Você está na página 1de 8

O enterro de Ricardo III, Parte II

Segundo o estudioso do século XVI Polydore Virgil, da primeira vez, Ricardo foi
enterrado sem «solenidade fúnebre». Da segunda vez, o enterro realizou-se com
pompa e circunstância. Os procedimentos legais decorreram entre os dias 22 e
27 de março de 2015, e um público curioso fez filas durante horas para olhar bo­
quiaberto para o seu caixão - construído pelo seu descendente Michael Ibsen,
e encerrado num bonito sepulcro de pedra de Swaledale, com um profundo
crucifixo esculpido. O arcebispo de Canterbury marcou presença. a antevisão
da sua versão de Shakespeare em 2016, Benedict Cumberbatch leu um poema
da autoria da poeta laureada e nomeada pela família real Carol Ann Duffy, e
pese embora o facto de os altos postos da monarquia não terem estado presen­
tes, a nora da rainha Sofia, condessa de Wessex, esteve, presumivelmente para
garantir que ele não regressaria uma terceira vez para reclamar o trono a uma
linhagem de Tudors. Esta é uma história fantástica e incomparável. Identificar
uma pessoa com séculos de história exige competências de investigação do mais
alto calibre. A sua realeza foi fundamental para se conseguir determinar os seus
descendentes vivos, pois essas são as pessoas cujas árvores genealógicas são as
mais conhecidas. Ao fazer isto, a possível ilegitimidade do reinado de todos os
monarcas britânicos ulteriores veio à baila, mas suspeito que esta contestação
não abale as fundações do Palácio de Buckingham.
Alguns dos intervenientes do ato da vida" de Ricardo no século XXI
continuam a debater o seu caráter e as evidências, bem como o seu papel
na modelação da Grã-Bretanha moderna. Estes debates não terão provavel­
mente um vencedor, mas graças ao ADN, pelo menos sabemos agora que é
ele. Agora, aquele malvado rei usurpador, aquele estafermo, repousa no seu
derradeiro sepulcro, na Catedral de Leicester, e fez a sua última

Saída.

iii: O rei morreu ...


Madrid; 1 de novembro de 1700

. . . Mas não tem sucessor. Carlos II, último membro da dinastia dos
Habsburgos a governar Espanha, morreu cinco dias antes de completar 39
anos. Apesar de se ter casado duas vezes, não deixou filhos nem herdeiros.

153
A sua incapacidade para gerar um filho que prosseguisse a governação
da Casa dos Habsburgos era apenas um entre muitos problemas clínicos
de que Carlos padeceu durante a sua lastimável vida. Tinha uma profunda
deficiência, sofria de epilepsia e era incompetente em termos mentais. Só
aprendeu a andar aos quatro anos e a falar aos oito e, mesmo então, a sua
língua constantemente inchada, que lhe enchia a boca, tornava as suas pa­
lavras ilógicas e o seu discurso ininteligível.
Para o fim da sua vida perturbada, tudo piorou, tornando-se o seu cor­
po enfermo e sendo acometido de ataques convulsivos. Além disso, tor­
nou-se cada vez mais esquisito, atacado por alucinações e, pedido bizarro,
exigindo a exumação dos seus antepassados para poder contemplar os seus
cadáveres em decomposição. Mesmo na morte, a peculiaridade da sua vida
enfeitiçada persistiu, tendo o delegado de saúde descrito um manancial de
deformidades internas:

«o seu coração era do tamanho de um grão de pimen­


ta; tinha os pulmões carcomidos; os intestinos podres e
gangrenados; tinha um só testículo, negro como o car­
vão, e a cabeça cheia de água.»

De facto, não sou patologista, mas quer-me parecer que isto pode
ser exagerado. Não obstante, Carlos foi inquestionavelmente-um homem
doente em qualquer período da sua ocupação divina na Terra, física e men­
talmente. Porém, sendo um monarca criança, foram-lhe dadas escusas es­
peciais, tais como não ir à escola e ter de tomar banho. Aos três anos, o seu
pai morreu, e a sua mãe, Mariana, assumiu o cargo de regente. Manteve-se
no trono mesmo depois de ele completar os 14 anos - a idade a que os
espanhóis permitiam o reinado de um só monarca -, defendendo que,
embora fisicamente presente, em termos mentais ele era Rex in Absentia.
Durante todo o seu ineficaz reinado, Espanha atravessou dificuldades, e o
rei louco tresandava. Insultuosamente, os súbditos nominalmente sob a sua
supremacia divina deram-lhe um apelido: Carlos el Hechizado - Carlos, o
Enfeitiçado. Morrer aos 39 anos no século x vn não revelava uma vida pro­
priamente curta, mas sobreviver tanto tempo padecendo de tantos proble­
mas graves era extremamente invulgar. O monarca suportou os seus anos
de agonia apaparicado e amado, calvo, mas com peruca, aleijado e epilético,
com a serventia e os cuidados que apenas o poder supremo pode conceder.
Mas foi tudo em vão.

