Você está na página 1de 14

Http://online.unisc.br/seer/index.

php/signo
ISSN on-line: 1982-2014
Doi: 10.17058/signo.v49i94.18876

Recebido em 06 de outubro de 2023 Aceito em 07 de dezembro de 2023 Autor para contato: jaimesonmachadogarcia@gmail.com

Dos quadrinhos aos audioquadrinhos: uma análise intermidial


From comics do audiocomics: an intermedial analysis

Jaimeson Machado Garcia


Universidade de Santa Cruz do Sul – Rio Grande do Sul – Brasil

Lucia Santaella
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – São Paulo – Brasil

Resumo: Como parte integrante de uma pesquisa maior de doutorado, cujo enfoque
está nos audiolivros e seus múltiplos aspectos a partir da perspectiva dos Estudos
de Intermidialidade, o presente estudo tem por objetivo analisar como a hibridização
semiótica que constitui a história em quadrinhos enquanto um tipo de mídia são
transmidiados para os signos sonoros dos audioquadrinhos. Ou seja, como os
quadros, balões de diálogos e outros recursos visuais são transformados e
transferidos (Elleström, 2021) para a performance vocal, música e efeitos sonoros. A
partir de tal observação, buscou-se demonstrar como tais mídias sonoras são
capazes de midiar diferentes formatos de audioquadrinhos. Para isso, foram
tomados de exemplo os audioquadrinhos The Boys (2020) e The Sandman (2020),
cuja análise mostrou o primeiro como uma alternativa de acesso ao conteúdo da
graphic novel por se constituir como uma audiodescrição, enquanto o segundo
apresenta um produto diferente por se assemelhar a um filme sem a sincronização
das imagens em movimento. Por fim, discutimos as possíveis razões pelas quais os
audioquadrinhos ainda são pouco explorados no Brasil, apesar da longa tradição de
quadrinhos impressos no país.

Palavras-chave: Histórias em Quadrinhos; Quadrinhos em áudio; Transmidiação;


Semiótica; Estudos de Intermidialidade.

Abstract: Part of a larger doctoral research focusing on audiobooks and their multiple
aspects from the perspective of Intermedial Studies, this study aims to analyze how the
semiotic hybridization that constitutes comics as a type of media is transmediated into
the auditory signs of audio comics. In other words, how panels, dialogue balloons, and
other visual elements are transformed and transferred (Elleström, 2021) into vocal
performances, music and sound effects. Through this examination, we sought to
demonstrate how these auditory media are capable of mediating different formats of
audio comics. To illustrate this, we took examples from the audio comics The Boys
(2020) and The Sandman (2020), with the former serving as an alternative way to
access the content of the graphic novel by acting as an audio description, while the
latter resembles a film without synchronized moving images. Finally, we discussed
possible reasons why audio comics are still relatively unexplored in Brazil, despite the
country's rich tradition of printed comics.

Keywords: Comics; Audio comics; Transmediation; Semiotic; Intermedial studies.

A matéria publicada nesse periódico é licenciada sob forma de uma


Signo [ISSN 1982-2014]. Santa Cruz do Sul, v.49, n. 94, p. 44-57, jan/abr. 2024. Licença Creative Commons – Atribuição 4.0 Internacional
http://creativecommons.org/licenses/by-nc-nd/4.0/
GARCIA, J. M. et al.

1 Introdução Aventuras de Super-Homem, que, como conta


Cardoso (1998, s/p), saiu do ar no dia 1° de março de
Em 12 de fevereiro de 1940, dos aparelhos 1951. Mas retornou em formato de série televisiva um
radiofônicos localizado nas salas das casas das ano depois “[...] com George Reeves que iniciou sua
famílias norte-americanas de classe média, era carreira cinematográfica em O Vento Levou”. Todavia,
possível escutar o locutor Jackson Beck anunciando a em sua opinião, “[...] nesse novo meio de
estreia de um novo programa da emissora Mutual: comunicação, Reeves, voando suspenso por fios de
"Kellogg's Pep, o super delicioso cereal apresenta: As arame e com a ação sujeita a efeitos especiais
Aventuras de Super-Homem!”. Dessa abertura surgia primitivos, não conseguiu alcançar na tela os níveis de
o principal bordão que viria a acompanhar um dos aventura épica que era comum no rádio”.
mais importantes e populares personagens das Apesar de terem deixado de fazer parte das
histórias em quadrinhos até hoje: “É um pássaro! É um grades de programação das emissoras de rádios
avião! Não… é o Super-Homem!” (Lackmann, 2004). estadunidenses, os radioquadrinhos conseguiram
Criado entre a Grande Depressão e o início da sobreviver em meio às evoluções tecnológicas que se
Segunda Guerra Mundial por Jerry Siegel e Joe sucederam nas décadas subsequentes. Além de terem
Shuster para representar a força e a justiça encontrado um espaço junto ao serviço de streaming
estadunidense frente a esse período de incertezas por meio de plataformas como o Audible e o Spotify,
sociais e econômicas, Super-Homem foi apenas um produtoras de áudio como a GraphicAudio vêm
de uma vasta lista de personagens de história em redescobrindo esse gênero sonoro e investindo em
quadrinhos cujas narrativas foram transmidiadas das novos e exclusivos produtos de mídia sonoros para os
páginas impressas dos jornais diários e das revistas seus catálogos de títulos originais.
para as ondas sonoras dos programas radiofônicos Ainda que haja significativas diferenças na
entre os anos de 1929 a 1950. Para os ouvintes, os forma de produção, distribuição e consumo em relação
radioquadrinhos eram alternativa gratuita de aos radioquadrinhos, esses produtos de mídia também
entretenimento frente até mesmo ao cinema. Também são capazes de combinar tipos de performances
para as emissoras radiofônicas, que estavam se sonoras distintas e integrar nelas música e trilha
tornando “[...] provedores permanentes de conteúdos, sonora de diferentes maneiras a fim de potencializar a
certamente ofertados em função dos anúncios imersão. Por isso, do ponto de vista dos Estudos de
publicitários [...]” (Santaella, 2022, n/p), funcionavam Intermidialidade, cujo enfoque está em observar,
como um forte chamariz para os anunciantes da época justamente, como as mídias interagem entre si, os
por poderem vincular seus produtos a esses audioquadrinhos1 constituem-se em um sistema de
personagens já estimados pelo público. signos frutífero para diversas análises.
Mas, na mesma velocidade com que se Assim, como parte integrante de uma
popularizaram, os radioquadrinhos deixaram de fazer pesquisa mais abrangente de doutoramento, em que
parte do cotidiano estadunidense. Sobretudo, em se busca compreender o audiolivro a partir de suas
razão da televisão, que devido ao seu caráter múltiplas facetas, o presente estudo busca analisar
antropofágico, como argumenta Santaella (1996), dois exemplos de audioquadrinhos, resultados da
acabou por absorver não somente todas as outras transmidiação direta de histórias em quadrinhos 2, na
mídias em vigência nesse período, como também as busca por compreender de que forma os quadros, os
formas de cultura artesanais, folclóricas e prosaicas. balões de diálogos e outros signos presentes em sua
Um exemplo dessa circunstância foi o próprio As linguagem são transferidos e transformados para
1
No intuito de diferenciar os quadrinhos em áudio contemporâneos dos quadrinhos em áudios veiculados pelas emissoras de rádio, os
chamaremos de audioquadrinhos.
2
Convém destacar que nem toda história em quadrinhos é diretamente transmidiada para áudio. Alguns títulos são, antes, transformados
em romance, para só assim ganharem versões em audiolivro. Casos como esse serão foco de um estudo posterior.

