
34
Alberto de Serpa ainda não havia lido os poemas de Viagem, é o que sabemos
pela resposta que ele enviou à Cecília em 26 de julho de 1939: ―Espero a Viagem com a
maior ansiosidade e prometo-lhe uma critica lírica (doutoral, não sei fazer...)‖. Comenta
o caso como ―o escandaloso prêmio que a Academia concedeu a Viagem‖ (Carta de
Alberto de Serpa - 26 de julho de 39)12.
Eu já sabia que a Cecilia tinha inimigos, mas pensei que tinham vergonha de
atacar os seus lindíssimos versos. Chega a ser comovedora, a posição que
tomaram contra si. Julguei que uma coisa dessas só seria possível na
Academia das Ciências de Lisboa. E pena que todos não lhe façam justiça e
queiram arrastar a Cecilia para esses caminhos que só deviam pertencer aos
homens...
Sobre a defesa de Cassiano Ricardo, Alberto de Serpa diz que esta ―não deve
estar a altura do livro‖, e termina a carta exaltando Cecília como ―a maior poeta do
Brasil!‖ (idem).
Mesmo após decidirem dar o prêmio à Cecília, a polêmica não foi encerrada.
Convidada a discursar na cerimônia de entrega dos prêmios, Cecília sofreu com a
censura a trechos de seu texto, por isso, ela acabou preferindo não estar presente na
ocasião.
Assim inicia o discurso que não foi lido pela poeta: ―Mais do que por sua eleição
própria, minha situação, nesta cerimônia, é ainda uma das tantas fatalidades que
aguardavam, nestes agitados mares acadêmicos, a minha bem desinteressada ‗Viagem‘‖.
Encontramos o texto do discurso no arquivo do amigo Darcy Damasceno que aponta,
com palavras da própria Cecília, o motivo pelo qual ela decidiu não comparecer na
entrega do prêmio:
12
Arquivo Darcy Damasceno. Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, seção manuscritos. Loc. 26,4,36.
35
acadêmica mas referentes apenas a ataques a Pátria, a família e a pessoas
dos acadêmicos. Escrevi esse discurso. Cortaram os trechos que vão
indicados. Achei que a censura se tenha excedido. Não falei‖.
36
1977, p. 43-64). No caso de Cecília, as cartas sugerem um espaço autobiográfico, e são
parte integrante de sua poética, lugar de exercício de construção subjetiva fundamental
para o desenvolvimento de sua linguagem e de sua formação de escritora.
A escrita epistolar de Cecília pode então ser pensada como um importante
material do ponto de vista de uma construção autobiográfica e biográfica, de uma autora
que sempre se preocupou em escrever ela mesma sua biografia. Em Olhinhos de gato,
por exemplo, escrito entre 1939 e 1940, estão presentes as memórias da infância da
autora, numa narrativa em terceira pessoa voltada para o público infantil. Darcy
Damasceno tinha a intenção de fazer uma biografia da amiga, conforme nos conta Leila
Gouvêa (2008, p. 49), e nos confirmam as anotações que ele fez sobre diversos
episódios da vida da poeta e sobre sua obra13. Mas a intenção não se concretizou. Não
tenho notícias de uma biografia consistente e significativa de Cecília Meireles. Já as
cartas, pelos diversos prismas que oferecem da personalidade da escritora, podemos lê-
las como uma possibilidade de autobiografia não linear, e com toda a riqueza de
nuances que contêm as narrativas fragmentadas.
A sugestão que apresento é a de observarmos as correspondências de Cecília
como espaço autobiográfico em que são refletidas diversas possibilidades de formas de
escrita, como o ensaio e o diário. Como vemos no caso da construção de o Romanceiro
da Inconfidência que se desenvolve na correspondência com a amiga Isabel do Prado.
Inicialmente pensada para ser uma peça de teatro, a obra é resultado de quase dez anos
de pesquisa, à qual Cecília se dedicou em inúmeras viagens que fez a Ouro Preto, e que
são relatadas à amiga, como um diário da construção da obra.
Outro corpus de relevo é a correspondência com o poeta mexicano Alfonso
Reyes, que se encontra na Capilla Alfonsina, na Cidade do México, onde estive no
período entre abril e agosto de 2011. Neste caso, a importância explica-se por aí
encontrarmos um dos pontos fortes da articulação político-estético-cultural empreendida
pela autora, sobretudo no que se refere à Educação e à Cultura mexicana como
parâmetros para as transformações sociais idealizadas por Cecília Meireles para o Brasil
e às tentativas de diálogos entre o Brasil e a América Latina.
13
Os cadernos com esses apontamentos estão disponíveis no arquivo Darcy Damasceno, seção
manuscritos da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.
37
Acredito que a riqueza desse material epistolográfico de Cecília esteja
justamente no fato de se tratar de uma escrita híbrida; quando o artista cria algo novo,
que ainda não se estabeleceu como gênero. Minha intenção ao realizar esta pesquisa foi
também propor uma reflexão sobre a importância dos diálogos interculturais no
desenvolvimento estético, cultural, político e social de um país, e como, no caso da
poética de Cecília Meireles, eles contribuíram para a dicção poética singular da autora.
São vários os intercâmbios culturais que Cecília Meireles estabeleceu e que se
refletem em sua obra poética. Apesar de contemporânea do Modernismo de 22, a
produção da poeta, sobretudo nos anos iniciais do movimento, foi vista com ressalvas
por sua associação à chamada ―corrente espiritualista‖ na qual estavam Andrade Muricy
e Tasso da Silveira, vinculados às Revistas Festa e Árvore Nova, das quais Cecília foi
colaboradora. E se considerarmos opiniões como a do crítico Luís Augusto Fischer, de
que o modernismo paulista ―homogeneizou descritivamente a cultura letrada brasileira
ao custo de apagar diferenças relevantes‖ (Fischer, 2011), podemos pensar melhor nas
dificuldades dos críticos em relação à obra da poeta.
A ideia é trazer para o presente um momento da história em que artistas e
intelectuais dialogavam por um objetivo comum, e é também um convite para que
possamos pensar sobre as relações atuais entre Brasil e América Latina. Tema que vem
ganhando cada vez mais relevo nos estudos culturais e de literatura.
38
1. Romanceiro da Inconfidência, cartas com Isabel do Prado
14
Na reprodução de um dos programas gravado ao vivo e transmitido em português pela BBC, após fazer
uma pequena apresentação biográfica de CM, Isabel lê poemas de um de seus primeiros livros, Nunca
mais e Poemas dos poemas, e encerra com ―Balada a Philip Muir‖, a saga do copeiro inglês, ―Nem
Almirante, nem corsário‖ que atravessa o Atlântico em plena tragédia da Guerra:
―(...) Do lado do norte, há sangue nas águas do oceano.
E do lado do leste. E nas terras. Sangue inglês.
E, por baixo do mar, andam as sombras sem passos...
Philip Muir, no meio do desastre humano,
serve champanhe, hoje. Amanhã, seu sangue, talvez (...)‖
39
programa radiofônico era transmitido para o Brasil desde a Inglaterra, um dos centros
do conflito durante a Segunda Guerra Mundial. A relação das crianças e das mulheres
britânicas com a Guerra foi tema das crônicas que leu em 1943 na Rádio Roquete Pinto,
no Rio de Janeiro. Em 1945 foi para a Alemanha, contratada pela United Nations Relief
and Rehabilitation Administration (UNRRA) para dar apoio aos refugiados da Guerra.
Nessa época a correspondência com Cecília foi interrompida, e retomada no ano
seguinte, quando Isabel foi trabalhar no Departamento de Educação da UNESCO, em
Paris, onde permaneceu até 1951, quando então retornou ao Brasil.
À amiga, Cecília dedicou o poema ―Canção de remar‖ (Vaga música), lido por
Isabel em um de seus programas da BBC, e que nos remete àquele momento de torpor e
―alguma esperança‖ latentes em tempos de guerra:
Doce peso
desta sonolência,
leve cadência
de amor e desprezo.
Lua mansa,
pedaço perdido
do anel partido
de alguma esperança (...)
A leitura das cartas dirigidas a Isabel é material valioso para refletirmos sobre a
relação entre autobiografia e poesia na obra de Cecília, na escrita das cartas como lugar
de construção de sua obra, e na importância das redes de amizades entre escritores para
o fortalecimento cultural de uma sociedade. Podemos pensar sobre isso a partir dos
gestos de cuidado de Isabel do Prado e de Darcy Damasceno, ao doarem seus arquivos
pessoais a instituições públicas, possibilitando assim a preservação da memória da obra
da poeta desde perspectivas pouco conhecidas do público.
Isabel teve a preocupação de fazer anotações e organizar seu arquivo de
memórias da amiga Cecília, enviando uma parte à Fundação Casa de Rui Barbosa e
40
outra ao Real Gabinete Português de Leitura, também no Rio de Janeiro. Neste, cujas
doações datam dos anos 1980, encontramos livros com os quais Cecília presenteou
Isabel. Entre eles estão as primeiras edições de O espírito vitorioso, tese que Cecília
apresentou ao concurso para professor da Escola Normal, e da antologia Poetas Novos
de Portugal, cuja dedicatória mostra o compromisso amoroso que Cecília tinha com seu
trabalho e os laços afetivos que as uniu: ―Para Isabel do Prado, estes poemas que escolhi
com amor‖.
O carinho de Cecília por Isabel se manifestava sobretudo pelo incentivo que
dava à amiga em suas investidas artísticas. Dizia que ela devia aproveitar a rica
experiência do que viveu, ainda mais por ter acompanhado tão de perto os episódios da
Segunda Guerra.
Na carta de 20 de fevereiro de 1947 (carta 7), Cecília cobra da amiga o livro que
ela prometera fazer sobre a romancista Amandine-Aurore-Lucile Dupin, que escrevia
sob o pseudônimo de George Sand. Musa, pintora e autora de romances socialistas no
romantismo francês do século XIX, Sand foi amante de Chopin e teve em Dostoievski
um de seus leitores mais devotos15. Nesta mesma carta, Cecília fala sobre a importância
do ―testemunho da experiência‖, revelando assim o valor que tinha para ela mesma uma
escrita produzida a partir de acontecimentos da própria vida. É mais um indício da
relação intrínseca entre ficção, poesia, autobiografia e a escrita das cartas, sendo cada
uma, a seu modo, expressão das experiências de uma vida.
Tanta coisa que V. poderia fazer, Isabel, com um pequeno impulso... Suas
experiências são tão grandes, naturalmente tão ricas, e é tão necessário
sempre o testemunho da experiência!... Agora, que os dias não são do
mesmo modo tensos, V. nos poderia contar muitas coisas. Eu bem sei que
não seriam coisas animadoras. Mas não é isso também que lhe pedimos. No
meio de tantas vidas e tantas mortes, V. decerto representa um episódio
humano digno de ser narrado (carta 7 – Rio, 20 de fevereiro de 1947).
O livro sobre George Sand não deixou de ser apenas uma ideia, mas o
entusiasmo com o potencial artístico da amiga Isabel continuou animando Cecília. Em
15
Ver mais em: Kern, 2010.
41
um momento Isabel começou a pintar, e mantinha interesses diversos, o que Cecília via
como uma virtude:
Gostaria de ver as suas pinturas, mesmo com esse pessimismo todo que V.
acrescenta à notícia. Quem sabe V. não está com uma vocação adormecida,
―encolhida‖, como tantas vezes a vejo encolher-se sobre um assunto? (carta
11- RJ, 14 de abril de 47).
Nesta carta, Cecília aconselha Isabel a procurar a pintora Maria Helena Vieira da
Silva16, mulher do desenhista Arpad Szènes, que desenhou vários retratos de Cecília. O
casal mantinha relação de intensa amizade com a poeta, que se refere à Maria Helena
como uma mulher difícil, mas demonstra grande admiração por seu trabalho:
Já esteve com Maria Helena? Não creio que ela seja capaz de estimular
vocações: é muito impaciente e alheia. Mas, independente do seu feitio
pessoal, a obra que realiza tem um grande poder poético; é inspiradora
(Idem).
Alguns meses depois, Cecília conta da felicidade que sentiu quando soube a
opinião de Maria Helena sobre a nova atividade de Isabel.
16
Sobre a pintora Maria Helena Arpad, ver em Lâmego, 2007.
42
Maria Helena – e ela é terrivelmente difícil – dizia-me que V. estava
pintando ―como um homenzinho honesto‖. Fiquei contentíssima ao saber
disso com essas palavras (carta 23 – RJ, 3 de dez de 47).
Até que, finalmente, em fevereiro do ano seguinte, Cecília recebe em sua casa a
tão esperada encomenda: as pinturas de Isabel. E é enfática em seus elogios.
Seus quadros foram uma festa para os meus olhos. E V. dizia que não tinha
palavras ―belas e boas‖. Suas palavras são de cor, Isabel. Sua linguagem
está aqui: nestes cavalinhos adoráveis, neste vaso de barro, nestas flores...
Compreendo que Maria Helena se tenha entusiasmado. Eu também. Há uma
poesia imensa nas suas cores (carta 27 – Rio, 1º de fevereiro de 1948).
Cecília diz que o que mais lhe encantou foi o uso do branco nas pinturas de
Isabel e compara o trabalho da amiga ao do pintor uruguaio Pedro Figari.
43
“Candombe”, Pedro Figari (1921).
(Fiquei tão vencida! Queria escrever uma Elegia grande, mas não sei se terei
forças. Logo ao chegar – pois soube do assassinato na cidade – escrevi uma
pequena elegia, que lhe mando. É a mistura de tudo que me recordou a
morte. A frase em francês foi um oficial de marinha que me disse, uma
tarde, não há muito, numa recepção. Soou-me estranhamente. E neste
momento se levantou por si.) (Idem).
44
Les hommes sont des brutes, madame.
O vento leva a tua vida toda, e a melhor parte da minha.
Sem bandeiras. Sem uniformes. Só alma, no meio de um mundo
desmoronado.
(Dispersos, 1918-64)
O encantamento pela Índia, que levou Cecília a visitar aquele país na década de
1950 e a dedicar-lhe uma série de poemas, era compartilhado por Isabel, que traduziu
para o inglês ―Cântico à Índia pacífica‖ (Poemas escritos na Índia, 1953), escrito por
Cecília a pedido da Embaixada da Índia, e também fez sua versão de ―Elegia sobre a
morte de Gandhi‖, ambas traduções publicadas no Jornal de Notícias da Índia, em 1 de
novembro de 1965 e 1 de janeiro de 1966, respectivamente. ―Elegia‖ chegou a ser
traduzido para o hindi, motivo pelo qual Cecília foi convidada a conhecer aquele país17.
Ao lermos a crônica ―Meus ‗orientes‘‖, em O que se diz o que se entende,
podemos conhecer mais sobre os laços de Cecília com o Oriente: ―O Oriente tem sido
uma paixão constante na minha vida: não, porém, pelo seu chamado ‗exotismo‘ – que é
atração e curiosidade de turistas – mas pela sua profundidade poética, que é uma outra
maneira de ser da sabedoria‖ (Meireles, 1980).
Cecília nos conta sobre sua admiração pelo oriente, que começou na infância, na
convivência com as duas pessoas mais importantes em sua formação afetiva e
intelectual: a avó Jacinta e a babá Pedrina. A avó falava ―em linguagem camoniana‖:
―‗Cata, cata, que é viagem da Índia!‘. Eu ainda não sabia do sentido náutico do verbo
‗catar‘: mas parecia-me que, com aquele estribilho, tudo andava mais depressa, como
para uma urgente partida.‖ A babá Pedrina, que ―sabia muito do Oriente‖, fazia chás,
contava histórias e canções, mostrava figuras em livros, como a do touro alado, que foi
a que mais impressionou Cecília, ―durante muito tempo aquele poderoso animal com
face humana habitou a minha imaginação infantil, mais sugestivo e misterioso que os
príncipes e princesas das histórias de fadas‖. Havia ainda a antiga bandeja da
cozinheira, com desenhos chineses e os mascates que vendiam de porta em porta
17
Ler mais em: Loundo, Dilip. ―Cecília Meireles e a Índia: viagem e meditação poética‖. In: Gouvêa,
Leila V.B. (org.) Ensaios sobre Cecília Meireles. São Paulo: Humanitas; Fapesp, 2007.
45
―alfinetes e pentes, rendas de linho e fitas, sabonetes e cosméticos‖. Enfim, Cecília se vê
mergulhada nesse ambiente oriental, de delicadeza, sabedoria e ―profundidade poética‖:
A partir desse diálogo tão particular de Cecília com o Oriente, o que nos propõe
o artigo ―As rotas do Oriente em CM (uma poesia de interculturalidades)‖, publicado
em A ilha ancestral: Vitorino Nemésio e Cecília Meireles, de Margarida Maia Gouveia,
é que há na poesia de Cecília uma poética de interculturalidade, de convergência entre
diferentes referências estéticas.
46
culturas, ―ao tratar o herói nacional Tiradentes, Cecília projeta porém nele a sua visão
oriental de raiz indiana, do resistente à maneira de Gandhi‖ (Idem, p. 161-2).
Quando Cecília envia à Isabel sua ―Elegia‖, na carta de 1º de fevereiro de 1948
(carta 27), ela o chama de ―pequeno‖ poema a Gandhi. Diz: ―Vou ver se consigo
realizar o grande. Uma coisa um pouco épica. Não sei como é, mas sei que é. Está
vivendo nas minhas veias. Ainda que o não consiga escrever, nem por isso terá deixado
de ser‖. O interessante é que desde a hipótese de uma relação entre a personagem de
Tiradentes e Gandhi e do caráter épico de o Romanceiro estar ligado a um sentido
filosófico da existência18, podemos pensá-lo como este ―poema grande‖ que Cecília
tanto desejou escrever sobre o Mahatma.
Cecília frequentou a cidade de Ouro Preto com o objetivo de recolher material
para sua pesquisa da peça que pensava em escrever sobre a Inconfidência, o que mais
tarde veio a ser o Romanceiro da Inconfidência: ―Depois de amanhã iremos a Ouro
Preto, por uns dez dias. Se tudo correr bem, verei se posso, afinal, acabar de construir a
já famosa peça da Inconfidência‖ (carta 27 – Rio, 1º de fevereiro de 1948).
Nesse momento, da criação de o Romanceiro, todas essas referências tão
importantes para Cecília estão misturadas: a relação com o Oriente, com a tradição oral
das poesias portuguesa e espanhola, o desejo de escrever dramaturgia (em especial a
tragédia) e seu interesse pelos personagens da Inconfidência mineira. Para Cecília esse
foi um dos grandes episódios da História do Brasil.
Na carta de 9 de junho de 1947 (carta 13) ela se refere à Inconfidência como ―o
único fato verdadeiramente trágico em toda a história do Brasil.‖ E, pouco tempo
depois, em 17 de julho de 47 (carta 18), diz: ―Não me interessa nem Marília nem
Gonzaga nem ninguém. Interessa-me ―o caso‖. É mesmo a meu ver, o único grande
caso de DESTINO, na história do Brasil.‖ Ainda nesta carta, Cecília revela seu desejo
18
Conferir o artigo ―Da universal inquietude, a propósito da correspondência de Cecília a Armando
Côrtes Rodrigues‖. In.: Gouveia, 2001, p.148. A autora faz uma aproximação entre o Romanceiro da
Inconfidência e Mensagem, de Fernando Pessoa, a partir da ideia de que em ambos a matéria histórico-
épico recebe um tratamento essencialmente lírico, e da constatação de que Cecília foi leitora de
Mensagem, como lemos em uma das cartas a Côrtes-Rodrigues. E o que daria ao Romanceiro uma
―perspectiva pessoana‖: ―Na obra (Romanceiro...) convergem lirismo, épica, misticismo, na construção
do herói cruzam-se a abnegação cristã e o sentido do martiriológico com a visão do herói pacifista e ainda
o ideal sabástico, numa perspectiva pessoana.‖
47
de fazer um tributo aos mártires: ―Tenho esperanças de fazer uma coisa digna dos
mártires. E, ademais, é uma espécie de tributo de solidariedade aos poetas sacrificados.‖
Pensemos em García Lorca, Gandhi, e no próprio Tiradentes, homens de ideais que
foram vítimas de mortes violentas.
Encontramos na correspondência com Isabel uma espécie de diário de criação de
o Romanceiro da Inconfidência. Há nesse ―diário‖ do Romanceiro um espaço de
confluência entre crítica, autobiografia e poesia. Cecília participa à amiga, e ao leitor
das cartas, as diferentes fases de seu processo de concepção do longo poema que se
tornou uma de suas obras de maior relevo.
O interesse pelo teatro e a vontade de escrever dramaturgia fez com que a
primeira ideia fosse trabalhar o assunto em uma peça:
48
vejo o arrepio da morte,
à voz da condenação (...)
O que eu queria conseguir não era o lírico efeito banal dos amores de
Gonzaga, nem o episódio terrificante de Tiradentes: mas uma peça que,
sendo nacional, fosse absolutamente humana, pelas suas fatalidades, o seu
enredo emaranhado de segredos, tendo de um lado os propósitos de cada
49
inconfidente e de outro as consequências ilógicas – como predestinações.
Estou apaixonada pelo assunto, e quero utilizar as próprias palavras dos
réus, recriando a atmosfera da sua vida naquele fantástico ano de 1789.
Tempos mais tarde, Cecília conta que fez um calendário de tudo o que se passou
entre 1786 e 1892, mas que não conseguia seguir com o trabalho por conta de suas
atividades como professora na Escola de Teatro. ―E eu dando lições aos meus pobres
alunos da Escola de teatro... Não, isto não pode continuar. Estou louca para me meter
embaixo de uma mesa, num porão, onde ninguém me encontre – que me demitam, não
me paguem, se danem, mas eu quero pensar é nisto‖ (carta 25 – RJ, 13 de jan. de 1948).
No início da década de 1940 Cecília esteve bastante envolvida com o Teatro,
escreveu peças sob encomenda para companhias como a de Dulcina de Moraes e
trabalhou com grupos amadores como Os Comediantes e o Teatro do Estudante
Brasileiro19. Em 15 de agosto de 1946, ela escreve à Isabel: ―Ando muito interessada em
teatro, mas não me animo, por enquanto, a uma experiência. Principalmente por falta de
tempo para o inevitável fazer e refazer de um principiante no gênero‖ (carta 5). A poeta
conta ainda sobre seu especial interesse pelo teatro de marionetes, que via como uma
atividade nova, sugestiva e com forte potencial educativo.
Escrevi muitas peças, o que foi um bom exercício, pois desejava trabalhar
em teatro. Mas só pude representar uma, até agora. (...) Mas como êsse
exercício consegui criar forças para escrever uma tragédia que andava
sonhando e sofrendo. Não sei se será representável. Mas está feita. E isso é
bastante. As peças têm, sobre os poemas, esta vantagem: obrigam o autor a
deter-se, a ter disciplina. E isso me parece bom. (carta 8 - RJ, 4 de março de
1947).
19
Cf.: Vicenzia, 2006.
50
produção literária. Nesta mesma correspondência, Cecília revela o drama pessoal pelo
qual passava naquele momento: a solidão que sentia por viver numa casa grande, e as
filhas e o marido passarem a maior parte do tempo fora. Então, a atração pelo teatro
vinha não somente pela vantagem da disciplina que as peças teriam sobre os poemas,
mas o fato de criar personagens a obrigava a entrar numa dinâmica de criação que lhe
trazia um conforto emocional: ―ser fulano e beltrano, falar, calar, estar alegre, estar
triste, morrer, matar, etc. Creio que isso me ajuda a viver, nesta prisão em que me
encontro, sem uma pessoa, sequer, com quem conversar‖ (Idem). Podemos perceber
então que além da dramaturgia, outra linguagem também ocupava o lugar dessa
ausência, tomando o lugar de um interlocutor: as cartas, ―porque a situação nua e crua é
essa que lhe digo: só converso pelo correio, a milhas de distância‖ (Idem).
Em 16 de fevereiro de 1948 (carta 28) Cecília escreve para Isabel ao regressar de
Ouro Preto, conta que visitou a casa do poeta Cláudio Manuel da Costa e sobre a ideia
que teve para uma cena que se passaria na sala de jantar. Ela lamenta a má conservação
do imóvel e se diz decepcionada pois a casa de Tiradentes havia sido demolida e no
terreno fora reconstruído um sobrado onde naquela ocasião funcionava um bilhar.
―Tudo é assim macabro em ouro preto‖ (carta 28).
