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Harold Bloom

A Angústia da Influência

Uma teoria da poesia

Tradução de
Miguel T amen

Título original: The Anxiety of Influence


© Oxford University Press, Inc., 1973

© Edições Cotovia, Lda., Lisboa, 1991

Concepção gráfica de João Botelho


Coordenação de António Lobo
Cotovia
ISBN 972-9013-81-0
Nota do Tradutor

Neste livro são usados termos, essenciais aos argumentos


de Harold Bloom, e para os quais (nomeadamente porque
esta é a primeira obra de Bloom a ser traduzida para portu-
guês) não existem hábitos de correspondência. Na sua tra-
dução, preferiu-se sempre a literalidade e, quando esta não
foi de todo possível, perífrases pouco brilhantes. Alguns des-
ses termos, ainda que não só esses, referem-se a autores
de que existem diversas traduções correntes. No caso da
Bíblia, preferiu-se a tradução brasileira da nova edição da
Bíblia de Jerusalém a partir dos manuscritos nas línguas
originais (São Paulo, 1986), com pequenas modificações pon-
tuais. No caso de Freud, seguiu-se a tradução portuguesa
do Vocabulário da Psicanálise (Lisboa, 1971). Para referências
a outros autores sem uma tradição de tradução em português
(e.g. Binswanger, Blake, Borges, Emerson, o Dr. Johnson,
Lucrécio, Milton, Pascal, Nietzsche, Yeats), traduziu-se do
original. Por fim, não foram simplesmente traduzidos os
textos dos poemas citados por Bloom, a não ser nos casos
raros em que o comentário de Bloom incide sobre aspectos
traduzíveis desses poemas.
Segue-se uma lista dos principais termos problemáti-
cos, por ordem alfabética:

blocking agent (agente bloqueador)


Central Bard (Bardo Principal)
Covering Cherub (Querubim Protector)
daemon (demónio)
daemonic (demónico)
imaginative (de, da imaginação)
instinct (instinto [lnstinkt], pulsão [Trieb])
latecomer, latecomer poet (poeta atrasado)

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maker (fazedor)
misapprehension (mal-entendido)
misinterpretation (interpretação errónea)
misplacement (colocação errónea)
misprision (encobrimento)
to misread (ler mal)
misreading (leitura má, errónea)
misrepresentation (representação errónea)
mistranslation (tradução errónea)
Para William K. Wimsatt
to misunderstand (compreender mal)
oegation (negação, denegação [Verneinung])
outward and downward (centrífugo e cadente)
outward-going-ness (extravio)
Overall (super-tudo)
Oversoul (super-alma)
parent-poem (poema-pai)
practical criticism (crítica, crítica prática)
primary criticism (crítica primordial)
ratio (proporção)
to recollect (relembrar)
recollection (recolecção)
revisionary (de revisão)
revisionist (revisionista)
stationary context (contexto de colocação)
True Subject (Verdadeiro Sujeito [wahrhaft seiendes
Subjekt], verdadeiro tema)
unseeing (despercepção)
unwisdom (não-sabedoria)

Cabe-me evidentemente a responsabilidade de todas


as escolhas e de todos os erros, e isso de um modo especial:
de facto, o livro de Bloom é ao mesmo tempo um livro sobre
a irresponsabilidade de uma coisa e outra, o que torna par-
ticularmente irónica a situação de qualquer tradutor.

M.T.

Julho de 1991

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Índice

PRÓLOGO
Grande maravilha que estivessem no Pai sem O conhecer p. 13

INTRODUÇÃO
Uma meditação sobre a prioridade e uma sinopse 17

1. Clinamen ou encobrimento poético 33


2. Tessera ou conclusão e antítese 63
3. Kenosis ou repetição e descontinuidade 91

INTER-CAPÍTULO
Um manifesto por uma crítica antitética 107

4. Demonização ou o contra-sublime 115


5. Askesis ou purgação e solipsismo 133
6. Ap6frades ou o regresso dos mortos 159

EPÍLOGO
Reflexões sobre o caminho 175
PRÓLOGO
Grande maravilha que estivessem no Pai
sem O conhecer

Depois de saber que caíra da Plenitude, e que a queda


fora de cima e para fora, tentou recordar a Plenitude.
Conseguiu, mas descobriu que ficara mudo, e não podia
dizer aos outros.
Queria dizer-llies que ela saltara ainda mais para diante
e caíra numa paixão separada do seu abraço.
Estava em grande agonia, e teria sido engolida pela
doçura não tivesse atingido um limite, e parado.
Mas a paixão prosseguiu sem ela, e ultrapassou o limite.
Pensava às vezes que estava prestes a falar, mas o silên-
cio continuou.
Queria dizer: «fruto feminil e fraco».

13
. . . A more severe,

More harassing master would extemporize


Subtler, more urgent proof than the theory
Of poetry is the theory of life,

As it is, in the intricate evasions of as.

Stevens, An Ordinary Evening in New Haven


INTRODUÇÃO
Uma meditação sobre a prioridade e uma sinopse

Este pequeno livro oferece uma teoria da poesia através


de uma descrição da influência poética, ou de uma história
de relações intra-poéticas. O objectivo desta nossa teoria
é correctivo: desidealizar as explicações aceites acerca do
modo como um poeta ajuda a formar outro. Um outro objec-
tivo, também correctivo, é o de tentar fornecer uma poé-
tica que favoreça uma crítica mais adequada.
Considera-se que a história poética, no argument;:,
deste livro, é indiscernível da influência poética, visto que
os poetas fortes fazem a história lendo-se mal uns aos
outros, de modo a desobstruir um espaço de imaginação
para si próprios.
O meu cuidado é apenas com poetas fortes, figuras
maiores com a persistência para lutar, se necessário até à
morte, com os seus precursores igualmente fortes. Os talentos
mais fracos idealizam; as figuras de imaginação capaz apro-
priam para si próprias. Mas nada se consegue de graça, e
a auto-apropriação implica as imensas angústias da dívida,
visto que nenhum fazedor forte deseja a realização que não
conseguiu por si criar. Oscar Wilde, que sabia que tinha
falhado como poeta porque não tinha a força necessária para
ultrapassar a sua angústia da influência, conhecia também
as mais sombrias verdades a respeito da influência. The Ballad
of the Reading Gaol é embaraçosa de ler, tão directamente
nela se reconhece que cada distinção que exibe é reflexo
de The Rime of the Ancient Mariner; e a poesia de Wilde
antologiza a totalidade do Alto Romantismo inglês. Sabe-
dor disto, e armado com a sua usual inteligência, Wilde
observa azedamente em O Retrato do Sr. W. H. que
«a influência é simplesmente uma transferência de personali-

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dade, um modo de desbaratar aquilo que é mais precioso Eberhart, compraz-se numa simpatia que é tanto mais forte
aos nossos eus, e o seu exercício produz um sentido e mesmo quanto é simpatia por si próprio:
uma realidade de perda. Todos os disclpulos retiram qual-
quer coisa dos seus mestres». Esta é a angústia do influen- Simpatizo com a sua negação de qualquer influência
ciar e no entanto nenhuma inversão é nesta área uma ver- da minha parte. Essa espécie de coisas parece-me sempre
dadeira inversão. Dois anos mais tarde Wilde refinou este desagradável porque, no meu caso, não estou consciente de
azedume numa das elegantes observações de Lord Henry ter sido influenciado por ninguém e deixei propositadamente
Wotton, em O Retrato de Dorian Gray, quando diz a Dorian de ler pessoas com maneiras tão pronunciadas como Eliot
que toda a influência é imoral: e Pound para que não absorvesse nada, mesmo inconscien-
temente. Mas há uma espécie de críticos que passam o seu
Porque influenciar uma pessoa é dar-lhe a nossa pró- tempo a dissecar o que lêem em ecos, imitações, influências,
pria alma. Não pensa essa pessoa os seus pensamentos natu- como se as pessoas não fossem nunca simplesmente elas pró-
rais, ou arde nas suas paixões naturais. As suas virtudes não prias mas sim invariavelmente compostos de muitas outras
são para si reais. Os seus pecados, se existe uma tal coisa, pessoas. E quanto a W. Blake, acho que isso quer dizer
são emprestados. Torna-se o eco de uma música alheia, um Wilhelm Blake.
actor de um papd que não foi escrito para ele.
Esta opinião de que a influência poética existe escas-
Para aplicar a Wilde a intuição de Lord Henry basta samente, excepto para pedantes furiosamente activos, é ela
ler a critica de Wilde às Appreciations de Pater, com a sua própria uma ilustração de um modo segundo o qual a influên-
observação final esplendidamente mistificada segundo a qual cia poética é uma variedade da melancolia ou de um princí-
Pater «Se escapou dos discípulos». Todas as principais cons- pio de angústia. Stevens era, insistia, um poeta altamente
ciências estéticas parecem particularmente mais dotadas para individual, um original tão americano como Whitman ou
negar obrigações à medida que as gerações famintas se vão Dickinson, ou os seus próprios contemporâneos: Pound, Wil-
pisando umas às outras. Stevens, um herdeiro de Pater mais liams, Moore. Mas a influência poética não faz necessaria-
forte do que o próprio Wilde, é reveladoramente veemente mente poetas menos originais; frequentemente, fá-los mais
nas suas cartas: originais, ainda que não necessariamente melhores. As pro-
fundezas da influência poética não podem ser reduzidas ao
Embora, claro, eu venha do passado, o passado é meu estudo de fontes, à história das ideias, à feitura de ima-
e não uma coisa que diz Coleridge, Wordsworth, etc. Não gens. A influência poética, ou, como lhe chamarei mais fre-
sei de ninguém que tenha sido especialmente importante para quentemente, o encobrimento poético, é necessariamente
mim. O meu complexo de realidade e irnagiÍiação é comple- o estudo do ciclo vital do poeta-enquanto-poeta. Quando
tamente meu, apesar de eu o ver noutros. tal estudo considera o contexto no qual o ciclo vital se desen-
rola, será levado a examinar simultaneamente as relações
Poderia ter dito: «especialmente porque eu o vejo nou- entre poetas como casos semelhantes àquilo a que Freud
tros», mas a influência poética era assunto em que dificil- chamou romance familiar e como capítulos na história do
mente as opiniões de Stevens se poderiam centrar. Na fase revisionismo moderno, querendo «moderno» dizer aqui pos-
final , as suas negações tornaram-se assaz violentas e estra- terior ao Iluminismo. O poeta moderno, como mostra
nhamente temperamentais. Ao escrever ao poeta Rkhard W. ]. Bate em The Burden o/ the Past and the English Poet,
é o herdeiro de uma melancolia engendrada no espírito do

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Iluminismo pelo cepticismo deste em rel~ção ao seu duplo d odos de prazer mais primordiais a favor de modos mais
legado de riqueza de imaginação ~os A.nttgos e dos. mestres ef:ados de prazer, o que significa exaltar a segunda opor-
do Renascimento. Neste livro negligencio na sua matar parte re ·dade em relação à primeira. O poema de Freud, à luz
a área que Bate explorou com grande engenho, para me cen-
trar em relações intra-poéticas enquanto paralelos de roman-
:~e livro, não é suficientemente rigoroso, ao contrário d~s
as escritos pelas vidas criativas dos poetas fortes. Asst-
ces familiares. Ainda que empregue tais paralelos, faço-o poe m b d b .
mllar a maturação emocion~ à desco. erta e. su stltutos
como um revisionista deliberado em relação a algumas das aceitáveis pode ser sabedona pragmática, par.ttcularmente
insistências freudianas.
' 1io de Eros mas essa não é a sabedona dos poetas
Tanto quanto o posso dizer, Nietzsche e Freud são as no doiDll ' , · d
fortes. O sonho abandonado não e apenas uma fantasia e
principais influências sobre a teoria da influência apresen- ratificação interminável, mas antes a maior de toda~ as
tada neste livro. Nietzsche é o profeta do antitético e a
liusões humanas, a visão da imortalidade. Se Ode: Inttma-
s~a Genealogia da Moral é o estudo mais profundo que já tions o/ Immortality from Recollections o/ Early Childhood
vt sobre as pressões de revi:>ão e as pressões ascéticas no
de Wordsworth possuísse a sabedoria que encontramos tam-
tempe~amento estético. As investigações de Freud sobre os
bém em Freud, bem poderíamos deix~r de lhe <:h~mar «a
mecamsmos de defesa e o seu funcionamento ambivalente
grande ode». Também Wordsworth. vm a repetlçao ou .a
fornece~ as anal~g!as mais claras que encontrei para as segunda oportunidade como essenct~l. para o dese~v?lvl­
~roporçoes de revtsao que governam as relações intra-poé-
mento e a sua ode admite a possib1hdade de corr1g1r as
ttc~s. E no entanto a teoria da influência aqui exposta é nossas' necessidades através da substituição ou da sublima-
a-metzscheana no seu literalismo deliberado e na sua insis-
ção. Mas a ode também desper~a. plan.ge?temente par~ o
tência viconiana em que a prioridade divinatória é crucial
fracasso e para o protesto do espmto cnatlvo contra a tna-
para todos os poetas fortes, para que não se reduzam mera-
mente a poetas atrasados. A minha teoria rejeita também nia do tempo. Um crítico wordsworthiano, mesmo tão leal
a Wordsworth como Geoffrey Hartman, pode insistir na
o optimis~o. ~ode~ado de Freud segundo o qual é possível distinção clara entre prioridade, enquanto conceito da ordem
uma substttwçao feliz, e uma segunda oportunidade nos pode
natural, e autoridade, da ordem espiritual, mas a ode de
salvar da demanda repetitiva das nossas devoções anterio-
Wordsworth recusa-se a fazer tal distinção. «Ao tentar ultra-
res. Os poetas enquanto poetas não podem aceitar substi-
passar a prioridade», diz sabiamente Har~man, .«a arte com-
tuições e lutam até. ao fim para ter a sua primeira oportuni-
bate a natureza no terreno desta, e esta destmada a per-
dade a s~s. Quer Ntetzsche quer Freud subestimam os poetas
e a poesta e no entanto ambos conferiram à fantasia mais der». O argumento deste livro é o de. que os poetas for~es
estão condenados exactamente a este tlpo de nao-sabedona;
poder .do que esta realmente possui. E também, pese embora
a grande ode de W ordsworth combate a natureza no ter-
o_ realis~o, moral de .ambos, sobre-idealizaram a imagina-
reno desta e sofre uma grande derrota, mesmo ao reter o
çao. O dtsctpulo de Ntetzsche, Yeats, e o discípulo de Freud,
seu maior sonho. Tal sonho, na ode de Wordsworth, é
Otto Rank, mostram uma maior consciência da luta do artista
ensombrado pela angústia da influência, devida à grandeza
contra a arte e da relação desta luta com a batalha antité-
tica do artista contra a natureza. do poema-precursor, o Lycidas de M~to.n, onde. a recusa
humana em sublimar completamente e amda ma1s severa,
Freud. reconheceu que a sublimação era a conquista pese embora a sua ostensiva vassalagem em relação aos ensi-
humana mats elevada, reconhecimento esse que o torna aliado
namentos cristãos acerca da sublimação.
d~ P.lat~o e de todas as tradições morais do judaísmo e do De facto, todos os poetas começam (mesmo que «incons-
crtsttarusmo. A sublimação freudiana implica o abandono
cientemente») por rebelar-se mais fortemente contra a cons-

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ciência da necessidade da morte do que os outros homens
esia se foi tornando mais subjectiva, a sombra pro-
e mulheres. O jovem cidadão da poesia, ou efebo, como que a Po d . d .
· t da pelos precursores foi-se tornan o maLS onu.nante.
Atenas lhe teria chamado é já o homem anti-natural e anti- JeC a , · · al
tético, e a partir do seu' princípio como poeta busca um A razão principal, no entanto, e que o prm~tp precursor
objecto impossível, tal como o seu precursor antes dele o de Shakespeare foi Marlowe, um poeta multo menor que
buscou. O facto de esta demanda conter necessariamente 0 seu herdeiro. Milton, apesar ~e toda a sua força, teve

em si a diminuição da poesia parece-me uma conclusão ine- ainda de lutar, subtilmente e cruc1almente, com um precur-
vitável que os historiado1·es da literatura escrupulosos devem de primeira ordem na pessoa de Spenser, e tal luta for-
sustentar. Os grandes poetas ingleses do Renascimento não sor e ao mesmo tempo deformou Milton. Coleridge, efebo
mouMilton e mais tarde de Wordswort h , tena
de . f'1cado c~n-
são igualados pelos seus descendentes iluminados e toda a
tradição do pós-Tiuminismo, que constitui o Romantismo, tente se encontrasse o seu Marlowe em Cowper (ou no m:nto
mostra lun declínio adicional nos seus herdeiros modernis- mais fraco Bowles), mas a influência não pode ser esc~lh1da.
tas e pós-modernistas. A morte da poesia não será anteci- Shakespeare é o maior exemplo d~ língua de un: fenomeno
pada por que se situa fora do âmbito deste hvro: a ab~orç~o absoluta
. quaisquer ruminações. de leitores ' e no entanto
parece Justo supor-se que a poesia, na nossa tradição, quando do precursor. Batalhas entr~ iguais fortes, p~s e filhos ,com~
m~rrer, será às suas próprias mãos, assassinada pela sua pró- poderosos opostos, Laio e Edipo na encruzilhada; t~l e aqm
pna força passada. Uma ansiedade implícita ao longo do exclusivamente o meu assunto, ainda que alguns pa1s, como
livro é a de que o Romantismo, pese embora todas as suas se verá, sejam figuras comp?s.itas. ~ fact? d~ mes_mo o~ ~oe­
glórias, pode ter sido uma vasta tragédia visionária, a empresa tas mais fortes estarem suJeltos a mflue~c1as nao-poetlc~s
a~to-fru~trada não de P1·ometeu mas do Édipo cego, que é óbvio, até para mim, mas, repito, a mmha preoc~p~çao
nao s_ab1a que a Esfinge era a sua Musa. é apenas com o poeta no poeta, ou o eu poético abongm.al.
Edipo, cego, encontrava-se na via da divindade oracu- Uma mudança como aquela que proponho a respeito
lar, e os poetas fortes seguiram-no transformando a sua das nossas ideias acerca da influência deverá ajudar-nos a
cegueira em relação aos seus precursotes nas visões de revi- ler mais precisamente qualquer grupo de poetas do passado
são das suas próprias obras. Os seis movimentos de revisão contemporâneos entre si. Para dar um exemplo, e.nq~anto
que traçarei no ciclo vital do poeta forte poderiam ser em maus intérpretes de Keats, nos seus poemas, os d1sc1pulos
maior número e poderiam ter nomes muito diferentes dos vitorianos de Keats incluem notoriamente Tennyson, Arnold,
que empreguei. Mantive esse número em seis porque tal Hopkins e Rossetti. Se Tenny~on triunfou ?o seu longo e
parece ser o número mínimo e essencial ao meu entendi- oculto duelo com Keats ninguem o pode afumar com c~r­
mento do modo como um poeta se desvia de outro. Os teza, mas a sua clara superioridade sobre Arnold, Hopkms
nomes, apesar de arbitrários, decorrem de várias h·adições e Rossetti deve-se à sua vitória relativa ou pelo menos. a.o
que têm sido centrais à vida da imaginação do Ocidente, manter das suas posições, ao contrário das derrotas par~1a1s
e espero que possam ser úteis. dos outros. A poesia elegíaca de Arnold mist~ra a?sl?sa-
O maior poeta da nossa língua foi excluído do argu- mente o estilo keatsiano com o sentimento ant1-romant1co,
mento deste livro por várias razões. Uma é necessariamente enquanto o esforço das intensidades e circunvoluções poé~
histórica; Shakespeare pertence à idade gigantesca anterior ticas de Hopkins e a arte densamente embutida de Rossettl
ao dilúvio, antes de a angústia da inRuência se ter tornado estão também em desacordo com os pesos de que se tentam
central à consciência poética. Outra razão tem a ver com aliviar nos seus próprios eus poéticos. Analogamente, pre-
o contraste entre forma dramática e forma lírica. À medida cisamos no nosso tempo de olhar de novo para o combate
infindável de Pound com Browning, tal como para a longa e
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na_ su_a I?aior parte oculta guerra civil ~ntre Ste~ens e os para os poetas, porque só tal rudeza constitui a Sabedoria
prmc1prus poetas do Romantismo ingles e amencano - Poética. Vico reduziu quer a prioridade natural quer a auto-
Wordsworth, Keats, Shelley, Emerson e Whitman. Tal como ridade espiritual à propriedade, uma redução hermética que
com os keatsianos victodanos, estes são casos entre mui- reconheço como a Ananke, a terrível necessidade que ainda
tos, necessários a uma história mais exacta acerca da histó- governa a imaginação ocidental. .
ria da poesia. O objectivo principal deste livro é necessa- Valentino, especulador gnóstico do século segundo, sruu
riamente o de apresentar a visão crítica de um leitor, no de Alexandria para ensinar o Pleroma, a Plenitude dos trinta
contexto quer da crítica quer da poesia da sua geração, onde Aeons, multiplicidade da Divindade: «Grande maravilha que
as crises presentes mais o tocam, e no contexto da sua pró- estivessem no Pai sem O conhecer». Procurar o lugar onde
pria angústia da influência. Nos poemas contemporâneos já estamos é a mais ignorante das demandas, e a mais con-
que mais me comovem, como Corsons lnlet e Saliences de denada. A Musa de cada poeta forte, a sua Sophia, projecta-
A. R. Ammons e F1'agment e Soonest Mended de John Ash- -se para tão longe e tão baixo quanto possível, numa paixão
bery, consigo reconhecer uma força que luta contra a morte solipsista da demanda. Valentino postulou um Limite, no
da poesia e apesar disso também as exaustões do atraso. qual a demanda acaba, ~.as nenhu~a. demanda acaba se o
Analogamente, pela crítica contemporânea que clarilica para seu contexto é o do Esp1nto Incond1c10nado, o cosmos dos
mim as minhas próprias evasões, em livros como Allegory maiores poetas pós-miltonianos. A Sophia de Valentino recu-
de Angus Fletcher, Beyond Formalism de Geofú:ey Hart- perou, casou-se de novo no Pleroma e só a sua Paixão ou
man e Blindness and Insight de Paul de Man é-me tornado Obscura Intenção foi separada para o nosso mundo, para
consciente o esforço do espírito para ultrap;ssar o impasse lá do Limite. Nesta Paixão, a Obscura Intenção a que Valen-
da critica formalista, o estéril moralismo em que se tornou tino chamou «fruto feminil e fraco», deve cair o efebo. Se
a crítica de arquétipos e a mera lugubridade anti-humanista dela emergir, mesmo que aleijado e cego, contar-se-á entre
d_e todos os desenvolvimentos da crítica europeia que terão os poetas fortes.
atnda de demonstrar que podem ajudar-nos a ler sequer um
poema de um qualquer poeta. O meu Inter-capítulo, que
pr~põ~ uma crítica ~ais antitética do que todas as de que SINOPSE: SEIS PROPORÇÕES DE REVISÃO
hoJe dtspomos, constitui a minha resposta nesta área do con-
temporâneo.
1. Clinamen, que é a má leitura ou o encobrimento
Uma teoria da poesia que se apresente como poema poético propriamente ditos; retomo a palavra de Lucrécio,
rude, que dependa do aforismo, do apotegma e de um padrão quando menciona um «desvio» dos átomos para tornar a
mítico assaz pessoal (ainda que completamente tradicional) mudança possível no universo. Um poeta desvia-se do seu
pode ainda ser julgada, e pode pedir para ser julgada, com~ precursor ao ler o poema do seu precursor executando um
um_a~~mento. Tudo o que constitui este livro - parábolas, clinamen em relação a ele. Tal movimento aparece como
deflruç~es, a reelaboração das proporções de revisão enquanto um movimento correctivo no seu próprio poema, que implica
mecarusmos de defesa- pretende ser parte de uma mecü- que o poema precursor foi bem até um certo ponto mas
tação unificada sobre a melancolia da desesperada insistên- que nessa altura se devia ter desviado, precisamente na direc-
cia na prioridade do espírito criativo. Vico, que leu toda ção em que o novo poema se move.
a criação como um rude poema, compreendeu que a priori-
dade na ordem natural e a autoridade na ordem espiritual 2. Tessera, que é conclusão e antítese; não retiro a
tinham sido uma única e tinham que permanecer uma única, palavra da fabricação de mosaicos, em que é ainda usada,

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mas dos antigos cultos de mistério, em que significa um mas sim através de uma redução; cede parte dos seus dotes
sinal de reconhecimento, o fragmento por exemplo de um humanos e de imaginação de modo a separar-se dos outros,
pequeno vaso que, com os outros fragmentos, constituiria incluindo do precursor, e fá-lo no seu poema colocando-o
o vaso. Um poeta «completa» antiteticamente o seu precur- em relação ao poema-pai de modo a fazer este poema sofrer
sor lendo o poema-pai de modo a reter os seus termos mas também uma askesis; o dote do precursor é também truncado.
fazendo-os significar noutro sentido, como se o precursor
não tivesse conseguido ir suficientemente longe. 6. Apófrades, ou regresso dos mortos; tomo a palavra
dos dias sombrios e nefastos de Atenas nos quais os mortos
3. Kenosis, que é um dispositivo de ruptura semelhante voltavam a habitar as casas em que tinham vivido. O poeta
aos mecanismos de defesa que as nossas psiques empregam posterior, na sua fase final, já sobrecarregado por uma soli-
contra a compulsão à t·epetição; a kenosis é então um movi- dão da imaginação que é quase um solipsismo, coloca o seu
mento na direcçâo de uma descontinuidade em relação ao poema face à obra do precursor de forma tão aberta que
precursor. Tomo a palavra de São Paulo, onde significa a à primeira vista poderíamos acreditar que se descreveu um
humilhação ou o esvaziamento de Jesus por si mesmo ao círculo completo e que se regressou à aprendizagem dilu-
aceitar a redução do seu estatuto divino em estatuto hum~o. viana do poeta posterior, antes de a sua força se ter come-
O poeta posterior, esvaziando-se aparentemente do seu pr6- çado a afirmar através das proporções de revisão. Mas agora
pno a//latus, da sua divindade imaginária, parece humilhar- o poema é sustentado na sua abertura face ao precursor
-se a si próprio como se deixasse de ser um poeta, mas este enquanto antes fora aberto, e existe um efeito estranho atra-
esvaziamento é realizado em relação a um poema de esva- vés do qual a conquista do novo poema no-lo faz parecer
ziamento do precmsor de forma a que o precursor seja tam- não como se o precursor o estivesse a escrever, mas como
bém esvaziado e, pottanto, o poema posterior de deflação se o próprio poeta posterior tivesse escrito a obra caracte-
não seja tão absoluto como parece. rística do precursor.

4. Demonização, ou um movimento na direcção de


um contra-sublime personalizado em reacção ao sublime do
precursor; tomo o termo do uso geral neoplatónico, em que
um ser ~termédio, nem divino nem humano, entra no adepto
para o aJudar. O poeta posterior abre-se àquilo que acredita
ser um poder no poema-pai que n~o pertence propriamente
ao pai mas a uma extensão de ser para lá do precursor. Fá-
-lo) no seu poema, ao colocar a sua relação para com o poema-
·pai de modo a dissolver por generalização a unicidade da
obra anterior.

. ~- Askesis, ou um movimento autopurgativo que visa


atmgtt um estado de solidão; tomo o termo, geral como
é, em especial da prática de shamans pré-socráticos como
Empédocles. O poeta posterior, ao contrário da kenosis, não
sofre um movimento de revisão através de um esvaziamento

26 27
Um
. . . when you consider
the radiance, that it will look into the guiltiest
swerwings of the weaving heart and bear itself upon them,
not flinching into disguise or darkening . . . .

A. R. Ammons
Clinamen
ou ENCOBRIMENTO POÉTICO

Shelley especulou que os poetas de todas as épocas


contribuíram para um Grande Poema em progresso perpé-
tuo. Borges observa que os poetas criam os seus precurso-
res. Se os poetas mortos, como Eliot insistiu, constituíram
os avanços específicos do conhecimento dos seus sucesso-
res, tal conhecimento é ainda uma criação dos seus sucesso-
res, construído pelos vivos para as necessidades dos vivos.
Mas os poetas, ou pelo menos os mais fortes entre eles,
não lêem necessariamente como até os mais fortes críticos
lêem. Os poetas não são nem leitores ideais nem leitores
correntes, nem arnoldianos nem johnsonianos. Ao ler, ten-
dem a não pensar que «isto está morto e isto está vivo,
na poesia de X». Os poetas, na altura em que se tornaram
fortes, não lêem a poesia de X, visto que os poetas real-
mente fortes só se podem ler a si próprios. Para eles, ser
judicioso é ser fraco, e comparar, exacta e justamente, é
não se ser eleito. O Satã de Milton, arquétipo do poeta
moderno na sua maior força, torna-se fraco quando racio-
cina e compara, no Monte Nifate, e desse modo começa
o processo de declínio que culmina no Paradise Regained,
terminando como arquétipo do crítico moderno na sua maior
fraqueza. Tentemos a experiência (aparentemente frívola)
de ler o Paraíso Perdido como alegoria do dilema do poeta
moderno, na sua maior força. Satã é o poeta moderno,
enquanto Deus é o seu antepassado morto, ou, melhor, o
poeta ancestral, ainda embaraçadoramente poderoso e pre-
sente. Adão é o poeta moderno potencialmente forte, embora
no seu momento mais fraco, quando tem ainda de encon-
trar a sua própria voz. Deus não tem Musa e não precisa
dela, visto que está morto, manifestando-se a sua criativi-
dade apenas no passado do poema. Dos poetas vivos no

33
poema, Satã tem o Pecado, Adão tem Eva e Milton tem outra coisa. Mas nós, para compreendermos o poeta forte,
apenas a sua Amante Interior, uma Emanação muito do precisamos ainda de ir mais longe do que ele pode ir, até
fundo que chora incessantemente o seu pecado, e que é invo- à indecisão anterior ao aparecimento da consciência da queda.
cada magnificamente por quatro vezes no poema. Milton Quando Satã ou o poeta olha à sua volta no chão de
não tem nome para ela, ainda que a invoque sob vários fogo que o seu eu em queda ateou, vê em primeiro lugar
nomes; mas, como ele diz, «the meaning, not the Name
uma cara que naquela altura mal reconhece, o seu melhor
I call>>. Satã, um poeta mais forte que o próprio Milton,
amigo, Belzebu, ou o poeta talentoso que nunca fez de facto
progrediu para lá das invocações da sua Musa.
nada e que agora nunca o fará. E, como poeta forte que
Porquê chamar a Satã poeta moderno? Porque projecta
gigantescamente um infortúnio no cerne de Milton e de é Satã está interessado na cara do seu melhor amigo ape-
n'as na medida em que esta lhe revela a condição do seu
Pope, um desgosto que é purificado pelo isolamento em Cal-
lins e Gray, em Smart e em Cowper, e que emerge na sua próprio aspecto. Um interesse tão limitado não faz pouco
plenitude e clareza em Wordsworth, que é o Poeta Moderno nem dos poetas que conhecemos nem do Satã verdadeira-
exemplar, o Poeta em sentido próprio. A incarnaçã.o do mente heróico. Se Belzebu tem tantas cicatrizes, se se parece
Carácter Poético em Satã começa quando a história de Mil- tão pouco com a forma que deixara para trás nos felizes
ton começa verdadeiramente, com a Incarnação do Filho campos de luz, não é menos verdade que o próprio Satã
de Deus e a rejeição por Satã dessa incarnação. A poesia se encontra odiosamente desprovido de beleza, condenado,
moderna começa com duas declarações de Satã: «We know como Walter Pater, a ser um Caliban das Letras, preso da
no time when we were not as now» e «To be weak is mise- pobreza essencial, numa penúria de imaginação, quando fora
rable, doing or suffering». outrora quase o mais rico, e precisava de quase nada. Mas
Adaptemos a sequência do próprio Milton no poema. Satã, com a força maldita do poeta, recusa-se a remoer o
A poesia começa com a nossa percepção, não de uma Queda, assunto e volta-se em vez disso para a sua tarefa, a de coli-
mas de que estamos em queda. O poeta é o nosso eleito, gir tudo o que ficou.
e a consciência da sua eleição vem como uma maldição; de Tal tarefa, minuciosa e profundamente da imaginação,
novo, não <<l am a fallen mam> mas «I am Man, and I am inclui tudo o que podemos considerar como motivação para
falling»- ou antes, «Eu era Deus, eu era Homem (porque escrever poesia que não seja estritamente votiva nas suas
para um poeta são o mesmo), e eu estou em queda de mim finalidades. De facto, porque é que os homens escrevem
mesmo». Quando esta consciência de si se eleva a um poemas? Para coligir tudo o que fica e não para santificar
extremo absoluto, então o poeta toca no chão do Inferno ou apresentar. O heroísmo da resistência - do Adão pós-
ou, antes, chega ao fundo do abismo e, através do seu -lapsariano de Mílton e do Filho no Paradise Regained -
impacto, cria a.f o Inferno. Diz: «Parece que deixei de cair; é um tema da poesia cristã, mas só dificilmente será um
agora sot1 caído e, portanto, estou aqui no Inferno». heroísmo para poetas. Ouvimos de novo Milton, celebrando
Aí e então, nesse mal, encontra o seu bem; escolhe a virtude natural do poeta forte, quando Sansão escarnece
o heróico, o conhecimento da maldição e a exploração dos de Harapha: «bring up thy van,/ My heels are fetter'd, but
limites do possível no seu interior. A alternativa é arrepender- my fist is free». O heroísmo final do poeta, em Milton,
-se, aceitar um Deus completamente diferente de si, com- é um espasmo de auto-destruição, magnífico porque arrasta
pletamente externo em relação ao possível. Este Deus é a consigo o templo dos seus inimigos. Satã, ao organizar o
história cultural, os poetas mortos, os embaraços de uma seu caos, ao impor uma disciplina apesar de uma visível escu-
tradição demasiado exuberante para precisar de qualquer ridão, ao chamar os seus favoritos para emularem a sua recusa

