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IV – TRAIÇÃO
James Hillman
(do livro “Estudos de Psicologia Arquetípica) Ed. Achiamé

É corrente entre os judeus uma história, uma dessas anedotas comuns de judeus, que
diz a seguinte: um pai estava ensinando seu filho a ser menos medroso, a ter mais
coragem, fazendo-a pular de uma escadaria. Colocou o menino no segundo degrau e disse:
"Pule que eu seguro você". E a menino pulou. O pai então colocou o garoto no terceiro
degrau, dizendo.: "Pule que eu seguro você". Apesar de estar com medo, o menino confiou
no pai, fez a que ele mandou e pulou em seus braços. Daí então o pai colocou-o no degrau
seguinte, depois na seguinte, cada vez dizendo: "Pule que eu seguro você", e todas as
vezes o menino pulou e a pai segurou. E assim foram indo. Aí então o garoto pulou de um
degrau bem alto, da mesma forma que antes; mas desta vez a pai recuou e o menino foi
direto com a cara no chão. Quando conseguiu levantar-se, machucado e chorando, o pai
falou: "Isto vai lhe ensinar: nunca confie num judeu, mesmo que ele seja seu pai".

Essa história - com todo seu questionável anti-semitismo sugere outras conotações
mais, principalmente porque muito provavelmente foi inventada pelos próprios judeus.
Acredito que tenha alguma coisa referente ao nosso tema - traição. Por exemplo: por que
se deveria ensinar um menino a não confiar? E a não confiar num judeu? E a não confiar
em seu próprio pai? Que significa ser traído pelo próprio pai, ou por alguém muito
chegado? Que significa para um pai, para um homem, trair alguém que confia nele? Qual a
finalidade da traição na vida psicológica? Estas são. as questões que levantamos.

Devemos tentar começar por algum lugar. Prefiro neste caso começar "no começo",
com a Bíblia, mesmo que, como psicólogo, possa estar invadindo o terreno da teologia.
Apesar de ser psicólogo não desejo, no entanto começar como os psicólogos em geral
começam, com aquela outra teologia, aquele outro jardim do Éden: a criança e sua mãe.

Quando, pela tarde, Adão saia a passear com Deus, confiança e deslealdade não
surgiam como temas de suas conversas. A imagem do jardim do paraíso com estádio inicial
da condição humana apresenta aquilo que poderíamos chamar de "confiança primordial",
ou como chamou Santayana, "fé animal"; uma certeza fundamental - a despeito da
angústia, do medo, da dúvida'- de que o chão encontra-se ali mesmo, embaixo dos pés, e
que não vai sumir quando dermos o próximo passo, de que amanhã o sol vai nascer outra
vez, de que o céu não vai cair sobre nossas cabeças e de que Deus de fato fez o mundo
para o homem. Esta situação de "confiança primordial", apresentada como a imagem
arquetípica do Éden, repete-se nas vidas individuais de filhos e pais. Assim como Adão,
com fé animal, no começo confia em Deus, da mesrna forma o menino no começo confia
em seu pai. Em ambos, Deus e Pai, encontra-se a imagem paternal: confiável, firme,
estável, justa, aquela Rocha Eterna cuia palavra firma a aliança. Essa imagem paterna
pode ser expressa também pelo conceito do Logos, pelo poder imutável e pela sacralidade
da palavra masculina.

Mas já não estamos mais naquele Jardim, Eva colocou um ponto final naquela
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dignidade nua. Desde a expulsão, a Bíblia registra uma história de traições de todo tipo:
Caim e Abel, Jacó e Esaú, Labão, José vendido por seus irmãos e seu pai enganado, as
promessas não cumpridas do Faraó, a adoração do bezerro pelas costas de Moisés, Saul,
Sansão, Jó, a ira de Deus e a quase anulação da criação – mais e mais, culminando no
mito central da nossa cultura: a traição de Jesus.

Embora não estejamos mais naquele Jardim, podemos a ele retomar cada vez que nos
colocamos numa situação de relacionamento profundo, por exemplo, o amor, a amizade, a
análise, em que se reconstitui a situação de confiança primordial. Uma outra forma diferente
de designa-la é chamá-la de temenos, o vaso analítico, a simbiose mãe-filho. Aqui se tem
de novo a segurança do Éden. Mas essa segurança - ou pelo menos o tipo de temenos a
que estou me referindo - é masculina, dada pelo Logos, através de uma promessa, um
pacto, uma palavra. Não se trata de uma confiança primordial envolvendo seios, alimento e
calor epidérmico; é similar, mas diferente e acredito ser importante assumir que não temos
de recorrer sempre à mãe para nossos modelos de tudo quanto é básico na vida- humana.

Nesta segurança, baseada não na carne, mas no verbo, a confiança primordial é


restabelecida e assim o mundo primordial pode emergir em segurança - a fraqueza e a
sombra, o desamparo nu de Adão, o mais primitivo dos homens em nosso interior mesmo.
Nele, de alguma maneira ficamos entregues à nossa natureza mais simples, que contém a
melhor e a menor porção de nós mesmos, o passado de milhões de anos e as ideias
germinais do futuro.

A necessidade de segurança, em que o mundo primordial da pessoa pode emergir,


onde é possível expressar-se sem ser destruído, é básica e evidente na análise. Essa
necessidade de segurança pode refletir carência de cuidados maternos, mas a partir do
padrão paterno de que estamos falando, a necessidade é de uma aproximação a Deus,
como a que Adão, Abraão, Moisés e os patriarcas conheceram.

O que se aspira é ser contido perfeitamente por um outro que jamais possa trair. Isso
transcende a confiança e a deslealdade do outro numa relação. O que se almeja é uma
situação na qual a pessoa esteja protegida das PROPRIAS traições e ambivalências, de
sua própria Eva. Em outras palavras, confiança primordial na palavra paterna significa estar
no Paraíso com Deus e com todas as coisas, exceto Eva.

O mundo primevo é prévio ao surgimento de Eva e do mal. Estar unido a Deus por uma
confiança primordial oferece proteção contra próprias ambivalências. Não sê pode estragar
coisas, desejar, enganar, seduzir, tentar, fraudar, culpar, confundir, ocultar, fugir, roubar,
mentir, expropriar a criação usando a própria natureza feminina, trair por sua própria má-fé
na traição da anima, que é a fonte do mal no Éden e da ambivalência em todo Adão daí por
diante. Queremos a segurança do Logos, onde a palavra é Verdade e não sofre abalos.