O cenário de abandono encontrado por Cecília e seu desejo de criar uma cena
que aconteceria na sala de jantar da casa de Cláudio Manoel da Costa têm seus reflexos
em versos de ―Cenário‖:
51
As mesmas salas deram-me agasalho
onde a face brilhou de homens antigos,
iluminada por aflito orvalho.
Cecília escreve à Isabel sobre as leituras que estava fazendo e a angústia de seu
processo de criação. ―Se V. soubesse o que tenho lido! Todo o século 18, na Espanha,
na Itália, em Portugal, na França, no mundo... Isso me impede outras leituras, atrapalha
muito a minha vida. Preciso acabar o quanto antes, para ter algum sossego!‖ (carta 21 –
RJ, 4 de setembro de 1947).
52
Esse processo de idas e vindas é narrado pela poeta no texto que escreveu anos
mais tarde, após a versão final de O Romanceiro... ―Como escrevi o Romanceiro da
Inconfidência‖ é resultado de uma conferência apresentada por Cecília em 20 de abril
de 1955, na Casa dos Contos, em Ouro Preto.
53
Mas apesar dessa relação íntima entre história e poesia, os caminhos do
historiador e do poeta são distintos, como bem observou a poeta: ―Seus caminhos são
outros para atingir a comunicação. Há um problema de palavras. Um problema de
ritmos. Um problema de composição‖ (Meireles, 1955). A preocupação com a
linguagem, com a forma em que a história será contada, somada ao trabalho de invenção
e a atenção ao leitor: esta é a verdade que parece buscar o poeta. Assim, temos a
alteridade entre o entre o registro histórico e a invenção poética: ―O primeiro fixa
determinadas verdades que servem à explicação dos fatos; a segunda porém anima essas
verdades de uma força emocional que não apenas comunica fatos, mas obriga o leitor a
participar intensamente deles‖ (Idem).
Essa distinção elaborada por Cecília e o relevo que dá ao papel do leitor na
produção da invenção poética nos fazem pensar na atenção à recepção presente em sua
obra. E, mais uma vez, temos as cartas como lugar de potência literária, já que mesmo
com as diferenças com que um mesmo assunto era apresentado dependendo de cada
destinatário, o que era produzido tinha por foco o leitor.
Bajo el agua
siguen las palabras.
54
qualidades próprias em relação às bilinas20 russas, ou às baladas escocesas e inglesas, o
Romanceiro é o ―representante poético-narrativo da balada europeia na Península
Ibérica‖. O termo surge em 1579 com a coleção de Lucas Rodrígues, Romancero
Historiado, ganha força em 1600, com o Romancero General (Escarduça, s/d.) e é
tributário da palavra romance.
Em História da Literatura Portuguesa, António José Saraiva e Oscar Lopes,
explicam assim a origem da palavra ―romance‖:
20
Conto épico popular russo; gênero que se mantém até o século XVI onde pouco a pouco começa a dar
lugar ao ―conto histórico‖, de onde o fantástico é banido. ―Na sua análise devemos ter como critério a
tentativa do povo se rever no seu passado, tirando conclusões práticas que o ajudem a compreender o
presente‖ (Ferreira, Maria Teresa Neves. ―A Língua russa – origem do povo russo‖).
55
São vários os intercâmbios culturais que Cecília Meireles estabeleceu e que se
refletem em sua obra poética, a ligação com Lorca, de quem a poeta foi tradutora, é
apenas um deles. A busca por uma experiência vasta é coerente com a notável intenção
humanista que marca a produção da autora. Assim, a Morte, tão presente na poética de
Cecília Meireles pode ser percebida por outras camadas que não a de uma poética
fúnebre, mortificada, mas como algo que remete à incumbência de todo escritor
comprometido em escrever a experiência humana: o defrontar-se com a Morte. E este
enfrentamento é realizado pelo trabalho estético com a linguagem, como lemos nos
poemas ―Romance das palavras aéreas‖ e no ―Romance con Lagunas‖, testemunhos da
morte que se cura com a beleza: ―a amizade em comunhão com a escrita‖, como pensou
a poeta portuguesa Gabriela Llansol (2005).
Trata-se portanto de uma escrita que carrega a certeza da morte, mas de onde
irrompe a imortalidade resultante do encontro com novas palavras, ―que superam seu
caráter mortífero, que demovem a língua de seu automatismo e de seus lugares comuns‖
(Costa, 2009, p. 20) e do movimento que Cecília e Lorca realizam como poetas –
guardiães da memória dos heróis – assim como Homero ao sacar do esquecimento
Ulysses e Aquiles, Lorca e Cecília elegem a linguagem poética em suas relações com a
tradição oral para transmitirem a violência da morte. A coleção de versos, as baladas de
ambos os poemas em suas relações com a épica, se afina à busca de uma linguagem que
faça perdurar o feito dos heróis e Aristóteles já apontava, em oposição à tragédia e à
comédia, a épica como gênero da memória por excelência. Para o filósofo grego, ―na
epopeia, por se tratar de uma narração, é possível a composição de várias partes
produzidas simultaneamente e que se estiverem bem harmonizadas aumentam a
amplitude do poema‖ 21.
Os Romances estão portanto ligados à tradição oral da poesia e à épica. Romance
era como se chamavam também as coleções de versos e baladas, uma das primeiras de
que se tem notícia é o Cancionero General, de Hernando del Castillo (1511):
21
―Dans l‘épopée, parce que c‘est un récit, il est possible de composer plusieurs parties qui se produisent
simultanément et qui, bien appropriées, augmentent l‘ampleur de poème‖ (Aristóteles, 2002, p.96).
56
século 17 apresenta uma abundância de Romances que dialogavam com as
épocas anteriores. Autores como Lope de Vega, Góngora e Quevedo
escreveram ―romances‖ e produziram o que conhecemos como Romance
Nuevo (novas baladas espanholas). Essa tradição manteve-se mais ou menos
estável até o século 20, com, entre outros, Rafael Alberti e Federico García
Lorca (Rosado, s/d.).
Vemos então que os diálogos estabelecidos pelos dois poetas remetem o leitor a
vários tempos e espaços: ao século XVI na Península Ibérica, aos antepassados gregos,
e ainda às origens jogralescas da Canções de gesta no século XII, que ―emergem do
anonimato pela escrita, centradas em torno de heróis ou rebeldes mais ou menos
lendários e projetadas três séculos atrás, nos tempos carolíngios, como a Chanson de
Roland‖ (Saraiva & Lopes, 1975, p. 87), onde encontramos mais nitidamente o caráter
épico dos Romances.
Podemos pensar também na relação da poeta com a História por um movimento
que se aproxima do pensamento de Walter Benjamin em sua teoria da narração, da
memória e em seu célebre conceito de história transmitida – pela articulação entre o
lembrar e esquecer, onde o passado é rememorado para melhor pensarmos o presente –
numa narrativa em fragmentos, ruínas do passado contado a partir das margens, do
ponto de vista dos ―vencidos‖, numa perspectiva que privilegia as histórias do
cotidiano, e onde a escrita da história, sua forma estética, narrativa, está intimamente
ligada à transmissão, ao que vale a pena reverberar de geração a geração, enfim, do que
vale a pena fazer perdurar. Para Benjamin, a pulsão narrativa é intrínseca ao ser
humano, não só por um deleite estético, mas por se tratar de uma resposta mais
específica à questão da finitude e da morte. Quem se incumbe então de escrever a
história deveria ter por princípio ―apropriar-se do curso das coisas e fazer as pazes com
o desaparecimento delas, com o poder da morte‖22.
A transmissão da memória a partir do ponto de vista do herói que foi vencido, o
enfrentamento da morte pelo labor estético e a busca por uma linguagem cuja potência
22
Gagnebin, Jeanne-Marie. Mini-curso. História, memória e narração em Walter Benjamin. Universidade
Federal Fluminense (UFF), Niterói-RJ, abril de 2010.
57
de transformação faça com que ela perdure e seja transmitida de geração a geração: é
isso que encontramos nos dois poemas:
58
como expressão, e trouxe do surrealismo as imagens fantásticas do sonho – assim
lemos, por exemplo, na seguinte estrofe:
Unicornio de ausencia
rompe en cristal su cuerno.
La gran ciudad lejana
está ardiendo,
y un hombre va llorando
tierras adentro.
Al Norte hay una estrella.
Al Sur un marinero.
59
O ―Romance con lagunas, Burla de don Pedro a caballo‖, é de fato contraditório e
de difícil compreensão, Lorca parece querer mostrar a desgraça do cavaleiro don Pedro
ao chegar na cidade dos Gitanos.
Quem seria este don Pedro? Sim, o poema é uma burla, uma mentira, então don
Pedro pode ser tanto a personificação do povo Gitano que ―(...) va llorando/ tierras
adentro‖, que heroicamente parte na busca ―del pan y del beso‖ em busca do amor
impossível e avista uma cidade longínqua na qual não consegue chegar pois seu cavalo
morre.
Mas também podemos lê-lo como uma recriação de um personagem marcante na
história da Espanha, Pedro de Alvarado y Contreras (1485-1541), conquistador
espanhol de grande parte da América Central, chamado pelos indígenas mexicanos de
Tonatiuh (el Sol) e cuja morte aconteceu justamente por causa de um cavalo numa ação
militar conhecida como Guerra del Mixtón, um levante dos indígenas contra o exército
espanhol em meados do século XVI. O poema é obscuro, como reconhece Eduardo
Marín Izquierdo, que o destaca como um dos poemas em que mais se expressa a
potência literária do Romancero Gitano (Izquierdo, s/d.).
Voltando à definição de Saraiva para a palavra ―romance‖, vemos que a escolha
dos poetas já estava fundamentada no que há de seminal no gênero Romance, pois que
se trata de um ―conjunto de falares‖ que surge numa importante transição da História e
se opõe à norma latina, literária. Surge da maneira românica, vulgar, do que circulava
entre o povo e era transmitido oralmente, em conexão com o conceito benjaminiano de
história.
Trata-se portanto de uma investida na convergência, segundo o pensamento de
Octávio Paz: ―um cruzamento de tempos, espaços e formas, um lugar de encontro entre
a poesia e o homem‖, ou um gesto em direção ao ethos (Agamben, 2007). Falamos
assim da síntese elaborada pelo poeta em seu movimento de escrita e vida, em um
diálogo que é mais que um acordo: ―es un acorde‖ (Paz, 1993, p. 76).
É portanto esse movimento de convergência que nos possibilita uma ―nova
concepção de realidade que integra a subjetividade, a emoção, a espiritualidade e o
sentimento do homem diante das ruínas, dos fragmentos‖ (Paz, idem, p. 50). Assim,
entendo os diálogos interculturais presentes na poética de Cecília como uma investida
na busca de novos sentidos, novos acordes para a linguagem, baseada em uma
60
experiência que conjuga o exercício da ―memória individual e cósmica‖ (Idem) à
simultaneidade dos fatos e dos afetos; a maestria em capturar, recolher, e transmitir as
palavras que vêm e vão com o vento.
Além de terem escrito os ―Romanceiros‖, Cecília e Lorca compartilharam outras
afinidades, como o gosto pela dramaturgia e o gesto de escrever cartas aos amigos. Há
uma publicação com o epistolário completo do escritor espanhol (Lorca, 1997) e ainda,
Cartas a sus amigos (1955), onde encontramos as cartas que Lorca escreveu, entre 1910
e 1936, aos amigos Sebastián Gasch, Guillermo de Torre, Ana María Dalí, Angel
Ferrant e Juan Guerrero.
A admiração de Cecília pela obra de Garcia Lorca pode ser vista nos diversos
momentos em que ela se refere a ele em suas cartas. À Isabel do Prado, em 9 de junho
de 1947, ela revela: ―Vou dar agora três conferências sobre o assunto: a primeira, sobre
o valor do teatro de bonecos na difusão cultural; a 2ª sobre Garcia Lorca; a 3ª sobre
tradições do teatro brasileiro (tão poucas!) com o Judeu e Martins Pena‖ (Carta 13). Em
7 de outubro de 1944 ela escreve à Gabriela contando sobre o trabalho de tradução de
uma das peças de Lorca: ―Agora, preparo-me para traduzir Bodas de sangre para uma
representação este ano (talvez em abril) no Municipal, com a Dulcina‖ (Carta 11). O
texto foi então encenado pela primeira vez nos palcos brasileiros, em setembro de 1944,
por Dulcina de Moraes, uma das maiores atrizes do teatro brasileiro (Fonta s/d). Nesse
mesmo ano, a poeta traduziu também uma outra peça de Lorca, Yerma.23
23
Mais sobre a atuação de Cecília como dramaturga e tradutora de obras teatrais, ver em O teatro poético
de Cecília Meireles. Tese de doutorado de IdaVicenza Dias de Souza. PUC-RJ, Departamento de Letras,
2006.
61
humano é sagrado, compreende? E esse pudor de invadir, esse medo do
perto. Eu sou uma criatura de longe. Não sei se me querem mas eu quero
bem a tanta gente! Sou amiga até dos mortos. Amiga de muita gente que
nem conheci. Você não imagina quanta gente eu levo ao meu lado. E fico
emocionada quando penso como uma criatura só recebe tanto de tantos
lados, de tantas pessoas, de tantas gerações! (Cecília Meireles em entrevista
a Pedro Bloch. Revista Manchete, nº 630. 16/05/1964. Pedro Bloch
Entrevista. Rio de Janeiro: Bloch Editora, 1989.)
Estes elementos também são fortes ícones na obra do escritor tcheco Franz
Kafka. Produtor contumaz de cartas escreveu-as incessantemente, até mesmo no leito de
morte, e sua correspondência foi objeto de estudo dos filósofos Deleuze e Guattari, de
Elias Canetti e também de Maurice Blanchot.
Em um dos capítulos de L’amitié (1971), Blanchot escreveu sobre a
correspondência entre Kafka e Max Brod, que se estendeu ao longo de 20 anos. O
elemento decisivo, que faz desta amizade um ―entendimento forte e viril‖ (Blanchot,
1971, p. 289) é a profunda diferença entre Brod e Kafka. É justamente a partir da
constatação da importância dessa diferença que Blanchot irá desenvolver sua concepção
de amizade:
24
―L'amitié, ce rapport sans dépendance, sans épisode et où entre cependant toute la simplicité de la vie,
passe par la reconnaissance de l'étrangeté commune qui ne nous permet pas de parler de nos amis, mais
seulement de leur parler, non d'en faire un thème de conversations (ou d'articles), mais le mouvement de
l'entente où, nous parlant, ils réservent, même dans la plus grande familiarité, la distance infinie, cette
séparation fondamentale à partir de laquelle ce qui sépare devient rapport.‖(Blanchot, 1971, p. 330).
62
Desse modo, Blanchot toma por princípio três elementos que podem parecer
raros à ideia corrente que temos de amizade: diferença, distância e ausência estariam no
cerne das amizades profundas. A necessária diferença, o estranhamento, que faz com
que falemos aos amigos e não dos amigos; a distância infinita, que não é um
contraponto à familiaridade, mas sim o que permite o movimento de um falar, o outro
guardar, acolher ―nossa insignificância‖. A relação é assim construída a partir da
ausência, da separação que se torna relação. Por isso, as cartas funcionariam como
expressão da ―encenação‖ do autor, ocupando o papel do interlocutor, a linguagem
verbal tornando presente o ausente.
Seria interessante pensarmos nesses três elementos – diferença, distância e
ausência – como constituintes fundamentais do exercício da escrita. A partir da reflexão
propiciada pela Teoria da Literatura, podemos pensar a diferença a partir do conceito de
mímesis. Sucintamente podemos dizer que a experiência da mímesis é histórica e
culturalmente variável (depende do horizonte de expectativa dos receptores), é a
correspondência entre obra de arte e mundo, a mímesis literária ―supõe a sensação de
semelhança, a que se acrescenta a sensação de diferença‖ e se cumpre ―dentro de um
circuito específico, o da experiência estética‖ (Costa Lima, 1989, 68-9). Se a mímesis
está na correspondência entre obra e mundo, e a constitui a interação entre semelhança e
diferença, lembremos que estas diferenças, por mais radicais, sempre mantêm ―um resto
de semelhança, uma correspondência, não necessariamente com a natureza, mas sim
com o que tem significado em uma sociedade, com a maneira como a sociedade
concebe a própria natureza‖ (Costa Lima, 2000, 64).
Voltando para a poesia de Cecília Meireles, a diferença poderia ser pensada pela
construção estética de sua obra, sobretudo em seus diálogos com a tradição, e por
consequência, pelo lugar excêntrico no qual sempre se posicionou em relação a seus
pares. Distância essa expressa pela busca de uma estética dissonante à alegria solar de
seus contemporâneos modernistas.
No catálogo de reinauguração da Sala Cecília Meireles, em 1985, uma das
doações feitas por Isabel do Prado ao Real Gabinete Português de Leitura, encontramos
um poema de Murilo Mendes dedicado à Cecília Meireles que nos remete à poética
63
Baudelariana em um de seus mais célebres poemas ―À une passante‖, de Les fleurs du
mal. Este poema aponta justamente para a questão da distância na poesia de Cecília:
25
Catálogo de reinauguração da Sala Cecília Meireles em 1985. Uma homenagem – publicação
comemorativa da reabertura da Sala CM, oferecida pela editora Nova Fronteira à ―professora Isabel do
Prado‖ em 25/8/85. Doado por Isabel do Prado ao Real Gabinete Português, consulta em fevereiro de
2012.
64
reconhecimento da modernidade singular de Cecília. Nele, a poeta é musa, a ―bela
passante invisível‖.
Não seria um recado para os que não reconheceram a modernidade dos versos
dela? Podemos lê-lo ainda como uma afirmação do lugar excêntrico da poesia ceciliana:
a poeta não está na multidão, está distante, desde sua colina azul contempla a cidade que
descansa. O retrato poético que Murilo Mendes faz da poeta apresenta essa visualidade
contemplativa que marca a poética de Cecília, ―No alto do morro a invisível passante,
diz a si mesma que sua música é vaga‖.
Cecília também explora em sua poética a perspectiva das ruínas, como nos
seguintes poemas de Viagem, ―Medida da significação‖ (―É inútil o meu esforço de
conservar-me/ todos os dias sou meu completo desmoronamento/ e assisto à decadência de
tudo / nestes espelhos sem reprodução‖) e ―Onda‖ (―Tenho no meu lábio as ruínas/ de
arquiteturas de espuma/ com paredes cristalinas‖). A questão da distância pode então
estar relacionada com esse olhar da poeta sobre as ruínas. No poema ―Medida da
significação‖, ela contempla seu ―desmoronamento‖, efeito do tempo, como um
espetáculo a que assiste, passiva, desde o espelho. No caso, de ―Onda‖, a ruína que está
em seu lábio poderia ser associada como a própria palavra, à linguagem mesmo como
ruína, é como se ela buscasse apreender o transitório com a palavra.
Assim lemos também em ―Lei do passante‖, de Poemas escritos na Índia, cujo
título é alusão direta a ―À une passante‖. Neste poema estão presentes, além de uma
concepção não-linear do tempo, a referência ao âmbito da ficção (―inverdadeiro‖), ao
efêmero e ao transitório, como mostra a última estrofe:
A escolha por falar desde a perspectiva das ruínas mostra ao leitor de Cecília a
possível afinidade já citada entre a poeta e a filosofia de Walter Benjamin.
Pensando na questão da ausência, poderíamos relacioná-la ao conceito de
―encenação‖ desenvolvido por Wolfgang Iser, como vimos, sinônimo da ―plasticidade
do ser humano, da presença de uma ausência‖ (1996, p. 356). Ausência e distância estão
65
inter-relacionadas, e essa perspectiva nos abre um horizonte de reflexão também sobre
as relações entre a escrita e a morte, que sobressai na poética ceciliana como o que
chamo de ―estética da morte‖. Como analisaremos mais adiante, o tratamento dado pela
poeta ao tema da morte traz uma ideia de ―fome de vida‖, em sintonia com a concepção
que se tem da morte no México, conforme observou Octávio Paz (1992, p. 7).
Há um entrelaçamento entre morte, ausência, ficção e autobiografia, sobre o qual
tentaremos refletir no decorrer desta tese, particularmente nas cartas e nos poemas de
Cecília Meireles. Assim como o tema da morte, o tema da ausência é recorrente na
poética de Cecília. Em Retrato natural há um poema cujo título é ―Ausência‖:
De esplendores ferida,
fecho os olhos. Que ausente
quero ser. Tão distante
que eu mesma não me veja
– à morte indiferente,
para qualquer instante. Retrato Natural, p. 650
66
Por muito tempo achei que a ausência é falta.
E lastimava, ignorante, a falta.
Hoje não a lastimo.
Não há falta na ausência.
A ausência é um estar em mim.
E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços,
que rio e danço e invento exclamações alegres,
porque a ausência assimilada,
ninguém a rouba de mim (Alguma poesia).
67
oxigênio‖ pela generosidade com que nos acolhem e por darem conta da necessidade
que temos de manter nossa ilusão, de seguirmos vivos através de nossas palavras, de
nossos escritos.
Isto nos leva a refletir sobre o gesto de Darcy Damasceno e Isabel do Prado ao
guardarem documentos e cartas que Cecília recebeu de outros amigos e lhes confiou a
posse. E na preocupação que tiveram de doar seus ―tesouros‖ a arquivos públicos –
Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro (Damasceno), Fundação Casa de Rui Barbosa e
Real Gabinete Português (Isabel) –, na tentativa de preservá-los como patrimônio
cultural, deixando-os livres das possíveis disputas mesquinhas de herdeiros. Podemos
observar ainda o movimento duplo deste gesto: ao preservar a memória da amiga,
preservavam também a sua própria.
68
a saudade que nós temos dos amigos, será deles, ou de nós? Quando se
deseja com insistência escrever a uma pessoa será a sua falta que sentimos,
ou a nossa própria? Esta carta, que venho querendo mandar-lhe há vários
dias, significa a necessidade de alcançá-lo, ou a de lançar-me apenas?
Enfim, o destino da seta é o alvo, ou o caminho, ou a seta ou a mão que
atira??? (Carta de Cecília a Armando Côrtes Rodrigues. Rio, 14 de agosto
de 1946. Carta XX. Sachet, 1998, p. 39)
Somos assim lançados ao jogo de espelhos das cartas: o ato de escrevê-las parte
da necessidade de se lançar ao outro, ou de alcançá-lo? Essa dúvida intrínseca contida
na série de perguntas que Cecília escreve ao amigo – ou a si mesma? – nos sugere um
outro ponto de encontro entre cartas e poemas. Essas questões de Cecília nos mostram
que em suas cartas ela utilizava recursos próprios do poético, e especialmente de sua
poesia, altamente reflexiva, a finalidade não seria nem o alvo, nem o caminho, seria o
próprio exercício da linguagem, na busca por afeto e imortalidade. E a amizade traz essa
dimensão, da troca necessária, do acolhimento de nossa insignificância.
Um outro amigo de Cecília, o paulista Ruy Affonso Machado (1920-2003), ator
e diretor da primeira geração do Teatro Brasileiro de Comédia (TBC) escreveu-lhe para
agradecer os versos de Viagem. Ele termina a carta louvando a amizade de Cecília.
26
Arquivo Darcy Damasceno. Seção manuscritos da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, loc 26,3,111.
69
3. Cartas, amizade, poesia
Eu, sim. - Mas a estrela da tarde, que subia e descia o céu, cansada e
esquecida?
Mas os pobres, batendo às portas, sem resultado, pregando a noite e o dia
com seu punho seco?
Mas as crianças, que gritavam de coração alarmado: ―Por que ninguém nos
responde?‖
Mas os caminhos, mas os caminhos vazios, com suas mãos estendidas à toa?
Mas o Santo imóvel, deixando as coisas continuarem sem rumo?
E as músicas dentro das caixas, suspirando de asas fechadas?
Ah! - Eu, sim - porque já chorei tudo, e despi meu corpo usado e triste,
e as minhas lágrimas o lavaram, e o silêncio da noite o enxugou.
Mas os mortos, que dentro do chão sonhavam com pombos leves e flores
claras,
mas os que no meio do mar pensavam na mensagem que a praia
desenrolaria
{rapidamente até seus dedos...
Mas os que adormeceram, de tão excessiva vigília - e eu não sei mais se
acordarão...
e os que morreram de tanta espera... - e que não sei se foram salvos...