34 35
em lamentar-se, transforma-se no herói como poeta, ao des- verdadeiro crítico, e do partido de Deus sem o saber»). Feliz-
cobrir o que basta sabendo embora que nada baste. mente tivemos Empson, com a sua justa palavra de ordem:
Este é um heroísmo que está exactamente nas raias «Regresso a SheUey!» E para lá vou.
do solipsismo, nem no seu interior nem para lá dele. O declí- Ao contemplar a maldade de Milton em relação a Satã,
nio posterior de Satã no poema, engendrado pelo Pergun- em relação ao seu poeta rival e irmão negro, Shelley falou
tador Idiota em Milton, consiste no facto de o herói retirar do «casuísmo pernicioso» instalado nos espíritos dos leito-
desta fronteira para o solipsismo e assim se degradar; deixa, res de Milton, que seriam tentados a medir os fracassos de
durante o seu solilóqtúo no Monte Nifate, de ser um poeta Satã pela malícia de Deus em relação a eles, e a desculpar
e, ao entoar a fórmula «Evil be thou my good», torna-se Satã porque Deus teria sido malicioso para lá de todas as
um mero rebelde, um inversor .infantil de categorias morais, medidas. A opinião de Shelley foi torcida pela escola angé-
um out1·o enfadonho antepassado dos estudantes não- lica ou C. S. Lewisiana da crítica miltoniana, que pesou
-estudantes, a nova esquerda perpétua. De facto, o poeta os fracassos e os erros de Deus e descobriu que no cômputo
moderno, na alegria da sua força lamentosa, permanece sem- geral Satã era deficiente. Tal casuísmo pernicioso, Shelley
pre no linúte exterior do solipsismo, tendo sempre acabado teria concordado, não seria menos pernicioso se descobrís-
de emergir dele. O seu equilíbrio difícil, de Wordswortb semos (como eu descubro) que é o Deus de Milton que é
a Stevens, é o de manter uma posição exactamente aí, em deficiente. Seria ainda casuísmo, e, enquanto discurso sobre
que através da sua própria presença diz: «0 que vejo e oiço poesia seria ainda moralizador, que o mesmo é dizer, perni-
vem só de mim» e todavia também: «Não tenho mas sou cioso.
e porque sou, sou». A primeira declaração é talvez em si Mesmo os mais fortes poetas foram um dia fracos, por-
o magnífico desafio a um solipsismo declarado, que conduz que começaram como possíveis Adões e não como Satãs
de novo a um equivalente de um <<l know no time when retrospectivos. Blake chama Adão a um estado do ser, e
I was notas now>>. A segunda, no entanto, é a modificação chama-lhe Limite de Contracção, e a outro estado chama
que torna possível a poesia em vez da idiotia: «Não há objec- Satã, e chama-lhe Limite de Opacidade. Adão é o homem
tos exteriores a mim porque vejo o interior das suas vidas, dado ou natural, para lá do qual as nossas imaginações não
que são a minha, e assim 'Sou Aquele que é', o que equi- se podem contrair. Satã é o desejo coarctado ou restringido
vale a dizer que 'Também eu estarei presente onde e sem- do homem natural, ou melhor, a sombra ou Espectro desse
pre eu quiser estar presente'. Estou de tal modo em curso desejo. Para lá deste estado espectral não nos endurecere-
que qualquer movimento poss'vel é de facto possível, e, se mos contra a visão, mas o Espectro está acocorado na nossa
por agora exploro apenas as minhas próprias cavernas, pelo repressividade e ao estarmos suficientemente contraídos esta-
menos exploro». Ou, como Satã poderia tct· dito: <<No fazer mos suficientemente endurecidos. O bastante, lamentam-
e no spfrer serei feliz, porque mesmo no sofrer serei forte». -se os nossos espíritos, para não viver as nossas vidas, o
E triste observar a maior parte dos críticos modernos bastante para sermos assustados em relação ao nosso poten-
a observarem Satã, porque de facto nunca o observam. cial criativo pelo Querubim Protector, o emblema de Blake
O catálogo de despercepções dificilmente poderia ser mais (retirado de Milton, de Ezequiel e do Génese) para aquela
distinto, de Eliot, que fala no <<herói encaracolado e byro- porção da criatividade em nós que se volveu em constrição
niano de Milton» (dá vontade de responder, olhando para e endurecimento. Blake designou com precisão esta parte
todos os lados, <<Quem?») à assombrosa apostasia de Nortb- renegada do Homem. Antes da queda (o que para Blake
rop Frye que invoca, com uma polidez rid1cula, um con- queria dizer antes da Criação, visto que os dois aconteci-
texto wagneriano (dá vontade de nos lamentarmos: «Um mentos eram para si um e o mesmo) o Querubim Protector

36 37
era o génio pastoral Tharmas, um processo unificador que angústia ao poeta nele, angústia essa que aprendemos,
const.núa uma consciência indivisa; a inocência, pré-reflexiva, enquanto leitores, a menosprezar, para nosso próprio dano
de um estado sem sujeitos nem objectos, e que apesar disso e perigo. A angústia, este modo de melancolia, é a angústia
não incorria nos perigos do solipsismo, visto que também da influência, o terreno escuro e demoníaco em que agora
não tinha uma consciência de si. Tharmas é o poder de rea- entramos .
lização de um poeta (ou de qualquer homem), tal como o Como se tornam os homens poetas ou, para adaptar
Querubim Protector é o poder que bloqueia essa realização. uma fraseologia mais antiga, como se incarna a personagem
Nenhum poeta, nem mesmo um tão obstinado como poética? Quando um potencial poeta descobre pela primeira
Milton ou Wordsworth, é um Tharmas, tão tarde na histó- vez a (ou é descoberto pela) dialéctica da influência, quando
ria, e nenhum poeta é um Querubim Protector, apesar de descobre pela primeira vez a poesia como ao mesmo tempo
Coleridge e Hopkins se terem deixado, por fim, dominar interna e externa em relação a si, inicia um processo que
por ele, como talvez tenha acontecido com Eliot. Os poe- terminará apenas quando não tiver mais poesia dentro de
tas neste ponto tardio da tradição são ao mesmo tempo si, muito depois de ter o poder (ou o desejo) de descobri-la
Adões e Satãs. Começaram por ser homens naturais, afir- de novo fora de si. Apesar de toda a descoberta deste tipo
mando que não se contrairão mais, e acabaram por ser desejos ser um auto-reconhecimento, de facto um Segundo Nasci-
coarctados, frustrados apenas pelo que não podem apoca- mento, e dever, no puro bem da teoria, ser obtida num
lipticamente endurecer. Mas entre estes dois estados os maio- solipsismo perfeito, trata-se de um acto que em si nunca
res dentre eles são muito fortes e progridem em direcção é completo. A influência poética no sentido - divertido,
a uma intensificação natural que assinala Adão no seu breve atormentado, delicioso - de outros poetas, como sentida
apogeu e uma auto-realização heróica que assinala Satã na nas profundidades do solipsista quase perfeito, do poeta
sua breve e mais que natural glória. Quer a intensificação potencialmente forte. De facto, o poeta está condenado a
quer a auto-realização se cumprem apenas através da lin- aprender os seus anseios mais profundos mediante uma per-
guagem, e nenhum poeta desde Adão e Satã fala uma lín- cepção de outros eus. O poema está dentro dele e no entanto
gua livre da língua forjada pelos seus precursores. Chomsky ele experimenta a vergonha e o esplendor de ser encontrado
observa que quando se fala uma língua se sabem muitas coisas por poemas - grandes poemas -fora dele. Perder liber-
que nunca foram aprendidas. O esforço da crítica é no sen- dade neste centro é nunca perdoar, e aprender o terror de
tido de ensinar uma língua, na medida em que o que nunca uma autonomia para sempre ameaçada.
é aprendido mas se apresenta como dom de uma língua é «Ü coração de qualquer jovem», diz Malraux, «é um
a poesia já escrita - perspectiva que derivo da observação cemitério em que se inscrevem os nomes de mil artistas mor-
de Shelley segundo a qual cada língua é a relíquia de um tos mas cujos únicos residentes são uns poucos fantasmas
poema cíclico abandonado. Quero com isto dizer que a poderosos e frequentemente antagonísticos». «Ü poeta»,
cdtica não ensina uma linguagem da critica (ponto de vista acrescenta Malraux, «é assombrado por uma voz com a qual
formalista ainda partilhado por arquetipalistas, estrutura- as palavras se têm de harmonizar». Visto que as suas preo-
listas e fenomenologistas) mas uma linguagem em que a poe- cupações principais são visuais e narrativas, Malraux chega
sia se encontra já escrita, a linguagem da influência, da à fórmula: «do pastiche ao estilo», a qual não é adequada
dialéctica que governa as relações entre poetas enquanto poe- para a influência poética, em que o movimento de auto-
tas. O poeta em cada leitor não experimenta a disjunção em -realização se encontra mais próximo do espírito mais drás-
relação àquilo que lê que o crítico em cada leitor necessa- tico da máxima de Kierkegaard: «Aquele que está disposto
riamente sente. O que dá prazer ao crítico no leitor pode dar a trabalhar, dá à luz o seu próprio pai». Recordamo-nos

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do modo como durante tantos séculos, dos filhos de Homero e pelo Sublime veio também a angústia, na medida em que
aos filhos de Ben Jonson, a influência poética foi descrita a arte se encontrava para lá do trabalho. Edward Y oung,
como uma relação filial, e depois acabamos por ver que a com a sua estima longiniana pelo Gênio, rumina as virtudes
influência poética, mais do que a filiação, é outro produto funestas dos pais poéticos e antecipa o Keats das cartas e
do Iluminismo, um outro aspecto do dualismo cartesiano.
0 Emerson de Self-Reliance quando lamenta, a respeito dos
A palavra «influência» recebeu o seu significado de «ter grandes precursores: «Reclamam exclusivamente a nossa
um poder sobre outra pessoa» logo no latim escolástico de atenção e assim impedem uma inspecção adequada de nós
São Tomás, mas durante séculos não perdeu o seu sentido
próprios; tornam o nosso juízo preconceituado a favor das
etimológico de «influxo», e o seu sentido primordial de uma
suas capacidades, e assim diminuem o nosso sentido delas;
emanação ou força sobre a humanidade proveniente dos
e intimidam-nos com o esplendor do seu renome». E o
astros. No seu primeiro uso, ser influenciado queria dizer
Dr. SamuelJohnson, homem mais robusto e com mais leal-
receber um fluido etéreo proveniente dos astros, um fluido
dades clássicas, criou no entanto uma complexa matriz crí-
que afectava o carácter e o destino de uma pessoa e que
alterava todas as coisas sublunares. Um poder - divino e tica em que as noções de indolência, solidão, originalidade,
moral - mais tarde apenas um poder secreto - exercia-se imitação e invenção se encontram estranhamente mistura-
a si próprio, desafiando tudo o que nos parecia voluntário. das. Ladrou Johnson: «Ü caso de Tântalo, na região docas-
No nosso sentido - o de influência poética - a palavra tigo poético, é um tanto de lamentar, visto que os frutos
é muito tardia. Em inglês não é um dos termos críticos de que à sua volta se erguiam foram retirados da sua mão; mas
Dryden, e não é nunca usada no nosso sentido por Pope. que compaixão podem merecer aqueles que ainda que sofram
Johnson, em 1755, define a influência como quer astral quer as penas de Tântalo nunca erguerão as mãos em auxílio de
mor~'. ~zendo d~~a última que é «poder ascendente; poder si próprios?» Estremecemos com o ladrar de Johnson, e mais
de dtrJgtr ou modiftcar»; mas os exemplos que cita são reli- estremecemos porque sabemos que se refere também a si
giosos ou pessoais e não literários. Para Coleridge, duas gera- próprio, já que como poeta era um outro Tântalo, uma outra
ções depois, a palavra tem substancialmente o nosso sen- vítima do Querubim Protector. A este respeito só Shakes-
tido no contexto da literatura. peare e Milton escaparam aos açoites johnsonianos; até Vir-
Mas a angústia precedeu em muito o uso. Entre Ben gílio foi condenado por ser em demasia um imitador de
Jonson e SamuelJohnson a lealdade filial entre poetas tinha Homero. Com efeito, em Johnson, o maior crítico desta
dado lugar às afeições labirínticas daquilo a que a agudeza língua, temos também o primeiro grande diagnosticador da
de Freud chamou pela primeira vez «romance familiar», e doença da influência poética. E no entanto o seu diagnós-
o poder moral tinha-se convertido num legado de melanco- tico pertence à sua época. Hume, que admirava Waller, pen-
lia. Ben Jonson vê ainda a influência como saúde. Por imi- sava que W aller se salvara apenas porque Horácio estava
tação diz que entende «ser capaz de converter a substância tão longe. Estamos ainda mais longe e vemos que Horácio
ou as riquezas de outro poeta para nosso próprio uso. Fazer não estava suficientemente distante. W aller morreu. Horá-
escolha de um homem excelente sobre os demais e assim cio está vivo. «Ü fardo do governo», ruminava Johnson,
s~g~i-lo até se tornar nele próprio, ou tão como ele como «é aumentado para os príncipes pelas virtudes dos seus pre-
copia que possa ser tomada pelo original». Assim Ben Jon- decessores imediatos», e acrescentava: «Aquele que sucede
son não tem angústias no que diz respeito à imitação; para a um escritor celebrado encontra necessariamente as mes-
ele (refrescantemente) a arte é muito trabalho. Mas a som- mas dificuldades». Conhecemos demasiado bem o humor
bra desceu, e com a paixão do pós-Iluminismo pelo Génio rançoso de tudo isto, e qualquer leitor dos Advertisements

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for Myse!f se deleita com as danças frenéticas de Norman uma litania de males, veio-lhe mais poderosamente na sua
Mailer ao tentar evadir-se da angústia de ser afinal de con- visão do maior dos seus precursores:
tas completamente Hemingway. Ou, menos prazenteir-a-
mente, podemos percorrer The Far Field, de Roethke ou ... the Male-Females, the Dragon Forms,
His Toy, His Dream, His Rest, de Berryman, e descobrir Religion híd in War, a Dragon red & hidden Harlot.
que o campo, infelizmente, está demasiado próximo dos de
Wbitman, Eliot, Stevens, Yeats e que o brinquedo, o sonho Ali these are seen in Milton's Shadow, who is the Covering
e o verdadeiro descanso são também confortos dos mesmos Cherub . . . .
poetas. A influência, para nós, é a angústia que era para
Johnson e Hume, mas o pathos aumenta à medida que nesta Sabemos como Blake o sabia, que a Influência Poé-
história a dignidade diminui. tica é perda e ~anho, inseparavelmente entretecidos no la~i­
A Influência Poética, manchada pelo tempo, é parte rinto da história. Qual é a natureza do ganho? Blake dis-
do fenómeno mais amplo do revisionismo intelectual. E o tinguiu entre Estados e Indivíduos. Os Indivíduos passavam
revisionismo, quer em teoria política quer ainda em psico- através de Estados de Ser e permaneciam Indivíduos, m~s
logia, teologia, direito ou poética, mudou a sua natureza os Estados estavam sempre em movimento, sempre a osci-
no nosso tempo. O antepassado do revisionismo é a here- lar. E só os Estados eram culposos, os Indivíduos nunca.
sia, mas a heresia tendia a mudar a doutrina aceite mediante A Influência Poética é uma passagem de Indivíduos ou Par-
uma alteração de equilíbrios mais do que através do que ticulares através de Estados. Como todo o revisionismo,
se poderia chamar uma correcção criativa, a marca mais par- a Influência Poética é um dom do espírito que vem até nós
ticular do revisionismo moderno. A heresia resultava geral- apenas através daquilo a que se P??eria cha~ar, desapaixo-
mente de uma mudança de ênfase, enquanto o revisionismo nadamente, a perversidade do espmto, o~ aquilo a que Blake
segue a doutrina aceite até um determinado ponto, e depois mais exactamente considerou a perversidade dos Estados.
se desvia, ao insistir que se seguira uma clírecção errada Acontece por vezes que um poeta influenc~a outro _ou,
mais precisamente, que os poemas de um poe~a mfluencia~
a partir desse ponto, e o próprio Freud, ao contemplar os
os poemas de outro, através de uma generosidade do espi-
seus revisionistas, murmurava: «basta pensar nos fortes fac-
rito mesmo de uma generosidade partilhada. Mas o nosso
tores emocionais que tornam difícil a muitas pessoas ajustar-
ideilismo fácil é aqui deslocado. Quando a generosidade
-se aos outros ou subordinarem-se a eles»; mas Freud tinha
se encontra implicada, os poetas influenciados são menor~s
demasiado tacto para analisar tais «fortes factores emocio- ou mais fracos; quanto mais generosidade e quanto. ma1s
nais». Blake, felizmente livre de tal tacto, permanece o mais mútua esta é, piores são os poetas implicados. ~ aqm ~am­
profundo e original teorizador do revisionismo que apare- bém o influenciar se move mediante mal-entendidos, amda
ceu desde o iluminismo e um auxiliar inevitável no desen- que tal tenda a ser não-deliberado e quase inconsciente.
volvimento de uma nova teoria da Influência Poética. Ser Chego então ao princípio central do meu argumento, que
escravizado pelo sistema de um precursor, diz Blake, é ser não é mais verdadeiro porque é ultrajante, mas é apenas
inibido da criatividade por um raciocínio e uma compara- completamente verdadeiro:
ção obsessivos, presumivelmente entre as próprias obras e
as do precursor. A Influência Poética é então uma doença A Influência Poética - quando diz respeit? a dois po~­
da consciência de si; mas Blake não se encontrava liberto tas fortes, autênticos-, processa-se sempre atra~es d~ u_ma let-
da sua quota-parte nessa angústia. O que o atormentava, tura má do poeta anterior, um acto de correcçao cnatzva que

42 43
é realmente e t~ecessariamente uma interpretação errónea. frontar-se com o seu Grande Original deve encontrar o
A história da influência poética frutífera, que o mesmo é dizer defeito que lá não está, e assim no coração de praticamente
a tradição principal da poesia ocidental a partir do Renasci- todas as mais altas virtudes da imaginação. O amante ao
mento, é uma história de angústia e de caricaturas defensivas, ser levado por engano até ao centro da perda encontra-se,
de distorções, de mvisionismos perversos e deliberados sem os como percebe, no interior de uma ilusão mútua, o poema
quais a poesia moderna enquanto tal não poderia existir. que não está lá. «Quando duas pessoas se apaixonam}>, diz
Kierkegaard, «e começam a sentir que são feitas uma. para
O meu próprio Perguntador Idiota, alegremente enros- a outra, é tempo de acabar com tudo, porque se contmua-
cado no labirinto do meu se.r, protesta: <<Para que serve um rem têm tudo a perder e nada a ganhar». Quando o efebo,
tal princípio, seja o argumento a que dá forma verdadeiro ou figura do jovem como poeta viril, é descoberto pelo seu
ou não?» Será útil que nos digam que os poetas não são Grande Original, é tempo de continuar, porque tem tudo
leitores correntes, e particularmente que não são cdticos, a ganhar e o seu precursor nada a perder; se, de facto, os
na verdadeira acepção de críticos, leitores correntes eleva- poetas completamente escritos estiverem para lá da perda.
dos à potência mais alta? E de qualquer modo, o que é a Mas existe o estado chamado Satã, e é nessa dureza
Influência Poética? Pode o seu estudo ser mais do que indús- que os poetas se devem apropriar. De facto, Satã é uma
tria enfadonha de caça às fontes, contagem de alusões, indús- consciência pura ou absoluta do eu levado à admissão da
tria essa que de qualquer modo cedo chegará ao seu apoca- sua aliança íntima com a opacidade. O estado de Satã é
lipse quando passar dos estudiosos para os computadores? pois uma consciência constante do dualismo, de se estar
Não existirá aí a palavra de ordem que nos legou Eliot apanhado na armadilha do finito, não apenas no espaço (no
segundo a qual o bom poeta rouba enquanto o mau poeta corpo) mas também no tempo. Ser puro espírito e conhecer
trai uma influência, pede uma voz emprestada? E não estão em si no entanto o limite da opacidade; afirmar que remon-
aí todos os grandes idealistas da crítica literária, os que nega- tamos a antes da Criação-Queda, e no entanto ser obrigado
ram a influência poética, de Emerson, com as suas máxi- a ceder ao número, ao peso e à medida; esta é a situação
mas <Jnslste em ti : nunca imites» e «Não é possível que do poeta forte, da imaginação capaz, ao confrontar-se com
a alma digne repetir-se» até à transformação recente de o universo da poesia, com as palavras que foram e serão,
Northrop Frye no Arnold dos nossos dias, com a sua insis- com o esplendor terrível da herança cultural. No nosso tempo
tência em que o Mito da Devoção impede que os poetas a situação torna-se ainda mais desesperada do que era no
sofram das angústias da obrigação? século dezoito assombrado por Milton, ou no século deza-
Contra tal idealismo cita-se jovialmente a magnífica nove assombrado por W ordsworth, e os nossos poetas pre-
observação de Lichtenberg: «Também eu gosto de admirar sentes e futuros têm apenas a consolação de que nenhuma
os grandes homens, mas só aqueles cujas obras não entendo». figura titânica se ergueu desde Milton e Wordsworth, nem
Ou ainda, de Lichtenberg, que é um dos sábios da Influên- sequer Yeats ou Stevens.
cia poética: «Fazer exactamente o contrário é também uma Se se examinar as cerca de uma dúzia de influências
forma de imitação, e a definição de imitação devia por direito poéticas principais antes deste século, descobre-se depressa
incluir ambas as coisas». O que Lichtenberg insinua é que quem dentre elas é o Grande Inibidor, a Esfinge que e~tran­
a Influência Poética é ela própria um oxímoro, e que o Amor gula até as imaginações fortes nos seus berços: Milton.
Romântico é o análogo mais próximo da Influência Poé- O lema da poesia inglesa a partir de Milton foi composto
tica, outra esplêndida perversidade do espírito, ainda que por Keats: «A sua vida seria a minha Morte}>. Esta vitali-
se mova precisamente na direcção oposta. O poeta ao con- dade mortífera de Milton é o estado de Satã nele, e é-nos

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mostrada não tanto pela personagem de Satã no Paraíso Per- de novo. Mas sabe disso. Adopta aqui um dualismo heróico,
dido como pela relação censória entre Milton e o seu próprio nesta despedida consciente da terra da Alegria, um dua-
Satã, e pela sua relação com todos os poetas mais fortes do lismo sobre o qual quase toda a influência poética pós-
século dezoito e a maior parte deles do dezanove. -rniltoniana desta língua encontra fundamento. Para Mil-
Milton é o problema central em qualquer teoria e ton, toda a experiência decaída teve o seu fundamento
história da influência poética em inglês; talvez mais ainda inevitável na perda, e o paraíso só pode ser reconquistado
que Wordsworth, que está mais próximo de nós do que pelo Maior Homem e não por qualquer poeta. E no entanto
esteve de Keats, e que nos confronta com tudo o que há 0 Grande Original do próprio Milton, como o confessou
de mais problemático na poesia moderna, que o mesmo é a Dryden, foi Spenser, que atribui ao seu Colin um Paraíso
dizer em nós. O que une esta linha de ruminação - da de Poeta no Livro VI de The Faerie Queene. Milton - como
~ual. Milton é o antepassado; Wordsworth o grande revi- quer Johnson quer Hazlitt sublinham - era incapaz de
Slorusta; Keats e Wallace Stevens, entre outros, os herdei- aguentar a angústia da influência, ao contrário de todos os
ros dependentes - é uma aceitação honesta de um dua- seus descendentes. Johnson insistiu que, de todos os deve-
lismo de facto oposto ao feroz desejo de transcender todos dores de Homero, Milton era o menos endividado, acres-
os dualismos, desejo esse que domina a linha visionária e centando: «Era por natureza alguém que pensava por si,
profética que vai da relativa suavidade do temperamento confiante nas suas próprias capacidades e desdenhoso de
de Spenser até às ferocidades várias de Blake, Shelley, Brow- ajudas ou impedimentos: não recusou admitir pensamentos
ning, Whitman e Yeats. ou imagens dos seus predecessores, mas não os buscou».
Esta é a voz autêntica da linha rurninativa, a poesia Hazlitt, numa conferência a que assistiu Keats - uma
da perda, e também a voz do poeta forte ao aceitar a sua influência sobre a noção posterior de Keats de Capacidade
tarefa, a de coligir o que ficou: Negativa- notou a capacidade positiva que Milton tinha
para ingerir os seus precursores: «Ao ler as suas obras,
F arewell happy fields sentimo-nos sob a influência de um intelecto poderoso, que
Where joy for ever dwells: Hail horrors, hail quanto mais se aproxima dos outros mais distinto deles se
Infernal world, and thou profoundest Hell torna». O que então, somos levados a perguntar, quis Mil-
Receive thy new Possessor: One who brings ton dizer ao chamar a Spenser o seu Grande Original? Pelo
A mind not to be chang' d by Place or Time, menos isto: que, no seu Segundo Nascimento, Milton renas-
The mind is its own place, and in it self ceu no mundo dos romances de Spenser, e ainda que, ao
Can make a Heav'n of Hell, a Hell of Heav'n, substituir aquilo que acabou por considerar como a ilusão
What matter where, if I be still the same . . . ? unitária do romance spenseriano por uma aceitação de um
dualismo real como dor do ser, manteve o seu sentido de
Estes versos, para a escola de C. S. Lewis ou Escola Spenser como o sentido do Outro, o sonho da Alteridade
Angélica, representam a idiotia moral e devem ser recebi- que todos os poetas têm de ter. Ao afastar-se da aspiração
dos. à gargalhada, se por acaso nos lembrárnos de começar unitária da sua pr6pria juventude, pode dizer-se que Mil-
o dia com a nossa Profissão de Ódio a Satã. Se no entanto ton engendrou a poesia a que chamamos pós-iluminista ou
não formos tão sofisticados moralmente é possível que aque- romântica, a poesia que tem por tema obsessivo o poder
les versos nos comovam. Não que Satã não esteja enganado; do espírito sobre o universo da morte ou, como Words-
claro que está. Existe um pathos terrível no seu <<li I still worth o disse, o ponto até ao qual o espírito é senhor, e
be the same», visto que já não é o mesmo, e nunca o será a sensação serva da sua vontade.

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Nenhum poeta moderno é unitário, quaisquer que sejam poderiam ser poetas, pelo menos não durante mais de um
as suas aspirações professadas. Os poetas modernos são neces- livro), mas não podem desmascarar o Querubim. As pes-
sariamente dualistas infelizes, porque esta infelicidade, esta soas mais normais (e por vezes os poetas mais fracos) podem
pobreza, é o ponto de partida da sua arte - Stevens fala desmascarar o Querubim o bastante para poderem viver
adequadamente da «poesia profunda dos pobres e dos mor- (ainda que não para escolher a Perfeição da Vida), mas só
tos». A poesia pode ou não proporcionar a salvação a um se aproximam da Esfinge com o risco de morrer por estran-
homem, mas aproxima-se apenas daqueles em extrema neces- gulamento.
sidade de imaginação, ainda que possa então aparecer como De facto, a Esfinge é natural, mas o Querubim está
terror. Tal necessidade é aprendida pela primeira vez mais próximo do humano. A Esfinge é a angústia sexual,
mediante a experiência que o jovem poeta ou o efebo têm mas o Querubim é a angústia criativa. A Esfinge encontra-
de outro poeta, do Outro cuja gratidão nociva é aumentada -se no caminho que traz de volta às origens, mas o Queru-
pelo facto de o efebo o ver como um brilho ardente contra bim no caminho que conduz à possibilidade, ainda que não
uma moldura de escuridão, um pouco como o Bardo da Expe- à realização. Os bons poetas são caminhantes poderosos no
riência de Blake vê o Tigre, ou Job Leviathan e Behemot, caminho de volta - daí a sua profunda felicidade como
ou Ahab a Baleia Branca, ou Ezequiel o Querubim Protec- elegistas - mas só poucos se abriram à visão . Desmascarar
tor. No Génese é o Anjo de Deus; em Ezequiel é o Prín- o Querubim não requer tanto poder como requer persistên-
cipe de Tiro; em Blake é o Tharmas caído e o espectro de cia, implacabilidade, constante vigília; com efeito, o agente
Milton; em Yeats é o Espectro de Blake. Nesta discussão bloqueador que obstrui a criatividade não cai num «sono
é um pobre diabo com muitos nomes (tantos quantos os
de pedra» tão prontamente quanto a Esfinge. Emerson pen-
dos poetas fortes) mas convoco-o primeiro inominado, dado
sava que o poeta resolvia a Esfinge ao aperceber-se de uma
que um último nome para a angústia que bloqueia a sua
identidade na natureza ou então cedia ao seu poder caso
criatividade não foi ainda entrevisto pelos homens. É a coisa
fosse meramente bombardeado por particularidades diver-
que torna os homens vítimas e não poetas, um dem6nio
sas que nunca pudesse esperar integrar. A Esfinge, como
de discursividade e continuidades sombrias, um pseudo-
-exegeta que torna escritos em Escrituras. Não pode estran- Emerson viu, é a natureza e o enigma da nossa emergência
gular a imaginação, porque nada o pode fazer, e de qualquer da natureza, o que equivale a dizer que a Esfinge é aquilo
modo é muito fraco para estrangular o que quer que seja. a que os psicanalistas chamaram a Cena Primitiva. Mas o
O Querubim Protector pode mascarar-se de Esfinge (como que é a Cena Primitiva para um poeta enquanto poeta?
o Espectro de Milton se mascarou, nos pesadelos da Sensi- O coito do seu Pai Poético com a Musa. Foi aí que foi
bilidade) mas a Esfinge (cujas obras são poderosas) tem de gerado? Não- aí não o conseguiram gerar. Deve fazer-se,
ser uma fêmea (ou pelo menos um macho-fêmea). A Esfinge deve gerar-se a si próprio da Musa sua mãe. Mas a Musa
coloca enigmas e estrangula e é por fim destruída por si é tão perniciosa como a Esfinge ou o Querubim Protector
própria, mas o Querubim só protege, aparece apenas para e pode identificar-se com qualquer dos dois, ainda que geral-
impedir a passagem, não pode fazer mais que esconder. mente o faça com a Esfinge. O poeta forte não consegue
A Esfinge está todavia no caminho, e deve ser desalojada. gerar-se a si próprio - deve esperar pelo seu Filho, que
9 adivinho habita cada poeta forte ao partir na sua demanda. o definirá como ele definiu o seu Pai Poético. Gerar quer
E a maior ironia da vocação poética que os poetas fortes aqui dizer usurpar, e esse é o trabalho dialéctico do Queru-
possam levar a cabo a tarefa mais difícil e no entanto não bim. Entramos aqui no centro da nossa dor e devemos
consigam resolver a tarefa menor. Afastam a Esfinge (ou não examiná-lo de perto.