É claro que a aspiração de uma fé primordial, de ser um só com o Velho Sábio, situação
em que Eu e o Pai somos uma só pessoa, sem interferência da anima, é facilmente
reconhecível como típica do puer æternus que está por trás de toda puerilidade. Ele nunca
aceita ser expulso do paraíso, pois aí sabe o nome de todas as coisas da criação, aí os
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frutos crescem nas árvores e podem ser colhidos, não existe fadiga e pode-se manter
discussões interessantes no frescor da tarde.

E não apenas compreender: espera ser compreendido, totalmente, como se toda a


onisciência de Deus se concentrasse nele. Esse conhecimento perfeito, este sentimento de
estar sendo totalmente compreendido, confirmado, reconhecido, abençoado pelo que se é,
patente a si mesmo e conhecido a Deus, por Deus e em Deus, repete-se toda vez que
ocorre uma situação de confiança primordial, quando a pessoa sente que apenas o melhor
amigo, a esposa, o analista, realmente a entende completamente, Se não o fazem, se não
captam direito ou deixam de reconhecer a essência da pessoa (que deve sempre revelar-se
na vida e não ocultar-se e fechar-se em si mesma), isto é considerado alta traição.

Poderia parecer, pelo relato bíblico, que Deus reconheceu não ser Ele um amparo
suficiente para o homem, que seria necessário encontrar para o homem algo mais que o
próprio Deus. Eva tinha de ser criada, chamada à vida, extraída do próprio homem, o que
conduziu à quebra da confiança primordial pela traição. Era o fim do Éden; a vida
começava.

Essa maneira de interpretar o conto implica que a situação de confiança não é viável
toda a vida. Deus e a criação não bastavam para' Adão; era preciso Eva, o que vale dizer, a
traição era necessária. Poderia parecer que a única forma de sair desse Paraíso era sendo
traído e expulso, como se o vaso que contém a fé não pudesse de forma alguma ser
alterado a não ser com unia traição. Chegamos a uma verdade essencial sobre a fé e a
traição; elas se contêm uma à outra. Não se pode ter confiança sem a possibilidade da
traição. E a mulher quem trai seu marido e o marido quem engana sua mulher; parceiros e
amigos mentem, a amante usa seu amor para obter poder, o analista desvenda os
segredos de seu paciente, o pai deixa seu filho cair. Não se mantêm as promessas quebra-
se a palavra dada, a confiança vira traição.

Somos atraiçoados nas mesmas situações de relacionamento profundo em que a


confiança primordial é possível. Só podemos ser realmente traídos quando realmente
confiamos: em irmãos, amantes, esposas, maridos; não em inimigos, não em estranhos.
Quanto maior o amor e a lealdade, o envolvimento e o compromisso, maior a traição. A
confiança contém em si a semente da traição; a serpente estava no Paraíso desde o
começo, da mesma forma que Eva já se encontrava pré-formada na estrutura que envolvia
o coração de Adão. A confiança e a possibilidade de traí-Ia vieram ao mundo no mesmo
momento. Onde quer que exista confiança em uma união O risco de traição torna-se uma
possibilidade real. E a traição, como uma possibilidade com que se deve sempre contar, é
parte integrante da confiança, da mesma forma que a dúvida integra uma fé viva.

Se tomarmos essa narrativa como modelo de progresso na vida desde "o começo de
tudo", então pode-se esperar que a confiança primordial deva ser quebrada se se quiser
que haja progresso nos relacionamentos; e, mais que isso, que nunca haverá
amadurecimento para essa confiança primordial. A crise sobrevirá, uma quebra carac-
terizada por traição, que, de acordo com a lenda, é o sine qua non para a expulsão do Éden
para o mundo "real" da consciência e responsabilidade humanas.
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Pois devemos estar convencidos de que viver ou amar apenas em situações em que se
pode confiar, onde há segurança e contenção, onde não se pode ser ferido ou atraiçoado,
em que toda palavra empenhada está para sempre comprometida, significa estar realmente
a salvo, mas por outro lado também alienado da vida real. E não importa qual seja o
continente da confiança - análise, casamento, Igreja ou lei, ou qualquer relação humana.
Sim, poderia dizer até mesmo o relacionamento com o divino. Mesmo nesse caso confiança
primordial poderia parecer não ser o que Deus quer. Lembremos do Éden, de Jó, da
proibição de Moisés entrar na Terra Prometida, lembremos do recente destroçamento do
Seu "Povo Escolhido", que depositou Nele sua fé total e exclusiva.

Estou, afirmando, implicitamente, que a confiança primordial do judeu em Deus foi


traída pela experiência nazista, sendo necessária uma reorientação radical da atitude
judaica, da teologia judaica, em termos de anima, um reconhecimento do ambivalente
componente feminino existente tanto em Deus como no homem.

Se alguém pode sempre dar-se com a certeza de que no fim sairá ileso, ou talvez até
melhor, o que então é de fato dado? Se alguém salta apenas quando existem braços para
segurá-Io, então não se pode realmente falar de salto. Todo o risco de escalada fica
anulado – no entanto, para sentir a emoção de estar voando pelos ares, não há diferença
entre segundo degrau, sétimo, décimo, ou dez mil metros de altura. A confiança primordial
leva o puer a voar tão alto. Pai e filho são uma só pessoa. E todas as virtudes masculinas
de habilidade, de risco calculado, de coragem, perdem a importância: Deus, ou então Papi
vai segurá-lo ao pé da escala. Mas não se pode saber isto de antemão. Não é possível ser
avisado antecipadamente: "Desta vez não vou segurá-lo". Um homem prevenido vale por
dois e então ou não se pula ou se pula sem emoção, um pseudo-risco. Acontece que chega
o momento em que, apesar da promessa, a vida simplesmente intervém, acontece o
acidente e dá-se com a cara no chão. A promessa quebrada é uma intromissão da vida no
mundo seguro de Logos, em que a ordem de todas as coisas fica sob sua dependência, e o
passado garante o futuro. A promessa não mantida ou a confiança abalada são ao mesmo
tempo uma -intromissão em outro nível de consciência, o que veremos logo a seguir.