154
O seu feitiço deixou-o sem filhos. Aos 18 anos, casou-se com Maria
Luísa de Orleães, que viria a morrer uma década depois, e voltou a casar­
-se aos 29 anos com Maria Ana de Neuburg. A sua primeira esposa alu­
diu em privado a ejaculação precoce, e a segunda a impotência. Estes
sintomas, associados a um leque de deficiências tão profundas e nume­
rosas, não podem ser atribuídos a uma única doença, mesmo postuma­
mente. Carlos II foi o último regente dos Habsburgos, uma família de
incomparável poder e riqueza da qual saíra todo o Imperador Romano
Sagrado durante 200 anos até à sua morte em 1700, tendo governado a
maior porção do continente europeu durante esse período. Ostentavam o
inimitável lábio dos Habsburgos - prognatismo mandibular, conforme é
designado pela medicina moderna - que, literalmente, era saliente; um
sinal de poder divino transmitido de pai para filho e através de muitas
filhas e mães durante gerações.
O problema foi precisamente esse. O tenaz apego dos Habsburgos ao
poder significou que deixaram de procriar fora da família durante mais
de um século antes do nascimento de Carlos. O seu pai foi Filipe IV de
Espanha (ostenta com brio um queixo dos Habsburgos no seu retrato
exposto na Dulwich Picture Gallery no Sudeste de Londres) e a sua mãe
Mariana de Áustria. A mãe dela foi Maria Ana de Espanha, que era irmã
de Filipe (consultar a página seguinte). Assim, a avó materna de Carlos
era sua tia paterna. A mãe de Filipe e de Maria-Ana foi Margarida de
Áustria, o que significa que era simultaneamente avó e bisavó de Carlos.
Olhando para a genealogia, constatamos inequivocamente espirais fecha­
das, quando deveriam ser ramificações abertas. Noutra espiral, Carlos II
de Áustria foi simultaneamente bisavô e trisavô. Estes casamentos eram
amiúde intergeracionais, sendo frequente um tio casar-se com uma sobri­
nha, pelo que Ana de Habsburgo (1528-90) foi tia-bisavó de Carlos, sua
tia-trisavó, tataravó e pentavó duas vezes. Seis gerações deveriam incluir
62 pessoas diferentes, como é o caso da minha, e da nossa atual rainha. A
de Carlos II tem 32. Oito gerações deveriam incluir 254 pessoas diferen­
tes. A de Carlos II tem 82.

155
Árvore genealógica de Carlos II de Espanha. A família dos
Habsburgos deixou de procriar fora da família mais de um sé­
culo antes do nascimento de Carlos II, em 1661. Seis gerações
deveriam incluir 62 antepassados diferentes; a de Carlos II tem
32. Oito gerações deveriam incluir 254 antepassados diferentes;
a de Carlos II tem 82. São números que poderíamos considerar
como «subótimos».

156
Perdoe-me outra vez, porque toda esta dinastia se baseia no casamento
de Filipe, o Belo com Joana de Castela em 1496. O caminho mais curto des­
de Carlos até Joana engloba cinco gerações, o que acontece duas vezes, mas
ela também dista seis gerações dele através de cinco caminhos, e sete duas
vezes. Durante essas três gerações, a quinta, a sexta e a sétima, deveríamos
em princípio ter 112 mulheres. Joana de Castela ocupou sozinha nove des­
sas posições ao longo de três gerações, o que não é desejável.
Joana também tinha um apelido. Nos seus últimos anos, padeceu de
algum tipo de doença mental, sendo que diagnósticos modernos especula­
tivos incluíram melancolia, depressão, psicose e esquizofrenia. Alguns his­
toriadores sugeriram hereditariedade: a sua avó Isabel de Portugal apresen­
tou os mesmos sintomas. É sempre difícil confirmar este tipo de medicina
póstuma quando não existem restos mortais nem ADN, e as suposições
são muitas. Mas naquele tempo os seus súbditos não estavam muito preo­
cupados com um diagnóstico clínico rigoroso e apelidaram-na de Juana la
Loca - Joana, a Louca.
Conforme vimos nas secções anteriores, as árvores genealógicas têm
um aspeto muito menos arbóreo do que seria de esperar e, numa linha
temporal suficientemente longa, somos todos parentes. Porém, é expectá­
vel que as nossas ramificações se estendam para os lados e para cima sem
quaisquer espirais. A árvore dos Habsburgos que termina com Carlos II é
um trágico matagal e condenada a um «colapso do pedigree».
Na realidade, todos os nossos pedigrees colapsarão com o tempo. A
história de Carlos Magno, de que dei conta mais atrás neste capítulo, é uma
descrição do colapso do pedigree de todos os europeus sobre todas as pes­
soas da Europa medieval. Porém, o de Carlos colapsa sobre si mesmo num
plano temporal dolorosamente mais curto. Na sua expressão mais simples,
a endogamia consiste na incapacidade para juntar variação genética a uma
criança devido ao acasalamento com algum familiar próximo. Você parti­
lha metade dos seus genes com cada um dos seus progenitores e, por con­
seguinte, um quarto com cada um dos seus avós. Por muito abominável que
seja (bem como ilícito e imoral), se um pai e uma filha (ou uma mãe e um
filho) se reproduzissem, o descendente continuaria a ter quatro avós, mas
um deles seria também um progenitor, pelo que esse indivíduo não contri­
buiria com novos genes. O filho de dois meios-irmãos só tem três avós. O
filho de dois primos direitos terá quatro avós, mas apenas seis bisavós.
A endogamia mais próxima que pode ser gerida num único acasala­
mento é entre um irmão e uma irmã - trata-se do colapso de pedigree