48 49
Que protege o Querubim no Génese? E em Ezequiel? do desejo. O emblema da Influência Poética é o Querubim
E em Blake? Génese 3:24 - «Ele baniu o homem e colo- Protector, porque o Querubim simboliza aquilo que veio
cou, diante do jardim do Éden, os querubins e a chama a ser a categoria cartesiana da extensão; daí ser descrito como
da espada fulgurante para guardar o caminho da árvore da rnimshach- «que a tudo se estende». Não é por acaso que
vida.» Os rabis tomaram aqui o querubim como simboli- Descartes e os seus pares e discípulos são os maiores inimi-
zando o terror da presença de Deus; para Rashi, eram «Anjos gos da visão poeta na tradição romântica, visto que a exten-
de destruição». Ezequiel 28:14-16 dá-nos um texto ainda são cartesiana é a categoria que está na raiz do dualismo
mais feroz: moderno (oposto ao dualismo pauliano), do assombroso
abismo entre nós e o objecto. Descartes via os objectos como
Fiz de ti o querubim protector de asas abertas [mims- espaço localizado; a ironia da visão romântica é que esta
hach, «que a tudo se estende»], estavas no monte santo de se 1·ebelou contra Descartes mas, excepto no caso de Blake,
Deus e movias-te por entre pedras de fogo. Desde o dia da não foi suficientemente longe - Wordsworth e Freud per-
tua criação foste íntegro em todos os teus caminhos até ao manecem do mesmo modo dualistas cartesianos, para quem
dia em que se achou maldade em ti. Em virtude do teu comér- o presente é um passado precipitado e a natureza um conti·
cio intenso te encheste de violência e caíste em pecado. Então nuum de espaços localizados. Estas reduções cartesianas do
te lancei do monte de Deus como um profano e te extermi- tempo e do espaço trouxeram-nos a praga adicional do
nei, ó querubim protector, dentre as pedras de fogo. aspecto negativo da influência poética, da influenza no domf-
nio da literatura enquanto influxo de uma epidemia de angús-
Deus denuncia·aqw o Príncipe de Tiro, que é um que- tia. Em vez da radiação de um fluido etéreo recebemos o
rubim porque os querubins no tabernáculo e no Templo de fluxo poético a partir de um poder oculto exercido pelos
Salomão abriram as suas asas sobre a arca e desse modo humanos, mais do que exercido por astros sobre humanos;
a protegeram, tal como o Príncipe de Tiro protegeu o Éden, «oculto» porque invisível e insensível. Separe-se o espírito
o jardim de Deus. Blake é um profeta ainda mais feroz contra como intensão do mundo exterior como extensão e o espí-
o Querubim Protector. Para Blake, Voltaire e Rousseau eram rito conhecerá - como nunca antes conheceu - a sua pró-
os Querubins Protectores de Vala, sendo que Vala era a pria solidão. O ruminante solitário vai então negar a sua
beleza ilusória do mundo natural e os profetas do ilumi- filiação e a sua fraternidade, tal como o Urizen de Blake,
nismo naturalista os servidores desta. Na «breve épica» de uma sátira acerca do Genius cartesiano, é o arquétipo do
Blake, chamada Milton, o Querubim Protector está entre poeta forte afligido pela angústia da influência. Se existem
o homem completo, ao mesmo tempo Milton, Blake e Los, dois mundos disjuntos - um uma enorme máquina mate-
e a emanação ou amante. Na Jerusalem de Blake o Queru- mática extensa e espacializada e outro feito de espíritos pen-
bim é o agente bloqueador entre Blake-Los e Jesus. Ares- santes sem extensão - então começaremos a localizar as
posta quanto àquilo que o Querubim protege é portanto: nossas angústias nesse continuum que se estende pelo pas-
em Blake, tudo o que a própria natureza protege; em Eze- sado e a nossa visão do Outro ficará magnificada ao ser
quiel, a riqueza da terra, praticamente através do paradoxo o Outro colocado no passado.
blakeano do <<Parecer que é tais riquezas»; no Génese, a Porta O Querubim Protector é então um demónio da conti-
Oriental, a Via para a Árvore da Vida. nuidade; o seu encanto pernicioso aprisiona o presente no
Será então que o Querubim Protector separa? Não - passado e reduz um mundo de diferenças a uma uniformi-
não tem poder para o fazer. A Influência Poética não ,é dade acinzentada. A identidade de passado e presente está
uma separação mas uma vitimização - é uma destruição de acordo com a identidade essencial de todos os objectos.

50 51
Este é o «universo da morte» de Milton, com o qual a poe- poetas n~quilo a que Blake cham~u so~bri~mente uma
sia não pode viver, visto que a poesia deve poder transpor, «ficção btfurcada» com duas alternativas, 1deahsmo e mate-
deve poder localizar-se num universo descontínuo e deve rialismo que são ambas anti-poéticas. A filosofia, ao purificar-
criar tal universo (como Blake fez) se não o conseguir encon- -se, lavou-se deste grande dualismo, mas toda a linha gigante
trar. A descontinuidade é a liberdade. Os profetas e os ana- de Milton a Yeats e Stevens só dispôs da sua própria tradi-
listas avançados proclamam de um mesmo modo a descon- ção, a Influência Poética, para lhe dizer que «quer o idealismo
tinuidade; aqui, Shelley e os fenomenologistas estão de quer o materialismo são respostas a uma pergunta imperti-
acordo: «predizer, prever realmente, permanece um dom nente>>. Yeats e Stevens, tanto como Descartes (ou Words-
daqueles que possuem o futuro no pleno e irrestrito sen- worth) trabalharam para ver com os olhos do espírito e não
tido da palavra, o sentido daquilo que vem até nós e não apenas com os olhos do corpo; Blake, o único anti-cartesiano
do resultado do passado». Isto é J. H. Van den Berg na genuíno, considerou tal labor igualmente uma ficção bifur-
sua Metabletica. Na Defesa da Poesia de Shelley, que Yeats cada, e satirizou a dióptrica cartesiana opondo o seu Vór-
com razão considerava o discurso mais profundo sobre a tice ao dos mecanicistas. Podemos agora conceder que o
poesia nesta língua, a voz profética proclama a mesma liber- Mecanismo tinha a sua nobreza desesperada. Descartes pre-
dade: «Os poetas são os hierofantes de uma inspiração tendia salvar os fenômenos através do seu mito da exten-
inapreendida; os espelhos das gigantescas sombras que a futu- são. Um corpo tinha uma forma definida, movia-se no inte-
ridade projecta sobre o presente». rior de uma área determinada e dividia-se dentro dessa área;
«Demonstra Deus por exaustão>> é uma nota do próprio e manteve assim uma integridade a respeito do devir estri-
Samuel Beckett no seu poema Whoroscope, um monólogo tamente limitado daquele. Tal processo estabeleceu o mundo
dramático enunciado por Descartes. O triunfo de Descar- ou variedade de sensação dado aos poetas, e a partir daí
tes veio numa visão literal, não necessariamente amistosa a visão wordsworthiana pôde ter início, erguendo-se desta
em relação a imaginações que não a sua. Nunca acabam os clausura para o êxtase obrigatório de uma redução suple-
protestos contra o reducionismo cartesiano, num constante mentar a que Wordsworth decidiu chamar imaginação.
tributo involuntário ao próprio Descartes. A bela mão-cheia A variedade das sensações emTintem Abbey é de início ainda
de poemas de Beckett em inglês é demasiado subtil para mais isolada e depois dissolvida num continuum fluido em
protestar abertamente, mas trata-se de orações fortes pela que os limites das coisas, o que nestas é fixo e definido,
descontinuidade. se esbate numa apreensão «superior». O protesto de Blake
E no entanto não existe nenhum preconceito cartesiano contra o wordsworthianismo, ainda mais eficaz devido ao
declarado contra os poetas, nenhum análogo da polémica seu elogio da poesia de Wordsworth, funda-se no seu hor-
platônica contra a sua autoridade. Descartes, nas suas Cogi- ror a esta ilusão obrigatória, este êxtase que é uma redu-
tationes privatae, pôde mesmo escrever: «Pode parecer estra- ção. Na teoria cartesiana dos vórtices todo o movimento
nho que se encontrem opiniões de peso nas obras de poetas tinha de ser circular (não existindo um vazio no qual a maté-
em vez de nas dos filósofos. A razão é que os poetas escreve- ria se pudesse mover) e toda a matéria tinha de ser capaz
ram através do entusiasmo e da imaginação; existem em de uma redução adicional (não havia portanto átomos). Tais
nós sementes de conhecimento, como fogo num sílex; os átomos, para Blake, eram as circunferências descritas pelos
filósofos extraem-nas através da razão, mas os poetas acen- Moinhos de Satã, moendo em vão na sua tarefa impossível
dem-nas pela imaginação e então aquelas brilham mais cla- de reduzir particulares diminutos, átomos de visão, eles
ramente». O mito ou abismo cartesiano da consciência con- próprios não susceptíveis de serem divididos. Na teoria bla-
seguiu apesar disso extrair o fogo do sílex e encurralou os keana dos vórtices, o movimento circular é uma auto-con-

52 53
tr~diyão; quando o poeta. se situa no ápex do seu próprio maneira contrária à do «fade into the light of common day>>
Voruce os círculos cartestano-newtonianos resolvem-se no wordsworthiano. A 'patafísica demonstra então que é real-
~lano e na pl~nura da Visão e os particulares surgem em mente exacta; no mundo dos poetas todas as regularidades
SI mesmos e nao enquanto outras coisas. Com efeito Blake
são de facto «excepções regulares»; a recorrência da visão
não deseja salvar os fen6menos tal como não adere ao é ela própria uma lei que governa as excepções. Se todo
~or<;>so progra~a daqueles que procuram <<salvar as apa-
0 acto de visão determina uma lei particular, então a base
renctas» no senudo que Owen Barfield (retomando a frase
para o paradoxo esplendidamente horrível da Influência Poé-
de M~ton) descreve.u. Blake é o teorizador do aspecto tica encontra-se solidamente fundamentada; o novo poeta
salvaCional ou de reviSão da Influência Poética, do impulso
ele próprio determina a lei particular do precursor. Se uma
que tenta expulsar o Querubim Protector para o meio das
interpretação criativa é então necessariamente uma inter-
pedras do fogo. Os visionários franceses, porque estavam
pretação errónea, devemos aceitar este aparente absurdo.
tão perto do feitiço de Descartes, da Sereia cartesiana tra-
É o absurdo no seu modo mais alto, o absurdo apocalíptico
balharam num espírito diferente, o do humor sério ~ ele-
vado, da ir~rúa apocalíptica, que culmina na obra de Jarry de Jarry ou de toda a empresa de Blake.
e dos seus discípulos. O estudo da Influência Poética é neces- Façamos então o salto dialéctíco: a maior parte das cha-
madas interpretações «exactas» da poesia são piores que
sariamen~e um ramo da 'Patafísica e confessa alegremente
a
a :~a dívtda para com «... Ciência, das Soluções Imagi-
nanas». Como~ Los de Blake, sob a influência de Urizen,
erros; talvez não haja senão interpre~ações erróneas mais
ou menos criativas ou interessantes, ou não será toda a lei-
o m7stre cartesiano ~espenha-se pela nossa Criação-Queda, tura necessariamente um clinamen? Não deveremos então,
desvra-se, e .esta P~6c!ia do clinamen lucreciano, esta mudança neste espírito, tentar renovar o estudo da poesia regressando
entre desuno e lige1ro capricho é, numa irorúa final toda de novo às coisas fundamentais? Nenhum poema tem fon-
a individualidade da criação urizénica, da visão cart~siana tes e nenhum poema se limita a aludir a outro. Os poemas
en~~~to tal. O cl~namen ou desvio, que é o equivalente são escritos por homens e não por Esplendores anónimos.
unz~ruco dos ~rr.os m,felizes da recriação levada a cabo pelo Quanto mais forte o homem, maior os seus ressentimentos
~erruurgo platomc?, e necessariamente o conceito operató- e mais insolente o seu clinamen. Mas por que preço, enquanto
no ce?-t~al da teor1a da Influência Poética, dado que aquilo leitores, devemos pagar o nosso próprio clinamen? Propo-
que di~t?~ qualquer poeta do seu Pai Poético (e, portanto, nho não uma outra poética mas uma crítica completamente
pela dtvtsao, o salva) é um exemplo de revisionismo cria- diferente. Abandonemos a empresa falida de tentar «com-
tivo. Devemos compreender que o clittat11en deriva sempre preender» poemas singulares como entidades em si. Prossi-
de um sentido 'patafísico do arbitrário. Assim o poeta coloca gamos, em vez disso, na demanda de aprender a ler qual-
o seu precursor, assim desvia o seu contexto, de modo a quer poema como interpretação errónea e deliberada do seu
que os objectos visionários, com a sua intensidade mais alta poeta, enquanto poeta, em relação a um poema precursor
desaparecem no continuum. O poeta tem, a respeito do hete: ou à poesia em geral. Se se puder distinguir cada poema
ro~~smos do. pre~rsor, um sentimento arrepiante do arbi- pelo seu clinamen «conhecer»-se-á esse poema de um modo
trarto - da tgualidade, ou da igual ocasionalidade de todos que não adquire o conhecimento à custa do poder do poema.
os objectos. Tal sentimento não é redutor na m'edida em Digo isto no espírito da rejeição de Pater da famosa metá-
, . '
que e ~ contimmm, o contexto de colocação que é revisto fora orgânica de Coleridge. Pater sentiu que Coleridge
e configurado no visionário; é trazido à intensidade dos (mesmo que involuntariamente) menosprezara a dor e o sofri-
objectos cruciais que então se «esbatem>> nele, de uma mento do poeta na consecussão do seu poema, desgostos

54 55
pelo menos parcialmente dependentes da angústia da influên- gratuito; afinal de contas, Jarry era capaz de considerar a
cia e desgostos inseparáveis do significado do poema. paixão como um prémio de montanha ciclístico. O estu-
Borges, comentando o sentimento sublime e aterrador dioso da Influência Poética é levado a ser um 'patafísico
que Pascal tinha da sua Esfera Assustadora, opõe Pascal iJnpuro; tem de compre~nder que o clit1~men d~ve ser .sem·
a Bruno o qual, em 1584, podia ainda exultar com a revo- pre considerado como sunultaneamente mtenctonal e mvo·
lução coperníciana. Em setenta anos a senescêncía instala- ]untário, a Forma Espiritual de todos os poetas e o gesto
-se - Donne, Milton, Glanvill vêem decadência onde Bruno gratuito qu: cada ~oeta faz qua?do. o se~. corpo, cade~te
vira alegria no progresso do pensamento. Como Borges atinge o chao do abtsmo. A Influencia Poettca seta, na lin-
resume, «Naquele século desalmado, o espaço absoluto que guagem de Blake, a passagem dos Indivíduos através de Esta-
inspirou os hexâmetros de Lucréc.io, o espaço absoluto que dos, mas tal passagem é mal feita quando não é um desvio.
fora uma libertação para Bruno, foi um labirinto e um abismo O poeta forte de facto diz: «Parece que acabei de cair; agora
para Pascal>>. Borges não lamenta a mudança, pois também sou caído e portanto estou aqui no Inferno», mas, ao dizê-
Pascal atinge o Sublime. Mas os poetas fortes, ao contrário -lo, pensa «Ao cair, desviei-me; portanto, estou aqui num
de Pascal, não existem para aceitar desgostos; não se podem inferno melhorado pela minha própria criação».
contentar com a aquisição do Sublime por tão alto preço.
Como o próprio Lucrédo, optam pelo clinamen como liber-
dade. Eis Lucrécio:

Quando os átomos viajam para baixo, movidos pelo seu


próprio peso, através do espaço vazio, em momentos e luga-
res indeterminados desviam-se ligeiramente do seu curso, ape-
nas o bastante para podermos considerar que houve uma
mudança de direcção. Não fora esse desvio tudo cairia ver-
ticalmente como pingos de chuva através do abismo do
espaço. Nenhuma colisão teria lugar e não ocorreria nenhum
impacto entre átomos. Assim nunca a natureza teria criado
coisa alguma ...
Mas o facto de a mente não ter ela própria nenhuma
necessidade de determinar cada um dos seus actos e forçá-lo
a sofrer numa passividade impotente - deve-se ao ligeiro
desvio dos átomos em momentos e lugares indeterminados.

Ao contemplar o clinamen de Lucrécio podemos obser-


var a ironia final da Influência Poética e acabar de descre-
ver o círculo até ao ponto por que começámos. Este clina-
men entre o poeta forte e o Pai Poético é criado por todo
o ser do poeta posterior, e a verdadeira bist6ria da poesia
moderna seria o registo minucioso de tais desvios de revi-
são. Para o 'patafísico puro, o desvio é maravilhosamente

56 57
Dois
Em todas as obras de génio reconhecemos os
nossos pensamentos rejeitados - regressam a nós com
uma certa majestade alienada.

Emerson
Tessera
ou CONCLUSÃO E ANTÍTESE

Li pela primeira vez o ensaio de Nietzsche Acerca da


vantagem e da desvantagem da história para a vida em Outu-
bro de 1951, quando era um estudante de pós-gradução em
Yale. Já nessa altura o ensaio era castigador mas dói-me
ainda mais quando hoje o leio:

Podem-se criar as obras mais assombrosas; o enxame


de eunucos históricos lá estará sempre no seu lugar, pronto
a considerar o autor através dos seus compridos telescópios.
Ouve-se logo o eco, mas sempre sob a forma de «crítica»,
apesar de o crítico não sonhar com a possibilidade da obra
um momento antes. Nunca chega a ter influência, mas só
uma crítica; e a própria crítica não tem influência, mas gera
apenas outras críticas. E acabamos pois por considerar que
a existência de muitas críticas é um sinal de fracasso. No
fundo, tudo fica como dantes, mesmo quando tal «influên-
cia» se manifesta: os homens falam um pouco de uma nova
coisa, e depois de outra coisa nova e entretanto continuam
a fazer o que sempre fizeram. O treino histórico dos nossos
críticos impede que tenham qualquer influência no verda-
deiro sentido do termo - uma influência sobre a vida e
sobre a acção.

Não é preciso um Nietzsche para fazer pouco da crí-


tica e a troça nesta passagem não me perturbou quando a
li pela primeira vez, nem me perturba agora. Mas a sua defi-
nição implícita de «influência» crítica há-de permanecer sem-
pre um peso para os críticos. Nietzsche, como Emerson,
é um dos grandes denegadores da angústia-como-influência,
tal como Johnson e Coleridge se encontram entre os seus
maiores afirmadores, e como W. J. Bate (na sequência de

63
Johnson e de Coleridge) é o seu estudioso recente de maior Goethe a quem pode chamar-se o avô de Nietzsche
peso. E no entanto acho que o meu próprio entendimento 1como Schopenhauer era o seu pai, observa na sua Teoria
da angústia da influência deve mais a Nietzsche e a Emer- ta Cor que «mesmo os mo deIos per fe1tos
da · te~_um
• e fe1to
· per-
son, que aparentemente não a sentiram, que a Johnson, Cole- turbador, na medida em que nos levam a offiltlr passos neces-
ridge e ao seu estudioso admirável Bate. Nietzsche, como ários na nossa Bildung, resultando daí que, na maior parte
sempre insistiu, era o herdeiro de Goethe e da estranha dos casos, somos afastados do alvo para o erro ilimitado».
recusa optimista deste em olhar o passado poético em pri- E todavia noutro lugar Goethe afirma a convicção de que
meiro lugar como obstáculo a uma nova criação. Goethe, de qualquer modo os modelos são apenas espelhos para o
como Milton, absorveu os precursores com um gosto que eu: «Ser amado pelo que se é a maior das excepções. A grande
evidentemente excluía qualquer angústia. Nietzsche devia
maioria ama nos outros apenas aquilo qu_e lhes empresta,
tanto a Goethe e a Schopenhauer como Emerson devia a
os seus próprios eus, a sua versão de si». E necessário lem-
Wordsworth e a Coleridge, mas Nietzsche, ao contrário de
brar que Goethe acreditava naquilo a que chamou, ~om
Emerson, não sentiu o arrepio do ensombramento por um
precursor. «Influência», para Nietzsche, queria dizer vitali- encantadora ironia, a puberdade recorrente ou, como d1sse
zação. Mas a influência e mais precisamente a influência delicadamente, que «Ü indivíduo tem de ser repetidamente
arruinado». 'Quantas vezes ?', queremos por vezes pergun-
poética tem sido mais u.ma praga que uma bênção desde
o Iluminismo até este momento. Quando foi vitalizada ope- tar, perturbados também pela insistên~ia goet~ia~a no ser-
rou como encobrimento, como revisionismo deliberado e -se influenciado por todas as submersoes poss1ve1s: «Tudo
até perverso. 0 que é grande nos molda a partir do momento em que

Nietzsche, no seu Crepúsculo dos Ídolos, expõe a sua disso tomamos consciência». Esta fórmula é terrível nas suas
concepção do génio: consequências para a maioria dos poetas (e para a maioria
dos homens). Mas Goethe, na sua autobiografia, foi capaz
Os grandes homens, tal como as grandes épocas, são de uma passagem como a que se segue, a qual apenas Mil-
explosivos nos quais se armazena uma força terrível; a sua ton de entre os ingleses do pós-iluminismo, e Emerson de
pré-condição, historicamente e psicologicamente, é sempre entre os americanos, poderiam ter sido tentados a subscre-
que, durante muito tempo muito tenha sido coligido, arma- ver. Só um poeta que se acreditasse literalmente incapaz
zenado, guardado e conservado para si - que não tenha de angústias criativas ·é que poderia ter dito isto:
havido uma explosão durante muito tempo. Quando a ten-
são dessa massa se tornou demasiado grande, basta o estí- Claro está que esta sobre-concentração em nós próprios
mulo mais acidental para convocar para este mundo o «génio», e naquilo que nos prejudica ou auxilia é um tema aborrecido
o «actm>, o grande destino. Não importam então o ambiente, e por vezes melancólico. Mas considerando por um lado as
a época, o «espírito do tempo» ou a «opinião pública». nefastas idiossincrasias da natureza humana e, por outro, a
infinita diversidade dos modos de vida e das distracções,
O génio é forte, a sua época é fraca. E a força dele é puro milagre que a raça humana não tenha há muito for-
esgota, não a ele, mas àqueles que vêm na sua esteira. Inunda- jado a sua própria destruição. A natureza humana deve ser
-os e, em troca, insiste Nietzsche, eles compreendem mal dotada de uma tenacidade e de uma versatilidade especiais
o seu benfeitor (ainda que a partir da descrição de Nietzs- que lhe permitem ultrapassar tudo aquilo com que entra em
che eu seja tentado a não dizer o seu benfeitor mas a sua contacto ou que incorpora ou, se a coisa desafia a assimila-
calamidade).
ção, pelo menos torná-la inócua.

64 65
Isto é mais verdadeiro a respeito da natureza goethiana ainda trabalhava na sua pretendida obra-prima tardia. No
que da natureza humana. «Todo o talento se deve desen- seu diário, escreveu: «Ser lembrados de que não estamos
volver na luta», observa Nietzsche, e por isso a sua visão sozinhos no mundo - sempre desagradável», e acrescen-
de Goethe é a de um lutador pela Totalidade, inclusive con- tou depois: «É uma outra versão da questão de Goethe:
tra as formulações de Kant. Para Nietzsche, no entanto, 'Será que vivemos se os outros vivem?'». Um leitor pode
Goethe é finalmente apenas uma outra superação do mera- sorrir da vaidade e talvez murmurar: «Nós os sedutores não
mente humano: «disciplinou-se até à totalidade, criou-se». gostamos uns dos outros», mas o assunto é infelizmente pro-
Que podemos fazer de tal afirmação? Em primeiro lugar, fundo, como Mano bem o sabia. No seu poderoso ensaio
dizer que se baseia solidamente na terrível autoconfiança sobre Freud e o Futuro, Mann aproxima-se muito do ensaio
do próprio Goethe. Não é verdade que foi ouvido a dizer: sombrio de Nietzsche sobre o uso correcto da história (que
«Será que todas as conquistas dos predecessores e dos con- Mano releu mais tarde para usar no Faustus). «Ü ego da
temporâneos de um poeta não lhe pertencem de direito? antiguidade e a sua consciência de si», diz Mano, «eram
Porque deveria este impedir-se de colher flores onde as diferentes dos nossos, menos exclusivos, menos nitidamente
encontra? Só apropriando-nos das riquezas dos outros pode- definidos». A vida podia ser <<imitação», no sentido de iden-
mos trazer à existência qualquer coisa de grande». Ou, ainda tificação mítica, e podia encontrar «consciência de si, san-
mais vigorosamente, disse a Eckermann: «Toda a gente fala ção, consagração» numa tal renovação de u~a identid~de
de originalidade, mas o que quer isso dizer? Mal nascemos, anterior. Seguindo (como pensava) Freud, ao 10vocar a v1da
o mundo começa a influenciar-nos, e assim continua até que exemplar de Goethe, e apontando para o seu próprio padrão
morremos. E, de qualquer modo, que podemos chamar nosso da imitatio - Goethe -, Mano dá-nos uma versão do século
a não ser a energia, a força, a vontade?». Excepto que, por- vinte da ultrapassagem da angústia da influência de Nietzs-
menor não despiciendo, para um poeta, sou levado a mur- che. Cito toda a passagem no ensaio de Mano, porque me
murar ao ler isto, a que diz respeito a angústia da influên- parece absolutamente única dentre as atitudes do nosso
cia senão justamente à energia, à força e à vontade? Serão século face aos desgostos da influência:
estas suas ou emanações do outro, do precursor? Thomas
Mano, um grande sofredor de angústia da influência, e Que papel o infantilismo - por outras palavras, a
um dos maiores teorizadores de tal angústia, sofria mais regressão à infância - , esse elemento genuinamente psica-
agudamente por, como tinha percebido, Goetbe não ter nalítico, desempenha nas nossas vidas! Que larga parte tem
sofrido nada. À procura de algum sinal de angústia em Goe- na formação da vida de um ser humano; opera de facto exac-
the, chegou a esta única questão do Westostlicber Diwan: tamente do modo que descrevi: como identificação mítica,
«Será que um homem vive quando os outros também vivem?» sobrevivência, percorrer das pegadas já existentes! O laço
A questão perturbou Mann muito mais do que Goethe. com o pai, a imitação do pai, o jogo de ser o pai, e a transfe-
O loquaz agente musical no Dr. Faustus, Herr Saul Fitel- rência para figuras substitutas do pai de um tipo mais alto
berg, enuncia uma obsessão central do romance quando e mais elevado - como funcionam estes traços infantis na
observa a Leverkühn: «0 senhor insiste na incomparabili- vida do indivíduo, a marcam e a formam! Uso a palavra
d~de dos casos pessoais. Paga um tributo a uma unicidade «forma», visto que para mim, em toda a seriedade, o ele-
pessoal arrogante - e talvez tenha de o fazer. 'Será que mento mais feliz, mais agradável daquilo a que chamamos
um homem vive quando os outros também vivem?'». No educação (Bildung), a formação do ser humano, é justamente
seu livro sobre a génese do Dr. Faustus, Mann confessa a esta poderosa influência da admiração e do amor, esta iden-
sua angústia ao receber o Glasperlenspiel de Hesse quando tificação infantil com uma imagem paterna escolhida devido

66 67
a uma profunda afinidade. O artista em especial, um ser apai- segundo a qual o homem de acção não tem consciência. Por
xonadamente infantil e lúdico, pode informar-nos a respeito isso, Nietzsche podia acrescentar, o homem de acção, o ver-
do efeito misterioso mas afinal óbvio de uma tal imitação dadeiro poeta, «também não tem conhecimento: esquece a
infantil sobre a sua própria vida, a sua condução produtiva maior parte das coisas para poder fazer uma coisa, é injusto
de uma carreira que afinal não é muitas vezes senão a reani- para aquilo que o antecedeu, e reconhece apenas uma lei
mação do herói sob condições pessoais e temporais muito - a lei do que vai acontecer». Nada - devo insistir -
diferentes e com meios, diremos infantis, muito diferentes. poderia ser mais nobremente e mistificadamente falso do
A imitatio através da qual Goethe, com as suas fases de Wer- que a insistência de Nietzsche, a insistência de um poeta
ther e de Wilhelm Meister, o seu período final do Fausto que tem desesperadamente medo da ironia. Esta ironia
e do Diwan, pode ainda formar e moldar miticamente a vida emerge numa passagem pungente e terrível do ensaio sobre
de um artista - emergindo do seu inconsciente e no entanto a história, em que Nietzsche protesta poderosamente con-
desenrolando-se - como é o modo dos artistas - numa cons- tra a filosofia hegeliana da história:
ciência sorridente, infantil e profunda.
Acreditar-se que chegámos tarde ao mundo é de qual-
Encontra-se nesta passagem tudo o que importa mais quer modo nocivo e degradante; mas deve parecer assusta-
na relação entre efebo e precursor, à excepção daquilo que dor e devastador quando diviniza quem chegou tarde,
importa mais que tudo - a melancolia inescapável, a angústia mediante um golpe claro de leme através do qual o verda-
que torna o encobrimento inevitável. O desvio de Mann deiro significado e o verdadeiro objectivo de toda a criação
em relação a Goethe é uma negação profundamente irónica passada, e todo o infortúnio consciente daquele, é disposto
da necessidade de um desvio. A sua interpretação errónea como a perfeição da história universal.
de Goethe deverá aqui ler precisamente o seu próprio génio
parodístico, o seu próprio tipo de ironia amorosa, no seu Não importa que esta ironia seja dirigida contra Hegel;
precursor. No seu grande esforço de descrição da Bildung, o seu verdadeiro objecto é a angústia da influência no pró-
a sua saga de José, dá-nos a figura memorável de Tamar, prio Nietzsche. «Estou convencido», diz-nos sabiamente
que ama Judá por uma ideia e mata os filhos deste na sua Lichtenberg, «que uma pessoa não só se ama nos outros
demanda dessa ideia. «Era», escreve Mann, <mma nova base mas também se odeia neles». Os grandes denegadores da
para o amor pela primeira vez na existência: o amor que influência- Goethe, Nietzsche, Mann na Alemanha; Emer-
não vem da carne mas da ideia, a que poderíamos chamar son e Thoreau na América; Blake e Lawrence em Ingla-
demónico». Tamar aparece tarde na história, mas está muito terra; Pascal e Rousseau e Hugo em França - estes homens
segura do lugar central na história que obrigará a história centrais são enormes campos de angústia da influência, tanto
a abrir para ela. Está, como talvez Mann só em parte tenha quanto os seus grandes afirmadores, de Samuel Johnson a
percebido (ainda que fosse um grande ironista) por ele pró- Coleridge e Ruskin na Inglaterra, e os poetas fortes das últi-
prio, e por todo o artista que sente intensamente a injustiça mas gerações naqueles quatro países.
do tempo em ter-lhe negado qualquer prioridade. A Tamar Montaigne pede-nos que olhemos para nós mesmos
de Mann sabe instintivamente que o significado de uma para aprender «que os nossos desejos privados nascem e
cópula é apen3;s outra cópula, tal como Mann sabe que não se alimentam na sua maior parte à custa dos outros». Mon-
se pode escrever um romance sem se lembrar outro romance. taigne, mais ainda que Johnson é o grande realista da angústia
«0 esquecimento», insistira Nietzsche, «é uma propriedade da influência, pelo menos até Freud. Montaigne diz-nos
de toda a acção», e prosseguira citando a frase de Goethe (seguindo Aristóteles) que Homero foi ao mesmo tempo o

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primeiro e o último dos poetas. Por vezes, ao ler Pascal, E no entanto esta metonímia dificilmente pode evitar-se:
sente-se que ele temia que Montaigne tivesse sido o pri- wdo o bom leitor deseja literalmente afogar-se, mas se o
meiro e o último dos verdadeiros moralistas. Pascal arru- poeta se afoga, tornar-se-á apenas um leitor.
fou: «Não é em Montaigne mas em mim que encontro tudo Vivemos cada vez mais num tempo em que as descri-
o que vejo nele», afirmação que se torna estranha quando ções levianas da angústia são vendáveis e alegremente con-
consultamos uma boa edição de Pascal e estudamos as lis- sumidas. Só uma análise da angústia neste século acrescenta
tas imensas de «passagens paralelas» que demonstram uma alguma coisa de valor, em minha opinião, ao legado dos
dívida tão difusa quão escandalosa. Pascal a tentar refutar moralistas clássicos e dos especuladores românticos e tal con-
Montaigne vestido com o casaco do seu precursor é como tribuição é necessariamente a de Freud. Em primeiro lugar,
Matthew Arnold a desdenhar Keats ao mesmo tempo que lembra-nos ele, a angústia é uma coisa que se sente, mas
escrevia The Scholar Gipsy e Thyrsis numa dicção, tom e é um estado de desprazer diferente do desgosto, da mágoa
ritmo sensual completamente (e inconscientemente) roubado e da mera tensão mental. A angústia, diz ele, é o desprazer
às Grandes Odes. acompanhado por fenómenos eferenciais ou de descarga por
Kierkegaard, em Temor e Tremor, anuncia, com uma vias bem definidas. Tais fenómenos de descarga aliviam
confiança magnífica mas absurdamente apocalíptica, que o «aumento de excitação» que subjaz à angústia. O primeiro
«aquele que está disposto a trabalhar, dá à luz o seu pró- aumento de excitação pode bem ser o trauma do nascimento,
prio pai». Penso que a seguinte confissão aforística de Nietzs- ele próprio uma resposta à nossa primeira situação de perigo.
che é mais fiel aos simples factos: «Quando não temos um O uso de «perigo» por Freud lembra-nos do nosso medo
bom pai é preciso inventar um». Temo que a angústia da universal da dominação, do nosso encarceramento pela natu-
influência, da qual todos sofremos, sejamos ou não poetas, reza na masmorra do nosso corpo, em certas situações de
tem de ser localizada em primeiro lugar nas suas origens, tensão. Apesar de Freud ter rejeitado a descrição de Rank
do trauma do nascimento com a alegação de que é biologi-
nos pântanos funestos daquilo a que Freud, com espirituo-
camente infundamentada, continuou perplexo com aquilo
sidade magnanimamente desesperada, chamou «o romance
a que chamou «uma certa predisposição para a angústia por
familiar». Mas, antes de entrar nesse terreno perniciosamente
parte do recém-nascido». A separação da mãe, análoga à
encantado, detenho-me na própria «angústia» para alguns
angústia de castração posterior, provoca «um aumento de
reconhecimentos necessários.
tensão que deriva da insatisfação de necessidades», sendo
Freud, ao definir a angústia fala de «Angst vor etwas». as «necessidades» aqui vitais para a economia da auto-
A angústia antes de alguma coisa é claramente um modo -preservação. A angústia da separaÇão é então uma angús-
de expectativa, como o desejo. Podemos dizer que a angús- tia de exclusão, e rapidamente se junta à angústia da morte
tia e o desejo são as antinomias do efebo ou do poeta prin- ou ao medo do superego por parte do ego. Isto leva Freud
cipiante. A angústia da influência é uma angústia quanto à fronteira da sua definição das neuroses obsessivas, que
à expectativa de se ser inundado. Lacan insiste em que se devem a um receio do superego, e encoraja-nos a explo-
o desejo é apenas uma metonímia, e pode ser que o contrário rar o análogo compulsivo da melancolia dos poetas, ou a
do desejo, a angústia da expectativa, seja também apenas angústia da influência.
uma metonímia. O efebo que teme os seus precursores como Quando um poeta sofre a sua incarnação como poeta
poderia temer um dilúvio está a tomar uma parte vital por sente também necessariamente angústia em relação a qual-
um todo, sendo aqui o todo tudo o que constitui a sua angús- quer perigo que possa acabar com ele como poeta. A angús-
tia criativa, o agente bloqueador espectral em qualquer poeta. tia da influência é tão terrível porque é ao mesmo tempo

