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“Desigualdades escolares e desigualdades sociais”

Seabra, T. (2009). Desigualdades escolares e desigualdades sociais. Sociologia,


problemas e práticas, 59(sociologia; desigualdades escolares; desigualdades
sociais), 75–106.

• “No debate dos princípios orientadores dos sistemas públicos de ensino passou-se da
ideia inicial de “igualdade” à de “equidade” e a de “igualdade de oportunidades” foi dando
lugar à de “igualdade de resultados”” (p. 75);

• A igualdade de oportunidades, na escola, surge com o aparecimento da escola pública


— as decisões dos poderes públicos centram-se na garantia de condições de acesso e
de frequência da escola pública, através da instituição da gratuitidade e obrigatoriedade
do ensino, instituído em Portugal em 1826 e 1911, respetivamente. A primeira
preocupação era a de garantir o acesso de todos à instrução elementar;

• Só faz sentido relacionar as desigualdades sociais com as desigualdades escolares


quando há igualdade na procura e valorização da escolaridade por parte de todos os
grupos sociais (independentemente da sua origem social, sexo, nacionalidade, origem
étnica ou regional, nem mesmo os rendimentos dos pais) e nem todos conseguem atingir
os níveis de escolarização ou o tipo de formação almejado;

• Princípio básico da igualdade de oportunidades começa por ser a de garantir o acesso


de todos à escola, expondo todos os alunos às mesmas condições de ensino — o estado
tem obrigação de proporcionar estas condições, enquanto a responsabilidade das
famílias e dos alunos é a de usufruírem destas condições, dependendo o futuro dos
últimos do mérito próprio (além dos dotes naturais, o esforço despendido tem um papel
importante neste percurso meritocrático);

• No segundo pós-guerra, a meritocracia ganha peso. Simultaneamente, uniformizam-se


os sistemas educativos, sobretudo na escolaridade básica — neste primeiro estágio de
ensino, todos devem aceder a um sistema de ensino semelhante em tudo: currículos,
qualidade de professores, exigências, de modo que os resultados não fossem afetados
pela disparidade de condições escolares;

• Nos EUA, começa a questionar-se a segregação racial (escolas diferentes para brancos
e negros), com a premissa de que os resultados das comunidades negras seriam
diferentes, não fosse a segregação. Este momento marca um ponto fundamental na
discussão relacionada com a igualdade de oportunidades: além do acesso, os efeitos da
escolarização — isto é, os resultados — são também considerados;

• Os dados dos “Relatório Coleman” e “Relatório Plowden” (EUA e Inglaterra,


respetivamente) evidenciam a disparidade significativa de resultados entre classes,
assim como entre alunos brancos e negros, mesmo estando sujeitos às mesmas
condições de ensino — os filhos dos mais desfavorecidos são sempre os mais
penalizados. Ainda neste sentido, “do ponto de vista das políticas públicas, a conclusão
mais importante retirada de ambos os relatórios foi a de que a diferença nos resultados
escolares se relaciona mais com a condição social das famílias do que com os recursos
escolares disponíveis: o primeiro relatório destaca a importância do estatuto social das
famílias e o segundo identifica a linguagem, a socialização familiar e as atitudes parentais
como as variáveis mais influentes nos resultados escolares” (p. 83);

• Os dois relatórios, em conjunto com Les Héritiers. Les Étudiants et la Culture, de


Bourdieu e Passeron, concretizam a ideia de que não basta dar “tudo igual a todos” (p.
77) e que esta política só potencia a desigualdade de oportunidades;

• Perspectiva de “igualdade” passa para uma perspetiva de “equidade”: distribuição de


recursos deve ser diferente, em função das necessidades também diversas de cada
aluno — se há alunos menos capazes de apreenderem o que a escola lhes dá, é vital
muni-los de maiores recursos para responderem às exigências escolares, para igualarem
a obtenção de resultados, dependentes exclusivamente do mérito de cada aluno;

• “trata-se de uma desigualdade corretora, destinada a reduzir ou a compensar uma


desigualdade primeira. [...] a equidade não se opõe à igualdade e supõe, pelo contrário,
a busca de critérios de igualdade mais exigentes” (p. 77) [Fitoussi e Rosanvallon];

