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Marcelo Veras A Loucura Entre Nc3b3s
Marcelo Veras A Loucura Entre Nc3b3s
Rio de Janeiro
2009
ii
Rio de Janeiro
2009
iii
FICHA CATALOGRÁFICA
Aprovada em
________________________________________
Presidente, Prof. Vera Lucia SilvaLopes Besset, UFRJ
________________________________________
Prof. Aurea Maria Lovenkron, UFRJ
________________________________________
Prof. Ruth Helena Pinto Cohen, UFRJ
________________________________________
Prof. Marcus André Vieira, PUC-RJ
________________________________________
Prof. Ilka Franco Ferrari, PUC-MG
v
AGRADECIMENTOS
À Vera Besset, cujo feliz encontro me fez dar um passo e atravessar o rio, pela amizade e
sorriso largo sem nunca deixar adormecer a orientação segura e precisa, fundamental para
a escrita da tese;
Ao Programa de Pós-Graduação em Psicologia da UFRJ, que criou as condições para que
essa tese pudesse se inscrever na prestigiosa série de trabalhos por ele gerados;
À Universidade Federal da Bahia pelo apoio e liberação na fase final dessa tese;
À Aurea Lovenkron, por me estimular na qualificação a correr o risco e ser um
antropólogo em marte;
A Marcus André Vieira pelos conselhos e orientações na qualificação e pela amizade de
sempre;
À Ilka Ferrari e Ruth Cohen, que antes mesmo da aceitarem estar na banca já eram
interlocutoras dessa tese;
A Stéphane Malysse, pela autorização para utilização das fotos de sua pesquisa;
A André Furtado, fiel companheiro durante toda a gestão do Juliano Moreira e que
continuou o delírio de administrar o impossível;
A Estênio El-Bayni por ter levado adiante nosso projeto do Memorial Juliano Moreira,
fundamental para esta e outras pesquisas futuras;
Às colegas Graciela, Maria de Fátima, Juliara, Bruna, Marina, Aline, Juliana e Gabriela
por tantas trocas importantes nesses anos de convívio em sala de aula;
A Marie-Hélène Brousse e Silvia Tendlarz pelas trocas e sugestões na discussão dos
casos clínicos;
A Analícea Calmon, Sonia Vicente, Tania Abreu, Marcela Antelo e Iordan Gurgel, pela
disponibilidade e encorajamento em diversos momentos durante a tese;
A Agelice e Sammy, pelo apoio logístico no Rio e pela acolhida sempre de braços abertos
no chateau da Urca;
vii
A meus pais Lúcia e Mário, à minha sogra Lucinha por me permitir ser importante para
eles;
A Juliana, cujo amadurecimento intelectual a transformou em uma colabora formal dessa
tese;
A Pilar, pela companhia e carinho em momentos difíceis, à Cecília por cuidar bem de
Mia e ter aprendido a andar de bicicleta enquanto o pai estava ausente;
À Patrícia, sem você não teria valido a pena.
viii
Jacques-Alain Miller
ix
RESUMO
VERAS, Marcelo Frederico Augusto dos Sanos. A LOUCURA ENTRE NÓS: A teoria
lacaniana das psicoses e a saúde mental. Rio de Janeiro, 2009. Tese de Doutorado
apresentada ao Programa de Pós-graduação em Psicologia. Universidade Federal do Rio
de Janeiro, Rio de Janeiro, 2009
ABSTRACT
VERAS, Marcelo Frederico Augusto dos Santos. THE MADNESS BETWEN KNOTS:
The Lacan’s theory of psychosis and mental health. Rio de Janeiro, 2009. Tese de
Doutorado apresentada ao Programa de Pós-graduação em Psicologia. Universidade
Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2009
The research was motivated by the experience of management in the Juliano Moreira
Psychiatric Hospital in Salvador, Bahia. It was found that the conditions of
hospitalization were degrading and in the institution any operation has been not
recognized in order to recover the subjectivity. From that observations, surges the
assumption that psychoanalysis is a discipline that deals with the particular and not with
the universal mental health. In addition, psychoanalysis would have some relevance in
the search for strategies to redesign a clinic that prioritize the subjectivity in the
institution. The research was developed in three axes. The first axe comprehends the
survey of the experience field, as mental health had been historically elaborated in Brazil.
Additionaly in this axe, it was investigated the impact of the contemporaniety in this
field. It was found that in mental health it is growing the influence of the discourse which
seeks to make the study of mental health scientific The establishment of this kind of
discourse has the cost of erasing the subjectivity condition. The second strand of this
research was about the Lacanian theory of psychosis. The study aim to show that
although there is a single theory of psychosis in Lacan, it can be scanned in at least three
major steps: the Seminars of psychosis, the anxiety and the sinthome. A new
investigation was performed using the scheme L of Lacan, with the aim of demonstrating
several relationships of the alterity presents in the theory of psychosis. In addition, the
study aim to show the effects of Miller`s comments at the late 90`, which says that the
enjoyment in the L schema is not located exclusively in the imaginary axis, but also in
the symbolic. This Miller`s assertion has a new key for the interpretation of the subject's
relationship with the psychotic social relationships. Finally, the third axis of our work
aimed to analyze the impact of Lacan's theory about the mental health field. In this axe, it
was initially investigated the presence of psychoanalysis in the psychiatric hospital, his
meetings and misunderstandings. At the end, using the study of three clinical cases of
psychosis, it was possible to suggest that the psychotic can be part of the social
relationships. The study confirmed the hypothesis that there is a specific space for
psychoanalysis in mental health that aims to recover the subjectivity of the particular
invention of the sinthome, which Lacan has elaborated in the Seminar XXIII. This work
reinforces Lacan`s proposition that the sinthome is a connection between the enjoyment
of private patients and public language of the social relationships.
LISTA DE FIGURAS
01 – Pintura 01 de Escher..............................................................................................127
02 – Nó Borromeu e NP................................................................................................167
03 – Foto 1 do Solar da Boa Vista, casa do Poeta Castro Alves (BA)..........................183
04 – Foto 2 da nova sede do Hospital Juliano Moreira em 1981 (BA).........................186
05 – Foto 3 de Leonidia Fraga.......................................................................................191
06 – Foto 4 de Malysse..................................................................................................196
07 – Foto 5 de Malysse..................................................................................................197
08 – Foto 6 de Malysse..................................................................................................197
09 – Foto 7 de Malysse..................................................................................................198
10 – Foto 8 de Malysse..................................................................................................198
11 – Foto 9 de Malysse..................................................................................................199
12 – Desenho 1 de Ana..................................................................................................247
13 – Desenho 2 de Ana..................................................................................................248
14 – Desenho 3 de Ana .................................................................................................249
xii
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO .................................................................................................................. 1
Capítulo I – CONSIDERAÇÕES SOBRE O CAMPO DA SAÚDE MENTAL............ 133
I. 1 – Saúde mental no Brasil – a origem ...................................................................... 18
I. 2 – O campo e as barricadas ...................................................................................... 22
I. 2.1 – Foucault e a desrazão .................................................................................. 222
I. 2.2 - Os equívocos do Anti-Édipo........................................................................ 311
I. 2.3 – Basaglia, a derrota do hospital psiquiátrico ................................................ 377
Capítulo II – O NORMAL É O PATOLÓGICO ............................................................ 422
II. 1 – A Danação dos anormais .................................................................................. 466
II. 1.1 – O Outro e seus restos ................................................................................... 48
II. 1. 2 – Dentro e fora do laço social ...................................................................... 522
II. 1. 3 – O sujeito perdido nas normas.................................................................... 611
II. 2 – Psicanálise e saúde mental, encontros e desencontros ....................................... 68
II. 2. 1 - O objeto a e a burocracia............................................................................. 75
II. 2. 2 – O campo fora da lei..................................................................................... 79
Capítulo III – DIÁLOGOS E MONÓLOGOS NAS PSICOSES ................................... 877
III. 1 – O problema da alteridade nas psicoses.............................................................. 90
III. 2 – A solidão do gozo............................................................................................ 955
III. 3 – Algumas referências filosóficas para compreensão de uma clínica.............. 1100
III. 4 – Moldando o objeto a...................................................................................... 1200
Capítulo IV – PSICOSES LACANIANAS .................................................................... 125
IV. 1 – O esquema L ................................................................................................... 131
IV. 1.1 – A questão do tempo.................................................................................. 138
IV. 1.2 – O esquema na clínica................................................................................ 143
IV. 2 – A clínica da extração do objeto....................................................................... 154
IV. 3 – Clínica do sinthoma, mais além da saúde mental ........................................... 164
IV. 3. 1 – A virada do sinthoma .............................................................................. 166
xiii
INTRODUÇÃO
2
Dolores
Às vezes
A dor
Não tem alívio
É só delírio
Lilian Furtado
em que a psicanálise ainda pode ser vista por muitos como intrusa e inoportuna. É
verdade que, em sua prática clínica, o psicanalista encontra a loucura. Há muito que o
convite lacaniano para não recuar diante das psicoses é de conhecimento público.
psicanálise não faz parte, apesar de termos cada vez mais psicanalistas trabalhando em
hospitais psiquiátricos, CAPS’s, ambulatórios, escolas, etc. Enfim, eles estão cada vez
mais presentes, embora sua função não seja chancelada por nenhuma instituição,
Assim, pelo fato de não poder ser contado como um elemento do conjunto de
exceção. Esse foi o ponto de partida para nossa pesquisa, há uma relação de alteridade
multidisciplinar. Ainda assim, a presença da psicanálise é cada vez maior. Não é raro
3
tomado pela discussão psicanalítica, onde todos seus membros possuam forte
transferência com a psicanálise. Contudo, ela é invisível para os gestores que criaram e
Essa constatação nos fará interrogar o tratamento a ser dado a essa condição de
campo da saúde mental está cada vez mais submetido a regulamentações e normatizações
regulamentação da profissão do analista, assim ele poderia ser contado como mais um no
(Meyer, 2007).
2000, iniciamos uma gestão de sete anos do hospital psiquiátrico Juliano Moreira, na
cidade de Salvador. Nesse momento, nos defrontamos com o hiato entre nossa formação
status era pomposo, nada mais. Tantos séculos de saber acumulado, tantas disputas pela
4
melhoria dos direitos humanos, tanta luta para valer os princípios da reforma psiquiátrica
e a primeira recordação que nos veio à mente foi a pergunta de Primo Levi, “É isto, um
profissionais das mais diversas áreas e a condição de resto intratável em que a maioria
burocracia, todas essas atividades acabavam por tomar tanto tempo que todos pareciam
instituição. Para muitos, para a maior parte, o hospital psiquiátrico “era assim mesmo”.
se ocupar dos restos. Sua presença “oficial” implicaria em uma função específica, em se
submeter à demanda de resultados dos profissionais da gestão. Ora, é exatamente por não
precisar responder por uma função oficial que ela pode atingir a singularidade do
paciente. Nosso objetivo é partir ao encontro do sujeito perdido na instituição, sujeito que
apenas pelo que tem em comum com os outros, e não pelo que tem de diferente.
existência dos restos. Este é apenas o ponto de partida para que possamos estudar o modo
como Lacan elabora sua teoria sobre as psicoses. Por mais de quatro décadas, ele
únicos. Gradativamente, ele constrói uma teoria da prática, que se ocupa do que não faz
sentido para o coletivo, mas que tem uma função singular e insubstituível na solução que
o psicótico pode dar a seu destino. É nosso objetivo retraçar os passos dessa teoria, para
comprovar sua pertinência diante dos casos mais árduos de psicose institucional.
ensino de Lacan, em cada um deles é possível apreender uma nova dimensão do Outro.
Porém, em todos eles, podemos manter a idéia de que o Outro não é o interlocutor a
quem perguntamos as horas. O esquema L, presente nos Seminário das psicoses, talvez
seja um dos esquemas lacanianos que mais interrogam a questão da alteridade, por isso
ele será objeto de um estudo detalhado em nosso percurso. Propomos uma resposta
preliminar à questão sobre o que é o Outro, outras respostas serão acrescidas durante
nosso trabalho.
Inicialmente o Outro pode ser tomado como o simbólico, no sentido de que ele "O Outro é
o que nos
determina
representa tudo que pode ser dito e que preside as trocas no laço social, mas que assim como
determina
os códigos
permanece desconhecido para o sujeito (Lacan, 1981)1. É o que nos autoriza a falar de de acesso a
vida em
sociedade."
Outro da cultura, Outro social, Outro da Lei, etc. O Outro é o que nos determina assim
Contudo, Lacan dirá que o Outro que nos serve de guia não é um bom timoneiro.
Ao afirmar que o Outro é barrado percebemos que estamos sós na reorganização das
relações sociais (Lacan, 1966k). O século XX, que nasceu sobre a égide da morte de
1
Lacan, J. Le séminaires III, Les psychoses, p.51
6
Deus – certamente a alteridade mais radical concebida pela cultura -, viu o seu crepúsculo
tomado por técnicas de reprodução e clonagem. É o homem que agora “se cria” à sua
de que o Outro não existe, e que ele deve viver por sua conta e risco.
debruça sobre a saúde mental, especialmente no Brasil, há vários anos. Ele considera que
No momento atual, ter boa saúde mental tornou-se algo muito complexo. Todos
os dias somos informados da existência de novas enfermidades mentais que cobrem todas
trabalho, no trânsito, etc. Qualquer excesso ou retraimento do laço social será sancionado
cotidiana. Para dar conta dessa tarefa, forjou-se um conceito que se ancora solidamente
nos ideais sociais da época. Propomos que a saúde mental, como a soma dos ideais da
buscava. Esse estado era deduzido de seu oposto, a doença mental. No momento em que
ela passa a se exprimir em maiúsculas, como Saúde Mental, ela se torna uma instituição
2
Amarante, P. – Saúde mental e Atenção Psicossocial, p.15
7
Por um lado, a Saúde mental se converteu em dever do estado. Ela passou a ser
do bem-estar, que teve seu auge nas últimas décadas do século XX(Laurent, 2008b). O
tema da felicidade, afirma que “Nenhum sistema econômico ou político resolverá por nós
o desafio ético e existencial de encontrar sentido e realização na vida. Isso só pode ser
absolutos na cultura ocidental impedem que haja uma abordagem unívoca do conceito.
Ou seja, se para a psicanálise o Outro é barrado a saúde mental, como um dos nomes do
Outro, também o é.
saúde mental da Organização Mundial de Saúde. Nesse relatório chama atenção que a
compreensão da Saúde mental no novo milênio é vista com otimismo graças aos avanços
Abre-se, portanto, uma perspectiva, na saúde mental atual, para a volta dos ideais
desviante. Essa vertente prioriza a norma e reduz significativamente uma reflexão sobre o
fato de que a própria imposição da norma pode ser causa de sofrimento psíquico5.
No Brasil, a atual saúde mental pública foi definida a partir de uma forte
que serviu de parâmetro para que no ano seguinte a ONU votasse seus “Princípios para a
Lei Paulo Delgado, que reorienta os direitos e deveres da assistência psiquiátrica (Silva,
A nosso ver, não é possível dissociar a loucura de sua dimensão subjetiva, como
propõe, por exemplo, a psiquiatria biológica. Tampouco é possível, nos dias de hoje,
acreditar que a loucura é apenas uma questão de conflito entre o louco e o ambiente que o
circunda. Torna-se necessário, portanto, indagar como é possível fugir das armadilhas do
relativismo e da paixão pelas normas, que permeiam os discursos da saúde mental, para
4
Relatório da OMS 2001, p.34
5
Poderíamos, nesse ponto de nosso percurso, inverter a máxima que nomeia o sub-capítulo I.1 e enunciar:
A danação dos normais.
6
9
clínica psiquiátrica atual força a utilização, “de modo incisivo, de uma distinção entre o
Nossa hipótese é que a psicanálise tem uma teoria sobre a loucura que lhe é
própria e que se distingue das teorias que influenciam os discursos que guiam a saúde
mental no Brasil. Trata-se de uma teoria que aponta para o sujeito, buscando resgatá-lo da
institucionais, para interrogar seu sintoma como criação que faz suplência ao que rateia
solução clínica para a loucura passa pela formalização de um sintoma (Laurent, 2000b)8.
louco, mas não do sujeito. Esse último será sempre excluído do campo do Outro e tem, na
exclusão, legitimando o laço social. Para além do corpo biológico e do corpo em sua
7
Miller, J.-A., 2005, p.253
8
Laurent E. Pluralización actuel de las clínicas...p.15
10
dimensão social, o “sujeito psicótico” nos desafia ao falar para nós sua verdade, nos
a chegada das novas idéias sobre o tratamento psiquiátrico e, sobretudo, o modo como as
modelo de tratamento open door, em que se buscava tratar a loucura no seio mesmo da
psiquiátrica no Brasil. Escolhemos quatro autores que são fontes inesgotáveis de citações
Nossa escolha recaiu sobre esses autores pelo fato de que eles criticam em
diversos pontos de suas obras a psicanálise e não a reconhecem como passível de integrar
objetivos, avaliar até que ponto esses autores estão corretos em suas críticas e até que
clínica da loucura.
contemporaneidade afetam nossa percepção sobre a saúde mental. Caminhamos, cada vez
constante oriundo das mais diversas instâncias. Veremos, por exemplo, como o discurso
Para estudarmos o eixo da teoria dedicaremos os capítulos III e IV. Nosso maior
desafio será recortar os elementos da clínica que nos permitam fundamentar nossa
para diversas teses. A seleção que fizemos obedeceu aos seguintes critérios: - trazer
diante da clínica da loucura;- buscar aspectos da teoria menos explorados no vasto corpo
de livros, ensaios e artigos sobre a teoria lacaniana das psicoses, ou seja, priorizar o
Embora sejam fundamentais no ensino de Lacan, percebemos que estes devem ser usados
com parcimônia.
segunda clínica das psicoses em Lacan, podemos questionar se não há uma única e sólida
modo como a subjetividade poder ser resgatada em uma instituição onde a clínica
12
anos permitiram ir mais além dos ideais da saúde mental e pensar a psicose dissociada do
que abriu um espaço sem precedentes para pensar a loucura entre nós.
13
relativismo estéril, uma vez que pautar um conceito nos ideais é condená-lo a se tornar
conceito de abordagem biopsicossocial, tão caro a saúde mental, se inspirou nos ideais
influenciada nada menos do que pela eugenia da psiquiatria alemã nazista9. A nosso ver,
a saúde mental, como a soma dos ideais que compõem a cosmogonia multidisciplinar da
doença mental. No momento em que passa a ser expressa com maiúsculas, como Saúde
Mental, torna-se uma instituição com pretensões de recolher a soma de todo sofrimento
9
Costa J., História da Psiquiatria no Brasil, p.30
10
Amarante P., Saúde Mental e atenção psicossocial, p.15.
15
avaliada a partir de critérios estatísticos, com normas e padrões instituídos. Por outro, a
saúde mental de um único cidadão passou a ser aferida a partir da conformidade a esses
mesmos critérios. Essa divisão cria impasses no momento em que se busca, como a
psicanálise o faz, levar o paciente ao que ele tem de mais singular, o seu sintoma.
Nos últimos anos, as ações dos governos, sobretudo na Europa, sobre a saúde
felicidade, inaugurada por Saint Just após a Revolução francesa, e espinha dorsal do
Wellfare State, o estado do bem-estar, que teve seu auge nas últimas décadas do século
XX (Laurent, 2008b). Esse crescente imperativo do bem-estar não deixa de ser polêmico.
Sobre isso, Giannetti, comentando o interesse atual dos economistas e políticos pelo tema
da felicidade, afirma que “Nenhum sistema econômico ou político resolverá por nós o
desafio ético e existencial de encontrar sentido e realização na vida. Isso só pode ser feito
contudo, que não deve haver, por parte do estado, deserção sobre essa matéria, já que
ordem social, podem ser muito graves. Laurent enfoca particularmente as repercussões,
“Ciência da Felicidade”, sobre o governo de Tony Blair (Laurent, 2008b). O impacto foi
formação de dez mil terapeutas cognitivistas. A meta, contudo, é bastante duvidosa, pois
no horizonte ela vislumbra que o melhor para um será para todos: melhorar a saúde
Organização Mundial de Saúde, nos deixa entrever que as ações governamentais variam
da saúde mental no novo milênio, é vista com otimismo graças aos avanços da psiquiatria
Abre-se, portanto, uma perspectiva, na saúde mental atual, para a volta dos ideais
desviante. Essa vertente prioriza a norma e reduz significativamente uma reflexão sobre o
fato de que a própria imposição da norma pode ser causa de sofrimento psíquico.
mais espaço entre as políticas de saúde mental por todo o mundo, de incorporar as bases
assim, inquietação que um relatório indicando diretrizes em escala mundial, cujo título é
11
Murthy, R., Saúde Mental: Nova Concepção, Nova Esperança, p. 34
17
“Saúde Mental: Nova Concepção, Nova Esperança”, apresente logo no primeiro capítulo
(Murthy, 2001)12. Nada mais óbvio, portanto, que o maior avanço em saúde mental para a
OMS seja o prêmio Nobel de medicina atribuído em 2000 a Eric Kandel sobre o
questões políticas que marcaram a reforma psiquiátrica no Brasil para assumir um tom
promulgação da Lei Federal 10.216, conhecida como Lei Paulo Delgado, que reorienta os
direitos e deveres da assistência psiquiátrica (Silva, Cardoso et al., 2006). Para que
seguintes passos:
descentralizada;
Guattari e finalmente Franco Basaglia. Nosso objetivo não é esgotar o estudo da obra
12
Idem, p.29
13
Texto que serviu de parâmetro para que no ano seguinte a ONU votasse seus “Princípios para a Proteção
de Pessoas Acometidas de Transtorno Mental e para a Melhoria da Assistência em Saúde Mental
18
Mudança no
É possível identificar uma descontinuidade histórica na Psiquiatria brasileira que
tratamento da
loucura entre o
século 19 e o
se produziu na virada do século XIX para o século XX. Pensamos em descontinuidade no
século 20.
Internação asilar -
open door.
sentido que o filósofo Alain Badiou pensa o conceito de acontecimento, ou seja, a
irrupção de algo novo que faz com que o livre curso da história ceda lugar a algo novo e
sem precedentes (Badiou, 1988). Até então o modelo de tratamento da loucura era
tratamento da loucura fora dos asilos, em um sistema que ficou conhecido como open
door (Portocarrero, 2002). A partir deste momento, começa no Brasil a discussão sobre a
práticas e teóricas dessa mudança permanecem ativas no debate sobre a saúde mental até
os dias de hoje.