Eu, sim. Mas tudo isso, todos esses olhos postados em ti, no alto da vida,
não sei se te olharão como eu,
renascida de mim, e desprovida de vinganças,
no dia em que precisares de perdão. (―Carta‖, Mar absoluto)
70
O que vemos é que, nesse caso, a correspondência é destinada ao leitor do
poema. Trata-se de uma carta-poema que apresenta um discurso centrado no Eu,
elaborado como uma escrita de si e cuja correspondência poderia ser pensada a partir da
relação que a poeta propõe entre a intimidade (entre o eu lírico e o leitor) e a dimensão
humana revelada pela sequência de imagens que surgem no decorrer do poema, como a
―estrela da tarde‖, ―as crianças que gritavam de coração alarmado‖, ―os caminhos
vazios‖ e ―os pobres batendo às portas, sem resultado‖.
Por mais que um dos correspondentes tenha o zelo de um arquivista, como Drummond,
ou a paixão pelas cartas, como Mário de Andrade, certezas passam ao largo do universo
das correspondências. Cartas se perdem, outras são escritas sem que nunca venham a
público, o que confirma o abismo entre esse discurso e as verdades absolutas e, também,
sua vocação para a imprecisão e o fragmento.
O exercício da correspondência era uma constante entre os modernistas e Mário
de Andrade era figura central: ―tratar de correspondência literária no Modernismo
brasileiro implica inevitavelmente tratar da correspondência de Mário de Andrade, que
se pode tomar como significativa, se não de todas, pelo menos de muitas das questões
envolvidas no assunto‖ (Castañon, 2004, p. 24). Em estudos sobre a correspondência no
Modernismo brasileiro27 Flora Süssekind e Julio Castañon pensam a carta como espaço
crítico (Süssekind, 1996, p. 31). Para entendermos mais claramente essa proposição,
observemos com minúcia uma passagem do estudo de Julio Castañon. Ele se refere à
correspondência entre Murilo Mendes e Drummond, que se intensificou em 1934,
período em que os dois moravam no Rio de Janeiro, ao contrário do que houve na época
em que Murilo partiu para Roma. Vejamos o trecho:
27
Publicados na coleção Papéis avulsos, da Fundação Casa de Rui Barbosa, Rio de Janeiro.
71
comunicação, mas um meio especial de realizar um determinado nível de
comunicação, no lugar de outro, talvez mais efetivo (Castañon, 2004, p. 39).
72
epistolaire (1990): ―Há com efeito no gesto epistolar um equívoco fundamental, do qual
a exploração conduz às fronteiras da escritura poética‖ (Kaufmann, 1990, p. 8) 28.
Nunca saberemos ao certo quantas e quais foram as cartas trocadas por Cecília e
Mário. As que nos chegaram foram publicadas pela Nova Fronteira, em uma edição
infelizmente mal cuidada, com muitos erros de edição. Contudo, essas imperfeições não
comprometem o estudo que faremos deste material.
Cecília e Mário, publicado em 1996, traz, além das cartas, um estudo e uma
antologia preparados por Cecília Meireles. No prefácio à antologia, temos o ―História de
um encontro‖, por Alfredo Bosi. Nele, o autor aconselha a lermos o livro ―com os
vagares da mais delicada atenção, pois aqui se conta a história de um encontro raro. É
Cecília Meireles lendo Mário de Andrade. E é Mário lendo Cecília‖ (Meireles, 1996,
II).
O estudo e a antologia que Cecília fez da obra de Mário foram encomendados
em 1960 pela Prefeitura do então Distrito Federal (Rio de Janeiro), para homenageá-lo
pelos 15 anos de sua morte. No entanto, o prazo de um mês foi curto para a tarefa de
escrever sobre a obra do amigo, Cecília se envolveu com tal paixão, que acabou não
entregando o material a tempo. Parte da antologia foi lida por ela em um programa da
Rádio MEC, que fora ao ar na mesma ocasião da homenagem.
Outro material que mostra a amizade entre os dois poetas, e a leitura recíproca
que mantinham, é uma edição de Viagem em que Mário faz diversas considerações
sobre os poemas, numa espécie de leitura comentada.29 A análise completa desse
material foi publicada em O empalhador de passarinhos, de Mário de Andrade.
É nítida a forma distinta com a qual cada um tece suas observações sobre a
poesia do outro. Mário se atém a comentários pontuais sobre cada um dos poemas,
28
« Il y a en effet dans le geste épistolaire une fondamentale équivoque, dont l‘exploitation conduit aux
frontières de l‘écriture poétique ».
29
Mário costumava pedir duas edições dos livros que lhe eram ofertados por seus contemporâneos. O
primeiro, com dedicatória, ele mantinha fechado e guardado em sua biblioteca. E no segundo, ele escrevia
nas margens seus comentários e críticas. As edições de Viagem estão na biblioteca do escritor no Instituto
de Estudos Brasileiros - USP (Meireles, 1996, p. 310).
73
como costumava fazer em suas correspondências (cf.: Castañon, 2004, 29), as
referências refletem a erudição do escritor. Já o estudo de Cecília obedece a um padrão
esquemático.
Entretanto, esse estudo aparentemente esquemático e a distinção tão óbvia entre
o moderno Mário e a conservadora Cecília são colocados em xeque por comentários
pontuais que Cecília também tece, em articulação direta com os poemas de Mário.
Como por exemplo, no item XVII sobre Losango Cáqui:
74
serem publicados numa revista que por lá vai aparecer com o nome Poesia
(Meireles, 1996, 289).
75
atenção ao pedido da poeta, ―Rito do irmão pequeno‖, de Livro azul, parte do volume
Poesias, publicado por Mário em 1941, edição Martins. Escreve Cecília:
Em Lisboa vão gostar muito, tenho certeza. E eu fico bem contente, porque
prometi mundos e fundos do Brasil, disse que tudo aqui era uma maravilha,
e quando comecei a tentar provar, com os nossos poetas, as invenções que
por lá andei espalhando, não consegui quasi nada, porque todos estão
perdidos na burocracia, bocejando de fadiga, sem força para mandarem
levar ao correio aquilo por que, no entanto, se salva ainda a sua própria vida
– o seu pensamento e a sua emoção (Meireles, 1996, 290).
76
Rosa Cecília Meireles Rosa
É preciso ser cruel. É preciso trair, tomar uma decisão, me empobrecer deste
vai-vem sonoro em que vivo desde ontem de manhã. Prefiro o soneto. A
decisão é tomada por ―outro motivo‖ – este meu mal secreto por essa forma
sublime e tão tênue que tantos males secretos andaram desencaminhando
por aí (idem, p. 308).
Mais adiante, Mário fala sobre o ensaio que estava produzindo, ―Natureza do
soneto‖ e de sua gratidão pela oferta da amiga da qual pedia ―perdão por merecer os
versos‖ que ela lhe dedicara. Leiamos o poema:
2º Motivo da Rosa
A Mário de Andrade
77
Constituído por duas estrofes de quatro versos e duas de três, obedecendo aos 14
versos da forma clássica do soneto, o poema tem no entanto uma distribuição
sofisticada das rimas. A leitura confirma também a analogia entre ―rosa‖ e ―poema‖ e,
para Cecília, este se assemelhava ―à concha soante, à musical orelha‖. Poderíamos ler
ainda este verso, carregado de erotismo, como uma possível relação, além da amizade,
entre Cecília e Mário.
Chama a atenção o elogio que Mário, um vanguardista, faz em relação às
métricas e ao formalismo de Cecília. Ele diz sobre o poema ―Epigrama nº 2‖, de
Viagem:
Um prurido, um sopro, um aflar leve e profundo de sensibilidade, que se
define apenas. Este o maior encanto das líricas metrificadas de Cecília
agora. Especialmente das metrificadas. Porque metrifica. Pra ficar mais livre
do pensamento, mais livre da necessidade de organizar o moto lírico num
juízo (idem, p. 315).
78
Alfonso Reyes, cartas aos amigos
30
Carta de 16 de janeiro de 1905. In.: Guerra, 2009.
79
sobresalientes en la política del México posrevolucionario, comprueba los
dilemas que vivió, las dificultades que tuvo que enfrentar para mantenerse
en la carrera y su constante negativa de aceptar – con el único fin de
regresar a México y a su vida intelectual y literaria – puestos políticos aún
más oscilantes que la carrera diplomática (Crespo, 2008).
E é justamente por esse conflito entre o artista e o político que Reyes é um bom
exemplo para refletirmos sobre a relação intrínseca entre arte e política e no panorama
da intelectualidade latino-americana entre os anos 20 e 40, em que a escrita dos poetas
encontra-se no movimento entre cartas, amizade e produção poética.
O que para Reyes era um conflito, ter que conciliar seus compromissos
diplomáticos com seus anseios estéticos, é aqui para nós uma oportunidade de pensar
que essas atividades não estavam em campos distintos, mas, sim, eram complementares.
Reyes defendia a arte como uma maneira de ―revolucionar nuestra sensibilidad
interior‖. Desde essa perspectiva, o compromisso do artista tem a ver com um
80
engajamento à vida, a tudo que diz respeito ao humano. E palavras gastas como
Liberdade e Revolução ganham então outros horizontes: ―Para persistir hay que
renovarse incesantemente (...) y el arte, en las sociedades, es la periódica operación de
cataratas que devuelve a los pueblos la visión fresca de la vida, el nombre de esta
evolución continuada es Libertad‖ (Reyes, Norte y sur, 1996, p. 27).
No caso de Cecília, cuja figura pública sempre foi também muito atuante, o que
se mostra por suas atividades como educadora, jornalista e em suas preocupações com a
cultura, esse conflito também existia. Em vários momentos lemos suas queixas sobre a
necessidade de sobrevivência que a obrigava a exercer inúmeras funções deixando-lhe
pouco tempo para a escrita de sua obra de ficção.
A vida está ficando muito cara, e o tempo é cada vez menor. Agora, um
escritor austríaco, educado em Londres, que está escrevendo a biografia do
Getúlio, me encomendou uma seleção de folclore brasileiro, com uma
introdução minha e outra dele, para publicarmos em não sei quantos
idiomas. Não é precisamente o meu gênero, mas vou fazer, porque é preciso
fazer coisas, segundo dizem (carta para Isabel do Prado. RJ, 4 de julho de
1947, carta 1).
81
suas atuações públicas, mostrando que a relação entre arte e política não é dicotômica e,
sim, complementar.
Tendo por base o pensamento do filósofo francês Jacques Rancière, cuja
contribuição é hoje uma das mais relevantes no que concerne à reflexão sobre a relação
entre arte e política, defendo que a arte esteve e sempre estará ligada à política. Não no
sentido de uma arte engajada, com finalidade, compromissos sociais, ou partidários, a
arte é política pois apresenta outras formas de sensibilidade, na medida em que
transforma e reorganiza padrões vigentes, possibilitando assim o surgimento de novas
ideias e comportamentos.
No ensaio, ―Política da arte‖, Rancière explica que a arte é política ―enquanto
recorta um determinado espaço ou um determinado tempo, enquanto os objetos com os
quais ela povoa este espaço ou o ritmo que ela confere a esse tempo determinam uma
forma de experiência específica‖. Tomando a política também por um espaço de
―ocupações comuns‖, a arte é então política enquanto os espaços e os tempos que ela
determina interferem nos espaços e tempos dos sujeitos e objetos, ―do privado e do
público, das competências e das incompetências, que define uma comunidade política‖
(Netto, s/d).
Em uma crônica intitulada ―Suas cartas‖, o poeta Carlos Drummond de Andrade
fala sobre o escritor ícone das correspondências no Modernismo brasileiro, Mário de
Andrade, com quem se correspondeu entre 1924 e 1944 (correspondência publicada
pela editora Bem-te-vi, RJ, 2002). Confirmando o princípio de Blanchot, da ―distância
fundamental a partir da qual a separação se torna relação‖, as cartas foram o produto
dessa amizade entre Mário e Drummond, que como o próprio Drummond revela
―jamais conviveram‖ (Andrade, 2002, p. 35). Escrevendo sobre essa relação epistolar,
em ―Suas cartas‖, Carlos Drummond conta que Mário certa vez confessou-lhe que
escrevia cartas por precisão de se sentir junto com os amigos. Para Drummond, essa
necessidade era reflexo de outra maior, a ―de se sentir junto com os homens em geral‖
(Andrade, 1967, p. 549).
E com esta necessidade de sentir-se junto aos amigos, e aos homens de modo
geral, os poetas latino-americanos, que fazem parte do elenco desta pesquisa, teceram
seus movimentos de escrita, construindo suas ―ocupações comuns‖. Viveram em um
período, entre os anos 20 e 40 do século XX, onde era urgente a questão da construção
82
da identidade nacional nos países da América Latina, em que o papel do intelectual
nesse cenário era preponderante e a Educação se apresentava como elemento
fundamental de transformação social. Como veremos, a estrutura mexicana que
combinava educação e cultura era o modelo desse ideal.
4. Cecília e Reyes
83
Carta de 19 de agosto de 1931, de Reyes à Cecília.
No Arquivo Darcy Damasceno, seção manuscritos da
Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.
84
Encontramos um tom amável e cúmplice nas palavras de Reyes, que deixa
entrever um diálogo ainda pouco conhecido do público:
85
Alfonso Reyes foi um dos intelectuais latino-americanos mais célebres do século
vinte, construiu, entre 1911 e 1959, uma obra que reúne prosa, poesia e textos para
jornais e revistas, e sempre manteve, em paralelo, uma intensa atividade política.
Prestou serviços diplomáticos na Espanha e foi embaixador na Argentina e no Brasil,
onde viveu no Rio de Janeiro entre os anos de 1930 e 1938. O tempo que passou no
Brasil coincidiu com uma etapa efervescente de nossa história cultural e política.
Poucos meses após a sua chegada ocorreu a chamada ―Revolução de 30‖, que marcou o
início do longo período do governo de Getúlio Vargas. Reyes assistiu às intensas
transformações no cenário artístico e intelectual do país que ocorreram nesses anos.
Manteve relações com intelectuais, jornalistas, professores e estudantes de diferentes
correntes ideológicas, e estimulou a discussão de políticas de aproximação entre o
Brasil e os países hispano-americanos (cf.: Crespo, 2003).
No Rio, Reyes foi amigo dos poetas Ribeiro Couto e Manuel Bandeira, com
quem manteve os laços mesmo depois de voltar ao México. Boa parte da
correspondência entre os dois está na Capilla Alfonsina, biblioteca museu do escritor,
86
localizada na Cidade do México, onde também estão preservadas as cartas que Reyes
recebeu de Cecília Meireles. São ao todo 16 cartas e trata-se de um material ainda pouco
estudado por pesquisadores brasileiros. James Willis Robb escreveu em 1983 para a
revista Hispania um pequeno artigo sobre o tema da amizade entre Reyes e Cecília que
ele considerou como ―uma interessante relação de intercâmbio cultural em torno de
assuntos pertinentes ao México e ao Brasil‖ (Robb, 1983).
Outro estudo sobre a correspondência entre Meireles e Reyes que merece
referência, inclusive porque é um dos poucos livros editados no Brasil sobre Alfonso
Reyes, e em especial sobre a relação do escritor mexicano com nosso país, é Alfonso
Reyes e o Brasil- Um mexicano entre os cariocas (2002), de Fred Ellison. As cartas de
Cecília para Reyes foram também analisadas por Regina Crespo. O aspecto principal
analisado por Fred Ellison é o de que a escritora brasileira tinha em Reyes um mentor,
um orientador, o que é reafirmado por Regina Crespo:
Fred Ellison levanta a hipótese de um possível caso amoroso, que ele percebe
pela tensão das últimas cartas de Cecília endereçadas a Reyes, quando nos anos 40 a
poeta esteve de passagem pelo México, rumo aos Estados Unidos. É de fato
contrastante, e chama atenção, o tom seco dessas duas últimas missivas (em particular a
em que ela anuncia seu casamento com Heitor Grilo) se comparadas à amabilidade das
cartas anteriores.
87
Carta de Cecília a Reyes. 26 de julho de
1940. Carta 16. Capilla Alfonsina.
Levemos em conta todas essas hipóteses, mas nosso foco é a produção ficcional
que atravessa essa correspondência, já que parece ser no discurso ficcional onde
encontramos a potência do discurso de ambos, tanto no que se refere à defesa do
humanismo, pela perspectiva de uma educação estética do homem, quanto pelo desejo
que compartilhavam de fomentar os diálogos interculturais na América Latina.
88
5. Brasil e México, poemas e correspondências
32
México, 15 de novembro de 1934 (manuscrita em folha oficial ―El embajador del México‖) Fundação
Casa de Rui Barbosa, consulta em dez. 2011.
89
origem europeia em solo americano, Paulo Moreira analisa os ensaios como ―exercícios
intelectuais de reinvenção através do autoexame, com vistas a forjar novas identidades
para os principais países latino-americanos, agora como nações modernas em vias de
industrialização‖ (Moreira, 2010, p.73-87) e cita um poema que Reyes escreveu no
intervalo entre a redação desses ensaios, em 1932: ―El ruido y el eco‖. Aqui, os dois
países são apresentados em contraste, e surge então um terceiro fruto: o coco.
Constituído por onze quadras, em redondilha maior, ou seja, em versos de sete
sílabas, os mais simples do ponto de vista da métrica e os que predominam nas
quadrinhas e canções populares, ―El ruido y el eco‖ nos apresenta, desde o título, o jogo
binário que irá marcar todo o poema. Num primeiro momento, o leitor pode sentir-se
incomodado com essa dicotomia, que soa, em princípio, como uma oposição entre bem
e mal: de um lado o barulho, o tumulto, e de outro a reflexão, o acolhimento. Assim, o
Brasil é mostrado como ―o ruído‖ e o México como ―o eco‖.
Percebi que há um silêncio quase meditativo em muitos dos mexicanos, e, se
temos em comum o gosto pelas festas, são, de modo geral, bem marcantes as distinções
entre a personalidade do mexicano e a do brasileiro.
O clima é um dos elementos a partir dos quais podemos refletir sobre estas
diferenças, pois está diretamente ligado ao modo de vida dos habitantes de um lugar,
refletindo-se na arquitetura e nas relações interpessoais e subjetivas. Árido e seco, em
muitas regiões, como na Cidade do México (situada a 2.400 m de altitude), percebemos
seu efeito na arquitetura de herança moura, presente tanto na Cidade do México, como
em ―pueblos‖ vizinhos, como Tlaxcala, Puebla e Cacaxtla, com seus jardins internos e
suas fontes, em uma vida que se desdobra para dentro.
Já no Rio de Janeiro, a vida pulsa nas ruas, motivada pelo clima tropical, solar e
praiano. Sobre isto, Reyes anota em seu Diário a observação que fizera Graça Aranha
em seu discurso durante uma homenagem que realizaram para ele em 1931, na qual o
poeta mexicano esteve presente: ―Concurrí ayer al homenaje a Graça Aranha, donde
presencié una de las primeras manifestaciones del nacionalismo literario en Brasil, y
Aranha citó el ejemplo del arte ruso y el arte mexicano que proceden de dentro hacía
fuera‖. Río [jueves] 15 mayo 1930 (Reyes, 2011, p. 9).
Quando chegou ao Brasil, Reyes vinha de uma temporada como embaixador do
México em Buenos Aires e sofreu com a adaptação ao novo ambiente. Reclamava da
90
falta de diálogos intelectuais, das condições de moradia e da saudade que sentia do
convívio na sociedade portenha e de seu México natal, como conta em seu Diário:
Talvez por isso, por essa indisposição inicial de Reyes em relação ao Brasil 33,
possamos ler a dicotomia de ―El ruído y el eco‖, como uma oposição entre o bom e o
ruim. Isso se nossa convenção de bom for o silêncio, ou recolhimento, e o ruim, o
barulho e o tumulto. Contudo, os horizontes do poeta são outros, e o que no primeiro
momento parece uma dicotomia redutora, vai ganhando outra perspectiva à medida que
avançam as estrofes. Reyes escreve o poema desde o Brasil, o ―acá‖ e o ―aquí‖ referem-
se à cidade do Rio de Janeiro:
33
Cf. a análise de Regina Crespo sobre a chegada de Reyes ao Brasil em ―Cultura e Política: José
Vasconcelos e Alfonso Reyes no Brasil (1922-1938)‖. Revista Brasileira de História, vol. 23, nº45. A
autora examina as comparações que ele estabeleceu entre México e Brasil, e chama a atenção para a
importância do exercício intelectual que, apesar da dificuldade inicial de adaptação em solo brasileiro,
Reyes desenvolveu ao analisar a cultura ibérica em suas duas manifestações linguísticas – o português e o
espanhol. Apontando assim para uma preocupação de Reyes que remete à de Cecília Meireles, conforme
comentamos no início deste capítulo, em relação às suas traduções dos textos de Gabriela Mistral.
91
―Allá‖ é o México natal. No decorrer do poema, a dicotomia vai se fundindo. E
sim, tem razão Paulo Moreira ao dizer que em ―El ruído y el eco‖ os dois países são
apresentados em contraste, e de onde surge um terceiro fruto: o coco. É justamente a
partir da introdução dessa alegoria que os contrastes se fundem, como ―dos madejas
enlazadas/ se tuercen en mi telar‖.
―El ruído y el eco‖ é um dos onze poemas da coletânea Romances del Río de
Enero (1932). Fred Ellison observou que essa obra é a expressão poética que Reyes não
dedicou a ―nenhuma outra cidade – nem Paris, nem Madrid, nem Buenos Aires, nem
México, nem mesmo sua cidade natal Monterrey – jamais provocou uma expressão
poética comparável‖ (Ellison, 2002, p. 189).
Como vimos, o Brasil para Reyes era o Rio de Janeiro, além dos Romances,
poemas como ―Copacabana‖, ―São Sebastião‖ e ―Guanabara‖ mostram a observação
92
sensível do poeta que viveu intensamente a cidade, à moda dos viajantes europeus do
XIX e dos poetas que por aqui chegaram e foram enfeitiçados com a exuberante beleza
da geografia da cidade. Contudo, o mérito de Reyes, e seu diferencial, foi sua
exploração de uma ―geografia emocional‖, conforme nos mostra o comentário do amigo
Manuel Bandeira na elogiosa resenha que fez a Romances del Río de Enero: ―Afinal
apareceu um poeta, um grande poeta, para cantar a cidade sem ficar nessa coisa
aborrecível como a literatura dos prospectos de turismo: o louvor do esplendor
cenográfico‖ (Bandeira, 1933).
34
Mais sobre a questão, ler: Bezerra, s/d. e Nunes, 1968.
93
Na carta de 6 de março de 1952, em que Reyes responde ao pedido de Ribeiro
Couto de lhe enviar uma cópia da carta sobre o homem cordial, lemos a decepção do
poeta mexicano em relação ao silêncio com o qual Romances del Rio de Enero foi
recebido pela crítica brasileira:
94
naqueles anos 1950, em que a poesia era fonte de debate público em revistas e jornais,
sobretudo no ―Suplemento Dominical do Jornal do Brasil‖ (cf.: Campos, 1996), que
teve papel fundamental na construção de um pensamento crítico sobre a poesia
brasileira. João Cabral de Melo Neto acabara de publicar O engenheiro (1945), e nove
anos mais tarde Ferreira Gullar lançaria A luta corporal (1954), obras fundamentais
para a criação do movimento da poesia Concreta (1956), dos irmãos Campos, Décio
Pignatari e Gullar, que logo em seguida se desligaria do grupo para lançar o movimento
Neoconcreto. Assim, a ―poesia eloquente‖ que ―inflama uma multidão de contentes‖
estaria muito mais ligada a uma maior difusão da poesia que parecia não agradar à elite
dos poetas-diplomatas-eruditos.
O panorama da poesia no Brasil na década de 50 estava de fato longe do
formalismo apresentado por Reyes, que até certo ponto parecia estar mais conectado ao
movimento da geração de 45 em sua proposta de um retorno às formas tradicionais do
verso em contraposição ao experimentalismo dos modernistas de 22. Esse formalismo,
na poesia de Alfonso Reyes, podemos verificar pela composição formal dos poemas, ao
que confirmam as ―notas‖ que encerram o livro. Redigidas pelo próprio poeta, elas
explicam sua eleição formal. Destaco aqui quatro das onze notas que funcionam como
um guia de leitura dos poemas:
Once romances, de once cuartetas cada uno, procurando que todos acaben
en la décima estrofa, para que la undécima cuelgue, arete o broche.
Partir del flujo del romance, en estrofas, sin duda cediendo a la tendencia
estrófica del corrido mexicano, hijo del romance peninsular.