Signo [ISSN 1982-2014]. Santa Cruz do Sul, v. 49, n. 94, p. 44-57, jan/abr. 2024.
http://online.unisc.br/seer/index.php/signo
Dos quadrinhos aos audioquadrinhos: uma análise intermidial

ondas sonoras. Para isso, tomamos como eixo envolve a formação de tipos de mídias com base em
principal, dentro dessa referida perspectiva teórica, os práticas, discursos e convenções histórica e
conceitos cunhados por Lars Elleström (2021), geograficamente determinadas” (p. 98), enquanto o
apresentando, em um primeiro momento, o que se segundo, o que recebe a nomenclatura de aspecto
deve observar quando são consideradas as relações qualificador operacional, trata do “[...] propósito geral
que se estabelecem na passagem da história em da mídia, seu uso e função [...]”, e “[...] abrange a
quadrinhos para o audioquadrinho. Em seguida, serão construção de tipos de mídia com base nas tarefas
apresentados dois exemplos de audioquadrinhos comunicativas esperadas ou presumidas” (p. 100).
estadunidenses, explicando, posteriormente, os O avanço tecnológico que possibilita a criação
motivos que nos levaram a selecionar tais objetos de de novas formas ou produtos de mídia, bem como o
estudos ao invés de audioquadrinhos brasileiros. Ao fato de algumas serem mais pessoais, oficiais ou
fim, debatemos sobre as complexidades que se transmitirem conhecimento, como cartas,
apresentam quando se trata de transmidiar a história regulamentos e livros didáticos, são algumas das
em quadrinhos para o meio sonoro. circunstâncias que fazem com que certas mídias
sejam compreendidas como qualificadas. Nessa
2 A história em quadrinho e o audioquadrinho categoria, há também as mídias que são
enquanto mídias qualificadas compreendidas dessa maneira em virtude dos tipos ou
produtos de mídias que lhes são integrados e
Na construção de seu edifício teórico para os combinados, perspectiva essa que nos possibilita
Estudos de Intermidialidade, Elleström (2021) compreender quais elementos devemos observar
estabelece uma proposta de classificação das mídias quando tratamos da transmidiação do fenômeno que
com o objetivo de elencar o que se deve levar em nos interessa.
consideração ao analisá-las. Tomando por base uma
categorização diádica, a primeira categoria congrega 2.1 A linguagem visual da história em
todas as que podem ser compreendidas levando em quadrinhos
consideração apenas os seus modos materiais,
espaço-temporais, sensoriais e potencialmente A história em quadrinhos é
semióticos — ou seja, os recursos básicos que todas concomitantemente definida por pesquisadores dos
elas compartilham entre si. Por essa razão, as que se Estudos de Intermidialidade, como Mats Arvidson et.
encaixam nesse requisito são denominadas de mídias al. (2022, p. 108)3, pela integração e combinação dos
básicas. tipos de mídias básicas texto e imagem “[...] dentro de
A segunda categoria reúne todas aquelas em outros elementos não linguísticos, como cores, linhas,
que é necessário levar em consideração não somente quadros, molduras, legendas e balões de diálogo, que
tais recursos básicos, como também dois aspectos também podem ser considerados parte do elemento
qualificadores que se encontram relacionados aos “imagem”. Nessa confluência entre mídias, Cagnin
seus desenvolvimentos históricos e seus usos sociais, (2007) esclarece que o texto assume a função de
atributos esses que, convém destacar, podem se representar mimeticamente as falas a partir da
sobrepor e se complementar de diferentes maneiras. representação escrita e auxiliar na condução da ação
Nas palavras do teórico, o primeiro, o chamado ao fixar significados à imagem, enquanto a imagem se
aspecto qualificador contextual, diz respeito à “[...] encarrega de fornecer informações descritivas ao
origem e delimitação das mídias em circunstâncias compor cenários e personagens.
históricas, culturais e sociais específicas”, e “[...]

3
Em inglês: “[...] framed within further non-linguistic elements such as colours, lines, panels, gutters, captions and speech balloons, which
can as well be thought of as part of the ‘image’ element”. Tradução nossa.

Signo [ISSN 1982-2014]. Santa Cruz do Sul, v. 49, n. 94, p. 44-57, jan/abr. 2024.
http://online.unisc.br/seer/index.php/signo
GARCIA, J. M. et al.

Tanto texto quanto imagem são linguagens, discursivo do narrador, enquanto signo imagético,
mas suas naturezas sígnicas se opõem. Tomando pode ocupar diferentes posições, tamanhos e formatos
como referência a classificação de signos de C. S. dentro da página de acordo com a direcionalidade da
Peirce, há três tipos de propriedades que permitem ao leitura proposta. Já a onomatopéia, enquanto signo
signo realizar a sua função de significar. São elas: linguístico, se aproveita da qualidade sonora do
qualidade, existente ou lei. Na sua relação com aquilo grafema representado, enquanto signo imagético pode
a que se referem, se aplicam ou denotam, qualidades variar no tipo e tamanho dos caracteres, na
funcionam como ícones, existentes como índices e leis tridimensionalidade, nas cores e volumes ao participar
como símbolos (Santaella, 2018, p. 14). Textos da montagem do quadros (Cagnin, 2007).
escritos são simbólicos, pois estão sustentados pelas Em vista dessa mistura de signos,
leis do sistema da língua. Eles não apresentam semioticistas como Winfried Nöth (2007) pensam na
semelhanças com aquilo que denotam e apenas em história em quadrinhos como uma mídia híbrida. Em
casos, como pronomes demonstrativos, eles comparação com outros meios com os quais
funcionam como índices. Portanto, por se basearem compartilha o mesmo conjunto básico de signos, para
em regras e convenções, textos são simbólicos nesse Nöth (2007) ela difere do livro ilustrado porque as
sentido que Peirce deu aos símbolos. figuras se movem quadro a quadro, aproximando-se,
Imagens, por sua vez, embora também neste aspecto, do filme. Ao mesmo tempo, ela difere
possam estar baseadas em leis de representação, do filme por ser capaz de mudar a largura e a altura do
elas denotam seus objetos de referência porque se seu espaço pictórico, bem como transgredir tais
assemelham a eles. Por isso, são icônicas.. Apesar de limitações ou até mesmo abandonar as molduras de
tais diferenças, a história em quadrinhos se destaca seus quadros e, assim, se fundir à escrita, “[...] que é
entre outros tipos de mídias porque o texto e imagem tanto um espaço narrativo separado das imagens
“[...] se fundem na página e interagem de forma quanto um espaço narrativo incluído dentro das
semiótica, de modo que podemos dizer que as molduras das imagens” (p. 174)5.
palavras se tornam imagens e as imagens se tornam É nesse sentido que Scott McCloud (2005)
4
palavras” (Arvidson et. al., 2022, p. 109) . postula que o filme projeta seus quadros em um
O balão, uma criação original da linguagem da mesmo espaço — isto é, a tela —, enquanto os
história em quadrinhos, é um signo misto, ao mesmo quadros da história em quadrinhos são dispostos
tempo imagem (aquela de um balão) e texto, pois o dentro das limitações da página, sendo, assim, o
balão é utilizado para representar um discurso direto tempo é, para o filme o que o espaço é para os
trazendo em si informações das qualidades da fala. quadrinhos. O movimento narrativo da história em
Enquanto signo imagético, compõe o quadro quadrinho é, então, impulsionado pelo papel
juntamente com os quadros a partir de uma disposição interpretativo do observador em correlacionar
estética formando um todo. Neste último caso, sua diferentes quadros por meio de uma lógica sequencial,
forma pode assumir diferentes configurações, embora visto que cada um deles vai representar um único
a mais comum seja aquela que se aproxima de círculo momento de ação, “conectado” pela sarjeta. A saber, o
com um apêndice, com a flecha se voltando para a espaço geralmente em branco entre um quadro e
figura do personagem que fala (Cagnin, 2007). outro que, neste tipo de mídia, funciona como uma
Fenômeno semelhante acontece com as elipse, entendendo-se por elipse a passagem rápida
legendas e as onomatopéias. Enquanto signo ou a supressão de eventos que possibilitam avançar a
linguístico, as legendas se constituem como um trecho história a partir do preenchimento de significados por
4
Em inglês: [...] merge together on the page and semiotically interact in a way that means we can say that words become images and
images become words (Tradução nossa).
5
Em inglês: [...] which is both a narrative space apart from the pictures and a narrative space included within the picture frames” (Tradução
nossa).

