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AMORESE, Rubem M. Celebração do Evangelho.

Viçosa:
Ultimato, 1995. p. 71-84.

4.

RITUAL:
PARÁGRAFO DA
ALMA

Estamos crescendo no nível de complexidade dos


conjuntos simbólicos que escolhemos para exem­
plos. Começamos com gestos, prosseguimos com ritos
e agora aventuramo-nos a examinar um ritual, ou seja,
um conjunto homogêneo de frases da alma, os ritos, que
comporão um período completo ou um parágrafo.
Nada se altera, no entanto, no âmbito metodológico:
do gesto passa-se para o rito onde foi gerado, e desse,
para seu contexto, o ritual. Todo artefato - sobre o qual
falaremos adiante - tem um ou mais ritos a explicá-lo,
e todo rito tem um patrimônio simbólico a ser cele­
brado; muitas vezes, com o auxilio de outros ritos, que
comporão o que chamaremos de ritual.
72 Celebração do Evangelho

A üturgia

A liturgia de uma cerimônia religiosa define-se como


a forma da celebração de um amplo conjunto simbólico,
no caso, o evangelho. Não é possível celebrar algum
conteúdo sem uma forma. A forma sem conteúdo, em
um certo sentido, pode existir, mas não o contrário.
Um conjunto de ritos, um ritual, expressa um
período completo de sentido. Desta maneira, um culto
é um ritual, pois destina-se a celebrar, de forma mais ou
menos abrangente, o patrimônio simbólico do evan­
gelho.
Assim como na construção de uma frase (pelo menos
em português) a ordem e a ênfase das palavras alteram
o sentido do que se quer expressar, e o encadeamento
das frases no período também possui essa propriedade,
num "período litúrgico", tanto o conteúdo quanto a
forma são importantes para expressar com exatidão o
sentido que se quer salientar. Neste sentido, aprovei­
tando o exemplo da correspondência entre um texto
escrito e um "texto dramatizado" (o texto ritual, cele­
brado em culto), podemos dizer que uma liturgia
estática, repetida todo domingo, com variação apenas
dos hinos e do conteúdo da prédica, equivale a uma
correspondência pré-impressa, dessas que recebemos
dos bancos, do consórcio, em que se alteram apenas
algumas palavras, números e datas, mantendo-se
imutável tudo o mais.
É interessante notar que alguns cultos reproduzem
até mesmo os defeitos que encontramos naquelas cor­
respondências: há vezes em que o espaço destinado a
ser preenchido não comporta o número de letras ou
algarismos correspondentes à informação fornecida
naquele mês. Fica, então, o carimbo, ou a impressão do
computador por cima do texto pré-impresso, causando
Ritual: Parágrafo da Alma 73

mau aspecto e difícil compreensão do que se quer infor­


mar.
Outras vezes, o problema é de concordância: ao ser
elaborado, o impresso não contava com variãções de
gênero ou número na informação a ser colocada no
espaço previsto. Fica flagrante, assim, o improviso que
aceitamos como sendo "o preço a pagar pela
automação". Talvez, no entanto, o preço mais caro que
estejamos pagando por isso não esteja sendo percebido:
o preço da impessoalização, da massificação. Vamos,
aos poucos, acostumando-nos a ser chamados de
"Prezado(a) Senhor(a): Esperamos que esta o(a) encon­
tre bem etc." Como podem esperar alguma coisa se
sequer sabem se sou senhor ou senhora? Estas coisas,
no entanto, já não nos incomodam mais. Nem mesmo
quando nos transformamos em "Prezado(a) irmão(a)"
num culto de domingo. Na verdade, a expressão
"amado irmão" tem servido mais como subterfúgio do
que para dizer o que diz. Chamamos de "amado irmão"
àquele cujo nome não sabemos. Se sequer sabemos seu
nome, que valor semântico terá as palavras "amado" e
"irmão"? Bem, voltemos ao assunto.
A vida, em geral, é mais rica e dinâmica que um
impresso. Um culto "pré-impresso", portanto, há de
expressar pouca vida.
O conjunto simbólico desenvolvido pelo evangelho
é rico e extenso, porque envolve toda a nossa vida e
todas as nossas vidas, não podendo ser esgotado em
uma única celebração - mesmo que seja repetida mui­
tas vezes. Por este motivo, uma liturgia "fossilizada"
prejudica a celebração do evangelho como um rico pa­
trimônio simbólico, havendo-se que eleger,
forçosamente, ritos e significados da predileção dos
oficiantes que originalmente a conceberam, em detri-
74 Celebração do Evangelho