De cuando en cuando, darse el gusto de deslizar uno que otro lusitanismo.
Estas contaminaciones entre el portugués y el español – se lo decía al joven
Juan Valera no menor persona que el purista Estébanez Calderón – dan
sazón al caldo.
Cada cuarteta debiera repetir la idea general del poema, volver a dibujarla,
aunque con objetos siempre diferentes. (...) Las ciento veintiuna estrofas
pondrían sitio a la misma emoción vaga, que nunca se entrega de todo; ―No
pude decirte lo que quería.‖
95
Carta de Cecília Meireles para Alfonso Reyes. 9 de
maio de 1933. Acervo Capilla Alfonsina, México, D.F.
96
naturais. Com esse pedido, envio-lhe este recibo sem graça, com o meu
encantamento comovido diante do seu poema ao Brasil, onde estão todas as
estampas de Debret e baianas incomparáveis – diante das quais todas as
minhas se inclinam... Como se não bastasse tanta maravilha, ainda lhe
ocorreu aquela arte poética do fim, na qual, explicando o seu livro está
criando todo um gênero delicioso.
97
Oliveira, 2008) que encontram afinidade nos balangandãs e amuletos apresentados por
Reyes em, por exemplo, ―Berenguendén‖, mostrando o interesse de ambos pelo folclore
e pela cultura brasileira. Nos versos deste poema, Reyes nos mostra uma sorte de
amuletos, ―el jacarandá, palo de mucho vivir‖, ―La mano em figa‖, ―Las monedas de
Don Pedro‖, ―La granada reventada‖...
Nessa mesma missiva, Cecília diz que irá enviar a Reyes o convite da
conferência que fará na Pró-arte sobre Cruz e Souza, ―o poeta negro‖.
98
De: Cecília Meireles
Para: México
A admiração de Cecília por Reyes era imensa e parecia estar muito ligada ao
sentimento da poeta em relação ao que o México representava para suas expectativas de
transformações sociais, educativas e culturais no Brasil, como vimos no artigo que
publicou em 15 março de 1931, em sua Página de Educação, ―O exemplo do México‖.
Outro aspecto desde o qual poderíamos pensar nas afinidades entre o México e a
poesia de Cecília é a questão da morte. Em El Laberinto de la soledad, Octávio Paz nos
dá uma definição precisa de como é peculiar a concepção da morte na cultura mexicana:
―Nuestro culto a la muerte es culto a la vida, del mismo modo que el amor, que es
hambre de vida, es anhelo de muerte.‖ (Paz, 1992, p. 7). Como vimos anteriormente, o
tema da morte na poética ceciliana pode ser lido como índice de renovação, assim, de
culto à vida. Como nos mostram, por exemplo, os versos de Cântico XIII, de Cânticos
(1927):
99
Renova-te.
Renasce em ti mesmo.
Multiplica os teus olhos, para verem mais.
Multiplica-se os teus braços para semeares tudo.
Destrói os olhos que tiverem visto.
Cria outros, para as visões novas.
Destrói os braços que tiverem semeado,
Para se esquecerem de colher.
Sê sempre o mesmo.
Sempre outro. Mas sempre alto.
Sempre longe.
E dentro de tudo.
Ao final de cada estrofe ela insere entre parênteses nomes das comidas
mexicanas, começa por (Tacos), ao que vai acrescentando, (Tacos y tortillas), (Tacos,
tortillas y enchiladas). Lembremos que Cecília escreve em um restaurante nos Estados
100
Unidos, onde a comida é o que se chama ―Texmex‖, uma fusão entre o fast-food e a
resistência cultural da culinária mexicana.
A comida é um dos elementos mais fortes na cultura mexicana, comer é ritual,
momento de confraternização entre família e amigos. É comum vermos nas
publicidades dos restaurantes, sobretudo, nas ―fonditas‖, onde se serve comida caseira, a
frase ―coma como díos manda!‖. Nesse tipo de restaurante, que serve a ―comida
corrida‖, o cardápio inclui uma entrada com sopa, o prato principal, sucos e sobremesa,
além de pães e água, que na maioria dos restaurantes no México, são servidos como
cortesia.
Uma característica comum aos três poemas é a narrativa rimada, recorrente na
poética de Cecília. Em ―Pastorzinho Mexicano‖ temos a marcante presença da
personagem, o jovem pastor e seu rebanho ―as três crias de seu flanco‖. Em ―Corrida
mexicana‖, também encontramos outra personagem, o chofer de táxi, mas nesse caso
ganha o destaque a situação: a corrida de táxi num dia especial, por uma famosa
tourada. O táxi, assim como a comida, é outro elemento bastante característico no
cotidiano da Cidade do México.
De fato, os taxistas, na maioria das vezes, gostam de ―platicar‖ (conversar),
sobretudo quando se diz que é brasileiro. A conversa do chofer com a poeta tem por
eixo central a tourada que iria acontecer naquele dia, ―os touros bravos e a toureira que
tinha apenas 17 anos‖. As touradas, herança espanhola, também ainda seguem como
elemento típico da cultura mexicana. Assim, nos três poemas, somos apresentados a
elementos simbólicos da cultura mexicana, o que encantou Cecília, ―as maravilhas da
vida costumeira‖:
101
além dessa, outras maravilhas
de sua vida costumeira.
(―Corrida mexicana‖)
102
Com Gabriela, Cecília partilhava ainda a condição de escritora latino americana.
Uma das iniciativas da poeta brasileira na tentativa de estabelecer um diálogo nesse
sentido é a conferência apresentada em 1956 na Universidade do Brasil, ―Expressão
feminina da poesia na América‖, que mostra um panorama da produção poética de
autoria feminina na América hispânica35.
Apesar de nunca ter levantado nenhuma bandeira feminista, e por isso é difícil
aceitar que ainda hoje sua obra seja tão estudada por esta perspectiva de gênero, Cecília
tinha consciência de sua condição de mulher escritora num ambiente majoritariamente
masculino. Sabia das dificuldades de reconhecimento da contribuição feminina ―num
mundo tradicionalmente organizado e administrado por forças masculinas‖, conforme
mencionou no texto que escreveu em 1962 para ser apresentado às mulheres latino-
americanas no Congresso da International Federation of University Women, que se
realizou na Cidade do México em julho daquele ano36. Cecília foi além do lugar comum
dos discursos feministas, trouxe para a pauta temas pertinentes como a questão latino-
americana, e sua preocupação com o que ela considerava uma crise mundial, que para
ela se tratava de uma crise de educação, ―não se trata de um problema de instrução, mas
da adaptação social do homem ao mundo em que vive‖.
É vigoroso o modo como ela se refere ao feminino, destacando a pouca
importância que era dada a um território considerado especificamente feminino, o da
educação doméstica, ―a responsabilidade na formação dos filhos‖, ela exaltava a
potência feminina, por sua ―natureza feminina, maternal, em melhores condições de
influir com palavras e atos para a construção de um mundo harmonioso‖.
E reafirmou sua principal bandeira, a educação como possibilidade de
transformações realmente significativas, como vemos já nos primeiros parágrafos do
texto que foi entregue à amiga Isabel do Prado:
35
Sobre essa conferência há o estudo de Jacicarla Souza da Silva. Vozes femininas da poesia Latino-
americana. Cecília e as poetas uruguaias. SP: UNESP. Cultura Acadêmica, 2009. Desde uma perspectiva
do movimento feminista, a autora defende a importância desse texto de Cecília Meireles no que se refere
aos estudos feministas na América Latina e apresenta os diálogos entre CM e as poetas hispano-
americanas, em especial com as uruguaias.
36
Acervo Fundação Casa de Rui Barbosa. Arquivo Isabel do Prado.
103
estas palavras que representam acima de tudo a minha solidariedade de
brasileira com os demais povos da América Latina, numa hora em que só
pela determinação de afirmar suas qualidades próprias, mediante um lucido
trabalho de educação, poderia ela concorrer para a harmonia de todas as
nações (Meireles, 1962).
Isabel,
eu gostaria de dizer mais e melhor, mas...
Espero que algum trecho se aproveite. Corte por onde quiser!
Um abraço amigo da Cecilia
Apesar das recomendações detalhadas, o texto acabou não sendo lido, como
explica uma nota escrita por Isabel em janeiro de 1983. Mas graças ao gesto dela, de tê-
lo preservado, hoje temos acesso a ele.
104
II. Uma rede latino-americana:
Cecília Meireles, Gabriela Mistral e Alfonso Reyes
105
1. “Carta del Brasil”
O convite para escrever um artigo para a Realidad: revista de Ideas entusiasmou Cecília
Meireles, que não tardou em contar a novidade às amigas Gabriela Mistral e Isabel do
Prado. Ainda que não fosse uma contribuição que atendesse aos seus ―impulsos para a
ficção‖, era uma boa oportunidade para expor sua revolta diante do que ela percebia
como a decadência dos valores humanistas e os primeiros sinais da reificação do mundo
naquele pós-guerras. Como disse à Isabel, a ―Carta del Brasil‖, assim como um outro
artigo que escreveu na mesma época para a revista uruguaia Escritura, era um aspecto
de sua aflição ―diante desse mundo que os homens armaram‖ (RJ, 10 de maio de 1948,
carta 35 à Isabel).
O que a ―Carta del Brasil‖ traz de mais relevante para nós é o profundo
desapontamento de Cecília em relação às expectativas frustradas nos projetos
educacionais dos anos 1930, que uniu uma rede de intelectuais na América Latina
convocados pelos governos para que contribuíssem com os planos de desenvolvimento
e afirmação das identidades nacionais, mas que acabaram decepcionados com o rumo
que tiveram seus ideais e ações. Essa rede latino-americana de pensadores, que tinha na
Educação e na Cultura o fundamento das transformações políticas e sociais necessárias
ao desenvolvimento saudável de seus países, envolveu três poetas: Cecília Meireles,
Gabriela Mistral e Alfonso Reyes; e teve o México por modelo e inspiração para a
renovação que eles buscavam semear na América Latina.
Encontramos no artigo ―Diálogos culturais latino-americanos na primeira
metade do século XX‖, de Gabriella Pellegrino Soares, os três poetas citados como
atuantes no que ela chama de ―canais de circulação cultural abertos entre países latino-
americanos por meio de sociabilidades cultivadas por determinados escritores‖.
Segundo a historiadora, esses intelectuais ―expressavam a convicção de estar criando
não só uma literatura, mas uma consciência mesmo do continente.‖ A autora ressalta
ainda que o foco do seu artigo está justamente sobre figuras que não estiveram
diretamente ligadas ao movimento de vanguarda e que ―conciliaram, em sua trajetória, o
labor literário com a participação em políticas educacionais e bibliotecárias ou em
empreendimentos editoriais. Ou seja, figuras interessadas em circulações culturais que
ultrapassavam os debates e intercâmbios estéticos‖ (Soares, 2006).
106
Se por um lado o movimento cultural e intelectual desses escritores é objeto de
estudo entre os historiadores, por outro, afastados dos holofotes da crítica literária por
não se enquadrarem nos movimentos vanguardistas que dominavam a cena, suas obras
ficcionais ainda padecem da devida atenção no âmbito das Letras. Situação que
poderíamos explicar em parte pela soberania do cânone modernista, agravada, no caso
de Cecília e Gabriela, pela avalanche de estudos de gênero, que na maioria das vezes
são leituras que reduzem a amplitude de suas obras.
A ―Carta del Brasil‖ integra a primeira edição da revista portenha criada em
1947 pelo argentino Eduardo Mallea e pelos espanhóis exilados em Buenos Aires,
Francisco Ayala e Lorenzo Luzuriaga. A Guerra Civil Espanhola provocou o
surgimento de uma diáspora de pensadores que se concentraram sobretudo nos países
hispano-americanos.
Duas revistas culturais, Cuadernos Americanos (México, 1942), em que Alfonso
Reyes esteve presente37, e Realidad: revista de Ideas (Argentina, 1947) foram veículos
da produção intelectual desses refugiados. Tendo em comum a defesa da Cultura, as
publicações tiveram algumas distinções. Cuadernos seguia uma linha editorial mais
extensa, incluindo textos que não se limitavam ao campo social, e que visavam
fomentar o debate sobre a América Latina, e Realidad estava mais centrada no campo
das humanidades, excluindo a ficção, e apresentava ensaios e textos críticos que
abordavam questões gerais do mundo naquele início da Guerra Fria.38
Bastante citado pela própria Cecília em suas correspondências, pelo título, a
―Carta del Brasil‖ já me despertou interesse. Afinal trata-se de um artigo em forma de
carta; era então pelo gênero epistolar que ela escolhera falar sobre o Brasil. Em um dos
momentos em que comenta sobre esse seu artigo à amiga Isabel do Prado, Cecília nos
dá a perceber a dimensão desse tipo de discurso no movimento de sua escrita: ―No
número seguinte, a revista passou a publicar cartas de todos os países (...). Agora,
37
Como exemplo, o ensaio que escreveu no segundo número da revista: ―América y los Cuadernos
Americanos‖, Cuadernos Americanos, nº 2, (1942). p. 7-10.
38
C.f.: Revista de la SSECI. González Neira, Ana (2011): Cuadernos americanos y realidad: dos
publicaciones más allá del exilio republicano en América. Nº 25. Julio. Año XIV. Disponível em:
www.ucm.es/info/seeci/Numeros/Numero 25/InicioN25.html
107
pediram-me outro panorama, e será a ‗segunda carta‘. Acabarei cartomante‖ (RJ, 5 de
junho de 1948, carta 37 à Isabel).
Não encontrei registros de que essa ―segunda carta do Brasil‖ houvesse sido
publicada, mas, sim, cartas de outros países, escritas por outros escritores, surgiram nas
edições seguintes. O problema com o qual me deparei no início da pesquisa foi que
apesar das muitas referências a tal ―Carta del Brasil‖ não a achava em nenhum dos
acervos das bibliotecas do Rio de Janeiro. Busquei sem sucesso comprar pela internet
uma edição da antiga revista, até que em maio de 2011 finalmente tive acesso a um
exemplar no acervo do Colégio do México. No sumário, vemos textos assinados pelos
fundadores da Revista (―Pasaje sobre la Cultura‖, de Eduardo Mallea; ―Testimonio de la
nada‖, de Francisco Ayala; ―Ortega y Gasset y sus obras completas‖, de L. Luzuriaga),
e de outros colaboradores de língua hispânica, uma tradução de ―Filosofía y Política‖,
de Bertrand Russell, além da ―Carta del Brasil‖.
Os editores apresentam assim o texto de Cecília:
Para aquellos que conocen a Cecília Meireles por su poesía tal vez sea una
sorpresa encontrar en ella también el dominio de la prosa y del pensamiento
discursivo que se evidencia en esta Carta del Brasil con la que colabora a los
designios de Realidad. Y, sin embargo, en su contemplación del real – en
esta revisión de la experiencia viva de su generación, recapitulada en un
presente rigoroso – si descubre la misma clarividencia, la misma nostalgia
de otros mundos y la misma pasión del absoluto que caracteriza su poesía
(Meireles, 1947).
108
Brasil. Vemos então que este era o tema central de seu desabafo: ―Se as tentativas de
reforma educacional esboçadas em 1930 e nos anos subsequentes tivessem conseguido
prevalecer, a metade dos males que hoje nos consomem talvez pudesse ter sido
evitada‖.
Contudo, na ―Carta do Brasil‖ a busca pelo passado e pelo absoluto leva a autora
a desenvolver reflexões bastante questionáveis. Por exemplo, quando ela se lamenta
pela chegada de imigrantes estrangeiros ao Brasil, vendo-os como elemento
perturbador, já que, segundo ela, negros, brancos e portugueses aqui viviam em
completa harmonia: ―simpatizávamos com o índio que o romantismo embelezou, nos
enternecia o negro que amamentou nossa infância com seu leite e sua imaginação e os
laços europeus com Portugal estendiam nosso parentesco à terra ibérica‖. Além desse
cenário pueril lembrar os acordes perfeitos da convivência idealizada por Monteiro
Lobato em seu O Sitio do Pica-pau Amarelo, onde a Escrava Anastácia estava
docilmente integrada à família de Dona Benta.
A nostalgia pelo passado a partir da defesa da noção de que as mudanças
representam uma ameaça, leva Cecília à situação complexa: exaltar os tempos do Brasil
Colônia e ao mesmo tempo se posicionar veementemente contra a opressão das
ditaduras do XX, ―porque as ditaduras podem ser mais odiosas que os próprios
ditadores‖. Contudo, apesar de também se tratar de um sistema opressor, a situação de
Colônia é apresentada como algo positivo, por sua virtude de preservar e oferecer
valores humanistas:
109
É portanto na poesia onde encontramos o vigor e a profundidade do pensamento
de Cecília, sobretudo no que se refere à ―importância misteriosa de existir‖39. A
valorização do passado, por exemplo, presente tanto em seus escritos em prosa, quanto
em sua poesia, se apresenta de modos profundamente distintos. Se nos textos em prosa,
como a ―Carta do Brasil‖, as mudanças advindas dos novos tempos são vistas como
ameaça – e o leitor se depara com uma visão estática da vida –, na poesia, a valorização
da tradição que surge, sobretudo na forma como são construídos os poemas, no uso das
métricas clássicas, ganham vitalidade pelo movimento que o pensamento lírico da poeta
imprime; fazendo do transitório, do passageiro, marcas indeléveis de sua poética,
conforme lemos nas palavras da própria poeta: ―A noção de sentimento de
transitoriedade de tudo é o fundamento mesmo da minha personalidade‖ (Meireles,
1967, p. 77).
Um dos poemas em que encontramos uma bela reflexão sobre o passado é
―Onda‖, de Viagem, principalmente nas seguintes estrofes:
As coisas acontecidas,
mesmo longe, ficam perto
39
Em carta de 19 de janeiro de 1915 a Armando Cortes Rodrigues, com quem Cecília também se
correspondeu, Fernando Pessoa fala sobre a ―importância misteriosa de existir‖: ―Chamo insinceras às
cousas feitas para fazer pasmar, e às cousas, também - repare nisto, que é importante - que não contêm
uma fundamental ideia metafísica, isto é, por onde não passa, ainda que como um vento, uma noção da
gravidade e do mistério da Vida. Por isso é sério tudo o que escrevi sob os nomes de Caeiro, Reis, Álvaro
de Campos. Em qualquer destes pus um profundo conceito da vida, diverso em todos três, mas em todos
gravemente atento à importância misteriosa de existir.‖ (Disponível em:
http://arquivopessoa.net/textos/3510)
110
para sempre e em muitas vidas (...)
111
mais importantes intelectuais do nosso tempo, o palestino Edward Said, que defendia
uma concepção de humanismo baseada numa atitude engajada contra a alienação e a
exclusão.
Trata-se do que Said chamou de um ―humanismo mundano‖ (Said, 2007). Em
oposição aos ideais do humanismo conservador, elitista e etnocêntrico, ele propunha
uma ideia de humanismo livre das restrições acadêmicas, ―que corresponde àquela de
intelectual defendida e vivida por Sartre: alguém que se vale do seu prestígio em
qualquer área do saber para influir no debate público, com uma crítica radical, acima de
lealdades partidárias, uma voz incômoda e, por isso mesmo, necessária‖ (Nuto, 2008).
É importante ressaltar que o termo ―Humanismo‖, e também o destaque para a
ideia de um ―humanisimo mundano‖, de Said, são aqui empregados como uma tentativa
de entender a ação desses poetas naquela época.
Ainda que hoje não sejam lembrados pela radicalidade de seus posicionamentos
políticos – como Sartre –, Cecília, Reyes e Gabriela tiveram participação ativa no
debate público de suas épocas. Atuavam intensamente como escritores e tinham na
educação o foco desse engajamento.
A participação na sociedade, por meio dos artigos em jornais e revistas, a rede
de relações com intelectuais estrangeiros, as atividades de poeta – e educadoras, no caso
de Cecília e Gabriela –, foram movimentos que eles compartilharam, e que coincidiam
com a profunda ligação que mantinham com a vida e com a História.
Esse engajamento com a vida e a História, tendo na linguagem o veículo de
questionamento e a atenção ao sofrimento humano, é visto por Giuseppe Ungaretti
como peculiar a todo grande escritor. Diz o poeta italiano:
Não são os fatos externos que fazem o escritor: é o escritor que julga através
da própria obra tais fatos, fatos esses que não o determinarão – se ele for um
verdadeiro escritor. É claro que, por natureza, e não fora; mas se o escritor
não conseguir exprimir a história, na própria obra e marcá-la com sua
personalidade, ele é um escritor secundário, e a história não o levará em
consideração. Um escritor, um poeta, é sempre, para mim, engagé,
empenhado: empenhado em fazer o homem redescobrir as fontes da vida
112
moral que as estruturas sociais, de qualquer constituição, sempre tendem a
corromper e exaurir (Ungaretti, 1994, p. 222).
113
A balada é a ―forma romântica por excelência‖, conforme nos ensina Antonio
Candido: ―poema narrativo de origem popular, parecido com o que na Península Ibérica
se chamou ‗romance‘ contando fatos e aventuras de guerra, caça, amor e morte, com o
uso do diálogo, recorrência de versos e palavras, apresentação de tipo dramático‖
(Candido, 1985, p. 47-8).
Na cena temos Marina e Mariana, que tomam chocolate na varanda lembrando o
tempo em que eram crianças.
Seria uma narrativa banal não fosse a habilidade da poeta em criar, na estrutura
do poema, uma apresentação que produz no leitor a sensação contígua ao que se passa
quando lembramos o passado: o embaraço entre memória e imaginação. A narração é
feita no presente e a sobreposição dos tempos, a mistura das cenas do passado e do
presente, é sutil, delicada como o clima do poema com suas ―xicrinhas de porcelana‖ e
―ondas que dançam‖. Os nomes das personagens, repetidos ao final de cada estrofe,
proporcionam o efeito de musicalidade; facilitando a memorização.
É um poema bom para ser ouvido e que está, portanto, muito próximo da
oralidade.
Baladas e Canções são formas recorrentes na poética de Cecília Meireles, que
defendia a importância da literatura oral na formação cultural das sociedades. O gosto
de ouvir era para ela um estímulo ao gosto de ler, já que ―a Literatura Tradicional
114
(literatura oral) é a primeira a instalar-se na memória da criança. Ela representa o seu
primeiro livro‖ (Meireles, 1979, p. 66). Cecília lembra ainda que a literatura oral está na
origem de todos os livros: são os momentos em que uma mãe canta para o filho dormir,
as histórias que os avôs contam para os netos. Enfim, as histórias que passam de pais
para filhos e que são o estímulo para a leitura e a escrita.
Tomando a oralidade por base da formação literária, a poeta elege o diálogo com
a tradição como uma das forças motrizes de sua obra. Se pensarmos na relação entre
experiência e narração, segundo os estudos de Walter Benjamin, especialmente em seu
clássico ensaio sobre o narrador, o que temos é o pressuposto de uma tradição
compartilhada, retomada na continuidade de uma palavra transmitida de pai para filho.
O que gostaria de ressaltar aqui é o caráter de modernidade – da entrada em cena do
leitor e da exploração dos poderes da linguagem – que há nessa transmissão da tradição,
conforme observou Jeanne Marie Gagnebin. Ao contrário de muitos leitores, que veem
nostalgia nas análises do autor alemão sobre o fim da arte de contar e da experiência
coletiva, Jeanne Marie afirma que há em ―O narrador. Considerações sobre a obra de
Nikolai Leskov‖ uma teoria antecipada da obra aberta: ―Um movimento de abertura na
própria estrutura da narrativa tradicional. Cada história é o ensejo de uma nova história
(...)‖ (Gagnebin. In.: Benjamin, 1985, p. 13). Por esta observação podemos pensar na
hipótese de que o diálogo com a tradição – tão presente na obra de Cecília Meireles e
tão pouco compreendido por seus contemporâneos – além de ser parte de uma poética
da modernidade, tem relação com o processo que constitui a trajetória desta escritora: a
proposta de uma formação humanista para o Brasil.
A exploração dos recursos da arte verbal no diálogo com a tradição das métricas
portuguesas, do cancioneiro espanhol e do simbolismo, e o forte apelo às rimas e às
canções são aspectos importantes na obra de Cecília Meireles. Podemos entendê-los
como índices da busca de estabelecer um diálogo com o leitor, a partir da provocação
para o despertar de uma sensibilidade mais afinada com as questões intrínsecas da
humanidade.