Voltemos, porém antes à nossa história e a nossas questões. O pai despertou a


consciência, jogou o menino para fora do jardim, brutalmente, com sofrimento. Fez a
iniciação de seu filho. Esta iniciação em uma nova consciência da realidade ocorre através
da traição, pela omissão do, pai, pela promessa quebrada. O pai intencionalmente afasta-
se do compromisso essencial do ego de manter sua palavra, de não dar falso testemunho e
não mentir para seu filho, de ser responsável e digno de confiança aconteça o que
acontecer. Abandona sua posição deliberadamente, permitindo manifestar-se o lado
sombrio nele e através dele. De forma que é uma traição com moral. Pois nossa história é
uma fábula moral, como o são todas as boas histórias dos judeus. Não é uma fábula
existencialista descrevendo um acte gratuit; nem uma lenda Zen que leva a um
esclarecimento libertador. É um sermão, uma lição, uma parte importante da vida. O pai
demonstra existir em sua própria pessoa a possibilidade de traição, mesmo numa situação
de máxima confiança. Revela sua própria deslealdade, posta-se diante do filho em sua nua
humanidade, revelando uma verdade a respeito da paternidade e da humanidade: eu, um
pai, um homem, não mereço confiança. O homem é traiçoeiro. A palavra não é mais forte
que a vida.
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E diz também: "Não confie nunca num judeu" de modo que a lição diz mais coisas
ainda. Torna implícito que sua paternidade segue o padrão de paternidade de Javé, que
uma iniciação judaica significa igualmente uma iniciação ao conhecimento da natureza de
Deus, este Senhor tão pouco digno de confiança que precisa ser continuamente louvado
com salmos e orações como sendo paciente, confiável, justo, e propiciado com epítetos de
estabilidade - por ser tão arbitrário, emocional e imprevisível. O pai diz, em resumo, eu traí
você da mesma forma como são todos na traição da vida criada por Deus. A iniciação do
garoto na vida é a iniciação à tragédia adulta.
II

A experiência da traição é, para algumas pessoas, tão humilhante quanto a do ciúme e


a do fracasso. Para Gabriel Marcel, traição é a essência da maldade (1). Para Jean Genet,
segundo Sartre, traição é a maldade maior, como "a maldade que causa mal a si mesma"
(2). Quando as experiências adquirem esse aspecto, assumimos um contexto arquetípico,
algo humano demais. Admitimos que provavelmente encontraremos um mito fundamental e
um padrão de comportamento com que a experiência possa ser amplificada. Creio que
esse contexto arquetípico é a traição de Jesus, o que pode nos dar maior compreensão da
experiência do ponto de vista do traído.

Estou hesitando em falar da traição de Jesus. São tantas as ilações que se podem
fazer. Mas é nisso justamente que consiste o valor de um símbolo vivo: pode-se extrair dele
um fluxo contínuo de significados. E é como um psicólogo em busca de significados psi-
cológicos que outra vez atravesso as fronteiras teológicas.

Na história de Jesus o tema da traição logo nos impressiona. O fato de ocorrer por três
vezes (Judas, os discípulos que dormiram, Pedro) - repetido pela tripla traição de Pedro -
indica uma fatalidade, a traição como essencial para a dinâmica do clímax da história de
Jesus, o que coloca a traição em posição central no mistério cristão. A tristeza na última
ceia, a agonia no horto e o grito na cruz parecem repetir um mesmo padrão, reafirmações
de um mesmo tema, num tom cada vez mais alto, de que um destino está sendo realizado,
de que uma transformação está se impondo a Jesus. Em cada uma dessas traições ele vê-
se forçado ao terrível reconhecimento de ter sido traído, abandonado e deixado só. Seu
amor foi recusado, sua mensagem mal entendida, seu chamado negligenciado e seu
destino proclamado.
Acho que há pontos em comum entre nossa anedota banal de judeus e esse grande
símbolo. O primeiro ato da traição de Judas já era conhecido antecipadamente. Sabedor
disto, Jesus podia aceitar submeter-se a esse tipo de sacrifício para a glorificação de Deus.
O impacto assim não deve ter sido tão devastador, para Jesus, mas Judas acabou se
enforcando. Também a negação de Pedro foi conhecida previamente, e da mesma forma
Pedro é que acabou chorando amargamente. Durante a última semana a confiança de
Jesus estava depositada no Senhor. "Homem da aflição", sim, mas sua confiança primordial
não se abalara. Como o garoto na escadaria, Jesus podia contar com seu Pai e até mesmo
pedir-lhe o perdão para seus carrascos até o último instante era um só com o Pai, até
aquele momento da verdade em que foi traído, negado e abandonado por seus seguidores,
entregue nas mãos de seus inimigos, perdida a confiança em Deus, atrelado a
circunstâncias irreversíveis; nesse momento, sentindo na sua carne humana a realidade da
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traição e a brutalidade de Javé e de sua criação, bradou o salmo 22, aquela longa la-
mentação em torno da confiança em Deus-Pai:
Meu Deus, meu Deus, por que me abandonastes?
Por que deixastes de me socorrer e vos
afastastes de minhas súplicas? Oh, meu Deus,
clamo por vós de dia e vós não me ouvis;
e à noite... E, no entanto sois justo....
Nossos pais confiaram em vós. Confiaram
e vós os salvastes... Confiaram em vós
e não foram confundidos... Vós sois
aquele que me tirastes do. berço.: fizestes-me confiar
quando ainda estava no seio da
minha mãe. Estou diante de vós desde o.
meu nascimento: Vós sois meu Deus desde o
ventre da minha mãe. Não vos afasteis de
mim, pois o tormento está próximo, pois
não há ninguém para me socorrer...

E eis que surgem as imagens de uma brutalização por forças bestiais

Estou cercado pelos touros, fortes touros


que me sitiam. Mostram-me suas imensas
fauces como se fossem leões... os cães
me rodearam. Estou preso no meio de
malfeitores: furam-me as mãos e os pés...

Esta passagem extraordinária afirma que a confiança primordial está depositada no


poder paterno, que ó pedido de resgate não é pedido de proteção materna, mas que a
experiência da traição integra o mistério masculino.