Esquirol -
defendia o O pensamento dominante no século XIX era de que a hospitalização e a privação,
isolamento no
asilo como um
instrumento pura e simples, do contato social do alienado, teriam um fim curativo. A prática do
terapêutico,
com fim curativo.
isolamento terapêutico do alienado tinha, no psiquiatra francês Esquirol seu maior
uma autoridade reconhecida na sua construção, tendo sido o planejador do asilo nacional
14
Porter, R., The greatest benefit to mankind, p.502
19
então fortemente ligada ao modelo de tratamento asilar proposto por Esquirol. Assim, é a
partir de Juliano Moreira que o conceito de anormal passa a integrar o corpo do saber
passa, então, a incluir não apenas a doença psiquiátrica, mas igualmente os epilépticos,
de Esquirol, cede espaço para os tratamentos open door, originando uma série de espaços
influenciado por Kraepelin (El-Bainy, 2007). As novas práticas demarcam uma clara
ruptura com o modelo precedente de tratar o alienado. A nova assistência expande seus
cuidados para um universo muito mais amplo que o espaço asilar. Passa-se a considerar a
de saúde mental desenvolvem até hoje (Portocarrero, 2002). Esse modelo não conseguiu
eliminar o paradoxo, que foi bastante estudado por Foucault, tanto em sua História da
15
Portocarrero V., Arquivos da Loucura, p.13.
16
idem, p.108
20
dispositivos por um lado denunciam o fracasso da instituição asilar, mas, por outro,
17
Freire Costa J., op. cit. p.47
18
Amarante, P., O Homem e a serpente, p.21
21
19
idem
22
I. 2 – O campo e as barricadas
tanto no Brasil como em diversos países. São autores que se tornaram referências
incontestáveis na saúde mental e que marcaram toda uma geração de profissionais. São
eles, Foucault, Deleuze, Guattari e Basaglia. Nossa escolha, contudo, passa por uma outra
Brasil, percebemos que estas idéias fizeram seguidores. Birman, por exemplo, reitera o
estrutura edípica e que essa posição se tornou “uma palavra de ordem insofismável”
(Birman, 2003).
Procuraremos mostrar, nas próximas páginas, que Lacan reservou um lugar muito
diferente ao Édipo nas psicoses a partir dos anos 70, época mesma do lançamento do
Anti-Édipo, e que, portanto, a crítica não se justifica. Assim, vale rever algumas das
posições desses autores colocando como pergunta a que momento da psicanálise eles se
referem em suas críticas. Fora isso, acreditamos que os avanços promovidos por esses
autores foram cruciais para forjar o espírito necessário à reforma psiquiátrica no Brasil.
separação, podendo ser estudada por vários aspectos. Aqui, temos um interesse
23
específico, saber de que forma o par foucauldiano razão/desrazão pode ser cotejado com
a teoria das psicoses em Lacan. Embora sua tese, História da loucura na idade clássica,
dirigida por Canguillem, tenha sido defendida em 1961 e publicada no mesmo ano, não
encontramos nela nenhuma menção explícita que nos conduza a afirmar que Foucault
tenha conhecido as idéias de Lacan sobre a psicose e a foraclusão, que lhe antecedem de
seis anos.
Quanto a Lacan, sobretudo no final dos anos 60, dá mostras de conhecer bem a
obra de Foucault. No ano mesmo em que o livro As palavras e as coisas foi lançado¸
Lacan o comenta várias vezes em seu Seminário (Lacan, 1966e)20. Eribon comenta que,
quando foi lançado, o livro Nascimento da Clínica de Foucault não havia tido grande
repercussão. Após Lacan comentá-lo em seu Seminário (Lacan, 1965)21, nas semanas
Foucault diversas vezes foi jantar na casa dos Lacan (Eribon, 1984)22.
testemunha o fato de que nunca houve, por parte deste, uma paixão pela psicanálise
inclusive, um dos pontos que tornou a obra de Lacan original no ambiente psiquiátrico de
20
Lacan, J., Seminário XIII, L’objet de la psychanalyse¸aulas dos dias 27 de abril e 4, 11 e 18 de maio de
1966
21
Lacan, J., Seminário XII, Problèmes cruciaux pour la psychanalyse, aula do dia 7 de abril de 1965
22
Eribon, D., Michel Foucault, p.181
23
Miller J-A., Michel Foucault et la psychanalyse, p.77
24
sua época. Ao propor que se exerça o papel de secretariar o alienado, Lacan convida o
psicanalista a abrir mão de qualquer poder na condução clínica das psicoses (Lacan,
1981)24. Essa posição é muito distinta do psiquiatra detentor do poder, descrita pelo
filósofo.
papel da loucura diante da cultura de sua época. Tomemos o seguinte fragmento de uma
A loucura só existe dentro de uma sociedade, não existe fora das formas de
sensibilidade que a isolam e das formas de repulsa que a excluem ou a
capturam. Assim, pode-se dizer que na Idade Média, e depois na Renascença,
a loucura está presente no horizonte social (grifo nosso) como um fato estético
ou quotidiano; depois no século XVII – a partir da internação -, a loucura
atravessa um período de silêncio, de exclusão. Ela perdeu esta função de
manifestação, de revelação que tinha na época de Shakespeare e de Cervantes
(...), ela se torna derrisória, mentirosa. Enfim, o século XX mete as mãos
sobre a loucura, a reduz a um fenômeno natural, ligada à verdade do mundo25.
psiquiatria se desfaz de seus laços com a razão, ou, pensando com Lacan, sua aliança com
um sentido sobre seu objeto – a doença mental – para buscar incluir a doença mental
como Lacan aborda as psicoses na cultura nos faz ver uma aproximação com este
comentário de Foucault. No fundo Foucault diz que cada época tem o louco que merece.
Merece aqui no sentido de que cada época terá um louco para anunciar que o Outro não
uma possibilidade de aproximá-lo de Lacan, supondo que ela remete ao social, assim
24
Lacan, J., Le Séminaire III, Les psychoses, p.233
25
Entrevista de Michel Foucault ao jornal Le monde, em 1961, presente na coletânea Dits et Ecrits I, Paris,
Gallimard, 1994, p.167, apud Friche Passos, 2004
25
caso, o louco, com sua presença desconcertante e inservível, barra a utopia da sociedade
perfeita e utilitarista assim como a desrazão, negada, isolada, segregada, barra a idéia de
Para Lacan (Lacan, 1966c), o analista deve se situar “no horizonte subjetivo de
precisamente o que lhe permitiu vislumbrar esse horizonte. Cada época representa um
continente fechado em sua cultura, com seu código de referenciais simbólicos que
determinam o que faz e o que não faz sentido. Cada época institui, a seu modo, sua figura
do Outro. O horizonte subjetivo de uma época é uma metáfora que implica enxergar o
que se descortina mais além, quando o Nome-do-Pai, garantia do Outro, não é suficiente
para garantir o sentido das coisas. Ao evocar, nesse comentário, o poder de revelação da
autores, como homens que falam a verdade. Lacan, igualmente, se servirá da obra de um
artista, James Joyce, para mostrar o que não pode ser dito, nem compreendido pela razão.
institucional, que ele tanto criticou na História da Loucura, 1972, ainda está presente em
diversas partes do mundo, inclusive em hospitais no Brasil que são alvo constante de
entre o médico e seu objeto, o paciente. Esta crítica serviu de base para a queda do
psiquiatra, foi destituído e, por extensão, a razão, como uma das figuras do Outro. Com
A ciência das doenças mentais, tal como ela poderá se desenvolver nos asilos,
será sempre da ordem de uma observação e classificação. Ela não será um
diálogo. E somente poderá sê-lo verdadeiramente no dia em que a psicanálise
tiver exorcizado esse fenômeno do olhar, essencial ao asilo do século XIX, e
tiver substituído a sua magia silenciosa pelos poderes da linguagem (Foucault,
1972)26.
Uma das teses centrais de Foucault é que o classicismo moderno, inaugurado por
Descartes, produz uma significação histórica da loucura como desrazão. Enquanto, até o
onde o louco estaria aquém do ser27, para, em seguida, tornar-se conceito positivo através
26
Foucault, M., Histoire de la folie, p.508
27
Uma das possíveis leituras do Penso, logo existo. Problemática afirmação, já que o que não passa pela
razão não teria acesso ao ser.
28
Friche Passos, I.C., id. p.33
27
de 1963, Derrida questionou publicamente a leitura que fez Foucault do cogito cartesiano
(Passos, 2004)29. Essa querela gerou réplica de Foucault, mas não chegou a ter tréplica30.
Para Derrida, na História da loucura, 1972, Foucault teria extrapolado a sua leitura das
debate permitiu que, em uma resposta de Foucault, ficasse explicitada de uma vez por
todas, e de modo bastante claro, a sua hipótese de que o principal agente da exclusão da
Seus textos foram cruciais para forjar o ambiente crítico que impulsionou a reforma
atual. Por mais que tenham sido feitas críticas a seu método (Swain, 1994), a suas idéias e
alguns intelectuais (Gauchet, 1994), não nos arriscamos a dizer que estamos em um
momento pós-Foucault.
fundo verídico, do Rei Jorge III, da Inglaterra. Essa história pode igualmente ser vista no
29
Friche Passos, I.C., Razão e Loucura: a querela Foucault e Derrida, p.29
30
Derrida não fez tréplica uma vez que, após a morte de Foucault, preferiu não mais abordar a questão.
28
filme de 1994, A loucura do rei George (The Madness of King George), dirigido por
Relata Pinel que Jorge III, rei da Inglaterra, apresentou um episódio de mania que
tornava sua permanência a frente do reino impossível. Assim, nos conta Foucault, “todo o
ofícios que sua condição exige, mas também de convencê-lo de que ele está sob inteira
médicos. O médico é mal recebido pelo internado que lhe joga seus próprios
excrementos. Os pajens, então, lhe imobilizam, trocam suas roupas, limpam toda a sujeira
e “olhando para ele com altivez afastam-se logo em seguida e voltam para o seu lugar”.
São inúmeras as lições que Foucault extrai dessa história relatada por Pinel. Entre
como representação pura do poder do reino, que perde seu poder e deve, por prescrição
médica, ser cuidado à revelia por dois de seus pajens. Chama atenção que o médico
tampouco detém um poder especial sobre o paciente, uma vez que este não lhe reconhece
poder algum e inclusive lhe cobre de excrementos. São, justamente, dois de seus vassalos
que passam a deter um poder sobre o rei. Nesse caso, contudo, não é possível admitir que
31
Foucault M., O poder psiquiátrico, p.26
29
loucura. O verdadeiro poder, que subjuga o rei e a todos na cena que se ocupam dele, é a
microfísica do poder.
Não escapou a Foucault o fato de que essa cena se situa no momento designado
por ele como protopsiquiátrico, ou seja, antes da lei sobre o internamento e a organização
2007). Não seria a instituição que determina as relações de poder, nem o surgimento de
psiquiátrica estaria sempre atrelado a uma relação de poder disciplinar buscando dominar
o comportamento anormal.
Após a relação de poder entre o psiquiatra e o louco ter sido desnudada por
correntes, porém contraem duas dívidas com a psiquiatria. Inicialmente ele deve pagar
32
Idem, p.33
30
sua liberdade com a gratidão. A segunda dívida é justamente o fato de que a cura advém
da obediência dócil à disciplina imposta pelo psiquiatra. Solto, ele deverá provar à
sociedade que ele é capaz de seguir as regras. Ao libertar o louco, espera-se dele a
gratidão e a cura pela obediência à ordem pública. Veremos, mais adiante, como a
(Basaglia, 2005b).
como único pilar terapêutico após a História da loucura, 1972. A pluralidade dos
discursos emergentes não mais se organiza em torno desta. O impacto dessa nova
distribuição de saberes, porém, não dever iludir e ocultar o fato de que há, igualmente,
nova distribuição de poderes. Esta é a maior lição de Foucault. Esse confronto de poderes
loucura: “a psicanálise não pode, e não poderá escutar as vozes da desrazão” (Foucault,
1972)33. Acreditamos que condenação está na base das críticas que se seguiram à
33
Foucault, M., Histoire de la folie, p.530
31
Ainda hoje, por mais que o grosso de suas idéias, na prática, sejam inaplicáveis,
Édipo, de Deleuze e Guattari. No capítulo dois dessa obra é possível ler o seguinte
(Guattari, 1976)34.
A nosso ver, essa crítica reflete uma visão parcial da psicanálise. É verdade que o
Édipo. É igualmente verdade que, nos comentários que Freud faz sobre caso Schreber, a
figura do pai é fundamental para seus desenvolvimentos (Freud, 1980). Quanto a Lacan,
ele tece sua primeira teoria das psicoses em torno da Foraclusão do Nome-do-Pai (Lacan,
1981). Trata-se, conseqüentemente, de uma clínica que tem o Édipo como referência,
uma vez que ela analisa os efeitos sobre o psiquismo do momento em que o sujeito, ao
Lacan, contudo, não recuou diante dessa impossibilidade e mostrou precisamente o que o
Anti-Édipo acusa de ter faltado à sua obra, uma teoria que não fundasse seu pilar no pai e
no Édipo. Muito antes do Anti-Édipo, em 1963, Lacan havia proferido uma aula em que
prestígio que o pai assumira em sua teoria (Lacan, 2006a). É mesmo o que nos permite
afirmar que somente há uma clínica lacaniana das psicoses na medida em que se aposta
34
Deleuze G. e Guattari F., O anti-édipo, p.73
32
no fato de que o Nome-do-Pai não é imprescindível para que um sujeito não desencadeie
uma psicose. Há, no entanto, um cuidado na teoria lacaniana para não passar o rolo
compressor, fazendo terra arrasada do território paterno. É como entendemos o que Lacan
veicula com a tese de que é possível “dispensar o pai à condição de se servir” (Lacan,
contemporâneo provocada pela queda dos valores e garantias universais (Gauchet, 1985;
Bauman, 1997; Lipovetsky, 2004; Miller, 2005b). A crítica que é feita no Anti Édipo,
vem em sintonia com a época de sua redação, o pós-maio 68. Abaixo toda forma de
época atual pode ser explicada pela obra de Lacan, sobretudo nos últimos anos de seus
Seminários. Lacan fez o caminho do mais além do Édipo, e não do anti Édipo. Para tanto,
ele passou por duas escansões importantes, o Seminário XVII, em que ele chega a
XX, em que, hereticamente, se pergunta se a própria face de Deus não seria suportada
pelo gozo feminino (Lacan, 1975b)37. Essa trajetória o leva, através da teoria dos nós, a
35
Lacan, J., Le Séminaire XXIII, p.136, tradução nossa
36
Lacan, j., Le Séminaire XVII, L´envers de la psychanalyse, p.113
37
Lacan, J., Le Séminaire XX, Encore, p.71
33
redigia o Anti Édipo. É no momento em que ele faz a distinção entre psicanálise em
Acreditamos que o descompasso entre Deleuze e Guattari e a obra de Lacan foi mais
Édipo e a função paterna. Provavelmente esse descompasso se deve ao fato de que a obra
ganhando divulgação pública, anos depois de serem proferidos. À época do Anti Édipo, o
1966, livro que não deixava o leitor entrever o modo como a teoria do sinthoma
oposição ao Anti Édipo e, inclusive, à sua própria teoria do sinthoma: “Eu gostaria de
psicanalista da Escola, publicado pela primeira vez em pleno ano de 1968. Um dos
Essa divisão que faz Lacan deve ser entendida como prolongamento do texto em
que funda sua Escola. É no texto Ato de fundação¸ que foi publicado no anuário da
aplicada40. No texto de 69, Lacan não menciona, e isso é importante, que o Édipo não
Escola, nos parece haver um entendimento, por parte de Lacan, de que apenas uma escola
essa posição. Tudo se passava no calor das disputas que ocorriam tanto nas ruas quanto
nos bancos universitários no final dos anos 60. Ao falar, portanto, que a extensão da
psicanálise para o mundo deveria ser atrelada ao Édipo, ele nos indica que quando se quer
derrubar todos os mestres surge um mestre ainda mais feroz, tal como o Deus de Schreber
o era.
declínio do Édipo não foi decretado, nem pela psicanálise nem por Deleuze e Guattari,
39
Idem, p.251
40
No próximo capítulo nos deteremos na questão da psicanálise pura e psicanálise aplicada
35
ele é um dado da cultura na qual, nas palavras de Barros, o Anti-Édipo não foi mais do
Apesar dos ecos revolucionários persistirem em redutos isolados, nos parece que a
percepção corrente de que a saúde mental tece sua concepção de reinserção social a partir
da lógica de casa, família e emprego. Ou seja, apontamos para uma situação que é no
mínimo contraditória.
criticados.
dos ideais coletivos para construir um saber que lhe fosse próprio. Ficou então, ela
protegido pela declaração dos direitos humanos, ao qual qualquer diferença de tratamento
41
Barros R., O Anti-Édipo da psicanálise, p, 65.
42
Deleuze e Guattari, l’Anti-Oedipe, p.63
36
reinserção social da loucura: “De perto ninguém é normal”. Concluímos que é nos
“normal” que se forma o grosso do saber da saúde mental. Contudo, denunciar a exclusão
e a segregação da loucura não é suficiente para destituir o normal como “Outro” da saúde
mental.
reitera nossa opinião de que o Anti-Édipo estava mais próximo da psicanálise do que
após ter promovido a separação radical entre o real e o campo do sentido, escreveu o
seguinte comentário:
Miller, em seu curso intitulado Le tout dernier Lacan (Miller, 2007a), dedicou-se
passava pela exclusão do sentido, implica em conceber o próprio inconsciente como real.
43
Lacan, J., Préface a l’édtion anglaise du Séminaire XI, p.571, tradução nossa
37
Assim, o inconsciente, que na teoria lacaniana clássica, era visto como “estruturado como
Esse fragmento do Anti-Édipo nos revela que não seria impossível prever um
que se expandiu muito além da Itália. No Brasil, sua influência foi determinante na
44
Deleuze G. e Guattari F., O Anti-Édipo, p.73
45
Amarante P., Franco Basaglia – Escritos Selecionados, p.10.
38
remodelação de um grande hospital psiquiátrico com mais de 600 leitos. Nesse sentido
nossa tentativa de reestruturar o Hospital Juliano Moreira, que relataremos mais adiante,
asilar, onde funcionários e pacientes estão completamente submetidos a uma lógica que
adoece muito mais do que cura, que preserva a sociedade muito mais do que o doente.
a reforma psiquiátrica brasileira. O ambiente à época de sua vinda era o pior possível.
96% dos recursos com assistência psiquiátrica eram destinados à rede hospitalar em 1976
Essas constatações estão na base de sua tese de que a catástrofe da situação dos
46
É bem evidente, aqui, a identidade com o pensamento de Foucault
47
Basaglia F., Um problema de psiquiatria institucional...p. 47
39
de condenar a psiquiatria tanto quanto o hospital. Como ele mesmo afirma, essa
libertar os loucos, tal como suporia o gesto mítico de Pinel, na verdade “objetivou” o
conceito de liberdade. Assim, a liberdade vigiada da loucura seria apenas uma extensão
de seu poder. A obra de Basaglia oferece a Foucault, precisamente, o braço prático que o
filósofo carecia. Basaglia transpõe para sua vigorosa reestruturação do sistema de saúde
Inscreve-se nesse movimento, podemos deduzir, uma cisão que se mantém até
hoje entre psiquiatras e demais atores da saúde mental. A relação entre o louco e o
psiquiatra passa a ser vista como relação de dívida/gratidão, extensão perversa do poder
Foucault:
A liberdade que o médico e o novo clima hospitalar lhe deram pode agora
produzir um estado de sujeição ainda mais alienante, por estar mesclado a
sentimentos de devotamento e gratidão que ligam o doente ao médico numa
relação mais estreita, mais sólida, mais profundamente mortificante e
destrutiva do que qualquer contenção física, uma relação de devotamento e
rendição absolutos ao “bondoso” que se dedica a ele, que se inclina – de toda
a sua altura – para escutá-lo e nunca diz não (Basaglia, 2005b)50.
48
Basaglia F., Corpo e Instituição, p.73
49
Basaglia F., A destruição do hospital..., p.26
50
Basaglia F., A destruição do hospital psiquiátrico..., p.32
40
Rei Jorge III. Essa passagem traduz perfeitamente a dificuldade, para um leitor
outro viés que não seja o poder e a submissão. Percebemos ainda que o alvo da crítica é,
clínica, por não se reduzir ao social e por afirmar a impossibilidade de uma abordagem da
loucura que não passe pelo estabelecimento de um vínculo transferencial, possui todos os
ingredientes para ser vista com certo olhar de suspeita pelos seguidores basaglianos mais
ortodoxos.
Basaglia continua sendo uma referência fundamental. Sua morte prematura não
impediu que seu legado tenha se tornado uma referência incontornável para aqueles que
reconhecem os abusos que, ainda hoje, são praticados nas hospitalizações psiquiátricas.
psicanalista exerce, sob transferência, uma relação de poder sobre o analisante. Contudo,
contrato entre as partes. A crítica de Basaglia à psiquiatria passa precisamente pela falta
de um valor contratual entre o louco e o psiquiatra, ou seja, o fato de que esta relação lhe
é imposta pela psiquiatria (Basaglia, 2005a)51. Nesse sentido, entendemos que a proposta
é válido se servir para todos. Ela é basagliana quando ela é ofertada exclusivamente ao
paciente que estiver de acordo ou que solicitá-la. Quer seja ao convidá-lo a falar em uma
Mente
No poço
pingam gotas
Gotas que o preenchem
com um líquido
espesso
negro
e denso.
essa gotas lúgubres
são meus pensamentos
Buscaremos mostrar que o campo da saúde mental, atualmente, passa por uma
XXI, o ‘homem normal’. Esse projeto é um passo a mais sobre a teoria da identificação
Teremos, assim, uma idéia mais ampla do campo da saúde mental, tanto em suas
bases históricas, quanto em suas perspectivas atuais e futuras. Esse panorama nos
44
Nosso objetivo é mostrar que a psicanálise possui uma teoria sólida sobre o discurso da
ciência, e que sua posição de recusa do homem normal, assim como outrora recusou o
Trata-se de uma clínica ávida por números e que não deixa espaços para o resto,
resto no sentido daquilo que o paciente, em sua particularidade, não pode compartilhar
com nenhum outro. Nesse sentido a clínica psicanalítica toma um rumo completamente
cifra, emblema do quantificável (e insígnia deste papel de arauto da verdade que a ciência
bastante desenvolvido (Laurent, 2008b). São avaliações que não poupam sequer os
próprios profissionais que lidam com o sofrimento mental, estes igualmente avaliados
pelos resultados (Matet, 2008)53. A psicanálise, no século XXI, encontrou novas críticas a
sua presença na saúde mental, são os avaliadores que acusam os resultados psicanalíticos
de pouco confiáveis, uma vez que não podem ser reproduzíveis em um modelo dito
científico.