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uma espécie de angústia de separação e o princípio de uma mente solitários que vivem numa promiscuidade desorde-
neurose obsessiva, ou medo de uma morte que é um supe- nada no caos de uma natureza misteriosa e, por essa mesma
rego personificado. Os poemas, podemos especular por ana- razão, terrível. Não tinham faculdades de raciocínio; tinham
logia, podem ser encarados (bem-humoradamente) como des- apenas sensações muito fortes e uma força de imaginação que
cargas motoras em resposta ao aumento de excitação da os homens civilizados dificilmente podem entender». Para
angústia da influência. Os poemas, como a crítica sempre governar as suas vidas, os homens primitivos de Vico cria-
nos garantiu, devem proporcionar prazer. Mas - apesar ram um sistema de magia cerimonial que era aquilo a que
da insistência de toda a tradição poética e do romantismo Vico chamou «um rude poema». Estes primitivos - gigantes
em particular- os poemas não são dados pelo prazer, mas da imaginação - eram poetas, e a sua sabedoria cerimonial
pelo desprazer de uma situação de perigo, a situação de era aquilo que ainda buscamos como «sabedoria poética».
angústia da qual a mágoa da influência é tão grande parte. E no entanto - ainda que isso não perturbasse Vico - essa
Que justifica esta analogia tão radical entre nascimento sabedoria, esse formalismo mágico, era necessariamente
humano e nascimento poético, entre angústia biológica e cruel e egoísta. As formas gigantescas que inventaram a
angústia criativa? Para dar uma justificação precisamos de poesia são os equivalentes antropológicos de bruxos, feiti-
percorrer um terreno sombrio e demoníaco, no desgosto das ceiros, shamans, cuja vocação é a sobrevivência e o ensinar
origens, em que a arte emerge do êxtase shamanico e da outros a sobreviver. A sabedoria poética - para Vico - fun-
miséria do nosso humano medo intemporal da mortalidade. da-se na divinação, e cantar é - simplesmente e mesmo
Porque os meus interesses são os do crítico prático, que etimologicamente- prever. O pensamento poético é pro-
procura uma maneira mais nova e mais completa de ler poe- léptico e à Musa invocada sob o nome de Memória é implo-
mas, acho que este regresso às origens é inescapável, ainda rada uma ajuda que faça o poeta recordar o futuro. Os sha-
que de mau-gosto. O que ao mesmo tempo mantém juntos mans regressam a um caos primordial, nas suas iniciações
poemas rivais e os separa entre si é uma relação antitética terríveis e totais, para tornar uma nova criação possível;
que emerge em primeiro lugar do elemento primordial na mas em sociedades que já não são primitivas tais regressos
poesia; e tal elemento, desgraçadamente, é a adivinhação, ou são raros. Os poetas, dos órficos gregos aos nossos contem-
o desespero de procurar antever perigos para o eu, quer da porâneos, vivem em culturas da culpa, em que o formalismo
natureza, dos deuses, dos outros ou quer ainda do próprio eu. mágico da sabedoria poética viconiana é necessariamente
E - devo acrescentar - para o poeta num poeta - tais inaceitável. Empédocles pode bem ter sido cronologicamente
perigos vêm também de outros poemas. o último poeta que tomava a divinação literalmente. Quer
Existem muitas teorias das origens poéticas. Entre estas dizer, acreditava que se tinha tornado um deus ao ter-se
estou mais convencido e sou também mais repelido pela de tornado um praticante bem-sucedido do augúrio. Compa-
Vico, mas a repulsa deve-se à minha própria dependência rado com o seu espalhafato, poetas fortes como Dante,
em relação a um humanismo profético e romântico que por Milton e Goethe parecem consumidos pela angústia da
isso tenho de pôr de lado. E no entanto Emerson, a grande influência, por muito miraculosamente livres dela que pare-
fonte americana de um romantismo profético, é curiosamente çam quando os comparamos com os principais românticos
viconiano também nas suas teorizações acerca das origens e modernos .
poéticas, o que aceito como um encorajamento. Para Vico, Curtius, na sua famosa explicação das Musas, vê-as
como Auerbach observou, não existe nenhum conhecimento como um problema ligado à desvalorização ou substituição
sem criação. Os homens primitivos de Vico são maravilho- históricas, bem como à continuidade, e descobre que o seu
samente descritos por Auerbach como «nómadas original- significado, mesmo para os gregos, era «vago». Mas Vico

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é muito preciso no tocante ao significado das Musas para mútuo do poeta e da Musa é realmente. E todavia, que
o seu conceito de Carácter Poético: tem em si a nostalgia do poeta que seja válido? O poeta
erra ao procurar imagens - a Musa nunca foi a sua mãe
Aos poetas chamou-se propriamente divinos no sentido e 0 precursor nunca foi o seu pai. A sua mãe era o seu espí-
de adivinhos, de divinari, adivinhar ou predizer. Sua ciência rito imaginado ou a ideia da sua própria sublimidade, e o
chama-se Musa, definida por Homero como o conhecimento seu pai não nascerá até que encontre o seu próprio efebo
do bem e do mal, isto é, a adivinhação ... Foi então primeiro central, que retrospectivamente o engendrará da Musa, que
a Musa a ciência de adivinhar através de auspícios ... Ura- só então se tornará a sua mãe. Ilusão atrás de ilusão, visto
nia, cujo nome vem de ouranos, céu, e significa «aquela que que a terra, como assegura a Keats a sua Musa Maneta,
contempla o céu» para deles retirar os auspícios ... , e as outras se encontra justificada independentemente de todo este sofri-
Musas eram ditas filhas de Júpiter (pois da religião nasce- mento, esta imposição de um romance familiar sobre as tra-
ram todas as artes da humanidade, das quais Apolo, tido dições da poesia. E no entanto o peso está ainda aí. Nietzs-
principalmente por deus da divinação, é a divindade princi- che, o profeta do vitalismo, que começou por denunciar
pal), e «cantam» no sentido em que os verbos latinos camere o abuso da história, apela: «Será que te ordeno que sejas
e cantare significam «predizer». ou planta ou fantasma?» e todos os poetas fortes respon-
dem: «Tenho de ser ambas as coisas».
Sugiro que estas frases (juntei-as a partir de várias pas- Talvez possamos abreviar e dizer que o jovem poeta
sagens em Vico) têm implicações sombrias para qualquer se ama a si próprio na Musa e teme que esta se odeie a
estudo dos poetas e da poesia. A angústia poética implora si própria nele. O efebo não pode saber que é um inválido
à Musa uma ajuda na divinação, que significa prever e adiar da extensão cartesiana, um jovem aterrorizado pela desco-
o mais possível a morte do próprio poeta enquanto poeta berta do seu próprio caso incurável de continuidade. Na
e (talvez também) enquanto homem. O poeta de qualquer altura em que se tornou um poeta forte, e assim aprendeu
cultura da culpa não se pode iniciar num novo caos; é for- este dilema, procura exorcizar a culpa necessária da sua ingra-
çado a aceitar uma ausência de prioridade na criação, o que tidão transformando o seu precursor numa versão falsifi-
significa que tem de aceitar também um fracasso na divina- cada do próprio poeta posterior. Mas também isso é um
ção como primeira das muitas pequenas mortes que profe- engano de si próprio e uma banalidade, visto que o que
tizam uma extensão final e total. A sua palavra não é ape- o poeta consegue através disso é transformar-se numa ver-
nas sua, e a sua Musa foi com muitos antes de si. Chegou são falsificada de si próprio e então confundir a consequên-
tarde à história, mas a Musa, pelo contrário, sempre foi cia com a figura do precursor.
sua parte central, e teme com razão que a sua catástrofe
iminente seja apenas mais uma na longa litania de desgos-
tos da Musa. Em que consiste a sua sinceridade para com Freud distingue entre duas fases tardias do romance
ela? Quanto mais tempo vive com ela mais pequeno se torna, familiar, uma em que a criança acredita que é enjeitada e
como se se revelasse homem apenas por exaustão. O poeta uma em que acredita que a sua mãe teve muitos amantes
pensa que ama a Musa devido à sua ânsia de divinação, na posição do seu pai. O movimento entre fantasias é aqui
que lhe garantirá o tempo suficiente para a realização, mas sugestivamente redutor, na medida em que a noção de uma
sua única ânsia é a de uma nostalgia de uma casa do tama- origem elevada e de um destino frustrado dá lugar a ima-
nho do seu espírito, e por isso de facto não ama a Musa. gens de degradação erótica. Blake, ao insistir que Tirzah
The Mental Trave/ler, de Blake, mostra-nos aquilo que o amor ou a Necessidade era apenas a mãe da sua parte mortal des-

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cobriu (como quase sempre) que era uma dialéctica de dis- Mas para compreender que a relação difícil do poeta para
tinções aquilo que o libertava das preocupações do romance com o seu precursor e a sua Musa é uma versão mais extrema
familiar. Mas a maior parte dos poetas - como a maior desta doença comum precisamos de relembrar Freud num
parte dos homens - padece de uma versão de romance fami- dos seus momentos mais astutos. Tem de citar-se aqui uma
liar ao lutar para definir uma Ielação o mais vantajosa passagem algo longa da sua sabedoria mais sinistra:
possível para com o seu precursor e a sua Musa. O poeta
forte - como o grande homem hegelíano - é ao mesmo Quando uma criança ouve que deve a vida aos seus
tempo o herói da história poética e a sua vítima. Esta viti- pais, que a sua mãe lhe deu vida, os sentimentos de ternura
mização aumentou à medida que a história se desenrolava misturam-se nela com a vontade de ser grande e indepen-
visto que a angústia da influência é tanto mais forte quanto dente, de modo a que concebe o desejo de indemnizar os
mais lírica, mais subjectiva, é a poesia, e deriva directa- seus pais por esse dom e resgatá-lo por um dom de valor
mente da personalidade. Na concepção hegeliana um poema idêntico. É como se o rapaz dissesse na sua rebeldia: «Não
é apenas um prelúdio de uma percepção religiosa, e num quero nada do meu pai; vou pagar-lhe tudo aquilo que lhe
poema lírico desenvolvido o espírito encontra-se tão sepa- custei». Tece então uma fantasia em que salva a vida ao pai
rado do sensível que a arte está prestes a dissolver-se em numa ocasião perigosa ficando então quites, e essa fantasia
religião. Mas nenhum poeta forte, no seu apogeu deman- é muito frequentemente deslocada para o Imperador, o Rei
dante, pode (como poeta) aceitar esta concepção hegeliana. ou qualquer outro grande homem após o que pode entrar
E não seria para si que a história iria ser consolo para viti- na consciência e até ser usada por poetas. Enquanto se aplica
mizações. ao pai, a atitude de provocação na fantasia de «salvação»
Para que não seja vitimizado o poeta foite deve então é de longe mais preponderante que o sentimento de ternura,
«salvar» a Musa amada dos seus precursoies. Claro está que sendo este último geralmente dirigido à mãe. A mãe deu
«sobrestima» a Musa, vendo-a como única e insubstituível, a vida à criança e não é fácil substituir tal dom por coisa
pois de que outro modo poderia assegurar-se que ele é único de igual valor. Mediante uma ligeira alteração de sentido,
e insubstituível? Freud observa secamente que «o desejo pre- que é facilmente realizável no inconsciente - comparável
mente de uma coisa insubstituível no inconsciente resolve- ao modo através do qual os diversos matizes de sentido se
-se frequentemente através de uma série interminável na conjugam em concepções conscientes - o salvar da mãe
realidade», padrão especialmente prevalecente na vida amo- adquire o significado de dar-lhe um filho ou fazer-lhe um
rosa da maior parte dos poetas ou talvez mesmo de todos filho- um como nós, bem entendido ... todos os instintos,
os homens e mulheres pós-românticos amaldiçoados por uma de afeição, de gratidão, de sensualidade, de desafio, de auto-
imaginação forte. «Uma coisa», acrescenta Freud, «que apa- -afirmação e independência são gratificados no desejo de se
rece na consciência como dois contrários é muitas vezes um tornar o pai de si próprio.
todo unido no inconsciente», observação aliás a que preci-
saremos de voltar quando nos aventurarmos pelo abismo Se este vai ser o modelo para o romance familiar entre
dos sentidos antitéticos. Na totalidade da imaginação do poetas, precisa de ser transformado, de modo a acentuar
poeta, a musa é ao mesmo tempo mãe e cortesã, na medida menos a paternidade fálica e mais a prioridade, visto que
em que a fantasia mais vasta que a maior parte de nós tece o produto em que os poetas negaceiam, a sua autoridade,
a partir dos nossos interesses necessariamente egoístas é o a sua propriedade, gira à volta da prioridade. Adquirem,
romance familiar, que pode considerar-se o único poema são, aquilo em que ao invocar se tornam. De facto, seguem
que mesmo as naturezas pouco poéticas continuam a compor. todos a intuição de Valéry quando insistia em que o homem

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fabrica por abstracção, recuo esse que retira a coisa feita cura o seu oposto. Freud usou-o para explicar os sentidos
do cosmos e do tempo para que possa chamar-se nossa, lugar opostos das palavras primitivas:
em que nenhuma intrusão pode ser tolerada. Todas as deman-
das do pós-iluminismo, quer dizer, todos e quaisquer roman- ... a estranha tendência do trabalho do sonho para negli-
genciar a negação e exprimir contrários através de meios de
tismos, são tentativas de te-engendrar o nosso próprio eu,
representação idênticos ... este hábito do trabalho do sonho ...
de nos tornarmos o nosso próprio Grande Original. Viaja-
condiz exactamente com uma particularidade das mais antigas
mos para nos abstrairmos por entretecimento. Mas onde
línguas nossas conhecidas ... Nessas palavras compostas com-
o tecido já foi tecido, viajamos para o desfiar. Infelizmente binam-se intencionalmente conceitos contraditórios, não para
- na arte - a demanda é ainda mais ilusória que na vida. exprimir, através da combinação de ambos, o significado de
Quanto mais a perseguimos mais a identidade se afasta de um dos seus membros contraditórios, que só por si tivesse
nós nas nossas vidas e apesar disso temos razão em não nos querido dizer o mesmo ... No acordo entre aquela particula-
convencermos de que é inatingível. Geoffrey Hartman nota ridade do trabalho do sonho e isto podemos ver uma confir-
que num poema a busca da identidade é sempre um engano, mação da nossa suposição a respeito do carácter regressivo
porque a demanda funciona sempre como dispositivo for- e arcaico da expressão do pensamento através dos sonhos ...
mal. Isto faz parte do tormento do fazedor, parte da razão
por que a influência é tão profundamente uma angústia para Não podemos supor que a poesia seja uma neurose
o poeta forte e o leva a inclinações ou preconceitos na sua obsessiva. Mas a relação de longa data entre efebo e pre-
obra que são de outro modo desnecessários. Ninguém cursor pode ser deste tipo. A neurose obsessiva é cal·acteri-
aguenta ver a sua luta interior como um mero artifício e zada por um intenso grau de ambivalência, e de tal ambiva-
no entanto o poeta, ao escrever o seu poema, é forçado lência emerge um padrão de expiação salvacional que, no
a ver as declarações contra a influência como uma demanda processo de encobrimento poético se torna um quase-ritual
ritualizada da identidade. Pode o sedutor dizer à sua Musa: que determina a sucessão de fases no ciclo vital poético dos
«Minha senhora, o meu engano é-me imposto pelas exigên- fazedores fortes . Angus Fletcher, o alegorista dem6nlco,
observa esplendidamente que para os poetas a linguagem
cias formais da minha arte.»?
do tabu é o vocabulário das «palavras antitéticas primiti-
Os nossos desgostos como leitores não podem ser idên-
vas>> de Freud . No seu estudo de Spenser, Fletcher caracte-
ticos aos embaraços dos poetas, e nenhum crítico consegue riza o demandante romântico como aquele que procura <<um
alguma vez afirmar a prioridade de um modo digno e justo. espaço mental, um vazio referencial, que possa encher com
Ao incitar a crítica a tornar-se mais «antitética», só a incito as suas visões». O demandante, que descobre que todo o
a prosseguir numa via já tomada. Em relação aos poetas espaço se encontra cheio com as visões do seu precursor,
não somos efebos que lutam com os mortos mas mais exac- recorre à linguagem do ~abu de modo a libertar um espaço
tamente necromantes que se esforçam por ouvir os mortos mental para si próprio. E essa linguagem do tabú, esse uso
cantar. Ao escutá-los, precisamos de nos lembrar dos des- antitético das palavras primitivas do precursor, que deve
gostos das Sereias, das angústias delas que criaram angús- servir de base a uma crítica antitética.
tias para outros, ainda que não para nós. Uso a palavra «anti- Na nossa capacidade de estudantes perseguindo a
téticO>> no seu sentido retórico: a justaposição de ideias Influência Poética avançamos agora para a tessera ou vínculo,
contrastantes em estruturas, frases, palavras equilibradas ou um tipo de proporção de revisão diferente e mals subtil.
paralelas. Yeats, na sequência de Nietzsche, usou o termo Na tessera, o poeta posterior fornece aquilo que a sua ima-
para descrever um tipo de homem, um demandante que pro- ginação lhe diz que vai completar o poema e o poeta pre-

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cursor, de outro modo «truncados», «conclusão» que é tão Stevens completa antiteticamente Whitman através de
encobrimento como um desvio de revisão. Retomo o termo The Owl in the Sarcophagus, a sua elegia para o seu amigo
tessera do psicanalista francês Jacques Lacan, cuja própria Benry Church, que pode ser melhor lida como uma grande
relação de revisão para com Freud pode ser dada como exem- tcssera em relação a The Sleepers. Onde Whitman identifica
plo de tessera. No seu Discours de Rome (1953), Lacan cita a noite e a mãe com a boa morte, Stevens estabelece uma
uma observação de Mallarmé que <<compara o uso corrente da identidade entre boa morte e uma visão maternal mais ampla,
Linguagem à circulação de uma moeda cujas faces já só mos- oposta à noite porque contém todas as evidências memorá-
tram efígies apagadas e que as pessoas passam de mão em mão
veis da mudança, daquilo que vimos nos nossos dias, ape-
'em silêncio'». Aplicando isto ao discurso, por muito reduzido
sar de ter transformado o visto em conhecimento:
que seja, do sujeito da análise, Lacan diz: «Esta metáfora é
suficiente para nos lembrar de que a Palavra, mesmo quando
She held men closely with discovery,
quase completamente apagada, retém o seu valor de tessera».
O tradutor de Lacan, Anthony Wilden, comenta que esta
Almost as speed discovers, in the way
«é uma alusão à função da tessera como sinal de reconheci-
mento ou 'senha'. A tessera era empregue nas religiões de Invisible change discovers what is changed,
mistério primitivas em que o reajustamento das duas meta- In the way what was has ceased to be what is.
des de uma peça partida de cerâmica era usado como meio
de reconhecimento pelos iniciados». Neste sentido de vín- It was not her look but a knowledge that she had.
culo completivo, a tessera representa todas as tentativas de She was a self that knew, an inner thing,
um poeta posterior para se persuadir a si próprio (e a nós) Subtler than Iook's declaiming, although she moved
de que a Palavra do precursor se apagaria se não se redimisse
enquanto Palavra do efebo realizada e ampliada de novo. With a sad splendor, beyond artífice,
As tesserae abundam em Stevens, visto que a conclusão Impassioned by the knowledge that she had,
antitética é a sua relação principal para com os seus precur- There on the edges of oblivion.
sores românticos americanos. No final de The Sleepers, na
sua versão final, Whitman identifica a noite com a mãe: O exhalation, O fling without a sleeve
And motion outward, reddened and resolved
I too pass from the night, From sight, in the silence that follows her last word
I stay a while O night, but I return to you again
and love you. Parece ser verdade que os poetas britânicos se desviam
dos seus precursores enquanto os poetas americanos traba-
Why should I be afraid to trust myself to you? lham antes para «completar» os seus pais. Os britânicos são
I am not afraid,I have been well brought forward by you, mais genuínos revisionistas uns dos outros, mas nós (ou pelo
I love the rich running day, but I do not desert her in menos a maior parte dos nossos poetas pós-emersonianos)
whom I lay so long, tendemos a ver os nossos pais como não tendo ousado o
I know not how I carne of you and I know not where I go suficiente. E todavia ambos os modos de revisão são redu-
with you, but I know I carne well and shall go well. tores em relação aos precursores. E é esse reducionismo que
I will stop only a time with the night, and rise betimes, penso que nos oferece as maiores pistas para uma crítica
I will duly pass the day O my mother, and duly return to you. prática, para a demanda infinita do «como ler».

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Por «reducionismo» entendo uma espécie de encobri- Todas as críticas que se consideram primordiais vad-
mento que consiste numa interpretação errônea radical na Iam entre a tautologia - na qual o poema é e se significa
qual o precursor é olhado como um sobre-idealizador, e cujos a si próprio - e a redução - em que o poema significa
exemplos principais incluiriam os escritos de Y eats sobre uma coisa que não é ela própria um poema. A crítica anti-
Blake e Shelley, de Stevens sobre todos os românticos, de tética deve começar por negar quer a tautologia quer a redu-
Coleridge a Whitman, e de Lawrence sobre Hardy e Whit- ção, negação essa melhor cumprida pela afirmação de que
man, só para referir os poetas mais fortes da língua inglesa. o sentido de um poema só pode ser um poema, mas outro
E apesar disso espanta-me ver este padrão de reducionismo poema - um poema que não se;a ele próprio. E não um poema
sempre que os efebos se debruçam sobre os precursores desde escolhido com uma arbitrariedade total, mas qualquer poema
o alto romantismo até hoje, e não apenas nas fases inver- fundamental de um precursor indubitável, mesmo que o
nais de Stevens e de outros modernos. Shelley era um cép- efebo não tenha nunca lido tal poema. O estudo das fontes
tico, e uma espécie de materialista visionário; Browning, é aqui completamente irrelevante; trata-se de palavras pri-
o seu efebo, era um crente e um feroz idealista em metafí- mitivas, significados antitéticos, e as melhores interpretações
sica, e no entanto Browning é um redutor de Shelley, que en-6neas de um efebo podem ser de poemas que nunca leu.
insiste em «corrigir» o excessivo idealismo metafísico do «Sê eu mas não eu» é o paradoxo da acusação implí-
seu pai poético. À medida que os poetas se desviam ao longo cita do precursor em relação ao efebo. Menos intensamente,
dos tempos, convencem-se enganosamente de que são mais o seu poema diz ao poema descendente: «Sê como eu m~s
sérios que os seus precursores. Parece-se isto com o absurdo diferente de mim». Se não existissem modos de subverter
crítico que saúda todas as novas gerações de bardos como este double bind, todos os efebos se tornariam na versão
se estivessem mais próximas da linguagem corrente das pes- poética de um esquizofrénico. Como dizem aqueles que,
soas normais do que a geração precedente. O estudo da seguindo Gregory Bateson, estudam a pragmática da comu-
influência poética enquanto angústia e encobrimento salva- nicação humana, o double bind «deve ser desrespeitado para
dor deveria ajudar a libertar-nos dos mitos (ou boatos enve- ser respeitado; se se trata da definição do eu ou do outro,
lhecidos) mais absurdos da pseudo-história literária. Propo- a pessoa por esse processo definida é a pessoa que é só
nho não obstante uma utilização mais positiva para o estudo se não for e nunca se for>>. Um indivíduo nesta situação
do encobrimento, uma crítica antitética prática, oposta a de double bind é punido pelas suas percepções correctas.
todas as críticas primordiais agora em voga. Rousseau observa <<A ordem paradoxal ... mina a pr6pria escolha, nada é pos-
que nenhum homem pode disfrutar plenamen,t~ da su~ i,n~li­ sível e põe em movimento uma série de oscilações que se
vidualidade sem a ajuda dos outros, e uma cntlca antltetlca auto-perpetua» (ver Pragmatics of Human Communication
deve fundar-se na consciência deste princípio enquanto maior por Watzlawick, Beavin e Jackson).
razão de metáfora para todo o poeta forte. «Qualquer inven- Deve nesta altura estar claro que estou apenas a invo-
ção», diz Malraux, «é uma resposta», o que eu interpreto car uma analogia, mas aquilo a que chamei a perversidade
como significando uma aproximação à avassaladora confiança do efebo, os seus movimentos de revisão do clinamen e da
de Leonardo, que era capaz de afirmar que «é um pobre tessera, é precisamente aquilo que determina que a situação
discípulo aquele que não excede o seu mestre». Mas o tempo de double bind seja uma analogia e não uma identidade. Se
escureceu tal confiança e precisamos de recomeçar de novo o efebo pretende evitar a sobre~determinação, precisa de
a perceber durante quanto tempo e quão profundamente abandonar toda a percepção correcta dos poemas a que dá
tem a arte sido ameaçada por uma arte maior, e quão tarde maior valor. Visto que a poesia (como o trabalho do sonho)
entraram os nossos poetas na história. é de qualquer modo regressiva e arcaica, e visto que o pre-

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cursor nunca é absorvido como uma parte do super-ego (o Aceito todavia, e afinal (porque tenho de o fazer), a
Outro que nos comanda) mas como parte do id, é «natural» excepção importante dos mais fortes poetas do pós-ilumi-
que o efebo interprete erroneamente. Até o trabalho do sonho nismo, visto que esses poucos (Milton, Goethe, Hugo) foram
é uma mensagem ou uma tradução e portanto um tipo de aqueles que mais triunfaram entre todos os modernos que
comunicação, mas um poema 1comunicação deliberadamente lutaram com os mortos. Mas é assim talvez que podemos
enviesada, virada do avesso. E uma tradução errónea dos seus definir os maiores, por muito fracos que pareçam ao lado
precursores. Apesar de todos os esforços, será sempre uma de Homero, Isaías, Lucrécio, Dante, Shakespeare, que vie-
díade e não uma mónada, mas uma díade em rebelião contra ram antes do vórtice cartesiano, da inundação de um modo
o terror da comunicação unívoca, quer dizer, do double bind de consciência maior. O peso para o crítico do encobrimento
fantástico de uma luta com mortos poderosos. Apesar disso, poético é formulado poderosamente por Kíerkegaard no seu
os poetas mais fortes merecem nesta altura da Queda cen- Panegírico de Abraão:
trífuga da Influência Poética um panegírico atenuante.
Por «influência poética» não entendo a transmissão de Todos serão lembrados, mas cada qual se tornou grande
ideias e de imagens entre poetas anteriores e poetas poste- na proporção das suas expectativas. Um tornou-se grande
riores. Isso é de facto apenas «uma coisa que acontece», por esperar o possível; outro por esperar o eterno; mas aquele
e se tal transmissão é causa de angústia nos poetas poste- que esperou o impossível tornou-se maior que todos. Todos
riores é meramente uma questão de temperamento e cir- serão lembrados, mas cada qual foi grande na proporção da
cunstâncias. Tais são materiais legítimos para os caçadores grandeza daquilo com que lutou.
de fontes e os biógrafos e têm pouco a ver com a minha
preocupação. As ideias e as imagens pertencem à discursi- Kíerkegaard poderá ter aqui a última palavra, para punir
vidade e à história, e não são de modo algum propriedade o crítico incrédulo, mas quantos poetas por vir podem mere-
exclusiva da poesia. A posição de um poeta, a sua Palavra, cer esta grande injunção? Quem poderá aguentar tal pesado
a sua identidade de imaginação, todo o seu ser, todavia, esplendor, e como o reconheceremos quando vier? E no
têm de ser exclusivo seu e permanecer seu exclusivo, ou entanto ouça-se Kierkegaard:
ele perecerá como poeta mesmo que alguma vez tenha con-
seguido provocar o seu renascimento numa incarnação poé- Aquele que não trabalha não ganha o pão mas fica ilu-
tica. Mas essa posição fundamental é tanto a do seu precur- dido, como os deuses iludiram Orfeu com uma figura etérea
sor como a natureza fundamental de qualquer homem é a no lugar da figura amada, o iludiram porque era efeminado
do seu pai, por muito transformada ou virada do avesso e não corajoso, porque era um tocador de cítara e não um
que esteja. O temperamento e a circunstância, por muito homem. Não adianta aqui ter Abraão por nosso pai, nem
felizes que sejam, não podem ajudar aqui, num universo ter dezassete antepassados - aquele que não trabalhar deve
e numa consciência pós-cartesianos, em que não existem está- atentar no que está escrito sobre as mulheres de Israel, por-
dios intermédios entre o espírito e a natureza exterior. que gera o vento, mas aquele que está disposto a trabalhar
O enigma da esfinge, para os poetas, não é apenas o enigma dá à luz o seu próprio pai.
da Cena Primitiva e do mistério das origens humanas, mas
o enigma mais obscuro da prioridade de imaginação. Não E no entanto o pai de Kíerkegaard é aqui Isaías, poeta
é suficiente para o poeta responder ao enigma; deve sobrenaturalmente forte, e o texto citado aniquila onde Kíer-
convencer-se a si próprio (e ao seu leitor idealizado) de que kegaard procura confortar. Talvez a última palavra tenha
o enigma não poderia ter sido formulado sem ele. a ver afinal com a angústia da influência e com a profecia

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de Isaías sobre o regresso dos precursores. O que se segue Três
não angustiou Kierkegaard, mas é o desconsolo dos poetas:

Como a mulher grávida, ao aproximar-se a hora do


parto, se contorce e, nas suas dores, dá gritos, assim nos
encontrávamos nós na tua presença, ó Iahweh:
Concebemos e tivemos as dores de parto, mas quando
demos à luz, eis que era vento: não assegurámos a salvação
para a terra; não nasceram novos habitantes para o mundo.
Os teus mortos tornarão a viver, os teus cadáveres res-
surgirão. Despertai e cantai, vós os que habitais o pó, por-
que o teu orvalho será um orvalho luminoso, e a terra dará
à luz sombras.

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Se o jovem tivesse acreditado na repetição, de que
não teria sido capaz? Que profundezas teria podido
atingir!