• Política de discriminação positiva manifestou-se de diferentes formas em diversos


países:
— EUA (anos 60): “Educação compensatória”, conjunto de medidas que incluía o busing,
“implantação de um sistema de transporte das crianças, de modo a reduzir a guetização
e aumentar a heterogeneidade social nas escolas” (p. 78);

— Grã-Bretanha (1968): “Áreas de Educação Prioritária”;


— França (1981): “Zonas de Educação Prioritária” (ZEP).
Estas medidas visavam a “igualdade de resultados”, garantindo que os alunos de todos
os grupos sociais tinham as mesmas probabilidades de sucesso escolar;

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• “Globalmente, os efeitos das políticas de discriminação positiva no contexto escolar não
têm produzido os resultados esperados e têm mesmo sido assinalados alguns efeitos
perversos” (p. 78);

Desigualdade de trajetórias escolares e condições sociais

• Diferenças sociais associadas à desigualdade de trajetórias escolares: condições


sociais dos progenitores do aluno, origem étnico-nacional do próprio e/ou dos seus
ascendentes, o território de residência (rural, urbano, centro da cidade, subúrbios) e
a condições de género. Considerando cada conjunto de variáveis isoladamente, pode-
se afirmar “que a escola tem penalizado os alunos cujas famílias são pouco
escolarizadas e desempenham profissões consideradas socialmente como
subalternas, os alunos negros, os que vivem em meios rurais e do interior ou em
condições de habitação degradada (...) e, ainda, os alunos do sexo masculino.” (p.
81–82);

• Os resultados dos inquéritos de Formação e Qualificação profissional efetuados na


sociedade francesa (entre 1970–1993) revelam uma “democratização uniforme”, uma
vez que o aumento da diplomação se verificou em todas as crianças,
independentemente do seu meio de origem. Paralelamente, a evolução das
desigualdades não seguiu uma tendência firme (não há uma redução nem um
reforço);

• Apesar da democratização do sistema educativo no sentido de maior acesso a


diferentes níveis de ensino por parte das classes populares, produziram-se novas
diferenciações internas, mais subtis, que aumentaram as clivagens sociais no acesso
a determinados ramos do sistema de ensino;

• Saliência da importância dos fatores culturais, que tem um papel importante na


desigualdade escolar;

• Cada diploma suplementar possuído por um dos progenitores encerra em si


vantagens. No entanto, o valor não é atribuído ao diploma em si, mas ao stock de
instrução (“o volume total de instrução”) — “há quase uma equivalência entre os
casais em que um dos cônjuges tem um nível escolar alto e outro baixo e os casais
em que ambos dispõem de recursos escolares médios” (p. 87);

• Outras variáveis relacionadas com as dimensões sociais são integradas na análise


(na produção científica francófona), tais como a diferenciação territorial, —
interior/litoral, urbano/rural, centro/periferia — diferença de género e diversidade de
origens étnico-nacionais;

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• Com a expansão da escolaridade há uma mudança que se afirma de forma
incontornável e inequívoca, nomeadamente os percursos escolares mais longos e
mais bem-sucedidos das raparigas [na nota de rodapé, a autora denota que Duru-
Bellat e Kieffer contemplam que a vantagem crescente das raparigas se deve,
também, ao facto de não serem “canalizadas para as fileiras alternativas de tipo
profissionalizante, como acontece com os rapazes”];

• Os alunos que residem longe dos centros urbanos ou nas periferias destes, bem como
nas regiões do interior, têm menor desempenho escolar do que os que residem em
zonas de maior desenvolvimento económico e cultural — estas diferenças
desvanecem-se quando as famílias têm a mesma origem de classe e/ou os mesmos
níveis de escolaridade;

• “Concluindo, a escola da modernidade universalizou-se no acesso, prolongou o tempo


de permanência de todos, criou a “escola única”, mas só muito parcialmente se
democratizou — adiou-se a exclusão escolar explícita para momentos mais tardios,
criaram-se novas modalidades de distinção e hierarquização dos públicos escolares,
em suma, as desigualdades escolares sofreram uma translação nos tempos e nos
espaços em que ocorrem, sem nunca terem deixado de assumir a intensa marca das
diferenças sociais.” (p. 88)