52
Abelhauser, a., Le chiffrage de la clinique, p.52
53
Matet, J-D., Il était une fois un IME comme beaucoup d´autres..., p.37
45
psicanálise no campo da saúde mental, quais são os aportes possíveis, enfim de que modo
ela pode participar da grande conversação que configura o campo da saúde mental. Por
fim, veremos de que modo a psicanálise se separa da clínica do mental, construindo uma
clínica inconfundível, e de que modo ela se torna, por excelência, uma clínica para os
nos trópicos, 2003. Essa passagem ilustra, como poucas, o modo como um
comportamento que contraria as normas, por mais sadio que seja, pode ser tachado de
aberração desviante. É o risco que ocorre quando a ciência passa a agir a serviço do
científico pode ser utilizado, em nome da psiquiatria, para perpetuar a condição inferior
do negro no período escravocrata. Poderia ser cômico, se não fosse trágico, o que Scliar
Observamos aqui uma manobra nada sutil que faz as questões éticas deslizarem
para uma política diretamente instrumentalizada pelo saber científico. Apesar de distante
no tempo, o exemplo é bastante atual, já que todos os dias nós recebemos notícias de
que escapa à norma. Um dos maiores críticos da teoria das qualidades psíquicas inatas é
54
Scliar M., Saturno nos Trópicos, p.196
47
Stephen Jay Gould. Para ele, construiu-se o mito que diz ser a ciência uma empresa
como ele realmente é (Gould, 2003). É patente, aqui, o risco de que o determinismo
biológico seja usado para grupos detentores do poder. Não se trata de negar a importância
premissa de que a inteligência era uma coisa que existia no interior da cabeça. Enquanto
se manteve essa crença, por mais que se mostrassem evidências contrárias, perdurou a
Para entendermos o modo como a paixão pela quantificação e pela norma toma
espaço nas políticas de saúde mental e segrega tudo que lhe parecer anormal, partiremos
inicialmente do comentário de Miller de que vivemos na época do “Outro que não existe”
formação das massas no momento em que a queda dos ideais deixa um vácuo
55
Gould S.J., A falsa medida do humano, p.7
48
É possível identificar um percurso que vai de uma clínica lacaniana que tem no
modo como o sujeito constrói uma resposta para sua própria existência. Esse percurso
pode ser exemplificado a partir de dois seminários de Lacan, separados por precisos vinte
anos. Ambos são momentos cruciais para a clínica das psicoses: o Seminário III, As
Seminário III, torna-se uma crença de que há sentido no real. Isso implica em um
“forçamento”, digamos, uma invenção, que procura apagar a constatação lacaniana dos
anos 70 de que real e sentido se excluem. No capítulo IV, veremos que o NP apenas pode
se sustentar, com o avanço da teoria lacaniana das psicoses, se ele tiver apoio no
sinthoma. Ou seja, a partir do que vimos no capítulo anterior, podemos afirmar que não
não se separam, surge o matema que inicialmente foi utilizado por Lacan na construção
do grafo do desejo (Lacan, 1966k), mas que posteriormente ganhou novo fôlego a partir
do curso de Miller O Outro que não existe e seus comitês de ética (Miller, 2005b):
A
/
56
Uma clínica que diferencia neurose e psicose a partir do NP e sua foraclusão
49
todo problema encontrará uma solução no campo do Outro, sempre haverá restos que são
excluídos de sentido. É nesta perspectiva que Miller pergunta em seu curso sobre o modo
como podemos pensar a clínica quando o Outro não existe. Temos como resposta que ela
opera por seus restos (Cohen, 2006; Vieira, 2008). Podemos afirmar que todo resto é
grande valor absoluto agita a crença na consistência do Outro, fez com que o vazio de
respostas fosse ocupado pela certeza obtida nos números produzidos pela ciência (Miller,
2005b). A tese que desenvolve Miller é que o declínio dos valores universais e das
que o discurso da ciência é tomado como única verdade confiável. Essa afirmação traz
das bases do laço social. Prosseguindo nosso percurso, nos deparamos então com uma
pergunta: o que resta do laço social quando nada se espera da demanda ao Outro?
Bauman (Gauchet, 1985; Bauman, 2001; Lipovetsky, 2004), entre outros. O mundo
cujas peças têm em comum, por um lado, a ausência de garantias do Outro e, por outro,
57
Que serão melhor desenvolvidos no capítulo IV
50
crescentes do sujeito contemporâneo. Para Renaut, por mais diversos que sejam os
modos de abordagem, todos esses autores afirmam que a modernidade consiste em opor,
às sociedades tradicionais, aquelas onde o indivíduo não mais aceita ser submetido a nada
Essa constatação nos leva a uma nova leitura do supereu freudiano, suscitando um
que mais o mundo caminha para se tornar uma grande comunidade globalizada, mais o
58
Renaut A., L´Individu, p.14
59
Bauman, Z., O Mal-Estar na Pós-Modernidade, p.9
51
ideais:
homogeneização dos modos de gozar, que é da ordem do objeto a, sem que este seja
conectado a uma causa. Sabemos que esta é uma questão para Lacan. O objeto a
lacaniano é ao mesmo tempo mais de gozar e causa de desejo. É por isso que, quando ele
é ofertado sem limites para o gozo, o que ocorre no consumo desenfreado ou na oferta
crescente de drogas lícitas e ilícitas, ele perde sua função de causar o desejo (Miller,
2005c).
campo da saúde mental quanto no campo da psicanálise. Podemos ir mais além, o que
aproxima e distancia esses dois campos é o modo como cada um responde a essa
constatação.
Observamos, porém, que o modo como, no vácuo deixado pelo declínio da imago
paterna, foi tragada igualmente a clínica da subjetividade, sendo esta substituída pela
60
Baudrillard, J., Le mondial et l´universel, p.175
52
clínica da quantificação. Lacan possui uma tese muito bem definida para justificar o
discurso da ciência (Lacan, 1966g). Assim, entendemos que uma clínica dominada pelas
pensar a saúde mental a partir de normas e estatísticas, sem que haja espaço para uma
clínica que inclua o sujeito. Duas referências nos auxiliam em nosso percurso, o texto
revolução das massas (Gasset, 2007). Esses textos nos auxiliam a ver a importância de se
pensar o campo da saúde mental como local onde se reúne o mais singular de um sujeito,
que na teoria lacaniana será representado por seu sinthoma, e suas trocas com o Outro, ou
seja, o modo como se constrói para cada um o laço social. Tomemos, inicialmente, a
subjetividade” (Schechtman, 2006). Para tanto ele se serve do belo conceito barthesiano
53
sociabilidade do grupo”.61
não reduzir o território da saúde mental apenas à vertente da sociabilidade. Para ele, é
preciso abrir um espaço para outra vertente, onde a vida individual como independência
ponto de solidão do sujeito que não deve ser visto como abandono, mas como a
possibilidade de poder gozar sem necessariamente ter que partilhar esse gozo com
alguém. Assim, o território deixa de ser visto apenas como lugar de trocas, ele inclui o
cidadania e aos ideais aspirados pela maioria, está enlaçado na trama social. Esse laço é
guiado por ideais que encontram na plenitude do bem estar biopsicossocial, do Relatório
sobre a saúde mental de 2001 da Organização Mundial de Saúde (Murthy, 2001), seu
ideal maior.
do gozo e da solução sintomática, percebemos que o laço social não é tecido pelos ideais.
Esta questão é fundamental quando pensamos no laço social possível nas psicoses.
61
Schechtman, A., Território e idiorritmia: uma leitura de Barthes para a saúde mental, p.37
62
idem
63
O esquema L, presente no Seminário III de Lacan, mostra as relações da realidade com o inconsciente.
Ele será estudado em detalhes no capítulo IV, mais adiante
54
campo da realidade, expondo as diversas tensões entre o louco, seu semelhante e o Outro.
o enigma que habita permanentemente a vida do psicótico. Sua vida é tomada pela
permanente.
modo como Lacan pensa o laço social através de seus quatro discursos. No Seminário
XVII (Lacan, 1992), ele desenvolve sua teoria sobre os quatro discursos que são: discurso
S1 = o significante mestre
S2 = o saber
$ = o sujeito
a = mais-de-gozar
O que distingue entre si, os quatro discursos, é a posição dos símbolos. Há quatro
agente outro_
verdade produção
preservando, sempre, a mesma ordem. Assim, cada discurso surge de um giro dos
símbolos de um quarto de volta. Podemos supor que a territorialidade que é criticada por
Schechtman é ditada por um mestre que não leva em conta as motivações subjetivas do
55
tome as rédeas de sua posição, o que lhe permite conciliar ao mesmo tempo sua relação
com o mundo externo e com o gozo íntimo, que não passa pelas experiências de troca no
laço social. O discurso da histérica, proposto por Lacan, nos dá a dimensão dessa posição
do sujeito no discurso:
$ → S1
a S2
saber fazer com o resto de gozo, que é estranho tanto para o sujeito como para o mundo
que lhe rodeia. É a partir desse resto elevado a condição de agente do discurso – e
a → $
S2 S1
6464
Já que o objeto a é ao mesmo tempo mais-de-gozar e cauda do desejo
56
garantem necessariamente a adesão do sujeito ao laço social. Como resultado, temos cada
vez mais a formação de comunidades de identificações débeis, que se mantém apenas por
crescente, a clínica atual se depara com uma espécie de debilidade mental do sujeito
estabelecido, permanecendo, desse modo, fragilmente conectado ao Outro. Ele toma por
base o Seminário XVII para constatar o encontro de sujeitos que não mais se inscrevem,
como agentes, em nenhum dos quatro discursos lacanianos66 para constituir uma rede de
Encontra-se na clínica uma quantidade cada vez maior de sujeitos capturados por
duas novas formas de discurso, o discurso da ciência e aquele que Lacan problematizaria
como um falso discurso, o discurso capitalista (Lacan, 2003h), falso precisamente pelo
fato de não fazer laço social. Se Lacan os chama de falsos é porque, nesses últimos, não
entra em questão a divisão subjetiva. No primeiro pelo fato de que há na ciência uma
65
Tendlarz, S., O patológico da identificação, p.5
66
A saber, o discurso do mestre, da histérica, do universitário e do analista
57
ao líder, proposto no capítulo VII do texto Psicologia das massas por Freud (Freud,
1981). Freud, quando pensou sua teoria da identificação, o fez em torno da figura do
líder, que é inspirado na própria imago paterna. A identificação surge como resposta do
sujeito aos impasses do desejo: “É fácil exprimir em uma fórmula a diferença entre tal
identificação ao pai e a escolha do pai como objeto. No primeiro caso o pai é o que se
seria por excelência o modo como o sujeito passaria da clínica do diagnóstico comum
para a clínica do caso único. Clínica onde sua queixa e seu sintoma não podem ser
e esta renúncia está cada vez mais distante dos imperativos contemporâneos. Nesse
faz com que o sujeito dispense os grandes significantes que possam representá-lo para o
pela ciência fez com que, cada vez mais, o sujeito prescinda dos ideais e invente seu
próprio estilo de vida, ou seja, seu modo particular de viver a pulsão (Laurent, 1993a)68.
67
Freud S., Psychologie de Foules, p.168
68
Laurent, E., Styles de vie, p.3
58
detrimento da busca dos ideais. É o que Miller nos descreve com o matema: a > I (Miller,
2005b)69.
Passamos dos grandes símbolos às grandes marcas das vitrines. Ao colocar o sujeito
dos valores universais continuam sendo coerentes com a teoria freudiana da identificação
semelhante e não mais ao líder71. Trata-se, a nosso ver, de uma massa ainda mais amorfa
Em 69, Lacan faz um raro comentário sobre a reforma psiquiatria. Ele ocorreu em
França (Lacan, 1969). Nesse texto, ele antecipou os riscos da separação da psiquiatria
entre psiquiatria social e psiquiatria científica, esta sob o domínio crescente dos
laboratórios farmacêuticos. Por um lado, uma Sociatria72 que se afastaria cada vez mais
69
Miller J-A., El Outro que no existe...p.112
70
Ferrari, I., A realidade social e os sujeitos solitários, p.23
71
Laurent, E., Politique de l´unaire, p.18
72
Sociatrie, tradução nossa
59
tomada pelas seduções do mercado. Sob o rótulo de ciência, o que se vê com muito mais
esteira das novas relações entre filosofia e ciência, uma vez que o pensamento científico,
metafísica e ciência (Chalmers, 1987)73. É o que conduz diversos autores a afirmar que a
teologia e filosofia, que surge a questão da identificação. Assim, uma forma derivada da
identificação ao semelhante é a identificação aos novos rótulos que lhe são impostos pelo
discurso da ciência. É o que configura uma nova clínica, para a saúde mental, onde
tanto aos serviços públicos quanto aos psicanalistas, já chegam com um pré-diagnóstico,
freqüência cada vez maior um questionário que dará uma identificação ao sujeito.
que se organizam em torno do modo de gozar do sintoma e não em torno do Pai. São
tornaram preocupações constantes das novas políticas de saúde mental. Nessas três
dissolução progressiva do tecido social. Surge um contingente cada vez maior de sujeitos
narcisicamente enclausurados pelo gozo solitário, conectando-se ao laço social por um fio
cada vez mais frágil: o dealer, a virtualidade da internet, o sexo casual, etc. Enfim, nos
fica o desafio da resposta a uma questão que o clínico ouve cada vez mais em sua prática:
com a crítica que faz o filósofo Ortega y Gasset sobre homem de massa. Para ele, a
questão da psicologia das massas é pensada sob a ótica da segregação. Sua obra mais
importante, A rebelião das massas, prenunciou que o mundo, tomado pela técnica,
forjaria as bases para a criação do homem mediano, o homem no qual cresceria o horror
passiva, sem vontade nem critérios, levando à negação de duas das principais condições
homogeneidade e indistinção social. Ele não tem nenhum projeto que lhe seja próprio e
não faz nenhum esforço para uma realização pessoal, consumindo e gozando das mesmas
coisas que os outros. Tudo que se afasta desse platô monótono da normalidade é
rebelião das massas, sobretudo quando pensamos que ela foi escrita antes dos
74
Esquirol J.M., Ortega y Gasset: la technique et « l’homme de masse », p.125
61
eliminação da anormalidade: “aquele que não é como todo mundo, que não pensa como
Para Esquirol, a obra de Ortega Y Gasset indica que o protótipo, por excelência
ele é apenas uma evidência que mente. Somente podemos falar em psicanálise quando
na leitura atual que faz Miller do Homem sem qualidades de Robert Musil (Miller,
instituído pela ciência. Ulrich, o personagem de Musil, demonstra que por baixo da
75
Esquirol J.M., op. cit. p.124
76
Idem, p.126
62
A disjunção entre real e sentido, na teoria lacaniana, faz com que nunca se tenha a
boa palavra para se falar do real (Lacan, 1974c). Para Miller, no momento atual, procura-
se cada vez mais entender o psiquismo humano através da resposta certa que faria a
adequação entre estímulo e resposta, sem deixar restos. Esta adequação está na base de
psicanalíticos. Até mesmo porque em Lacan, o real seria, ironicamente, um estímulo que
teria a propriedade especial de sempre produzir uma resposta inadequada (Miller, 2004c).
psicanálise:
O nome de Deus, hoje, é o Normal. Com ares científicos, nos é proposta uma
teologia do normal, enquanto o beabá do que nos ensina a psicanálise através
de Lacan é que o psiquismo, como tal, não é normal. A normatização do
psíquico é o seu desaparecimento, sua supressão78.
profetizada por Foucault em Vigiar e punir (Foucault, 2004), tornou-se uma questão
Foucault denuncia, de forma crua, a pouca esperança que depositava na integração dos
desvios da norma pelo mundo civilizado (Foucault, 2002). Um dos maiores legados de
77
Hanke, M., A qualidade do “Homem sem qualidades” de Robert Musil, p.138
78
Miller, J-A., Théologie du normale, tradução nossa
79
idem
63
O título desse sub-item alude a uma das mais importantes obras brasileiras sobre
essa obra analisa, tal como a escola foucaudiana, o papel da medicina como instrumento
na política [...] e que adquirem seu verdadeiro sentido apenas quando são restituídos ao
diferenças. Trata-se do temor anunciado por Habermas de que o mundo entre em uma
(Habermas, 1973)81.
Estado exerce igualmente, de modo cada vez mais freqüente, o poder de regulador e
controlador da prática analítica. O livro de Machado nos mostra que a história anda em
estatístico dos distúrbios mentais”, como única referência “científica” para a classificação
das doenças mentais. Segundo a autora, a saúde mental dos Estados democráticos ficou
80
Agamben, G., Homo Sacer, p.128
81
Habermas, J, La technique et la science comme “idéologie”, p.97
64
ela cita o rastreamento da anomalia psíquica, que faz com que crianças rebeldes à
escolaridade sejam tratadas como doentes, recebendo prescrição de ritalina, sem que nada
se inscreve no laço social por um traço singular, mas este não é levado em consideração
no momento da avaliação quantitativa, já que apenas o que pode ser comparado com o
outro é levado em conta. Assim somente é medido o que é possível medir. Definida como
possível83. É a partir da clínica do caso único que afirmamos que ser normal é impossível.
Vale aqui lembrar o lema adotado pela luta Antimanicomial, extraído de uma canção de
Caetano Veloso, “De perto ninguém é normal”. Ao que Paulo Amarante contrapõe, se
2007)84.
A clínica psiquiátrica, cada vez mais, se dirige para a identificação de normas que
82
Roudinesco, E. 2005, p.87
83
O psiquiatra Valentim Gentil Filho, professor da USP, em entrevista à revista Veja, narrou que, após
examinar centenas de candidatos, conseguiu isolar 70 homens e mulheres perfeitamente normais: “...que
estariam livres de quaisquer transtornos psíquicos e se comportariam com a propriedade exigida pelas
circunstâncias da vida – sem exageros ou carências de comportamento e ação. Uma das conclusões já
obtidas é que, com a ajuda de antidepressivos, é possível tornar alguém normal ainda
mais...normal.”(Buchalla, 2006)
84
Amarante, P. Saúde Mental e Atenção Psicossocial, p.19
85
Arce-Ross, 1997, p.90
65
(Arce-Ross, 1997). Para Ey, “se nós devêssemos seguir Lacan em sua concepção da
psicogênese não haveria mais psiquiatria.” Hoje percebemos que o risco maior à
psiquiatria não vem da causalidade psíquica, tal como foi proposta por Lacan (Lacan,
científica desfigurou-se a própria psiquiatria defendida por Henri Ey. A nova clínica
psiquiátrica é uma clínica sem palavras, onde se busca eliminar a subjetividade para
Laurent afirma que essa é uma das principais conseqüências da ruptura promovida
psiquiatria, para tornar-se uma disciplina médica “autêntica”, teve que abrir mão de uma
parte importante do julgamento pessoal que estava a cargo dos psiquiatras (Laurent,
2007)86. Foi necessária essa manobra para que os psiquiatras pudessem entrar pela porta
da frente no hospital geral. Esse não deixa de ser um aspecto curioso e que trai a
apoiados pelos setores do campo psi mais resistentes ao hospital psiquiátrico – como, por
geral. Mas não seria esta, justamente, uma forma de valorizar ainda mais a causalidade
orgânica da loucura?
formação, passar por um curso obrigatório de psicopatologia. A crítica que esse autor faz
86
Laurent, D., Le médicament saisi para la logique de la technique, p.10
66
ao artigo 52 passa pela própria redação, já que é prescrito que os terapeutas devem
da existência de um homem normal. A seu ver, seria esta a razão pela qual, muito cedo,
metapsicologia.
públicos. Ele cita, como exemplo, o affair Accoyer, deputado francês que, por pouco, não
psicanalistas franceses. Para tanto, Accoyer se baseou em um relatório feito por técnicos
Milner coloca essa questão como central para saber de que forma as profissões
“psi”, assim como todas as profissões que se ocupam do mal estar de viver, se
87
Maleval, J-C., Vers une nouvelle “Psychopatologie clinique” d´État, p.30 – tradução nossa
67
Accoyer, ele aponta um procedimento que, embora equivocado, obedece a uma lógica
bastante clara, e que é forjado pelo acúmulo de vários silogismos: uma vez que se admite
que a saúde mental é questão de saúde pública, e que a saúde pública é dever do Estado, a
saúde mental é dever do Estado. E, como o mal estar de viver é problema de saúde
dessa conjuntura, que pode ser chamada de moderna. Por um lado o paradigma problema-
Ortega.
Para concluir essa parte, deixemos que o próprio Lacan nos dê sua opinião sobre a
normalidade:
88
Miller J-A e Milner J-C, Voulez-vous être evalué ? p.14
89
Lacan, J., Entrevista ao Magazine Litéraire, p.28 – tradução nossa
68
distintos. No que toca à saúde mental, a questão se torna mais complexa devido ao fato
que diversos significantes mestres, muitas vezes contraditórios, brigam entre si para
ocupar o lugar de agente no discurso. Com efeito, em nossa prática junto ao campo,
psiquiatras, assistentes sociais, juristas, religiosos, “psis” de todas as correntes, etc., falam
mental foi cunhada em 64, no momento de fundação de sua Escola: psicanálise aplicada.
pelo autor: a clínica médica e a terapêutica (Lacan, 2001a)90. Aos poucos, passou-se a
usar o conceito de psicanálise aplicada para indicar qualquer ação que fosse externa ao
divã do analista. “Passou o tempo da figura mítica do psicanalista limitando seu campo
de atividade às paredes de seu consultório para convencer de sua devoção à causa privada
Porém, no mesmo Ato de fundação em que Lacan fala de psicanálise aplicada, ele
nos dá uma indicação precisa de que o campo de trabalho da Psicanálise, aberto por
90
Lacan, J., Ato de fundação, p.237
91
Matet J-D, e Miller, J., Apresentação, p.2
69
Freud, necessitava recuperar sua lâmina da verdade (Lacan, 2001a)92. Entendemos que há
um risco real de que a psicanálise aplicada não acabe por se tornar uma psicanálise
menor, sem o mesmo rigor da psicanálise pura. Assim, ao pensarmos em uma interseção
mantém sua especificidade, não se deixando confundir com os outros discursos que
atravessam a saúde mental. Se antes a psicanálise em instituições era vista com reservas
pelos próprios analistas fazemos eco as palavras de Cottet ao afirmar que “parece
2007)93. Mesmo porque, nada nos impede de observar a mesma temida degradação da
Assim, o campo psicanalítico leva em conta o real que escapa aos discursos. Ao
afirmar que o real é o impossível, Lacan se distancia do campo da saúde mental, pois a
característica do real é que nenhum S1 pode recobri-lo, tampouco algum saber (S2)
(Lacan, 1967b). Como veremos a seguir, estamos aqui no âmago da discussão sobre
psicanálise pura e psicanálise aplicada. Nesse sentido, não se trata de conhecer o real,
É pelo ato que se pode demonstrar o real e extrair dessa demonstração alguma
conseqüência. A melhor definição de ato seria a intervenção do analista que provoca uma
ruptura entre o antes e o depois. Acreditamos que, através de seu ato, o psicanalista marca
uma presença inédita em uma instituição psiquiátrica. O analista pode estar presente em
uma instituição para curar, ensinar, supervisionar, mas nestas funções ele estará sempre
92
Lacan, J., Acte de fondation, p. 229.