Além da ideia de partilhar e ampliar a sensibilidade, formando leitores, o diálogo
com a tradição aponta também para um dos pilares dessa formação humanista, o
investimento na Educação infantil.
115
Ainda hoje vista por muitos como uma ―literatura menor‖, a literatura infantil é a
base da leitura e da produção escrita no âmbito escolar, está ligada a uma das ações
humanas mais fundamentais na difusão do conhecimento e no desenvolvimento da
cultura dos povos: o ler e o escrever. Tendo em vista a importância destas ações, Cecília
Meireles defendia a ideia de que a leitura na infância não era um ―passatempo‖ e sim
uma ―nutrição‖ (Meireles, 1979, p. 28).
―Literatura menor‖ para Gilles Deleuze e Félix Guattari, é aquela literatura que
uma minoria faz em língua maior. Além do forte coeficiente de desterritorialização,
numa ―literatura menor‖ tudo adquire um valor político e coletivo. Desse modo, o que à
primeira vista soa como um descompasso de artistas cuja dicção poética parece estar
sempre à margem das de seus contemporâneos, como no caso de Cecília e Gabriela,
ganha a força de uma revolução empreendida de um lugar que muitos consideram o de
uma ―poesia menor‖.
O poema ―Duas velhinhas‖ encena então uma imagem significativa da relação
entre Cecília e Gabriela: o encontro de duas velhas amigas que partilham recordações e
a admiração por uma beleza singela e sutil.
Lavradeira de ternuras,
trago o peito atormentado
pelas eternas securas
de tanto campo lavrado.
(―Trabalhos da terra‖, Vaga música, C.M.)
116
trabalhava para o jornal carioca A Nação. No artigo ―Un poco de Gabriela Mistral‖,
Cecília conta como foi o encontro.
Gabriela a recebeu no hotel, acompanhada por uma secretária, ―me esperava
sentada em uma poltrona com um vestido verde malva, com bordados em relevo no
peito‖ (Meireles, 1963). Como Gabriela não entendia muito bem o português, Cecília
ajudou-a em seus primeiros contatos em terras brasileiras. Dessa aproximação surgiu a
ideia de preparar uma antologia chileno-brasileira, com uma traduzindo os poemas da
outra. A obra não foi publicada, mas, em 2003, uma parceria entre a Academia Chilena
de la Lengua e a Academia Brasileira de Letras trouxe ao público o volume bilíngue
Gabriela Mistral y Cecília Meireles, com um afetuoso ensaio de Cecília Meireles sobre
a obra e a pessoa de Gabriela Mistral. Os poemas foram traduzidos por Ruth Silvia de
Miranda (os da poeta chilena), e por Patricia Tejeda (os da poeta brasileira) e há
também um ensaio de Adriana Valdés sobre a obra de Cecília Meireles. No texto de
Cecília sobre Gabriela encontramos a amizade que as uniu e fez com que mesmo
distantes pelas situações da vida continuassem a se corresponder entre os anos de 1943
e 1947.
Nas cartas de Cecília Meireles para Gabriela Mistral, a que temos acesso pelo
site da Universidade do Chile, que organizou com esmero parte da obra da escritora
chilena, um dos traços mais marcantes é a investida da poeta brasileira na aproximação
entre os países latino-americanos.40
Cecília defendia uma maior interlocução entre os intelectuais latino-americanos.
Em carta, de 22 de janeiro de 1948, à amiga Isabel do Prado, ela escreve: ―Se temos de
arranjar mestres estrangeiros – e nisso estou de acordo - devem ser os que têm conosco
certo parentesco, e, portanto, começarão por ser latinos‖ (RJ, 22 de jan. de 48, carta 26).
Tocando em um dos pontos complexos da questão de integração do Brasil à
América Latina, os idiomas, Cecília propõe à Gabriela a difusão do espanhol no Brasil:
40
A correspondência para Gabriela Mistral está disponível no site da Biblioteca Virtual da Universidade
do Chile. www.gabrielamistral.uchile.cl/
117
facilmente o espanhol, e com a prática de lê-lo ainda o viríamos a entender
melhor? Por que V. não explica isso às gentes com quem trabalha? (Carta de
Cecília à Gabriela em 26/06/1943).
118
ainda um traço recorrente de sua subjetividade, presente nas cartas, e pouco conhecido
do público, o humor, como mostra o seguinte trecho:
Seu prestígio de rainha quéchua está muito consolidado, digam o que digam
os ―criollos‖. V. poderia mesmo decretar aos seus vassalos: ―Queda
establecido que en la cosa literaria cada uno escribe como habla, e así se
publica, consideradas todas las traducciones, aún las da sra. C.M., como
abusivas, exóticas, nocivas al bienestar de los pueblos y al sentido común.
Etc, para que se cumpla, y que se no lo cumplen sean llevados los traidores
a un campo de concentración prusiano, etc. (Idem).
Em outra carta, de 28 de agosto de 1944, em que fala à amiga sobre o artigo que
esta publicaria no jornal ―A manhã‖, Cecília traz à luz a importância da comunicação
intercultural no desenvolvimento da humanidade, se aproximando da questão colocada
por T. S. Eliot no ensaio ―A função social da poesia‖:
A comunicação espiritual entre um povo e outro não pode ser levada adiante
sem indivíduos que assumam o desafio de aprender pelo menos uma língua
estrangeira tão bem quanto é possível aprender qualquer língua que não a
sua própria (Eliot, 1991, p. 15).
119
porque isso lhe dá prazer e, com o tempo, é possível que adquira a destreza
que os seus artigos exigem do tradutor, o conhecimento do jogo imaginativo
e verbal da autora – enfim, que se ponha em condições de ser um intérprete
do seu espírito (Carta de Cecília à Gabriela em 28/08/1944).
120
Não sabemos qual estrofe foi salva, mas a nota a Tasso da Silveira é uma mostra
da rede de amizades que unia Gabriela e Cecília.
O título do poema ―Dame la mano‖ faz lembrar o ―Mãos dadas‖, do Drummond:
―O presente é grande, não nos afastemos./ Não nos afastemos muito, vamos de mãos
dadas‖ (―Mãos dadas‖. Sentimento do Mundo, 1935-40). E dimensiona a importância
que os diálogos e que os vínculos com o tempo presente tinham para esses poetas.
Assim como em Ou Isto ou Aquilo, a musicalidade e os laços com a tradição oral
são fortes componentes de Ternura; considerado um valioso antecedente de alguns dos
poemas mais célebres de Gabriela Mistral (Mistral, 1993, p. 24). Os poemas iniciais,
das seções ―Canciones de cuna‖, que podemos traduzir por ―canções de ninar‖, e
―Rondas‖ é onde esses elementos são mais evidentes. Como mostra, por exemplo, o
poema ―Canción quechua‖:
121
Indio loco, Indio que nace,
pájaro perdido!
He querido hacer una poesía escolar nueva, porque la que hay en voga no
me satisface, una poesía escolar que no por ser escolar deje de ser poesía,
que lo sea, y más delicada que cualquiera otra, más honda, más impregnada
de cosas de corazón más estremecida de soplo de alma (Idem).
Na feira do arrabaldezinho
Um homem loquaz apregoa balõezinhos de cor:
— "O melhor divertimento para as crianças!"
Em redor dele há um ajuntamento de menininhos pobres,
41
A propósito de Bandeira e da análise de uma poesia menor, cf. o ensaio ―Sobre poesia‖, em Textos de
Intervenção, de Antonio Candido, em que ele fala sobre o polêmico artigo de Carlos Lacerda publicado
em 30/4/1944, na Folha da Manhã. Nele, Lacerda refere-se a Bandeira como um ―poeta menor‖.
122
Fitando com olhos muito redondos os grandes balõezinhos muito redondos.
Sente-se bem que para eles ali na feira os balõezinhos de cor são a única
mercadoria útil e verdadeiramente indispensável.
123
de liberdade42. É assim uma possibilidade de desenvolvimento de camadas mais
profundas da sensibilidade humana, próximo do que pensaram os românticos alemães
do século XIX: Novalis, Schlegel e Schiller, em suas Cartas sobre a educação estética
do homem: ―O objeto do impulso sensível, expresso num conceito geral, chama-se vida
em seu significado mais amplo, um conceito que significa todo o ser material e toda a
presença imediata nos sentidos (Schiller, 1990, p.81)‖.
Os poemas infantis de Gabriela e Cecília trazem justamente essa disposição
lúdica, apresentam um ―sentir pensando‖, como expôs Fernando Pessoa: ―O que em
mim sente está pensando‖ (―Ela canta, pobre ceifeira‖. Mensagem). Verso este que
poderíamos chamar de síntese dessa formação humanista, cujo princípio está no livre
jogo entre razão e sensibilidade:
Não errará jamais quem buscar o ideal de beleza de um homem pela mesma
via em que ele satisfaz seu impulso lúdico (...) o homem joga somente
quando é homem no pleno sentido da palavra e somente é homem pleno
quando joga (Idem, p. 84).
Renovação era a palavra de ordem naquele período histórico entre 1920 e 1940. Em
1922, Gabriela Mistral foi convidada pelo governo do México para participar do
programa educativo dirigido pelo filósofo e ministro da educação, José Vasconcelos.
Gabriela aceita a oferta e parte para o México, no que seria sua primeira temporada de
dois anos naquele país.
42
―Educação, para mim; é botar, dentro do indivíduo, além do esqueleto de ossos que já possui, uma
estrutura de sentimentos, um esqueleto emocional. O entendimento na base do amor.‖ (Cecília Meireles
em entrevista a Pedro Bloch. Revista Manchete, nº 630. 16/05/1964. Pedro Bloch Entrevista. Rio de
Janeiro: Bloch Editora, 1989.)
124
No Brasil, Cecília Meireles participava ativamente do movimento da Escola
Nova (1932), com Anísio Teixeira, Fernando de Azevedo e Lourenço Filho. Ao todo
eram 26 educadores que lançaram um manifesto em defesa da escola pública, gratuita e
leiga, com métodos pedagógicos centrados no aluno. Entre 1930 e 1933, Cecília editou
a ―Página de Educação‖, no Diário de Notícias do Rio de Janeiro, e teve que enfrentar a
repressão do governo de Getúlio Vargas. É o que relata Valeria Lamego em seu estudo
sobre a atuação jornalística de Cecília Meireles durante a década de 1930, A Farpa na
Lira (1996), e no artigo ―A musa contra o ditador‖ (1996), onde conta o caso absurdo
que ocorreu no Centro de Cultura Infantil que Cecília inaugurou junto com o primeiro
marido, Correia Dias, no Rio de Janeiro:
Em 1934, depois de todo furor causado pela ―página‖, junto com o então
marido, o pintor Correia Dias, Cecília inaugura o Centro de Cultura Infantil,
no Pavilhão Mourisco, espaço que estava vazio e abandonado, no bairro de
Botafogo, RJ. Em 1937, em plena vigência do Estado Novo, o Centro é
invadido pelo interventor do Distrito Federal, que apreende de sua biblioteca
‗As aventuras de Tom Sawyer‘, de Mark Twain, por considerá-lo
comunista. O caso teve repercussão internacional, a prefeitura resolve então
fechar o Centro de Cultura Infantil e, em seu lugar, instala um posto de
arrecadação fiscal.
125
Quatro dias depois, segundo as anotações de Reyes, ele recebe a visita de Cecilia
para tratarem sobre o assunto da Biblioteca, que é então inaugurada no dia 14 de agosto
de 1934, com a presença do embaixador mexicano que aponta a inauguração entre os
seus compromissos daquele dia: ―Tarde: inauguración Biblioteca Infantil en el Pabellón
Morisco, Cecília Meireles, al que concurro.‖ (Reyes, 2011, p. 210).
Contudo já se insinuava a tensão política que viria nos anos seguintes com a
ditadura do Estado Novo. E quando começou a sentir as ameaças da possibilidade de
deturparem os propósitos originais de sua iniciativa, como se pressentisse as pressões
que culminariam com o fechamento do Centro de Cultura, Cecília, prestes a fazer uma
viagem de navio à Europa, desabafa ao amigo sobre sua inquietação:
(...) Confesso-lhe que parto com certa apreensão sobre o destino do Centro
de Cultura Infantil. O seu próprio êxito o ameaça. Anísio Teixeira esteve lá,
segunda-feira última. E comunicou-me o seu projeto de fundar muitos
outros, ao mesmo tempo, por toda parte... Esta infeliz mania norte-
americana de tudo fazer e pensar em série, estandartizada e medíocre (carta
14, de C.M. a Reyes, em 12 de setembro de 1934).
Essa é uma das cartas mais longas de Cecília para Reyes, e a que mais faz o
leitor entrar em contato com a cumplicidade e a amizade entre eles. Ela conta ao amigo
sobre os preparativos da viagem que fará com o então marido Fernando Correia Dias, a
bordo do Loyd, num itinerário que incluiu visitas a Portugal, Espanha, França e Itália,
mas o assunto central são as trocas culturais, os pedidos de indicações de livros e a
preocupação de Cecília na promoção da literatura Iberoamericana no Brasil e,
sobretudo, seu interesse missionário em divulgar o México no Brasil:
126
representação dos ideais e da felicidade do seu povo? Essas coisas históricas
vêem-se tão mal à distância! (Idem)
Pena que não tivemos acesso à resposta de Reyes, que provavelmente encontra-
se na casa abandonada do Cosme Velho, Rio de Janeiro, último endereço de Cecília e
fonte de uma série de pelejas judiciais pelos direitos autorais, que envolve uma das
filhas e um dos netos da poeta.
Sim, dá curiosidade de saber qual teria sido a ―figura representativa dos ideais e
da felicidade do povo mexicano‖, indicada por Reyes. Mas, pelas linhas a que temos
acesso, podemos ver o interesse de Cecília em promover o encontro entre história,
cultura e literatura na América Latina, e ainda mais na promoção de um dos países com
os que teve mais afinidades espirituais, como revelou em diversos momentos: o México.
43
―O exemplo do México‖. Página de Educação, Diário de Notícias, 15 de março de 1931. Seção
Periódicos da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.
127
Em ―A mulher mexicana na prosa de Gabriela Mistral‖, Julio Dalloz analisa um
dos textos desta coletânea, ―A la mujer mexicana‖, lido por Mistral no Congreso
Mexicano del Niño (1923). Elaborando uma discussão sobre o corpo da mulher e sobre
a maternidade, Dalloz defende que a atitude feminista que sustenta ideologicamente o
―A la mujer mexicana‖ é de uma outra ordem, diferente daquela das feministas
contemporâneas de Gabriela:
128
Se pensarmos na análise de Julio Dalloz sobre a conotação política que Gabriela
Mistral imprime à maternidade – ―a maternidade é apresentada como uma função ativa,
de procriação e criação, que a diferencia daquela marcada pela passividade‖ – temos,
portanto, a mulher no centro desse projeto de uma formação humanista. É ela a figura
primordial na relação entre experiência e narração. E desse modo, ―a fragilidade, então,
seria um artifício, uma possibilidade de defesa da mulher: pareço frágil, sou forte; sou
delicada, concentro energia. ‗En su tremenda hora de peligro‘, esta força e energia
forjarão uma estirpe de ‗organizadores, obreros y campesinos‘‖ (Dalloz, s/d).
Gabriela também apreende um traço marcante da cultura mexicana: o canto.
―México: el pluebo que canta. El Azteca, el Tolteca y el Maya eran músicos: el canto
fue una de sus manifestaciones religiosas‖ (Zegers, 2007, p. 107). Encontramos o
reflexo disso, por exemplo, nas ―canciones de cuna‖, as ―canções de ninar‖, que
constituem boa parte dos poemas de Ternura.
Eis então mais um elo entre Gabriela e Cecília: o México.
―Paisagem mexicana‖ é título de um poema de Cecília e de um texto em prosa
de Gabriela. O que eles têm em comum é a mulher como personagem central, ícone da
paisagem mexicana:
129
Iztaccihuatl, julho de 2012. Foto: Francisco Kochen
44
Popocatépetl y Iztaccíhuatl são dois vulcões símbolos da paisagem e da identidade cultural da Cidade
do México. Hoje, somente o ―Popo‖ ainda tem atividades esporádicas, o ―Izta‖ é considerado uma
montanha, mas muitos o chamam de ―la vulcana‖. Desde a época pré-hispânica, são considerados espaços
sagrados, templos naturais onde se venerava o Deus Tláloc (Deus das águas e da chuva). Séculos depois,
130
Entre os pontos de afinidades entre Gabriela e Cecília está ainda a figura do
poeta e intelectual mexicano Alfonso Reyes, como mais um dos tantos laços que uniram
as poetas brasileira e chilena. Sobre ele, Gabriela escreveu: ―Un hombre de México:
Alfonso Reyes‖, e descreveu-o usando o mesmo adjetivo que usou ao se referir à
novidade que foi para ela o contato com a paisagem do Vale Mexicano:
os vulcões marcaram e impressionaram viajantes e artistas, que a eles dedicaram desenhos, memórias e
documentos. Assim fizeram Hernán Cortés, Alexander von Humboldt, Diego Rivera, Antonin Artaud e o
pintor mexicano Dr. Atl, entre outros. Uma das versões mais populares da lenda azteca é a que narra o
amor da bela princesa Ixtaccíuatl, filha do cacique de Tlaxcala, e do guerreiro Popocatépetl que o ajudou
a libertar seu povo da dominação azteca numa das batalhas mais sangrentas do período pré-hispânico,
entre aztecas e tlaxcaltecas. Com a promessa de casar-se com a princesa após a guerra, o guerreiro, que
venceu todos os combates, no entanto a encontra morta quando regressa para sua terra. Então decide levá-
la nos braços subindo montanhas e montanhas, até chegar perto do céu, a estende no topo e se ajoelha
junto a ela. A neve então cobriu seus corpos, formando os gigantescos vulcões do Vale do México. Cf.: El
mito de dos volcanes: Popocatépetl y Iztaccíhuatl, Livro-catálogo da exposição homônima que aconteceu
em 2005 no Palácio Bellas Artes, na Cidade do México. Museo del Palacio de Bellas Artes. Editorial RM.
México-MMV.
131
cultura dos ateneístas está marcada pelo humanismo clássico, durante as reuniões, liam
Platão e autores modernos como Kant, Croce, Nietzsche e Schopenhauer. A principal
fonte de pensamento era o idealismo alemão, e a obra de Henri Bergson, e concebiam
―la educación como una actividad evangelizadora‖. A espinha dorsal do grupo era
formada por José Vasconcelos ―el ateneísta que más participa en la vida política
mexicana‖, Alfonso Reyes, ―un humanista de estilo europeo que asombra por su gran
erudición‖, Antonio Caso que ―como nadie sabía transformar los ideales de la clase
media mexicana en ideas claras‖ e Pedro Enríquez Ureña, ―investigador literario e
historiador de la cultura, uno de los membros más destacados del Ateneo de la
Juventud‖. Vogt lembra também de pensadores como Vicente Lombardo Toledano ―el
padre del marxismo mexicano‖ e, mais recentemente, Octávio Paz, cujo El laberinto de
la soledad é, segundo o crítico alemão, ―un libro de impresiones con muchas ideas
geniales‖ (Vogt, 1986, p. 32-52).
O fato é que ainda hoje esse país provoca encanto em artistas e amantes da
cultura. Érico Veríssimo escreveu sobre o México quando lá esteve em 1957 (México,
história duma viagem)45 e Cyro dos Anjos tentou implantar um curso de literatura
brasileira na Universidade do México na década de 1950.
Não foram poucas as tentativas de laços entre México e Brasil. Regina Crespo,
ao analisar o tema das relações culturais e intelectuais entre mexicanos e brasileiros
durante as décadas de 1920 e 1930, diz ser inevitável entrarmos no campo da política
para pensarmos sobre o assunto, já que os primeiros contatos mais concretos e
sistemáticos entre Brasil e México aconteceram a partir das relações diplomáticas entre
os dois países (Crespo, 2006). A pesquisadora lembra que a questão da integração do
Brasil no continente latino-americano era parte da agenda ideológica daquele momento
e chama a atenção para as afinidades entre o plano educativo-cultural de Vargas, e o
projeto liderado por Vasconcelos durante a presidência de Obregón, ―guardadas,
evidentemente, as diferenças e especificidades históricas e dadas as distintas matrizes
ideológicas de cada caso‖ (Idem).
No entanto, apesar desses contatos diplomáticos no passado, a dificuldade de
diálogos, que resultem em uma maior aproximação entre os dois países, persiste;
sobretudo no campo da arte e da cultura.
45
Ver Souza, 2008.
132
Há a questão da distância geográfica, a barreira do idioma e o que suponho ser
um complicador para esta relação: a sensação de que há algo familiar entre mexicanos e
brasileiros. Assim, quando não reconhecemos a diferença que há entre os mais íntimos,
perdemos o interesse em avançar por diálogos mais profundos.
Gabriela e Cecília foram intelectuais que fizeram de sua condição de mulher,
ligada à natureza, à maternidade, elemento a mais de potência para suas obras. E
tiveram no México a geografia necessária para que desabrochasse a ligação mais íntima
com a terra, a consciência da condição de escritora latino-americana, e as sintonizasse
com os princípios de uma revolução em consonância com a ideia do amigo e poeta
Alfonso Reyes, que propôs:
8. Vida e Ficção
133
recorte do Diário de Notícias, em que ela ―se atreve a um comentário sobre o livro‖. A
esse texto, publicado em 6 de março de 1931, na seção ―Comentário‖, da Página de
Educação, ela se refere como um pretexto à admiração que sente por ele, e pelo México,
seria então uma homenagem:
Encarei-o sob esse aspecto para ficar dentro do espírito da Página que dirijo,
e onde tantas vezes tenho escrito sobre a tua terra admirável que é, para
mim, um exemplo e uma inspiração, nesta hora de transformações da
humanidade, de desejos de transformações, pelo menos... (carta de Cecília a
Reyes, 16 de março de 1931).
Nesta mesma carta, ficamos sabendo que Reyes lhe enviou também três livros
sobre o ensino no México, além de uma coleção que ela chama de ―magnífica‖.
―El testimonio de Juan Pena‖ integra a seção ―Vida y Ficción‖, do livro
Ficciones (Vol. XXIII de Obras Completas), onde estão também textos produzidos por
Reyes durante a temporada brasileira, como ―La fea‖, ―Pasión y muerte de Dona
Engraçadinha‖, ―Fábula de la muchacha y la elefanta‖ y ―La cicatriz‖. Segundo José
Luis Martínez, que assina a introdução, as ―ficções‖ presentes nesse volume eram uma
maneira de escape, o descanso dominical de Reyes.
Sobre os textos produzidos no Brasil, ele destaca o mérito de ―La fea‖, que,
segundo ele, assim como os outros ―compartilha o entusiasmo erótico que, ao que
parece, desfrutou Reyes em seus anos brasileiros – quando contava quarenta e poucos
anos‖. Martínez explica a composição do livro, que reúne múltiplas formas: narrativas,
relatos, descrições, lembranças, experiências pessoais, fantasias, ―bromas literárias‖,
sátiras, farsas em versos, anedotas e anotações sobre a natureza, e, usando a expressão
―relato-análise‖, chama a atenção para o caráter analítico a partir do qual os textos são
construídos: ―Ele enriquece a densidade psicológica de seus personagens, mas o faz por
meio de explicações e não pela ação ou pela representação‖ (Reyes, 1996, p. 10).
Se pensarmos nos textos ficcionais de Cecília, em suas crônicas, nos pequenos
contos e relatos, e ainda em sua poesia, vemos que são também produções de múltiplas
formas, boa parte delas dificilmente enquadráveis em rótulos de algum tipo de gênero.
Percebemos então a afinidade com o mestre Reyes: as múltiplas formas da escrita, ao
134
que se soma uma outra coincidência, que marca a obra ficcional de ambos: o caráter
reflexivo e analítico dos relatos, onde as personagens são construídas muito mais pela
análise do que por situações de ação dramática, nesses casos, o conflito é íntimo, da
ordem do autobiográfico.
As duas marcas que se destacam nas obras ficcionais de Cecília e de Reyes: a
filiação entre poético e filosófico e a mistura de gênero, nos leva a pensar o quanto eles,
de algum modo, estavam próximos do pensamento da Teoria Romântica da Poesia
Alemã, e da ―prosa poética‖ de Schlegel e Novalis, no que se considera uma concepção
moderna de literatura (Seligmann-Silva, 2004).