Kierkegaard
Kenosis
ou REPETIÇÃO E DESCONTINUIDADE

Aquilo que é unheimlich ou «inóspito» como o «inquie-


tante» é percebido sempre que somos recordados da nossa
tendência interior para ceder a padrões de acção obsessi-
vos. Sobrepondo-se ao princípio de prazer, o demónico em
nós cede lugar a uma «compulsão à repetição». Um homem
e uma mulher conhecem-se, mal falam, entram num pacto
de destruição mútua; tente-se descobrir aquilo que eles acham
que conheceram ambos anteriormente; e no entanto não
houve um tempo anterior. Freud, com uma visão aqui
unheimlich, sustenta que «todo o afecto emocional, qual-
quer que seja a sua qualidade, é transformado pelo recalca-
mento em angústia mórbida». De entre os casos de angús-
tia, Freud distingue a classe do Unheimliche, «em que se
pode mostrar que a angústia provém de uma coisa repri-
mida que regressa». Mas a este «inóspito» pode igualmente
chamar-se «O hóspito», observa ele, «porque o Unheimliche
não é na realidade nada de novo ou de estranho mas antes
qualquer coisa familiar e bem estabelecida no espírito, que
foi afastada exclusivamente pelo processo do recalcamento».
Proponho que o caso especial da angústia da influên-
cia seja considerado como uma variedade do Unheimliche.
O temor de castração inconsciente de um homem manifesta-
-se sob a forma de um problema aparentemente físico nos
olhos; o temor de um poeta em deixar de ser poeta manifesta-
-se também como um problema na sua visão. Ou vê de forma
demasiado clara, com uma tirania de uma fixidez minuciosa,
como se os seus olhos se afirmassem contra o resto de si
bem como contra o mundo, ou então a sua visão torna-se
velada, e vê todas as coisas através de uma neblina alhea-
dora. Uma visão quebra e deforma aquilo que é visto; a
outra, quando muito, contempla uma nuvem brilhante.

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Os críticos, do fundo dos seus corações, adoram con- tinuldades começam com a manhã, e nenhum poeta enquanto
tinuidades, mas aquele que vive apenas com a continuidade poeta pôde permitir-se aceder à grande injunção de Nietzs-
não pode ser um poeta. O deus dos poetas não é Apolo, che: «Tenta viver como se fosse manhã». Enquanto poeta,
que vive no ritmo da recorrência, mas o gnomo careca a 0 efebo deve tentar viver como se fosse meia-noite, uma
que chamam Erro, que vive nas traseiras de uma caverna, meia-noite suspensa. De facto, a primeira sensação do efebo
e que assoma do seu esconderijo apenas a intervalos regula- como poeta recém-incarnado é a de ter sido projectado de
res, para festejar os poderosos mortos, na escuridão da lua. forma centrífuga e cadente pela mesma glória cuja percep-
Os priminhos do Erro, o Desvio e a Conclusão, nunca entram ção o encontrou e fez dele um poeta. O primeiro domínio
na sua caverna, mas albergam pálidas memórias do seu nas- do efebo é o mar, ou a borda do mar, e ele sabe que chegou
cimento que ali teve lugar, e vivem no vago pressentimento até à água porque caiu. Aquilo que nele é instintivo mantê-
de que obterão finalmente descanso quando regressarem a -lo-ia aí, mas o impulso antitético tra-Io-á para fora e envia-
casa, à caverna, para morrer. Entretanto, também eles ado- -lo-á para o interior, em demanda do fogo da sua própria
ram a continuidade, porque só aí têm um alcance. A não posição.
ser os poetas desesperados, só o leitor Ideal ou Verdadeira- A maior parte daquilo a que chamamos poesia - pelo
mente Corrente gosta da descontinuidade, e um tal leitor menos desde o Iluminismo - é esta demanda do fogo, quer
está ainda à espera de nascer. dizer, da descontinuidade. A repetição pertence à borda da
O encobrimento poético, historicamente um factor de água, e o Erro acontece apenas àqueles que vão para lá da
saúde, é na sua individualidade um pecado contra a conti- descontinuidade, na ascensão aérea que os conduz à temí-
nuidade, contra a única autoridade que importa, a proprie- vel liberdade da imponderabilidade. O prometianismo, ou
dade ou a prioridade de ter nomeado uma coisa em pri- a demanda da força poética, move-se para lá das antinomias
meiro lugar. A poesia é propriedade, tal como a politica da pro;ecção (que é repetição) e da extravagância (Verstiege-
é propriedade. Hermes envelhece e transforma-se num nheit binswangeriana ou loucura poética, ou verdadeiro erro).
gnomo careca, passa a chamar-se Erro, e funda o comércio. Trata-se de uma demanda meramente cíclica e o seu único
As relações inter-poéticas não são nem comércio nem roubo, objectivo e glória - necessariamente - é fracassar . Os pou-
a menos que possamos pensar no romance familiar como cos - desde os grandes antigos - que quebram este ciclo
uma política do comércio ou como a dialéctica do roubo e sobrevivem entram num contra-sublime, numa poesia da
em que se torna em The Mental Traveller de Blake. Mas terra, mas esses poucos (Milton, Goethe, Hugo) são sub-
a sabedoria sem alegria do romance familiar tem pouca -deuses. Os poetas fortes do nosso tempo, em inglês, que
paciência para entidades tão menores como aquelas com que entram brilhantemente no campeonato da luta com os mor-
se divertem os economistas do espírito. Tais entidades seriam tos, nunca chegam ao ponto de penetrar neste quarto estado
generosos errozinhos e não o próprio grande Erro. O maior de poesia da terra. Os efebos abundam, vários conseguem
dos Erros que podemos esperar encontrar ou cometer é a a demanda prometaica e três ou quatro atingem a poesia
fantasia de todos os efebos: demandar antiteticamente e da descontinuidade (Hardy, Yeats, Stevens) pela qual se
assistir ao nosso próprio engendramento. consegue um poema do ar.
A noite traz a todos os remoentes solitários a aparente Que onde o id, o precursor do poema, está, fique o meu
recompensa de um cenário adequado, tal como a Morte, poema; esta é a fórmula racional de todos os poetas fortes,
que aqueles tão erradamente abominam, adequadamente se visto que o pai poético foi absorvido pelo id e não pelo
torna amiga de todos os poetas fortes. As folhas tornam-se super-ego. O poeta capaz situa-se em relação ao seu precur-
gritos emudecidos, e não se ouvem os gritos reais. As con- sor mais como Eckart (ou Emerson) se situava em relação

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a Deus; não como parte da Criação, mas como a melhor Tornar o impulso lúdico em mais um caso de compulsão
parte, a substância incriada, da Alma. De um ponto de vista à repetição foi outra das audácias da parte de Freud, embora
conceptual, o problema central para um poeta atrasado é não tão audaciosa como o grande salto que consistiu em
necessariamente o da repetição, dado que a repetição ele- atribuir qualquer impulso para a repetição a uma pulsão
vada dialecticamente à re-criação é a via excessiva do efebo, regressiva cujo objectivo pragmático era o da morte.
que o afasta do terror de se descobrir como apenas uma O próprio Lacan, um prodigioso saltador, diz-nos que
cópia ou uma réplica. «da mesma maneira que a compulsão à repetição ... não tem
A repetição enquanto recorrência de imagens do nosso em vista nada menos que a temporalidade historicizadora
próprio passado, imagens obsessivas contra as quais os nos- da experiência da transferência, assim a pulsão de morte
sos afectos presentes em vão lutam, é um dos principais exprime essencialmente o limite da função histórica do
antagonistas com que a psicanálise corajosamente se con- sujeito». Lacan vê por isso o fort! - da! como actos huma-
frontou . A repetição era, para Freud, em primeiro lugar um nizadores por parte da imaginação verbal da criança, nos
modo de compulsão que se reduzia à pulsâo de morte quais a subjectividade combina a abdicação de si própria
enquanto inércia, regressão, entropia. Fenichel, sombrio enci- com o nascimento do símbolo, «actos de ocultação que Freud,
clopedista da psico-dinâmica freudiana, segue o Fundador num lampejo de génio, nos revelou de modo a que neles
ao permitir a existência de uma repetição «activa» que visa reconheçamos que o momento em que o desejo se torna
uma aquisição de domínio, mas também ao sublinhar a repe- humano é também o momento em que a criança nasceu para
tição «dissolvente», trauma neurótico tão mais vivido na a Linguagem».
imaginação de Freud. Fenichel distingue, o melhor que pode, O sentido que Lacan tem «deste limite», da nossa morte,
a «dissolução» dos outros mecanismos de defesa: representa-o como «o passado que se revela invertido atra-
vés da repetição». Intrometendo-se nesta curiosa mistura
Na formação reactiva, toma-se uma atitude que con- de Freud e Heidegger encontra-se a grande sombra da repe-
traria uma atitude original; na dissolução, avança-se mais um tição kierkegaardiana, «a exaustão do ser que se consome
passo. Faz-se uma coisa positiva que, real ou magicamente, a si próprio», como diz Lacan. A repetição freudiana é ape-
é o oposto de qualquer coisa que, de novo na realidade ou nas interpretável de uma forma dualista, como todas as
na imaginação, tinha sido realizada anteriormente ... A pró- noções da psicanálise, visto que Freud espera sempre que
pria ideia de expiação não é senão uma expressão da crença separemos o conteúdo latente do conteúdo manifesto. Kier-
na possibilidade de uma dissolução mágica. kegaard, demasiado dialéctico para tais ironias meramente
românticas, formulou uma «repetição» mais próxima das iro-
A compulsão permanece aqui a da repetição, mas com nias do encobrimento poético do que a que os mecanismos
uma inversão do significado inconsciente. Ao isolar-se uma de «dissolução» ou de «isolamento» freudianos tornam pos-
ideia do seu investimento emocional original, a repetição sível.
é ainda dominante. O «para lá do princípio do prazer», na A repetição kierkegaardiana nunca acontece, mas irrompe
famosa frase de Freud, será uma área obscura em qualquer ou avança, visto que «é recordada para diante», como a Cria-
contexto psíquico, mas é particularmente obscura nos domí- ção do universo de Deus.
nios da poesia, a qual deve dar prazer. O herói do Para
lá do principio do prazer, um rapaz de dezoito meses que Se o próprio Deus não tivesse querido a repetição, o
joga o seu jogo do /ort!- da!, controla as desaparições da mundo nunca teria podido aceder à existência. Teria ou
sua mãe encenando o ciclo da sua perda e do seu regresso. seguido os leves planos da esperança ou recordado tudo e

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tudo conservado em memória. Mas tal não fez e por isso psíquicas, mas o processo do repetir através de uma reco-
o mundo subsiste, e subsiste devido ao facto de que é uma lecção para diante não é fácil de aprender. Quando o efebo
repetição. pede à Musa para o ajudar a lembrar-se do futuro, está a
pedir que o ajude numa repetição, embora dificilmente no
A vida que passou torna-se, agora. Kierkegaard diz que sentido em que as crianças pedem a um contador de histó-
a dialéctica da repetição é «fácil», mas essa é uma das suas rias que se atenha à mesma história. A criança que aprende
graças joviais. A sua melhor graça acerca da repetição é tam- uma história, como Schachtel sugere na sua Metamorfose,
bém a sua primeira e parece-me ser uma excelente introdu- procura confiar na história um pouco como nós confiamos
ção à dialéctica do encobrimento: que um poema favorito mantenha as mesmas palavras da
próxima vez que abrirmos aquele determinado livro. A cons-
A repetição e a recolecçào são o mesmo movimento, tância do objecto torna possível a exploração por actos de
só que em direcções opostas; de facto, o que é relembrado atenção focal e Schachtel confia nesta dependência quando
foi, é, repetido para trás, enquanto a repetição propriamente discorda de modo optimista da insistência de Freud acerca
dita é relembrada para diante. Por isso a repetição, se possí- do prevalecimento da compulsão à repetição nos jogos infan-
vel, torna um homem feliz, enquanto a recolecçào o torna tis. No cerne do argumento de Schachtel encontra-se um
infeliz - desde que se conceda a si próprio tempo para viver forte desacordo em relação à teoria profundamente redu-
e não comece imediatamente, no próprio momento do nas- tora de Freud acerca da origem do pensamento. O precur-
cimento, a tentar encontrar um pretexto para se escapar da sor do pensamento, para Freud, é sempre e apenas uma satis-
vida alegando, por exemplo, que se esqueceu de alguma coisa. fação alucinatória de necessidades, uma fantasia em que a
satisfação do desejo é deslocada e o ego quer do id mais
Fazendo humor à custa de Platão, o teorizador da repe- autonomia do que aquela que é capaz de conseguir.
tição propõe um amor possível mas não perfeito, quer dizer, De facto, o ego sente que «foi projectado» em relação
o único amor que não fará as pessoas infelizes, o amor da ao id e não ao super-ego censório. Os psicólogos do ego
repetição. O amor perfeito consiste em amar mesmo onde podem ter tido razão na sua revisão de Freud, mas não do
fomos infelizes, mas a repetição pertence ao imperfeito que ponto de vista do crítico da literatura, que deve atribuir
é o nosso paraíso. O poeta forte sobrevive porque vive na correctamente as energias da criatividade a uma área (qual-
descontinuidade de uma repetição «dissolvente» e «isolante», quer que seja o nome que lhe demos) que se externalizou
mas deixaria de ser um poeta se não continuasse a viver em relação ao ego para se relacionar com todo o mundo
na continuidade da «recolecção para diante», da irrupção do Não-Eu, ou, talvez melhor, com a «infinita imensidão
de uma frescura que no entanto repete os resultados dos de espaços a respeito dos quais sou ingorante e os quais
seus antepassados. O encobrimento, podemos agora corri- me não conhecem» de Pascal. Atirado para as grandezas
gir, é de facto um fazer despropositado (e um tirar despro- externas da matéria cartesiana, o ego aprende a sua própria
positado) daquilo que os precursores fizeram, mas «despro- solidão, e procura compensatoriamente uma autonomia ilu-
positado» tem aqui um sentido díaléctico. Aquilo que os sória, aquilo que o iludirá num sentimento de libertação:
precursores fizeram projectou o efebo num movimento cen-
trífugo e cadente de repetição, repetição essa que o efebo O que nos torna livres é o conhecimento de quem
cedo compreende que deve ser simultaneamente dissolvida fomos, daquilo em que nos tornámos; onde estivemos, como
e dialecticamente afirmada. O mecanismo da dissolução fomos projectados; para onde corremos, por onde somos redi-
encontra-se facilmente disponível, como todas as defesas midos; o que é o nascimento e o que é o renascimento.

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Esta fórmula valentiniana, observa Hans Jonas, «não anglo-saxónico sweorfan) tem o sentido primitivo de «lim-
dá conta de um presente cujo conteúdo o conhecimento possa par, limar ou polin> e, no uso corrente, o de «desviar-se,
habitar e, ao contemplar, possa deter o ímpeto para diante». deixar a via recta, abandonar (a lei, o dever, o costume)}>.
Jonas compara o «como fomos projectados» à Geworfenheit E todavia a imaginação do poeta forte não se pode
heideggeriana e ao «ser atirado» de Pascal. Uma compara- ver a si mesma como perversa; a sua inclinação própria
ção adicional é sugerida pela situação de todos os efebos tem de ser a da saúde, a verdadeira prioridade. Daí o clina-
pós-cartesianos, frequentemente gnósticos apesar de si pró- men, cuja suposição fundamental é a de que o precursor
prios. Talvez, afinal de contas, a terrível grandeza de Yeats se enganou porque não se desviou, diante de um determi-
derive do seu gnosticismo voluntário e da sua funda com- nado preconceito, num determinado tempo e ocasião, num
preensão do quanto dele necessitava enquanto poeta. ângulo de visão seja este agudo ou obtuso. E no entanto
Quando deixamos de esperar, podemos ser recompen- trata-se de uma coisa perturbante, e não apenas para a
sados. Keats é tão comovente porque não se interessa por nossa bondade íntima. Se o dom da imaginação provém
aquilo que lhe é pedido enquanto poeta e no entanto cum- necessariamente da perversidade do espírito, então o labi-
pre fielmente tais requisitos. Mas qualquer poema - mesmo rinto vivo da literatura constrói-se sobre as ruínas dos nos-
um poema perfeito como To Autumn, de Keats - é uma sos mais generosos impulsos. Assim é aparentemente e assim
acumulação de colocações erróneas. Keats, até Keats, tem deve ser - enganámo-nos ao ter fundamentado um huma-
de ser um profeta da descontinuidade, para quem a expe- nismo directamente na própria literatura, e a frase «letras
riência é finalmente apenas uma outra forma de paralisia. humanas}> é um oxímoro. Pode-se ainda fundamentar um
Entre o poeta e a sua visão do deus verdadeiro e desconhe- humanismo num estudo da literat11ra mais completo do que
cido (ou dele próprio curado, tornado original e puro) inter- aquele que conseguimos até agora, mas nunca sobre a pró-
vêm os precursores como arcontes gnósticos. Os nossos pria literatura ou sobre qualquer espelhamento idealizado
jovens, há algum tempo, eram pseudo-gnósticos, acredita- das suas categorias implícitas. A imaginação forte acede ao
vam numa pureza essencial que constituía os seus verdadei- seu doloroso nascimento através da selvajaria e da repre-
ros eus e que não podia ser tocada pela mera experiência sentação errónea. A única virtude humana que podemos espe-
natural. Os poetas fortes têm de acreditar numa coisa deste rar ensinar mediante um estudo da literatura mais avan-
género, e têm de ser sempre condenados por uma morali- çado do que aquele de que dispomos é a virtude social do
dade humanista, visto que os poetas fortes são necessaria- desprendimento em relação às nossas próprias imaginações,
mente perversos, querendo «necessariamente» aqui dizer reconhecendo sempre que, tornado absoluto, tal desprendi-
como que obcecados, como que manifestando uma compul- mento destrói toda a imaginação individual.
são à repetição. «Perverso» quer dizer literalmente «virado Onde existe desprendimento no confronto com a nossa
para o caminho errado»; mas estar virado para o caminho própria imaginação a descontinuidade é impossível. Onde
certo a respeito do precursor quer dizer não se desviar abso- o desejo acaba a repetição palpita, seja ou não imaginada.
lutamente nada, sendo então que qualquer preconceito ou Não há nomes, disse Valéry, para as coisas entre as quais
inclinação deve por força ser perverso em relação ao precur- o homem está mais verdadeiramente só; e Stevens incita
sor, a menos que o próprio contexto (como por exemplo o seu efebo a deitar fora as luzes, as definições, para poder
a própria ortodoxia literária circundante de alguém) per- encontrar identificações que substituam os nomes apodre-
mita que se seja um avatar do perverso, como a linha fran- cidos que não assegurarão um contexto de solidão. Tal escu-
cesa Baudelaire-Malarmé-Valéry o foi em relação a Poe ou ridão é uma descontinuidade em que o efebo pode de novo
Frost em relação a Emerson. «To swerve}>, desviar-se (do ver e conhecer a ilusão de uma nova prioridade.

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O melhor análogo passional desta descontinuidade não mente naquilo que já citei de Fenichel, fornece-se uma base
é o primeiro amor mas o primeiro ciúme, querendo «pri- teórica para a crítica descrever a defesa dos poetas fortes
meiro» dizer aqui conscientemente primeiro. O ciúme, faz contra a repetição, a sua aventura de salvação (mas tam-
Camus Calígula escarnecer de um marido enganado, é uma bém de perdição) na descontinuidade.
doença composta de vaidade e imaginação. O ciúme, qual- Acrescento agora uma terceira ao estudo das propor-
quer poeta forte diria a Calígula, funda-se no nosso medo ções de revisão que caracterizam as relações inter-poéticas:
de que não haja tempo, e, na verdade, de que haja mais a kenosis ou «esvaziamento», ao mesmo tempo um movi-
amor do que aquele que pode ser posto em tempo. A des- mento da imaginação de «dissolução» e um «isolamento».
continuidade, para os poetas, encontra-se não tanto em pon- Retomo kenosis da descrição de São Paulo da «humilhação»
tos de tempo como em momentos de espaço, em que a repe- de Cristo que de Deus se fez homem. Nos poetas fortes,
tição é esvaziada, como se a economia do prazer não estivesse a kenosis é um acto de revisão no qual tem lugar um «esva-
relacionada com a libertação de tensão mas apenas com o ziamento» ou um «abaixamento» em relação ao precursor.
nosso atraso espiritual. Tal «esvaziamento» é uma descontinuidade libertadora e
Regressemos ao ainda surpreendente manifesto tardio torna possível um tipo de poema que a simples repetição
de 1920 de Freud, Para Além do Princípio do Prazer, que do afflatus ou do estatuto divino do precursor não podiam
relaciona os preliminares eróticos com neuroses recorrentes
permitir. «Dissolver» a força do precursor em si próprio serve
e ao mesmo tempo com o jogo de abandono materno do
ainda para «isolar» o eu da posição do precursor e salva
pequeno Ernst de Freud, o famoso fort! - da! tão caro às
o poeta atrasado de se tornar tabu em si e para si. Freud
te-imaginações de Lacan. Ambos são «compulsões à repeti-
acentua a relação dos mecanismos de defesa com toda a área
ção», e na visão final de Freud, todos são demónicos, auto-
do tabu, e nós sublinhamos a relevância da kenosis para o
-destruidores e adoram o deus Tanatos:
contexto do tocar e do lavar dos tabus.
Talvez tenhamos adoptado esta crença [na pulsão de Porque é a influência, que poderia ser um factor de
morte] porque nela exista algum conforto. Se vamos morrer saúde, mais geralmente uma angústia no que diz respeito
e, antes disso, perder pela morte aqueles que nos são queri- aos poetas fortes? Os poetas fortes ganham ou perdem,
dos, é mais fácil submetermo-nos a uma lei da natureza sem enquanto poetas, na sua luta com os seus pais fantasmáti-
apelo, à sublime necessidade, do que a um acaso de que possa cos? Será que o clinamen, a tessera, a kenosis e todas as outras
haver escapatória ... proporções de revisão ajudam os poetas a individualizar-se
a si próprios, a serem verdadeiramente eles, ou pelo contrá-
Trata-se de Freud tardio aqui, mas poderia ser o Emer- rio distorcem os filhos poéticos tanto quanto estes distor-
son tardio de The Conduct of Li/e, com a sua sombria ado- cem os pais? Estou a postular que estas proporções de revi-
ração da Bela Necessidade. Quer Freud quer Emerson asso- são têm nas relações inter-poéticas a mesma função que os
ciam esta sublime necessidade à agressão, e a opõem a um mecanismos de defesa têm na nossa vida psíquica. Será que
eros, ainda que o Eros de Freud seja uma visão aumentada os mecanismos de defesa, nas nossas vidas quotidianas, nos
da líbido e o de Emerson uma versão tardia e grandemente trazem maior dano do que as compulsões à repetição de
indefinida da Super-Alma. Nenhum deles, enfim, foi menos que procuram defender-nos?
que ambivalente em relação aos mecanismos de defesa do Freud, aqui altamente dialéctico, é absolutamente claro
ego contra as repetições que nos conduzem a Tanatos. Mas, no poderoso ensaio tardio «Análise terminável e interminá-
nas descrições freudianas de tais mecanismos, e particular- vel» (1937). Se substituirmos o seu «ego» pelo efebo e o

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seu «id» pelo precursor, dá-nos então uma fórmula para o uma dissolução das destruições de imaginação. O «isola-
dilema do efebo: mento» mantém separado aquilo que é conjunto, preservando
traumas mas abandonando os significados emocionais des-
Durante muito tempo a fuga e o evitar de uma situa- tes, e ao mesmo tempo obedecendo ao tabu contra o tocar.
ção perigosa servem de expedientes face ao perigo exterior, A kenosis é um movimento mais ambivalente que o
até que o indivíduo é por fim suficientemente forte para clinamen ou a tessera, e traz necessariamente os poemas para
suprimir a ameaça modificando activamente a realidade. Mas os domínios dos significados antitéticos. De facto, na kenosis,
não se pode fugir de si próprio e nenhuma fuga previne con- a batalha do artista contra a arte está perdida e o poeta
tra perigos internos; por isso os mecanismos de defesa do cai ou baixa-se num espaço e num tempo aos quais está con-
ego estão condenados a falsificar a percepção interna, de modo finado , apesar de dissolver o padrão do precursor através
que aquele nos transmite apenas uma imagem imperfeita e paro- de uma perda em continuidade deliberada e voluntária.
diada do nosso id. Nas suas reúzções com o id o ego é parali- A sua posição parece ser a do precursor (tal como a posição
sado peúzs suas restrições ou cegado pelos seus e"os, e o resul- de Keats parece ser a de Milton no primeiro Hyperion), mas
tado, na esfera dos fenómenos psíquicos, pode comparar-se o significado da posição é dissolvido; a posição é esvaziada
ao progresso de um caminhante incapaz numa região que da sua prioridade, que é uma espécie de estatuto divino,
desconhece.
e o poeta que a ocupa torna-se mais isolado, não apenas
A finalidade dos mecanismos de defesa é prevenir peri-
dos seus pares como da continuidade do seu próprio eu.
Qual é a utilidade desta noção de kenosis poética para
gos. Não se pode contestar o seu êxito; é duvidoso que o
o leitor que tenta descrever um poema que se sente obri-
ego pudesse passar completamente sem eles durante o seu
gado a descrever? As proporções do clinamen e da tessera
desenvolvimento, mas é igualmente certo que também eles
podem ser úteis para alinhar (e desalinhar) elementos em
se podem tornar perigosos. Não é raro que aconteça que o
poemas díspares, mas esta terceira proporção parece mais
ego pague um preço demasiado alto pelos serviços que tais
aplicável a poetas do que a poemas. Já que, como leitores,
mecanismos prestam. [Itálicos meus; não de Freud]
precisamos de saber distinguir o dançarino da dança, o cantor
da sua canção, como nos pode ajudar, nesta nossa difícil
Esta visão melancólica acaba com o ego adulto, na sua empresa, esta ideia de um auto-esvaziamento que visa defen-
maior força, a defender-se contra perigos desaparecidos e der contra o pai e no entanto dissolve radicalmente o filho?
mesmo a procurar substitutos para os originais desaparecidos. Será a kenosis de Shelley na sua Ode to the West Wind uma
No agon do poeta forte, os substitutos alcançados tendem a dissolução, um isolamento de Wordsworth ou de Shelley?
ser versões anteriores do próprio efebo que, num certo sentido, Quem é mais terrivelmente esvaziado em As I Ebb'd with
lamenta uma glória que nunca teve. Sem abandonar ainda o the Ocean of Li/e, Emerson ou Whitman? Quando Stevens
modelo freudiano, examinemos mais de perto os mecanismos se confronta com as tremendas auroras será o seu outono
cruciais da «dissolução» e do «isolamento» antes de regres- ou o de Keats que é esvaziado do seu consolo humanizante?
sar à escuridão a que chamei kenosis ou esvaziamento. Ammons, caminhando entre as dunas de Corsons Inlet,
Fenichel relaciona a «dissolução» com a expiação, uma esvazia-se de um Super-tudo, reconhecido nessa altura como
lavagem-limpeza que obedece ainda ao tabu da lavagem e estando para além de si, mas não será que o significado
que portanto pretende fazer o oposto do acto compulsivo do poema gira em torno da sua convicção de que o Super-
e no entanto, paradoxalmente, realiza esse mesmo acto com -tudo de Emerson se encontrava até para além desse sábio?
um significado inconsciente oposto. A sublimação artística, A palinódia parece ser inevitável nas fases tardias do pro-
segundo esta perspectiva, está ligada a atitudes que visam gresso de qualquer poeta romântico, mas será que tem de

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cantar de novo a sua canção ao contrário? Dante, Chaucer, Contra esta kenosis, podemos apontar uma caracterís-
até Spenser, podem transformar as suas retratações em poe- tica paródia demónica desta, que é a kenosis poética pro-
sia, mas Milton, Goethe, Hugo, retratam-se dos erros dos priamente dita, não tanto uma humilhação do eu como de
seus precursores mais do que dos seus próprios. Com poe- todos os precursores, e necessariamente um desafio à morte.
tas modernos mais ambivalentes, mesmo poetas tão fortes Blake exclama para Tirzah:
como Blake, Wordsworth, Baudelaire, Rilke, Yeats, Ste-
vens, cada kenosis esvazia os poderes de um precursor, como Whate'er is Born of Mortal Birth,
se uma dissolução-isolamento mágico procurasse salvar o Must be consumed with the Earth
Sublime Egoico à custa de um pai. A kenosis, neste sentido To rise from Generation free;
poético e de revisão, parece ser um acto de auto-abnegação Then what have I to do with thee?
e no entanto tende a fazer os pais pagar pelos seus próprios
pecados e talvez também pelos dos filhos.
Chego por isso à fórmula pragmática: «que onde o pre-
cursor está, fique o efebo, mas que tal aconteça pelo modo
descontínuo do esvaziamento do precursor do seu carácter
divino, parecendo no entanto que se esvazia do seu próprio».
Por muito plangente ou mesmo desesperado que possa ser
o poema da kenosis, o efebo assegura-se de que irá cair em
chão macio enquanto o precursor cairá em chão bem duro.
Precisamos de deixar de pensar nos poetas como egos
autónomos, por muito solipsistas que os poetas mais fortes
possam ser. Todo o poeta é apanhado por uma relação dia-
léctica (transferência, repetição, erro, comunicação) com
outro poeta ou poetas. Na kenosis arquetípica, São Paulo
achou um padrão que nenhum poeta pôde alguma vez con-
seguir emular, como poeta:

Nada façais por competição e vanglória, mas com humil-


dade, julgando cada um os outros superiores a si mesmo
não cuidando cada um só do que é seu, mas também
do que é dos outros.
Tende em vós o mesmo sentimento de Cristo Jesus:
Ele tinha a condição divina, e não considerou o ser igual
a Deus como algo a que se apegar ciosamente:
Mas esvaziou-se a si mesmo, e assumiu a condição de
servo, tomando a semelhança humana:
E, achado em figura de homem, humilhou-se e foi obe-
diente até à morte ...

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INTER-CAPÍTULO
Um manifesto por uma crítica antitética

Se imaginar é interpretar erroneamente, o que torna


todos os poemas antitéticos em relação aos seus precurso-
res, então imaginar segundo um poeta é aprender as suas
próprias metáforas para os seus actos de leitura. A crítica
torna-se então também necessariamente antitética, uma série
de desvios depois de actos únicos de compreensões defi-
cientes e criativas.
O primeiro desvio é aprender a ler um grande poeta
precursor como os maiores dos seus descendentes se obri-
garam a lê-lo.
O segundo é ler os descendentes como se fôssemos seus
discípulos, e por isso obrigarmo-nos a aprender onde temos
de os rever se quisermos ser encontrados pela nossa própria
obra e reclamados pelo viver das nossas próprias vidas.
Nenhuma destas demandas é ainda Crítica Antitética.
Tal crítica começa quando medimos o primeiro clinamen
contra o segundo. Ao descobrir a natureza do ênfase do
desvio aplicamo-la como correctivo à leitura do primeiro
mas não do segundo poeta ou grupo de poetas. Praticar uma
Crítica Antitética no poeta ou poetas mais recentes torna-
-se possível apenas depois de estes terem encontrado discí-
pulos que não nós próprios. Mas tais discípulos podem ser
críticos, e não poetas.
Pode ser objectado a esta teoria que nunca lemos um
poeta enquanto poeta mas que apenas lemos um poeta nou-
tro poeta ou mesmo dentro de outro poeta. A nossa res-
posta é variada: negamos que exista, tenha existido ou possa
alguma vez existir um poeta enquanto poeta - para um

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leitor. Tal como não podemos nunca abarcar (sexualmente tem mais pais. Os seus precursores são poetas e críticos.
ou não) uma única pessoa, mas sim o seu todo ou o seu Mas - em verdade - o mesmo acontece com os precurso-
romance familiar, assim não podemos nunca ler um poeta res de um poeta, e cada vez mais à medida que a história
sem ler a totalidade do seu romance familiar enquanto poeta. se alonga.
O que está em causa é o reducionismo e a melhor maneira A poesia é a angústia da influência, é encobrimento,
de o evitar. As críticas retóricas, aristotélicas, fenomenoló- é uma perversidade disciplinada. A poesia é mal-entendido,
gicas e estruturalistas são todas redutoras, quer o reduzam interpretação errónea, aliança desigual.
a imagens, a ideias, a coisas dadas, ou a fonemas. As críti- A poesia (romance) é Romance Familiar. A poesia é
cas morais ou as outras críticas flagrantemente filosóficas a fascinação do incesto, disciplinada pela resistência a tal
ou psicológicas reduzem tudo a conceptualizações rivais. Nós fascinação.
reduzimos - se é que o fazemos - a outro poema. O sig- A influência é Influenza - uma doença astral.
nificado de um poema pode apenas ser outro poema. Isto Se a influência fosse saúde, quem poderia escrever um
não é uma tautologia, nem sequer uma tautologia profunda, poema? A saúde é stasis. A esquizofrenia é má poesia, por-
visto que os dois poemas não são o mesmo poema, tal como que o esquizofrénico perdeu a força de um encobrimento
duas vidas não podem ser a mesma vida. O que está em perverso, deliberado.
causa é a verdadeira história ou antes o verdadeiro uso e A poesia é assim ao mesmo tempo contracção e expan-
não o abuso dela, ambos no sentido de Nietzsche. A verda- são; porque todas as proporções de revisão são movimentos
deira história poética é a história de como os poetas enquanto de contracção e no entanto o fazer é um movimento de
poetas aguentaram outros poetas, tal como qualquer bio- expansão. A boa poesia é uma dialéctica de movimento de
grafia verdadeira é a história do modo como alguém aguen- revisão (contracção) e de refrescante extravio.
tou a sua própria família - ou os seus próprios desloca- Os melhores críticos do nosso tempo são ainda Emp-
mentos da família para amantes e amigos. son e Wilson Knight, visto que interpretaram erroneamente
Sumário - Todo o poema é uma interpretação erró- de forma mais antitética que todos os outros .
nea de um poema-pai. Um poema não é uma superação de Quando dizemos que o significado de um poema pode
angústia mas essa angústia. As interpretações erróneas ou apenas ser outro poema, podemos com isso querer dizer uma
os poemas dos poetas são mais drásticas que as interpreta- classe de poemas:
ções erróneas ou as críticas dos críticos, mas trata-se ape-
nas de uma diferença de grau e nem por sombras de uma O poema ou poemas do precursor .
de espécie. Não existem interpretações mas somente inter- O poema que escrevemos como leitura nossa.
pretações erróneas, e por isso toda a crítica é poesia em prosa. Um poema rival, filho ou neto do mesmo precursor.
Os críticos são mais ou menos estimáveis que outros Um poema nunca escrito - isto é -
críticos apenas (precisamente) como os poetas são mais o poema que deveria ter sido escrito pelo poeta em
ou menos estimáveis que outros poetas. Tal como um questão.
poeta deve ser descoberto através de um vazio num poeta Um poema compósito feito de uma combinação
precursor, assim o crítico. A diferença é que um crítico dos anteriores.