93
Cottet, S., O psicanalista aplicado, p. 27
94
Idem, p.28
70
Assim, formalmente não haveria sentido em dizer que o real faz parte do campo
da psicanálise, já que não é possível transmitir algum saber sobre ele (Badiou, 1999)96, o
que faz Lacan dizer nos anos 70: “o que me salva do ensino é o ato” (Lacan, 2003a)97. É
mental quando a prática clínica tropeça no impossível. É como propomos ler a tese de
Lacan de que o ato é bem sucedido quando algo fracassa (Lacan, 2003c)98: o discurso
O primeiro a evocar essa impossibilidade foi Freud. Notamos isso quando ele
afirma que é impossível eliminar as três fontes de sofrimento universal, as quais ele se
próprio corpo e a insuficiência das medidas destinadas a regular as relações dos homens
entre si (Freud, 1971 (1929))99. Em Lacan, essas três modalidades do impossível seriam
Podemos afirmar, com Freud e Lacan, que a psicanálise se ocupa do que, no campo da
psicanálise, não como o oposto da saúde mental, mas como seu negativo:
95
Retomaremos a questão da demonstração do real no capítulo V através de um estudo de antropologia
visual
96
Badiou, A., Lacan e o real, p. 67
97
Lacan, J., Alocução sobre o ensino, p.309
98
Lacan, j., Discurso na Escola Freudiana de Paris, p. 270
99
Freud S., Malaise dans la civilisation, p.32
71
Ao ler esse fragmento, percebemos que a psicanálise visa a liberdade negativa que
não é acolhida pelo Outro, negando ao louco a dialética que o relançaria no laço social.
modo de passar essa formação singular e fora da dialética para o campo do Outro
(Maleval, 1996)101.
Biopsicossocial ou sinthoma?
Para termos uma visão dos pontos de aproximação e separação entre psicanálise e
sinthoma de Lacan. A partir do Seminário R.S.I., Lacan constrói uma teoria para o laço
social ainda mais distinta do que representa o laço para a saúde mental. O laço social, até
então trabalhado em seu ensino a partir dos quatro discursos, pode ser visto sob a
perspectiva dos nós borromeus. Adiante, quando nos detivermos na teoria das psicoses,
abordaremos com mais detalhes a teoria dos nós. Por enquanto registramos que o
enodamento dos três registros, real, simbólico e imaginário, traz uma nova perspectiva
sobre o campo “psi”. A diferença fundamental entre o laço social da teoria dos discursos
100
Lacan, J., Função e campo... p.281
101
Maleval, no seu livro La logique du delire, concebe esse processo em três etapas: significantização do
gozo deslocalizado, identificação do gozo no Outro e consentimento regulado ao gozo do Outro.
72
psicótico encontra uma invenção singular para a fixação do gozo (Miller, 2003a). Gozo
uma função que enlaça os três registros, ou seja, considerá-lo o nó, e não uma das cordas
significa que o pai não é feito do barro de nenhum dos três registros, ele é apenas a
função de amarração104. O que muda em sua teoria é que, enquanto nos anos cinqüenta a
metáfora paterna, em sua posição de exceção, garantia a ordem das coisas, nos anos
setenta será necessário que a função se apóie no sinthoma105. O que muda com o
garantida por um símbolo universal, o NP, passa a ser garantida por uma invenção
singular.
saúde mental (Aflalo, 2005). Apesar do social, tão caro às suas bases, a abordagem não
garante nenhuma amarração que o situe além da fragmentação dos diversos discursos.
Para a psicanálise, o ser biopsicossocial não é consistente pelo fato mesmo de que nada
biopsicossocial. É o que leva Lacan a sustentar em seu último ensino que o mental é
102
Maleval, J-C., La logique du delire, p.101
103
Lacan, no Seminário XXIII, diz que o NP tem essa função, mas também diz que o complexo de Édipo
tem essa função, não havendo, portanto uma diferença relevante entre os dois.
104
Voltaremos a esse ponto mais adiante
105
Como veremos no capítulo IV
73
mental, como afirma Miller: “a debilidade mental quer dizer que o falasser é marcado
momento atual um discurso que, em sua pretensão científica, substitui o papel do pai pela
norma científica. Para ela, a evidência científica torna-se, no século XXI, o único
significante mestre que é considerado irrefutável. É o que faz, a seu ver, da clínica atual
uma teratologia, já que o sofrimento psíquico é reduzido a uma causa primária, genética,
e uma causa secundária, adquirida. Assim, toda causalidade psíquica tem sempre um
um novo arcabouço identificatório do ser. O que antes era a função do pai perdeu muito
compatível com a evolução da função paterna no ensino de Lacan. O fato de o pai deixar
de ser um nome para ser uma função tem suas conseqüências. A função nunca é a mesma
como veremos adiante em um comentário de Miller. Ela escapa ao cálculo coletivo, pois
106
Miller, J-A., O último ensino de Lacan, p.13
107
Aflalo A., A orientação lacaniana ou a “ciência” psicanalítica? p.37
74
não depende mais do NP e terá que ser obtida mediante uma invenção que está sempre do
diferença, não como um discurso de exceção e sim como um discurso que recolha as
exceções, ou seja, os fragmentos de ditos que não fornecem sentido algum aos
dispositivos coletivos, e que representam o que o sujeito tem de mais íntimo. Trata-se de
por discursos e disputas que acabam por relegar a clínica ao segundo plano. Trata-se de
vezes o exigem. Ou seja, a gravidade do quadro clínico muitas vezes torna inviável o
2007)108. Veremos como a psicanálise pode integrar a conversação entre discursos tão
108
Kusnierek, M., Pertinências e limites da prática entre vários, p.163
75
que sua incidência se faz de modos diversos na obra de Lacan, uma não invalidando a
outra: causa do desejo, mais de gozar, resto, semblante, etc. Podemos dizer que há uma
Psicanálise. Surge, no título da segunda parte desse texto, inclusive a menção ao limite
na função de agente, acreditamos que Lacan funda finalmente seu próprio campo, não
apenas campo psicanalítico, ou campo freudiano como ele mesmo referia, mas campo
lacaniano.
entre múltiplos discursos e significantes mestres, que por vezes estão em franca
contradição. No momento em que propõe seus quatro discursos, Lacan estabelece que as
relações entre os elementos discursivos incluem sempre uma questão política. Essa
posição deriva do fato de que todo agente de um discurso assume uma posição de
comando. Essa flutuação dos discursos, no melhor dos casos, faz da saúde mental uma
questão política, no pior, o campo se torna palco de disputas de poder em que muitas
vezes o paciente é o maior prejudicado. Ciaccia, vê essa situação com certo humor:
[...] há muitas modalidades de prática entre vários: desde a que acontece com
vários comparsas – como o tratamento do psicótico às vezes exige – até a
prática entre vários, na qual, segundo Lacan, o “vários” se reduz, tal como
76
institucional público, não apenas na saúde mental, mas igualmente em qualquer órgão
público que seja atravessado pela burocracia estatal. Esta burocracia exige documentos,
burocracia é a própria expressão de que o Outro não existe, uma vez que não há, por trás
da burocracia, nenhum significante mestre que seja o timoneiro das ações cobradas.
comum, é porque a psicanálise não deve ser vista como mais uma das figuras do mestre
para instituição, que cobra resultados, culpabiliza seus praticantes, ou tenta impor seu
próprio discurso. Forjou-se, nos últimos anos, todo um programa investigativo sobre a
psicanálise e a prática institucional entre muitos (Baio, 1999; Ciaccia, 1999). A maioria
dos textos aponta um resto intratável que causa um mal estar que resiste aos significantes
integrante não difere da demanda usual. A expectativa é que ele diagnostique o caso,
solucione o problema e diga como tratar o paciente para que ele volte para casa o mais
109
Ciaccia, A., Inventar a psicanálise na instituição, p. 75
77
cedo possível. Trata-se, portanto, de uma demanda terapêutica compatível, até certo
terapêutico, que poderia vir por acréscimo, vira um imperativo da burocracia sobre o
psicanalista na instituição. Acreditamos, por isso, que a presença do analista não pode ser
um problema à saúde mental. Ela não pode ser imposta, desse modo ela inclui a
facilitar, mas nunca calcular exatamente suas coordenadas. Incluir a transferência nas
estratégias da saúde mental implica em restituir à clinica um espaço que ela vem
burocrática. A clínica psicanalítica, citando Miller (Miller, 2007c), é uma clínica que
inclui o privilégio no sentido de lex, lei, e privum, privado. Ou seja, uma clínica que
reintroduz o particular no universal das leis que buscam uma saúde mental para todos.
surgimento dos serviços de regulação de pacientes que são implantados, com maior ou
habitualmente não levam em conta que tratar o sofrimento psíquico é diferente de tratar a
atenção para o fato de que, nas psicoses, a problemática é ainda mais complexa.
Enquanto na neurose trata-se de uma demanda de amor ao Outro - que pode inclusive ser
Um cidadão que sofra um infarto ou tenha uma crise de vesícula pode ser
regulado – ou seja, encaminhado - para qualquer hospital da rede, o importante é que seja
um serviço qualquer.
Com Lacan, podemos afirmar que, mais nos aproximamos de uma psiquiatria
saúde mental, onde o conceito de cura é tão improvável quanto uma real escuta do sujeito
para além de sua queixa. É um dos grandes paradoxos que encontramos nos incontáveis
profissionais que atendem até quarenta pacientes em uma manhã cuja única função é
expunha as chagas das torturas políticas, dos desaparecidos, da luta pela queda de
psicanálise nos dispositivos de saúde mental no Brasil. Por um lado ela visa devolver ao
111
...e ainda assim eles voltam, e muitos pelo resto da vida!
80
louco seu direito à cidadania. Por outro, cria mais um ideal que pesará sobre o sujeito em
Contudo, ao mesmo tempo em que foi uma grande conquista, a lei 10.216 nos
deixa entrever um paradoxo. Não há reivindicação de direitos que não seja presidida pelo
identificação. Por mais que sejam criadas políticas de inclusão das “diferenças” o sujeito,
“dito”, incluído é aquele que se integra à coletividade agrupada em torno de seus ideais.
Ele é inserido quando trabalha, se diverte, se casa, enfim, quando seus valores privados se
Desse modo, a exclusão é inicialmente percebida como uma limitação, mas sua
essa a lição freudiana a ser extraída a partir de sua psicologia das massas. Para que o
sujeito seja incluído, é necessário delimitar os limites do universo ao qual ele poderá
particularizar-se como mais um (Miller, 2003a)112. Inclusão social significa aceder aos
limites da lei válida para todos, o que implica em assumir as identificações que legitimam
os papéis sociais. Na clínica psicanalítica podemos dizer que implica em saber fazer com
outros.
identificações. A resposta pela identificação sempre deixa um resto. Resto que causa o
sujeito embora não traga um saber que possa representá-lo, já que esse resto é
112
Miller, J-A., A invenção psicótica, p.13
81
ilegítimo, uma vez que não é recoberto pelo campo da lei. Mas, não é essa mesma a
tecido por estratégias singulares onde o Outro fracassa em dar aquilo que o sujeito
que nos permite passar do campo social ao campo clínico. Não se trata da clínica do
social, mas da clínica no social. Uma clínica que não se inclina diante das exigências do
Outro, mas que permita ao sujeito definir algum saber para fazer um laço social
Brousse113 afirma, sobre esse ponto, que o que distingue a psicanálise de uma
mais detalhes a solução lacaniana para o gozo que não passa para o campo do Outro,
campo do significante, essa solução é o sinthoma, com th, tal como foi grafado no
Seminário XXIII.
silenciá-lo, por um lado, ou nutri-lo de sentido, por outro. É nesse ponto que a psicanálise
acrescenta algo às políticas que lidam com a loucura. Hervé Castanet é direto em sua
crítica, referindo-se ao panorama atual das políticas de saúde mental (Castanet, 2006):
113
Brousse M H, La santé mentale bouleversée, p.5
82
O humanismo defensivo
vimos no sub-item sobre Foucault, que o humanismo passa a ser defesa contra uma
louco cidadão, mas que gerou, em certos ambientes da saúde mental, a idéia de negação
promoção social do louco115. Confundiu-se em certo momento tratar a doença com negar
tratar a doença mental, por parte da psicanálise, passou a ser visto com desconfiança por
114
Castanet, H., Um monde sans réel, p.34
115
Em 2008 realizou-se na cidade de Salvador o “Dia do orgulho louco”, iniciativa no mínimo paradoxal
pois, ao querer afirmar o orgulho por sua patologia, manipula e disciplina a percepção individual do louco
sobre sua própria relação com “sua” loucura.
83
XVII: “Uma coisa é certa: se o sujeito – da psicanálise - está realmente ali, no âmago da
diferença, qualquer referência humanista a ele torna-se supérflua, pois é esta que ele corta
maneira, o que traduz o $ (sujeito barrado) de Lacan como sujeito da ciência”117. A cada
passo da ciência, os comitês de ética devem seguir atrás buscando uma regulação de seu
humanista sustentada pelos demais discursos que compõem a saúde mental. A nova
mental.
Existe, porém, uma diferença às vezes sutil entre considerar a saúde mental um
cabe ao estado possibilitar o melhor acesso possível aos profissionais da saúde mental, na
segunda, o próprio estado passa a legislar sobre ela. No momento atual, a intervenção do
estado no campo da saúde mental passa igualmente pela esfera judiciária. No Brasil, cada
116
Lacan, J., La science et la vérité, p.857
117
Miller J-A., El outro que no existe e sus comitês de ética, p.72
84
2007; Lima, Saraiva et al., 2008). Parte muitas vezes do Ministério Público a exigência
médico.
contemporâneo deve-se ao fato de que a clínica do olhar foi transformada pelas novas
práticas jurídicas e humanitárias. A nova condição não deixa de trazer embaraços, uma
cada vez mais, obrigados a deliberar sobre a cidadania do louco sem nada saber sobre a
loucura. O processo de judicialização da saúde mental expõe essa dificuldade como nos
indica o próprio Procurador-Geral da Justiça em seu comentário sobre a lei 10.216: “Não
são os pobres que estão a ingressar na órbita jurídica, somos nós, da órbita jurídica, a
lei 10.216, é cada vez mais forte no cotidiano dos dispositivos de saúde públicos e
privados. É como se a ele tivesse acordado para o fato que as divergências haviam
118
Teixeira, M.A., Internação Psiquiátrica Involuntária, p.16
119
Idem, p.22
85
exemplifica a complexidade do debate e nos faz recordar a dança dos poderes na loucura
comportamento agressivo em casa, com seus próximos, e na rua de sua cidade no interior.
Por diversas vezes ele havia sido trazido ao hospital para internamento devido à suas
medicamentos em doses elevadas fez com que a psicocirurgia se tornasse uma indicação
da equipe médica.
decisão de não transferir o paciente, o que causou viva celeuma com o próprio Conselho,
já que o diretor não reconhecia o poder deste, mas igualmente com grande parte da
comunidade psiquiátrica, uma vez que instalou um grande debate sobre o poder do diretor
diante da soberania do ato médico. Interpelado formalmente, coube dessa vez ao diretor
fazer apelo ao Ministério Público para que o procedimento não fosse realizado.
86
Público, o diretor fez prevalecer a idéia de que cabe ao médico cuidar do sofrimento
subjetivo e que, nesse caso, não havia sofrimento por parte do paciente. A demanda de
tratamento visava restaurar a ordem pública e familiar. Quando a psiquiatria começa agir
em nome da ordem pública e não do sofrimento de seus pacientes ela está a um passo de
Percebemos com esse episódio que o caso clínico passou por diversas esferas do
diretor do hospital e por fim o ministério público. Todo esse percurso foi necessário para
que algo da clínica pudesse emergir. Apoiado por servidores do hospital que eram contra
essa decisão médica – muitos da luta antimanicomial, outra forma de poder – o paciente
por parte do ministério público, não mais foi questão a cirurgia. A nova abordagem
ponto de perturbação desse paciente por onde ele passa. A dificuldade - mas também o
campo da saúde mental não é possível pensar em solução radical do sinthoma sem
Buscamos demonstrar, até aqui, que a saúde mental não apresenta um pilar único
autoriza o chiste lacaniano de saúde (débil) mental (Lacan, 1974a). Quem estará em boa
2005b)120? Aquele que abole sua singularidade para não ser segregado pelo discurso da
norma? Nos diversos comentários de Lacan sobre o mental fica evidente que atrelá-lo ao
significante saúde é no mínimo uma ironia. A Saúde Mental, com maiúsculas, só pode,
sinthoma.
Lacan, os impasses do laço social na saúde mental. O capítulo se divide em três partes,
social implica em uma abertura ao outro, movimento do um ao dois, ou seja, ele implica
120
Lacan, J., Le Séminaire XXIII, p.37 - Lacan usa esta expressão quando fala da afinidade dos
sentimentos com o imaginário, tal como antes havia empregado a expressão, saúde débil mental, o que lhes
conferiria fatidicamente um caráter de debilidade.
89
que ele seja condenado a habitar o campo do Outro (Lacan, 2005b)121. Nessa perspectiva,
o sujeito está condenado ao laço social, uma vez que vive o eterno diálogo com o Outro.
que faz obstáculo ao Eros universal, de um gozo que nunca passará ao campo de trocas
Lacan na construção de sua teoria das psicoses, e que servirão para que possamos
objeto a como ponto de reversão entre monólogos e diálogos no laço social. Em sua
função de causa do desejo, ele é Eros convidando ao passeio nas ruas. Em sua função de
resto ele é Tânatos que, como veremos, leva à “objetalidade” da segregação e da pulsão
de morte.
121
Lacan, J., Le séminaire XXIII, Le sinthome, p. 95
122
Lacan, J., Le séminaire XX, Encore, p. 63
123
idem
90
que por si introduz uma permanente tensão entre múltiplos “outros”, o mesmo não pode
ser dito quando se trata da doença mental. Há um movimento crescente que nega a
sua originalidade, tornando-se uma psicoterapia como qualquer outra (Lacan, 2001e).
substrato biológico, quanto de uma posição dita “culturalista”. É sob o pano de fundo
dessa advertência que devemos pensar o que ele define como sendo o campo da
que, como seres falantes, estamos condenados a viver em permanente diálogo com o
Outro, mas esta afirmação não no leva a concluir que tudo se resolve no meio social.
alteridade que impedem que o sujeito seja enclausurado no campo do Um ou, em sentido
contrário, diluído nas identificações e funções sociais do Outro. No percurso que faz
2001e), desponta uma teoria sobre a instituição do Outro que não é unívoca, nos
autorizando a falar de alteridades, no plural. É o que Lacan muito cedo destacou em seu
124
Lacan, J., La psychanalyse vraie, et la fausse, p. 167
91
125
Seminário sobre as Psicoses, “o eu humano é o outro”(Lacan, 1981) . Nesse
afirmar que o eu é o outro, ele nos expõe a complexidade que está envolvida na clínica
das psicoses. Trata-se de uma clínica que trata do sujeito, e não do Outro, o que até aqui é
simples, mas que não pode se apoiar no eu, já que este, igualmente, é outro para o sujeito.
estabelece uma relação de alteridade para o sujeito lacaniano trazendo uma provocadora
125
Lacan, J, Les Psychoses, Le Séminaire III, p.50
126
Maldiney, H., Penser l’homme et la folie, p. 201 – tradução nossa
127
Lacan, J. op. cit, p.48
92
- Ela passa pela questão do objeto, que inicialmente era objeto da Demanda ao
Outro (Lacan, 1966k), para posteriormente ser objeto a, caído do próprio sujeito -.
1975b).
- Passa pela questão do Outro sexo e da formulação d´A Mulher como alteridade
infinita;
Levando em conta todas essas relações de alteridade que acabam por definir uma
separação radical entre real e sentido, podemos avaliar de que modo o sujeito, parasitado
momento em que proferiu o Seminário III do que na seqüência de seu ensino. Essa
constatação não deixa de ter efeitos sobre o modo como é concebido, por ele, o papel da
linguagem.
é, precisamente, a crença no sentido que o falo, como garantia do conjunto dos efeitos de
significação, assegura (Lacan, 1966h)128. É essa a garantia que se pode esperar do Nome-
uma significação para o sujeito. Ou seja, sua fala apenas possui significação quando a
128
Lacan, J., La signification du phallus, p.690
93
enunciação se torna enunciado a partir do encontro com o campo do Outro. É o que no,
Seminário III, permite a Lacan fazer a diferença entre as frases interrompidas – frases
A frase apenas se torna viva a partir do momento em que ela apresenta uma
significação. (...) O que distingue a frase que é compreendida da frase que não
o é, o que não impede que ela não seja escutada, é precisamente o que a
fenomenologia do caso delirante põe tão bem em relevo, a saber, a antecipação
de significação (Lacan, 1981)129.
Enunciado
sujeito Campo do
Enunciação Outro
Assim, o Nome-do-Pai tem como função encobrir o fato de que o sujeito pode
confrontar-se com o vazio ao buscar uma resposta no campo simbólico. O vazio irrompe
na fala a todo instante, uma vez que ele habita o espaço entre os significantes, entre o S1
e o S2, e que o único modo de manter juntos dois significantes é conferindo a eles algum
Significação fálica
Ausência de Sentido
NP
sujeito
Enunciação A/
129
Lacan, J., Le Séminaire III, Les psychoses, pps.154-155
94
freudiano, das duas palavras alemãs que, a princípio, teriam significação similar, Sache e
Ding. Ambas podem significar a palavra ‘coisa’ em alemão. Contudo a distinção é bem
evidente, como podemos perceber nessa frase: “A Sache é com certeza uma coisa,
Contudo, falar da coisa como Ding, marca uma alteridade bem diferente. Para
nitidamente, a invenção de seu objeto a, três anos mais tarde, no Seminário A angústia.
Este objeto estará aí quando todas as condições forem preenchidas, no final das
contas – bem entendido, é claro que aquilo que se trata de encontrar não pode
ser reencontrado. É de sua natureza ser objeto perdido como tal. Ele nunca será
reencontrado. Algo está lá esperando o melhor, ou esperando o pior, mas
esperando132.
Extraímos, dessa passagem, a lição de que o sujeito, em sua relação com a Coisa,
130
Lacan J., L’éthique de la psychanalyse, p.58
131
idem, p.56
132
idem, p.65
95
Embora sua pergunta vise uma resposta sobre a Coisa, é no campo das Sache que ele
pode formular respostas. Acreditamos que, a medida que Lacan avança seu estudo sobre
a Coisa como aquilo que não tem nome, ele se afasta do estruturalismo. Em um texto
por terra, cedendo lugar a três novos termos no ensino de Lacan, que apontam para essa
mental. O simbólico rateia. Em nossa leitura, acreditamos que a saúde mental não se
escreve com maiúsculas por não poder tratar do sujeito em sua integralidade, tal como
sua teoria do gozo, percebemos que há uma parcela de gozo que não passa pela lógica
fálica, e que é, portanto, impossível de ser dita pelas palavras. Sem dúvidas, onde essa
em seu Seminário XX. Trata-se da separação entre gozo fálico, aquele que se inscreve
pela castração nas relações entre homens e mulheres, e o gozo do Outro, chamado de
133
Miller, J-A., L’apparole, p.5 Optamos por traduzir apparole por appalavra e não por affala, para
mantermos a semelhança com a palavra aparelho, em francês appareil, fundamental para compreensão do
desenvolvimento feito por Miller no texto em questão.
96
Ao lermos o Seminário XX, nos damos conta de que o gozo do Outro, apesar do
nome, é um gozo experimentado no próprio corpo do sujeito. Trata-se do corpo que não é
pensado, é puro ser de gozo sem palavras, Outro para o ser pensante que o experimenta.