Esta verve de reflexão está presente em ―El testimonio de Juan Pena‖, em que as
memórias da juventude do narrador se desenrolam paralelamente a um movimento de
reflexão, que surge, em alguns momentos, como uma autoanálise do autor. Este
narrador-autor se constrói justo na medida em que se questiona: ―– Quem eu sou? filho
privilegiado da cidade, agasalhado entre leituras e amigos refinados. Para quem no
entanto a vida não tem mais estímulos que os paradoxos e os amores.‖
Ao refletir sobre a poesia de Novalis, Vera Lins, apresenta a problemática e a
condição auto reflexiva do sujeito na produção dos primeiros românticos alemães, ―o
sujeito é para eles pura atividade de imaginação‖ (Lins, 2004).
O questionamento marca toda a narrativa de ―El testimonio...‖ e a condição auto
reflexiva do sujeito se torna então instrumento para o questionamento da própria
linguagem. E, neste caso, um dos pontos mais interessantes do relato é a situação de
dúvida que o autor constrói em relação à sinceridade de seu personagem Juan Peña:
Para que se leve adiante a encenação, vários podem ser os procedimentos. E para
dar conta dessa teatralidade, há que se tomar a palavra. A escrita?
Las cosas habían llegado a tal termo de teatralidad, que no pude menos de
―tomar la palabra‖.
135
José Luis Martínez, autor do texto de apresentação do volume XXIII das obras
completas de Reyes, onde está publicada a coletânea de contos-relatos Vida y Ficción
(1910-1959), nos conta que Verdad y Mentira (Madrid, 1950) foi a primeira tentativa de
reunir a obra narrativa de Reyes, e que ―El testimonio...‖ foi publicado pela primeira vez
em 1931, como um livreto, juntamente com três desenhos de Manuel Rodríguez
Lozano. A edição foi feita no Rio de Janeiro, pela Villas Boas Edições.
46
―Manuel Rodríguez Lozano. Pensamento e Pintura (1922-1958)‖, Museo Nacional de Arte, Munal,
julho de 2011.
136
Manuel Rodríguez Lozano, que também escrevia, participou ativamente da vida cultural
mexicana. Em uma das salas da exposição, ―Red social‖, a curadoria apresentou a rede
social de amigos, discípulos, amantes, mecenas e colegas que estiveram presentes na
vida do pintor de 1913 a 1961. Com fotografias e pequenos textos biográficos, e linhas
que indicavam as conexões entre cada um dos personagens, o visitante podia visualizar
o quanto eram imbricadas as relações afetivas e profissionais, e tomar conhecimento dos
fortes laços que uniram escritores e pintores, como os amigos Reyes e Lozano. Um dos
efeitos dessa amizade foi a parceria no trabalho, que vemos, por exemplo, na publicação
da primeira edição de ―El testemonio‖.
Outro elo que uniu os dois amigos foi a presença marcante de Antonieta Rivas
Mercado (1900-1931)47, que aparece na ―rede social‖ de Lozano como um de seus
amores. Mecenas do grupo ―Os Contemporâneos‖, Antonieta viveu a luta e as
transformações da Revolução mexicana. Como artista, sua produção mais significativa
foram As cartas de amor a Manuel Rodríguez Lozano e alguns de seus escritos foram
publicados em Ulises criollo y El Preconsulado, de José Vasconcelos.
Personagem emblemático da vida cultural mexicana durante as três primeiras
décadas do século XX, Antonieta é dona de uma biografia apaixonante e com fim
trágico (se suicidou com um tiro na catedral de Notre Dame).
No dia 4 de março, do Brasil, Reyes escreve em seu Diário:
47
Cf.: Luna, s/d.
137
Alfonso Reyes, Antonieta Rivas Mercado e Manuel Rodriguez Lozano
Fotos de Francisco Kochen
Essa rede de artistas que movimentou o cenário cultural Mexicano nas primeiras
décadas do século XX é uma mostra de como vida e arte estão imbricadas.
No Brasil, podemos pensar nos grupos que se formaram nos anos 1920 e 1930,
como os Modernistas, a turma de Oswald e Mário de Andrade, e os que receberam um
lugar menos central na história de nossa cultura, por não terem sido considerados
vanguarda pela crítica de então, como foi o caso dos intelectuais da Revista Festa (cf.:
Gomes, 2011), no Rio de Janeiro, ao qual Cecília esteve vinculada e à corrente
popularmente conhecida como ―espiritualistas‖.
138
―El testimonio...‖ começa com uma pequena nota explicativa de Reyes: ―Quis
recolher neste relato o sabor de uma experiência que interessa aos do meu tempo, antes
que minhas lembranças se confundam‖. Já temos assim o tipo de terreno no qual irá se
construir o texto: um relato baseado em experiência e lembranças que o autor pensa ser
de interesse ―aos homens de seu tempo‖. Compartilhando assim com Drummond o
desejo de, ainda que se referindo ao passado, fazer do tempo presente a sua matéria,
como mostra o verso que encerra o ―mãos dadas‖, citado anteriormente: ―O tempo é a
minha matéria, o tempo presente, os homens presentes, a vida presente.‖
Em seu ―Comentário‖, publicado no Diário de Notícias, Cecília descreve assim
sua leitura de ―El testemonio...‖:
48
Rilke, 1983.
139
explícita ao citar elementos do poema ―Canção de amor‖49. Quando finalmente se volta
para o texto de Reyes, diz: ―Entre a testemunha e o juiz palpita o mistério da vida,
exatamente como naquele verso lindo em que o poeta pensava no mundo imprevisto que
paira entre o violino e o arco‖.
Entre os aspectos citados por Cecília como parte de uma moderna concepção de
literatura, na qual segundo ela Alfonso Reyes se insere, estão: o desejo do artista de
viver a vida com transcendência, o fazer das recordações da infância e da juventude
motivos constantes na realização da obra literária, e, como comentamos anteriormente,
o caráter reflexivo e de autoquestionamento como marcas da literatura na modernidade.
Vejamos nas palavras da poeta:
Os artistas que, como Cecília e Reyes, tinham o gosto por uma narrativa
introspectiva e defendiam a construção de uma vida e de uma obra como uma aventura
do espírito, foram durante muito tempo rotulados, como no caso-ícone de Mallarmé, de
escritores herméticos. Cecília se refere a esses escritores de ―outra estirpe‖, como os que
―Escrevem como em outra língua (...) por uma fatalidade, como a de falar e a de ouvir.
(...) Há quem os ache desencontrados, incompletos, estranhos, loucos‖.
49
―Pois o que nos toca, a ti e a mim,/ isso nos une, como um arco de violino/ que de duas cordas solta
uma só nota./ A que instrumento estamos atados?/ E que violinista nos tem em suas mãos?‖
140
Esse mergulho profundo numa tentativa radical de exploração da linguagem, ao
ponto de ―escrever como em outra língua‖, não é marca presente da obra de Reyes, o
que nos faz pensar num exagero provocado pela admiração de Cecília ao seu mestre, ou
mesmo entender como uma opinião mais abrangente do que seria para ela um escritor
moderno, já que neste início do texto ainda não havia se detido propriamente em
comentar o relato de Alfonso Reyes: ―Os escritores modernos pesam suas lembranças,
graduam-nas, interpretam-nas, vivem dentro dos descobrimentos que realizam na sua
silenciosa vida interior, trocando a mentira da realidade pela autenticidade do sonho‖.
Poderíamos ainda associar essa ―aventura do espírito‖, no caso específico de
Reyes em ―El testimonio...‖, ao manejo do autor com suas lembranças, mescla de
sonho, memória e devaneio, seu ―cinematógrafo interior‖: ―por el campo de mi
cinematógrafo interior, veo pasar a una pobre india descalza, trotando por un camino
polvoso, con ese trotecito paciente que es un lugar común de la sociología mexicana,
liadas las piernas en el refajo de colorines, y el fardo infantil a la espalda, de donde
sobresale una cabecita redonda‖.
Em ―Poesia e pensamento abstrato‖, célebre ensaio de Paul Valéry, apresentado
em 1939 em uma conferência na Universidade de Oxford, lemos a relação que o poeta e
crítico apresenta entre o universo poético e o universo dos sonhos, em que faz questão
de ressaltar sua distinção ao que chama de ―confusão que se formou a partir do
Romantismo, entre as noções de sonho e de poesia‖ (Valéry, 1991). Segundo ele, ―nem
o sonho, nem o devaneio são necessariamente poéticos. (...) Aprendemos com os sonhos
que nossa consciência pode ser invadida pela produção de uma existência (...) que
podemos representar como símbolos ou alegorias‖. Deste modo, a relação entre o
universo dos sonhos e o poético consiste em que aprendemos com os sonhos a
possibilidade que temos como seres humanos de produzir outras existências. A ficção é
então vista como parte constituinte da vida. Assim entendemos melhor quando Cecília
afirma que ―a vida é para os artistas de hoje, uma inspiração suprema‖.
Quando falamos de autobiografia, estamos falando sim de construção ficcional,
essas lembranças, esses ―descobrimentos introspectivos‖ são trabalhados a partir da
problemática do sujeito, desse sujeito que é ―pura atividade de imaginação‖, lembrando
as palavras de Vera Lins (2004).
141
142
III. A modernidade da estética de Cecília Meireles:
interculturalidades e convergências
143
1. Mais moderna que modernista
50
Cf.: Camargo, Luís. ―O ano em que Álvaro de Campos foi publicado no Brasil‖. Segundo o
pesquisador, os primeiros versos de Pessoa (Álvaro de Campos, trechos de ‗Ode triunfal‘) teriam sido
publicados no Brasil por Cecília Meireles, em sua tese O espírito Vitorioso, sem constar no entanto uma
referência bibliográfica ao poeta português. Disponível em:
www.fflch.usp.br/dlcv/posgraduacao/ecl/pdf/via01/via01_15.pdf. Para Edson Nery (Três poetas
brasileiros apaixonados por Pessoa), as referências de Cecília a Pessoa, em prefácio de Poetas novos de
Portugal está entre os primeiros textos críticos sobre Pessoa no Brasil.
144
Os poemas escolhidos por Cecília têm em comum esse conteúdo expressivo,
voltado para a construção de uma poesia reflexiva que aborda questões afins à própria
poética ceciliana: o universo dos sonhos, o marítimo, o mistério de existir. Enfim, uma
poesia de pensamento, que valoriza a qualidade humana da imaginação e faz da morte
um tema em que está presente a renovação da vida. Esses temas são parte dos poemas
de Fernando Pessoa que integram a antologia, como o que aqui destacamos na epígrafe,
em que o verso ―Seja a morte de mim em que revivo‖ traz justamente a ideia de morte
como renovação.
Há outro verso de Pessoa, já mencionado anteriormente, do poema ―Ela canta
pobre ceifeira‖, não incluído na antologia Poetas Novos de Portugal, mas citado por
Cecília em seu prefácio, que poderíamos considerar como ícone dessa poesia reflexiva:
―O que em mim sente está pensando‖. Verso-síntese dessa vertente poética, tão próxima
ao pensamento dos primeiros românticos alemães e que remete ao universo dos sonhos,
do inconsciente, a uma estética da morte; enfim, traduz a busca humana em direção ao
insondável mistério do existir.
A maioria dos poemas de Pessoa escolhidos por Cecília tiveram suas primeiras
edições em revistas, como Presença e Athena. Cecília destacou a produção dos poetas
da geração de Orpheu e ressaltou em seu texto de abertura a importância de Pessoa para
a poesia em língua portuguesa: ―Fernando Pessoa é o caso mais extraordinário das letras
portuguesas‖. A poeta, que vê em Mensagem ―senão um volumezinho (...) que menos
caracteriza o autor‖, argumenta que é Pessoa quem estabelece a ligação entre duas das
mais importantes revistas de literatura das primeiras décadas do século XX para a
poesia portuguesa, ―o movimento de Orpheu, que data de 1915, e o de Presença que
começa em 1927‖.
Entre os poemas de Fernando Pessoa escolhidos por Cecília, está ―Canção‖,
(Presença, 1936, musicado por F. Lopes Graça, originalmente datado de 1934). Título e
tema tão recorrentes na poética de Cecília, apresenta a temática das ruínas, o poeta
como visionário, o ser que vê ―tudo estranho‖, o que revela uma nova perspectiva da
língua e põe em relevo a dimensão do sonho e da ilusão:
145
Minha vida é escombros
A minha alma insonte.
O poeta vê, mas ―vê tudo estranho‖, seu olhar não tem por meta a descrição da
realidade, ele propõe o transporte do leitor para o universo dos sonhos, da invenção: é a
afirmação do lugar da linguagem como pensamento, mas um tipo de pensamento
peculiar, criado desde a perspectiva da emoção, do sentimento.
Escrevendo sobre a poesia do amigo Mário Faustino, Benedito Nunes nos fala da
―poesia como linguagem menos discursiva possível, que apresenta em vez de
representar o objeto‖. Desse modo, a poesia constitui ―uma forma da experiência e do
conhecimento da realidade‖ (―A poesia do meu amigo Mario‖ In.: Faustino, 2002, p.
50).
Mário Faustino foi contemporâneo de Cecília e os diálogos com sua poética
podem ser vistos em poemas homônimos aos dela, como ―1º motivo da rosa‖ e ―2º
motivo da rosa‖, publicados em O homem e sua hora e outros poemas. Uma das
contribuições mais significativas de Faustino à poesia no Brasil foi seu trabalho a frente
do Suplemento dominical do JB nos anos 50, onde mantinha a seção ―poetas novos‖ em
que publicava versos de poetas que estavam começando juntamente com uma resenha
crítica. Faustino escreveu, entre outros, sobre Whitman, Poe e Baudelaire. Do ponto de
vista de Cecília, poderíamos considerá-lo como um ―poeta novo‖, já que sempre se
mostrou interessado em pensar o fazer poético.
A argumentação de Cecília em defesa de sua seleção, que exclui o ícone do
Modernismo português, Eugênio de Castro, ―cujas proporções na literatura de Portugal
146
se fizeram revolucionárias noutro sentido (...) mais quanto ao valor plástico, que a
substância e a intenção‖ (Meireles, 1944, p. 20), nos leva à própria linguagem poética
de Cecília, em sua eleição por uma poesia reflexiva, voltada para pensar ―os
sentimentos, o mundo e a humanidade‖. O que temos, assim, a partir da distinção que
Cecília faz entre ―novos‖ e ―contemporâneos‖, é a filiação da poeta a uma concepção de
modernidade como potência de experimentação da linguagem para pensar o humano,
que ultrapassa a tendência conservadora do que se convencionou pensar como moderno.
Mesmo não tendo desenvolvido uma reflexão teórica paralela a sua obra poética,
sobretudo se pensarmos em poetas como Baudelaire, Paul Valéry, ou, no cenário
brasileiro, em João Cabral de Melo Neto ou Haroldo e Augusto de Campos, o que
percebemos no caso de Cecília é que a investida na experimentação da linguagem e sua
reflexão crítica estão presentes em sua própria linguagem poética, em seus diálogos com
a tradição oral e em seus escritos epistolares, que algumas vezes serviram de fonte de
reflexão para suas criações poéticas, conforme vimos no caso de o Romanceiro da
Inconfidência, no corpus de cartas à amiga Isabel do Prado.
Para Cecília, o novo está, portanto aquém e além da novidade, o trabalho com a
linguagem estaria assim ligado à potência de reflexão que ele provoca no leitor. Uma
lírica que dialoga com a Modernidade baudelariana em sua relação com a antiguidade51,
com o simbolismo e com o modernismo hispano-americano, que tem no poeta Ruben
Darío um de seus principais representantes. Azul, obra precursora do modernismo na
América Latina apresenta afinidades com a poesia de Cecília, por exemplo, por seu
diálogo com a tradição e com o Oriente. O livro é constituído por poemas em prosa,
contos e poemas metrificados. As afinidades com a poética de Cecília podem ser lidas
nas elegias, na presença de temas recorrentes na obra da poeta, como o mar, a noite, a
rosa, e na interculturalidade. Darío escreve contos sobre diferentes geografias como
Paris, Grécia, China, Itália e Rússia. Há ainda o forte vínculo com a tradição, presente
em contos como ―El velo de la reina Mab‖ e nos sonetos em homenagens a escritores
como Leconte de Lisle, Walt Whitman e ao poeta mexicano Salvado Diaz Miron (1853-
1928):
51
―Entre todas as relações que a modernidade possa ter, a relação com a antiguidade é a melhor.
Baudelaire encontra esta ideia apresentada em Victor Hugo.‖ (Cf.: Benjamin, 2000.)
147
Tu idea tiene cráteres y vierte lavas;
del Arte recorriendo montes y llanos,
van tus rudas estrofas jamás esclavas,
como un tropel de búfalos americanos
(Darío, ―Salvado Diaz Miron‖)
2. Cecília e o simbolismo
148
poema se conecta ao estudo de Jacques Rancière sobre a poesia de Mallarmé, La
politique de la Sirene, em que ele afirma ―A poesia é meditação, dúvida que se
transforma em hipérbole‖ (Rancière, 1996, p. 47). Remete à poesia como lugar de
reflexão, de não resposta, mas de onde reverberam as perguntas. O poema apresenta o
universo noturno, sombrio. Fala do transitório, do etéreo, de um grande desalento:
Eu já nasci desiludida,
De alma votada ao sofrimento
E com renúncias de suicida...
149
De quem nasceu para o holocausto!
Esse seu estupor não é apenas seu: é de todos nós. Mesmo quem esteve
longe ficou assim meio idiotizado, com êsse espetáculo do mundo – como
não havia de ficar V., que esteve tão dentro, de todas essas pavorosas
coisas? Mas isso passará. Decerto haverá uma recordação em todos nós,
envelhecendo-nos e entristecendo-nos. Mas tudo, na vida, não deixa dêsses
resíduos? Espero que Londres restituirá lembranças mais claras e felizes.
Quando discutiremos outra vez as razões da vida e os caminhos do
pensamento? – E que pena me dá pensar na Nídia, com aquela sua faísca
mórbida, nas horas amigas de antigamente! Enfim, Isabel, é mesmo como
eu lhe dizia – não vê? – tudo está certo. Tão certo, tão terrivelmente certo,
que até a incerteza é exata (carta 5, de 15 de agosto de 1946).
150
O ―tudo está certo‖ surge novamente na correspondência de quatro de março de
1947. Um dos assuntos desta longa carta é um novo comentário a respeito do caráter
duvidoso de ―Paulo‖. Possivelmente Cecília está se referindo a Paulo Freire a quem
compara com o também educador Anísio Teixeira. Em carta anterior, ela havia
desaconselhado Isabel a trabalhar com Paulo, pois apesar de ser ―tão simpático como
pessoa‖, se metia em situações políticas complicadas, ―que poderiam resultar em sérios
contratempos‖ (carta 6, de 5 de novembro de 1946).
O Anísio é outra coisa, naturalmente. Há muitos anos que o não vejo, e não
sei como andará, mas parece-me uma criatura mais positiva, mais clara,
mais segura. Pode ser, porém, que eu esteja enganada. E não é que eu goste
tanto das pessoas claras, seguras e positivas. Mas dentro de uma situação,
creio que a pessoa deve andar em correspondência. Se o Paulo fosse apenas
um poeta (apenas!) isto é, um ser para quem a justa pátria é o sonho, a
adivinhação, um homem que gosta de tomar atitudes patrióticas,
humanitárias, filantrópicas, etc., corre o perigo de, quando se vai procurar
pela salvação anunciada, não se encontrar o salvador... Mas, minha cara
Isabel, eu continuo a crer que tudo está certo. CERTÍSSIMO. Andamos,
desandamos, e acabamos direitinho onde temos de acabar (carta 8, de 4 de
março de 1947).
Isabel: V. bem vê que eu só posso pensar como o Candide que tudo está
certo: absolutamente certo (carta 28, de 16 de fevereiro de 1948).
151
Trata-se, sem dúvida, da leitura que ela fez de Cândido, ou O otimismo (1759),
de Voltaire. A informação torna a ideia de Cecília mais irônica e menos fatalista do que
até então parecia.
Cândido é uma das obras mais conhecidas do filósofo iluminista Voltaire, e é
uma sátira às ideias otimistas de Leibniz. Neste romance encontramos a famosa frase de
que ―devemos cultivar nosso jardim‖. Após ouvir sobre o perigo das grandezas, que
todos os acontecimentos estavam encadeados no melhor dos mundos possíveis, e que
todo sofrimento pelo qual passara transformara-se em benefícios, Cândido responde:
―Tudo isso está bem dito... mas devemos cultivar nosso jardim‖. O livro de Voltaire é
também uma crítica à crença em Deus e a defesa por uma fé no Universo. Essa defesa,
pela fé no fluxo da vida, no Cosmos, também encontramos na poética de Cecília.
Mircea Eliade escreveu sobre a imagem de si mesmo formada pelo homem das
sociedades arcaicas e sobre o lugar que ele assume no Cosmos em contraponto ao
homem das sociedades modernas. O primeiro sentia-se indissoluvelmente vinculado
com o Cosmo e com os ritmos cósmicos, enquanto o segundo insiste em apenas
vincular-se à História. Ele explica, contudo, que a História a que os homens das
civilizações tradicionais se vinculavam era uma história sagrada, preservada e
transmitida pelos mitos (Eliade, 1992, p. 8).
Essa vinculação a uma divindade que não é necessariamente Deus nos serve de
um bom ponto de partida para refletirmos sobre a questão da religiosidade na poesia de
Cecília Meireles. Muitas vezes vinculada a uma dita corrente espiritualista, ou católica,
sua poesia parece estar mais próxima dessa meditação, de que falou Rancière, e dessa
ligação ao ritmo cósmico, conforme observou Mircea Eliade em relação às sociedades
arcaicas.
Rancière, também em seu estudo sobre a poesia de Mallarmé, fala sobre uma
poética do mistério. Para ele, ―a poesia é a expressão da linguagem humana que
sintetiza o ritmo essencial do sentido misterioso dos aspectos da existência‖ (Rancière,
1996, p.28). Ele identifica na poesia de Mallarmé duas dimensões, ―séjour‖ et
―existence‖, que poderíamos traduzir por ―passagem‖ e ―existência‖, e pensarmos nas
duas instâncias as quais a poética de Cecília se refere: instante e eternidade.
152
O mistério que, contudo, ―não tem nada de misterioso‖, seria, segundo Rancière,
justamente o ato de reordenamento dessas duas dimensões (―séjour‖ e ―existence‖), uma
apresentação da simultaneidade delas. Assim elabora o filósofo francês sua reflexão
sobre uma poética do mistério:
52
Ce mystère n‘a rien de mystérieux. Il est précisément l‘acte de ce réordonnancèrent. L‘idée assimilé
des aspects – des éléments épars – pour en faire des points de vue d‘un monde autre – présent-absent dans
le spectacle ordinaire – des virtualités de correspondance entre les gestes de l‘homme et les formes de son
séjour.
153
documento do instante, dessa estadia, da vida que é vivência, mas que de alguma forma
está comprometida em perdurar. Esse compromisso está na escrita das cartas,
―documentos literários‖, e na transmissão da experiência dessa simultaneidade cuja
potência se estabelece no realce que a poeta dá a produção da fantasia, onde
encontramos a ficção como possibilidade de conhecimento, como mostram os versos:
154
Vera Lins diz que na autonomia da arte que os simbolistas defendiam estava sua
política ―ligada à separação radical do mundo da mercadoria‖, e argumenta que ―o
simbolismo é uma corrente melancólica, ‗spleenética‘, baudelariana, que aponta a perda
que a modernidade provoca‖ (Lins, 2007). A autora chama a atenção também para a
confusão que há na historiografia da literatura brasileira entre parnasianismo e
simbolismo, em análises que levam em conta apenas a coexistência temporal, o que,
segundo ela, ―implica uma desconsideração dos leitores de Mallarmé‖ (idem).
O simbolismo foi não uma continuidade, mas uma reação ao parnasianismo. E a
poesia de Mallarmé é referência desse movimento literário, juntamente com o artigo-
manifesto de Jean Moréas publicado no Suplemente Literário de Le Fígaro, em 18
setembro de 1886, um dos principais marcos do início do movimento simbolista.
No verbete ―Simbolismo‖, do Diccionario Literario de obras y sus personajes
de todos los tiempos y paises, Giuseppe Gabetti apresenta o surgimento do Simbolismo
e suas relações com o Parnasianismo, e com a poesia de Mallarmé, como lemos a
seguir:
155
futuros simbolistas formavam então parte do movimento sem diferenciarem-
se. Só em 1885, Jean Moréas no artigo de ―XIX siécle‖ de 11 de agosto,
mudou os términos da questão afirmando que a nota essencial da nova
poesia havia que ―buscar-se tanto no tom decadente como em seu caráter
simbólico‖ (Idem, p. 500).