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Um poema é a melancolia de um poema em relação Quatro
à sua ausência de prioridade. O fracasso em se ter gerado
a si próprio não é a causa do poema, visto que os poemas
emergem da ilusão da liberdade, da possibilidade de um sen-
timento de prioridade. Mas o poema - ao contrário do
espírito criador - é uma coisa feita, e enquanto tal é uma
angústia conseguida.
Como compreender uma angústia? Angustiando-nos.
Todo o leitor profundo é um Perguntador Idiota. Pergunta
«Quem escreveu o meu poema?». Daí a insistência de Emer-
son em que «Em cada obra de génio reconhecemos os nos-
sos próprios pensamentos rejeitados - regressam até nós
com uma certa majestade alienada».
A crítica é o discurso da tautologia profunda - do
solipsista que sabe que aquilo que quer dizer está certo e
no entanto sabe que aquilo que diz está errado. A crítica
é a arte de conhecer as vias ocultas que vão de poema para
poema.

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E afinal agora a mais alta verdade sobre este
assunto ainda não foi dita; provavelmente não pode
ser dita; porque tudo o que dizemos é a remota lem-
brança da intuição. O pensamento mediante o qual
posso aproximar-me mais de o dizer é o seguinte.
Quando o bem está perto de nós, quando temos vida
em nós, isso não se passa de nenhum modo conhecido
ou acostumado; não discernirás as suas pegadas de
nenhumas outras; não verás a face do homem; não ouvi-
rás nenhum nome; - a via, o pensamento, o bem será
completamente novo e estranho. Excluirá exemplo e
experiência. Levamos a via do homem não ao homem.
Todas as pessoas que alguma vez existiram são os seus
ministros esquecidos. Medo e esperança estão igual-
mente sob o seu donúnio. Há algo de baixo mesmo
na esperança. Na hora da visão não há nada a que
possamos chamar gratidão, ou alegria propriamente
dita. A alma elevada acima da paixão contempla a iden-
tidade e a causalidade eterna, percebe a existência da
Verdade e do Direito, e acalma-se com o conhecimento
de que todas as coisas vão bem. Vastos espaços de natu-
reza, o Oceano Atlântico, o Mar do Sul; longos inter-
valos de tempo, anos, séculos, não têm importância.
O que penso e sinto subjazeu a todos os estados e cir-
cunstâncias da vida anteriores, como subjaz ao meu
presente e àquilo a que se chama vida e àquilo a que
se chama morte.

Emerson, Self-Reliance
Demonização
ou O CONTRA-SUBLIME

O novo poeta forte deve reconciliar em si próprio duas


verdades: «0 ethos é o daimon>> e «todas as coisas foram
feitas através dele e nada que foi feito foi feito sem ele».
A poesia, pese embora aos seus publicistas, não é uma luta
contra o recalcamento mas é ela própria uma espécie de recal-
camento. Os poemas emergem não tanto como resposta a
um tempo presente, como mesmo Rilke pensava, mas em
resposta a outros poemas. «Os tempos são resistência», disse
Rilke, em relação à visão que o poeta tem de novos mun-
dos e novos tempos; mas poderia ter dito melhor: «Os poe-
mas do precursor são resistência», visto que as Befreiungen
ou novos poemas emergem de uma tensão central que Rilke
reconheceu. A história era para Rilke o índice dos homens
nascidos cedo demais, mas, enquanto poeta forte, Rilke não
se poderia deixar saber que a arte é o índice dos homens
nascidos tarde demais. Não a dialéctica entre arte e socie-
dade, mas a dialéctica entre arte e arte, ou aquilo a que
Rank viria a chamar a luta do artista contra a arte; tal dia-
léctica governou mesmo Rilke, que sobreviveu à maior parte
dos seus agentes bloqueadores, visto que nele a proporção
de revisão da demonização era mais forte do que em qual-
quer outro poeta do nosso século.
«Os Demónios espreitam e são mudos», pensou Emer-
son, e de facto espreitam nele por todos os lados, e de um
modo bastante audível. Quando os antigos falavam de demó-
nios queriam também referir-se (como disse Drayton) «àque-
les que pela sua grandeza de alma se aproximam dos Deu-
ses. Que nascer de um Incubo celeste não é senão ter um
espírito grande e poderoso, muito acima da fraqueza ter-
rena dos homens». O poder que faz de um homem um poeta
é demónico, porque é o poder que distribui e divide (o sen-

115
tido primitivo de daeomai). Distribui os nossos destinos e encontra agora reduzido. A demonização ou o Contra-Sublime
divide os nossos dons, compensando-nos sempre daquilo que é uma guerra entre Orgulhos, e por um momento o poder
nos tira. Tal divisão traz ordem, confere conhecimento, da novidade vence. Como teorizador do encobrimento deter-
desordena onde conhece, abençoa com a ignorância para -me-ia aqui se pudesse, para desenvolver o Contra-Sublime
criar uma outra ordem. Os demónios fazem porque partem como um estado em si, sem recurso à teologia negativa. Mas
(«Marbles of the dancing floor/ Break bitter furies of com- não existe demonização sem uma intrusão do numinoso, e
plexity»), e no entanto tudo o que têm são as suas vozes, nenhuma explicação desta proporção de revisão pode excluir
e isso é tudo o que os poetas têm. a ideia do Sagrado. Todos os poetas fortes poderiam dizer,
Os demónios de Ficino existiam para trazer vozes dos com Blake e Whitman, que tudo o que vive é sagrado, mas
planetas a homens protegidos. Tais demónios eram influên- Blake e Whitman eram tão completamente demonizados que
cia, movendo-se de Saturno para o génio, mais abaixo, trans- não são representativos. Quando muito, existe um contexto
mitindo a mais generosa das Melancolias. Mas em verdade contra o qual o numinoso brilha manifesto. Esse contexto
o poeta forte nunca é «possuído» por um demónio. Ao tornar- é um vazio, esvaziado ou alienado pelos próprios poetas,
-se forte torna-se, e é, um demónio, a menos que, ou até enquanto que o brilhar manifesto nos devolve a todos os
que, enfraqueça de novo. «A possessão leva a uma identifi- desgostos da divinação.
cação total», observa Angus Fletcher. Voltando-se contra O efebo aprende pela primeira vez a divinação quando
o Sublime do precursor, o novo poeta forte sofre uma demo- apreende a terrível energia do seu próprio precursor como
nização, um Contra-Sublime cuja função sugere a relativa ao mesmo tempo um Absolutamente Outro e no entanto
fraqueza do precursor. Quando o efebo é demonizado, o seu também uma força de possessão. Tal apreensão, a qual nos
precursor é necessariamente humanizado, e um novo Atlân- seus primeiros estádios se parece mais com o dom do pres-
tico flui a partir do ser transformado do novo poeta. sentimento do que com o da divinação, é independente da
De facto, o Sublime do poeta forte não pode ser o vontade e no entanto é completamente consciente. Adivi-
Sublime do leitor a menos que cada vida de um leitor seja nhar a glória que já somos torna-se uma bênção equívoca
também uma Sublime Alegoria. O Contra-Sublime não se quando existe uma profunda angústia a respeito de saber
manifesta como limite da imaginação que demonstra a sua se nos tornámos verdadeiramente nós próprios. E apesar
capacidade. Neste transporte, o único objecto visível eclipsou- disso este sentido da glória, se se verificar que é um erro
-se ou dissolveu-se na vasta imagem do precursor, e o espí- quanto à vida, é necessário a um poeta enquanto poeta,
rito está completamente feliz por ser de novo projectado que deve obter aqui a imaginação através de uma negação
sobre si mesmo. O Sublime de Burke é o do leitor: um Ter- de toda a humanidade da imaginação. A poderosa agudeza
ror agradável, com aquilo a que Martin Price chamou «a de Nietzsche é aqui apropriada:
contra-pressão da auto-preservação». O leitor de Burke cede
à simpatia o que recusa à descrição; precisa de ver apenas Se, em tudo o que faz, considerar aquilo que em última
o mais indefinido dos contornos. Na demonização, a cons- análise é a falta de propósito do homem, a sua própria activi-
ciência poética ampliada vê contornos nítidos e devolve à dade assume aos seus olhos o carácter de um desperdício. Mas
descrição o que tinha cedido a mais à simpatia. Mas tal sentir o seu próprio eu tão desperdiçado como a humanidade
«descrição» é uma proporção de revisão, uma visão demó- (e não apenas como um indivíduo), tal como vemos desperdi-
nica mediante a qual o Grande Original permanece grande çado cada fruto da natureza, é um sentimento acima de todos
mas perde a sua originalidade, cedendo-a ao mundo do os outros sentimentos. Quem no entanto é capaz disso? Decerto
númen, esfera de acção demónica a que o seu esplendor se que só um poeta, e os poetas sabem sempre consolar-se.

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A negação do precursor nunca é possível, já que nenhum a criação perpétua dos poderes do pensamento, daqueles
efebo pode permitir-se ceder, mesmo que por um momento, dependentes e daqueles independentes da vossa vontade ...
à pulsão de morte. Com efeito, a divinação poética visa a Pensais que sou filho da minha circunstância: eu faço a minha
imortalidade literal, e todo o poema pode ser definido como circunstância». Com toda a estima e respeito o estudioso
um evitar de uma morte possível. A via do homem que o do encobrimento deve murmurar em resposta: «Com cer-
conduz pela denegação é um acto primitivo, o acto do recal- teza, com certeza, mas se essa circunstância é a posição do
camento, através do qual o homem continua a desejar, per- poeta, delimitada pela circunferência viva dos precursores,
manece dotado de uma finalidade, e no entanto nega ao então a sombra da nossa substância encontra-se e confunde-se
desejo ou à finalidade qualquer cogitação consciente no seu com uma Sombra maior». Shelley, com o seu característico
espírito. «A denegação só é útil para desfazer uma das equilíbrio inglês, pode aqui ser citado contra Emerson:
consequências do recalcamento - o facto de o tópico da
imagem em questão ser incapaz de entrar na consciência. . .. um grande poeta é uma obra-prima da natureza que
O resultado é uma espécie de aceitação intelectual do recal- outro poeta não apenas deve estudar como tem de estudar.
cado, apesar de todas as características mais importantes Poderia este determinar sabiamente e facilmente que o seu
do recalcamento persistirem». Esta formulação freudiana é espírito não fosse mais o espelho de tudo quanto é belo no
o exacto oposto da demonização e assinala outro limite que universo visível, de modo a excluir da sua contemplação o
nenhum poeta forte se pode permitir aceitar. belo que existe nos escritos de um grande contemporâneo.
O que é precisamente «o demónico» que torna o efebo A pretensão de assim fazer seria presunção em todos menos
num poeta forte? Uma consciência que não negue não pode no maior; o resultado, mesmo neste, seria tenso, pouco natu-
viver com o princípio de realidade. Mas a necessidade de ral e ineficaz. Um poeta é o produto combinado dos poderes
morrer não se deixará ignorar para sempre, e os homens internos que modificam a natureza dos outros; e das influên-
não continuam a ser homens sem recalcamento, por muito cias externas que excitam e sustentam tais poderes; é não
fortemente que o recalcado regresse. A lei da Compensa- uma mas as duas coisas. O espírito de qualquer homem é,
ção, o «nothing is got for nothing» de Emerson, é sentida a este respeito, modificado por todos os objectos da natu-
até por poetas, apesar dos seus breves momentos-de- reza e da arte; por qualquer palavra e qualquer sugestão que
-momentos em que verdadeiramente são deuses libertado- tenha alguma vez admitido agirem sobre a sua consciência;
res. O que quer que o Espírito seja não pode existir uma é o espelho no qual se reflectem todas as formas, e no qual
perversidade polimorfa do Espírito e um recalcamento evi- compõem uma forma. Os poetas, de um modo que não é
tado conduz apenas a outro recalcamento. «0 demónico» diferente do dos filósofos, dos pintores, dos escultores e dos
nos poetas não pode ser distinguido da angústia da influên- músicos são, num certo sentido, os criadores e, noutro, as
cia e trata-se, infelizmente, de uma verdadeira identidade criações da sua idade. Desta sujeição nem os mais sublimes
e não de uma semelhança. O terror do leitor do e no Sublime escapam.
rivaliza com a angústia de todos os poetas fortes do pós-
-iluminismo do e no Contra-Sublime. A sujeição de Shelley, como ele o sabia, era ao precur-
Emerson, o poeta inultrapassável do Sublime Ameri- sor que tinha criado (mais do que ninguém, mesmo Rous-
cano (que é sempre um Contra-Sublime), protestaria linda- seau) o Espírito da Epoca. Contra Wordsworth, Shelley
mente contra o nosso triste murmúrio de que existe ainda tornou-se um poeta forte a partir de Alastor, mediante um
o universo da morte, o nosso mundo: « ... Tudo o que cha- novo tipo de voo demandante, um movimento ascendente
mais ao mundo é a sombra dessa substância que vós sois, no qual o Espírito era todavia projectado para fora e para

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baixo. A demonização de Shelley foi esta queda centrífuga, Para se apropriar da paisagem do precursor, o efebo tem
e mais do que qualquer outro poeta (mesmo Rilke), Sheley de se afastar mais de si próprio. Para atingir um eu ainda
obriga-nos a vê-lo na companhia dos anjos, dos companhei- mais interior que o do precursor, o efebo torna-se necessa-
ros demónicos da sua demanda da totalidade. Paul de Man, riamente mais solipsista. Para se furtar ao olhar imaginado
ao expor Binswanger, fala da «possibilidade de imaginação do precursor, o efebo procura confiná-lo no seu alcance,
do que se poderia chamar uma queda ascendente» e da sub- o que perversamente amplia o olhar de forma a que rara-
sequente descida, «a possibilidade da queda e do desalento mente se pode furtar a ele. Tal como a criança pequena
que se segue a tais momentos de voo» ou aproximadamente acredita que os seus pais o podem ver do outro lado das
daquilo a que chamei kenosis. A Verstiegenheit (ou «Extra- esquinas, assim o efebo sente que existe um olhar mágico
vagância», como Jacob Needleman agudamente traduz, que assiste a todos os seus movimentos . O olhar desejado
socorrendo-se do sentido primitivo de «vaguear fora de limi- é amistoso ou apaixonado, mas o olhar temido é de reprova-
tes») binswangeriana é referida por de Man como um claro ção ou torna o efebo indigno do amor mais elevado, aliena-o
perigo para a imaginação; mas podemos distinguir a queda dos domínios da poesia. Ao mover-se através de paisagens
ascendente enquanto processo da Extravagância enquanto mudas, ou de coisas que lhe falam menos frequentemente
estado que se lhe segue. Projectado pela glória inebriante e menos urgentemente do que o fizeram ao precursor, o
de participar na força do precursor, o efebo parece (a si efebo conhece também o custo de uma interioridade aumen-
próprio) levitar, uma experiência de afflatus que o aban- tada, de uma maior separação de tudo o que é extenso. Trata-
dona nas alturas, elevado a uma Extravagância que é uma -se de uma perda de reciprocidade em relação ao mundo,
«falha na relação entre altura e vastidão no sentido antro- quando comparada com o sentido que o precursor teve de
pológico». Trata-se aqui de uma existência humana que foi ser um homem a quem todas as coisas falam.
longe demais, da melancolia própria do poeta, estranhamente O ímpeto da demonização vai na direcção de um Contra-
representada para Binswanger pelo Solness de Ibsen, que -Sublime, ou daquilo a que vitalistas pós-freudianos como
dificilmente parece adequado a uma tão ampla noção de Marcuse e Brown esperavam evidentemente referir-se ao
desproporção. O resumo de Binswanger é útil se o lermos falar daquilo a que Freud chamava um retorno do recal-
de trás para a frente; a salvação da Extravagância, diz ele, cado. Shelley, como todos os poetas fortes, aprendeu melhor
é possível apenas com uma «ajuda exterior», como o alpi- (como poeta, talvez não como homem) e melhor do que qual-
nista demasiado perto do seu precipício para poder voltar. quer outro poeta mostra-nos agora que o recalcado não pode
Conceda-se que um poeta forte, enquanto poeta, se encon- regressar, pelo menos em poemas. De facto, todo o Contra-
tra por definição «fora de ajuda» e que puramente enquanto -Sublime é adquirido por um recalcamento novo e maior
poeta seria destruído por tal ajuda. Aquilo que Binswanger do que o Sublime do precursor. A demonização tenta expan-
vê como uma patologia é apenas a saúde perversa ou a subli- dir o poder do precursor num princípio maior que o seu,
midade atingida do poeta consumado. mas torna pragmaticamente o filho mais parecido com um
Van Den Berg, num surpreendente ensaio sobre o sig- demónio e o precursor mais parecido com um homem.
nificado do movimento humano, localiza três domínios desse A verdade mais lúgubre da história poética do pós-iluminismo
mesmo significado: a paisagem, o eu interior, o olhar do outro . é quase demasiado amarga para o nosso gosto humano, e
Se procurarmos o significado do movimento poético no sen- nem toda a exuberância dialéctica de Nietzsche conseguiu
tido de postura e gestos de um poema, tal como falamos obscurecer uma verdade a que nos furtamos pelo bem social
de os de um ser humano, aqueles domínios transpõem-se das academias. O demónio em todos nós é o Poeta Atra-
para: afastamento, solipsismo e olhar imaginado do precursor. sado; o Édipo cego é o humano, a coerência total que sabe

120 121
que a vida não pode ser justificada enquanto fenómeno esté- a nossa culpa deriva do recalcamento instintivo, do coarc-
tico, mesmo quando essa vida é completamente sacrificada tar da natureza inferior. Na visão poética, a culpa vem da
ao domínio estético. É a Schopenhauer e não a Nietzsche repressão da nossa natureza intermédia, do terreno em que
que cabe a honra de se ter confrontado com a verdade, como a moral e o instinto se têm de encontrar e mutuamente sub-
aliás Nietzsche deve ter sabido, mesmo em O Nascimento sumir. A demonização, que começa como proporção de revi-
da Tragédia, em que tenta superar o seu mais sombrio pre- são de des-individualização do precursor, acaba com o triunfo
cursor através de uma refutação directa. Quem pode dei- dúbio da cedência àquele da totalidade do terreno intermé-
xar de perceber na descrição de Schopenhauer da poesia dio do precursor, ou da humanidade comum. Em relação
lírica, diz Nietzsche, que esta é apresentada como uma arte ao precursor, o poeta atrasado obriga-se a um novo recalca-
nunca completamente realizada? O canto autêntico - para mento ao mesmo tempo moral e pulsional. Um dos loucos
Schopenhauer- denota um estado de espírito misturado paradoxos da poesia pós-miltoniana em inglês é o de que
e dividido entre a mera vontade e a pura contemplação. Milton parece (e talvez estivesse) mais livre de culpa, moral
Como filho demónico, Nietzsche protesta eloquentemente e instintual, quando comparado com Blake, Wordsworth,
que o indivíduo que se esforça para realizar as suas finali- Shelley ou mesmo Keats entre os maiores dos seus descen-
dades egoístas é apenas um inimigo da arte e não a sua fonte. dentes.
Para Nietzsche, um homem é um artista apenas na medida Ao rescrever a ode das «lntimations» como o seu Hymn
em que está liberto da vontade individual «e se tornou um to Intellectual Beauty, Shelley sofreu uma demonização que
meio através do qual o Verdadeiro Sujeito celebra a sua
o sobrecarregou, moral e instintualmente, com um programa
própria redenção pela ilusão». Freud, na sua admirável huma-
demasiado intenso até para ser levado a cabo pelo seu espí-
nidade, seguiu o primeiro Nietzsche neste idealismo alta- rito robusto e ágil. Os poemas fortes que também rescre-
mente competente, mas o tempo mostrou a maior sabedo-
vem explicitamente poemas precursores tendem a tornar-se
ria de Schopenhauer. De facto, o que é o Verdadeiro Sujeito
senão recalcamento? O ego não é o inimigo da arte, mas
poemas de conversão, e a conversão não é um fenómeno esté-
tico, mesmo quando o converso se desloca de Apolo para
antes o triste irmão da arte. O Verdadeiro Sujeito da arte
é o grande antagonista da arte, o Querubim terrível oculto Dionisos ou inversamente. É aqui útil lembrar uma das notá-
no id, porque o id é a enorme ilusão que não pode ser redi- veis destruições de Nietzsche das suas próprias intuições
mida. O pecado original da arte, como Nietzsche tão mara- mais importantes:
vilhosamente exemplifica, é que uma Língua Falsa vegeta
sob a natureza ou, para usar uma linguagem menos blakeana, Enquanto dura, o transporte do estado dionisíaco, com
que nenhum artista pode perdoar às suas origens enquanto a sua suspensão de todas as barreiras da existência, trans-
artista. porta consigo um elemento de esquecimento em que tudo
A visão de Freud do recalcamento sublinha o facto de o que foi sentido pelo indivíduo se afoga. Este abismo de
o esquecimento ser tudo menos um processo libertador. Cada esquecimento separa a realidade quotidiana do dionisíaco.
precursor esquecido se torna um gigante da imaginação. Mas mal a realidade quotidiana entra uma vez mais na cons-
O recalcamento total equivaleria à saúde, mas só um deus ciência é encarada com desprezo e a consequência é um estado
é capaz dele. Todo o poeta deseja ser o deus libertador de de espírito ascético e abúlico.
Emerson, e cada vez mais todos os poetas falham. Na visão
cristã, a nossa culpa emerge do recalcamento da nossa natu- Nesta perspectiva, todo o influxo é perda e o preço
reza superior ou do nosso legado moral. Na visão freudiana, do transporte é uma revulsão que o domínio estético não

122 123
pode conter. Da nomeação de um deus, Whitman passa a quando reJeltou a sua visão juvenil de um mundo «feito
uma repugnância que impede toda e qualquer nomeação: para parecer, em cada instante, uma solução conseguida
das próprias tensões de Deus, uma visão sempre nova pro-
O baffled, balk'd, bent to the very earth, jectada por aquele grande sofredor para quem a ilusão é
Oppress'd with myself that I have dared to open my mouth, o único modo possível de redenção». Freud viu humana-
Aware now that amid ali that blab whose echoes recoil upon mente o complexo de Édipo como apenas uma fase no desen-
me I have not once had the least idea who or what I am. volvimento da personalidade, que seria transcendida pelo
But that before ali my arrogant poems the real Me stands Überich (super-ego) como falso censor racional. E no entanto
yet untouch' d, untold, altogether unreach' d. . . . nenhum poeta enquanto poeta completa tal desenvolvimento
e continua poeta. Na imaginação, a fase edipiana desenvolve-se
Se partirmos de novo da ideia freudiana de que a tra- de trás para a frente, para enriquecer e tornar ainda mais
dição é «equivalente ao material recalcado na vida mental recente o id. A fórmula da demonização é: «que onde o eu
do indivíduo», então a função da demonização deve certa- do meu pai poético estava, aí fique» ou, ainda melhor, «eis
mente aumentar o recalcamento, absorvendo o precursor o meu eu, misturado com ele». Trata-se do romantismo como
mais completamente na tradição do que a sua própria cora- estudo de nostalgias, o sonho primitivizador de tantas sen-
josa individuação poderia permitir que este fizesse. Nietzs- sibilidades gloriosamente afastadas. Demonizar é atingir
che celebra Édipo como mais outro exemplar da sabedoria aquele estado anterior da organização psíquica em que tudo
dionisíaca porque este quebra «o encanto do presente e do o que é passional é ambivalente e no entanto atingi-lo com
futuro, a rígida lei da individuação», mas aqui a ironia nietzs- a consciência que torna um poema possível, a perversidade
cheana é presumivelmente muito dialéctica. O efebo que involuntária de uma consciência dupla totalmente centrada
combate e demoniza o passado não é Édipo o advinho, que no valor de sobrevivência poética da deformação de todo
via, mas o Édipo cego, obscurecido pelarevelação. A demo- o passado.
nização, como toda a mitificação dos pais, é um movimento Nada poderia estar mais longe da agressão espontânea
de individuação adquirido mediante uma retracção do eu, do que aquilo a que chamo demonização, e no entanto ambas
com o preço elevado da desumanização. Que Sublime pode as atitudes se assemelham de um modo suspeito. Há tantas
compensar a violência contra o eu? canções de triunfo que, lidas de perto, se começam a pare-
O Édipo cego é o equivalente ao deus ferreiro alei- cer com rituais de separação, que um leitor precavido pode
jado, Vulcano ou Thor ou Urthona, porque quer cegar quer duvidar se o poeta verdadeiramente forte teve algum dia
aleijar são movimentos castradores que suspendem a incapa- outro antagonista para além do eu e do seu mais forte pre-
citação total da faculdade da imaginação. A demonização, cursor. Eis Collins, invocando o Medo; e no entanto que
enquanto proporção de revisão, é um acto de auto-incapa- tem ele a temer excepto ele próprio e John Milton?
citação, que visa a aquisição de conhecimento através de
um simulacro de perda de poder mas que, mais frequente- Thou, to whom the world unknown,
mente, resulta numa verdadeira perda dos poderes criadores. With ali its shadowy shapes, is shown;
É um gesto falsamente dionisíaco que reduz a glória humana Who seest, appalled, the unreal scene,
do precursor através da devolução de todas as esforçadas While fancy lifts the veil between:
vitórias deste ao mundo demónico. Isso nos disse Nietzs- Ah fear! ah frantic fear!
che na sua visão retrospectiva do Nascimento da Tragédia, I see, I see thee near.

124 125
posto de recalcamento e da perversa celebração da perda,
como se o menos se pudesse tornar em mais mediante uma
continuidade entre regressividade e auto-engano. E no
Wrapt in thy cloudy veil, the incestuous queen entanto, algo mais do que os transportes sublimes de Thom-
Sighed the sad call her son and husband heard, son, Collins e Cowper é posto em causa pela nossa percep-
When once alone it broke the silent scene, ção recolectora. E o Contra-Sublime de Blake, e o de Words-
And he, the wretch of Thebes, no more appeared. worth? Será toda a ekstasis, o último passo para o além,
da visão romântica apenas uma intensidade de repressão ante-
riormente inigualada na história da imaginação? Será o
romantismo afinal apenas o declínio do iluminismo e a sua
poesia profética apenas uma terapia ilusória, não tanto uma
Dark power, with shuddering meek submitted thought, ficção salvadora como uma mentira inconsciente contra o
Be mine to read the visions old difícil esforço humano para manter o terreno intermédio
Which thy awakening bards have told: entre a existência instintual e toda a moralidade?
And, lest thou meet my blasted view, Se existem respostas para estas perguntas, tais respostas
Hold each strange tale devoutly true. . não serão menos dialécticas do que as próprias perguntas, ou
do que o Perguntador Idiota dentro de nós que silenciosa-
Aqui o Medo é o verdadeiro demónio de Collins (como ~ente premedita tais questões por malevolência pragmática.
Fletcher observa), a loucura mais-que-poética que lhe acena E melhor lembrar a visão do nosso pai Abraão «quando o
na queda ascendente da Extravagância. Confrontando-se com sol se ia a pôr . . . e foi tomado de grande pavor» e o que
o demónico, Collins oscila entre Édipo o vidente e Édipo foi obrigado a fazer desta o mais pungente dos poetas da
cego, utilizando a linguagem e os ritmos do Penseroso de sensibilidade. «Quando o sol se pôs e se estenderam as tre-
Milton para demonizar o precursor, localizar a perniciosa vas, eis que uma fogueira fumegante e uma tocha de fogo
beleza de Milton onde apenas ele, o id, pode habitar. passaram entre os animais divididos.» Christopher Smart,
E todavia, por que alto preço compra Collins este êxtase na sua escuridão, gritou primeiro: «E a própria fogueira virá
indefinido, este Sublime enevoado! De facto, o seu poema por fim segundo a visão de Abraão» e depois acrescentou,
é indistinguível do seu profundo recalcamento da sua pró- picado pelo recalcamento do Querubim Protector, uma pro-
pria humanidade, e profetiza com precisão o pathos terrível fecia mais devota: «E SOMBRA é bela Palavra de Deus
do seu destino, com todos os seus dons, como o «Pobre que a Ele não volta até que volte a fogueira».
Collins» do Dr. Johnson.
Muito daquilo a que chamámos a loucura ou o «peri-
goso equilíbrio» dos Bardos da Sensibilidade foi simples-
mente o seu exercício desta perigosa defesa, a proporção
de revisão da demonização. A história natural da sensibili-
dade reduz-se ao encobrimento voluntário de uma poesia
pós-miltoniana demasiado consciente de si própria. Tanto
do sublime de meados do século dezoito é subsumido por
esta angústia da influência que temos de supor que a revi-
vescência do sublime não foi nunca mais do que um com-

126 127
Cinco
Os céus dispensam luz e influência sobre este
mundo baixo, que reflecte os raios benditos, ainda que
os não possa recompensar. Assim, pode o homem
regressar a Deus, mas não retribuir-lhe.