É impossível deixar de notar o acúmulo de simbolismo da anima constelado junto com o


tema da traição. À medida que o drama da traição vai-se desenrolando e intensificando, o
feminino vai-se tornando mais e mais evidente. Resumidamente posso referir-me ao
lavapés na última ceia e ao mandamento do amor; ao beijo e às moedas de prata, à agonia
no Getsêmani - um horto, à noite, o suor salgado porejando como gotas de sangue; à
orelha ferida, à imagem das mulheres estéreis no caminho do Gólgota; à advertência do
sonho da mulher de Pilatos, à degradação e ao sofrimento, à esponja de vinagre e fel, à
nudez e à fragilidade, à escuridão da nona hora e ao grande número de Marias - e referir-
me de modo especial à ferida no flanco no instante irremediável da morte, lembrando a
maneira como Eva foi arrancada do flanco de Adão. E finalmente ao encontro do Cristo
ressuscitado, vestido de branco, por mulheres.

Poderia parecer que a mensagem de amor, a missão de Eros de Jesus ganha sua força
final só quando ocorre a traição e a crucifixão. Pois no momento em que Deus o abandona,
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Jesus se torna realmente humano, sofrendo a tragédia humana, com seu flanco ferido e
perfurado, de onde corre sangue e água, a fonte não represada da vida, do sentimento, da
emoção. (O simbolismo do sangue foi extensivamente amplificado no trabalho de Emma
Jung e M. L.von Franz sobre o Graal) (3). A marca do puer, a condição de segurança des-
temerosa do pregador miraculoso, terminou. O Deus puer morre quando se perde a
confiança primordial, e nasce o homem. E o homem só nasce quando nele nasce o
feminino. Deus e homem, pai e filho, não são mais uma só pessoa. E uma mudança radical
no cosmos masculino. Depois que Eva nasceu do flanco adormecido de Adão, o mal
tornou-se possível; depois que o flanco de Jesus, traído e moribundo, foi perfurado, o amor
tornou-se possível.

III

O momento crítico da "grande traição", quando se é crucificado pela própria fé, é um


momento perigosíssimo daquilo que Frances Wickes chamaria "escolha”.(4). Ao levantar-se
do chão o garoto, a questão pode encaminhar-se para qualquer direção; sua ressurreição
fica pendente na balança. Pode mostrar-se incapaz de perdoar e assim manter uma fixação
no trauma, tornar-se vingativo, ressentido, cego a toda, compreensão e afastado do amor.
Ou pode vo1tar-se para a direção que tentarei descrever no restante destas minhas
considerações.

Mas antes de dirigirmos nossa atenção para as possíveis conseqüências aproveitáveis


da traição, vamo-nos deter um pouco nas opções estéreis, nos perigos que sucedem à
traição.

O primeiro desses perigos é o espírito de vinganca. Olho por olho; mal por mal; dor por
dor. Para alguns vingança é algo natural, imediato, sem contestação. Se executada
diretamente como um ato de verdade emocional pode ser purificadora. Deve acertar as
contas sem, é claro, produzir mais consequências. Vingança não leva a nada a não ser
contravingança e inamistosidade. Psicologicamente não é produtiva porque permite apenas
a abreação da tensão. Quando a vingança é adiada e vai-se transformando em intriga,
dissimulação e espera do dia da caça, começa a cheirar a perversidade, a alimentar
fantasias de crueldade e rancor. Vingança adiada, vingança refinada por métodos indiretos
pode tornar-se obsessiva, reduzindo o foco que abarcava todo o evento da traição e seu
significado, para a pessoa do traidor e para sua sombra. Por isso S. Tomás de Aquino
justifica a vingança apenas quando ela se dirige de forma abrangente contra o mal e não
contra o perpetrador do mal. O pior da vingança é, psicologicamente, sua perspectiva
medíocre e mesquinha, seu efeito redutor sobre a consciência.
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Esses perigos, desvios errôneos se bem que naturais, continuam no mecanismo de
defesa da negacão. Se uma pessoa é traída em um relacionamento, sente-se tentada a
negar o valor da outra pessoa; a ver, instantaneamente, a sombra do outro, uma vasta
couraça de demônios viciosos que, é claro, simplesmente não estavam presentes quando
ainda existia a confiança primordial. Esses aspectos hediondos do outro subitamente
revelados são todos compensações, uma enantiodromia, de idealizações prévias. O
choque da revelação súbita indica o quanto era grosseira a inconsciência prévia da anima.
Pois devemos admitir que sempre que há um lamento amargo por uma traição, é porque
existiu um contexto de confiança primordial, de inconsciente inocência infantil, em que se
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reprimiu a ambivalência. Eva ainda não tinha entrado em cena, ainda não fora
reconhecida como parte da situação, estava reprimida. .

Quero dizer com isto que os aspectos emocionais do envolvimento especialmente os


julgamentos de valor, essa corrente contínua de avaliações que flui no interior de toda
conexão - não eram admitidos. Antes da traição o relacionamento negava o componente da
anima. Um envolvimento que é inconsciente da anima ou é precipuamente uma projeção,
como num caso amoroso, ou precipuamente uma repressão, como na muitíssimo
masculina amizade de ideias e de "trabalho em comum". Nessas circunstâncias a anima só
pode chamar a atenção sobre si criando problemas. A inconsciência grosseira da anima
consiste em considerar a parte emocional de um relacionamento como um dado de certeza,
com fé animal, uma confiança primordial de que não há problemas, de que é suficiente o
que se diz, o que se crê, o que se "tem em mente", de que as coisas caminham, ça va tout
seul. Se a pessoa falha ao tentar honestamente trazer para o interior de um relacionamento
a esperança, a necessidade de crescer junto e com reciprocidade - o que se constela como
possibilidade última em qualquer relacionamento íntimo - aí então se muda de rumo e se
nega por completo as esperanças e as expectativas.

Mas a passagem súbita do estado de inconsciência grosseira para um estado de


consciência também grosseira integra todo momento de fé e é até evidente. De modo que
não é esse o perigo maior.

Mais perigoso é o cinismo. Decepção amorosa, desapontamento com uma causa


política, com uma organização, com um amigo, um superior ou um analista, conduz a uma
mudança de atitude na pessoa traída, que não só passa a negar o valor daquela pessoa
particular e do relacionamento, como também todo amor passa a ser considerado
Falsidade; as causas são para os Ingênuos; as organizações, Armadilhas; as hierarquias,
Mal e a análise nada menos que prostituição, lavagem cerebral e fraude. Seja inteligente,
fique alerta. Apanhe o outro antes que ele o apanhe. Melhor sozinho. Tudo bem comigo,
José - o verniz para esconder as cicatrizes de uma confiança perdida. Com os restos
desfeitos de idealismo improvisa-se a filosofia agressiva do cinismo. .