156
A pálida cabeça, gotejante
De sangue, que num prato reluzente
157
a análise de Siscar, a personagem Herodíade é apresentada por Mallarmé como a
própria beleza, ―ou seja, como figura que coloca em jogo a invenção daquilo que é
apresentado como uma ‗poética muito nova‘, relacionada com a famosa ‗crise de
versos‘, ou seja, com um certo modo de conceber a inserção da poesia na história‖
(Siscar, 2010).
Já a cena do poema de Cecília inicia com Manaém saindo do ergástulo, na Roma
antiga, a prisão onde se confinavam os escravos. Nas mãos, levava a cabeça de João
Batista, ―gotejante‖.
A imagem da cabeça separada do corpo, ícone dessa cena bíblica, de forte tom
dramático, também é explorada por Mallarmé, que cria, no meio de seu longo poema,
um grupo de versos que consiste basicamente em um monólogo de São João Batista, no
momento em que sua cabeça é cortada pela foice, e alça voo:
158
Há trechos do poema de Cecília que parecem dialogar com esse trecho, como o
verso ―passa o prato em silêncio‖, e a estrofe final com o jogo de imagens, Manaém (e o
leitor) veem nos olhos ―proféticos‖ de João, a cabeça decapitada, o movimento manso
das marginais paisagens do Mar Morto, ―Por onde escorre, plácido, o Jordão‖. A
―solitária cabeça‖ de Mallarmé de algum modo se conecta a essas marginais paisagens
apresentadas no poema de Cecília.
Em sua análise, Marcos Siscar se detém justamente neste fragmento para
defender a ideia de que a decapitação convive com uma ideia possível de salvação, o
que seria, segundo o crítico, um aspecto de um certo tipo de inscrição da poesia na
Modernidade. Por esse aspecto poderíamos pensar em conexões entre as poéticas de
Cecília e Mallarmé. Siscar chama a atenção para a dimensão crítica presente na poesia
de Mallarmé e da relação dos poetas simbolistas com o real:
159
oposição a uma poesia naturalista e mercadológica, e ainda o trabalho recorrente com
determinados símbolos, como o mar (p. ex.: Mar absoluto), a rosa (motivos da rosa), o
espelho, a noite, desenhos e retratos.
Um ponto interessante é como Cecília trabalha também os símbolos no conteúdo
dos poemas, como os muitos epigramas e epitáfios que compõem sua poética e que
podem ser lidos como símbolos da morte. Os poemas dos primeiros livros, Espectros e
Nunca mais e Poemas dos poemas são os que estão mais conectados à estética
simbolista.
Em 1929, Cecília escreveu sobre o Simbolismo, na tese apresentada ao concurso
da cadeira de Literatura da Escola Normal do Distrito Federal. O espírito vitorioso versa
sobre a liberdade individual na sociedade, e o simbolismo é apresentado como uma
linguagem de renovação.
Esse texto é lembrado mais pelos especialistas na área de educação do que pelos
de letras, pois nele encontramos dois importantes artigos de Cecília sobre Educação: ―A
escola Moderna‖ e ―A formação do professor‖, que apresentam convicções inovadoras
da poeta em relação à Educação.
Mas as ideias progressistas de Cecília não foram bem vista pela banca
examinadora.
Assim como o episódio da premiação de Viagem, que aconteceria dez anos
depois, a apuração do concurso para a Escola Normal resultou em polêmica. A banca
formada por Alceu Amoroso Lima, Antenor Nascentes, Coelho Neto e Nestor Vitor deu
53
Real Gabinete Português de Leitura. Livro doado por Isabel em 6 de janeiro de 1983.
160
o segundo lugar a Cecília, atribuindo o primeiro lugar a Clóvis do Rego, o que acabou
gerando um intenso debate na imprensa da época. As ideias inovadoras de Cecília para a
educação não agradaram, sobretudo ao católico Alceu Amoroso Lima, que dois anos
depois partiu contra os integrantes do movimento da Escola Nova, principalmente
Anísio Teixeira, chamando-os de comunistas (cf.: Gouvêa, 2007, p. 219, no ensaio ―A
combatente: educação e jornalismo‖, de Valéria Lâmego).
Nestor Vitor, um dos principais divulgadores do simbolismo no Brasil, o
primeiro a editar os poemas de Cruz e Souza, criticou o impressionismo do texto de
Cecília, considerando-o uma ―Obra de poeta‖. Contudo, foi justamente a impulsividade
da autora que o crítico avaliou como sendo uma virtude, e reconheceu o mérito de
Cecília em ter apresentado um estudo minucioso da literatura vernácula:
O crítico considerou o trabalho como um ―poema em prosa‖, uma obra vinda por
inspiração: ―é bonito e não depõe contra o talento da candidata, antes o confirma‖. Uma
das críticas que faz à análise de Cecília sobre o simbolismo é a visão universalista que a
autora apresenta desse movimento. A perspectiva excessivamente entusiasta da poeta
pode ser conferida em trechos como este:
161
acentuadas, e aquilo que poderia chamar o sentido do deslumbramento, não sei que
pasmo diante das coisas‖ (La Litterature, p.99). Vitor diz que tais características cabem
a O espírito Vitorioso, considerando a própria tese um reflexo da estética simbolista,
mas que a linguagem do simbolismo não ficaria ao alcance das multidões e multidões a
que eles queriam dirigir-se, pois que:
não é dado a todos ver as dependências causais que ligam nele umas coisas
as outras, porque o livro é feito de princípio a fim como que sob o impulso
de um arrebatamento, é obra para ser apreendida apenas por aqueles que
antes de tudo se podem colocar no plano sentimental em que ela foi feita e
têm olhos capazes de dispensar uma acentuação muito viva das
dependências referidas (p. 317).
No entanto, o elogio do crítico, pela sensibilidade com que o texto de Cecília foi
realizado, é o que revela também a fragilidade de seu conteúdo teórico. Um exemplo é a
ideia de que o simbolismo é uma linguagem ―dirigida a multidões‖. Sob forte
arrebatamento, que não condiz com a realidade do que foi o simbolismo, a
argumentação mostra o lado idealista e sonhador da poeta, como o foi também de Cruz
e Souza, um dos escritores mais representativos do Simbolismo no Brasil.
Na Capilla Alfonsina encontrei um desenho que Cecília fez especialmente para
Alfonso Reyes. Inspirada no poema ―Caminho da Glória‖, de Cruz e Souza, o desenho
em nanquim traz cinco faces de uma figura feminina, vestida de negro e com uma
auréola sobre a cabeça, mostrando faces ora suave, ora trágica e dolorida, e o pescoço se
alongando em uma perspectiva crescente, na diagonal típica do Barroco. Destaco aqui
duas estrofes do soneto de Cruz e Souza, publicado postumamente em Últimos sonetos
(1905):
162
É por aqui que passam meditando,
Que cruzam, descem, trêmulos, sonhando,
Neste celeste, límpido caminho.
163
Cruz e Souza ficará sendo, inestimavelmente, o iniciador do simbolismo
entre nós, o que equivale a dizer que, no momento em que o romantismo
tentava resolver a sua incógnita pelos caminhos de regresso do
parnasianismo, ou pelas infecundas estradas do cientificismo, ele foi o que
sentiu a suprema beleza das formas espiritualizadas, e ascendeu aos
segredos invioláveis, de que todos os poetas se afligiram inutilmente, por
essa dolorosa, mas luminosa ascensão da intuição mística (Meireles, 1929,
p.106-7).
164
João Alexandre Barbosa em ―O simbolismo brasileiro‖, prefácio à terceira
edição de O panorama do movimento simbolista, de Andrade Muricy, desenvolve uma
reflexão sobre as dificuldades que tiveram os poetas simbolistas ante a crítica de sua
época. Segundo sua análise,
165
na poética de Baudelaire, cujo poema ―Correspondências‖ é um dos mais
representativos dessa ―teoria‖. Vejamos o poema:
54
Correspondances
La nature est un temple où de vivants piliers
Laissent parfois sortir de confuses paroles;
L´homme y passe à travers des forêts de symboles
Qui l´observent avec des regards familiers.
166
Lembro que um dos problemas que apresento nesta tese é pensarmos as
correspondências de Cecília como espaço autobiográfico de exercício de construção
ficcional e diálogos interculturais, o que teria contribuído para uma dicção singular da
poeta, posicionando-a em um lugar excêntrico em relação aos seus contemporâneos
modernistas. Diferente da concepção baudelariana, a ligação de Cecília ao Cosmo
passava pela busca de si e pelo encontro com o outro, na linguagem, ou seja no
exercício da linguagem. A hipótese que aqui apresento é a de que, tomando o sentido
espiritual na poética de Cecília por esse reordenamento entre instante e eternidade, o
trabalho com os símbolos remete mais a uma comunhão com a humanidade do que a
uma referência a um mundo outro. O horizonte que surge a partir deste ponto do estudo
é justamente a possibilidade de pensarmos uma teoria das correspondências na poética
de Cecília Meireles, onde cartas, poemas, desenhos, retratos estariam relacionados na
construção de uma busca de si, empreendida a partir de e pelo intercâmbio entre as
linguagens verbal e plástica.
167
Talvez o calibre dessa ―medida‖ se situe justamente entre o vivido e o
imaginado, tendo na memória o locus da mistura íntima entre essas duas dimensões.
Assim, o poema apresenta em especial o desafio de se lidar com a linguagem humana
em sua significação infinita e enaltece o pensamento lírico, a ficção, como contribuinte
vital e indispensável à produção do conhecimento.
A estrofe inicial da primeira parte condensa ideias fundamentais no poema. Nela
estão presentes três metáforas que apresentam os diálogos primordiais da poeta: com a
tradição, com a modernidade e com o leitor. Vejamos:
168
Cessai de cogitar, o abismo não sondeis.
Gemebundo arrulhar dos sonhos não sonhados,
Que toda a noite errais, doces almas penando,
E as asas lacerais na aresta dos telhados,
E no vento expirais em um queixume brando,
Adormecei. Não suspireis. Não respireis.
Lemos nesta, que é a última estrofe de Clepsidra (1920), a ponte que Cecília cria
com o autor pela metáfora recorrente da água como fluir do tempo, e também pela
concepção do poema como experiência estética, nítida sobretudo nos versos que
encerram ―Medida da significação‖:
olhando para esta água interminável e muda, que não floriu, que não
palpitou, que não produziu, de tanto ser puramente imortal...
169
comerciante (universal, viagem, deslocamento). A poética de Cecília Meireles à
primeira vista se aproxima desse narrador ―marinheiro‖ num movimento de amplitude e
ruptura com o ufanismo nacionalista que imperava na poesia brasileira, estimulado
sobretudo pelo Modernismo de 1922. Porém, a escolha pelo diálogo com a tradição da
poesia lusitana e hispano-americana, e ainda a atenção que ela deu ao folclore e à
religião afro-brasileira (praticamente ignorada pela crítica que a manteve distante do
cânone Modernista), podem ser associadas ao narrador ―camponês‖ concebido pelo
filósofo alemão.
Tema poético por excelência na obra da autora, o mar, em ―Medida da
significação‖, surge como espelho (―Procurei minha forma entre os aspectos das
ondas‖), expondo mais uma afinidade entre Cecília e a poesia portuguesa, nesse caso
com a amiga Natércia Freire, cujo poema ―No mar‖, de Rio infindável (1947) apresenta
o movimento de leitura que os poetas mantêm entre si:
170
(olhos, espelho e luz), que, no poema, amplificam o sentido de ―reflexão‖, enaltecendo
o potencial da obra literária como contributo à produção de conhecimento.
Desse modo, o poema se coloca sobretudo como lugar de encontro com o outro,
no processo de apresentar o sentido infinito da linguagem humana, como mostram os
versos construídos com o tão típico gerúndio camoniano:
Vista como um discurso que quer significar outro e tendo por ―procedimento
construtivo‖ a ―metáfora continuada‖ (Hansen, 2006, p. 7), pela impossibilidade da
palavra se aproximar da completude da palavra divina, a alegoria teve no período do
Barroco um caráter acentuadamente teológico.
Tomando a alegoria como procedimento de reflexão crítica, Benjamin mostra
como na modernidade de Baudelaire a incessante busca pelo novo é alvo da crítica do
poeta pelas diversas construções com as quais ele apresenta o poeta na sociedade de
mercado (dândi, flâneur, conspirador, trapeiro etc.).
Segundo Costa Lima, o ―tratamento alegórico facilita a entrada em cena do
leitor, que, com seus valores e expectativas socialmente condicionadas, empresta ao
texto uma pluralidade de significações, com base na própria estratégia de composição
do texto‖ (Costa Lima, 1981, p. 76).
Por um lado, Cecília parece se aproveitar dessa qualidade plural da alegoria e
também do sentido crítico conforme a orientação benjaminiana, já que o poema escapa
de uma visão utilitária da linguagem. Mas a tensão que Cecília mantém com o leitor ao
171
longo do poema, observemos novamente os versos ―Não precisaremos falar mais nem
sentir:/seremos só de afinidades: morrerão as alegorias‖, parece apontar para além do
que pensou Benjamin tanto em sua visão messiânica da linguagem, quanto na alegoria-
crítica que surge na poética de Baudelaire pelas várias facetas do poeta. Afinal, na ponte
que Cecília busca estabelecer com seu ―leitor-implícito‖55 ela propõe a morte das
alegorias.
O caráter teológico, que perpassa a questão da alegoria, parece ter prejudicado
em muito a compreensão da poesia de Cecília que por ter colaborado nas revistas
Árvore Nova, Terra de Sol e Festa (entre 1919 e 1927), acabou sendo vinculada à
corrente ―espiritualista‖ do Modernismo. É fato que se pode ler na produção inicial da
autora (poemas de Baladas para El-Rei, escritos em 1921 e publicados em 1925)
marcas da religião católica e da apropriação que esta fez do pensamento platônico.
Contudo o caráter divino que percorre a poesia de Cecília passa rapidamente dessa
tendência dogmática para a ideia de que é na arte que encontramos a resposta
satisfatória à ilusão que necessitamos na tentativa (vã) de driblar a morte.
Em ―Deus dança‖, de Vaga música (1942), vemos nessa mudança de prisma, a
marca nietzschiana e a dor que decorre do deslocamento do conforto de se ter Deus
como fim: ―Eu o vi dançando, ardente e mudo, [...] Eu o vi dançando, e fiquei triste‖.
Soma-se a isso a postura combativa de Cecília em relação ao decreto que instituía o
ensino religioso nas escolas públicas, em sua ―Página da Educação‖, no Diário de
Notícias do Rio de Janeiro (1930-33) (cf.: Moraes, José Damiro de, 2007). E ainda de
seu interesse pela religião afro-brasileira expresso nos desenhos que criou em Batuque,
samba e Macumba Estudos de gesto e de ritmo, 1926-1934, cuja primeira edição foi
promovida pela Secretaria da Cultura do antigo Ministério da Educação e Cultura
(MEC). O livro foi reeditado pelo Instituto Nacional do Folclore (Funarte), em 1983. A
55
Cf.: Wolfgang, Iser, 1999, p. 73: ―[...] o leitor implícito não tem existência real; pois ele materializa o
conjunto das preorientações que um texto ficcional oferece, como condições de recepção, a seus leitores
possíveis. Em consequência, o leitor implícito não se funda em um substrato empírico, mas sim na
estrutura do texto. Se daí inferimos que os textos só adquirem sua realidade ao serem lidos, isso significa
que as condições de atualização do texto se inscrevem na própria construção do texto, que permitem
constituir o sentido do texto na consciência receptiva do leitor. A concepção do leitor implícito designa
então uma estrutura do texto que antecipa a presença do receptor.‖
172
publicação apresenta dois aspectos pouco comentados da obra de Cecília, seu trabalho
de folclorista e seu talento como desenhista.
Essas atividades acima mencionadas mostram a amplitude da produção de
Cecília e a inviabilidade de rotulá-la como ―platônica‖ ou ―católica‖.
Talvez a aproximação maior entre o poema e o conceito de alegoria, segundo
Benjamin, esteja ainda no modo como a poeta trabalha sua subjetividade no exercício da
escrita, ao expor a presença de uma ausência.
Ao longo de sua vida, Cecília manteve fortes laços com Portugal. Foi casada
com o artista plástico português Fernando Correia Dias, com quem teve três filhas; entre
as décadas de 1930 e 40 proferiu diversas conferências em Lisboa e Coimbra; publicou
livros e inúmeros ensaios em revistas portuguesas e organizou, em 1944, a antologia
Poetas Novos de Portugal, como vimos anteriormente.
Por sua personalidade de escritora profundamente engajada à vida e tendo por
desafio a tarefa permanente de ampliar os limites do sensível, a poeta cultivou com
afinco as amizades que criou. Entre os intelectuais portugueses com quem manteve
correspondência estão: David Mourão-Ferreira, Natércia Freire, Maria Valupi, Adolfo
Casais Monteiro, João Gaspar Simões, e, nos Açores, Armando Cortes-Rodrigues,
Vitorino Nemésio e João Afonso.
Os laços entre sua poética e o épico são visíveis em poemas como Romanceiro
da Inconfidência, e não tão óbvios como no caso de ―Medida da significação‖.
A conexão com a poesia portuguesa no caso desse poema pode ser vista por
alguns aspectos como: a conexão com a poética do fingimento de Fernando Pessoa, que
surge não só pontualmente, ―(...) sobre fingidos caminhos‖, mas na proposta do poema
como um todo que apresenta a ficção como contributo para a produção do
conhecimento. E talvez seja aí onde encontramos o laço mais firme com a tradição
camoniana, na consciência de sua condição, daquele que ―veio contar‖. O traço
narrativo do poema é ainda outro elemento que o conectaria ao épico.
173
A discussão entre ―poesia pura‖ e poesia narrativa vem tomando o cenário dos
estudos da poesia moderna56. Para Dominique Combe, a exclusão da poesia narrativa é
também a condenação do épico (p.151).
Reunindo, portanto, esses três elementos: o humanismo (linguagem como ponte
para o outro), a narratividade e a tensão que se estabelece entre poeta e leitor,
poderíamos supor a aproximação entre o poema e o épico. Essa tensão, a escrita como
presença da ausência e a precariedade, que antes associamos às ruínas de Walter
Benjamin, podem ser pensadas também como afins à poesia camoniana.
Vejamos o que nos diz Jorge Fernandes da Silveira sobre a possibilidade de se
formular um equilíbrio na tensão:
56
Basta examinar a discussão apresentada por Alfonso Berardinelli em A prosa da poesia (Cosacnaify,
2007) em relação ao clássico de Hugo Friedrich, A estrutura da lírica moderna (Duas Cidades, 1978). E
também as ideias de Dominique Combe em Poésie et récit (José Corti, 1989). Une rhétorique des genres.
174
é tão do tamanho do tempo,
é tão edificado de silêncios
que, refletindo aqui,
permanece inefável (C.M).
175
IV. Cartas e poemas: autorretratos
La vida no es la que uno vivió, sino la que uno recuerda y cómo la recuerda
para contarla (Gabriel García Márquez. Vivir para contarla, epígrafe).
176
1. O leitor nas cartas e nos poemas
Partimos da ideia de que toda escrita é autobiográfica, como propôs Paul de Man, para
quem ―a autobiografia não é um gênero ou um modo, mas, uma figura de leitura ou
entendimento que ocorre, em algum grau, em todos os textos‖. Segundo De Man, o
momento autobiográfico acontece no alinhamento entre os dois sujeitos envolvidos no
processo de leitura, ―em que eles determinam um ao outro por substituição reflexiva
mútua. A estrutura implica diferenciação assim como similaridade, na medida em que
ambos dependem de um intercâmbio substitutivo que constitui o sujeito‖ (De Man,
1989).
No caso das correspondências há no entanto uma maior complexidade no
alinhamento dessas subjetividades, já que temos sempre presente o fantasma do
destinatário. Essa ausência, sempre presente, se conecta com uma ideia recorrente nos
estudos sobre a autobiografia: a que toma a prosopopeia como figura de linguagem
dominante desse tipo de escrita. É o que lemos nos estudos de Paul de Man,
―Autobiografia como desfiguração‖, e de Silvia Moloy, ―Acto de presencia. La escritura
autobiográfica en Hispanoamérica‖, no qual afirma: ―Así escribir sobre uno mismo seria
ese esfuerzo siempre renovado de dar vida a lo muerto dotando-lo de una máscara
textual‖ (Molloy, 1996).
Em um exercício de reflexão poderíamos relacionar esta afirmativa de Silvia
Molloy à epígrafe com a qual abrimos este capítulo. Para García Márquez, a vida é o
que recordamos, e como recordamos para contá-la. ―Dar vida ao morto, dotando-o de
uma máscara textual‖ seria então dar vida a própria vida pela elaboração textual. O
texto nasce da própria vida, que já é morte pois que é passado, mas que se torna vida
novamente pelo movimento de recordação e pela forma como é expressada. Assim, no
jogo de escrever sobre si mesmo, estariam em cena: recordação, ―máscara textual‖ e
prosopopeia.
No caso das cartas, a personificação da ausência ocorre duplamente, na
encenação do remetente e na presença da ausência do destinatário, com as quais ao
leitor é possível estabelecer, ou não, uma empatia. Desse modo, o que Silvia Molloy
177
chama de máscara textual está presente nas cartas e nos poemas, se considerarmos uma
abordagem desde um ponto de vista mais dinâmico, como o de uma escrita em
processo, um jogo de subjetividades. Geralmente o leitor das cartas está pensado como
interlocutor conhecido e o da obra literária como um leitor anônimo e potencial, o que
não impede que o escritor jogue com essas expectativas.
Cecília Meireles incrementou seu jogo de escrever sobre si ao trabalhar com
máscaras textuais de discursos distintos, poético e epistolográfico, e também por
convocar o leitor como partícipe de suas propostas especulares.
Há que ressaltar a questão de como a faculdade da memória está presente tanto
nas cartas quanto nos poemas, resultando na produção de imagens e de imagens de si,
autorretratos, conforme mostra o estudo de Silvina Rodrigues (―A poesia, memória
excessiva‖. In.: Literatura, defesa do atrito, 2003). Ao destacar essa relação entre
memória e produção de imagens, a crítica portuguesa provoca nossa reflexão sobre a
recorrência dos retratos, e a importância da apresentação de imagens na poesia e nas
cartas de Cecília Meireles.
São muitos os poemas nos quais o exercício do autorretrato, de um desenho de
si, está presente: ―Memória‖ (Vaga Música); ―Auto-retrato‖, ―Retrato obscuro‖ e
―Mulher ao espelho‖ (Mar absoluto); ―Desenho‖, ―Apresentação‖, ―Comentário do
estudante de desenho‖, ―Retrato de uma criança com uma flor na mão‖, ―Desenho leve‖
(Retrato natural); ―Desenho colorido‖ (Poemas escritos na Índia); ―Desenhos do
sonho‖ (Sonhos); ―Desenho‖ (O estudante empírico); ―Desenhos‖, ―Desenho sem
título‖, ―Biografia‖ e ―Personagem‖ (Dispersos), são alguns deles.
Já nas cartas, os autorretratos surgem a partir de duas perspectivas: histórica e
intimista. Em muitas das correspondências aos amigos, Cecília narra seus processos de
trabalho e fala sobre seu estado de espírito, como nesta missiva ao amigo português
Diogo de Macedo, escrita no Rio de Janeiro, em 1953, época em que a poeta viajou para
diversas partes do mundo. Ela conta suas impressões de Paris, Calcutá, Itália e Holanda
e expõe seu estado de ânimo:
178
de curta duração. Outra, a sobrenatural, pela escada de Jacó – mas não é
para mim. Depois, há as maneiras naturais e as artificiais. Espero que seja
pelas naturais, mas que não demore muito. Porque, Diogo, eu não sei até
onde vou ter paciência! Tudo em redor de mim é tão triste e tão mal, tão
impenetrável por doçura ou inteligência, tão escuro e tão torto... Não
entenderei jamais porque as criaturas não querem ser amadas... Porque se
fazem odiosas. E eu não me posso defender, porque, para isso, teria de
acusar.57
É ainda parte da história das cartas que o remetente narre um mesmo fato em
diferentes versões, dependendo do grau de intimidade que tenha com cada destinatário.