Signo [ISSN 1982-2014]. Santa Cruz do Sul, v. 49, n. 94, p. 44-57, jan/abr. 2024.
http://online.unisc.br/seer/index.php/signo
Dos quadrinhos aos audioquadrinhos: uma análise intermidial

parte do leitor com base na interpretação entre dois ou sem a presença de sotaques, alterações nas
mais quadros. entonações ou quaisquer outras características. É o
Em outras palavras, “[...] a história em que concomitante chamamos de “voz robótica”,
quadrinhos quebra o continuum em poucos elementos embora, convém destacar, que a realidade tem
essenciais. O leitor, a seguir, solda esses elementos mostrado que as inteligências artificiais do tipo TTS
na imaginação e os vê como continuum”, como pontua (text-to-speech) são capazes de modular uma ampla
Umberto Eco (2008, p. 147). A história em quadrinhos gama de entonações diferentes durante a “leitura” de
constitui-se, portanto, como um tipo de mídia e-books.
altamente complexo em que convergem diferentes O ledor icônico, em contrapartida, é aquele
tipos de semioses, sendo necessária a participação que evoca o ideal de um contador de histórias, que
ativa do perceptor em correlacionar todos esses externaliza sua interpretação a partir do roteiro. Este,
elementos de maneira unificada para a construção de por meio da voz, estabelece pausas, variações de
significados. ritmos, entonações, além de recorrer a outros recursos
auditivos para representar o significado que ele
2.2 A linguagem sonora dos audioquadrinhos construiu a partir de sua leitura. Por isso, seu objetivo
vai além da mera decodificação das palavras: trata-se
Enquanto uma submídia dos audiolivros, o de um ledor que busca conferir significados a partir da
audioquadrinho é um tipo de mídia que demanda, dramatização — das falas dos personagens, do
impreterivelmente, uma performance vocal em sua acompanhamento do ritmo da ação da narrativa e da
constituição. A performance sonora, em termos infusão de suas próprias emoções pela leitura.
intermidiais propostos por Elleström (2021), vem O ledor indicial, por sua vez, tem por objetivo
sendo definida ao longo dessa pesquisa de expressar as peculiaridades de cada personagem a
doutoramento como um produto de mídia e, ao mesmo fim de conferir a cada um uma sensação de
tempo, um tipo de mídia, que é produzido por um ledor “existência real” por meio da construção de
no momento em que ele sonoriza o que está escrito identidades vocais únicas. Quando há apenas um
em um texto escrito — via de regra, sob a forma de um responsável por um produto de mídia, ele pode
roteiro. alternar entre os papéis de narrador e personagens
Originalmente, a concepção de ledor surgiu por meio da adoção de diferentes tipos de vozes para
em meio aos estudos de acessibilidade na busca por cada um. Com a justaposição de efeitos sonoros, esse
diferenciá-lo da ideia genérica daquele que lê para si, tipo de ledor se torna um índice de algo que está
o leitor, para aquele que lê para o outro — no caso, as acontecendo enquanto é narrado, como se fosse um
pessoas com algum tipo ou nível de deficiência visual. drama em andamento. Por isso, o auge de sua
Pensando nos audiolivros e em outros tipos de mídias performance vocal se dá na construção de uma
que combinam e integram mídias verbais sonoras com “paisagem sonora”, como se a história estivesse sendo
mídias não verbais sonoras, como é o caso dos gravada ao vivo.
audiolivros em geral, Garcia, Domingos e Fronckowiak Apesar de não ser uma exclusividade dos
(2023), expandem a concepção de ledor pensando audioquadrinhos, muito menos uma obrigatoriedade
nos diferentes tipos de performances vocais possíveis para que seja considerado como tal, a integração e
de serem encontradas em produtos desse tipo de combinação da performance vocal dos ledores icônico,
mídia a partir da noção de semiose, de Peirce. indicial e simbólico às músicas e aos efeitos sonoros
O ledor simbólico é, nesse sentido, aquele em sua midiação é uma característica que se faz
que toma a palavra como per se: em seu significado presente desde as primeiras transmidiações realizadas
convencional. Por meio desse tipo de ledor, a ao vivo por meio das transmissões radiofônicas.
performance vocal busca ser a mais linear possível, Cardoso (1998, s/p) conta que nesse período, “[...]