Coleridge
Askesis
ou PURGAÇÃO E SOLIPSISMQ

O Prometeu que existe em todos os poetas fortes incorre


na culpa de ter devorado a porção de Dionisos-criança con-
tida no poeta precursor. O orfismo, para os poetas tardios,
reduz-se a uma variedade da sublimação, a mais verdadeira
das defesas contra a angústia da influência e uma das mais
prejudiciais ao eu poético. Daí ter Nietzsche, que reconhe-
ceu amorosamente em Sócrates o primeiro mes tre da subli-
mação, achado em Sócrates também o destruidor da tragé-
dia. Se tivesse vivido o suficiente para ler Freud, Nietzsche
poderia ter visto nele com alguma admiração um outro Sócra-
tes, vindo para reviver a visão primitiva de um substituto
racional para as gratificações inatingíveis e antitéticas quer
da vida quer da arte.
Saber se a sublimação dos instintos sexuais desempe-
nha um papel central na génese da poesia não é particular-
mente relevante para a leitura da poesia e não cabe na dia-
léctica do encobrimento. Mas a sublimação de instintos de
agressividade é central para a escrita e a leitura da poesia,
e é quase idêntica ao processo total do encobrimento poé-
tico. A sublimação poética é uma askesis, um modo de purga
que visa um estado de solidão como seu objectivo mais pró-
ximo. Inebriado pela nova força repressiva de um Contra-
-Sublime personalizado, o poeta forte no seu estado de ele-
vação demónica adquire o poder para virar a sua energia
contra si próprio e consegue, a um preço terrível, a sua mais
clara vitória na luta com os poderosos mortos.
Fenichel, fiel ao espírito do Fundador, quase canta um
hino de louvor aos esplendores da sublimação. De facto,
na visão de Freud, apenas a sublimação nos pode dar uma
espécie de pensamento liberto do seu próprio passado sexual,
e de novo apenas a sublimação pode modificar um impulso

133
instintivo sem o destruir. Os poetas em particular, como ticos como os seus poetas, esses deuses libertadores cuja
Nietzsche poderia ter notado, são enquanto poetas incapa- nostalgia é mais pungente que a sua divinidade. Nietzsche
zes de existir quer numa frustração prolongada quer numa foi um psicólogo magistral ao ver que os poetas são muito
renúncia estóica. Como podem eles dar prazer se de modo mais intensos na sua .mistificação dionisíaca do que na sua
algum o receberam? Mas como podem eles receber o mais parte da nossa culpa prometaica comum.
fundo prazer, o êxtase da prioridade, do auto-engendra- Uma filosofia da composição (não da psicogénese) é
menta, de uma autonomia certa, se a sua via para o Verda- necessariamente uma genealogia da imaginação, um estudo da
deiro Sujeito e os seus próprios Verdadeiros Eus atraves- única culpa que importa para um poeta, a culpa da dívida.
sam o sujeito do precursor e o seu eu? Nietzsche é o verdadeiro psicólogo desta culpa, que pode bem
Kierkegaard, ao contrastar tão desfavoravelmente Orfeu estar no centro da sua preocupação com a vontade - não
com Abraão, seguiu o Banquete de Platão, em que o poeta tanto a vontade de poder como uma contra-vontade que
dos poetas é condenado pela sua moleza, o que parece que- nele surge, que procura não a força mas o desinteresse que
rer dizer a sua incapacidade para a sublimação. E na ver- o seu mestre Schopenhauer tinha procurado. Nietzsche, ape-
dade pareceria estranho citar Orfeu como um exemplar do sar de ter pensado que tinha alterado o valor do desinte-
espírito ascético. No entanto, o orfismo, a religião natural resse, foi sempre perseguido por ele.
de todos os poetas enquanto poetas, apresentava-se como «Não há talvez nada mais terrível na história remota
uma askesis. Os órficos, que adoravam o Tempo como ori- de um homem do que a sua mnemotécnica», observou Nietzs-
gem de todas as coisas, reservavam no entanto a sua verda- che, porque a sua intuição associava toda a criação de uma
deira devoção para Dionisos, devorado pelos Titãs mas renas- memória a uma dor atroz. Todos os costumes (incluindo,
cido de Semeie. A infelicidade deste mito é que o homem, podemos supor, a tradição poética) são <mma sequência de ...
tendo-se elevado das cinzas de Titãs pecaminosos, tenha em processos de apropriação, incluindo as resistências usadas
si um elemento de mau prometeismo e um elemento de bom em cada caso, as transformações ensaiadas por motivos de
dionisismo. Todo o êxtase poético, todo o sentimento de que defesa ou reacção, bem como os resultados de contra-ataques
o poeta sai do homem para o deus, reduz este amargo mito, com êxito». Na Genealogia da Moral, a doença da má cons-
como o faz todo o ascetismo poético, que começa como dou- ciência é diagnosticada como necessária, e por fim como
trina sombria da metempsicose e dos seus medos correlati- uma fase na criação humana dos deuses. O «rude poema»
vos de devorar uma versão anterior do eu. de Vico acerca das nossas origens da imaginação é amável
O efebo, transformando-se através das purgações da quando comparado com a terrível visão de Nietzsche da
sua posição de revisão, é o descendente directo de todos «relação entre os homens vivos e os seus antepassados». Os
os adeptos órficos que se rebolaram na lama e no farelo sacrifícios e as conquistas dos antepassados são a única garan-
para que fossem assim elevados acima da raiva e do lodo tia de sobrevivência das sociedades primitivas, que têm por
do ser-se meramente humano. A maldição, para o órfico, isso de pagar aos mortos:
era ser-se vítima da compulsão à repetição e assim acabar
a transportar água com uma peneira no Hades. Toda a odiosa ... o medo do antepassado e do seu poder e a consciên-
exclusividade alguma vez sentida por um poeta ocidental cia da dívida aumentam na proporção directa do aumento
tem uma origem em última análise órfica, mas o mesmo se do poder da tribo, à medida que esta se torna mais vito-
passa com todos os Sublimes poéticos, de Píndaro aos nos- riosa, independente, honrada e temida .. . então, os antepas-
sos dias. A náusea do sofredor poético é indistinguível para sados das tribos mais poderosas acabam por adquirir, pela
ele da sua sublimidade, mas poucos leitores são tão antité- imaginação do medo crescente, dimensões monstruosas e aca-

134 135
bam por se reduzir à escuridão do divinamente inquietante no seu contrário. Se convertermos esta especulação no con-
e do inimaginável: o antepassado trasfigura-se necessaria- texto da nossa tipologia das evasões, a sublimação torna-se
mente num deus. então uma forma de askesis, uma auto-restrição que busca
a transformação à custa de um estreitamento da circunfe-
Parte da paga à sombra numinosa, insistiu Nietzsche, rência criativa simultaneamente do precursor e do efebo.
foi o ideal ascético, que nos artistas significou «ou nada O produto final do processo de askesis poética é a formação
ou coisas demais». Contra o ideal ascético, Nietzsche colo- de um equivalente da imaginação do super-ego, de uma von-
cou o «ideal antitético», e perguntou desesperadamente: tade poética completamente desenvolvida, mais severa que
«Onde podemos encontrar uma vontade antitética que ponha a consciência, e daí o Urizen em todo o poeta forte, a sua
em vigor um ideal antitético?». Yeats procurou encarnar agressividade amadurecidamente internalizada.
parte da resposta a partir de Per Amica Silentia Lunae no Lou Andreas-Salomé, que recordamos como a amada
trabalho da sua vida, e talvez Yeats tenha dado uma res- de Nietzsche e de Rilke e também como discípula de Freud,
posta mais completa (pese embora toda a sua incompletude) seguia outro dos seus famosos amantes, o melancólico Tausk,
do que qualquer outro artista pós-nietzscheano, até que por quando observou que a sublimação era de facto a nossa
fim uma visão curiosamente invertida do ideal ascético aca- própria auto-realização e poderia melhor ser chamada «ela-
bou por desfigurar os seus Last Poems and Plays. boração». Ao elaborar, tornamo-nos ao mesmo tempo Pro-
Não é particularmente agradável olhar para a poesia, meteu e Narciso; ou melhor, só o poeta verdadeiramente
na sua maior força, como uma sublimação eficaz da nossa forte pode ser ambos, fazendo a sua cultura e contemplando
agressividade instintual, como se uma ode pindárica fosse enlevadamente o seu lugar central nela. Mas para esta con-
o mesmo que os cantos de triunfo dos gansos descritos por templação deve fazer um sacrifício, na medida em que toda
Lorenz. Mas aquilo a que os poetas chamam o seu purgató- a criação-por-evasão, toda a fabricação de um poeta atra-
rio é na sua maior parte aquilo a que os platónicos, os cris- sado, depende do sacrifício. Cornford, no seu Principium
tãos, os nietzscheanos ou os freudianos concordariam em Sapientiae, observa o pormenor curioso de que «em Hesíodo
chamar uma espécie de sublimação, ou de defesas do ego a humanidade aparece primeiro em relação com o sacrifício
que resultam. Visto que a descrição freudiana da sublima- quando Prometeu roubou a Zeus a parte melhor, como
ção é a mais amigavelmente reducionista, temos a ganhar se o sacrifício aos deuses fosse, como na doutrina babiló-
se a seguirmos aqui. Os mecanismos de defesa na sublima- nica, a função primordial do homem. Também no Génesis
ção são variados: mudanças de passividade para actividade, o primeiro pecado cometido depois da expulsão dos nossos
confrontação directa das forças ou impulsos perigosos, con- primeiros pais do Paraíso foi motivado pelos sacrifícios
versão das forças no seu contrário. Citando Fenichel: «Pela oferecidos por Abel e Caim». Cornford conclui que todo
sublimação, o impulso original desaparece porque a sua ener- o sacrifício é feito a fim de renovar a vitalidade humana.
gia se retirou a favor da catexia do seu substituto». A líbido No processo do encobrimento poético, o sacrifício diminui
flui sem impedimentos mas é des-sexualizada, e as tendên- a vitalidade humana, visto que aqui menos significa mais.
cias destrutivas esgotam-se do influxo agressivo das nossas Apesar de termos sempre idealizado a poesia ocidental quase
energias e desejos. desde as suas origens (seguindo aqui os próprios poetas, que
Freud, em O Ego e o Id, especulou que a sublimação bem sabiam o que faziam), a escrita (e a leitura) de poemas
se relacionava de perto com a identificação, uma identifi- é um processo sacrificial, uma purgação que esgota mais do
cação que dependia ela própria da distorção do objectivo ou que restaura. Cada poema é uma invasão não só de outro
do objecto, que pode ir a ponto de ser uma transformação poema mas também de si próprio, o que equivale a dizer

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que todo o poema é uma interpretação errónea daquilo que gatorial. As realidades dos outros eus e de tudo o que é
poderia ter sido. exterior são ambas diminuídas, até que emerge um novo
Não se pode subornar os deuses, disse Platão, e assim estilo de rudeza, cujo ênfase retórico pode ser lido como
o sacrifício não pode suscitar gratidão em relação a dons um de entre vários graus de solipsismo.
que supostamente virão. O Fédon propõe uma catarse mais Aquilo que o poeta forte, como o solipsista, quer dizer
verdadeira para a alma filosófica: <<A pm·ificação .. . con- está certo, dado que este egocentrismo é ele próprio um
siste em separar o mais possível a alma do corpo . . . treino determinante para a imaginação. O purgatório, para
concentrando-a em si própria». Este dualismo radical não os poetas fortes posteriores ao iluminismo, é sempre oxi-
pode ser a askesis da alma poética, em que a separação tem morónico e nunca meramente doloroso, dado que qualquer
de ter lugar dentro da própria alma. A internalização é o estreitamento de circunferência é compensado pela ilusão
modo de separação de um poeta. O afastamento da alma em poética (uma alucinação e apesar disso um poema forte)
relação a si própria não é intencional e no entanto segue-se segundo a qual por essa razão o centro resistirá melhor.
de uma tentativa de afastamento não só de todos os precur- Aquilo a que Coleridge (como filósofo, não como poeta)
sores como também dos seus mundos, o que significa afastar chamou «exterioridade», a sanção teocêntrica do que é
a própria poesia. O erro acerca da vida é necessário para a externo e dos outros, não tem interesse para o poeta forte
vida e o erro acerca da poesia é necessário para a poesia. enquanto poeta. Estou a sugerir (e não gosto da sugestão)
A askesis poética começa nos cumes do Contra-Sublime que na sua askesis purgatorial o poeta forte só se conhece
e compensa o choque involuntário do poeta face à sua pró- a si próprio e ao Outro que finalmente deve destruir, o
pria expansividade demónica. Sem askesis, o poeta forte, seu precursor, que pode bem (nesta altura) s~r uma figura
como Stevens, está destinado a tornar-se o <trabbit as king imaginária ou compósita e que no entanto é amda formada
of the ghosts»: por poemas passados reais que não se deixarão esquecer.
De facto, o clinamen e a tessera tentam corrigir e completar
The grass is full os mortos, e a kenosis e a demonização trabalham no sen-
tido de recalcar a memória dos mortos, mas a askesis é o
And full of yourself. The trees around you are for you, combate propriamente dito, a luta de morte com os mortos.
The whole of the wideness of night is for you, E apesar disso, se historicizámos todas as descrições
A self that touches ali edges, que teorizam a sublimação, que mais poderíamos esperar
senão uma luta contra todos os nossos antepassados? Se todo
You become a self that fills the four corners of night. o auto-desenvolvimento é uma sublimação e por isso ape-
nas uma elaboração, durante quanto tempo podemos dese-
Deformado em cima, deformado para cima, o poeta
jar que a elaboração continue, quanta elaboração podemos
tornar-se-á uma inscrição no espaço a menos que se possa
suportar? Pragmaticamente queremos elaboração enquanto
ferir a si próprio sem se esvaziar mais da sua inspiração. Não
esta não perturbar as ideias de ordem que nos mantêm a
se pode permitir uma outra kenosis. A rendição útil, para
funcionar, mas afinal de contas nós (eu e aqueles para quem
ele, é agora uma restrição, um sacrifício de uma parte de
escrevo) não somos poetas mas sim leitores. Pode o poeta
si próprio cuja ausência o individualizará mais como poeta.
verdadeiramente forte suportar ser apenas uma elaboração
A askesis, enquanto defesa eficaz contra a angústia da influên-
cia, pressupõe um novo tipo de restrição no eu poético, geral- do poeta que para sempre dispõe de uma prioridade em rela-
mente expressa como um cegar ou pelo menos um velar pur- ção a si?

138 139
E no entanto houve uma grande idade antes do Dilú- Eurydice». Assim o eros sombrio de Dido é transformado
vio, quando a influência era generosa (ou os poetas íntima- pela redenção retrospectiva do regresso de Beatriz, a eterni-
mente pensavam que assim era), uma idade que vai de dade na ordem política é finalmente igualada pela importân-
Homero a Shakespeare. No cerne desta matriz de influên- cia pessoal da ressurreição, a poesia torna-se mais forte que
cia generosa encontra-se Dante e a sua relação com o seu a Morte e, pela primeira vez no poema, o Peregrino é
precursor Virgílio, que levava o seu efebo apenas ao amor nomeado quando Beatriz o chama: «Dante!».
e à emulação e não à angústia. Com certeza, mas ainda que
nenhuma Sombra caia entre Virgflio e Dante, uma outra - de uma carta ao autor
coisa existe em seu lugar. John Freccero ilumina maravi-
lhosamente esta grande sublimação, antepassada de todas
as askeses subsequentes protagonizadas pelo poeta forte: Este nomear pós-purgatório é, contudo, o único ele-
mento que permanece ancestr-al, dado que todos os mestres
No Purgatório, XXVII, o peregrino & Estácio & Virgí- do pós-iluminismo se movem não na direcção de uma parti-
lio atravessam o muro de fogo e encontram um anjo e todos lha, como Dante depois deste grande momento, mas na direc-
os adornos tradicionais, incluindo montanhas de conversa ção de um estar-consigo . A askesis em Wordsworth, Keats,
paternal. Muros, barreiras, ecos de todos os temas medie- Browníng, Whitman, Yeats e Stevens, para examinar meia-
vais e antigos que se possa imaginar. É também nesta altura
-dúzia de figuras modernas representativas, é necessariamente
que Virgílio desaparece do poema e é substituído por Bea- uma proporção de revisão que se conclui nas f1·onteiras do
triz. O que não é geralmente sabido, todavia, é que esta
solipsismo. Analisarei estes exemplos em pares - W ords-
é também a altura em que aparece o maior número de ecos
worth e Keilts, Browning e Yeats, Whitman e Stevens, visto
de Virgílio, incluindo a única citação directa de Virgílio no
que em cada caso a figura anterior é ao mesmo tempo um
poema (em latim), todos eles deliberadamente truncados: pri-
precursor e um compartilhador de um precursor comum:
meiro, as palavras de Dido quando vê Eneias e recorda a
paixão antiga que a ligava ao seu marido e assim antevê a
respectivamente Milton, Shelley e Emerson.
sua própria morte na pira: «agnosco veteris flammae vestigia».
Eis Wordsworth no magnífico fragmento Home at Gras-
No Purgatório, Dante usa o verso para recordar o seu pri- mere:
meiro amor por Beatriz quando ela regressa: «conosco i signi
While yet an innocent little one, with a heart
dell'antica fiama». Segundo, os anjos cantam para saudar Bea-
triz: <<Manibus o date lilia plenis ... » Este é o verso usado por That doubtless wanted not its tender moods,
Anquises para indicar a sombra do filho de Augusto, morto I breathed (for this I better recollect)
prematuramente, na passagem do «Tu Marcellus eris» que assi- Among wild appetites and blind desires,
nala o échec por excelência, pese embora a eternidade de Motions of savage instinct my delight
Roma. Os estudiosos dizem que significa os lírios roxos do And exaltation. Nothing at that time
luto. A alusão no Purgatório é obviamente aos lírios brancos So welcome, no temptation half so dear
da Ressurreição. O peregrino volta-se para Virgílio para pedir As that which urged me to a daring feat,
ajuda face a este regresso momentoso e descobre que o dolce Deep pools, tall trees, black chasm, and dizzy crags,
padre desapareceu: «Virgílio, Virgílio, Virgílio», repetindo a And tottering towers: I loved to stand and read
confissão do próprio Virgílio acerca da impo\ência da poesia Their looks forbidding, read and disobey,
na história de Orfeu da Quarta Geórgica: <<EUI/ydice, Eurydice, Sometimes in act and evermore in thought.
/
140 141
Witb impulses, tbat scarcely were by tbese um fazedor mais externalizado que poderia ter tido assunto
Surpassed in strengtb, I beard of danger met além do da sua própria subjectívidade. Uma enorme restri-
Or sougbt witb courage; enterprise forlorn ção fez de W ordsworth o inventor da poesia moderna, a
By one, sole keeper of bis own intent, qual pelo menos podemos reconhecer como a coisa dimi-
Or by a resolute few, wbo for tbe sake nuta que é, ou, mais simplesmente: a poesia moderna (o
Of glory fronted multitudes in arms. romantismo) é o resultado de uma sublimação da imagina-
Yea, to tbis bour I cannot read a Tale ção mais prodigiosa do que aquela por que a poesia ociden-
Of two brave vessels matcbed in deadly figbt, tal, de Homero a Milton, teve de passar. Wordsworth
And figbting to tbe deatb, but I am pleased encontra-se na posição infeliz de celebrar não uma mera des-
More tban a wise man ougbt to be; I wisb, -sexualização mas uma perda genuína de «Ali that inflamed
Fret, burn, and struggle, and in sou! am tbere. thy infant heart, the love,/ The longing, the contempt, the
But me batb Nature tamed, and bade to seek undaunted quest». Tem fé em que tudo isto «shall survive,
For otber agitations, or be calm; though changed their office, ali / Shall live», mas cedo a
Hatb dealt wítb me as witb a turbulent stream, sua poesia deixará de sustentar tal fé.
Some nursling of tbe mountains wbicb sbe Ieads Em Home at Grasmere, a recompensa esperada por esta
Tbrougb quiet meadows, after be bas learnt sublimação é tentada imediatamente a seguir, na passagem
His strengtb, and bad bis triumpb and bis joy, seguinte e final do fragmento, que se tornou no famoso
His desperate course of tumult and of glee. «Prospectos» de The Excursion. A askesís aqui revela-se na
Tbat whicb in stealtb by Nature was performed sua circunferência completa, tanto restrição de Milton como
Hatb Reason sanctioned: ber deliberate Voice de Wordsworth. E aqui também se revela a obsessão mais
Hatb said; be mild, and cleave to gentle tbings, funda de Wordsworth enquanto poeta monstruosamente
Tby glory and tby bappiness be tbere. forte:
Nor fear, tbougb tbou confide in me, a want
Of aspirations tbat bave been - of foes ... tbat my Song
To wrestle wítb, and victory to complete, Wítb star-like virtue in its place may shine,
Bounds to be leapt, darkness to be explored; Shedding benignant influence, and secure
Ali tbat inflamed tby infant beart, tbe love, Itself from ali malevolent effect
The longing, the contempt, the undaunted quest, Of those mutations that extend tbeir sway
All shall survive, though changed thcir office, ali Throughout tbe nether sphere!
Shall live, it is not in their power to die. )
Then farewell to the Warrior's Schemes, fareweli Num soneto escrito dois anos mais tarde, dirigido a
Tbe forwardness of sou! whicb looks tbat way Milton, o precursor é descrito como Wordsworth se vê aqui:
Upon a less incitement tban tbe Cause
Of Liberty endangered, and fareweli Tby sou! was like a Star, and dwelt apart:
That other bope, Iong mine, tbe bope to fill Thou badst a voice wbose sound was like tbe sea;
Tbe beroic trumpet witb tbe Muse's breatb! Pure as the naked heavens, majestic, free. . . .

Esta askesis produz um Wordsworth que poderia ter- A oração deve então tornar-se uma influência e não
-se tornado num poeta maior do que aquele em que se to; nou, ser influenciada e o precursor é louvado por ter sido aquilo

142 143
em que nos tornámos. O nosso puro isolamento é agora tam- The numbness, strove to gain the lowest step.
bém o isolamento de Milton, e tendo superado Milton, afir- Slow, heavy, deadly was my pace: the cold
mamos agora que nos superámos a nós próprios. Words- Grew stifling, suffocating, at the heart;
worth, cuja arte depende de persuadir o leitor de que a And when I clasp'd my hands I felt them not.
relação com outros eus e paisagens é ainda possível, é um One minute before death, my iced foot touch'd
imenso mestre no afastar de si de outros eus e de todas The lowest stair; as it touch'd, Iife seem'd
as paisagens. Quem cura, cura apenas as feridas que inflin- To pour in at the toes .. . .
giu a si próprio.
Keats, menos de vinte anos depois, luta com um fardo O que é aqui sublimado é o caso mais completo de
purgatorial notavelmente parecido, a necessidade de subli- uma imaginação sensorial desde Shakespeare. E o que acaba
mar mediante uma internalização a «undaunted quest» que aqui é a poesia de Keats, ainda que o poeta tenha vivido
podia permitir ainda a Milton uma visão da Guerra no Céu. mais um ano e vários meses depois de ter desistido deste
Mas a askesis keatsiana é mais drástica, porque o seu Que- fragmento maior. A sua doença mortal é decerto a base sobre
rubim Protector é uma forma dupla, Milton e Wordsworth. a qual se ergue esta visão, mas precisamos de perguntar:
Em Keats, a purgação torna-se inteiramente explícita, e é o que é, poeticamente, a paralisia que quase destrói aqui
o centro deThe Fali of Hyperion, onde a sua Musa Moneta Keats? A askesis não é aqui dos sentidos mas da fé de Keats
confronta o poeta: neles, uma fé tão sublime como inigualável na poesia huma-
nista. E no entanto tal fé, ainda que enraizada no tempera-
.. . «If thou canst not ascend mento de Keats, proveio-lhe do jovem Milton, com o seu
These steps, die on that marble where thou art. sonho unitário acerca das possibilidades humanas, uma última
Thy flesh, near cousin to the common dust, sublimidade do renascimento, e do jovem Wordsworth, visio-
Will parch for lack of nutriment, - thy bones nário da Revolução. Se Keats a purga de si próprio, purga-
Will wither in few years, and vanish so -a também dos esplendores prévios dos seus Grandes Ori-
That not the quickest eye could find a grain ginais. Como homens amadurecidos (ou arruinados), sofreram
Of what thou now art on that pavement cold. as suas próprias purgações mas deixaram intactas as suas
The sands of thy short Iife are spent this hour, visões anteriores. Keats faz por eles aquilo que estes não
And no hand in the universe can turn -'\ suportariam fazer por si próprios : interroga as mais fundas
Thy hourglass, i f these gummed leaves be burnt ) e comovedoras ilusões naturalistas que o espírito alguma
Ere thou canst mount up tbese immortal steps:>> vez gerou. E tendo-as posto em questão, e o melhor do seu
I heard, I Iook' d: two senses both at once, eu com elas, é-lhe concedida uma última visão de si pró-
So fine, so subtle, felt the tyranny prio, ainda que no esplendor de um isolamento derradeiro:
Of that fierce threat and the hard task proposed.
Prodigious seem'd the toil; the Ieaves were yet Without stay or prop,
Burning, - when suddenly a palsied chill But my own weak mortality, I bore
Struck from the paved levei up my limbs, The load of this eterna! quietude . ...
And was ascending quick to put cold grasp
Upon those streams that pulse beside the throat! A rigidez do estilo, a inevitabilidade do fraseado de
I shriek' d and the sharp anguish of my shriek The Fali of Hyperion, deriva da versão keatsiana da askesis,
Stung my own ears - I strove hard to escape uma humanização que quase redime esta amarga proporção

144 145
de revisão. Com poetas menos equilibrados não existe tal XXIX
redenção. Browning e Yeats, ambos herdeiros dependentes Yet half I seemed to recognize some trick
de Shelley (sendo Browning também, segundo confissão de Of mischief happened to me, God knows when -
Yeats, uma «perigosa influência» em si), realizam na sua In a bad dream perhaps. Here ended, then,
plena maturidade de poetas uma auto-restrição maciça. Progress this way. When, in the very nick
A sublimação de Browning deu-lhe a sua espécie de monó- Of giving up, one more time, carne a click
logo dramático, e com ela a arte do pesadelo, inigualadas As when a trap shuts - you're inside the den!
em inglês:
XXX
XXV Burningly it carne on me ali at once,
Then carne a bit of stubbed ground, once a wood, This was the place! those two hills on the right,
Next a marsh, it would seem, and now mere earth Crouched like two bulls locked horn in horn in fight;
Desperate and clone with; (so a fool finds mirth,
While to the left, a tall scalped mountain . . . Dunce,
Makes a thing and then mars it, till his mood
Changes and off he goes!) within a rood - Dotard, a-dozing at the very nonce,
Bog, clay and rubble, sand and stark black dearth. After a life spent training for the sight!

XXVI XXXI
Now blotches rankling, coloured gay and grim, What in the midst lay but the Tower itself?
Now patches where some leanness of the soil's The round squat turret, blind as the fool's heart,
Broke into moss or substances like boils; Built of brown stone, without a counterpart
Then carne some palsied oak, a cleft in him In the whole world. The tempest's mocking elf
Like a distorted mouth that splits its rim Points to the shipman thus the unseen shelf
Gaping at death, and dies while it recoils. He strikes on, only when the timbers start.

XXVII Porquê chamar a isto a consequência de uma askesis?


And just as far as ever from the end! Ou porquê encontrar a mesma causa para o Cuchulain Com-
Nought in the distance but the evening, nôyght forted de Yeats, em que o herói aceita a comunidade dos
To point my footstep further! At the thou~nt,
cobardes como o seu lugar próprio na vida depois da morte?
A great black bird, Apollyon's bosom-&iend,
«Um poeta e não um homem honesto» é a totalidade de
Sailed past, nor beat his wide wing dragon-penned
That brushed my cap - perchance the guide I sought. um aforismo de Pascal. Rever o precursor é mentir, não
em relação ao ser, mas em relação ao tempo, e a askesis
XXVIII é especialmente uma mentira contra a verdade do tempo,
For, looking up, aware I somehow grew o tempo em que o efebo esperava atingir uma autonomia
'Spite of the dusk, the plain had given place já manchada pelo tempo, destruída pela alteridade.
Ali round to mountains - with such name to grace Shelley converteu inicialmente Browning e Yeats à poe-
Mere ugly heights and heaps now stolen in view. sia fornecendo-lhe um exemplo de autonomia autodevora-
How thus they had surprised me, - solve it, you! dora, da única demanda que lhes poderia trazer a esperança
How to get from them was no clearer case. de se re-generarem. Ambos deveriam vir a ser perseguidos

146 147
pela profecia moral da Defesa da Poesia em que Shelley diz heróicos que só podem conhecer a derrota através das anti-
dos poetas, que, por muito errantes que fossem como nomias desta, permanecem isolados, a não ser em relação
homens, «foram lavados no sangue do mediador e do reden- aos grupinhos de falhados, traidores e cobardes cuja presença
tor, do Tempo». Trata-se de uma fé órfica e nem Browning testemunha tudo o que há de mais equívoco na temível pre-
nem Yeats foram suficientemente fortes para viver e mor- sença dos próprios heróis. Mas a diferença entre Childe
rer na pureza desta. O Orfeu de Shelley é o poeta do Afas- Roland e os seus precursores, entre Cuchulain e os seus con-
tar, que contempla a partida da Visão e do Amor e exclama soladores, é apenas a de que a purgação do herói é uma
em voz alta: «Sleep and death/Shall not divide us long!». askesis, uma via para a liberdade que é um acto significativo.
Browning e Yeats tiveram de se salvar a si próprios desta O monólogo de Browning, como a lírica visionária de
inexorabilidade de uma demanda destruída, como filhos que Yeats, é uma evasão e portanto uma restrição da poesia
eram de um pai poético cuja pureza de imaginação nenhum órfica, a trombeta shelleyana da profecia. A askesis nos poetas
descendente poderia suster. fortes americanos acentua o objectivo do processo, a solidão
Quando Childe Roland não consegue reconhecer a que se basta a si mesma, mais do que o próprio processo.
Torre Obscura senão quando esta está sobre si, ou quando Milton e Wordsworth, cuja influência mútua criou o ethos da
Cucbulain se contenta com fazer uma mortalha e depois poesia inglesa do pós-iluminismo, acomodaram ambos a sua
cantar em coro com os seus adversários, todos condenados força temível às necessidades da sublimação, mas o Grande
como cobardes e traidores (como os companheiros perdi- Original da poesia genuinamente americana não o fez. Em
dos da demanda de Roland), são-nos dados os emblemas Emerson, o poder do espírito e o poder do olhar lutam para
radicais da askesis, e do seu custo terrível para os filhos tornar-se num só, o que torna a askesis impossível:
de um herói demasiado incorruptível e imaginativo. O que
Tal como ao sol os objectos pintam as suas imagens na
é mais terrível em Shelley é a sua integridade órfica, a agi-
retina do olho, assim os mesmos, partilhando da aspiração
"lidade de um espírito demasiado impaciente para os com-
de todo o universo, tendem a pintar uma cópia muito mais
promissos sem os quais a existência em sociedade e até a
delicada da sua essência no seu espírito. Como a metamor-
vida natural não são simplesmente possíveis. A imersão de
fose das coisas em formas orgânicas mais elevadas é a sua
Browning no grotesco e o apego de Yeats à brut !idade são
mudança em melodias . Sobre tudo paira o seu demónio ou
ambos sublimações do heroísmo quase dici.oe do seu pre- alma e, quando a forma da coisa é reflectida pelo olhar, assim
cursor, da sua extraordinária aberração em relação ao Abso- a alma da coisa é reflectida por uma melodia. O mar, a cadeia
luto . Mas nestas reduções, ao contrário das sublimações de de montanhas, o Niagara, todos os canteiros, pre-existem
figuras maiores como Wordsworth e Keats, temos mais difi- ou super-existem em pre-cantações, que vogam como odores
culdade em ver que existiu uma perda pelo menos tão grande no ar, e quando um homem tem um ouvido suficientemente
como o muito mais palpável ganho. apurado consegue escutá-los e tenta escrever as suas notas
A noção de Freud da sublimação é quantitativa, e sem as diluir ou depravar.
implica sempre um limite superior para lá do qual os impulsos . . . Esta intuição, que se exprime por aquilo que se
instintuais se rebelam. A askesis poética, como proporção chama Imaginação, é uma forma de visão muito elevada, que
de revisão, é também quantitativa, visto que o Purgatório não vem pelo estudo, mas quando o intelecto está onde e
dos poetas é raramente um local muito povoado. O poeta naquilo que vê; partilhando o caminho ou o circuito das coi-
e a sua Musa são habitantes bastantes, e frequentemente sas através das formas e tornando-as portanto translúcidas
falta a Musa. Childe Roland e Cuchulain, demandantes para os outros.