Encontramos esse tipo de ocorrência nas missivas de Cecília, como por exemplo nos
conjuntos de correspondências destinadas à amiga Isabel do Prado e a Gabriela Mistral.
A coincidência de datas, fez com que, por exemplo, Cecília contasse às duas sobre o
entusiasmo com a sua então recente inserção na dramaturgia. A Gabriela, dirige-se em
tom mais formal:
Pouco menos de um mês antes, Cecília havia escrito à Isabel, mas, desta vez, o
tom formal deu lugar a um intimismo e a uma descrição de si, como um autorretrato de
seu temperamento, construído a partir da reflexão sobre o temperamento da própria
destinatária:
57
Meireles, Cecília. A Diogo de Macedo. Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro, loc. 26, 3,126.
58
Cecília Meireles a Gabriela Mistral. Carta 17, de 7 de abril de 1947. Biblioteca Virtual da Universidade
do Chile. www.gabrielamistral.uchile.cl/
179
Sua carta traduz o otimismo que V. sempre teve, embora às vezes parecesse
não o entender bem. No íntimo, V. dispõe de uma espécie de alegria e de
capacidade de encantamento permanente, -- o que é fortuna rara, sobretudo
num tempo destes. Naturalmente, as coisas amargas passarão diante dos
seus olhos, como diante dos de toda gente: mas V. já está prevenida, e isso é
um grande bem e uma enorme força. E a conservação da sua liberdade, num
tempo de imensos cativeiros, é mais uma vantagem, para amortecer os
choques de tantos desequilíbrios que a vida impõe. Comigo tudo é diferente
porque já o meu temperamento é outro, as minhas responsabilidades
também pesam e agravam coisas que eu sei quase insignificantes. E o
ambiente, como V. vê, causa também muita complicação. Aqui, tudo quanto
posso fazer é isolar-me. Mas eu não sou um ser de isolamento por egoísmo.
É a forte necessidade que me obriga a isto. Solidão é outra coisa.59
A leitura das correspondências com Isabel e com Gabriela lança o leitor no jogo
de espelhos produzidos por Cecília. A linguagem da remetente que fala sobre
temperamentos, dá conselhos e conta seus sonhos e seus processos de criação à Isabel,
ganha outros contornos quando se corresponde com Gabriela. As cartas à chilena
apresentam uma linguagem mais solene, deixam entrever uma maior preocupação em
relação ao registro histórico e reafirmam o compromisso humanista de Cecília.
A hipótese de uma relação entre as cartas e a produção de autorretratos na obra
de Cecília foi levantada também por Margarida Maia Gouveia que, em ensaio sobre a
correspondência entre Cecília e Armando Côrtes Rodrigues, relacionou as cartas de
Cecília a exercícios de autorretratos: ―Dado aquilo que nos revelou o aproveitamento
desta correspondência, parece-nos de privilegiar o sentido de Cecília na intimidade, o
seu autorretrato como pessoa e como poetisa‖ (Gouvêa, 2001, p.129).
Nos dois casos, cartas e poemas, lemos a expressão da recordação e estamos
diante da apresentação de imagens. Voltando aos elementos que estão presentes no jogo
59
Cecília Meireles à Isabel do Prado. Carta 9. RJ, 12 de março de 1947. Acervo Fundação Casa de Rui
Barbosa.
180
de escrever sobre si, recordação, ―máscara textual‖ e prosopopeia, pensemos agora no
elemento ―recordação‖. Silvina Rodrigues, em ―A poesia, memória excessiva‖, fala em
―vazio da recordação que a memória substitui por imagens capazes de conter elas
próprias o vazio e assim o transportarem‖ (2003, p. 61). A linguagem seria o ―abrigo
para esse vazio‖. Estudando o caso específico do poema, Silvina relaciona a recordação
a um vestígio do acontecimento, ―mas um vestígio de uma ordem diferente da cinza
como vestígio do fogo – um vestígio que é potência ritimizante, é o modo de aparição,
aquele em que consiste a forma‖ (Idem, p. 63). Por esta perspectiva é possível
construirmos uma reflexão sobre os diferentes lugares em que se encontram o leitor das
cartas e dos poemas. Nos dois casos, então, o leitor está diante da apresentação de
imagens e da expressão da recordação. A apresentação de imagens na linguagem
poética é enriquecida justamente pelo trabalho com a ―máscara textual‖, a forma
constituída pela ―potência ritimizante‖:
181
Eu não tinha este rosto de hoje,
assim calmo,
assim triste, assim magro,
nem estes olhos tão vazios,
nem o lábio amargo (Retrato, Viagem)
Nas cartas, lemos trechos bastante descritivos, como retratos, desenhos que
Cecília traçava sobre pessoas de seu convívio. Muitas vezes, este é o pretexto para que a
poeta revele um pouco de sua intimidade. Como quando descreve a criada gordíssima à
amiga Isabel.
Tenho uma criada que deve pesar 200kg. Eu não conseguia gostar dela,
porque é muito bronca e fala fininho. Mas inventei um jeito de encantar-me:
faço de conta eu ela é elefante. V. não gostaria de ter um elefante fazendo
bife? Aí está como se pode tornar a vida encantadora! (carta 25 de outubro
de 1941).
Ou quando conta sobre as vizinhas, uma que tocava piano, outra que brigava
com suas companheiras de cortiço...
Há uma vizinha que leva o dia inteiro praticando acordes ao piano, o que me
restitui a uma infância tranquila, em que o mundo parece possível. Há outra
vizinha, longe, que briga com as suas companheiras de cortiço, e recuo para
mais longe, até a idade das cavernas. Naquele tempo já devia haver nomes
feios, não? O homem deve ter começado a falar aos berros, em brigas,
dizendo imundícies, não acha? E no meio de tudo isso, passarinhos, árvores,
borboletas tão bem educadas que pousam nos cabelos da gente (carta 6, de 5
de novembro de 1946).
182
pacifistas ao exaltar a vizinha pianista e citar passarinhos, árvores e ―borboletas bem
educadas‖ em contraponto a outra vizinha brigona.
Há na escrita epistolar de Cecília uma dimensão poética que surge justamente
nesses retratos, como da cozinheira e das vizinhas, e também de situações, um exemplo
é a imagem recorrente de um iate que aparece na correspondência com Isabel, que
lemos como uma espécie de Pasárgada.
183
Lembremos da convergência entre estética e história presente na escrita autobiográfica e
que poderíamos relacionar, no caso de Cecília Meireles, aos seus textos epistolares e
poéticos.
Outra perspectiva poética das cartas de Cecília surge no trabalho que a poeta
empreende com a faculdade da memória. A correspondência com Isabel é um exemplo,
pela exposição do percurso de construção de o Romanceiro da Inconfidência, numa
escrita vacilante, fragmentária. Dessa forma, a escrita epistolar de Cecília possibilita um
tipo de leitura passível de atualização, em que o leitor atua de forma ativa configurando
a cada nova leitura outras possíveis interpretações. E já que falamos da dimensão
poética das cartas, poderíamos pensar, no caso de o Romanceiro, numa dimensão
histórica da poesia. Contudo, mesmo nesse caso, em que está nítida a preocupação da
autora de trazer à tona um fato histórico, ainda assim o trabalho com a faculdade da
memória não significou apenas a preservação da informação do passado. Pois que a
dinâmica da memória está justamente na forma como ela apresenta esse fato histórico:
―A forma-poema é memória profética, o que significa que nunca se limita à descrição e
interpretação do passado, mas o constitui no próprio gesto que inventa o futuro‖ (Lopes,
2003, p.69).
184
Um retrato é uma descrição ―dos traços, do caráter de uma pessoa ou de tudo
que se relaciona com o homem‖, e, também segundo o Houaiss, o ―ato de retratar‖.
Nesta segunda acepção, raramente usada, temos a analogia com o adjetivo retraído, e a
palavra ganha o sentido de corrigir, emendar, desculpar-se, desfazer.
Autorretrato é um ―retrato feito por um indivíduo de si mesmo‖ e que pode
surgir ―sob a forma de desenho, pintura, gravura, ou de uma descrição escrita ou oral‖
(Houaiss). Os retratos que Cecília fez de si estão expressos em muitos poemas que
apresentam este tema, assim como seus ―desenhos‖ em forma de poemas ou em suas
expressões nas artes plásticas, como as aquarelas de Batuque, samba, macumba, onde as
baianas são longilíneas e com traços que lembram as feições da própria autora. Além
dessa apresentação mais nítida dos autorretratos de Cecília, podemos ler nas cartas uma
construção autobiográfica onde se articula também a construção crítica de sua obra
poética.
185
– Em que espelho ficou perdida a minha face?
Todas as estrofes começam do mesmo modo: ―Eu não...‖ O que nos faz pensar
em uma construção pelo avesso, como se estivéssemos do outro lado do espelho.
Potencialmente reflexivo, em todos os aspectos, desde a alusão ao espelho, ao sentido
filosófico, existencialista, expresso na indagação final ―– Em que espelho ficou perdida
a minha face?‖, e na consciência do efêmero e da impossibilidade humana de apreensão
do tempo (―Eu não dei por esta mudança‖), podemos dizer que o poema é um retrato
construído pelo leitor. A hipótese é possível se a analisarmos em relação ao pensamento
de Iser sobre o papel da negação no texto:
186
Arpad Szènes
Se me contemplo,
tantas me vejo,
que não entendo
quem sou, no tempo
do pensamento.
Vou desprendendo
elos que tenho,
alças, enredos...
E é tudo imenso...
Formas, desenho
que tive, e esqueço!
Falas, desejo
187
e movimento
– a que tremendo,
vago, segredo
ides, sem medo?!
Sombras conheço:
não lhes ordeno.
Como precedo
meu sonho inteiro,
e após me perco,
sem mais governo?!
Nem me lamento
nem esmoreço:
no meu silêncio
há esforço e gênio
e suave exemplo
de mais silêncio.
Não permaneço.
Cada momento
é meu e alheio.
Meu sangue deixo,
breve e surpreso,
em cada veio
semeado e isento.
Meu campo, afeito
à mão do vento,
é alto e sereno:
AMOR. DESPREZO.
188
Assim compreendo
o meu perfeito acabamento.
Múltipla, venço
este tormento
do mundo eterno
que em mim carrego:
e, una, contemplo
o jogo inquieto
em que padeço.
E recupero
o meu alento
e assim vou sendo.
189
desfazer, corrigir, emendar, desculpar-se – retratar-se, ―Vou desprendendo/ elos que
tenho, (...)‖.
A poeta começa a empreender sua escavação de si a partir do movimento de
desfiguração, ―vou desprendendo elos‖. A formação verbal condiz com a ideia de que o
trabalho é contínuo, pois o sujeito é múltiplo e inconstante. E o último verso desta
estrofe, ―É tudo imenso‖, remete à infinitude de variações possíveis na literatura. De
modo geral, o poema encena o que escapa à sua autora, como podemos ler mais
especificamente em ― – a que tremendo,/ vago, segredo/ ides, sem medo?!‖.
O desconhecido que a habita, está em consonância com um ponto chave da
teoria do efeito estético, de Wolfgang Iser, para quem a função antropológica da
literatura estaria justamente nessa possibilidade do sujeito experimentar a sua
inacessibilidade. Segundo Iser,
190
Trata-se da ativação da capacidade do imaginário específico do ficcional, que faz tornar
presente uma ausência.
Não há lamento, no ―auto-retrato‖ de Cecília, há é o reconhecimento deste lugar
do escritor que tem o silêncio por circunstância de vivenciar a experiência mais
profunda, a impossibilidade:
Nem me lamento
nem esmoreço:
no meu silêncio
há esforço e gênio
e suave exemplo
de mais silêncio
60
―Les autoportraits ne sont pas d‘innocents reflets de l‘image que le miroir renvoie aux artistes. Ces
oeuvres participent du langage utilisé par les artistes pour prendre position, depuis le simple ‗voici ce à
quoi se ressemble‘ au plus complexe ‗voici ce à quoi je crois‘‖ (Borzello, 1998, p. 17).
191
É pela transformação que empreende de si, no exercício da escrita, que o escritor
dá sua contribuição ao espaço público; tendo a leitura e a escrita como práticas de
recolhimento necessário à construção subjetiva e, portanto, à criação da alteridade pela
qual a partilha de um ethos se torna possível.
Este é um dos caminhos apontados por Wolfgang Welsch para o recolhimento
de que carece a contemporaneidade (cf. Welsch, 1995). Tendo na linguagem o lugar de
troca, o autorretrato seria, portanto, a expressão deste recolhimento, um ajuste de contas
do artista consigo, uma abordagem de si em direção ao outro.
A produção de autorretratos acompanha a história da arte desde que o gênero
retrato se afirma no século XIV, quando ganha destaque na arte europeia em diferentes
escolas e estilos. Uma particularidade dos retratos de si, em que o artista se vê e se deixa
ver, é que, de modo geral, o foco está colocado sobre o rosto e este, raramente, é
retratado em momento de relaxamento ou felicidade. Na maioria das vezes, a visão do
artista sobre si é sombria e angustiada61.
Nesta apresentação de si para o outro, o que vemos do autorretrato, na
modernidade, é, portanto, a desfiguração e a encenação, como mostram os versos de
Cecília em ―Auto-retrato‖:
Vou desprendendo
elos que tenho,
alças, enredos...
E é tudo imenso...
Formas, desenho
que tive, e esqueço!
61
Enciclopédia de Artes Visuais. Disponível em: www.itaucultural.com.br.
192
o ―voltar-se para si‖, é o que constitui a subjetividade capaz de, pela linguagem,
movimentar o imaginário do outro.
62
―Montaigne: um subversivo em profundidade‖. Revista Educação Pública, 2006. Disponível em:
www.educacaopublica.rj.gov.br/biblioteca/filosofia/0012.html (acessado em agosto de 2009).
193
Uma das maneiras deste exercício de olhar para si, e para o outro, é a escrita,
prática que não é exclusiva aos profissionais das letras, como mostra Michel Foucault
em ―A escrita de si‖ (1983). Foucault defende que a palavra escrita interessa a todos que
desejam ―cuidar da alma‖, ―atenuar os perigos da solidão‖, ―construir a memória
material de coisas lidas, ouvidas e pensadas‖; enfim, exercitar o pensamento a partir do
sentido e encontrar-se face a face consigo e com o outro.
Voltado para o estudo sobre ―as artes de si mesmo‖, ou seja, ―a estética da
existência e o domínio de si e dos outros na cultura greco-romana, nos dois primeiros
séculos do império‖, Foucault observou a relação que os antigos como Plutarco, Sêneca
e Epicteto mantinham com o exercício da escrita, analisando duas expressões frequentes
entre esses pensadores: a correspondência (―a carta é ao mesmo tempo um olhar que se
lança sobre o destinatário e uma maneira de se oferecer ao seu olhar através do que lhe é
dito sobre si mesmo‖) e o hupomnêmata (espécie de caderneta onde se anotava uma
coletânea de coisas lidas e ouvidas).
A caderneta dos antigos é citada por Foucault como meio de enganar a solidão,
já que ―o fato de se obrigar a escrever desempenha o papel de um companheiro‖ e a
carta é o meio pelo qual o olhar do outro elabora nossa alma. Ele lembra dois dos
princípios frequentemente evocados por Sêneca: ―o de que é necessário adestrar-se
durante toda a vida e o de que sempre se precisa da ajuda do outro na elaboração da
alma sobre si mesma‖.
Sêneca, que insistia na leitura como prática de si, defendeu ainda a escrita como
elemento que transforma a coisa vista ou ouvida ―em forças e em sangue‖. Observamos
as cartas de Cecília como lugar dessa construção subjetiva, escape para a necessidade
de, com a ajuda do outro, elaborar sua própria alma e amadurecer sua linguagem
poética.
Há os que defendem que toda escrita é autobiográfica, como Paul De Man,
citado anteriormente, para quem a narrativa da própria experiência é também um
investimento na convergência entre Estética e História (De Man, 1989). Já Philippe
Lejeune, autor de Le Pacte Autobiographique (1975) e Je est un autre (1980) –
frequentemente mencionado quando o assunto é autobiografia –, pensa este tipo de
discurso como diferente da ficção, ligando-o a pactos referenciais, o que será rejeitado
por De Man, que vê nisto um modo de sustentar a noção de autoridade transcendente do
194
autor (cf.: Klinger, 2007, p. 44). De Man destaca a alegoria e a metáfora como próprios
da construção autobiográfica e relaciona esta a um movimento de desfiguração (1989).
Para Costa Lima, o estatuto da autobiografia como gênero ―depende do destino
da individualidade. Assim, à medida que esse destino não é questionado, as definições
da autobiografia tendem a apresentá-la como um tipo dotado de incidência quase
infinita‖ (Costa Lima, 1986, p. 246). Esta oscilação é observada por Leonor Arfuch que
apresenta a autobiografia como um espaço figurativo sempre ambíguo, no que chamará
de oscilação entre mímesis e memória, ―entre uma lógica representativa dos feitos e o
fluxo de recordação, ainda que reconhecidamente arbitrário e distorcido‖63 (Arfuch,
2002, p. 57).
Sobre autobiografia, o que nos interessa são três pensamentos: a) o caráter
ambíguo, a oscilação entre mímesis e memória; b) alegoria e metáfora como próprios da
construção autobiográfica e como esta se relaciona a um movimento de desfiguração; c)
a escrita de si como formação do sujeito.
Montaigne, no início do segundo volume dos Essais, escreve:
63
―A autobiografía propone un espacio figurativo para la aprehensión de un yo siempre ambiguo – el
héroe autobiográfico como un ―alter ego‖ –, este espacio se construye tradicionalmente – y más alla de la
diversidad estilística – en la oscilación entre mímesis y memória (de Mijolla, 1994) entre una lógica
representativa de los hechos y el flujo de la recordación, aun reconocidamente arbitrario y distorsivo.
195
Para escrever, investigamos nossa infância, vasculhamos nossas gavetas e armários,
portanto, o apreensível de nós, além do desconhecido – que a literatura é capaz de
encenar – são os fragmentos, memórias: os retalhos. Pelo processo do trabalho literário,
o poeta os recompõe, tecendo-os meticulosamente às lacunas, aos vazios: os rasgos.
Estas lacunas, o vazio tão comentado da teoria de Wolfgang Iser, por onde seria
possível circular a imaginação do leitor, poderiam ser pensadas também a partir do que
Didi-Huberman (2008) chamou ―image-déchirure‖, uma imagem-rasgada. Nesse
sentido, poderíamos associar a concepção de Paul De Man da autobiografia como ―De-
facement‖, para refletir sobre a relação entre recolhimento, memória, lacunas e o
movimento de desfiguração, como devir a que o escritor necessita se lançar para
empreender sua obra. O autorretrato seria tão significativo nessa constituição justamente
por concentrar todas estas nuances.
Retratar a si é uma constante na obra de Cecília Meireles. São vários os poemas
que têm explicitamente este tema. Há versos conhecidos, como: ―Eu não tinha este rosto
de hoje,/ assim calmo, assim triste, assim magro,/ nem estes olhos tão vazios,/ nem o
lábio amargo. (―Desenho‖, Viagem); ―Fui morena e magrinha como qualquer polinésia/
(...) Levai-me aonde quiserdes! – aprendi com as primaveras/ a deixar-me cortar e a
voltar sempre inteira. (―Desenho‖, Mar absoluto).
Ambos os ―Desenhos‖ apresentam descrições físicas que a poeta faz de si e o
movimento de desfiguração é nítido, uma tentativa de ser ver além do que mostra o
espelho, a reflexão nada ingênua de que falou Francis Borzello. Os dois poemas, em que
o exercício da autobiografia está latente, são elaborados por elos da memória da infância
e juventude da poeta. Costa Lima chama as memórias e autobiografias de ―substitutos
dos espelhos‖ (1986, p. 244) Poderíamos considerar este um circuito-chave na poética
de Cecília Meireles: memória, autobiografia e espelho.
Ler as cartas como literatura de si, uma busca do eu na, e pela, linguagem
poética, este é o caminho que seguimos nesta pesquisa. Há um livro de poemas de
Cecília, escrito na fase de maturidade da poeta, apenas oito anos antes de sua morte, que
196
é uma interessante mostra do que consideramos como uma teoria das correspondências
na obra da poeta. Em Canções (1956) estão conjugadas a busca de si, e a de um diálogo
poético com o leitor, visualidade (relação com as artes visuais) e musicalidade (efeito
lírico musical da poesia simbolista).
Aqui destacamos três poemas que apresentam esses aspectos tão preponderantes
na poética de Cecília e que parecem ter sido condensados nesta obra.
197
Outra ―canção‖ deste livro apresenta a dimensão onírica, o simbolismo da água
como representação da proposta de uma poesia que conjugasse sensibilidade e intelecto
com a visualidade (―Vejo e sou meu olhar‖).
198
Por quantos remotos dias,
Sabiá,
nossos vagos descendentes
repetirão este jogo
com suas alegorias?
Sabiá,
de que servem tais sinais?
Que anúncios clarividentes
podem ter vozes mortais?
(...)
E tu, quem foste, quem eras,
Sabiá,
que não se explica também?
- Que somos, além dos ossos
e dos terrenos destroços,
e imaginárias quimeras,
Sabiá,
quem somos? quem?
Como nos poemas, as cartas também vão estabelecer um solo precário, porque
precária são as palavras. Talvez no diálogo, com o outro, e com as outras artes, esse solo
se torne mais fértil, possamos ampliar nosso repertório, de questões.
Nas cartas, mesmo o leitor estando em outro lugar, diferente dos poemas, ele
permanece mergulhado na ambivalência de uma certa dimensão ficcional, é também
parte do jogo: o ato de escrevê-las parte da necessidade de se lançar ao outro, ou de
alcançá-lo? Essa dúvida intrínseca contida na série de perguntas que Cecília escreve ao
amigo (ou a si mesma?), nos sugere um outro ponto de encontro entre cartas e poemas.
Essas questões de Cecília nos mostram que em suas cartas ela utilizava recursos
próprios do poético, e especialmente de sua poesia, altamente reflexiva, a finalidade não
seria nem o alvo, nem o caminho, seria o próprio exercício da linguagem, na busca por
afeto e imortalidade.
199
Considerações finais
Tomamos as cartas escritas por Cecília Meireles como parte fundamental em sua
atividade de escritora. Além de se tratar de matéria de reflexão para a problemática da
construção ficcional e de suas relações com a autobiografia – por seu caráter lacunar e
fragmentário e de índice de afastamento físico – as correspondências estão em afinidade
com dimensões fundamentais da vida e da obra de Cecília Meireles: distância e
ausência.
O poema ―Ausência‖, de Retrato natural (1949), por exemplo, condensa essas
duas dimensões:
De esplendores ferida,
fecho os olhos. Que ausente
quero ser. Tão distante
que eu mesma não me veja
– à morte indiferente,
para qualquer instante.
200
As cartas aqui apresentadas mostram a interculturalidade presente na poética
ceciliana, em como esses diálogos contribuíram para a construção de sua obra, e a
importância das redes de amizades entre intelectuais na preservação da memória e na
constituição cultural de uma sociedade.
Na correspondência com Alfonso Reyes, vimos os laços entre Cecília Meireles e
o México e o grupo de poetas que tinham na linguagem o lugar de encontro e na
educação o ponto chave para as mudanças sociais que reivindicavam para a América
Latina.
As cartas à amiga Isabel do Prado revelam um diário de criação do Romanceiro
da Inconfidência e nos fazem pensar em autorretratos epistolográficos da poeta, e na
profunda ligação de sua poesia com as artes plásticas.
Uma das hipóteses apresentadas é a de que o sentido espiritual na poesia de
Cecília tem a ver com o reordenamento entre instante e eternidade. Desse modo, o
simbolismo na poética ceciliana remete mais a uma comunhão com a humanidade do
que a uma referência a um mundo outro. O que nos levou a pensar numa possível teoria
das correspondências, onde cartas, poemas, desenhos, retratos estariam relacionados na
construção de uma busca de si, empreendida desde e pelo intercâmbio entre as
linguagens verbal e plástica.
A relação entre cartas, poemas, retratos nos remete a uma dimensão
autobiográfica que problematiza a subjetividade a partir da construção ficcional. A soma
dessas relações aos diálogos e afetos entre os correspondentes, e ao aspecto intercultural
na poética ceciliana, nos apresentam a potência do discurso ficcional, e a poesia como
um lugar de construção de sensibilidades, de conhecimento.
201
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