Signo [ISSN 1982-2014]. Santa Cruz do Sul, v. 49, n. 94, p. 44-57, jan/abr. 2024.
http://online.unisc.br/seer/index.php/signo
GARCIA, J. M. et al.

alguns efeitos sonoros eram feitos no momento da representar esse fenômeno por semelhança. Em sua
irradiação, enquanto outros já estavam gravados”. propriedade indicativa (indiciais), os efeitos sonoros
Sons de choro de crianças, o trem passando e as estão diretamente ligados ao objeto cujo som
vozes de animais utilizavam discos, já os de tiros, representam. E, em sua propriedade descritiva
passos, portas batendo e outros efeitos sonoros (simbólica), os efeitos sonoros caracterizam tudo
possíveis de serem (re)produzidos dentro do estúdio aquilo que é convencionado, como os sons produzidos
eram realizados em concomitância às performances por um alienígena ou um dinossauro.
vocais dos ledores. As performances vocais dos ledores icônico,
Embora possuam uma função auxiliar, indicial e/ou simbólico, juntamente com a música e os
convém frisar que a música e os efeitos sonoros não efeitos sonoros, se sobrepõem e se misturam de forma
são menos importantes para a produção de amalgamada no processo de midiação. Por isso, a
significados. Diante da inexistência de uma teorização compreensão sobre como as mídias verbais e não-
dessas mídias a serem aplicadas especificamente ao verbais sonoras são utilizadas para representar a
contexto dos audiolivros, Garcia e Domingos (2023) sequencialidade dos quadros, os balões de diálogos e
tomam a trilha sonora do cinema como ponto de outros recursos gráficos convencionados à história em
partida e identificam três funcionalidades, à luz da quadrinhos, somente se torna clara quando
noção de semiose de Peirce. analisamos cada um desses três elementos de
A música, em sua propriedade icônica, maneira individual. Com tais conceituações
acompanha o ritmo da cena de maneira sincrônica a esclarecidas, vejamos nas seções seguintes a forma
ponto de se tornar tão próxima aos efeitos sonoros como os fenômenos intermidiais se comportam no
que é capaz de substituí-los. Geralmente, na mídia âmbito semiótico.
audiovisual, essa característica pode ser percebida por
meio da técnica Mickey Mousing, que se originou em 3 Da história em quadrinhos para o
meio às animações da década de 1920, mas, apesar audioquadrinho
da ausência da imagem, ela ainda assim pode ser
percebida em determinados audiolivros. Em sua 3.1 The Boys (2020): um audioquadrinho do tipo
função indicial, a música é capaz de construir ecfrástico
significados quando representa a passagem do tempo,
a localização geográfica ou um grupo étnico em Criada pelo roteirista Garth Ennis em co-
específico, mas somente se o perceptor conseguir parceria com o ilustrador Darick Robertson, The Boys
tecer tal relação. E, em sua propriedade simbólica, ela (2006) é uma narrativa gráfica serializada que foi
pode marcar a presença de um personagem em originalmente publicada entre os anos de 2006 e 2012
específico ou mesmo um sub-enredo dentro da trama nos Estados Unidos pela WildStorm, um dos selos
a partir de determinadas convenções. editoriais da DC Comics, e, posteriormente, pela
Os efeitos sonoros, por outro lado, são Dynamite Entertainment em razão do “[...] incômodo
divididos e categorizados pelos autores a partir das que ela gerava” (Quadros e Musco, 2021, p. 158).
nomenclaturas propostas por Elleström (2021) a fim de Com um tom extremamente violento e subversivo
diferenciá-los das nomenclaturas utilizadas para a adotado para satirizar as histórias em quadrinhos de
música. A partir das relações do signo com seu objeto, super-heróis — em especial, as da Marvel e da própria
o ícone é chamado de ilustração, o índice de indicação DC Comics —, The Boys (2006) apresenta diversas
e o símbolo de descrição. Dessa maneira, os efeitos situações polêmicas a partir de temáticas como
sonoros em sua propriedade ilustrativa (icônicos) são corrupção, os impactos do culto à celebridade, além
aqueles que substituem o som de um fenômeno físico de tecer severas críticas à indústria do entretenimento
e, sem o auxílio da imagem visual, passam a

Signo [ISSN 1982-2014]. Santa Cruz do Sul, v. 49, n. 94, p. 44-57, jan/abr. 2024.
http://online.unisc.br/seer/index.php/signo
Dos quadrinhos aos audioquadrinhos: uma análise intermidial

e aos veículos de mídia na construção de figuras sequências dos acontecimentos. Compilando as 72


públicas. edições da série original em seis volumes, com uma
A trama gira em torno de personagens que, média de quatro a cinco horas cada um, a exibição de
em determinado momento de suas vidas, sofreram The Boys (2020), nesse formato auditivo, gira em torno
algum tipo de trauma relacionado às ações e/ou de 28 horas totais. Apesar de sua longa duração, logo
omissões de seres dotados com poderes em seus 30 minutos iniciais, que correspondem aos
extraordinários e, por vezes, quase invencíveis. Por eventos das duas primeiras edições, é possível
meio da liderança de Billy Butcher, um ex-fuzileiro identificarmos dois tipos de ledores.
Real Britânico e ex-agente do Serviço Aéreo Especial
Um deles é o ledor simbólico, que neste
Britânico, esses personagens, motivados pela
produto de mídia em específico, assume uma função
vingança, passam a atuar como um grupo secreto
fundamentalmente ecfrástica. Difundida entre os
para monitorar, investigar ou mesmo assassinar todos
gregos e romanos durante a Antiguidade, a écfrase
aqueles que abusam desses atributos sobre-humanos.
pode ser definida, contemporaneamente como um “[...]
The Boys (2006) apresenta, dessa forma, uma visão
recurso literário [...]” (Vieira, 2017, p. 51), uma “[...]
sombria e provocativa da temática “super-heróis”,
tradução/transcriação intersemiótica [...]” (Ferreira,
subvertendo as convenções dos quadrinhos
2007, s./p.) ou ainda uma “citação intermidiática”
tradicionais e oferecendo uma reflexão acerca da
(Yacobi, 2013, p. 2) que envolve a representação
hipocrisia e moralidade.
escrita de uma imagem. Ou seja, a transformação de
No ano de 2019, The Boys (2006) foi
um quali-signo (um signo que é uma qualidade) em um
transmidiado como série pelo serviço de streaming de
legi-signo (um signo de lei ou convenção).
produtos audiovisuais da Amazon, o PrimeVideo, com
Embora haja autores que delimitem a écfrase,
a mudança de determinados aspectos do material
a partir da relação entre a prosa, poema e poesia, à
base para torná-lo mais palatável aos espectadores,
pintura, outros buscam expandir suas fronteiras a fim
mas, convém destacar, não menos controverso. A
de contemplar, também, a escultura, a fotografia e
série tem se tornado uma narrativa transmídia 6 pelos
outros tipos de mídias visuais. Mesmo com tais
altos índices de audiência que vem conquistando 7. Até
discordâncias teóricas, Elleström (2014, p. 33)
o presente momento, por exemplo, ela tem somado
argumenta que o seu sentido estrito é apenas uma
spin-offs voltados a animações e outros live-actions,
pequena parcela de um amplo campo de
também em formato de série televisiva, junto ainda a
representação de mídias complexas, uma vez que
interação com os espectadores por meio de sites de
quem não tenha a intenção de extrapolar sua noção
redes sociais e plataformas virtuais multimídias, como
deve “[...] admitir que é possível, habitual e que vale a
o X (antigo Twitter)8 e Youtube9, que são utilizados
pena teorizar além das fronteiras convencionais”. Por
como canais de comunicação oficiais da Vought
isso, a écfrase deve ser então vista como uma
International — o conglomerado empresarial
representação de uma mídia qualificada em outra
responsável pela criação e manutenção dos super-
mídia qualificada, que pode ser nesse sentido mais
heróis desse universo ficcional.
tradicional ou mais complexa, “[...] como é o caso da
Já o audioquadrinho produzido pela
écfrase musical, em que uma obra é representada por
GraphicAudio tenta se manter fidedigno à história em
meio de linguagem musical” (p. 34).
quadrinhos, embora rearrange determinadas

6
A narrativa transmídia é um conceito cunhado por Henry Jenkins (2009) que diz respeito, em linhas gerais, a expansão de um universo
ficcional a outros tipos de mídias com a finalidade de explorar novos formatos e atrair novos públicos.
7
Disponível em: <https://www.tecmundo.com.br/minha-serie/259864-the-boys-superou-audiencia-qualquer-seri
e-marvel-dc-2022.htm>. Acesso em 14 de set. de 2023.
8
Disponível em: <https://twitter.com/VoughtIntl>. Acesso em: 14 de set. de 2023.
9
Disponível em: <https://www.youtube.com/@voughtintl/videos>. Acesso em: 14 de set. de 2023.