É bem possível que encontremos este cinismo - especialmente entre os jovens - por
não ter sido dada atenção suficiente ao significado da traição, principalmente na
transformação do puer æternus. Como analistas não elaboramos a sua significatividade no
desenvolvimento da vida sentimental; como um dado final em si, de onde fênix alguma
poderia renascer. Assim, a pessoa traída jura nunca mais subir tão alto na escada. Vai ficar
grudada no chão, no mesmo nível do cão, kynis, cínico. Essa postura cínica, como
dispensa o trabalho de elaboração de um significado positivo da traição, forma um círculo
vicioso, o cão perseguindo a própria cauda. O cinismo, esse zombar do próprio destino, é
uma traição dos próprios ideais, uma traição das mais elevadas ambições pessoais
encerradas no arquétipo do puer. Quando este entra em colapso, tudo que tem a ver com
ele é rejeitado. O que leva ao quarto e, acredito, maior perigo: à autotraição.

A traição de si mesmo é talvez o que mais realmente nos angustia. E uma das maneiras
disto acontecer é como conseqüência de alguém nos ter traído. Na situação de confiança,
na ligação amorosa, ou com um amigo, um parente, um parceiro, um analista, alguma coisa
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sempre fica em aberto. Alguma coisa que tinha estado lá dentro vem para fora: "Nunca
contei isto antes em toda a minha vida". Uma confissão, um poema, uma carta de amor,
uma invenção ou esquema fantástico, um segredo, um sonho de terror infantil - algo que
contém os valores mais profundos da pessoa. No instante da traição, essas pequenas
pérolas, tão delicadas e sensíveis, transformam-se em nada mais que pó, grãos de areia. A
carta de amor torna-se um amontoado de asneiras sentimentais, e o poema, o terror, o
sonho, a ambição, tudo fica reduzido ao ridículo, exposto à zombaria grosseira, tratado em
linguagem grossa como merde, uma bosta. Reverte-se o processo alquímico: o ouro volta a
ser excremento, a pérola lançada aos porcos. Porque os porcos não são os outros, de
quem se deve esconder os valores sagrados, e sim as explicações materialistas grosseiras,
as reduções às simplicidades obtusas do instinto sexual e da sofreguidão, que devora tudo
indiscriminadamente; a própria insistência obstinada em achar que o melhor era realmente
o pior, o refugo onde se arrojam os mais preciosos valores.

É uma experiência estranha perceber alguém traindo a si mesmo, voltando-se contra as


próprias experiências ao atribuir-Ihes os valores negativos da sombra e ao agir
contrariamente às próprias intenções e sistema de valores. No colapso de uma amizade, de
uma parceira, de um casamento, de uma ligação amorosa, de repente o que há de pior e
de mais sujo vem à tona e a pessoa se surpreende agindo da mesma maneira cega e
sórdida que atribui ao outro, e justificando as próprias ações com um sistema de valores
Que não é seu. A pessoa é realmente traída, entregue ao inimigo interior. E os porcos
avançam e despedaçam.

O distanciamento de si mesmo após a traição é em grande parte para se proteger. Não


se quer ser ferido de novo, e já que a ferida resultou justamente da revelação daquilo que
se é, começa-se a evitar viver de novo experiências assim. De modo que se evita, trai-se a
si mesmo, deixando-se de viver uma etapa da vida (um divorciado de meia-idade sem
ninguém para amar) ou a própria sexualidade (não quero mais saber de homens e vou
passar a ser tão cruel quanto eles) ou o próprio tipo psicológico (meu sentimento, minha
intuição ou fosse lá o que fosse, estava errado), ou a própria vocação (a psicoterapia é
mesmo um negócio sujo). Porque foi justamente pela confiança nesses marcos
fundamentais da própria natureza que se foi atraiçoado. Assim, recusamos ser o que
somos, começamos a ludibriar a nós mesmos com desculpas e evasivas, transformando-se
a autotraição em nada menos que a definição de Jung para neurose como uneigentlich
leiden, sofrimento inautêntico. Deixa-se de viver a experiência pessoal de sofrimento para,
por mauvaise foi, por falta de coragem de ser, trair-se a si mesmo.

Isto é, em última análise, suponho, um problema religioso, e mais parecemos Judas ou


Pedro ao trair o essencial, a exigência essencial de que se assuma e se carregue o próprio
sofrimento e de que se seja o que se é não importa quanto isso possa doer.

Ao lado da vingança, negação, cinismo e autotraição, existe ainda um outro perigo, um


outro desvio negativo, que chamaremos de paranóide. É, mais uma vez, uma medida de
proteção contra novas traições, por meio da elaboração de um relacionamento perfeito.
Relacionamentos desse tipo exigem um juramento de fidelidade, não toleram riscos à
segurança. "Você não deve me trair jamais" - é o lema. A traição deve ser exorcizada por
votos de confiança, declarações de fidelidade eterna, provas de dedicação, juras secretas.
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Não pode haver nem um arranhão; a traição tem de ser excluída.

Mas se a traição está contida no interior da confiança, como a semente antinômica


encerrada nela, então essa exigência paranóide de um relacionamento sem possibilidade
de traição não pode na verdade estar baseada na confiança. É mais uma convenção
arquitetada para excluir riscos. Como tal tem a ver menos com o amor do que com o poder.
É um recuo para um relacionamento baseado no logos, imposto pela palavra e não
sustentado pelo amor.

É impossível restabelecer-se a confiança primordial depois que se deixou o Éden.


Agora se sabe que as promessas mantêm-se apenas até certo ponto. A vida é que toma a
seu cargo os juramentas, cumprindo-os ou quebrando-os. E os novos relacionamentos
após a experiência da traição têm de começar por algum outro ponto totalmente diferente.
A distorção paranóide dos assuntos humanos é algo muito sério. Quando um analista (ou
marido, amante, discípulo ou amiga) tenta preencher os requisitos de um relacionamento
paranóide, fornecendo garantias de lealdade, exconjurando a traição, certamente estará
afastando-se do amar. Pois como já vimos e tornaremos a ver, amor e traição procedem de
um mesmo lado: o esquerdo.