É o que leva Lacan a afirmar, em 74, que a debilidade mental deriva do fato de que o
mental é enraizado no corpo (Lacan, 1974d). Podemos entender esse comentário como o
que faz impasse ao laço social. A afirmação de que o mental é enraizado no corpo nos faz
ver que, para Lacan, o mental é um órgão de gozo, tanto quanto o são outros órgãos do
corpo (Lacan, 2003e)134. Ainda como órgão de gozo, podemos pensá-lo submetido ao
destino dos órgãos de gozo na teoria lacaniana, servir ao gozo auto-erótico e esvanecer-se
para que a pulsão o erija novamente. Mestrado - "o mental é enraizado no corpo; o mental é um órgão de gozo"
deparamos com uma das formas lacanianas de designar o real. A partir do comentário
acima nos damos conta de que o real em jogo na debilidade do mental passa pelo corpo.
Aqui nos referimos ao corpo que contém o gozo opaco, excluído de sentido135, inservível
para qualquer atividade do mental (Lacan, 2001d). Não se trata, portanto, do corpo
através da operação da castração. Para ele, o real, como impossível de dizer, atesta
igualmente uma debilidade do sujeito na aquisição de um saber universal sobre seu gozo,
ou seja, para além do gozo que pode ser falado pela língua do Outro – o gozo fálico –
partir do Um autista do gozo para aceder ao laço social. Ou seja, como passar de uma
134
Lacan, J., A lóciga da fantasia, p. 327
135
Lacan, J., Joyce le Symptôme, p.570
97
sujeito no campo do sentido, que apenas emerge quando algum significante faz função de
abordar essa questão a partir de Freud, quando ele teoriza a passagem do narcisismo
partir do significante que funda o sujeito, seu S1, em sua relação com o S2, significante
do saber que esse sujeito pode ter de sua própria existência. Nos anos 50, Lacan toma
essa questão através da metáfora paterna e da clínica das psicoses (Lacan, 1966a). A
saída do gozo narcísico passa pela simbolização instalada pela Nome-do-Pai. Trata-se da
metáfora paterna incidindo sobre o desejo materno, significando, para o infans, que ele
No caso das psicoses percebemos que o monólogo pode ser reforçado pelo
próprio discurso que se ocupa delas. É assim que, em meio à batalha do Um encarnado
saúde mental, o posicionamento da psicanálise deve ser interrogado visando saber se sua
inserção nesse campo aporta algo que lhe seja original e particular.
Objetalidade e lalíngua
como exposto no primeiro capítulo, esse princípio foi o motor da maioria das correntes
que impulsionaram a reforma psiquiátrica por todo o mundo. A distinção se faz pelo
98
modo como a questão do objeto é tratada na psicanálise lacaniana. Lacan opõe ao termo
como “o último termo do pensamento científico ocidental”, ou seja, o objeto que pode ser
alcançado e manipulado pela ciência, mas abordar o objeto pelo que ele evoca de um
- Ele pode igualmente ser reduzido a objeto quando identificado ao falo materno
(Freud, 1976). Esse tipo de redução gerou uma grande escola na Inglaterra quando
Bowlby propôs um modelo de saúde mental baseado no feliz encontro da relação mãe-
A manobra feita pela clínica psicanalítica passa por dois movimentos: fazer surgir
o paciente como sujeito e deslocar a função de resto, antes colada ao paciente, para a
própria estrutura da clínica. Essa manobra nos parece fundamental, pois transfere a
condição de resto do paciente para o saber formal lógico. Encontramos essa posição em
Miller:
136
Lacan, J., Le séminaire X, L´angoisse, p.248
99
Observamos que, nessa passagem, Miller não se refere às psicoses e sim à língua
falada por todos. Ou seja, o inconsciente, como o que escapa ao pensamento formal
lógico, é válido para todo ser falante. Veremos adiante como esse aspecto nos é
estará sempre presente, e se constitui no osso duro da clínica das psicoses. Na perspectiva
incomunicabilidade impossível.
O autismo do gozo, que parasita as relações sociais, nos permite abordar o grande
paradoxo da clínica das psicoses, já identificado por Freud desde seu texto Sobre o
narcisismo, uma introdução (Freud, 1976). É que nas psicoses, o sujeito é submetido a
formalizada pelo saber. Ou seja, é no próprio paciente que esta experiência negativa se
materializa. Esse fundo de incomunicabilidade nos leva a dizer que, por mais inserido
137
Miler J-A., Teoria d´Alíngua, p.62
100
que o sujeito esteja no laço social, independentemente de sua estrutura, o sujeito está
condenado ao monólogo.
pela experiência do Outro (Freud, 1976). O próprio Lacan, no Seminário XXIII, localiza
Eu gostaria de ressaltar para vocês que na teoria de Freud, o real não tem nada
a ver com o mundo (...) há uma etapa do narcisismo primário que se
caracteriza, não pelo fato de que não haja sujeito, mas que não haja relação
entre o interior e o exterior (Lacan, 2005b)138.
linguagem, que é sempre Outra para o sujeito. É essa a condição própria da existência,
“Existir supõe a dor de ser lançado no mundo, supõe a linguagem que não dá conta de
todos os juízos” (Ferrari, 2006). Na clínica das psicoses, essa questão é fundamental,
sobretudo para identificar o modo como o sujeito psicótico interpreta o gozo que lhe é
enigmático. Chamamos de gozo enigmático a experiência de gozo que não consegue ser
traduzida pelos significantes do Outro. É, portanto, um gozo139 que escapa à lógica fálica
Lacan afirma, justamente, que essa experiência, vivida pelo sujeito, no primeiro
momento, como puro vazio enigmático da significação, lhe trará em seguida um grau de
certeza proporcional a esse vazio (Lacan, 1966a)140. Percebemos que nesse ponto há uma
certeza que é a matriz de toda formação alucinatória ou delirante que possa florescer:
138
Lacan, J., Le Séminaire XXIII, Le sinthome, p.154
139
Acreditamos poder relacionar a libido freudiana e o gozo lacaniano nesta passagem específica.
140
Lacan J., D’une question préliminaire...p.538
101
sujeito, e não pode ser compartilhada com ninguém (Laurent, 1993b)141. É, portanto, uma
modalidade de algo novo não simbolizado pelo sujeito – e do gozo autista, não
comunicável. Ambos, porém, sem a mediação fálica que daria ao sujeito uma chave para
interpretação. E que faria esta chave fálica? Atribuir a experiência de gozo ao corpo
próprio ou ao corpo do outro dentro das coordenadas do fantasma sexual, é o que nos
dispositivo instalado, mas que não responde como estrutura, e sim no caso a caso (Miller,
1996a).
Quando esse gozo não pode ser localizado pelo fantasma em um desses dois pólos
(corpo próprio ou campo do Outro) ele é a causa maior dos estados de angustia do sujeito
psicótico. Como tratamento dessa angústia surge a interpretação delirante, que é resposta
ao enigma.
intersubjetividade, que a linguagem passa a ser obstáculo, e não meio, para obtenção do
laço social em sua teoria. De que modo o obstáculo se faz presente? A teoria da lalíngua é
concebida por Lacan precisamente para dar conta desse fato. Trata-se de fazer prevalecer
141
Laurent, É., Trois énigmes...p.34
142
Lacan J., Le Séminaire XX, Encore, p.126: lalíngua serve a fins muito diferentes do que a comunicação.
102
Diálogo
Intersubjetividade
Monólogo
da
Lalíngua
os efeitos de significação de suas palavras quando estas são afetadas pela lalíngua. Assim
intersubjetividade:
confirma sua tese de que não há comunicação sem mal-entendidos e que o único modo de
Crença difícil de ser sustentada, naturalmente, uma vez que tudo leva à sua
inconsistência.
143
Miller J-A., L’apparole, p.8, tradução nossa.
103
1975b), como vemos, essa frase foi proferida em perfeita coerência com os
universal, o fixa como um ser social, um ser que se humaniza precisamente através da
experiência da linguagem e do contato com o Outro. Mas o ser também fala a lalíngua, o
que provoca imediatamente um complexo giro na relação entre o que pode ser definido
como fala e o que pode ser definido como comunicação. É como poderíamos definir o
A inversão que se produz, a partir dessa concepção de falasser, é que o Um, ou,
digamos, o núcleo do narcisismo primário freudiano, passa a ser vivido como corpo
Porém, é igualmente com ela que ele fabrica a lalíngua, ou seja, de onde ele pode extrair
É possível encontrar uma base, embora não desenvolvida, para a teorização sobre
o autismo do gozo que propõe Lacan no próprio texto de Freud Sobre o narcisismo uma
Modo como as palavras vibram no corpo; sendo instrumentos de gozo desse corpo
104
desse corpo, e não objeto de reconhecimento do Outro. Não se trata do corpo que serve
para trocas imaginárias ou que pode ser falado através do significante. Trata-se do corpo
que funciona como obstáculo ao laço social, o corpo no que ele tem de eminentemente
conecta ao campo do Outro. Como vimos a pouco, essa fórmula, nas neuroses, é
possibilitada pela constituição da fantasia (Lacan, 2003e). Mas o caminho que toma
Lacan é precisamente de mostrar que a própria fantasia que conecta o sujeito é uma farsa:
[...] pela primeira vez, apoiamos o fato de que esse lugar do Outro não seve ser
buscado em parte alguma senão no corpo, que ele não é intersubjetividade, mas
cicatrizes tegumentares no corpo, pedúnculos a se enganchar (brancher) em
seus orifícios, para neles exercer o ofício de ganchos (prises), artifícios
ancestrais e técnicos que o corroem (Lacan, 2003e)144.
A clínica das psicoses nos ensina que o louco busca, igualmente, a localização
desse gozo através de mecanismos que lhe sejam próprios, permitindo uma localização
Daí, para nós, a relevância de um comentário feito por Lacan onde ele reafirma
que o laço social não é puro efeito de discurso, pois inclui o corpo e os efeitos que, nele, a
“Tenho a tarefa de desbravar o estatuto de um discurso ali onde situo que há ... discurso:
e eu o situo pelo laço social a que se submetem os corpos que abitaño (labitent) esse
144
Lacan J., A lógica da fantasia, p.327
145
A tradução da edição brasileira de labitent não nos dá a dimensão homofônica de “là habitent”, no
sentido de que os corpos habitam “aí, no discurso”.
146
Lacan J., O aturdito, p.475.
105
Dizer que o discurso não caminha sem o corpo muda o modo de se pensar a
inserção no social. Para além das trocas intersubjetivas, o falasser, atrelado ao opaco do
gozo do corpo, é incapaz de responder aos ideais da socialização sem que algo escape às
capaz de capturar esse gozo, tornando necessário, do lado da clínica, que se faça uma
criação. Como afirma Miller, ninguém melhor do que o louco para denunciar a ironia de
que o laço social, no fundo, é uma escroqueria, que o Outro que garantiria o laço não
existe, e que todos nós estamos sós no momento em que apostamos na humanização do
momento para a aproximação das duas no mesmo campo de trabalho é dos mais
oportunos. Nenhum significante mestre está, hoje em dia, a altura de unificar o conceito
Par default a clínica da Saúde mental tornou-se uma clínica da criação, em sintonia,
portanto, com a exigência de produção de algo novo, assim como o faz a própria
psicanálise.
Nossa tarefa, portanto, é alcançar uma clínica que, embora não deva ceder aos
caprichos do Outro social deve, certamente, levar o sujeito a olhar para a direita e para
esquerda antes de atravessar a rua. Não se deve, contudo, confundir inserção social e
porque o sujeito, ainda que andando pelas ruas, pode seguir encarcerado em sua relação
psicóticos hospitalizados em situações de franca ruptura com o laço social, onde o delírio
demandava uma outra apreensão da relação entre o sujeito psicótico e o mundo que o
rodeia. Com o avanço da teoria lacaniana das psicoses constatamos uma mudança de
perspectiva sobre o laço social. O Nome-do-Pai torna-se apenas uma forma, entre outras,
para tentar obturar a falha estrutural do Outro (Lacan, 2006a). Nos anos 70 ele será visto
como uma suplência bem sucedida, porém uma entre outras possibilidades, como o ato e
passo pode ser visto como um esforço lacaniano para pensar a direção do tratamento a
pelo Outro simbólico para ser o modo como cada um se vira para manter coesos os três
registros. É o que nos permite afirmar que, no primeiro momento da teoria de Lacan, o
gozo do Um.
O que, na primeira clínica, surge como tensão e conflito entre o sujeito e o Outro
adquire uma inédita homeostasia na segunda clínica. Isto porque na clínica dos nós o
Outro não é jamais radicalmente Outro. O nó borromeu é uma tentativa de escrever o que
antes era o Outro simbólico como sendo feito do mesmo barro do corpo próprio e do
107
gozo. “Se é que existe um Outro real, ele não se encontra fora do nó mesmo, e é por isto
Sintoma como sintoma surge na teoria lacaniana inicialmente como metáfora de um significante
metáfora de um
significante
recalcado
recalcado. Assim, ao lermos o texto de Lacan “A instância da letra no inconsciente” nos
damos conta de que era preciso atingir o significante inconsciente recalcado para desfazer
uma mudança significativa. Não se trata mais do sintoma como mensagem que se Sintoma como
criação, não faz
apelo ao
satisfaz, mesmo cifrada pela metáfora. O que está em jogo é o sintoma como criação, ou deciframento, não se
alimenta do gozo de
sentido
aparelho, que não faz apelo ao deciframento, não se alimentando, portanto, do gozo do
lalíngua, poderíamos pensar que Lacan nada quis saber do laço social em sua obra.
Porém, nos parece que sua preocupação maior era precisamente pensar como o discurso
psicanalítico poderia escapar às ciladas, que ele mesmo apontara, inclusive nas
laço social que inclua o real do laço social que reforça os efeitos de grupo da teoria das
147
Lacan J., RSI, Ornicar 5, p. 35
108
aquilo que pode fundar um laço social limpo de qualquer necessidade de grupo” (Lacan,
2001c)148.
Seria essa a motivação para pensar a psicanálise como uma criação, tanto como o
próprio sintoma o é. Ou seja, o sintoma deriva de uma criação que responde a algo que
não funciona no real. Essa seria a condição para afirmarmos que a psicanálise não é
apenas criação, ela inclui o sintoma. Somente podemos falar em psicanálise quando o par
Diagnosticada desde a infância, no início dos anos 50, como portadora de autismo de
livro em que narra sua saída da solidão do autismo, Labeled Autistic, em 1986. Maleval
Para além do ordenamento rígido do ambiente, que lhe fixa um campo da realidade,
1998)150. A própria Temple descreve seu modo de pensar como um “Web Browser”, uma
Desde que escrevi Thinking in Pictures, que descreve meu modo visual de
pensar, tive alguns insights sobre como meus processos de pensamento são
diferentes se comparados aos das pessoas que pensam pela linguagem. Em
encontros sobre o Autismo, perguntam-me com freqüência “Como você pode
ser efetiva falando publicamente quando você pensa em quadros, que são como
vídeotapes em sua imaginação?” ...Somente entrevistando as pessoas foi que eu
aprendi que muitas delas pensam primariamente com palavras, e que seus
pensamentos são conectados com a emoção. Em meu cérebro, as palavras
atuam como um narrador para as imagens visuais em minha imaginação. Eu
posso ver as fotos em meus arquivos de memória (Grandin, 2000)151.
148
Lacan J. Étourdit, p.474
149
Mahjoub. L., La creation et le symptôme dans notre modernité, p.86
150
Maleval, J.C., La machine autistique de Temple Grandin, p.66 – tradução nossa
151
Grandin, T., My mind is a Web Browser: How people with autism think, p.14 – tradução nossa
109
aperfeiçoado, e que lhe garante total mobilidade no laço social. Não se trata aqui da
repertoriados pela literatura, e sim de uma enorme capacidade de mobilizar os S2. Esses
habilidade, a mesma é incapaz de ser afetada pela emoção, pela ironia, ou pelo humor do
Outro. Seu caso, em si, nos traz toda a ironia que o conceito de laço social pode
conferencista, sua invenção lhe mantém viva, a condição de que ela mantenha as rédeas
do laço.
sintomática que inclui o corpo na incomunicabilidade de seu gozo. Para além do corpo
imaginário, formado a partir da imagem especular, há o corpo como ser de gozo, e não
como imagem. Este, em Lacan, é montado a partir da teoria do objeto a. Portanto, ele não
se dá a ver, não é quantificável nem manipulável pelo saber científico, ele é indócil às leis
(Miller, 2005c).
152
Maleval, J.C., idem, p.67
110
prática médica, o sintoma estendeu-se para desordens que vão muito além da medicina.
Esta extensão do conceito acabou por fazê-lo equivalente à desordem do laço social por
enunciação de cada paciente. Laurent deduz que o momento clínico atual traz o paradoxo
um novo modo de pensar a reinserção social. Não se trata de eliminá-lo, mas de buscar
um esforço do sujeito para isolá-lo como criação. Significa construir uma clínica que
Lacan cita alguns filósofos que, a nosso ver, contribuíram para a elaboração da
clínica das psicoses nos anos 50. Seria impossível, na extensão do presente trabalho,
esgotar as referências à filosofia feitas por Lacan em sua obra. Sua erudição exigiria um
trabalho que nos faria, certamente, perder a orientação de nossa questão. Há, contudo,
referências que merecem uma reflexão, uma vez que elas nos auxiliam, tanto na
compreensão da primeira clínica, quanto no clareamento dos passos que levaram Lacan a
Assim, nosso percurso pelas referências filosóficas que se seguem tem como
objetivo perceber como a filosofia auxilia Lacan a dar conta das relações entre o Um e o
É orientando sua teoria e sua prática em direção ao real das pulsões e do gozo
que a psicanálise triunfa ao recuperar o que há de particular em cada sujeito.
Mais precisamente, no lugar de reduzi-lo ao universal das formas kantianas ou
das leis científicas, a psicanálise conta o sujeito um a um (Nascimento, 2007)
153
.
Destacamos três pontos específicos, por considerar que eles nos auxiliam a pensar
a passagem da clínica das psicoses dos anos cinqüenta para a clínica dos anos setenta.
tradição racionalista, fracassa a definir o ser do sujeito, o que é confirmado pela clínica
ajuda a perceber a passagem da Coisa, das Ding, tal como Lacan a aborda no Seminário
Pascal, referência lacaniana que nos mostra que a crença no Outro é compatível com a
clínica do Outro que não existe. As três referências nos ajudam a formar o quadro da
Descartes e Aristóteles
que apenas enfatizamos, aqui, a separação entre inconsciente e pensamento que surgem
153
idem, p.59
112
No Seminário III, nos deparamos com a comparação que Lacan promove entre a
deve dizer que o homem pensa, mas que ele pensa com sua alma. Igualmente, digo que o sujeito
Em nossa pesquisa foi curioso ver que Lacan retoma essa questão, anos mais
tarde, no Seminário XX156. Dessa vez ele retoma a questão dos limites do pensamento,
sustentando que esses limites são os mesmos propostos por Aristóteles (Lacan, 1975b).
O diálogo entre esses dois momentos de Lacan nos mostra que o percurso de seu
ensino isola duas clivagens fundamentais, introduzidas pela psicanálise. Inicialmente ele
consolida uma idéia, presente desde muito cedo: que o inconsciente se opõe ao eixo da
realidade. Assim, a realidade não dará conta dos fenômenos em jogo na clínica que se
inconsciente não quer dizer que o ser pense” (Lacan, 1975b). Consolida-se, aqui, a
sujeito da razão e o sujeito da psicanálise. Vala a pena observar que estamos, nesse
momento, no apogeu de Foucault e de seu estudo sobre a desrazão. Trata-se, a nosso ver,
154
Lacan, J., Le Séminaire XXIII, Le sinthome, p.144, tradução adotada por Ram Mandil
155
Lacan, J.,Le Séminaire III, Les Psychoses, p.23.
156
Lacan, J., Le Séminaire XX, Encore, p.100.
157
Lacan, J., Le Séminaire XX, p.95
113
Milner, em seu livro A obra clara, afirma que essa frase do Seminário XX é a
excluído, julgamento, dúvida, etc.) (Milner, 1995)158. O autor sintetiza, desse modo, as
o “eu que pensa”, ou sujeito cartesiano. Lacan afirma seu afastamento do sujeito
lacaniano, ao contrário, não existe ali onde ele pensa. O que nos parece um silogismo
banal é, no fundo, a chave para compreendermos porque Lacan nos convoca a não recuar
diante das psicoses. Tanto quanto durou em seu ensino a categoria de sujeito, este sempre
esteve, para Lacan, além da razão e da desrazão. Trata-se de uma subjetividade em nada
este deve ser considerado, como ressalva Mandil, dentro da perspectiva de algo que se
impõe ao sujeito, pensamento que é experimentado como “algo estranho, com valor de
158
Milner, J-C. L’oeuvre claire, p.144.
159
Lacan J., L’instance de la lettre, p.516 – tradução nossa
114
precisamente, para dar suporte ao pensamento sem confundir-se com o mesmo. Ou seja,
Lacan afirma que seus nós configuram uma cadeia que faz a escritura na qual o
Merleau-Ponty
Em seu curso intitulado Silet, Miller intitulou uma das aulas Lacan versus
Lacan. Desse encontro extraímos alguns pontos que concernem diretamente à teoria das
psicoses. Viemos construindo, até o momento, a idéia de que, na clínica das psicoses, é
necessário distinguir os fenômenos que buscam ou sofrem uma tradução ao passar pelo
dos sentidos. É possível extrair uma importante diferenciação clínica a partir dessa
constatação. Essa proposta é levantada por Naveau a partir da controvérsia entre Lacan e
Merleau-Ponty sobre a natureza das alucinações (Naveau, 2005)163. Lacan afirma que a
alucinação é uma percepção sem objeto. Merleau-Ponty afirma que a alucinação não é
160
Mandil, R., Appensamento, p.26
161
Lacan, J., Le Séminaire XXIII, Le sinthome, p.144
162
Miller, J-A., Silet, p.290
163
Naveau, P., Les Psychoses et le lien social, p.36
115
uma percepção: “ (...) a alucinação não é um conteúdo sensorial, só nos resta considerá-la como
dos dois autores. Seguindo o ponto de vista desse último, a alucinação é um fenômeno
desconectado do Outro uma vez que nenhum perceptum seria capturado pelo percipiens.
Lacan, por sua vez, parte do princípio de que há percepção na alucinação. Ele acrescenta:
a diversidade dos registros das sensações visuais, auditivas, olfativas, etc., não ameaça a
Pode, a princípio, causar estranheza que nessa passagem Lacan, que se dedicou,
afirmação. Aqui, ao convocar a realidade, nos parece que Lacan busca sustentar a
dar testemunho de que o problema não é que o perceptum não exista, tal como afirmava
Merleau-Ponty - o que não implica que ele faça parte da realidade – mas que o perceptum
é da ordem do real.
Seu comentário aponta uma orientação clínica que busca manter o foco na
estar à altura da realidade implica em suportá-la ali mesmo, onde o real faz furo. A
164
Merleau-Ponty M., Phénoménologie de la Perception, p. 386
165
Lacan J. , D’une question préliminaire a tout traitement possible de la pschose, p.532
116
de julgamento.