mento da riqueza e abrangência disponíveis e das ne­


cessidades concretas de expressão dos fiéis.
Um bom culto, assim, compara-se a um bom texto:
criativo, relevante (no sentido de que fala das coisas que
as pessoas estão vivendo, pensando, sofrendo, e ex­
pressa as que elas trouxeram para expressar), bem ar­
ticulado (com espaço para a participação espontânea),
daro no que quer dizer. Quanto mais conhecimento
tiver o pastor da "língua" em que vai "redigir", melhor
expressará a parcela de vida que quer celebrar.
Uma liturgia estagnada revela uma liderança limi­
tada semanticamente, seja na compreensão do ar­
cabouço simbólico do evangelho, seja na dificuldade de
"redação", que se refletirá na incapacidade de incorpo­
rar "frases" ou "períodos" de contribuição espontânea
dos participantes, por dificuldade de inseri-las com
segurança, propriedade e ordem na liturgia pro­
gramada.
Que pena! O que poderia, a cada encontro, transfor­
mar-se em uma carta de amor, manuscrita e perfumada
(com letra de mulher!-da "noiva"), apresenta-se como
um frio impresso, "xerocado" e impessoal.
.Vamos omitir-nos quanto ao rastreamento das
origens das formas litúrgicas. Essa pesquisa não seria
frutífera, pelo fato de perder-se no tempo, e também
porque nada mais é que uma adaptação de forma a um·
conteúdo novo: o evangelho. Sempre houve culto no
mundo; e este sempre teve uma forma que servisse à sua
expressão, comunicação e celebração. A forma do culto
cristão, portanto, nada mais é que um conjunto de ritos
ordenados, a fim de dar expressão ao conteúdo semân­
tico originário de sua mensagem
A questão relevante no momento é se temos permi­
tido em nossas igrejas uma expressão mais ou menos
Ritual: Parágrafo da Afmq 75

completa dos conteúdos do evangelho que pretende­


mos celebrar. Colocando de outro modo:
- O que pretende expressar cada elemento da
liturgia programada?
- A forma escolhida é aquela que melhor se
presta a essa expressão?
- Estão sendo celebradas aquelas categorias que
definem o homem impactado pela mensagem
(humildade, mansidão, serviço etc.)?
Por exemplo: a melhor maneira de se celebrar a
Santa Ceia será aquela cujo rito mais se assemelha ao
instituído pelo Senhor, pois Ele já tinha em vista o ritual
e no-lo legou, conteúdo e forma, mais ou menos pron­
tos.
Mais um exemplo: qual a melhor forma para cele­
brar o segmento "adoração" na ordem do culto? E a
celebração do conteúdo "comunhão"?
Nossas igrejas receberam, culturalmente, uma orien­
tação física de paredes e mobiliário destinada a atender
a um tipo especifico de relacionamento entre os partici­
pantes do culto. Se repararmos na disposição das cadei­
ras, por exemplo, verificaremos que estão arranjadas de
modo a que um fale e muitos ouçam. Muitas cadeiras
enfileiradas e voltadas para o púlpito. E na hora em que
- ainda que se tenha rompido com esse constrangi­
mento cultural ao silêncio - seria desejável a partici­
pação de alguém que não este ja no púlpito,
desanima-se, pois os que estão atrás não podem ouvir;
esse participante sempre estará de costas para alguém.
Surgem, então, os paliativos - que nunca destro­
nam o púlpito, ou seja, jamais rompem com a forma
culturalmente herdada: um microfone circulante, com
fios por cima do colo de todo mundo, e alguém para
carregá-lo de lá para cá, portador que se desespera
quando surge um diálogo entre duas pessoas em pontos
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distantes do salão: - "Pastor, é preciso evitar isso a todo


