Você está na página 1de 4

Considerações sobre Estratificação de Risco Gestacional

à luz das evidências atuais

Regina Amélia Lopes Pessoa de Aguiar1

A assistência obstétrica antes do nascimento, conhecida como assistência pré-natal, é


um dos pilares da organização de um sistema de cuidado à mulheres/gestantes que,
inquestionavelmente, impactam nos indicadores de mortalidade materna, fetal e
infantil, assim como no nível de satisfação das mulheres com a vivência desse período.
Entretanto, para que essa assistência se faça efetiva é imprescindível a construção de
uma rede de acessos às necessidades identificadas nessa fase, de forma a prover o
melhor cuidado, no momento oportuno, no local adequado e executado pelo(s)
profissional(is) habilitado.

A gestação embora seja um evento fisiológico, no qual na maioria das vezes mulher,
feto/recém-nascido alcancem o final desse processo de forma saudável, pode ter
intercorrências que modifiquem esse resultado. Então, embora seja fisiológica a
gestação traz consigo riscos reais ou potenciais para o binômio mãe-feto.

Nas décadas de 1960 e 1970 foram construídos vários score para a estratificação do risco
gestacional. Em algumas dessas propostas a gestação poderia ser classificada como
baixo, médio e alto risco, sendo que essa classificação era fundamentada na pontuação
final obtida baseada em critérios que envolviam análise de paridade, condições
socioeconômicas, intervalo interpartal e presença de doenças prévias ou intercorrentes.
Entretanto, nenhum desses scores se mostrou efetivo na melhoria dos resultados
maternos e perinatais, não sendo mais utilizados. O que ainda se considera como
essencial é que a avaliação de risco é necessária e válida para se identificar
situações/gestantes/fetos nos quais é fundamental uma atenção maior ou o
acompanhamento com o especialista. Existem diversos grupamentos de situações de
risco gestacional utilizados no mundo. O termo “gestação de alto risco” é utilizado pela
grande maioria das instituições, sociedades e organizações (National Institutes of Child
Health and Human Development, Centers for Disease Control and Prevention, American
Academy of Pediatrics, American College of Obstetricians and Gynecologists, FEBRASGO,
Ministério da Saúde do Brasil) voltadas para o cuidado perinatal, bem como na literatura
internacional e nacional (livros textos e artigos). As gestações que não apresentam
nenhum desses fatores é considerada uma gestação de risco habitual ou gestação
normal.

Embora a ênfase maior na estratificação do risco gestacional seja dada para condições
clínicas é bem estabelecido que condições sociodemográficas e comportamentais
podem afetar tanto a saúde perinatal da mãe e do feto como as situações clínicas
relacionadas à gravidez. Assim, incorpora-se aos clássicos fatores de risco diversas
dessas condições, principalmente quando se assiste à populações com alta
vulnerabilidade. Vale ressaltar que essas condições não estão em um patamar de risco
intermediário para a gestação, mas, sim, são fatores tão graves quanto as condições
clínicas intercorrentes ou pré-existentes à gestação. O que difere várias dessas situações
é, que para minimizar seus efeitos, não é necessário a transferência do local de cuidado
da gestante, ou seja, não é necessário que os médicos/enfermeiros especialistas sejam
os responsáveis pela assistência pré-natal dessas gestantes, já que as intervenções
necessárias são plenamente realizáveis na atenção básica. Então, não se trata de uma
escala de quantificação de risco e, sim, de identificação de fatores que determinam um
alto risco gestacional, mas que podem ser abordados na atenção básica.

Do ponto de vista operacional, a assistência pré-natal pode ser realizada no nível