Baas, contudo, afirma que há muito mais semelhanças do que discórdias entre os
dois pensadores (Baas, 1995). A proximidade teórica entre os dois autores, inclusive, foi
marcada por uma grande amizade. Conta-nos Roudinesco que a única vez que se recorda
(Roudinesco, 1993)166.
Há uma grande aproximação entre a Coisa tal como ela é concebida por Lacan e a
carne (la chair), conceito muito específico na obra de Merleau-Ponty. Em sua obra, a
movimento do Seminário de Lacan que vai do Seminário VII, A ética da psicanálise, até
da Coisa ao objeto a, pode ser lido sob inspiração da obra do autor da Fenomenologia da
168
Estabelece-se uma topologia do quiasma que, para Baas, é a mesma
166
Roudinesco E. , Jacques Lacan, p.368
167
Baas B., Notre étoffe, p.48
168
idem, p.49
117
O corpo, por um lado, faz parte do mundo, ou seja, das coisas que podem ser
sentidas. Sentimos nosso corpo a tal ponto que podemos nos referir a ele na terceira
pessoa. Por outro lado, é com esse mesmo corpo que sentimos o que pode ser sentido,
inclusive nosso corpo. Nesse sentido ele é coisa sensível. Baas propõe o seguinte
esquema169.
Topologia do quiasma
corpo
corpo, tem uma afinidade com o objeto a lacaniano. Ambos possuem o critério de
reversibilidade. É no corpo que se produz a reversão daquilo que é coisa que sente para
É impossível se obter uma visão do mundo, pois para que essa visão seja
possível, temos que eliminar daquele que vê sua própria condição de ser coisa que –
garantida, nesse esquema, pela fita de Moebius, que assegura que a percepção da
realidade inclui o próprio sujeito pensante. Ou seja, não há interioridade do ser que não
O corpo (...) agrupa as coisas percebidas e, com elas, entre elas, o corpo que
percebe. E é por isso que não podemos aqui nos contentar com uma topologia
ingênua que faz do corpo um simples envelope da alma, como sugere a idéia
do olho como uma “janela da alma”(Baas, 1995)170.
Pascal
na obra de Lacan, e que lhe serve de contraponto ao Deus dos filósofos e sábios, Blaise
Pascal. Enquanto Kant e Descartes apontam para uma dialética que serve à construção da
realidade sob a égide do Outro, acreditamos que a aproximação maior de Lacan por
Merleau-Ponty e Pascal deriva do fato de que esses pensadores possuem o substrato para
O Deus de Pascal não é extraído de sua filosofia. Seu encontro com Deus tem data
e hora precisa, a noite de 23 de novembro de 1654, entre dez e meia e meia noite e meia.
Pascal é o Deus de Abraão, Isaac e Jacó, e não o Deus dos filósofos e sábios. É a esse
Deus que se refere Lacan no texto sobre a Subversão do sujeito e a dialética do desejo
(Lacan, 1966k)171.
intimidade, da vida de Pascal? Em seu Memorial, Pascal rompe com o Deus dos filósofos
e se dá conta de que nenhum pensamento científico o levará até Ele. O Deus de Pascal é o
170
idem, p.50
171
Lacan J., Subversion du sujet et dialectique du désir, p. 818
119
considera esse momento como o momento mesmo da gênese do “Outro que não existe”,
pois nos mostra que não há Outro absoluto correlato ao Nome-do-Pai (Guéguen, 2007)172.
implica em uma construção analítica que dá lugar a cada etapa da razão e, por fim, Deus,
toda a construção. Já Pascal apresenta uma tese mais complexa. Seu Deus está em todo
lugar e em nenhum lugar, não há para ele um lugar específico. Trata-se de um Outro que
difere do Deus cartesiano já que, mais do que incompleto, ele dispensa a existência da
seus Pensamentos (Pascal, 2001). Uma esfera infinita onde o centro está em todo lugar e
fruto de uma aposta. Esse Outro convém a Lacan no momento em que, para além da
incompletude, ele concebe o Outro como inconsistente. Para Lacan, a aposta pascaliana
vem de seu horror ao vazio, se Deus é o centro da esfera infinita, nenhum cálculo
psicoses. A passagem da certeza à crença é uma manobra difícil nas psicoses. Estamos
momento de certeza veio igualmente após a confrontação com o vazio. Nesse momento,
172
Guéguen P-G, La genèse de l’”Autre qui n’existe pás”, p., 21
173
Lacan, J., Le Séminaire X, l´angoisse, p.83
120
com um analista pode permitir relançar a crença ao não buscar nutrir de sentido esse
vazio, ofertando um espaço para que o psicótico creia em sua invenção, em sua ficção ou
escrita. A diferença entre reforçar o sentido ou o vazio é que no primeiro se satura o vazio
com significantes do Outro, enquanto fazer consistir o vazio permite ao psicótico apostar
em uma criação.
fenômeno de crença que, como tal, pode ser compartilhado por todos, a referência à
Foi isso que eu quis apontar ao dizer que o sujeito normal partilha esse lugar
com todos os paranóicos que correm pelo mundo, na medida em que as crenças
psicológicas a que esse sujeito se apega, na civilização, constituem uma
variedade de delírio que não se deve considerar mais benigna por ser quase
geral. Seguramente, nada autoriza vocês a participarem dela, a não ser,
justamente, na medida enunciada por Pascal, segundo a qual equivaleria a ser
louco de uma outra forma de loucura não ser louco de uma loucura que parece
tão necessária (Lacan, 2003b)174.
realidade, estável, para que o sujeito se inscreva no laço social. Percebemos que o gozo,
clínica original, engendrando uma topologia que desse conta do impasse. Tornou-se
174
Lacan, J., Discurso de Roma, p.168
121
objeto a.
O avanço da teoria lacaniana fez com que seu criador se distanciasse cada vez
construção do esquema L, passamos - a partir dos anos 60, com a introdução do matema
(Lacan, 1966k)175. É o caminho que levará Lacan, em 72, a proferir seu famoso “Y a
d´l´Un” (Lacan, 1972b) - que podemos traduzir como há algo do Um 176– que mostra que
o Outro como Um não existe, mas que a experiência de gozo traz o paradoxo de ser um
narcísica, Um que aponta o gozo como separação radical do Outro. O gozo do Um torna
ponto em que Lacan rompe com a palavra cultura e passa a falar de laço social como um
discurso ancorado no ser falante: “a cultura, como algo que seja distinto da sociedade,
não existe [...] Enfim, o que conta é o laço social” (Lacan, 1975b)177.
Procuramos mostrar que, enquanto o Lacan dos anos cinqüenta trouxe a tona um
intrincado sistema de alteridades tendo como Outro radical a linguagem178, a partir dos
anos 60, constatamos que o que instiga a investigação lacaniana sobre a alteridade é o
operação castração, Lacan se debruça sobre o resto dessa operação. Resto que, pelo fato
175
Lacan, J., Subversion du sujet..., p.819
176
Lacan usa a expressão tal como na famosa música do cantor francês Charles Trenet Y a d´la joie. A
ironia de Trenet está em usar a forma do partitivo da língua francesa para dizer que não existe a felicidade,
ao mesmo tempo em que afirma sua existência. Como falamos anteriormente, “O” pai não existe, o que
existe são restos do banquete totêmico (Cohen, 2006).
177
Lacan J., Le Séminaire XX, Encore, p. 51 – tradução nossa
178
Aqui, por excelência podemos aplicar a máxima de que a palavra mata a coisa.
122
estádio do espelho é uma casca, uma imagem de corpo sem órgãos, desprovido de
qualquer interioridade.
social se torna uma pergunta sobre como manter juntos os registros do real, simbólico e
imaginário. A resposta, contudo, não virá do Outro, já que a este é negado acesso ao gozo
experimentado pelo sujeito. Sabemos que todas estas reflexões culminaram nos
(Lacan, 1975b).
pensar a topologia dessa torção aplicada a um corpo sólido, opaco a qualquer tradução
aqui que a psicanálise se separa da direção que toma a ciência contemporânea que
intervém cada vez mais no real e não na amarração. É o que percebemos no curioso
feminino, o “ponto G”, e a expectativa científica de “inflar” essa zona em busca de maior
prazer. “Eis que agora não se pensa apenas em implantes de órgãos, mas do próprio
179
Caroz, G., Corps et objets sur la scène, p.24
123
O Outro, o que “em mim é estranho a mim mesmo”, não é aquilo que se captura
pela percepção visual, ou seja, que se possa tornar objeto da pulsão escópica, estruturante
do estádio do espelho. É o próprio corpo, ou melhor, algo desse corpo que se torna
alteridade, inviabilizando que o sujeito se identifique a ele e possa dizer que “é” seu
Angústia. Aqui, Lacan consegue demonstrar como a estranheza do corpo próprio se torna
Somente após ter moldado esse “resto” Lacan pode desenvolver uma noção de laço social
culturas? No fato de que o interesse pelo Outro é menos importante do que o interesse
pelo próprio gozo do corpo? Essa pergunta não deixa de ser uma das ressonâncias da tese
freudiana maior de que “é impossível amar ao próximo como a si mesmo”. A partir dos
anos setenta, sabemos que a afinidade do objeto a com o real será, para Lacan, no
(Lacan, 1975b)180. Contudo, nos parece que reside nessa possibilidade de se fazer
semblante no Outro que autoriza o amor que tornaria possível condescender ao gozo em
Ou seja, por vias diversas, constatamos que Freud e Lacan se interrogam sobre o
laço social quando tudo aponta para a impossibilidade real desse laço. A seu modo,
ambos constatam que todo laço social é semblante. O conceito de suplência, tal como
180
Lacan J., Le Séminaire XX, Encore, p.85
124
Lacan o desenvolve nos anos 70, nos parece ser a extensão necessária da nova
formulação do sintoma, o sinthoma, para dar um salto sobre esse real impossível do
encontro entre os homens. Deparamo-nos com o objeto a quando temos a noção de que
aquilo que foi perdido de nosso corpo jamais poderá ser reencontrado, mesmo porque
jamais foi escrito. É na sua função de corte, de separação entre gozo e desejo, que o
objeto a permite um recorte que torna a realidade assimilável ao laço social. Nesse
Rochefoucauld, com suas máximas sobre o amor próprio, e Leopardi. Todos eles
conversação que exclua o narcisismo daquele que fala. É o que Leopardi nos convida em
seus Pensamentos:
No que diz respeito ao falar, não se conhece prazer mais vivo e duradouro,
como quando nos é permitido discorrer sobre nós mesmos, sobre as coisas de
que nos ocupamos ou que se relacionam a nós de alguma forma. Qualquer
outro discurso, em pouco tempo, resulta em tédio; e este, que nos é agradável,
é terrivelmente tedioso para quem o ouve. Não se conquista título de pessoal
amável, na conversação, senão à força de padecimentos, porque amável, na
conversação, não é senão aquele que gratifica o amor-próprio dos outros
[...] Porque, em suma, se a melhor companhia é a de quem nos despedimos
mais satisfeitos conosco, é também a que deixamos mais aborrecida (Leopardi,
1996)181.
181
Leopardi, G. Prosa e poesia, pensamento XXI, p.480
125
Nos últimos anos ganhou difusão a divisão do ensino de Lacan entre primeira e
Seminário XXIII (Lacan, 2005b), em 2005, bem como a publicação do livro sobre a
Psicose Ordinária (Miller, 2005d), do mesmo ano, para alguns, pareceram jogar por terra
O conceito de Psicose Ordinária foi cunhado originalmente por Miller e tem data
de 1998 (Miller, 2005d). A importância que vem tendo a difusão desse conceito na atual
clínica lacaniana das psicoses justifica que reproduzamos o momento de seu nascimento:
182
Lacan J., Le Séminaire III, Les Psychoses, p.95, tradução nossa
183
Milller, La psychose ordinaire, p.230
127
Essa intuição não é exclusivamente lacaniana, ela pode igualmente ser encontrada no
gênio artístico de Maurits Cornelis Escher, desenhista gráfico que, como poucos,
(Escher, 1956)
Não nos parece haver um consenso entre os psicanalistas sobre o que seria o
momento em que passaríamos a falar de uma segunda clínica das psicoses em Lacan.
Seminário X, onde se formaliza o objeto a. Nosso estudo, embora sem encontrar uma
menção explícita nos trabalhos pesquisados a esse respeito, se propõe a pensar em três e
não dois momentos cruciais da teoria lacaniana das psicoses. Três momentos distintos
entre si, e que, contrariamente ao que poderia ser o sentido comum, se harmonizam para
(Lacan, 1981);
- E por fim a teoria dos nós e o sinthoma joyceano, nos anos 70, com o Seminário
Optamos por essa divisão uma vez que ela responde às situações clínicas e aos
questionamentos que nos defrontamos em nosso percurso. A clínica dos anos 50 nos
extraordinárias, a clínica dos hospitais, dos ambulatórios de saúde mental, etc. A clínica
dos anos 60 nos permite compreender o próprio estado da civilização, sua predileção pelo
gozo e não mais pelos ideais e, especificamente na clínica das psicoses, a clínica da
psicoses normais. Aqui, mais uma vez, não podemos dizer que há consenso. Para uns
psicose ordinária pode ser encontrado no comentário de Miller, de 1993, ao propor uma
clínica universal do delírio, de que todo mundo delira (Miller, 1993). Ao partir da idéia
de que todo discurso é defesa contra o real184, ele promoveu uma descentralização radical
da questão da loucura, o que não deixa de ter repercussões no modo como podemos
pensá-la no campo da saúde mental. Esta, com a nova clínica, pode se separar da clássica
184
Miller, J-A., Clinique Ironique, p.5
129
Seminários citados acima. A idéia de fazer uma releitura do esquema L somente nos foi
(Miller, 2005e). Até então estávamos habituados a fazer uma leitura do esquema L
do simbólico era esvaziado de gozo, seguindo o princípio de que a palavra mata a coisa.
A partir desse curso surge uma outra de leitura do esquema, partindo da nova
perspectiva de que poderíamos localizar o gozo no eixo simbólico. Assim, a fala, para
além do sentido que ela pode comportar, passa a ser em si um modo de gozar185 que é
distinto da jubilação imaginária, cuja base foi estabelecida anteriormente por Lacan a
Esse curso nos deu a possibilidade de explorar o esquema L de forma inédita, buscando
re-localizar o modo como o gozo se distribui no esquema, bem como todas as relações de
185
Miller, J-A., Silet, p.78
130
questão do corpo. É precisamente essa relação que nos interessa em nosso estudo sobre a
corpo como fonte de gozo e não de mortificação. É o que foi chamado por Miller de
conversão de perspectiva:
Tomando como fio de Ariadne esse comentário de Miller, propomos ler os três
momentos da teoria lacaniana das psicoses como auxílio à nossa pergunta sobre a
186
Miller, J-A., O osso de uma análise, p.81
131
IV. 1 – O esquema L
Esq uema L
(a)’utre
(Es)S
ia
n ár
a gi
im
ão in
laç co
e n
R sc
ie
n te
(A)u tre
(m oi)a
No esquema L, a relação com o mundo dos objetos e dos homens, que configura o
laço social, se passa no eixo a-a’, chamado por Lacan de diagonal da realidade. Essa
relação pode ser vista como um avanço sobre seu texto de 1936, o Estádio do Espelho,
uma vez que remaneja a configuração do eixo imaginário. O eixo a - a’, em si, é
composto pela alteridade entre os semelhantes (o par a,a’), mas se opõe a outra
alteridade, entre o sujeito e o Outro simbólico, relação que é marcada pelo recalque e que
alteridade que se aplicam especificamente ao esquema L. Com base no que já foi exposto
Talvez pelo acréscimo de complexidade didática Lacan não tenha se servido dos
para o texto sobre as psicoses dos Escritos188. De todo modo, o que os esquemas buscam
inaugural do Seminário sobre as psicoses. Nessa aula ele introduz a questão do sujeito em
quadrilátero composto por dois outros elementos, (moi)a e (a’)utre, que figuram no texto
lacaniano como os dois eus (Lacan, 1981)189. De imediato essa referência nos convida a
inconsciente. Essa última diagonal possui a característica de iniciar seu trajeto em linha
identificar, nessa diagonal, o recalque, uma vez que o campo da realidade impede o
acesso direto ao inconsciente. Podemos dizer que a relação do sujeito com o Outro e com
187
Miller J-A, Introdução à leitura do Seminário 10...p.7e seguintes
188
Lacan desenvolve estes esquemas apenas no texto escrito D’une question préliminaire à tout traitement
possible de la psychose
189
Lacan, J.,Le Séminaire III, Les Psychoses, p.23.
133
o inconsciente fica esquecida por trás do eixo da realidade e, como veremos adiante, a
tenha incluído o isso Freudiano (Es), ou seja, o núcleo mesmo do que, na teoria
que o sujeito captura no campo da realidade. Acreditamos que é a partir dessa perspectiva
que, alguns anos mais tarde, foram feitos os desenvolvimentos sobre a Coisa, presentes
no Seminário da Ética e que trazem uma clareza maior sobre a topologia e a alteridade
desse esquema. Ao buscar articular esse Seminário com o esquema L do Seminário III,
percebidos, em oposição à Ding, a Coisa, que é concebida por Lacan como o vazio em
Esse eixo, na verdade, sintetiza vários aspectos da teoria da libido que passam
pela teoria do narcisismo (Freud, 1976) e pelo estádio do espelho (Lacan, 1966i). Ou seja,
dentro dos limites dessa diagonal. É a leitura que fazemos tomando como base o fato de
posteriormente o próprio Lacan refutará essa afirmação ao dizer que um “resto libidinal”
190
fica de fora da captura pelo eixo a-a’, e que é precisamente esse resto que introduz a
190
Observamos aqui um prenúncio do objeto a, que será formalizado por Lacan no Seminário da Angústia
dois anos após esse comentário.
134
O esquema pode ser visto como a junção de dois triângulos. Encontramos uma
triangulação composta pelo sujeito, o eu que fala e o eu para quem se fala, demarcando a
primeira relação de alteridade ao se opor ao Outro (Autre), que preside a cena. Trata-se
dos significantes, pólo do esquema que concentra tudo aquilo que pode ser dito, ou seja, o
catálogo universal de enunciados que um sujeito pode proferir. Skriabine ressalva que, na
Outro (Skriabine, 1993)192. Trata-se do Outro que contém seu próprio significante. Daí a
(Miller, 1993).
Não tenho tempo para comentar com vocês o que vocês encontrarão em “Uma
questão ...”. Vocês têm o princípio da construção do esquema a partir de dois
triângulos, supondo-se que um deles reduz as funções do simbólico, e o outro
as funções essenciais do imaginário (Miller, 1996b)193
191
Lacan, J. Le Séminaire VIII, Le Transfert, p.50
192
Skriabine, P., Clinique et topologie, p.78
193
Miller J-A., Suplemento topológico a “Uma questão preliminar...”, p.124
135
(Es)S (a)’autre
Dizer
Outro (alteridade)
Moi Tudo que pode ser dito
(a)
Data da mesma época do Seminário III o texto de Lacan A instância da letra que
propõe o uso de um algoritmo para a alteridade entre as palavras e as coisas sob a forma
194
Lacan J., L’instance de la lettre, p.515
195
idem
136
S1,S2....Sn
Referente
próprio sujeito (Es) como terceiro. Há, portanto, uma distancia entre o “S” como
indica que algo do campo do gozo do corpo impede que o esquema seja exclusivamente
uma representação do espaço mental. Essa potencia de dizer implica em um corpo. Aqui
não se trata do corpo imaginário, esculpido no eixo a - a’, como podemos ler no Estádio
do Espelho. É o corpo como carne, como massa ainda não afetada pela palavra, o es
freudiano como gozo sem tradução no campo do simbólico. Todo esse momento do
desenvolvimento de Lacan nos parece muito próximo do modo como a carne é tratada
Passemos ao segundo triângulo. Nem o Outro como tudo que pode ser dito, nem o
Sujeito como puro dizer perfazem em si o eixo do laço social. É preciso que uma frase –
e não todo o tesouro significante – seja enunciada pelo eu e endereçada a alguém que lhe
realidade ligando a e a’. O eu, nesse sentido, é o aparelho imaginário que possibilita a
comunicação.
137
(es)S (alteridade) a’
Dizer sem palavras/carne
Não se confunde com o Eu
laço social
a Outro
A pergunta que faz Lacan sobre o eixo imaginário perpassará todo seu ensino
ver que vinte anos mais tarde encontraremos uma questão similar, justamente em uma
referência do Seminário XXIII, ao Ego de Joyce. Na aula de onze de maio de 1976 lemos
um parágrafo que nos parece trazer ecos dessa passagem do Seminário III. Dessa vez,
contudo, não mais se tratará da interrogação sobre o hiato entre eu e o Outro simbólico, e
196
Lacan, J., Le Séminaire III, Les psychoses, p.23
197
Lacan, J. Le Séminaire livre XXIII, Le Sinthome, p.150.
138
próprio corpo que é colocada em questão198. Partindo do eu, o moi, dos esquemas iniciais,
Lacan se dirige para o Ego de Joyce, indicando que para além da importância da relação
com o outro e com a realidade, torna-se necessária uma verdadeira subversão do real do
partir da separação entre a sincronia e a diacronia dos significantes: “o gozo não conhece
o tempo” (Miller, 2005e)199. Como o próprio autor comenta, essa frase parece contradizer
inscrever o tempo nesse esquema e como ele é afetado no caso do inconsciente a céu
vimos, as duas diagonais do esquema L trazem planos diferentes que, nas psicoses,
escreve, entre a série de artigos que compõem a Metapsicologia, seu texto O inconsciente
(Freud, 1968 (1915)). Nesse texto, ele descreve as propriedades particulares do sistema
Ics. Freud se serve de uma topografia que propomos transpor à topologia do esquema L.
198
Confirmando nossa motivação, no capítulo anterior, de estudar a distinção do pensamento de Lacan de
Descartes e Merleau-Ponty.
199
Miller, J-A., Silet, p.189
139
Escreve ele que a distinção dos dois sistemas psíquicos toma uma significação nova
“camada” superior e sim de planos que se revertem seguindo a topologia de uma fita de
Moebius.
coisas teriam uma relação de continuidade inequívoca, ou seja, que através das palavras
fosse possível chegar a essência das coisas. Ele parte de uma pergunta curiosa. É possível
deverá sempre ser visto como um número inferior a 18 e superior a 16 (Rorty, 1995)202?