Signo [ISSN 1982-2014]. Santa Cruz do Sul, v. 49, n. 94, p. 44-57, jan/abr. 2024.
http://online.unisc.br/seer/index.php/signo
GARCIA, J. M. et al.

Em The Boys (2020), esse fenômeno se dá a a partir de sua própria percepção. O ledor simbólico
partir da citação/transcriação intersemiótica de cada tem, dessa maneira, a função de transformar tudo
quadro e legenda da graphic novel para o áudio, junto aquilo que é um signo imagético em um signo
da inserção de informações que fogem do linguístico, tornando-se, desse modo, o narrador da
enquadramento dos mesmos. Trata-se de um história. Vejamos abaixo, por meio do Quadro 1, um
movimento semelhante àquele de assistir a um filme exemplo a partir da comparação entre um dos quadros
em que, nesse caso, o ledor simbólico vai pausando com o referido fenômeno:
entre as mudanças de cenas e descrevendo o que vê

Quadro 1 — Comparação entre um dos quadros de The Boys (2006) com


sua respectiva citação/transcriação intersemiótica no audioquadrinho.

Quadro da graphic novel Trecho transcrito do audioquadrinho


“Um buldogue inglês branco está sentado ao lado do
banco aos pés do homem. Algumas folhas de cor
ferrugem começaram a cair no gramado oeste do
Capitólio em Washington, D.C. deixando as árvores
parecendo antigas colunas de ferro forjado que estavam
descascando ferrugem. O sol havia passado sobre o
Capitólio e o tráfego daquela manhã começara a
diminuir após o horário de pico matinal. Grupos de
turistas e estudantes desfilavam pela 3rd Street, S.W.
em direção aos seus ônibus ou se dirigiam aos Museus
Smithsonian que margeiam o National Mall. Um homem
robusto vestido todo de preto e especialmente com um
sobretudo preto está sentado em um banco entre as
árvores na Union Square, perto da Reflecting Pool do
Capitólio”.10

Fonte: The Boys (2006, p. 3) e The Boys — Volume 1 (2020)

Já o outro tipo de ledor é o indicial, tendo um principais da série: Billy Butcher, que, como já citado,
ledor para cada personagem — ao menos aos que são é de origem inglesa, e Hughie Campbell, um imigrante
importantes para a condução da narrativa. Tais irlandês. Tendo The Boys (2020) como cenário
ledores têm por função interpretar as falas dos principal os Estados Unidos, é possível percebermos
personagens que aparecem nos balões, um forte sotaque de ambos ao falarem o idioma nativo
transformando-as assim de mídias verbais escritas em americano. No inglês britânico, por exemplo, é comum
mídias verbais sonoras. Ou, mais especificamente em o "r" no final das palavras não é pronunciado, por isso
termos intersemióticos, os signos linguísticos "car" pode soar mais como "cah". Já no sotaque
permanecem como tal já que se trata de palavras. No irlandês a palavra “this” pode soar como “dis”.
entanto, a relação com o objeto se dá a partir da Junto a outros aspectos fonéticos e
indicialidade, pois os ledores buscam realizar as características do timbre da própria voz humana, a
performances vocais como se os personagens opção por cada ledor indicial representar um
estivessem no “mundo real”. determinado personagem faz com que se crie uma
Em meio a eles, destacamos os ledores identidade para os personagens sem haver a
responsáveis por representar os dois personagens necessidade de pontuar quem está emitindo cada fala.
10
Em inglês: “A white english bulldog sits by the bench at the feet of the man. A few rust-colored leaves had begun falling on the west lawn
of the Capitol in Washington, D .C. leaving the trees look like old wrought iron pillars that were flaking off rust. The sun had made its way
over the Capitol and that morning's traffic had begun to slow down after the morning rush. Clusters of tourists and school groups paraded
across 3rd Street, S .W. to meet their buses or angle toward the Smithsonian Museums that line the National Mall. A solid-built man
dressed all in black and most notably a black overcoat sits on a bench among the trees in Union Square near the Capitol Reflecting Pool”
(The Boys, 2020, Transcrição e tradução nossa).

Signo [ISSN 1982-2014]. Santa Cruz do Sul, v. 49, n. 94, p. 44-57, jan/abr. 2024.
http://online.unisc.br/seer/index.php/signo
Dos quadrinhos aos audioquadrinhos: uma análise intermidial