IV

Gostaria agora de encerrar a questão do que significa a traição para o filho, o traído, a
fim de voltar-me para a outra das nossas questões iniciais: Que pode a traição significar
para o pai? O que significa para Deus deixar Seu filho morrer na cruz é algo que não nos foi
dito. O que significou para Abraão levar seu filho para o sacrifício, também isso não nos foi
dito. Mas eles fizeram essas coisas. Eram capazes de trair, da mesma forma que Jacó, o
patriarca, que adquiriu o seu status traindo o irmão. Será que a capacidade de trair é
inerente à paternidade? Vamos examinar melhor esta questão.

O pai naquela história não mostra apenas sua imperfeição humana, quer dizer, não é
que apenas não segura o filho. Não é apenas fraqueza e erro. Conscientemente ele
resolveu deixá-lo cair e causar-lhe dor e humilhação. Mostra como é brutal. A mesma
brutalidade que aparece no tratamento que Jesus recebe desde a captura até a crucifixão,
e nos preparativos feitos por Abraão. O que acontece com Esaú e com Jó é nada menos
que brutalidade. A brutalidade aparece de novo na pele de animal que Jacó veste para trair
Esaú, e nas grandes bestas que Deus revela a Jó como justificativas de seus tormentos. Da
mesma forma, nas imagens do Salmo 22, como vimos acima.

A imagem paterna - esta figura justa, sábia e tolerante - recusa de qualquer maneira
intervir para minorar o sofrimento que ele próprio ocasionou. Recusa também justificar sua
conduta. A recusa de explicações significa que a explicação, se afinal de contas houver
uma, deve proceder da parte ofendida. Depois de uma traição não se está em posição de
ouvir de forma alguma explicações do outro! Isto é, creio eu, um estímulo criativo na traição.
É o traído quem de alguma forma deve cuidar da própria ressurreição, dar o passo adiante,
por meio de sua própria interpretação do que aconteceu. Mas isso só será criativo se a
pessoa não sucumbir aos perigos que mencionamos acima.
11

Naquela nossa história o pai explica. Nossa história é mais que tudo uma lição e a
própria ação é educativa enquanto iniciação, ao passo que nas lendas arquetípicas e em
muitas situações da vida diária, o traidor não explica a traição ao traído, pois a traição
procede do lado autônomo, esquerdo, inconsciente. Apesar das explicações, nossa história
ainda exibe brutalidade. O uso consciente da brutalidade poderia parecer um traço comum
das figuras paternas. O pai injusto reflete a injustiça da vida. Quando se mostra inacessível
ao grito de socorro e às necessidades do outro, ou admite que sua promessa é falível, está
reconhecendo que o poder da palavra pode ser transcendido pelas forças da vida. Este
conhecimento das suas limitações masculinas e esta insensibilidade implicam em um alto
grau de diferenciação do lado fraco, esquerdo. Diferenciação do lado esquerdo poderia
significar a capacidade de suportar tensão sem ação, de prosseguir no erro sem tentar
corrigir as coisas, deixando os fatos determinarem os princípios. Significa também que a
pessoa deve, em alguma medida, superar este desconfortável sentimento de culpa que
impede a realização plenamente consciente de atos necessários, ainda que brutais. (Com
brutalidade consciente não me refiro nem à brutalidade deliberadamente perversa
destinada a arruinar o outro! Nem à brutalidade sentimental, tal como às vezes a
encontramos na literatura, nos filmes e nos códigos dos soldados).

A culpa incômoda e a pusilanimidade conferem aos atos um caráter ambíguo - o que


não é tarefa muito adequada para a anima. Mas a aspereza do pai não dá margem a
ambiguidade alguma. Não é que ele seja cruel de um lado e compassivo de outro. Não é
que ele traia e em seguida levante o filho do chão dizendo "pobre garoto, isto me feriu mais
que a você".

Na análise, como em todas as situações de confiança, somos às vezes levados a


situações em que alguma coisa ocorre que requer uma ação conscientemente brutal, uma
traição da confiança do outro. Quebramos uma promessa, omitimo-nos quando nossa
presença seria necessária, atraiçoamos o outro, alienamos uma afeição, traímos um
segredo. Não damos explicações de nossas ações, não aliviamos o outro de sua cruz, nem
sequer o erguemos do chão ao pé-da-escada. São brutalidades - e nós as fazemos com
mais ou menos consciência. E temos de permití-Ias e assumí-Ias, caso contrário a anima
faz nossos atos inconsistentes, indiferentes e cruéis.

Essa insensibilidade aponta para uma integração da brutalidade, com isso aproximando
o indivíduo da natureza - que não dá explicações de si mesma. As explicações têm de ser
arrancadas dela. Essa disposição para ser um traidor aproxima-nos da condição primitiva
em que somos não tanto os protegidos de um Deus supostamente moral e de um Demônio
imoral, e sim de uma natureza amoral. E assim somos reconduzidos ao nosso tema da
integração da anima, que tem na insensibilidade e nos lábios selados semelhança com Eva
e a serpente, cuja sabedoria está também próxima da traição da natureza. Isto me leva a
perguntar se a integração da anima não pode mostrar-se de maneira distinta da usual -
vitalidade, relacionamento, amor, imaginação, sutileza e assim por diante - ou seja,
assemelhando-se à natureza: menos confiável, como água que corre pelo caminho que
oferecer menor resistência, mudando as respostas com o vento, falando uma linguagem
dúbia - ambiguidade consciente, mais que ambivalência inconsciente. Supostamente, o
sábio ou mestre, a fim de ser o psicopompo que guia as almas através da confusão da
12
criação, onde existe uma falha em cada pedra e os caminhos não são diretos, exibe uma
sagacidade hermética e uma frieza que é tão impessoal quanto a própria natureza. (5).

Em outras palavras, nossa conclusão para a questão: "O que significa a traição para o
pai?" resulta nisto - a capacidade de trair outros está relacionada com a capacidade de
conduzir outros. A paternidade integral possui ambas. Na medida em que a orientação
psicológica tem por objetivo a autoajuda e a autoconfiança, o outro terá, de alguma forma,
em algum ponto, que ser abandonado ou cair em seu próprio nível, isto é, afastado do
auxílio humano, (a)traído para o interior de si mesmo, onde é deixado só.