custo!" Ou então, tenta-se instaurar um hábito novo:
quem quiser falar tem que ir à frente de todos. E começa
o incômodo do desfile para chegar ao corredor, na ida e
na volta. Acaiba-se chegando à conclusão de que o mel­
hor mesmo é evitar a participação, a comunhão, a troca
de experiências, os testemunhos etc. no salão de culto.
Tudo porque alguém um dia teve a idéia de construir
uma igreja em forma de cruz!
Soluções? Elas aparecerão quando nos desamarrar­
mos dos constrangimentos culturais. Na realidlade são
eles que nos nmpedem de resolver nossos probJlemas.
Como verificaremos mais adiante, os artefatos são
resultados (e depois causa) de padrões de relaciona­
mentos sociaiis. No momento em que nossos relaciona­
mentos foriem genuinamente coerentes com o
evangelho que pretendemos celebrar, nossas cadeiras,
nossas paredes, nossos móveis se adaptarão, dentro do
possível.
É bem verdade que, ao alugar um imóvel, ou ao
assumir uma igreja antiga, nem sempre podemos des­
truir tudo para mudar sua configuração. Mas talvez seja
a oportunidade para aqueles que estão enfren1tando o
transe de uma construção. Que tal um salão em forma
circular, ou de anfiteatro?
Para enfrentar problemas como esses que vimos
levantando, ajparece como indispensável uma boa com-·
preensão, por parte da liderança da igreja, dos conjuntos
simbólicos a serem celebrados; e também que sejam
ensinados a toda a igreja. De outro modo, seria como
escrever um texto sem conhecimento do vocabulário a
ser utilizado: ou se limita muito a expressão da riqueza
de idéias e �entimentos que se quer transmitir, ou se
utilizam palavras erradas, produzindo enormes
"ruídos", distorções, mal-entendidos litúrgicos.
Ritual: Parágrafo da Alma 77

É fundamental que a igreja se desenvolva con­


tinuamente na compreensão dos significados que está
celebrando, para que não tenha uma visão mágica do
culto.
É esta, aliás, a percepção predominante da cristan­
dade como um todo; é esta a percepção que temos
herdado: que o simples freqüentar, estar presente, pas­
sar pelas diversas etapas programadas, tenha o poder
purificador, poder de produzir santidade, remissão, ou
de agradar a Deus.
Não é de hoje que as pessoas se apegam à forma
como capaz de produzir efeitos agradáveis a Deus. Em
Isaías (1:10-20) encontramos o Senhor convidando-nos
à razão (v.18), no sentido de que lhe apresentemos um
culto mais significante. Ele deplora o fato de o povo
haver reduzido o culto à forma, apenas. É necessário
que o próprio culto, a liturgia, esteja, a cada momento,
dizendo ao participante o que ele está fazendo ali. Mais
ainda, que corresponda ao que Deus espera que ele
esteja fazendo ali, em seu íntimo. Caso contrário, muitos
sairão satisfeitos por haverem "cumprido todos os
itens", como quem vence uma prova de obstáculos, sem,
no entanto, haverem cultuado a Deus.
Celebrar é escrever ou recriar um texto. Neste sen­
tido específico, "copiar" não é a melhor forma de" escre­
ver". Não há mérito nem atividade intelectual criativa
no simples repetir. A "cópia" não exige sequer a "pre­
sença" - no sentido de que eu posso estar "longe",
enquanto "participo" dessa Liturgia.
Saber o que se está dizendo é fundamental. O drama
"fala" um texto, dá vida a uma realidade sentida; a
celebração, pela dramatização, vive um conteúdo.
O pastor "bom de redação" não está preso a frases
feitas e a clichês, muito embora se saiba que a originali­
dade absoluta não é possível nem desejável. Isto porque
78 Celebração do Evangelho