Os ledores indiciais têm, nesse sentido, a função de encontram. Quando Butcher está sentado no banco
transformar tudo aquilo que é um signo linguístico em frente ao Capitólio e algumas folhas da cor de
escrito em signo linguístico falado, assumindo, desse ferrugem começam a cair, como é descrito pelo ledor
modo, a função do balão de fala. simbólico, é possível escutar o som do vento
Sobreposto às performances vocais, é transpassando as árvores. Esse som é um ícone
possível observar a música e os efeitos sonoros, a porque associa diretamente a experiência auditiva à
partir de suas três propriedades sígnicas, auxiliando imagem visual das folhas caindo e do ambiente em
na imersão de ambos os tipos de ledores. Como que a ação ocorre.
icônica, a música desempenha um papel significativo Enquanto índices, eles se apresentam pela
em cenas de confronto entre os personagens, interação com determinados objetos ou sons que
auxiliando os perceptores na construção interpretativa advêm de organismos vivos como: o arfar de Terror, o
da dinâmica dessas situações. Isso possibilita a buldogue inglês de Butcher; os ruídos da multidão
construção da tensão, a empolgação e a emoção das quando Hughie está no parque de diversões com a
lutas à medida que os acordes e os ritmos da música sua namorada; o barulho de tijolos quebrando quando
sincronizam com os movimentos dos personagens. a sua namorada é jogada violentamente contra uma
Como índice, a música desempenha um papel parede de tijolos durante um confronto entre Trem-
fundamental ao marcar a passagem do tempo, bala, um dos super-heróis velocistas da história, e um
interrompendo o continuum narrativo e permitindo a “vilão”; ou ainda são relacionados outros efeitos
elipse entre ações cruciais na narrativa. Nesse sonoros mais “genéricos”, como portas se abrindo e
contexto, a função da música assemelha-se à da fechando, o bip do telefone e barulhos de passos.
sarjeta nas histórias em quadrinhos. Da mesma forma Enquanto símbolos, eles podem estar
que a sarjeta possibilita que o leitor preencha associados a uma determinada situação ou
mentalmente a transição entre os quadros, a música personagem. O personagem Trem-bala, que, como
indica mudanças no tempo e na atmosfera, citado, é superveloz, tem esse seu poder representado
capacitando o público a inferir as conexões narrativas por meio de um estrondo ou zumbido ocasionado pelo
e emocionais entre as diversas partes da história. seu deslocamento vertiginoso em uma fração de
Isso nos conduz à música como símbolo, pois segundos. Por isso, esse efeito sonoro se caracteriza
é possível perceber que se convencionou nesse como simbólico por evocar, por convenção, essa
audioquadrinho o rock ‘n roll como principal submídia habilidade única, sendo mais do que um complemento
dentro da música que já é um tipo de mídia. A escolha auditivo, visto que também serve para compor um dos
deliberada desse "gênero" musical -- que em seu aspectos da identidade do personagem.
passado já foi considerado subversivo e transgressor Em suma, os efeitos sonoros têm por função
por estar frequentemente associado à rebeldia, ressaltar a ocorrência de determinados fenômenos
liberdade de expressão e atitude desafiadora daqueles sonoros que, na graphic novel, seriam representados
que a adotam como estilo de vida --, desempenha um por meio das onomatopéias. No entanto, cabe
papel fundamental na construção da identidade desse ressaltar que, em determinadas circunstâncias, seus
audioquadrinho e o correlaciona às polêmicas que usos se tornam redundantes, uma vez que a
envolvem a graphic novel. Por isso, mais do que uma citação/transcrição intersemiótica do ledor simbólico já
escolha estilística, o rock 'n roll é, neste caso, uma descreveu a ação. Ainda assim, os efeitos sonoros são
construção simbólica que visa convencionar tais capazes de adicionar uma camada a mais de
características a esse universo ficcional. profundidade à imersão narrativa.
Os efeitos sonoros seguem uma lógica Naturalmente, os exemplos mencionados
semelhante. Enquanto ícones, eles aparecem para representam apenas uma fração das inúmeras
contextualizar o ambiente em que os personagens se maneiras pelas quais a música e os efeitos sonoros

Signo [ISSN 1982-2014]. Santa Cruz do Sul, v. 49, n. 94, p. 44-57, jan/abr. 2024.
http://online.unisc.br/seer/index.php/signo
GARCIA, J. M. et al.

em suas três propriedades são empregados na cinematográficas em razão da escalação de atores


construção da experiência multissensorial dos hollywoodianos como James McAvoy (Fragmentado,
audioquadrinhos. Por se tratar de um produto de mídia X-Men: Primeira Classe e It – A Coisa) e Andy Serkis
que está vinculado aos signos imagéticos da graphic (O Senhor dos Anéis, Planeta dos Macacos e Star
novel, as possibilidades oferecidas pela combinação Wars) no rol de ledores, junto ainda à participação do
da narrativa visual com elementos sonoros permite próprio autor em sua constituição. No caso de The
uma ampla gama de abordagens criativas e Sandman (2020), Gaiman assume o papel de narrador
expressivas. icônico por se assemelhar a um contador de histórias.
Mas, ao contrário do narrador simbólico de The Boys
3.2 The Sandman (2020): um audioquadrinho do (2020), Gaiman não se dedica a uma descrição
tipo fílmico detalhada de cada quadro da graphic novel, mas, em
vez disso, ele oferece aos ouvintes uma visão ampla
Lançado originalmente entre as décadas de de toda a situação.
1980 e 1990 pela Vertigo, o extinto selo editorial da Sua função se assemelha mais às das
DC Comics voltado para o público adulto, Sandman legendas nas histórias em quadrinhos, onde ele
(2010) é uma graphic novel composta por treze arcos contextualiza o tempo, o espaço e os personagens da
narrativos originais divididos em 75 edições. Com ação, fornecendo ao público detalhes específicos que
roteiro do escritor britânico Neil Gaiman, que iniciou a as músicas e os efeitos sonoros e mesmos os ledores
sua carreira como jornalista e crítico de histórias em indiciais por si sós não poderiam transmitir. Por isso,
quadrinhos, Sandman é hoje considerado um dos assim como os signos linguísticos ancoram os
grandes clássicos das narrativas gráficas junto a significados dos signos visuais, o ledor icônico
outros títulos como Maus (1986), de Art Spiegelman, desempenha um papel fundamental na fixação dos
Watchmen (1986-1987 [2009]), de Alan Moore, e significados dessas mídias sonoras auxiliares,
Batman: o cavaleiro das trevas (1986 [2011]), de Frank permitindo uma compreensão mais aprofundada da
Miller. narrativa.
Misturando elementos históricos, literários e Já os ledores indiciais de The Sandman
mitológicos, Gaiman constrói ao longo dessa narrativa (2020) desempenham uma função semelhante à dos
gráfica serializada um grande tecido de referências narradores indiciais de The Boys (2020): são eles que
tomando como fio condutor a milenar jornada de têm a responsabilidade de transformar todas as
Morpheus, a personificação do sonho e um dos sete informações contidas nos balões de diálogo presentes
seres perpétuos junto ao seus irmãos Destino, Morte, na graphic novel em fala por meio de suas
Destruição, Desejo, Desespero e Delírio. Contando performances vocais. Essa abordagem possibilita,
ainda com spin-offs no formato de história em igualmente, a criação de uma identidade única para
quadrinhos, que expandem e solidificam esse universo cada personagem, já que cada ledor pode construir
ficcional nesse meio, Sandman somente veio a ser características únicas por meio da voz para cada um
transmidiado para outros tipos de mídias a partir de dos personagens.
2020: primeiro, para o audioquadrinho homônimo Enquanto isso, a música e, mais
exclusivo da Audible, a plataforma de streaming de especificamente, os efeitos sonoros, desempenham a
áudio da Amazon, e, dois anos depois, em 2022, como função análoga à dos quadros na história em
série audiovisual para a Netflix. quadrinhos a partir de suas três propriedades
Dividido em “atos” em razão de sua semióticas. Em The Boys (2020), como mencionado
significativa extensão, o audioquadrinho de The anteriormente, essas duas mídias sonoras são usadas
Sandman (2020) se destaca entre outros por conta de de forma bastante pontual, mas, em The Sandman
sua produção, que muito se assemelha às produções (2020), elas são constantemente sobrepostas ao longo