Para Rorty, menor que 20, raiz quadrada de 289 ou a soma de 11 mais 6, são
expressões extrínsecas e acidentais. Tentar capturar a essência do número 17, fora de suas
relações extrínsecas, nos faria perceber que 1.678.922 é tão próximo do número 17 do
que o número 18. Contudo, o que parece impossível para Rorty é que o número 17 tenha
200
Freud. S., L’Inconscient, p.95
201
idem, p.97, tradução nossa
202
Rorty R., L’espoir au lieu du savoir, p.67
140
uma essência em si. É justamente o que propõe Freud quando ele alega que na psicose a
que segue os princípios citados acima por Freud em seu texto sobre o inconsciente. Nesse
(Es)S a’
a
is
c o co
i a
át
g m at a
a m In
pr vra a con
o
x la p al sc
ei pa av ie
a ra nte
é
a
co
i sa
a A
Hilary Putnam. Para ele, as significações possuem uma identidade através do tempo, mas
não possuem uma essência. Como exemplo ele usa seu nome próprio. Quando ele era
pequeno e falava apenas francês ele se chamava “Hilaire Pout-nomm”, já adulto e falando
predominantemente inglês ele diz que seu nome “Hilary Putnam” continua o mesmo,
porque não houve descontinuidade suficiente para que se dissesse que a palavra não
designou a mesma coisa (Putnam, 1990). “Existem práticas que nos ajudam a decidir
141
quando há bastante continuidade na mudança para que seja justificado dizer que é ainda a
Esse exemplo é bastante claro para nos mostrar porque a psicanálise não é uma
pragmática. O eixo do inconsciente, como eixo fora do tempo, faz com que o pequeno
trata, a nosso ver, de uma fixierung do nome Pout-nomm, mas da eternização de nome
fragmento da clínica.
Como vimos, a presença do isso (Es) como homenagem ao reservatório das pulsões
freudiano, indica que se trata de articular o simbólico e o imaginário com o real do gozo
A diagonal do inconsciente articula, portanto, tudo o que pode ser dito, e que está
no campo do Outro, com a condição do ser falante, que é a de fazer o significante sair
pelo corpo. Trata-se da palavra em sua ressonância no corpo, palavra que vibra e é fonte
de gozo.
programas de auditório. Enquanto esses números estão dentro do globo eles são números
que têm uma essência, porém não se inscrevem ainda em uma série. O ritual do sorteio
203
Putnam H., Répresentation et réalité, p.37
204
Miller J-A, Silet, p.85
142
implica em fazer as bolas com os números passar por um orifício e, aí então, a série
palavras, suas relações de oposição, de semelhança, etc, não possuem valor próprio (não
são palavras que possuem uma proximidade que não é mantida depois que essas palavras
caem no campo do enunciado e passam pelo crivo do sentido que se aloja no eixo da
realidade.
O funil por onde passam as palavras é precisamente o corpo do sujeito, sua boca.
As palavras, agora, podem ser ditas, com a condição de que sejam ditas uma a uma.
interior do globo pode despencar sobre a série, pois na verdade, não existe O globo que
contenha as bolas.
18 2 Eixo Es(S)-A
33
7 16 Atemporal
1 21 Inconsciente
0 11 Sincronia
17
5 8 9
3
Eixo a-a’
Temporal
17 3 5 9 1 21
Realidade
S1 S2 S3 Sn Diacronia
143
que algo lhe concerne, que o fenômeno elementar, por mais enigmático que seja, teria a
ver com ele. Seria mesmo o que levaria Lacan a afirmar que não haveria pré-psicose,
psicoses.
social sem recorrer, para tanto, à frágil aliança biopsicossocial proposta na atualidade.
Como vimos, esse panorama estabelece uma nítida separação entre as ciências que
fato da própria psicanálise lacaniana chegar a constatação de que o Outro é barrado não
uma clínica que mantém presente a dimensão do Outro. Porém, sabendo o rumo que
205
Wachsberger, H., Temporalité et phénomène élémentaire, p.26
144
Lacan dará ao Nome-do-Pai nos anos seguintes, nossa proposta é precisamente retomar o
esquema buscando atualizar sua aplicabilidade no novo momento clínico. Nesse sentido,
simbólico, no caso das psicoses as manifestações clínicas são muito mais decorrentes de
da torção intrínseca ao eixo da realidade. Tal como vimos nos esquema L anteriormente,
nas psicoses a realidade não serve de anteparo para a relação do es, como o mais íntimo,
cálculo coletivo que o eixo a - a’ autoriza) para tentar restabelecer uma separação que
curioso que, no Seminário III, ele consegue reunir na mesma crítica, Jaspers e
206
Lacan, J. , D’une question préliminaire... p.549.
207
Lacan, J., Le Séminaire III, Les psychoses, p.14
145
1993)208. Lacan, ao contrário, sustenta até o final que a posição do sujeito diante da
perplexidade não poderá ser assimilada por nenhum discurso estabelecido, daí a
antecipe que uma fenda no eixo da realidade impeça que ele sustente a separação entre o
S e o Outro e que, como estratégia, ele se aplique a tentar reconstituir esse eixo ao preço
de “colar-se” à realidade em pontos que lhe pareçam oferecer maior segurança. Para tanto
ele se fixa à imagem do semelhante, que lhe serve de espelho, o que lhe permite
imaginário tanto pode lhe trazer benefícios, evitando o desencadeamento, quanto pode,
Esses pontos nos fazem interrogar diretamente de que modo é possível intervir
clinicamente em sujeitos psicóticos sem correr o risco de que uma interpretação venha
208
Turnheim, M., Perpléxité (ratlosigkeit), p.13
209
Miller J-A., Suplemento topológico à “Uma questão preliminar...”, p.124
146
onde a realidade gera significações, suas intervenções apontam para o inconsciente como
outra cena. São intervenções que dividem o eixo simbólico, permitindo que a fuga do
Assim, tomando como base o Esquema L, constatamos que, nas neuroses, onde há
uma oposição entre realidade e inconsciente, trata-se de produzir uma torção. Já nas
psicoses, uma vez que essa torção é um dado clínico de entrada, procura-se um efeito de
algoritmo S/s, metáfora que separa as palavras (campo do Outro) das coisas (sache). No
não encontra respostas no campo da realidade. Ou seja, ali onde o Outro simbólico
batizou as sache com palavras, matando a coisa, algo da coisa permanece como enigma.
enigmático e intrusivo quer seja através da metáfora delirante, quer seja preservando
plano imaginário, portanto, apesar de muito se falar nos anos 50 sobre a metáfora
delirante, tem um papel fundamental na clínica do Seminário III. É uma clínica que inclui
sujeito de se sustentar no eixo imaginário. Ou seja, como constata Miller, “se isola a
foraclusão do Nome-do-Pai, esquecendo que, uma vez revelada a falha em que ela
sinônimo de psicose não desencadeada. Trata-se de uma vinheta clínica de uma psicose
perfeitamente coberto pelo manto da normalidade. Por que então, nesse caso, considerá-
ato (Naveau, 2006). Em muitos casos que chegam às emergências psiquiátricas é possível
constatar que o sujeito antes da detecção da crise entretinha uma relação, apenas em
outro que lhe servia de interlocutor no laço social estava desabitado de vida e sua
verdadeira ligação era com a voz alucinada, que lhe servia de mestre e interlocutor maior.
210
Miller J-A, idem, p.123
148
Amélia tinha 48 anos quando, pela primeira vez, foi levada à emergência
psiquiátrica devido a uma passagem ao ato que surpreendeu a todos que a conheciam.
Dona de casa exemplar, mãe dedicada, desde o casamento mantinha, como atividade
mais importante, a função de cuidar da casa e providenciar para que tudo estivesse em
ordem. Por insistência de seus familiares, no momento em que problemas com a idade
dificultaram suas atividades cotidianas, foi contratada para a casa uma faxineira. Essa
contratação foi aceita com muita relutância por Amélia e, desde os primeiros dias, a
relação entre as duas foi tensa, culminando na agressão física, em franco estado
A clínica lacaniana das psicoses é uma clínica que valoriza as coordenadas que
produziu antes, ou seja, quais foram as estratégias do sujeito para evitar o encontro com a
loucura. No caso de Amélia, essa estratégia adveio de uma metáfora delirante muito sutil.
A metáfora delirante não precisa necessariamente destoar dos ideais que permeiam a
trama social. Caso o delírio de Amélia assumisse formas muito distantes da norma social
- delirar ser uma personalidade famosa, por exemplo - facilmente sua loucura seria
detectar a astúcia de seu delírio. Amélia, dona de casa exemplar, delirava precisamente
que era uma dona de casa. Ora, “dona de casa” é uma expressão comum na língua
portuguesa, empregada por todos, e que não é significante privado de nenhum dos
149
a’
laço social
Outro
a (dona de casa)
Amélia, contudo, faz uso privado do significante dona de casa, o que nos permite
fixa um ponto de gozo estável, impedindo que o sujeito parta à deriva. Donadecasa é um
elemento incomunicável, uma vez que ele é desprovido de sentido e segregado da lei
céu aberto. Sua presença no campo da realidade se faz, conseqüentemente, como irrupção
singular de uma certeza inabalável por qualquer manobra dialética. É o que propomos
pontilhada e a diagonal (Es)S – A passa a ser representada por uma linha cheia, marcando
Donadecasa a’
In c
on
sc
ien
te
ac
éu
de ab
i da ert
al o
Re
a A
demarcam a relação com o pequeno outro e o grande Outro. Faltou a Lacan, nesse
esquema, o elemento topológico que permitisse visualizar com maior nitidez a torção que
posteriormente, Lacan chamará de campo do Um. Nos Escritos, uma longa nota de
rodapé foi feita por Lacan para explicar que em seu esquema L o campo da realidade é,
na verdade, uma fita de Moebius (Lacan, 1966a)211. Percebemos, com o exemplo acima,
todos usam na vida cotidiana. Há uma apropriação do significante para demarcar o que é
As torções do laço
relativamente tênue para garantir o laço social. Propomos seguir a indicação de Lacan na
nota de rodapé dos Escritos que mencionamos acima e aplicar a fita de Moebius ao plano
211
Lacan, j., D´une question préliminaire..., p. 554
151
da realidade. Quando o plano é recortado, não se tem a dimensão que ele é uma fita de
íntimo do que é o mais público do sujeito, que pertence ao gozo do corpo e que o
O corpo
Es a’
e
adIn
id co
eal ns
ci e
d aR nte
o
an
a Pl A
A rua
atravessada tanto pelos fenômenos do corpo como pela percepção do Outro. Contemplar
o esquema L sob uma perspectiva topológica nos leva a perceber a clivagem na clínica
das psicoses entre os fenômenos ligados ao corpo e os fenômenos ligados ao Outro, mas
a trama social, apenas garante a separação entre o mais íntimo e o mais exterior para o eu
se ela for um recorte da totalidade do plano. Assim, o Outro (A) como tudo o que pode
ser dito, é o que confere um bordo e um limite à realidade. Da foraclusão do Nome do Pai
plano revela a reversibilidade batizada por Lacan de extimidade (Lacan, 1986). Para além
extimidade
A rua
a’
interior
a exterior
Ocorpo
O fato do eu se localizar nesse plano retorcido faz com que o Outro simbólico e o
isso (das es) se confundam como sendo um único e mesmo Outro. É o que se constata por
pode ser percebido como algo que se passa na carne, do mesmo modo que uma sensação
corpo do paciente.
disposição moebiana, não promova a torção que inunde o campo do Outro com o gozo
ou, inversamente, o Outro não mate a Coisa, levando no mesmo golpe o sujeito?
153
relativamente simples.
O único modo de fazer com que uma fita de Moebius – que representa a realidade
plano moebiano da realidade para que ela se estabilize. Seria esse inclusive, um dos
Realidade inconsistente
Passa-se do campo do gozo ao campo do Outro
Realidade consistente
Separação entre campo do gozo e campo do Outro
Baas, Lacan “[...] privilegia a separação como tal, quer dizer a disjunção que pressupõe o
contato do que está separado; é por isto que ele procura essencialmente pensar o que, do
154
psiquiatras, nos lança uma indicação que justifica, a nosso ver, a repartição de seu ensino
pequeno trecho onde uma questão, por ele levantada, nos parece não ter sido retomada
Esse comentário de Lacan, certamente, nos oferece uma rica leitura. Três semanas
antes, Lacan havia explicitado que a loucura, longe de ser um insulto à liberdade, era o
seu limite (Lacan, 2001b)214. Aqui, percebemos que o limite da realidade é condicionado
Lacan, portanto, nos traz ao coração de uma clínica das psicoses que interroga a
relação do sujeito psicótico com o objeto a. De imediato, podemos afirmar que ele não
212
Baas, B., Notre étoffe, p.55
213
Texto inédito, tradução nossa
214
Lacan, J., Allocution sur la psychose de l’enfant, p.361
155
nega a questão do objeto a nas psicoses, ao contrário, ele aponta para a problemática de
sua proximidade no real, ali onde aprendemos que a teoria dos discursos tenta capturá-lo
Por outro lado, na experiência cotidiana da clínica com psicóticos, ter a disposição
o objeto a nos parece ser mais uma fonte de sofrimento do que de alegria. Aqueles que
convivem com o cotidiano da clínica, bem sabem o sofrimento que implica ser tomado
por vozes ou pelos sentimentos corporais bizarros que representam o gozo não extraído
momento de ebulição de sua teoria do objeto a, nos guia em direção a uma abordagem
das psicoses que inclui uma clínica da separação desse objeto. Essa clínica segue na
esteira da crítica e desconstrução do mito “da harmonia alojada no habitat materno” 216. A
crítica que faz Lacan é pertinente já que um dos equívocos da aplicação da psicanálise à
saúde mental foi justamente a tese de Bowlby, que ganhou fama ao negar a importância
da função paterna, priorizando a reparação da privação materna como pedra angular das
da primeira clínica, a saber, a separação entre o infans e o desejo materno, operado pela
metáfora paterna, porém, aqui, com ênfase não mais no pai e sim na função do sintoma
215
Miller, J-A., De la naturaleza de los semblantes, p.212
216
Lacan, J., Allocution sur les psychoses de l´enfant, p.367
217
Lacan, J., Note sur l’enfant, p.373
156
uma clínica que busca separá-lo dessa posição. Como ele mesmo insiste não se trata da
criança como efeito do discurso, o que está em questão é a criança como corpo218.
Entendemos, portanto, que a afirmação de que o sujeito tem o objeto a sua disposição é o
retorno no real - real do corpo, reiteramos - da posição de ser esse objeto corporal que
falta à mãe. Passa-se do gozo mortífero de ser o objeto para mãe à presença desse gozo,
Surge, então, uma clínica das psicoses que aponta para a falta de uma extração do
texto O Aturdito:
É justamente por isso que ele fica reduzido a descobrir que seu corpo não é
sem outros órgãos, e que a função de cada um deles lhe cria problemas – coisa
pela qual se especifica o dito esquizofrênico ao ser apanhado sem a ajuda de
nenhum discurso estabelecido (Lacan, 2003f)219.
Essa passagem de Lacan, de antemão, nos interessa por nos permitir ver que, em
pleno ano de 1972, ele se serve do termo esquizofrenia, o que nos permite perceber que
segundo plano, não eliminou por completo a utilidade da clínica estrutural. Laurent,
constituição de um órgão que localize o gozo do sujeito psicótico, ou seja, lhe permita ter
um corpo:
É uma indicação muito útil, já que o neurótico, que dispõe da crença no pai, e
com isso dispõe de um discurso estabelecido, ele, para seus órgãos, lhes dá
uma função com a pulsão. Quer dizer que ele faz função de gozo – já que é esta
a (função) que nos interessa, não a função biológica – ela faz função de gozo
218
Lacan, J., Allocution sur les psychoses de l’enfant, p.368
219
Lacan, J., O atrudito, p.475
157
por meio do circuito pulsional. E é desse modo que ele inscreve esta função
biológica no espaço do gozo (Laurent, Eric, 1998)220.
clínica. Não mais se trata apenas de reconciliação da imagem corporal com o espelho, ou
Schreber. A questão passa a ser posta como possibilidade de dar um órgão de gozo ao
máquinas telepáticas, e toda uma gama de soluções do esquizofrênico com relação ao seu
corpo, como soluções que visam precisamente delimitar o gozo em torno de um objeto
que permita a reorganização pulsional. São soluções que, evidentemente, não se apóiam
se serve do semblante do discurso para evitar o real, tomando o próprio simbólico pelo
real (Miller, 1993)221. Resta então, para o esquizofrênico, nada mais do que a criação
singular de um aparelho que ele tentará, com maior ou menor sucesso, passar para o
campo do Outro. Essa clínica exige algo que é da ordem de uma extração forçada desse
De que modo se obtém essa extração forçada do objeto? Naveau nos chama
2006). É, portanto, crucial um manejo da clínica que impeça uma passagem ao ato
radical, auto ou heteroagressiva, mas que comporte, de todo modo, algo da dimensão de
220
Laurent, É., Seminário sobre “De una cuestion preliminar...”, p.38 – Tradução nossa
221
Miller, J-A., Clinique ironique, p.6
222
No capítulo VI abordaremos o caso de A, paciente cuja extração do objeto a foi possível muitos anos
após uma tentativa de extração via uma passagem ao ato que quase lhe custou a vida.
158
pondo de torção entre o gozo e o Outro223 que estabiliza o corpo dando ao sujeito um
fora”, o que permite um esvaziamento de gozo tanto do corpo, quanto do Outro. Evita-se,
desse modo, que o excesso de gozo seja equacionado pela esquizofrenia, no caso do gozo
A pulsão não produz por si mesma essa extração. Seu modelo, tal como
concebido por Freud, se inscreve em uma topologia onde o dentro e o fora são a mesma
coisa. Como paradigma, temos “os lábios que se beijam a si mesmos” do texto freudiano
(Freud, 1985)224.
serve para escavar o buraco por onde circula a pulsão. Como reitera Baas, a condição
principal para que o objeto a tenha essa função de reversibilidade é precisamente que ele
não seja um objeto da experiência, pois nesse caso ele perderia a função de causa e se
confundiria com a realidade, ao invés de lhe permitir, com sua extração, seu
Uma referência menos citada de Lacan é a utilização que ele faz da expressão
“não função” do objeto a. Ele utiliza essa expressão quando se refere aos estados
223
Ponto de reversibilidade da carne, como vimos em Merleau-Ponty
224
Freud S., Trois essais sur la théorie de la séxualité, p.76
225
Baas, B., Notre étoffe, p.55
159
como triunfo sobre o supereu, é um mecanismo explicável com relativa facilidade nos
textos freudianos (Veras, 1997). Trata-se da mania como festa após o parricídio, quando
se suspende o peso da lei, permitindo que algo da satisfação pulsional seja liberado. Esse
anedota de que, antigamente, na quarta feira de cinzas, após o carnaval, era comum que
alguns entusiastas continuassem freneticamente dançando nas ruas. Porém, aqueles que
na quinta feira ainda dançavam, eram levados pela polícia ao hospital, pois eram os
maníacos. A anedota, no fundo, tem seu fundo de verdade ao apontar para o fato de que a
mania está no horizonte de toda cultura e que a substituição do mal-estar pelo hedonismo
carnaval desvencilhou-se do sentido religioso e se tornou uma festa que não celebra nada,
ou melhor, uma festa que celebra o nada. No carnaval baiano, também se passou do
símbolo ao objeto. Ele tornou-se uma promessa hedonista de cinco dias de superação das
leis e regras que tecem os laços sociais. É possível que tenhamos nos afastado da famosa
fórmula de Dostoievski uma vez que, no carnaval, Deus está morto e tudo é permitido
(Veras, 2008).
desenfreado. A ironia é que a mania, tal como acontece com os foliões da quinta feira, é
detectada pelos dispositivos da Saúde mental apenas quando o sujeito leva ao paroxismo
a cartilha dos ideais contemporâneos. Com efeito, o maníaco se exaure nos ideais da
160
hipermodernidade, ou seja, muito de tudo. É hipernormal comprar tudo e viver seu estilo
matema:
questão dos estados maníacos. Em 1927, no texto O humor, Freud atrela os estados de
supereu. Quanto a Lacan, é curioso notar que ele não se serve do pai nas citações que faz
sobre a mania e que estas surgem em seu ensino apenas após a formalização do objeto a.
Assim, contrariamente à clínica psiquiátrica, que concebe o maníaco como aquele que
não tem limites, a clínica do objeto a denuncia que é o Outro, como dealer insaciável dos
É o que percebemos na escuta dessa jovem adolescente, que sai todas as noites, se
exaurindo nas boates, festas e raves. O que chama atenção do analista é um comentário
sobre seu pequeno ritual cotidiano. Antes de ir para as noitadas, assim como abre o
armário para escolher sua roupa, ela abre o armário do banheiro em busca do estado de
humor com que quer passar a noitada. “Às vezes quero ficar meio deprê, meio gótica, aí
tomo uns calmantes antes de sair. Gosto também de ficar meio pra cima, aí misturo um
226
Aqui nos arriscamos a um neologismo, propomos a tradução de gadgets por futilitários. Essa tradução
foi adotada por Vieira em seu livro Restos (Vieira, 2008).
161
Redbull com ecstasy ou algum antidepressivo da minha mãe.” Aqui não se trata de uma
(Freud, 1968)227, nos deixa entrever que Freud esperava mais de sua própria elaboração
partir desse ponto, da culpabilidade. Para ele o eclipse do olhar do Outro, compatível com
efeitos na cultura dessa ausência de vergonha se fazem notar como mania generalizada,
futilitários, que são, por excelência, a imagem da não-função do objeto a. Desse modo,
poderíamos dizer que o objeto a, como causa do sujeito, é o núcleo duro da vergonha na
civilização.
A “não função”
Com relação à psiquiatria, percebemos que nenhum outro estado psíquico é mais
maníaco puro. Neste, uma excitação, por vezes avassaladora, é capaz de resistir semanas
227
Freud, S., Deuil et Mélaconlie, p. 163 – tradução nossa
228
Note sur la honte, in La cause freudienne n. 54
229
Lacan, J., L’envers de la psychanalyse, p. 211
162
possibilidade de que “uma intoxicação química do ego”231 esteja na base dos fenômenos
maníaco depressivos . Com efeito, drogas ilícitas e lícitas induzem estados maníacos
etiopatogenia. Esse modelo oferece o conforto de agrupar tanto os estados de inibição dos
sempre um “problema do corpo, ou seja, uma função” (Lacan, 1974d). Nessa passagem,
percebemos que o real é diretamente convocado, uma vez que Lacan interroga se o
possível, conseqüentemente, conceber a mania como o que não cessa de obturar o buraco
frenético e descontrolado onde a não função do objeto promove uma disjunção entre
Enquanto a associação livre se orienta pelo viés de um sentido garantido pela captura do
230
Classificação Internacional das doenças versão 10, código F 30.0
231
Freud, S., Deuil et Mélancolie, p.164
232
Lacan, J., Télévision, p.526
163
objeto a como causa. Podemos assim diferenciar, nas psicoses, “não extração” do objeto
corporal ao retornar no real como gozo, por exemplo, na forma de um órgão anômalo do
esquizofrênico, na voz alucinada que somente o sujeito escuta, ou mesmo no olhar que
persegue o sujeito. Contudo, Lacan, no Seminário da Angústia, define a mania como não-
função e bem no momento desse Seminário em que define o pai como aquele que na
realização de seu desejo foi capaz de “reintegrá-lo à sua causa [...] ao que há de
conceito, podemos dizer que sua clínica dissocia o mais de gozar da causa, impondo ao
maníaco um gozo que, como ele retoma em Televisão, é mortal para a condição subjetiva.
233
Lacan, J. le Séminaire X, L’Angoisse, pp.388-389
164
Outro. O Nome-do-Pai, após sua pluralização, passa a ser ameaçado pelo sem sentido. O
saber do pai passa a ser impotente por nada poder dizer sobre o real. Porém, como a
clínica dos anos 70 rompe definitivamente com o universal, “o ponto de não saber do pai,
2007)234.
pode ser visto, sobretudo, a partir da utilização particular que faz Lacan do nó
borromeano.