o objeto da celebração permanece o mesmo, apesar de


sua riqueza.
Esse pastor pode alterar a forma do rito sem adul­
terá-lo. Pode receber contribuições, sem medo de irre­
verência e sem perder-se; tem liberdade, porque
conhece.
Que fazer para que nosso ritual litúrgico não seja um
mero espetáculo?
É preciso criatividade. E num certo sentido, a liturgia
tende a matar a criatividade. É necessário, portanto,
muito bom senso, para que sejam bem dosados os vários
elementos à disposição.

A Metáfora da Ópera

Na verdade, o culto a Deus não admite espectadores.


Todos são atores e devem saber o que estão "dizendo",
de forma literal ou dramática (ritual), porque o Deus do
culto sonda os corações.
No sentido de finalizar este capítulo, e tornar sua
compreensão um pouco mais abrangente, gostaria de
apresentar algumas reflexões sobre a complexidade da
liturgia e seus elementos. Trata-se de evitar que apenas
a metáfora do texto escrito prevaleça. Na verdade, ele
foi utilizado como a figura mais simples que tínhamos
à mão, para expressar a idéia de um sistema de signos
concatenados, destinados a produzir um efeito com- ·
plexo, todavia mais ou menos homogêneo e previsível.
A metáfora do texto escrito, no entanto, tem o
problema de não ser capaz de reproduzir adequada­
mente a riqueza dos recursos da alma humana. Fala
apenas de significação, sintaxe, sentido, correção ou
erro, etc. Diante disso, gostaríamos de apresentar urna
metáfora mais complexa, capaz de nos lançar de forma
mais profunda nas multifárias sutilezas do culto, ainda
Ritual: Parágrafo da Alma 79

que nem assim se possa pretender retratá-tu ou com­


preendê-lo com plenitude. Com certeza, no entanto,
haverá de nos permitir caminhar mais um pouco na
nossa tarefa de perguntar. Já será um bom ganho.
Refiro-me à metáfora da ópera.
Imagine, leitor um culto como sendo um espetáculo
d.e ópera. Talvez a expressão artística mais completa de
que o ser humano tenha sido capaz. Não se trata de
comparar essa forma de expressão com outras, corno o
teatro, o cinema, a oratória, ou mesmo a pintura. É
ociosa ressalva de que cada uma tem seu brilho próprio,
e certamente seu lugar ao sol, definitivamente. A idéia
de completude está apenas no fato de que a ópera
envolve, em sua complexidade a grande maioria dessas
formas de arte. Em seu seio há espaço para a dramatur­
gia, para o canto lírico, para a expressão pictórica,
através dos cenários e efeitos especiais (cinematográfi­
cos, hoje em dia), para música instrumental, na forma
de solos, duos, quartetos, e sinfônica. Quem entender
bem do ramo que me ajude.
Diríamos que a ópera está para o teatro, ou para a
música de câmera, assim corno o órgão está para o
piano. Isso tudo sem desprezar um elemento que o
cinema jamais poderá reivindicar: o calor das relações
de troca com o público, que no caso se apresenta na
forma quente e estimulante de platéia.
O culto se assemelha, do ponto de vista cultural,
a um espetáculo de ópera, onde urna inefável cadeia
de elementos se conjugam na expressão complexa
de almas que se congregam para adorar. Gostaria
de tentar pinçar alguns desses elementos para
comentá-los, a partir de nossos pressupostos, dei­
xando a porta entreaberta para quem desejar
prosseguir.
80 Celebração do Evangelho