Signo [ISSN 1982-2014]. Santa Cruz do Sul, v. 49, n. 94, p. 44-57, jan/abr. 2024.
http://online.unisc.br/seer/index.php/signo
Dos quadrinhos aos audioquadrinhos: uma análise intermidial

do audioquadrinho para construir a ambientação onde montanhas azuis, sem ser atrapalhado pelos gritos e
a ação da narrativa se desenrola. Como resultado, o cantorias dos adultos embriagados.
uso dessas mídias sonoras não se torna redundante No audioquadrinho, Gaiman, desempenhando
nem opcional, mas sim essencial para a compreensão o papel de ledor icônico, converte o signo linguístico
completa da história. Vejamos abaixo um exemplo. escrito da legenda deste mesmo quadro em um signo
Em Sandman, a jornada de Morpheus começa linguístico sonoro. Por sua vez, o signo imagético é
a partir de seu aprisionamento por um mago que, na construído pela sobreposição de diversos efeitos
verdade, queria capturar a sua irmã, Morte, para assim sonoros, incluindo o canto de pássaros, o balido de
conseguir ser imortal. Como consequência do tempo ovelhas, vozes humanas em conversa, o som
em que ficou preso, algumas pessoas ao redor do harmônico produzido por um instrumento musical,
mundo acabaram por entrar em sono profundo, sendo possivelmente um piano, juntamente com uma
uma delas Daniel Bustamante, um garoto africano. cantoria e até mesmo o suspiro do menino. Em
Como pode ser visto no quadro abaixo (Quadro 2), resumo, o quadro que retrata Daniel, um jovem negro
Daniel dorme em meio às sacas no depósito da deitado no chão, apoiado em um saco, enquanto outro
taverna de seu pai. A legenda, por sua vez, fixa o indivíduo que dorme em um banco, não é descrito
significado da imagem e acrescenta que o textualmente, mas sim transformado em uma
personagem sonha com um castelo no ar, acima das experiência auditiva imersiva.

Quadro 2 — Comparação entre um dos quadros de Sandman em comparação ao audioquadrinho.

Quadro da graphic novel Trecho transcrito do audioquadrinho


“Kingston, Jamaica. Daniel
Bustamante dorme. Os gritos e
canções de adultos embriagados
não abalam seu sono. Ele sonha
com um castelo no ar acima das
Montanhas Azuis. Castelo feito de
nuvens”11

Fonte: Sandman (2010, p. 15) e The Boys — Volume 1 (2020)

Neste caso, o audioquadrinho funciona como 4 Os audioquadrinhos brasileiros: um passado


a fluidez de um filme, porém sem as imagens em esquecido e um presente pouco explorado
movimento em sincronia. O perceptor, nesse sentido,
é levado a criar mentalmente a cena com base nas Os radioquadrinhos estadunidenses
pistas auditivas, resultando em uma abordagem desembarcaram em terras brasileiras durante o
narrativa que explora o poder da imaginação do Governo Roosevelt por meio de um pacote cultural
ouvinte. Tal experiência se assemelha ao processo de que integrava parte da política de “boa vizinha”. Esta
leitura de uma história em quadrinhos, em que o leitor era uma estratégia não intervencionista que tinha
preenche as entrelinhas dos quadros com sua própria como objetivo promover a unidade do continente
interpretação visual. americano contra o Eixo e mobilizar a opinião pública
dos países vizinhos em prol dos interesses e objetivos

11
Em inglês: “Kingston, Jamaica. Daniel Bustamante sleeps. The shouts and songs of drunken adults do not shake his slumber. He
dreams of a castle in the air above the Blue Mountains. Castle made of clouds” (Tradução nossa)

Signo [ISSN 1982-2014]. Santa Cruz do Sul, v. 49, n. 94, p. 44-57, jan/abr. 2024.
http://online.unisc.br/seer/index.php/signo
GARCIA, J. M. et al.

dos Estados Unidos durante a Segunda Guerra Por conta desse cenário, é viável inferirmos
Mundial. No entanto, como denuncia Cardoso (1998, que a transmidiação das histórias em quadrinhos aos
s/p), esse período de vigência do rádio, enquanto formatos sonoros ainda são um tipo de mídia muito
principal meio de comunicação de massa e a presença pouco explorado. Mesmo o Brasil sendo um país com
de séries radiofônicas de aventura — nas quais se uma rica e antiga tradição na criação de história em
inserem os radioquadrinhos norte-americanos —, quadrinhos, com uma miríade de títulos possíveis de
parece ter sido devorado pelo tempo, visto que “[...] encontrarem novos públicos por meio dos
muito pouco sobreviveu ao tradicional descuido dos audioquadrinhos, esse tipo de mídia parece encontrar
brasileiros pela cultura nacional [...]”. barreiras comerciais e culturais. Por isso, nosso
O que se sabe até hoje são poucas recorte se limitou aos quadrinhos estadunidenses,
informações obtidas por meio de relatos de fãs e visto que a variedade de produtos de mídia desse tipo
pesquisadores independentes movidos pela nostalgia é maior.
dessa época. Mesmo diante de tais circunstâncias,
Cardoso (1998) resgata alguns dados por meio dessas 5 Considerações parciais
fontes na tentativa de contextualizar a presença
desses programas sonoros nas grades das emissoras Os audioquadrinhos, como produtos de mídia
de rádio brasileiras. Tomando por recorte os resultantes de um processo de transmidiação,
radioquadrinhos estadunidenses transmidiados das constituem um formato auditivo que requer uma
páginas dos jornais diários e das revistas para o meio variedade de abordagens criativas para traduzir por
sonoro, é possível observar que Little Orphan Annie foi meio das ondas tudo aquilo que originalmente foi
um dos títulos importados para o Brasil, vindo a concebido de maneira visual dentro da linguagem das
ganhar versões brasileiras durante a década de 1940 histórias em quadrinhos. Trata-se de uma linguagem
sob o título de Annie, a pequena órfã, embora não haja caracterizada por sua natureza imagética, estática,
mais nenhuma outra informação mais aprofundada bidimensional, fragmentada e espaço-temporalmente
sobre. delimitada a partir de uma variedade de quadros que a
Enquanto nos Estados Unidos os constitui. Apesar da complexidade intrínseca dessa
audioquadrinhos parecem passar por um processo de tarefa, essas instâncias de transformação e
redescobrimento e um crescimento cada vez mais transferência (Elleström, 2021), evidenciam a
significativo da produção desse tipo de mídia, no capacidade dos elementos sonoros inerentes à
Brasil, os audioquadrinhos ainda são um nicho pouco linguagem dessa submídia que inclui a performance
explorado no contexto atual. Entre os produtos vocal, a música e os efeitos sonoros, convergindo de
disponíveis em plataformas de streaming voltadas maneiras diversas para criar uma rica diversidade de
para o público brasileiro, encontramos, na verdade, experiências auditivas.
narrativas transmídias que, podemos dizer, se Os exemplos mencionados anteriormente
apresentam como audioquadrinhos. Um exemplo é a servem como ilustrações claras desse fenômeno. Ao
parceria entre a Turma da Mônica e o serviço de examinar o audioquadrinho de The Boys (2020), torna-
streaming Ubook, que traz os ledores oficiais dos se perceptível que sua transmidiação equipara-se a
personagens de Mauricio de Sousa, e Batman uma audiodescrição da graphic novel na qual se
Despertar, uma tradução de Batman Unburied (2023) encontra baseada. Nesse contexto, o produto de mídia
para o português com um elenco composto por atores permanece ancorado nos elementos imagéticos, que
brasileiros conhecidos pela grande mídia, como Rocco são, neste novo meio, essencialmente transformados
Pitanga no papel do protagonista e Camila Pitanga em signos linguísticos e cujos significados são
dando voz à personagem Kell. ampliados pela incorporação estratégica da música e
dos efeitos sonoros.