Como diz Jung em Psicologia e Alquimia (págs. 27-8):


Sei por experiência que toda coerção - seja ela sugestão, insinuação, ou qualquer
outro método de persuasão - no final das contas acaba sendo apenas um obstáculo para a
mais elevada e decisiva experiência de todas, que é estar sozinho com o próprio Self ou
com o que quer que se chame a objetividade da psique. O paciente deve ficar sozinho se
for para encontrar aquilo que o sustém quando não pode mais suportar a si mesmo. Só
essa experiência pode lhe dar uma base indestrutível.

O que então é digno de confiança no bom pai ou no psicopompo? Com relação a isso,
qual a diferença entre o mago da magia branca e o da magia negra? O que separa o sábio
do selvagem? Não poderíamos, através daquilo que venho apresentando, justificar toda
brutalidade e traição que um homem possa cometer como um sinal de sua "integração da
anima", como um sinal de sua chegada à "plena paternidade"?

Não sei como responder a essa questão a não ser referindo-me às mesmas histórias
já mencionadas. Em todas elas encontramos duas coisas: o tema do amor e/ou do sentido
da necessidade. A interpretação cristã diz que Deus abandonou Jesus na cruz porque
amou tanto o mundo que deu Seu próprio Filho pela sua redenção. Sua traição era
necessária, perfazia o seu destino. Abraão amava tanto a Deus que se preparou para
imolar Isaac em oferenda. A traição de Esaú por Jacob era uma necessidade já anunciada
no momento do nascimento. O pai naquela nossa história deve ter amado tanto seu filho
que podia arriscar quebrar-lhe os ossos, desfazer sua confiança e denegrir a própria
imagem aos olhos do filho.

Esse contexto mais amplo de necessidade ou amor leva-me a acreditar que a traição -
voltar atrás de uma promessa, recusar ajuda, revelar um segredo, enganar no amor - é uma
experiência por demais trágica para ser justificada em termos pessoais de mecanismos e
motivações psicológicas. Não basta psicologia pessoal; análises e explicações não
resolvem. Deve-se procurar o contexto maior do amor e do destino. Mas quem pode ter
certeza da presença do amor? E quem pode dizer que a traição foi uma necessidade, foi o
destino, foi um chamamento do Self?

De certo, uma parte do amor é necessidade; é igualmente interesse, envolvimento,


identificações - mas talvez uma maneira ainda mais certa de se dizer se a pessoa está mais
13
próxima do selvagem ou do sábio é examinando o oposto do amor: o poder. Se a traição
é perpetrada principalmente para obter-se vantagem pessoal (sair de uma situação difícil,
ferir ou usar, salvar a própria pele, aplacar um desejo ou satisfazer uma necessidade,
defender os próprios interesses) então pode-se estar seguro de que o predomínio não é
tanto do amor e sim da brutalidade, do poder.

O contexto mais amplo do amor e da necessidade é dado pelos arquétipos míticos.


Quando se coloca o evento sob esta perspectiva, o padrão pode tornar-se outra vez
significante. O ato mesmo de tentar compreendê-Io nesse contexto mais amplo é
terapêutico. Infelizmente o evento pode não revelar seu significado por muito, muito tempo,
enquanto jaz sob o selo do absurdo ou apodrece no ressentimento. Mas a luta para colocá-
Io dentro do contexto mais amplo, as lides com interpretação e integração, esse é o
caminho para fazer andar. Parece-me que apenas isto pode conduzir através dos estágios
da diferenciação da anima, há tanto já delineado, e mesmo levar a um passo adiante; na
direção do mais elevado dos sentimentos religiosos: o perdão.

Devemos deixar bem claro que perdão não é assunto fácil. Se o ego errou, o ego não
pode perdoar, só porque "deveria", sem consideração pelo contexto mais amplo de amor e
destino. O ego consegue manter-se vital devido a seu amor-próprio, seu orgulho e sua
honra. Mesmo quando se quer perdoar, vê-se que simplesmente não se pode, porque o
perdão não provém do ego. Não posso perdoar diretamente, posso apenas pedir, ou rezar,
para que esses pecados sejam perdoados. Desejar que o perdão venha e esperar por ele
talvez seja tudo o que se pode fazer.

O perdão, como a humildade, é apenas um termo até que pessoa tenha sido realmente
humilhada ou realmente enganada. Perdão só tem sentido Quando não se pode nem
perdoar nem esquecer. E nossos sonhos não nos permitem perdoar (esquecer). Qualquer
um pode perdoar um insulto banal, uma afronta pessoal. Mas se alguém é levado, passo a
passo, a um envolvimento cuja substância é a própria confiança, desnuda a própria alma, e
então é profundamente traído, no sentido de ser entregue às mãos de seus inimigos,
exteriores ou interiores (aqueles valores da sombra descritos acima, situações em que as
chances de uma nova confiança amorosa ficam permanentemente comprometidas por
defesas paranóicas, pela autotraição, pelo cinismo), então aí o perdão assume grande
significado. Pode bem ser Que a traição não tenha nenhum outro produto positivo além do
perdão, e que a experiência do perdão seja possível apenas se alguém tiver sido traído. Tal
perdão é um perdoar que não é um esquecer, mas a lembrança do erro, que se transforma,
quando inserido em um contexto mais amplo, ou nos termos em que Jung coloca, o sal da
amargura transformado no sal da sabedoria.

A sabedoria, como Sofia, é de novo uma contribuição feminina à masculinidade. e


poderia fornecer o contexto mais amplo que a vontade não pode providenciar por si
mesma. Gostaria de considerar aqui a Sabedoria como a união do amor com a
necessidade, da qual finalmente brota o fluxo livre do sentimento para o interior do próprio
destino, reconciliando-nos com um acontecimento.

Da mesma forma que a confiança contém em si a semente da traição, a traição contém


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em si a semente do perdão. Esta poderia ser a resposta à última de nossas questões
iniciais: "Que posição ocupa a traição na vida psicológica em geral?" Nem a confiança nem
o perdão podem ser corretamente imaginados sem a traição. A traição é o lado sombrio de
ambos, a ambos dando sentido, tornando ambos possíveis. Talvez isso nos explique um
pouco por que a traição é um tema tão forte em nossas religiões. É talvez a passagem
humana para as experiências religiosas tão elevadas do perdão e da reconciliação com es-
te labirinto silencioso, a criação.