148 149
. Este é o sublime americano, que não renderá o princí- Porque é esta expansividade ilimitada uma askesis?
piO do prazer ao princípio da realidade, mesmo na expecta- Nesta enorme elaboração de Emerson, que é proposto para
tiva de que o adiamento da plenitude proteja o princípio sublimação? Que restrição faz de Whitman esta voz que
do prazer. O olhar, o mais tirânico dos sentidos corpóreos vê mesmo aquilo que a sua vista não pode alcançar? Se
do qual a natureza libertou Milton, e do qual Wordsworth <<nothing is got for oothing», como insistia a Compensação
libertou a natureza, é na poesia americana uma paixão e emersoniana, de que perda é o bardo emersoniano compen-
ll;"l programa. Onde o olhar domina, sem restrições, a aske- sado nesta alvorada solipsista? A perda é aquilo a que Emer-
srs tende a centrar-se na consciência que o eu tem de outros son chamou <<Uma grande Derrota» (de que Cristo foi um
eus. O solipsismo dos nossos principais poetas - Emer- exemplo), e Emerson acrescentou: «exigimos a vitória».
son, Whitman, Dickinson, Frost, Stevens, Crane - é Cristo «portou-se bem ... mas aquele que virá fará melhor.
aumentado porque o olhar recusa purgar-se. A realidade O espírito necessita de uma exibição de personalidade muito
reduz-se ao Eu emersoniano e ao Não-Eu (o meu corpo e mais elevada, que seja boa para os sentidos e para o espí-
a natureza) e exclui todos os outros, a não ser na medida rito». A incarnação de Whitman no sol é uma grande Der-
em que os precursores se tenham tornado componentes ines- rota emersoniana, um fluir que contém um esvaziar, uma
capáveis do Eu. askesis da profecia emersoniana do Bardo Principal que virá:
Whitman, em Crossing Brooklyn Ferry, vê «o pôr do
Sol, o jorrar da maré-cheia, o recuar do ma na maré vazia» In the far South the sun of autumn is passing
e conforta-se com o facto de os outros que lerem depois Like Walt Whitman walking along a ruddy shore.
dele verem o que ele vê. Mas o seu majestoso p ema, como He is singing and chanting the things that are part of him,
todas as suas obras completamente acabadas, centra-se ape- The worlds that were and will be, death and day.
nas no seu eu isolado e na visão emersoniana, que não está Nothing is final, he chants. No man shall see the end.
longe da prática shamanística e que tem muito pouco a ver His beard is of fire and his staff is a leaping flame.
com a observação do mundo exterior. Em Whitman,
aprofunda-se o isolamento emersoniano, a visão torna-se Uma discussão da askesis poética deve chegar por fim a
mesmo mais tirânica e à medida que o poder do olhar se Stevens, cuja obra é dominada por esta proporção de revisão.
Stevens, que tinha «uma paixão pelo sim», resistiu às suas
identifica com o sol cumpre-se uma imensa askesis:
próprias sublimações rigorosas. Lamenta não ser «A more
severe, I More harassing master», e no entanto era tudo
Dazzling and tremendous how quick the sun-rise
menos um asceta do espírito, e teria gostado de fazer poe-
would kill me
mas que se parecessem ainda mais com ananases. A princi-
If I could not now and always send sun-rise out of me. pal paixão nele é a aspiração órfica de Emerson e de Whit-
man, a demanda de um Sublime americano, mas a angústia
W e also ascend dazzling and tremendous as the sun da influência deformou essa paixão e Stevens desenvolveu
W e found our own O my soul in the calm and cooi em consequência uma tendência para falar de uma forma
of the daybreak. mais redutora do que ele próprio podia aguentar aceitar.
No seu melhor, Stevens trabalhou para «make the visible
My voice goes after what my eyes cannot reach, a little hard I To see», desafiando a sua própria tradição,
With the twirl of my tongue I encompass worlds and mas ao longo da sua poesia a purgação-pela-solidão atinge
volumes of worlds. uma amplidão desconhecida mesmo em Emerson, Whitman

150 151
e Dickinson. «Ü olhar de Freud», escreveu Stevens, «era uma mistura assombrosa de tensões poéticas, estrangeiras
o microscópio da potência», e Stevens, mais do que qual- e indígenas. Demonstra que a mais forte poesia moderna
quer outro poeta moderno, compôs naturalmente a partir se cria pela askesis, mas deixa-nos desgostosos pela restri-
do estado de Homem Psicológico. A sublimação em Ste- ção daquilo que poderia ter feito se liberto das necessida-
vens é uma restrição da sensibilidade keatsiana, de um espí- des terríveis do encobrimento, como aqui a respeito de
rito que obedeceu à injunção de Maneta para «pensar na Emerson:
terra» apenas para descobrir que tal pensamento não basta:
The afternoon ís vísibly a source,
Nothing could be more hushed than the way Too wide, too irised, to be more than calm,
The moon moves toward the night.
But what his mother was returns and cries on his breast. Too much like thinking to be less than thought,
Obscurest parent, obscurest patriarch,
The red ripeness of round leaves is thick A daily majesty of meditation,
With the spices of red summer,
But she that he loved turns cold at his light-_t_Quck That comes and goes in silences of its own,
We think, then, as the sun shines or does not.
What good is ít that the earth ís justified, We think as wind skitters on a pond in a field
That it is complete, that it ís an end,
That in ítself it is enough? Or we put mantles on our words because
The same wind, rising and rising, makes a sound
Em Stevens, o leitor confronta-se com uma askesis de Líke the last muting of winter as it ends.
toda a tradição romântica, de Wordsworth como de Keats,
de Emerson como de Whitman. Nenhum poeta moderno A new scholar replacing an older one reflects
com metade da força de Stevens escolheu uma auto-restrição A moment on this fantasia. He seeks
tão grande, sacrificou tanto dos seus impulsos instintuais For a human that can be accounted for.
em nome do seu atraso. Freud, revendo-se a si próprio, con-
cluiu por fim que era a angústia que produzia o recalca- A busca de um humano explicável, busca essa que é
mento e não o recalcamento que produzia a angústia, con- uma diminuição do sonho maior emersoniano, ameaça ser
clusão exemplificada por toda a parte na poesia de Stevens. também aquilo a que Emerson chamou uma grande Der-
Stevens sabia na sua imaginação que quer o ego quer o id rota, mas o tipo de derrota apropriado ao espírito ascético,
eram sistemas organizados, e mesmo que estavam organiza- ou uma derrota da própria poesia.
dos um contra o outro, mas talvez tivesse sido bom para
Stevens não saber que as suas angústias do ego acerca da
prioridade e da originalidade eram perpetuamente provoca-
das pela absorção dos seus precursores por parte do seu id,
que consequentemente operavam nele não como poder cen-
sório mas quase como variedades da vida dos instintos. Sendo
portanto um humanista romântico por temperamento mas
um ironista redutor nas suas angústias, Stevens tornou-se

152 153
Seis
No anchorage is.
Sleep is not, death is not;
Who seem to die live.

Emerson
Apófrades
ou O REGRESSO DOS MORTOS

Empédocles acreditava que a nossa psique ao morrer


regressava ao fogo de onde tinha vindo. Mas o nosso demó-
nio, ao mesmo tempo nossa culpa e nossa divindade omni-
potente, não veio até nós do fogo mas dos nossos precurso-
res. O elemento roubado tinha de ser devolvido; o demónio
nunca foi roubado mas herdado, e, quando da sua morte,
foi transmitido ao efebo, ao poeta atrasado que iria aceitar
ao mesmo tempo quer o crime quer o carácter divino.
A genealogia da imaginação traça a descendência do
demónio e nunca da psique, mas abundam as analogias entre
ambas as descendências:

Pode ser que a vida seja castigo


Doutra, como a de um filho o é do pai.

Pode ser que a obra de um poeta forte expie a obra


de um precursor. Parece mais provável que as visões tar-
dias se purifiquem à custa das anteriores. Mas os mortos
fortes regressam, nos poemas como nas nossas vidas, e não
o fazem sem obscurecer os vivos. O poeta forte totalmente
maduro é particularmente vulnerável a esta última fase da
sua relação de revisão com os mortos. Tal vulnerabilidade
é mais evidente em poemas que demandam uma claridade
final, que procuram ser declarações definitivas, testamen-
tos daquilo que é unicamente o dom do poeta forte (ou aquilo
que ele deseja que recordemos como seu dom único):

I arose, and for a space


The scene of woods and waters seemed to keep,

Though it was now broad day, a gentle trace


Of light diviner than the common sun
Sheds on the common earth, and ali the place

159
W as filled with magic sounds woven in to one que captura e estranhamente retém uma prioridade sobre os
Oblivious melody, confusing sense .. . . seus precursores, de modo a que a tirania do tempo é quase
derrubada, e pode-se mesmo acreditar em momentos de
Aqui, no fim, Shelley abre-se de novo ao terror da ode sobressalto, que estã_? a ser imitado_s pel~s seus antepassados.
das «lntimations» de Wordsworth, e cede à «light of com- Nesta observaçao pretendo distinguir 0 fenómeno da
mon day» do seu precursor: intuição aguda de Borges segundo a qual os artistas criam
os. seus prec~rsores, como por .exemplo o Kafka de Borges
- I among the multitude c~1a o Browmn~ de Borges. Refiro-me a uma coisa mais drás-
Was swept - me, sweetest flowers delayed not long; tica e (presuffilvelmente) absurda, que é o triunfo do colo-
Me, not the shadow nor the solitude, car, na sua própria obra, o antepassado, de forma a que
passagens concretas da obra deste se pareçam não com pres-
Me, not that falling stream's Lethean song; ságios do nosso próprio advento mas antes pareçam deve-
Me, not the phantom of that early Form doras da nossa própria realização, e mesmo (necessariamente)
Which moved upon its motíon - but among diminuídas pelo nosso maior esplendor. Os poderosos m,or-
tos regressam, mas regressam nas nossas cores, e falam nas
The thickest billows of that living storm nossas vozes, pelo menos em parte, pelo menos por momen-
I plunged, and bared my bosom to the clime tos, momentos que testemunham a nossa persistência e não
Of that cold light, whose airs too soon deform. a sua. Se acaso regressam completamente na sua força pró-
pria, então o triunfo é seu:
Por volta de 1822, quando Shelley sofreu esta última
visão, o poeta Wordsworth estava morto há muito tempo The edges of the summit still appal
(apesar de o homem Wordsworth ter sobrevivido vinte e When we brood on the dead and the beloved;
oito anos a Shelley, até 1850). Mas os poetas fortes regres- Nor can imagination do it ali
sam sempre dos mortos, e só através da mediurnnidade quase In this last place of light; he dares to live
voluntária de outros poetas fortes. Como regressam é o que Who stops being a bird, yet beats his wings
importa, visto que se regressam intactos, nessa altura o Against the immense immeasurable emptiness of things.
regresso empobrece os poetas posteriores, condenando-os
a serem recordados - se de todo o forem - como tendo Roethke esperava que isto fosse Roethke tardio mas
acabado na pobreza, numa penúria de imaginação que não infelizmente é o Yeats de The Tower e de The Wit1ding Stair.
podem gratificar. Roethke esperava que isto fosse Roethke tardio, mas infe-
Os apófrades, os dias desoladores e infaustos em que lizmente é o Eliot dos Quartets:
os mortos regressam para habitar as suas antigas casas, acon-
tecem aos poetas mais fortes, mas nos mais fortes dentre Ali journeys, I think, are the same:
estes existe um movimento de revisão maior e definitivo The movement is forward, after a few wavers,
que purifica mesmo este último influxo. Yeats e Stevens, And for a while we are ali alone,
os mais fortes poetas do nosso século, e Brownlng e Dic- Busy, obvious with ourselves . . . .
kinson, os mais fortes do final do século dezanove, podem
dar-nos exemplos vívidos desta mais ardilosa das propor- Existe Roethke tardio que é o Stevens do Transpor!
ções de revisão. De facto , todos eles conseguem um estilo to Summer, e Roethke tardio que é o Whitman dos Lilacs,

160 161
mas desgraçadamente há muito pouco Roethke tardio que seja Like the blood orange we have a single
Roethke tardio, porqu.e em Roethke os apófrades vieram como Vocabulary ali heart and ali skin and can see
devastação, e tiraram-lhe a sua força, que no entanto se tinha Through the dust of incisions the central perimeter
concretizado, que se lhe tinha tornado própria. Dos apó/ra- Our imaginations orbit. Other words,
des, no seu sentido positivo, de revisão, não nos dá ele exem- Old ways are but the trappings and appurtenances
plo; não existem passagens em Yeats ou Eliot, em Stevens
Meant to install change around us like a grotto.
ou em Whitman que nos impressionem como se tivessem
There is nothing laughable
sido escritas por Roethke. Nas sofisticadas misérias de The
In this. To isolate the kernel of
Holy Grail de Tennyson, quando Percival parte a cavalo para
a sua ruinosa demanda, podemos sentir a alucinação de acre- Our imbalance and at the same time back up carefully
ditar que o Poeta Laureado foi excessivamente influenciado Its tulip head whole, an imagined good.
porThe Waste Land, visto que também Eliot se tornou mes-
tre em inverter os ap6frades. Ou, no momento presente, as - Fragment, xiii
realizações de John Ashbery no seu poderoso poema Frag-
ment (no volume The Double Dream of Spring) fazem-nos Uma visão mais antiga da influência observaria que a
regressar a Stevens, para acabar por descobrir com algum segunda destas estrofes «deriva» da primeira, mas uma cons-
mal-estar que por momentos Stevens se parece demasiado ciência da proporção de revisão dos apófrades descobre o
com Ashbery, proeza que poderia não ter julgado possível. triunfo relativo de Ashbery na sua competição involuntária
A estranheza que se acrescenta à beleza nos apófrades com os mortos. Esta tensão particular, apesar de ser impor-
positivos é de um tipo cuja melhor caracterização se deve tante, não é decisiva para Stevens, mas constitui a gran-
a Pater. Talvez todo o estilo romântico, nos seus cumes,
deza de Ashbery sempre que, com uma terrível dificuldade,
dependa de uma manifestação bem-sucedida dos mortos nos
dela consegue sair vencedor. Quando leio Le Monocle de
adereços dos vivos, como se fosse outorgada aos poetas mor-
tos uma liberdade mais flexível do que aquela que tinham Mon Oncle agora, isolado de outros poemas de Stevens, sou
encontrado por si próprios. Compare-se o Stevens de Le forçado a ouvir a voz de Ashbery, dado que o seu modo
Monocle de Mon Oncle com o Fragment de John Ashbery, foi por este capturado, inescapavelmente e talvez para sem-
o mais legítimo dos filhos de Stevens: pre . Quando leio Fragment, tendo a não me aperceber de
Stevens, dado que a sua presença foi tornada benigna. No
Like a dull scholar, I behold, in love, primeiro Ashbery, entre a promessa e os esplendores do seu
An ancient aspect touching a new mind. primeiro livro, Some Trees, o predomínio maciço de Ste-
It comes, it blooms, it bears its fruit and dies. vens não pôde ser iludido, apesar de um clinamen em rela-
This trivial trope reveals a way of truth. ção ao mestre se ter já evidenciado:
Our bloom is gone. We are the fruit thereof.
Two golden gourds distended on our vines, The young man places a bird-house
Into the autumn weather, splashed with frost,
Against the blue sea. He walks away
Distorted by hale fatness, turned grotesque.
And it remains. Now other
We hang like warty squashes, streaked and rayed,
The laughing sky will see the two of us,
Washed into rinds by rotting winter rains. Men appear, but they live in boxes.
The sea protects them like a wall.
- Le Monocle, viii The gods worship a line-drawing

162 163
Of a woman, in the shadow of the sea persegue o poeta e os seus leitores com a percepção mais
Which goes on writing. Are there intensa de que «the discord merely magnifies», quando as
Coliisions, communications on the shore nossas «collisions, communications» sondam os ritmos maio-
res do mar. Onde o primeiro Ashbery tentou em vão suavi-
Or did ali secrets vanish when zar o seu pai poético, o Ashbery maduro do Fragment sub-
The woman left? Is the birds mentioned verte e mesmo captura o precursor, inclusive quando parece
In the waves minutes, or did the land advance? aceitá-lo mais completamente. O efebo pode não ser ainda
mencionado nas actas do seu pai, mas a sua visão própria
- Le Livre est sur la Table, ii progrediu. Stevens hesitou quase até à sua última fase, inca-
paz de aderir ou rejeitar firmemente a insistência alto-
Este é o modo de The Man with the Blue Guitar, e -romântica em que o poder do esp.íríto do poeta podia triun-
tenta urgentemente desviar-se de uma visão cuja rudeza não far sobre o universo da morte, ou sobre o mundo de objectos
pode suportar: afastado. Não é todos os dias, diz nos seus Adagia, que o
mundo se organiza num poema. O seu discípulo mais nobre-
Slowly the ivy on the stones mente desesperado, Ashbery, desafiou a dialéctica do enco-
Becomes the stones. Women become brimento para poder implorar ao mundo que se organizasse
diariamente num poema:
The cities, children become the fields
And men in waves become the sea. But what could I make of this? Glaze
Of many identical foreclosures wrested from
It is the chord that falsifies. The operative hand, like a judgment but still
The sea returns upon the men, The atmosphere of seeing? That two people could
Collide in this dusk means that the time of
The fields entrap the children, brick Shapelessly foraging had come undone: the space was
Is a wced and ali the flies are caught, Magnificent and dry. On flat evenings
In the months ahead, she would remember that that
Wingless and withered, but living alive. Anomaly had spoken to her, words like disjointed beaches
The discord merely magnifies. Brown under the advancing signs of the air.

Deeper, within the beliy's dark, Esta, a última estrofe de Fragment, devolve Ashbery
Of time, time grows upon the rock. circularmente ao seu primeiro Le Livre est sur la Table. Exis-
tem «collisions, communications on the shore» mas estas
- The Man with the Blue Guitar, xi «collide in this dusk». O «Did the land avance?» do pri-
meiro poema é respondido de um modo parcialmente nega-
O poema do primeiro Ashbery insinua que existem «col- tivo pelas praias inconjuntas castanhas, mas também em parte
lisions, communications» entre nós, mesmo no confronto por «the advancing signs of the air». Noutro sítio do Fl·ag-
com o mar, um universo de significado que afirma o seu ment, Ashbery escreve: «Thus reasoned the ancestor, and
poder sobre os nossos espíritos. Mas o poema-pai, ainda everything / Happened as he had foretold, but in a funny
que se venha a resolver num quase-conforto semelhante, lcind of way». A força dos ap6frades positivos dá ao deman-

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dante a difícil sabedoria do poema proverbial a que com constituí-se a partir desta profunda evasão, tornando possí-
razão chama Soonest Mended, que acaba com: veis as últimas fases de Browning, Yeats, Stevens - os quais
todos triunfaram da velhice. Asolando, Last Poems and Plays
. . . learning to accept e parte do «The Rock» dos Collected Poems de Stevens cons-
The charity of the hard moments as they are doled out, tituem todos manifestações assombrosas de ap6frades, parte
For this is action, this not being sure, this careless de cuja intenção e efeito é fazer ler-nos de um modo dife-
Preparing, sowing the seeds crooked in the furrow, rente- quer dizer, ler Wordsworth, Shelley, Bl*e, Keats,
Making ready to forget, and always coming back Emerson e Whitman de um modo diferente. E como se
To the mooring of starting out, that day so long ago. a fase final dos grandes poetas modernos não existisse nem
para últimas reafirmações das fés de uma vida nem para
Aqui Ashbery realizou um dos mistérios do estilo poé- palinódias, mas antes como situação e redução final de ante-
tico, mas só através da individuação do encobrimento. passados. No entanto isto leva-nos ao problema central dos
O mistério do estilo poético, a exuberância que em ap6frades: existirá ainda uma angústia de estilo distinta da
todo o poeta forte é beleza, assemelha-se deleite do ego angústia da influência, ou serão as duas angústias agora uma
maduro na sua própria individualidade, que se reduz ao mis- só? Se o argumento deste livro é correcto, então o tema
tério do narcisismo. O narcisismo é aquilo a que Freud chama oculto da maior parte da poesia dos últimos três séculos
primário e normal, «o complemento libidinal do egoísmo foi a angústia da influência, o medo de cada poeta de que
do instinto de auto-preservação». O amor do poeta forte não tenha ficado para si uma obra própria, que possa reali-
pela sua poesia, enquanto poesia, tem de excluir a reaHdade zar. É clru:o que tem havido angústia de estilo desde que
de toda a restante poesia, excepto o que não pode ser houve padrões literários. Mas vimos que o conceito de
excluído, a identificação incial com a poesia do precursor. influência (e a moral correlativa dos poetas) se alterava com
Qualquer afastamento do narcisismo inicial, segundo Freud, o dualismo do pós-iluminismo. Será que a angústia do estilo
leva ao desenvolvimento do ego, ou, nos nossos, termos, qual- mudou quando a angústia da influência se iniciou? Era o peso
quer exercício de uma proporção de revisão, afastado da do individualizar de um estilo, hoje intolerável para todos
identificação, é o processo a que geralmente se chama desen- os poetas novos, tão gigantesco antes do desenvolvimento da
volvimento poético. Se toda a líbido objectal tem de facto angústia da influência? Quando nos tempos que vão correndo
a sua origem na líbido do ego, podemos então supor que abrimos um primeiro livro de poesia, escutamos para ouvir
também qualquer experiência inicial que o efebo tem do uma voz característica, se pudermos e se a voz não estiver
ser descoberto por um precursor é tornada possível apenas já algo diferenciada dos seus precursores e dos seus pares;
mediante um excesso de amor-próprio. Os ap6frades, quando depois deixamos de escutar, independentemente daquilo que
geridos por uma imaginação capaz, pelo poeta forte que per- a voz tenta dizer. O Dr. Samuel Johnson tinha uma percep-
sistiu na sua força, tornam-se não tanto um regresso dos ção aguda da angústia da influência e todavia lia ainda os
mortos como uma celebração do regresso da exaltação de poetas novos de acordo com o teste que consistia em per-
si anterior que tornara antes possível a poesia. O poeta forte guntar se alguma coisa de novo tinha sido revelada. Abo-
examina o espelho do seu precursor caído e não contempla minando embora Gray, Johnson foi levado a elogiá-lo muito
nem o precursor nem a si próprio mas um duplo gnóstico, ao encontrar noções que lhe pareciam originais:
a escura alteridade ou antítese que quer ele quer o seu pre-
cursor desejaram ser e em que no entanto temeram trans- Em Church-yard abundam imagens que encontram um
formar-se. A complexa impostura dos ap6frades positivos espelho em todos os espíritos e sentimentos de que cada peito

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é eco. As quatro estrofes que começam com Yet even these se encontram expressas na passagem, e encontrar um con-
banes parecem-me originais: nunca vi tais noções em algum temporâneo que diga aquilo que se sente ainda mais pro-
outro lugar; e no entanto aquele que aí as lê persuade-se fundamente do que o que ele diz, e que no entanto se está
a si próprio de que sempre as sentiu. Tivera Gray mais vezes
inibido de exprimir por si próprio, é persuadirmo-nos de
escrito assim e toda a censura fora vã e o louvor inútil.
mais originalidade do que a que existe. As estrofes de Gray
gritam pela imortalidade mínima e figurativa que a angús-
. Noções originais que todo o leitor sentiu ou se persua- tia da influência nos nega. Sempre que a austera sensibili-
diU de que sentiu; isto é mais difícil do que aquilo que a
dade johnsoníana encontra coisas novas na literatura é re-
fama da passagem de Johnson nos deixa. Era Johnson exacto
ao considerar estas estrofes originais? sunção segura que o recalcamento johnsoniano está também
implicado em tal descoberta. Mas, como Johnson é um lei-
Yet even these bones from insult to protect tor tão universal, ilustra também uma tendência de muitos
Some frail memorial still erected nigh, outros leitores que é exposta de forma mais in-efutável pelas
With uncouth rhymes and shapeless sculpture decked, noções que nos nossos espú·itos iludimos. Johnson, que detes-
Implores the passing tribute of a sigh. tava o estilo de Gray, compreendeu que na poesia de Gray
a angústia do estilo e a angústia da influência se tinham
Their name, their years, spelt by the unlettered muse, tornado indistinguiveis e no entanto perdoou a Gray a única
The place of fame and elegy supply: passagem em que Gray tinha universalizado a angústia da
And many a holy text around she strews, auto-preservação num pathos mais geral. Escrevendo sobre
That teach the rustic moralist to die. o seu pobre amigo Collins, Johnson está a pensar em Gray
quando observa: <<Afectava obsolências quando não mere-
For who to dumb Forgetfulness a prey, ciam lembrança; e põe as suas palavras fora da ordem comum,
This pleasing anxious being, e' er resigned parecendo pensar, juntamente com alguns candidatos pos-
Left the warm precincts of the cheerful day, teriores à fama, que não escrever prosa é certamente escre-
Nor cast one longing lingering look behind? ver poesia>>. Johnson parece ter misturado tanto o problema
da originalidade e o problema do estilo que podia denun-
On some fond breast the parting soul relies, ciar um estilo que julgasse mau e querer com a sua denún-
Some pious drops the closing eye requires; cia dizer que nada de novo era proposto. Por .isso, apesar
Ev'n from the tomb the voice of nature cries de parecer nosso contrário, ao negligenciarmos o conteúdo
Ev'n our ashes live their wonted fires. ' e buscar num novo poeta a individualidade do tom, John-
son é absolutamente nosso antepassado. O mais tardar
Swift, a Odisseia de Pope, o Belial de Milton Lucré- durante a década de 1740, a angústia do estilo e a compa-
cío, Ovídio e Petrarca encontram-se aqui entre os' precur- rativamente recente angústia da influência tinham iniciado
sores de Gray, porque, como poeta imensamente erudito um processo de fusão que parece ter culminado nas nossas
que era, Gray raramente escreveu sem se relacionar com últimas décadas. Podemos ver a mesma fusão manifestar-se
quase todos os antepassados possíveis. Johnson era um crí- gradualmente na elegia pastoral e nos seus descendentes;
tico imensamente erudito; porque elogiou nestas estrofes de facto, no lamento de um poeta pelo seu precursor, ou
uma originalidade que não possuem? Uma resposta possível mais frequentemente por outro poeta da sua geração, ten-
é a de que as angústias mais profundas do pr6prlo Johnson dem a descobrir-se as angústias mais fundas do pr6prio poeta.

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Moschus, lamentando Bion, começa por declarar que a poesia e «densa». O deleite de Keats pelas Inteligências naturais
morreu porque «he is dead, the beautiful singer»: que são Átomos de Percepção, que conhecem e vêem e que
por isso são Deus, torna-se pelo contrário uma imt>aciência
Ye nightingales that lament among the thick em relação à escória sem vontade que impediria o voo do
leaves of the trees, tell ye to the Sicilian waters Espírito. Shelley, na sua atitude em relação a precursores
of Arethusa the tidings that Bion the herdsman is e contemporâneos, foi de longe o poeta mais generoso do
dead, and that with Bion song too has died, and perished hath pós-iluminismo, mas mesmo nele a fase ~al da ~aléctica
the Dorian ministrelsy. do encobrimento se teve de se resolver a s1 pr6pna.
Begin, ye Sicilian Muses, begin the dirge. A poesia inglesa e americana, pelo menos desde Mil-
ton, tem sido um protestantismo severamente deslocado,
Muito antes do fim de The Lament for Bion Moschus e a poesia abertamente religiosa dos últimos trezentos anos
já fez a descoberta necessariamente afortunada d~ que nem foi na maior parte dos casos um fracasso. O Deus protes-
toda a canção morreu com Bion: tante na medida em que era uma Pessoa, cedeu o seu papel
pater~al em relação aos poetas .à fig~ra bloqll;eadora do Pre-
.. . but I sing thee the dirge of an Ausonian sorrow, cursor. O Deus Pai, para Collms, e John Milton, e a rebe-
I that am no stranger to the pastoral song, but heir of lião do primeiro Blake contra Nobodaddy só fica completa
the Doric Muse which thou didst teach my pupils. This com o ataque satírico ao Paraíso Perdido, que se encontra
was thy gift to me; to others didst thou leave thy wealth, to no centro do Book of Urizen e que paira, muito mais ansio-
me thy ministrelsy. samente, por toda a cosmologia de The Four Zoas. A poesia
Begin ye Sicilian Muses, begin the dirge. cujo tema oculto é a angústia da influência é naturalmente
de uma índole protestante, vis~o que o Deus pr~testante
As grandes elegias pastorais e de facto todas as princi- parece sempre isolar os Seus filhos no terrívC:l dile~a de
pais elegias acerca de poetas não exprimem desgosto mas duas grandes injunções: «Sede como Eu» e «Nao ousets ser
antes c~ntram-se nas angústias criativas dos seus próprios demasiado como Eu».
compositores. Oferecem por isso como consolação as suas O medo da divindade é pragmaticamente o medo da
próprias ambições (Lycidas, Thyrsis), ou, se estão para lá força poética, dado que aquilo em que o efebo entra quand?
da ambição (Adonais, os Lilacs de Whitman, Ave Atque Vale começa o ciclo da sua vida como poeta é em todos os senti-
de Swinburne), oferecem então o esquecimento. Com deito dos um processo de divinação. O jovem poeta, observou
a maior ironia da proporção de revisão dos apófrades é ~ Stevens, é um deus, mas acrescentou que o poeta velho é
de que os poetas posteriores, confrontando-se com a imi- um vadio. Se a divindade consistisse apenas em saber com
nência da morte, trabalham para subverter a imortalidade exactidão o que vai acontecer a seguir, então todo o Sludge
dos seus precursores, como se a vida depois da morte de dos nossos dias seria um poeta. Mas o que o poeta forte
qualquer poeta pudesse prolongar-se metaforicamente à custa de facto sabe é apenas que ele é que vai acontecer a segui~,
de outro. Mesmo Shelley, no sublimemente suicida Ado- que ele vai escrever um poema em que o seu f~gor seJa
nais, um poema que apavorantemente transcende o mero manifesto. Quando um poeta contempla o seu fun, toda-
desinteresse, desinveste subtilmente Keats do naturalismo via, precisa de provas mais sólidas de que saber que os seus
heróico que é o único dom de Keats. Adonais torna-se parte poemas passados não são aquilo em que os esqueletos pen-
de um Poder que se exerce no sentido da transformação sam, e procura provas de uma escolha que cumpra as prof~­
de uma natureza que o Shelley órfico considerara «baça» cias dos seus precursores recriando fundamentalmente ta1s

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profecias no seu idioma inconfundível. Esta é a curiosa magia relação ao qual Dickinson admitiu alguma ternura). Os exem-
dos apófrades positivos. plos abundam; o imensamente idiossincrático Milton mostra
. Yeats., cujas intensidades fantasmagóricas da sua fase em certos sítios a influência de Wordsworth; Wordsworth e
f~n~ se. rrusturam com um entusiasmo desinteressado pela Keats têm ambos um quê de Stevens; o Shelley de The Cenci
V10l~nc1a,. em grande parte a violência pela violência, con- deriva de Browning; Whitman parece por vezes também
segutu ~1·1~hantemente fazer com que os mortos voltassem arrebatado por Hart Crane. É importante apenas que apren-
no seu 1d10ma:
damos a distinguir este fenómeno do seu contrário estético,
o embaraço, digamos, de ler The Scholar-Gipsy e Thyrsis e
Beneath, the billows having vainly striven descobrir que as odes de Keats acotovelam o pobre Arnold.
Indignant and impetuous, roared to feel
Keats poderá parecer um pouco execessivamente afectado
The swift and steady motion of the keel.
por Tennyson e pelos pré-rafaelitas, mesmo por Pater, mas
nunca parece ser o herdeiro de Matthew Arnold.
But she in the calm depths her way could take
Where in bright bowers immortal forms abide '
«Deixem os poetas mortos abrir caminho a outros. Pode-
Beneath the weltering of the restless tide. remos então compreender que é a nossa veneração pelo que já
está criado .. . que nos petrifica ... » Artaud o louco levou a
angústia da influência para uma região em que a influência
And she unwound the woven imagery e o seu movimento contrário, o encobrimento, se não podiam
Of second childhood's swaddling bands and took distinguir. Se os poetas tardios devem evitar segui-lo até aí,
The coffin, its last cradle, from its niche, ' precisam de saber que os poetas mortos não consentirão em
And threw it with contempt into a ditch. abrir caminho para os outros. Pelo contrário, é mais impor-
tante que os novos poetas possuam um conhecimento mais
Senti~os, ao ler ~he Witch of Atlas, que Shelley leu rico. Os precursores inundam-nos, e as nossas imaginações
Yeats demrus, e que esta condenado a nunca conseguir tirar podem morrer afogadas neles, mas nenhuma vida da imagi-
da sua. cabeça as complexidades de tom dos poemas de nação é possível se se escapar totalmente a tal inundação.
Byzanttum. Encontramos aqui o mesmo fenómeno: No sonho do Árabe de Wordsworth, a visão de um afoga-
mento não traz de início nenhum terror, o que pelo contrá-
Insect lover of the sun rio acontece imediatamente com uma visão prévia de sede.
Joy of thy dominion! ' Ferenczi, no seu apocalipse, Tha_lassa: uma teoria da genita-
Sailor of the atmosphere; lidade, explica todos os mitos do dilúvio como inversões:
Swimmer through the waves of air;
Voyager of light and noon; O primeiro e maior perigo que organismos que origi-
Epicurean of }une; nariamente viviam na água encontram não é o do afoga-
Wait, I prithee, til! I come mento mas o da sede. O facto de o Monte Ararat se ter
Whithin earshot of thy hum, elevado das águas no dilúvio não seria então apenas uma
All without is martyrdom. libertação, como nos é dito na Bíblia, mas ao mesmo tempo
a catástrofe original a que poderá ter sido dada uma forma
. -:tll without is martyrdom - isto devia ser com certeza diferente só depois, do ponto de vista dos habitantes da
D1cktnson mas é The Humble-Bee de Emerson (poema em terra.

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Artaud, procurando desesperadamente elevar o seu Ara-
rat, é pelo menos uma figura pungente; a ralé dos seus dis-
EPÍLOGO
cípulos lembra-nos de que mal vivemos, como Yeats disse,
quando o diverso se gasta. Os nossos poetas que ainda são
Reflexões sobre o caminho
capazes de revelar a sua força vivem onde os seus precurso-
res viveram dw·ante quase três séculos, sob a sombra do
Querubim Protector.

Depois de cavalgar três dias e três noites chegou ao


lugar, mas decidiu que não era sítio onde se pudesse chegar.
Parou por isso para pensar.
Deve ser este o lugar. Se aqui cheguei, então não conto.
Ou não pode ser este o lugar. Então nada conta mas
eu não minguei.
Ou este pode ser o lugar. Mas posso não ter aqui che-
gado. Posso ter cá estado sempre.
Ou ninguém está aqui, e sou apenas do e estou apenas
no lugar. E ninguém lá pode chegar.
Este pode não ser o lugar. Então sou decidido, importo,
mas não cheguei lá.
Mas este tem de ser o lugar. E já que não posso aqui
chegar, não sou eu, não estou aqui, aqui não é aqui.
Depois de cavalgar três dias e três noites não conse-
guiu chegar ao lugar e partiu de novo.
Seria que o lugar não o conheceu, ou não o conseguiu
encontrar? Seria que não era capaz?
Na história diz-se apenas que é preciso chegar ao lugar.
Depois de cavalgar três dias e três noites chegou ao
lugar, mas decidiu que não era sítio onde se pudesse chegar.

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