O Clima de Espetáculo

Um dos elementos menos palpáveis, todavia mais


buscados em qualquer apresentação pública dessa
natureza é um clima favorável. Von Carajan, o famoso
maestro recém-falecido, ao se propor a gravar grandes
peças sinfônicas pela técnica digital, se deu conta, rapi­
damente, que todos os recursos de gravação, estúdio, e
edição eram infrutíferos para produzir essa qualidade
especial de um grande espetáculo: aquela noite, aquele
auditório especial, aquele momento mágico. Passou a
exigir que as gravações fossem feitas a partir de
espetáculos reais, com platéias reais.
Como compreender esse fenômeno? Seria possível
dissecá-lo? Reproduzí-lo? Por que alguns espetáculos
são tão exuberantes, e outros parecem ser feitos por
máquinas? Aí estão questões difíceis.
Vale a pena mencionar, no entanto, que algo pare­
cido acontece em nossos cultos. E não está ligado, ape­
nas ao preparo do sermão, ao ensaio do coral, ao preparo
dos celebrantes. Está ligado a um clima especial, ade­
quado ao que se vai fazer. Uma predisposição para o
que se pretende naquela hora e naquele lugar, compar­
tilhada por um grande grupo.
É possível que haja ligação com fatos e acontecimen­
tos recentes, seja na igreja, seja no país. Sejam bons ou
maus, eles são capazes de desencadear uma uniformi­
dade de sentimentos e de predisposições. É possível
também que haja ligação com o ambiente criado no local
da celebração. Percebemos que há cultos que começam
com improvisações, gente conversando animadamente
no templo, já iniciados os trabalhos, música inade­
quada, e tantos outros fatores que podem gerar o clima
indesejado.
Nesse sentido, o domínio da linguagem musical
Ritual: Parógrofo da Alma 81

pode muito ajudar, se trabalhada em harmonia com o


todo litúrgico. A música tem o poder de nos agitar ou
acalmar; predispor ou indispor para dada tarefa ou
atitude. Não pretendo me alongar na matéria, mas o
alerta é o de sempre. A completa ignorância da lin­
guagem do silêncio, da música, da harmonia musical,
do ritmo, da rima e de tantos outros recursos do gênero,
é capaz de fazer com que um culto de ações de graças
comece com a leitura do salmo 51 e o cântico de
"Comigo Habita".

Platéia e Artistas

Vale a pena considerar, também, ao ensejo desta


metáfora, a questão de quem é quem nesse momento.
Refiro-me às definições claras de papéis. Quem são os
artistas e quem é a platéia? Os espectadores?
No caso da ópera não é muito difícil de dizer: aquele
que tem o bilhete de entrada pago é platéia. O resto, ou
trabalha na casa1 ou é artista.
Talvez se pudesse, se fosse útil, discutir a figura do
regente da orquestra. Será ele artista ou platéia? Essa
discussão, não prosperaria, a não ser, talvez, no mo­
mento da transposição para o ambiente de culto.
Sim, e no culto, quem é quem? Quem pagou o bi­
lhete, quem é apoio logístico (funcionários da casa,
como lanterninhas, bastidores, sonoplastas etc.) e quem
é apresentador?
Se considerarmos o momento de culto, isolado da
dinâmica administrativa da igreja, diremos que só há
dois papéis: o do artista e o da platéia. O artista é aquele
que cultua o Senhor. E platéia é o próprio Senhor. O resto
é mobilia. Mesmo que de carne e osso. Não há platéia
humana na verdadeira adoração. Todos somos
chamados a ser artistas.
82 Celebração do Evangelho