primário, com seguimento pelos profissionais da atenção básica, onde se destacam o
médico-generalista e a enfermagem, podendo também nesse nível de assistência ter
acesso ao cuidado odontológico, acompanhamento com nutricionista, assistente social,
psicólogo, entre outros que compõem a equipe de atenção básica ou necessitar de
atendimento por equipe especializada envolvendo obstetras, obstetras especialistas
com medicina fetal, outras especialidades – cardiologista, endocrinologista,
reumatologista, psiquiatra, neurologista, geneticista, neonatologista, anestesiologista
entre outros – além de estrutura com tecnologia diferenciada - ultrassonografia com
equipamentos de alta resolução, procedimentos invasivos (punções fetais,
Amniocentese, biopsia de vilo corial, cordocentese, cirurgia fetal). Um dos maiores
objetivos da identificação do risco gestacional é a organização do cuidado individual.
Não identificamos na literatura atual propostas e/ou evidências de que criar novos
estratos de risco gestacional tenham impacto nos resultados maternos e/ou perinatais.
Além disso, como consta na última edição de um dos tratados mais respeitados de
Obstetrícia (Williams Obstetrics) a designação de “gravidez de alto risco” é
excessivamente vaga para uma mulher e, provavelmente, é melhor evitar se um
diagnóstico mais específico puder ser atribuído. Sendo assim, o uso dos estratos de risco
– gestação de alto risco e gestação de baixo risco – se aplicam de forma mais adequada
para organização da rede assistencial propriamente dito.

Quando pensamos na construção de protocolos devemos construí-los à luz das


melhores evidências atuais e, cuidando para que as informações e planos nesses
contidos encontrem consonância na literatura (livros-textos, artigos). Em função do
exposto, não consideramos que a proposta de criar um novo estrato de risco para as
gestações possa trazer benefício para as equipes assistenciais nem para as
gestantes/fetos a serem acompanhados.

LEITURA SUPLEMENTAR
American Academy of Pediatrics & American College of Obstetricians and Gynecologists.
Guidelines for perinatal care. 8th edition. 2017. 712p.
Ahluwalia IB, Harrison L, Simpson P, et al. Pregnancy risk assessment monitoring system
and the W.K. Kellogg Foundation joint project to enhance maternal and child health
surveillance: focus on collaboration. J Womens Health 2015; 24(4):257–60.
Brasil. Ministério da Saúde. Gestação de Alto Risco. Manual Técnico. 5ª ed. 2012. 301p.
Brasil. Ministério da Saúde. Protocolos da Atenção Básica: Saúde das
Mulheres/Ministério da Saúde, Instituto Sírio-Libanês de Ensino e Pesquisa – Brasília:
Ministério da Saúde, 2016. 230p.
Cunningham FG, Leveno KJ, Bloom SL, Dashe JS, Hoffman BL, Casey BM, Spong CY.
Williams Obstetrics. 25th edition. 2018. 2049p.
Eunice Kennedy Shriver National Institute of Child Health and Human Development.
What are the factors that put a pregnancy at risk? Available at: https://
www.nichd.nih.gov/health/topics/high-risk/conditioninfo/pages/factors.aspx.
Acessado em 11/02/2020.
FEBRASGO. Manual de Assistência Pré-natal. 2ª ed. 2014. 180p.
FEBRASGO. Manual de Gestação de Alto Risco. 2011. 220p.
Kiely M, El-Mohandes AA, Gantz MG, et al. Understanding the association of biomedical,
psychosocial and behavioral risks with adverse pregnancy outcomes among African-
Americans in Washington DC. Matern Child Health J 2011; 15:S85–95.
Montenegro CAB, Rezende Filho J. Rezende Obstetrícia Fundamental. 13ed. 2014. 751p.
Queenan JT, Spong, C, Lockwood CJ. Protocols for High-Risk Pregnancies. An Evidence-
Based Approach. 6th edition. 2015. 498p.
Sá RAM, Oliveira CA. Hermógenes – Obstetrícia Básica. 3ª ed. 2015. 1512p.
WHO. WHO recommendations on antenatal care for a positive pregnancy experience.
2016. 172p.

1
Professora Associada Aposentada do Departamento de Ginecologia e Obstetrícia da Faculdade
de Medicina da UFMG. Especialista em Ginecologia e Obstetrícia e em Genética Médica. Mestre
e Doutora em Saúde da Mulher pela Universidade Federal de Minas Gerais. Instrutora Nacional
da Estratégia Zero Morte Materna por Hemorragia – OPAS/MS. Consultora técnica da
Coordenação Materno Infantil da Secretaria de Estado de Saúde de Minas Gerais e Presidente
do Comitê Estadual de Prevenção à Mortalidade Materna, Infantil e Fetal de Minas Gerais.

Você também pode gostar