As desigualdades escolares: a procura de um modelo explicativo

• Teoria da reprodução: “corpo teórico de maior destaque na explicação sociológica


das desigualdades sociais em contexto escolar” (p. 89) — principais autores são os
franceses Bourdieu e Passeron (com as publicações Les Héritiers”, de 1964 e La
Reproduction, de 1980) e o inglês B. Bernstein, com Class, Codes and Control (1971–
1990);

• As análises dos autores acima mencionados são consonantes e complementam-se,


constituindo modelos analíticos teoricamente robustos em torna da tese de que as
diferenças culturais entre a escola e os grupos sociais mais desfavorecidos explicam
o insucesso escolar dos últimos;

• “Nesta perspetiva analítica, a escola, ao ser enformada pela cultura das classes
dominantes e ao não reconhecer legitimidade nem valor académico a modelos
culturais diferentes do que adota, penaliza os estudantes que são portadores de uma
cultura familiar que é dissemelhante da cultura escolar” (p. 90) [ponto de vista de
Bourdieu e Passeron];

• Bernstein analisa diferentes formas de comunicação, presentes nos grupos sociais e


na escola, detetando a existência de estruturas de comunicação diferentes entre os

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grupos sociais. A vantagem é concedida aos alunos oriundos das famílias que
partilham o código comunicacional da escola, “pois vivem a escola como um
prolongamento da família (...), o código escolar coincide com o código dos grupos
sociais favorecidos.” (p. 90–91). Para este autor, o “código” é o princípio regulador
“que seleciona e integra significados relevantes”, a maneira como se realizam e os
contextos evocadores, regulado por valores de classificação (ou princípios
hierárquicos) e de enquadramento, gerando ao mesmo tempo regras de
reconhecimento e de realização que tornam possível a comunicação;

• Na perspetiva analítica destes autores, o problema reside “nas dificuldades relacionais


entre a escola e as famílias socialmente desfavorecidas a quem a escola exige
“aculturação”” (p. 91) — no fundo, há uma falha de comunicação, uma rutura entre
escola e grupo social;

• Lahire deteta outras condições relacionadas com o bom desempenho escolar, como
a relação com a escrita e o seu uso no quotidiano;

• Charlot, Bautier e Rochex, defendem a centralidade da relação do aluno com os


saberes, ou seja, uma relação fundada no interesse e prazer de aprender demonstra
maior sucesso;

• “No caso do sucesso escolar das raparigas, as explicações para esta “energia escolar”
têm assinalado tratar-se da conjugação de dois fatores: as vantagens da socialização
familiar no cumprimento do “ofício do aluno” e o sobreinvestimento que farão na
escolaridade, como melhor meio de concretizar a sua trajetória de emancipação” (p.
94);

• A heterogeneidade social da turma e da escola beneficia os alunos com origem nas


classes populares; o sucesso dos alunos das classes médias e altas é potenciado
pelas expectativas positivas comunicadas pelos professores e a adoção, por parte dos
docentes, de uma estratégia pedagógica enformada por conceções elitistas;

• As dificuldades escolares de alunos de meios sociais desfavorecidos “fabricam-se” no


“quotidiano escolar por descontinuidade cultural, mas também pela tendencial
homogeneização social das escolas, e em especial, das turmas (turmas de nível),
pelos processos de orientação que decorrem no seu seio e pela atuação dos
professores” (p. 98);

• Incidência do insucesso escolar nos alunos das classes populares, rapazes e em


alguns grupos de origem imigrante liga-se com um fenómeno social multidimensional
e relacional;

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• “A combinação dos fatores é mais importante do que cada um deles tomado
isoladamente” (p. 100), no que diz respeito à análise dos casos de (in)sucesso e
abandono escolar

Palavras importantes:

Devir — dar-se; suceder; acontecer; acabar por vir; movimento permanente pelo qual as
coisas passam de um estado a outro (= mudança, transformação, vir-a-ser);

Imbricação — ato ou efeito de imbricar ou de se imbricar; disposição das coisas cujas


extremidades se sobrepõem (= sobreposição; interligação);

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