Muitas vezes ouvimos pessoas dizerem que não


gostaram do culto, que vão procurar coisa melhor, que
não gostam de assistir a tal ou qual pregador, etc. Já
temos dito que o fenômeno da celebração certamente
tem um efeifo reflexivo, ou seja, comunicamos coisas
p� nós mesmos. As nossas expressões se voltam sobre
nós. Nesse sentido restrito, somos platéia. No exato
sentido em que um violinista é platéia de si mesmo e
pode não gostar de tal ou qual apresentação. Tendo
senso crítico, ele é capaz de tal avaliação. No meu caso,
larguei o violino definitivamente, quando fui capaz de
me ouvir numa fita gravada.
Ocorre engano, no entanto, quando subimos ao tem­
plo para assistir ao espetáculo. A postura está equivo­
cada, no meu modo de entender. Tudo tem que ser
montado, ensaiado, produzido, no sentido de que nosso
público exclusivo e cativo se agrade da nossa perfor­
mance. E essa preparação não é somente de forma, como
já foi visto. Nosso "público" sonda os corações.
Imagino que o Senhor vai à nossa apresentação
como um pai assiste à audição da banda da escola, em
que seus filhos tocam. Com toda a indulgência e com­
preensão. Com coração mole de pai. Mas certamente ele
saberá se essas crianças lhe estão oferecendo o gue têm
de melhor ou sobras e restos. Saberá, portanto, relevar
com compreensão todos os erros dos filhos. Mas não se
deixará enganar com subterfúgios e leviandades.

A Harmonia

Outro elemento que se deve considerar, ao comparar


o culto à ópera, é o elemento da harmonia. Conquanto
alguns artistas possam ser de calibre internacional, ali,
terão que trabalhar em grupo. Não poderão sobressair­
se, e dar asas aos floreios de um solista. A idéia de
Ritual: Parágrafo da Alma 83

conjunto, de harmonia entre as partes é fundamental,


do ponto de vista da platéia.
Imagine um solista que resolva aparecer, e mostrar
todo o seu "valor", em meio ao espetáculo. Acabará
vaiado pelo público, por melhor que seja sua técnica
pessoal.
Conjunto, afinação, sincronismo, são coisas que se
conseguem com muito ensaio, com muita proximidade,
muita convivência e identificação. Que figura interes­
sante para nossas transposições! Imagine o irmãozinho
que vai ao culto imaginando fazer uma apresentação
solitária: - não preciso dos outros para adorar ao Se­
nhor. Eu falo, e ele me ouve. Ele fala e eu o ouço. Isso
basta.
Imagino que nosso "público" se agrade mais de um
singelo violão bem afinado no louvor que toda uma
banda em que os integrantes não são capazes de ensaiar,
de trabalhar juntos, separados por outros interesses,
senão por rixas. A propósito, uma pergunta. O que será
que o chama mais a atenção do Senhor: uma orquestra
de instrumentos ou uma orquestra de almas? Como
será, aos seus olhos, a harmonia produzida por corações
afinados?
De uma coisa tenho certeza: se depender de uma
platéia quente, incentivadora, atenta, silenciosa, no sen­
tido do interesse, e estimulante para os artistas, não
haverá melhor público que o nosso. Um público que
chega ao ponto de intervir na apresentação, estimu­
lando a cada um, no sentido de dar o máximo de si. As
platéias de óperas não entendem nada de Espírito
Santo.

A Diversidade

Resistindo à tentação inócua de tentar esgotar o


84 Celebração do Evangelho

tema, finalizamos com a idéia da riqueza de mani­


festações numa produção de ópera. Parece que há
espaço para todo mundo, para todo tipo de sensibili­
dade, para cada habilidade artística. O potencial de
catástrofe é grande, por outro lado. Coordenar toda essa
diversidade está na base da glória e desgraça das pro­
duções do gênero.
No culto, semelhantemente, há espaço para toda a
diversidade da alma humana. Há o momento do co­
ração, há o momento da alma, o da personalidade e o
da consciência. Há espaço para todos os dons e aptidões.
É necessário, no entanto, um maestro. É necessário que
essa riqueza se conjugue num todo belo e agradável.
Tarefa para o próprio "público-maestro" e, certamente,
para o diretor da peça.

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