Signo [ISSN 1982-2014]. Santa Cruz do Sul, v. 49, n. 94, p. 44-57, jan/abr. 2024.
http://online.unisc.br/seer/index.php/signo
Dos quadrinhos aos audioquadrinhos: uma análise intermidial

Em contraste, The Sandman (2020) ressurgência dos radioquadrinhos, uma forma de


representa um nível mais profundo de transformação entretenimento esquecida no passado.
para o meio auditivo, uma vez que não se vincula
rigidamente aos signos imagéticos da graphic novel
original. Nesse produto de mídia em específico, a
narrativa tem a liberdade de explorar as oportunidades
únicas oferecidas pelo áudio, permitindo uma
"recontagem" da jornada do protagonista sem
comprometer a essência e a riqueza da graphic novel.
E isso se evidencia pela habilidosa utilização da
música e dos efeitos sonoros, que contribuem para
criar uma atmosfera envolvente e complementar a
narrativa de maneira distinta.
Em resumo, a comparação entre The Boys
(2020) e The Sandman (2020) ilustram de maneira
vívida como os audioquadrinhos são capazes de
transcender, em menor ou maior nível, as limitações
da representação imagética e explorar plenamente o
potencial narrativo do áudio. Nesse contexto, a música
e os efeitos sonoros desempenham um papel crucial
na criação de uma experiência auditiva envolvente e
única, demonstrando a versatilidade desse meio
midiático inovador.
Obviamente, produzir produtos de mídia
sonoros como os audioquadrinhos demanda não
apenas tempo, mas também recursos financeiros e
conhecimentos técnicos para garantir uma eficiência
satisfatória. Além disso, o sucesso desse formato
alternativo depende significativamente do interesse do
público. Por isso, a ausência de audioquadrinhos no
contexto brasileiro pode ser explicada por fatores
como a sólida tradição de leitura de quadrinhos
impressos no país, e a própria preferência do público
por outras formas de entretenimento auditivo, como os
podcasts, que têm experimentado um aumento
significativo de popularidade nos últimos anos.
Embora essas sejam apenas hipóteses que
carecem de estudos mais aprofundados, é importante
notar que, com a constante evolução das mídias e a
crescente busca por novas experiências narrativas,
não se pode descartar a possibilidade de que os
audioquadrinhos possam encontrar seu espaço no
mercado brasileiro no futuro, trazendo consigo uma

Signo [ISSN 1982-2014]. Santa Cruz do Sul, v. 49, n. 94, p. 44-57, jan/abr. 2024.
http://online.unisc.br/seer/index.php/signo
GARCIA, J. M. et al.

Referências _____________.. Semiótica aplicada. São Paulo,


Cengage Learning, 2018.

ARVIDSON, Mats; et. al. Intermidial combinations . In:


BRUHN, Jørgen; SCHIRRMACHER, Beate. (Aut.). _____________. Neo-Humano: a sétima evolução do
Intermidial studies: an introduction to meaning Sapiens. São Paulo: Paulus, 2022. Edição Kindle.
across media. 1 ed. Nova York: Routledge, 2022.
p. 106-137.
VIEIRA, Miriam de Paiva. Écfrase: de recurso retórico na
antiguidade a fenômeno midiático na
CAGNIN, Antonio Luis. Os quadrinhos: linguagem e contemporaneidade. Todas as Letras-Revista de
semiótica. São Paulo: Ática, 2007. Língua e Literatura, v. 19, n. 1, 2017.

CARDOSO, Athos Eichler. A origem das séries de YACOBI, T. Ekphrastic double exposure and the museum
aventura e mistério da radiofonia brasileira e sua book of poetry. Poetics Today, v. 34, n. 1-2, p. 1-
interação como história em quadrinhos (1940- 52, 2013.
1959). Anais do XXI Congresso Brasileiro de
Ciências da Comunicação. Universidade Federal
de Pernambuco, 1998 FERREIRA, Ermelinda Maria Araújo. A écfrase como
técnica de transcriação intersemiótica. Anais do XI
. Encontro Regional ABRALIC. São Paulo:[sn],
ECO, Umberto. Apocalípticos e integrados. 6. ed. São 2007.
Paulo: Perspectiva, 2008

QUADROS, Laura Cristina de Toledo; MUSCO, Leticia de


ELLESTRÖM, Lars. As modalidades da mídia II. Porto Toledo Quadros. Reflexões acerca da série The
Alegre: ediPUCRS, 2021. Boys: aproximações entre o bem e mal
interseções entre a ficção e a realidade. 2021.

ELLESTRÖM, L. Media transformation: the transfer of


media characteristics among media. Houndmills: Obras citadas
Palgrave Macmillan, 2014.

ENNIS, Garth; ROBERTSON, Darick. The Boys. Iorque:


GARCIA, Jaimeson Machado; DOMINGOS, Ana Cláudia Dynamite Entertainment, Março 2008.
Munari. From cinema to audiobook: sharing media
resources. Ekphrasis journal, v. 29.4, 2023.
GAIMAN, Neil. Sandman: edição definitiva. Barueri, São
Paulo: Panini Books, 2010.
GARCIA, Jaimeson Machado; DOMINGOS, Ana Cláudia
Munari; FRONCKOWIAK, Ângela Cogo. O LEDOR
SIMBÓLICO, O ICÔNICO E O INDICIAL: uma MILLER, Frank. Batman, o Cavaleiro das Trevas. Edição
proposta de classificação aos agentes da voz do definitiva. 2. ed. Barueri/SP: Panini Books, 2011.
audiolivro. Afluente: Revista De Letras E
Linguística, 8(23), 352–381, 2023.
https://doi.org/10.18764/2525-3441V22N9.2023.33 MOORE, Alan. WATCHMEN, Edição Especial. São
Paulo: Panini Brasil Ltda, 2009.

LACKMANN, Ronald. W. Comic strips & comic books of


radio’s golden age (1920s-1950s): a biography of SPIEGELMAN, Art. Maus: a história de um sobrevivente.
all radio shows based on comics. Pensilvânia, Tradução Antônio de Macedo Soares. São Paulo:
Boalsburg: Bear Manor Media, 2004. Companhia das Letras, 2009.

MCCLOUD, Scott. Desvendando os quadrinhos. THE BOYS. Narrado por elenco completo. Produzido por
Tradução de Hélcio de Carvalho e Marisa do GraphicAudio, 2020.
Nascimento Paro. São Paulo: M Books, 2005.

THE SANDMAN. Narrado por elenco completo.


Nöth, Winfried. Narrative self-reference in a literary comic: Produzido por Audible, 2020.
M.-A. Mathieu’s L’Origine. Semiotica, v. 165, 2007.

SANTAELLA, Lucia. Cultura das Mídias. São Paulo:


Experimento, 1996.

Signo [ISSN 1982-2014]. Santa Cruz do Sul, v. 49, n. 94, p. 44-57, jan/abr. 2024.
http://online.unisc.br/seer/index.php/signo

Você também pode gostar