157
üirnmo numa única geração. Mais próximo do que isso só clones (os gé­
;neo não idênticos são geneticamente equivalentes a irmão e irmã e, como
e óbvio, os gémeos idênticos não podem ter sexo reprodutivo). Têm exata­
mente os mesmos pais e avós, pelo que os genes do seu filho são extraídos
dos mesmos pools, não sendo conferidos novos genes durante pelo menos
duas gerações. Todos temos duas cópias de cada gene, um alelo - confor­
me se designam as variantes - em cada cromossoma, um de cada progeni­
tor. Este sistema é como uma apólice de seguro, e existe para assegurar que
um bom alelo disfarce um deformado.
No caso do filho de um irmão e uma irmã, em média, um quarto do
total dos genomas de todos os seus genes será o mesmo em ambos os pares
de cromossomas, um a vinte e três. São elevadas as probabilidades de al­
guns destes serem alelos recessivamente perigosos e, numa criança gerada
fora do seio familiar, seriam disfarçados pelo influxo de versões diferentes.
A medida designa-se coeficiente de endogamia, com a letra F,' e o filho de
um irmão e uma irmã teria um valor F de 0,25.
Em 2009, Gonzalo Alvarez e a sua equipa de geneticistas espanhóis
recuaram 16 gerações a partir de Carlos II, e integraram mais de 3000 indi­
víduos para calcular este valor F. O resultado a que chegaram foi de 0,254.
Graças a gerações atrás de gerações de relações entre tios e sobrinhas, ou
entre primos direitos, Carlos tinha cumulativamente mais consanguinida­
de do que um descendente de irmãos. Apesar de a árvore genealógica ser
inequivocamente catastrófica, foi a primeira vez que se considerou o co­
lapso dos Habsburgos do ponto de vista genético. Calculou-se que Filipe I
fosse relativamente normal (ainda que elevado) com 0,02, pelo que durante
os 200 anos que o separaram de Carlos II, de acordo com a medida-padrão,
a sua família tornara-se dez vezes mais consanguínea. Filipe III também
apresentou um valor elevado, F = 0,218, pois era, à semelhança de Carlos,
filho de uma relação entre tio e sobrinha. Alvarez demonstrou que a con­
sanguinidade já vinha de trás, muito antes das cinco ou seis gerações que
começaram com Filipe ou Joana, a Louca. Quando se adicionam os níveis
de endogamia a cada geração, os valores só começam a nivelar para Carlos
II e Filipe III ao fim de dez gerações, o que significa que níveis de endo­
gamia menos óbvios começavam também a escorrer lentamente para esta
linhagem condenada centenas de anos antes.
· O «F» refere-se a «fitness» (adequação), não a outras associações que possam ser feitas em
relação ao se.xo. A adequação é uma medida essencial na evolução e quantifica o sucesso repro­
dutivo, ou seja, quantos descendentes, em média, um organismo terá numa população ou, mais
rigorosamente, o contributo que um indivíduo dá para o pool de genes da geração seguinte.