Mas o perdão é tão difícil que provavelmente necessita da ajuda de outra pessoa.
Quero dizer com isto que a falta, se não for lembrada por ambas as partes - e lembrar como
falta - recai inteiramente sobre o traído. O contexto mais amplo no interior do qual ocorreu a
tragédia poderia parecer reclamar sentimentos paralelos de parte a parte. Ambos
encontram-se ainda em uma relação, agora como traidor e traído. Se só o traído percebe o
crime, enquanto o outro o contorna com racionalizações, então a traição prossegue - e até
mesmo aumentada. Esta ilusão com respeito ao que realmente aconteceu é, para o traído,
a mais aberta de todas as chagas. O perdão vem com mais dificuldade; os ressentimentos
crescem porque o traidor não está carregando sua culpa e o ato não é honestamente
consciente. Jung disse que o sentido de nossos pecados é que nós os carreguemos, o que
significa não lançá-Ios sobre os ombros de outrem, esperando que este os carregue para
nós. Para carregar os próprios pecados é preciso primeiro reconhecê-los e reconhecer sua
brutalidade.

Psicologicamente, carregar um pecado significa simplesmente reconhecê-Io, lembrar-se


dele. Todas as emoções ligadas à experiência da traição em ambas as partes -- remorso e
arrependimento no traidor, ressentimento e rancor no traído - insistem no mesmo ponto: a
lembrança. O ressentimento, em especial, é uma aflição emocional da memória que o
esquecimento não pode jamais reprimir completamente. Sendo assim, não é melhor
lembrar de um erro do que oscilar entre o esquecimento e o ressentimento? Estas emoções
poderiam parecer ter como objetivo evitar que uma experiência se dissolvesse no
inconsciente. São o sal que preserva o evento da decomposição. Amargamente, forçam-
nos a manter a fé ao lado do pecado. Em outras palavras, o paradoxo da traição é a
fidelidade que ambos, traidor e traído, guardam, após o evento, ao seu amargor.

E essa fidelidade é guardada da mesma forma pelo traidor. Porque se sou incapaz de
admitir Que traí alguém, ou se tento esquecê-lo, permaneço enclausurado numa
brutalidade inconsciente. Nesse caso perde-se o contexto mais amplo do amor e o contexto
mais amplo do destino, da minha ação e de todo o evento. Não somente continuo en-
ganando o outro, como me engano a mim mesmo, pois cortei a possibilidade de me
autoperdoar. Não posso tornar-me mais sábio nem tenho nada com que reconciliar.

Por essas razões creio que o perdão de um requer a reparação do outro. A expiação
consiste na adoção do comportamento silencioso do pai, conforme o descrevemos
anteriormente. O pai carrega sua culpa e seu sofrimento. Embora tenha perfeita noção do
seu ato, não dá explicações dele ao outro, o que implica em expiá-lo, isto é, em auto-
relacionar-se. Reparação implica também numa submissão à traição como tal, à sua
realidade fatal transpessoal. Ao curvar-me à vergonha da minha incapacidade de manter a
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palavra, sou forçado a admitir humildemente tanto a minha fraqueza pessoal como a
realidade de poderes impessoais.

No entanto é preciso verificar bem se essa reparação não é apenas para apaziguar a
mente ou só circunstancial. Não deve ela reconhecer a outra pessoa? Creio que este ponto
não pode ser exagerado, pois vivemos em um mundo humano, mesmo quando somos as
vítimas de temas cósmicos, como a tragédia, a traição, o destino. Traição pode integrar um
contexto mais amplo e ser um tema cósmico, mas é sempre no interior de relacionamentos
individuais, através de outra pessoa muito próxima, de uma intimamente imediata, que
estas coisas nos atingem. Se os outros são instrumentos dos deuses para nos trazer
tragédias, são também o caminho pelo qual a nossa expiação chega aos deuses. As
condições se transformam no interior do mesmo tipo de situação pessoal em que
ocorreram. É suficiente oferecer reparação apenas aos deuses? Dá-se com isso por
encerrada a questão? A tradição não conjuga a sabedoria à humildade? A expiacão, como
o arrependimento, não precisa ser expressis verbis, mas é provavelmente mais efetiva se
ocorre em alguma forma de contato com o outro, com o reconhecimento integral do outro.
E, afinal, o que é esse reconhecimento pleno do outro senão o amor?

VI

Tentarei resumir. Os desdobramentos, por sucessivos estágios, da confiança, através


da traição, até o perdão, representam uma modificação da consciência. A condição inicial
de confiança primordial é em boa parte inconsciente e pré-anima. Segue-se a traição, em
que a palavra dada é quebrada pela vida. Apesar de toda sua negatividade, a traição
representa ainda um avanço em relação à confiança primordial porque conduz à "morte" do
puer através da experiência de anima do sofrimento. Isto pode então levar, se não for
bloqueado pelas vicissitudes negativas da vingança, da negação, cinismo, autotraição e
defesas paranóides, a uma paternidade mais firme, em que o traído pode, por seu turno,
trair outros de forma menos inconsciente, implicando isto na integração de uma natureza
humana pouco digna de confiança. A integração final da experiência pode resultar no
perdão pelo traído, expiação pelo traidor e uma reconciliação - não necessariamente de um
com o outro - mas a reconciliação de cada um com o fato ocorrido. Cada uma destas fases
de amargos conflitos e de experiências sofridas que podem consumir longos anos de
fidelidade ao lado sombrio da psique, é também uma fase do desenvolvimento da anima e
foi, apesar de minha ênfase sobre o masculino, o tema principal deste trabalho.

NOTAS

I. Being and Having, (ed. Fontana), Londres, 1965, pág. 47.


2. Saint Genet: Actor and Martyr, (ed. Mentor), NewYork, 1964, pág. 191.
3. The Grail Legend; New Yórk, 1971.
4. The Inner World of Choice, New York, 1963.
5. "O Céu e a Terra não são humanos
Pois encaram todas as coisas como cães.
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O sábio não é humano
Pois encara todas as pessoas como cães".
- Tao- Te King, nº 5.

Do Grêmio de Psicologia Pastoral: conferência n. o 128, 1964, 1966, 1971, Londres, e


também Spring 1965, págs. 57-76.
Conferência proferida em 2 de outubro de 1964, em Londres.

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