158
Além disso, verifica-se também uma trágica taxa de mortalidade entre
os filhos deste clã. A árvore genealógica, apesar de quase cómica na sua
perversão, não mostra a mortalidade infantil. Entre 1527 (quando nasceu
Filipe II) e o nascimento de Carlos em 1661, os Habsburgos tiveram 34 be­
bés. Dezassete deles morreram antes de atingirem os dez anos, e dez deles
antes de um ano. Nessa época, a taxa de mortalidade infantil nos súbditos
espanhóis - incluindo aldeões, que não tinham acesso a tratamento médi­
co nem os privilégios dos abastados - rondava um em cinco.
Isto teve um efeito cumulativo na dinastia. Toda a esperança de suces­
são caiu sobre os ombros de Carlos, com os seus genitais mirrados, porque
tantos dos outros potenciais herdeiros tinham morrido ainda crianças. Não
é possível adivinhar quais teriam sido os seus problemas médicos, tal como
não o é no caso de Carlos, tais eram os graves défices dos seus genes. De
todo o ADN de Carlos, mais de um quarto era idêntico a duas cópias. A
existência de uma cópia de um gene de doença recessiva será disfarçada por
uma cópia normal; duas cópias significam que a doença é revelada. Neste
caso, foram expostas, e não ocultadas, dezenas de problemas recessivos.
Alvarez sugere duas perturbações que podem ter emergido do seu ADN .
O PROPl é um gene que está ativo na glândula pituitária, uma parte do
cérebro, na sua base, semelhante a uma ervilha. Trata-se de um órgão que
produz uma série de hormonas essenciais para o crescimento e várias ou­
tras funções do organismo. A deficiência da hormona pituitária combinada
ocorre quando existem duas cópias de um PROPl com mutação, que inclui
uma panóplia de sintomas, incluindo fraqueza muscular, infertilidade, im­
potência e uma estranha apatia em relação ao meio envolvente. Propõem
uma segunda doença recessiva, acidose tubular renal distal, causada por
mutações em dois genes, que inclui fraqueza muscular, raquitismo e uma
cabeça grande em relação ao corpo.
Todas estas condições batem certo com a vida enfeitiçada de Carlos,
mas Alvarez reitera que não passam de especulações. É uma certeza que a
consanguinidade pode abrir a porta a condições recessivas específicas como
estas, mas existem dezenas de outras coisas que podem estar na sua origem,
e a solidez genética global - e, por conseguinte, a saúde efetiva - desse
indivíduo seria terrivelmente caótica. Ironicamente, foi a genética do século
xvu que anulou a sua patológica sede de poder. Quanto mais apertaram
as rédeas do poder, mais depressa cairia a Casa dos Habsburgos. Carlos foi
amaldiçoado pelos seus pais, e pelos pais deles, e tios e tias, sendo a sua vida
enfeitiçada pela ganância. Carlos II de Espanha - Carlos el Hechizado - é

159
um exemplo extremo do que acontece quando as relações são mantidas en­
tre familiares próximos.

A importância de não se serfruto de endogamia

A endogamia é um componente fundamental da ciência. Sem ela, a ge­


nética não existiria. Os cruzamentos das ervilhas de Mendel foram retro­
cruzamentos inteligentemente concebidos de maneira que o mesmo traço
pudesse ser forçado em gerações por forma a conseguir calcular as propor­
ções de cada traço. O rato é o organismo-modelo de eleição dos geneticistas
humanos (que apreciam também a mosca-da-fruta, bem como a ratazana,
os nemátodos e o peixe-zebra). Isto é apenas parcialmente intencional. Os
primeiros geneticistas a realizar experiências com ratos obtiveram os ani­
mais de criadores rivais em finais do século x1x na América. Esses apre­
ciadores de ratos competiam em exibições, semelhantes à Crufts e a outras
exposições caninas da atualidade, e empenhavam-se na produção de ratos
com pelagens cada vez mais coloridas. Para se manterem em competição
ano após ano, os melhores eram destinados à reprodução para assim se
manterem os melhores traços.
Tal como saberá qualquer pessoa que tenha cães, os pedigrees têm to­
dos os tipos de problemas, mais uma vez em consequência-da endogamia.
A minha família tem retrievers de pelo preto, e a nossa primeira cadela
tinha uma insuficiência cardíaca congénita, um sopro, que a acompanhou
durante a sua vida de treze anos sem manifestação de sintomas. Os seus
irmãos não tiveram a mesma sorte e apresentaram um vasto leque de pro­
blemas. Até hoje, dedicam-se grandes esforços a garantir que a genética
dos ratos que utilizamos em todas as experiências tem consanguinidade
suficiente para reduzir qualquer variação natural que possa enviesar os re­
sultados, mas não tanto que os faça apresentar deficiências.
Darwin preocupava-se com o facto de a sua amada esposa Emma ser
sua prima direita.' Receava que essa proximidade acarretasse problemas
de saúde desnecessários. Tiveram dez filhos, mas três deles morreram an­
tes de completarem os onze anos. Temendo pela saúde de toda a família,
escreveu:

Os casamentos entre primos em primeiro e segundo grau são considerados consanguíneos


e representados nas árvores genealógicas por uma linha dupla horizontal,.

160

Você também pode gostar