O nó borromeano
intitulado “...ou pior” (Lacan, 1972a). Nessa primeira menção do nó, ele não é atrelado
aos três registros, tal como ele o fará um ano e meio mais tarde, no Seminário XXI “Os
não-tolos erram” 235. O que marca essa nova concepção dos três registros é o fato de que
eles se tornam completamente independentes uns dos outros e, principalmente, que eles
234
Blanco, M., Inconsciente e Nome-do-Pai, p.202
235
Tradução nossa do título deste Seminário inédito de Lacan, ainda não estabelecido, cujo nome em
francês “Les non-dupes errent” traz em sim toda a problemática a ser desenvolvida sobre o declínio do
Nome-do-Pai que implica em sua pluralização na forma de nomes do pai. É a primeira leitura possível da
homofonia entre “les non-dupes errent” (os não tolos erram) e “les noms du père” (os nomes do pai), mas
ainda é possível no título francês a leitura de “les nons du père” (os nãos do pai)
165
que tem, como característica mais inovadora, a liberação das amarras de uma tradição
passamos a nos apoiar em uma nova existência da loucura no laço social, dessa vez
Essa nova perspectiva subverte noções nucleares da saúde mental como exclusão
perfeitamente possível que a psicose não seja perceptível por qualquer dispositivo da
saúde mental. Em muitos casos, podemos dizer que apenas a clínica lacaniana das
166
psicoses pode reconhecê-la. Contudo, não devemos julgar de todo inédita a possibilidade,
Schreber, não como simples anatomista, mas como Da Vinci o faria, Lacan promoveu um
psicose existir antes da loucura. Com a clínica do sinthoma, muitas vezes se trata de
investigar, e não de tratar, aquele que, mesmo não podendo se apoiar no Nome-do-Pai
para evitar o desencadeamento, não enlouquece. Não se trata aqui de uma psicose
encubada, prestes a irromper, como uma infecção sub-clínica que se torna manifesta.
igualmente exigindo testes em escala cada vez maior para a identificação precoce da
loucura.
suas palavras, ele é “expulso do sentido” (Lacan, 1974c)236. A partir desse momento, o
sintoma deixa de ser uma mensagem decifrável, passível de interpretação, para encarnar o
que resta do gozo quando o sentido desaparece, ou seja, quando não mais é possível
interpretá-lo (Morel, 2008)237. Essa virada nos leva a uma compreensão totalmente
236
“Le symptôme...c´est du réel ...expulsé du sens – tradução nossa
237
Morel, G., La loi de la mère, p.86.
167
condição para o tratamento do gozo, evitando que seu retorno no real pulverizasse a
condição subjetiva, no último momento de seu ensino essa função de tratamento do gozo
passa do Nome-do-Pai ao sinthoma. A questão que é colocada por Lacan é que o Nome-
do-Pai e o próprio complexo de Édipo, por se tratarem de soluções que vieram do campo
registros.
demonstração pelos nós: “O complexo de Édipo é, como tal, um sintoma. É pelo fato de
que o Nome-do-Pai é igualmente o Pai do Nome que tudo se sustenta, o que não torna
NP sinthoma
É palpável, nesse momento, o fim da era de ouro do simbólico. Não se trata mais
exclusivamente de passar para o campo do Outro simbólico o gozo enigmático. Não que
essa solução tenha deixado de ser válida na clínica, mas novas situações se colocam em
238
Lacan, J. Le Séminaire XXIII, Le sinthome, p.22
168
que a clínica da metáfora delirante e dos neologismos cede espaço para outras soluções
importante entre Freud e Lacan. Para Lacan, Freud buscava ligar os três registros - que
sendo o quarto nó, que manteria os demais unidos. Essa perspectiva é coerente com o
garantia desse quarto nó que é a realidade. É precisamente essa garantia que, em 76, é
Morel ressalta que essa evolução do pensamento lacaniano é compatível com uma
necessária correção de rumo feita por Lacan. Inicialmente, ele situou o próprio complexo
de Édipo como um quarto círculo que manteria os outros registros unidos. Em seguida,
borromeano, para Morel, aparece como nó a três para substituir o Nome-do-Pai que
assumira uma dimensão por demais carregada de religião241. Com efeito, é impossível
não perceber uma aproximação inicial entre o nó borromeu de três círculos e a trindade
239
Maleval J-C., Du syntôme dans la psychose non declenchée, p.74
240
Id., p,167
241
Morel, G., Id., p.87
169
do pai, filho e espírito santo. Lacan, contudo, retoma a questão da trindade de um modo
Joyce e a clivagem do S2
sentido – passa por uma clivagem. Uma frase do Seminário XXIII nos serve de
2005b)243. A divisão do S2, aqui em jogo, se faz entre o símbolo e o sinthoma. Ela é a
base sobre a qual Joyce irá fabricar sua arte (Besset e Veras, 2009).
Como afirma Lacan, não basta o Nome-do-Pai, é necessária uma invenção que jamais
será obtida a partir do universal da linguagem, uma vez que se trata de uma invenção do
Schreber, toma essa vertente para definir o modo como se deve interpretar nas psicoses:
formulações mais aperfeiçoadas na conferência que faz Lacan sobre Joyce em 1975.
242
Lacan J., Id., p146
243
Id., 23
244
Laurent, E., Interpreta a psicose no quotidiano, p.18
170
que faz Lacan de uma frase de Joyce, evocada nessa conferência (Lacan, 2005a):
Frase da obra Finnegans Wake cuja leitura de Lacan faz ressoar a seguinte frase
em francês:
escuta abre a perspectiva para duas posições radicalmente distintas. Sentido do Outro e
sentido-gozado aqui estão separados (Thèves, 2000). Os significantes se opõem uns aos
enigmáticos da tradução lacaniana de frase 1 como frase 2. Que presente se trata e o que
significa o imbecil que o recebe? Miller propõe que o presente em questão, que é dado
pelo Outro a todo humano, é a relação à lalíngua (Miller, Jacques-Alain, 1998b). Sem o
Nome-do-Pai, contudo, esse presente não pode ser compartilhado na festa do laço social.
É necessária uma lei que recorte os sons da lalíngua, busque capturá-la nas malhas do
sentido comum, para que o sujeito faça dela um aparelho de comunicação. A lalíngua,
nesse sentido, é sempre uma transgressão das leis da linguagem, leis fixadas pelo Outro,
que buscam anular os efeitos de gozo que ela veicula, privilegiando os sentidos vindos do
171
Outro. É o que, para Guéguen, fez com que a arte poética sempre fosse objeto de regras
impostas, às vezes de modo muito rígido como nos versos Alexandrinos, tentando sem
2000).
Enquanto a rede de Saúde mental captura o sintoma por sua vertente positiva, ou
seja, no momento em que desponta o conflito com o Outro, a teoria dos nós
surgirá como uma evidência clínica detectável pela clínica do olhar. Será, inclusive, uma
suplência que, por sua discrição e economia de sentidos, é o melhor instrumento para
impedir que o sujeito seja retido nas malhas da saúde mental. Não se trata, aqui, de dizer
que sua invenção lhe torna um conformista, hiper-adaptado à normalidade. Ela não é
conformista precisamente por ser singular, ou seja, pois mais que sua solução sintomática
aponte para o discurso comum, ela é sempre uma solução fora do discurso. Como afirma
dizer, ele está fora (hors) daquilo que é comum” (Miller, 2008a).
que por isso mesmo é necessária a psicanálise no mundo para lutar pela sua existência
245
Lacan apesar de não utilizar a grafia “sinthoma” em todos os momentos do Seminário XXIII, promove
uma ruptura definitiva no modo como ele emprega a palavra sintoma a partir desse Seminário. Ela terá
sempre o sentido de sinthoma, salvo menção em contrário.
172
além das normas. Nem tudo que é anormal deve ser tratado, tampouco excluído. A
grau maior de cidadania. Trata-se bem mais de uma constatação da clínica de Lacan,
sobretudo a clínica dos anos 70, de que a questão da ordem pública não pode ser
a possibilidade de centrar a questão clínica sobre o modo como o sujeito equaciona sua
relação com o gozo. Para além da doença, para além, portanto, da saúde mental, há a
passagem ao ato na psicose não é uma infração e sim, uma solução – solução que traz na
cinema e pela televisão, eles são um desafio constante aos diversos tipos de polícia e
detecção precoce, do futuro serial. Para Miller, a psicanálise pode tomar parte no debate
modo de gozar. Somente assim ele deixará de ser considerado uma aberração sociológica.
É o que Lacan recomenda quando ele afirma que nem o crime, nem o criminoso podem
ser julgados fora de sua referência sociológica (Lacan, 1966b)248. A implicação subjetiva
do louco infrator não deve ser vista como injustiça dos homens, ao contrário, ela revela
uma das barreiras mais difíceis a serem transpostas para a reinserção social. É o que
Pois se a pena não tem nenhum efeito sobre o sujeito, então, para que ela vale?
Para que a pena e o julgamento possam ter sua plena significação e valer para o
conjunto da comunidade, o criminoso deve ser tocado no mais profundo de si
mesmo. É preciso que a comunidade puna um dos seus, e não este estrangeiro
absoluto que sempre se esvai (Biagi-Chai, 2007)249.
Surge assim um novo fio condutor para a clínica. Não se trata de integrar o
suplência, para além da reinserção social, nos confronta com a idéia de que a loucura é
incurável. Ela é tão incurável, quanto o próprio ser, diante da finitude, o é. Estaríamos
diante de uma subversão ousada: seria a loucura curável? - e aqui sabemos dos riscos e
críticas que nossa idéia pode receber – Curável, responderíamos, quando a criação
sinthomática se tornasse uma suplência que evitasse a deriva dos três registros, sem
246
Miller, J-A, Préface, p.13
247
Id, p.14
248
Lacan, J., Fonctions de la psychanalyse en criminologie, p.126
249
Biagi-Chai, F., La càs Landru à la lumière de la psychanalyse, p.221, tradução nossa
174
convocar, para essa tarefa, nenhum dispositivo clínico. Ou seja, a tríade doença-
imaginário das equipes, conclui pela dificuldade, mas não impossibilidade, de pensar o
conceito de cura para além da normatização (Jucá, 2003). Parece-nos que qualquer
ao de normalidade.
Por certo, buscamos um conceito de cura que não advenha dos ideais da saúde
mental. Quando afirmamos que o sinthoma descompleta a saúde mental isso se deve ao
fato de que o sujeito pode dispensar o catálogo de dispositivos de tratamento, pois não é
deles que vem o elemento que fará suplência ao desenlace dos três registros. Ali, onde a
saúde mental busca a metáfora que recubra o vazio da significação paterna, a clínica do
sinthoma vê apenas uma possibilidade, entre outras, para o tratamento da loucura. Assim
Não se trata aqui de nenhum demérito à saúde mental, uma vez que Lacan sempre
descartado. Seria inclusive um modo de nos associarmos a Foucault na crítica que este
faz à dívida e gratidão do louco para com seu médico. Quando uma instituição de saúde
que ela rompe definitivamente com o olhar psiquiátrico e propõe uma abordagem
de nosso percurso, acreditamos que a expressão laço social não traduz a força do
movimento lacaniano presente no último ensino. Lacan, sem glorificar a loucura, sem
seja objeto de uma clínica, mas possa, simplesmente, estar entre nós.
176
(Elias, 2001)250
Após termos discorrido sobre o campo, nos capítulos I e II, e sobre a teoria, nos
capítulos III e IV, passaremos a relatar a clínica no campo esclarecida pela teoria.
dita.
rede de Saúde mental, o hospital Juliano Moreira, mesmo após a promulgação da lei
Bahia. Contudo, o grande paradoxo era que essa situação não lhe conferia nenhum
250
Elias N., A solidão dos moribundos, p.10
178
tomar um outro viés. Para além da psicanálise aplicada, cujos efeitos certamente surgiram
Propomos abordar a segregação a partir de dois aspectos sobre os quais a psicanálise tem
algo a dizer:
loucura, promovendo uma separação radical entre razão e desrazão, normal e patológico;
- a presença do objeto a que pode ser localizado por suas irrupções anômalas entre
os muros da instituição, mas que é rechaçado pela equipe pelo desconforto e angustia que
introduz.
na interposição de algum tipo de muro para equacionar seu problema com o outro.
momento, a equipe busca se servir dos muros e das grades para separar, conter,
179
possuía como função zelar, sentada em uma cadeira, pelo portão que separava o bloco
promoveu a retirada do portão, o que causou uma comoção e indignação de parte dos
funcionários. Temia-se uma fuga em massa dos pacientes. No dia seguinte, o diretor, ao
passar pela arcada do extinto portão, encontrou a mesma servidora sentada em sua
cadeira, zelando pelo nada. Duas semanas depois ela pediu a transferência do hospital.
partir do que aprendemos com Lacan sobre o objeto a. Trata-se de uma modalidade de
segregação que nos demanda uma análise mais sutil, já que o objeto a surge como resto
objeto a faz dele o ponto inédito onde ancoramos a pertinência da presença da psicanálise
A estranheza que a irrupção do objeto provoca faz com que se queira eliminá-lo o
excessos de higiene que por vezes beiram o cômico. Certa feita o hospital foi notificado
pela vigilância sanitária pelo fato de que os pacientes fumavam nas alas de internação e,
pior, que a própria equipe fornecia os cigarros. O que estava em questão transcendia uma
asséptico visava igualmente eliminar os restos que são, muitas vezes, a marca mesma da
251
Vieira, M., Restos, p. 114
180
subjetividade, nos vem a mente ao ler a frase de Vieira, onde há lixo, há homens252. Ou
seja, os gritos, pontas de cigarro e desenhos nas paredes, são restos que indicam a
[...] Essa antiga Quinta da Bôa-Vista, onde está hoje instalado o Hospício S.
João de Deus, para asylo dos infelizes alienados, saudósas reminiscências
despérta, ao espírito de quem nella penétra, do nosso grande poeta Antonio de
Castro Alves, dos seus risônhos dias ali passados, em doce enlevo d’Alma, tão
cheia de doiradas illusões, que a fortuna não deixa durar muito. Dentro
naquellas parêdes, onde hôje soluçam dores e ouvem-se agonias, viveu outrora,
e cantou, o gloriôso váte bahiano; vibrou, intênsa, a lyra de oiro de sua Musa;
inflamaram-se os mais amoráveis sentimêntos do seu coração formôso e
apaixonádo; passeiaram, adejaram seus mais inebriantes sônhos dos vinte
annos. Ali, ao lado de sua Manon, da artista Eugenia Câmara – a Dama Negra
– da sua vida emotiva, embevecido nas iriantes illusões do Amor, escreveu
êlle, em 1867, suas mais bellas poesias...Era, então, a Quinta da Bôa-Vista,
propriedade do Dr. Antonio José Alves, pae de Castro Alves
(Boccanera.Junior, 1926)253.
tantas outras histórias, esse fato perdeu-se no tempo e era desconhecido pela grande
maioria de seus quase quinhentos funcionários do quadro atual. Por trás dos muros onde
existência foram apagadas nas tramas da burocracia, que engole o passado da maioria das
instituições públicas.
252
idem
253
Boccanera Junior, S., Bahia Civita e Religiosa, p. 350-355.
181
manicômios. Sob o riso de Artaud, os gritos dos pacientes que ecoavam pelos corredores
[...] Não nos surpreendemos com vosso despreparo diante de uma tarefa para a
qual só existem uns poucos predestinados. No entanto nos rebelamos contra o
direito concedido a homens – limitados ou não - de sacramentar com o
encarceramento perpétuo suas investigações no domínio do espírito.
[...] Que tudo isso seja lembrado amanhã pela manhã, na hora da visita, quando
tentarem conversar sem dicionários com esses homens sobre os quais,
reconheçam, os senhores só têm a superioridade da força (Artaud, 1986)254.
Esse foi igualmente o período em que o estado da Bahia teve que lidar com diversas
cidade de Salvador não dispunha de nenhum lar abrigado, e apenas dois Centros de
hospital era alvo de inúmeras críticas de entidades defensoras dos direitos humanos,
tendo suscitado inclusive uma inspeção da comissão de direitos humanos da Ordem dos
que ali aportavam. Foi assim que se procurou construir, seguindo a indicação de Artaud,
Um fato nos parece exemplar. Nos primeiros dias da gestão, momento em que se
solicitaram, à nova direção, que fossem providenciadas cadeiras de plástico, bem simples
e práticas, muito mais adequadas às suas funções. Na pesquisa dos velhos tombos
antigo Solar da Boa Vista, casa do poeta Castro Alves. O precioso mobiliário foi
as cadeiras, todo o material da instituição centenária havia se dispersado. Não havia mais
traços das gestões anteriores, e mesmo a ata de fundação havia desaparecido. O hospital
concretas de futuro.
dizer que, hoje, o Memorial Juliano Moreira, além de ter resgatado parte da história do
A partir do que apresentamos nos capítulos I e II, é possível constatar que a queda dos
período Colonial e no Primeiro Império, os doentes mentais na Bahia não eram tratados
como pacientes psiquiátricos. Aqueles que eram considerados mais tranqüilos viviam
255
Foto cedida pelo Memorial Juliano Moreira
184
com suas famílias nas próprias casas, ou em anexos, e os mais violentos eram presos na
cadeia ou nos porões das Santas Casas. Esta característica assim permaneceu até a
século XIX. Seu marco inicial foi a construção do primeiro hospício brasileiro (que
estado da Bahia. Jacobina aponta para a extrema precariedade da situação dos internos à
época. Ele nos conta que, no final do século XIX, a mortalidade entre os pacientes pelo
beribéri era elevadíssima. Coube ao grande médico Nina Rodrigues descobrir que a
doença não tinha causa infecciosa, como se acreditava na época, e que era simplesmente
concepção alienista de recuperabilidade. Dizia ele: “[...] por maior que seja a degradação
que causa ao doente a loucura, elle conserva sempre os restos de sua origem divina, isto
Não se pode dizer que o Asylo era apenas um depósito humano, ele era
psiquiatria baiana. A questão é que, se por um lado os discursos avançaram, por outro,
256
Jacobina, R., O asilo e a constituição da psiquiatria na Bahia, p.53
185
por mais que se mudasse o discurso ou o poder político, a miserabilidade da condição dos
psiquiátrica baiana que, à época, usava como principal veículo de manifestação a Gazeta
Médica da Bahia257.
de transtorno mental. Porém, com o passar dos anos, houve uma progressiva decadência
de suas instalações, bem como uma degradação total da assistência oferecida aos seus
Arquitetura da segregação
chegada dos psicanalistas argentinos, fugidos do golpe militar. Esses eventos são
exemplos de uma cultura que dava ares de se abrir para uma nova percepção da loucura,
tanto pelos profissionais que trabalhavam na psiquiatria quanto pelo Outro social.
257
idem
186
fig. 1: Foto da nova sede do Hospital Juliano Moreira, antes da invasão, em 1981258
Porém, apesar da mudança ter sido impulsionada pelos novos ideais vindos da
reforma psiquiátrica, o novo hospital rapidamente adquiriu os vícios dos velhos hospitais
psiquiátricos (Veras, 2001). Muitos dos textos encontrados pelo Memorial apontavam
para inquietações tão presentes que a nova gestão poderia ter sido a autora. Podemos
em que urgia a transferência para uma nova sede: “Partimos do princípio que o Hospital
O que nos chama atenção nessas palavras é o fato de que esse relatório tenha sido
escrito apenas um ano antes da transferência para uma nova instalação que, rapidamente,
estado não foi suficiente para evitar que, apenas vinte anos depois, a situação do novo
258
Foto cedida pelo Memorial Juliano Moreira
259
Santos, F., Relatório do Hospital Juliano Moreira do ano 1978, p.6
187
concebido “com a melhor das intenções”, rapidamente redobrou o velho sistema asilar.
não deixava de transparecer um laço orgânico com a velha lógica asilar. Os tijolos
vazados que substituíam as grades bem como o isolamento em uma área remota da
de áreas verdes, confirmou, com o passar dos anos, o destino inexorável de demarcação
Contudo, uma curiosa situação inverteu a lógica dessa separação. A inversão pode
ser explicada de modo relativamente simples: se o hospital não vai à cidade, a cidade vai
até o hospital. Imaginemos uma edificação pública estatal construída em uma região
transporte para pacientes e funcionários. Que lugar seria melhor para que a população
Em poucos anos, o verde que circundava o hospital foi substituído por um enorme
nesse equipamento público muito mais do que apenas um hospital psiquiátrico. Para ela,
preposto das ações governamentais. Certa feita, ao pedir à equipe de jardinagem que
capinasse o fundo do hospital, limítrofe com a invasão, a sala de direção foi invadida pela
hospital era alimentada por “gatos” feitos a partir dos postes de iluminação da unidade.
anos atrás.
Os problemas eram tão numerosos e tão graves que muitas entidades sociais
exigiam do governo uma nova mudança. Com efeito, alguns fatos pareciam irreversíveis.
as chuvas de aluvião que traziam das invasões centenas de ratos mortos e detritos para as
Movimento dos Sem Terra acampados no resto de verde do hospital. Foram despendidas
É nesse caos que o próprio Conselho Estadual de Saúde convida o novo diretor
para se pronunciar publicamente. Este, juntamente com sua equipe, decide pela
comunidade tinha como referência principal, marco de sua existência, o hospital Juliano
Moreira. Ela aceitava os pacientes sem demonstrar nenhuma hostilidade nos anos de
sentimento de cooperação. Ele finalizou sua fala trazendo uma referência à presença da
hospitalar, era preciso restabelecer o laço que os unira inicialmente, e não cortá-lo. O
ponto positivo fundamental era que, naquela região, os pacientes não eram excluídos,
cabia então ao hospital e ao governo, ir até os outros excluídos, ou seja, os que estavam
recuperação da vizinhança, obtendo verbas públicas para contenção das encostas, criando
proximidade da equipe com a psicanálise abria espaço para uma outra lógica
invasão ocupavam os telhados do hospital para empinar suas pipas. O prejuízo era
considerável. Anualmente, hospital era obrigado a substituir mais da metade das telhas
troféus, deu-se início ao projeto. A condição, contudo, para a realização do certame, era
que o território do campeonato fosse a quadra poliesportiva, e não o telhado. A adesão foi
total, os dois mil reais de camisas e prêmios geraram uma economia de mais de oitenta
Nesse caso, o witz implicou em uma subversão do discurso do mestre que, por
com ameaças os jovens no telhado. A estratégia até então utilizada, implicava no reforço
das medidas de força que visavam evitar que a comunidade invadisse o hospital. A lógica
que ficava muito próximo da favela e era constantemente invadido. O próprio telhado do
hospital, a noite, era local de ronda do tráfico armado que fazia do teto do hospital um
ponto de observação.
Hoje o hospital recuperou um grande percentual da área invadida, que voltou a ser
várias reuniões com as comunidades do bairro, uma parte foi cedida para construção de
baiana Myriam Fraga, membro da Academia de Letras da Bahia, lançou seu livro
contando a história de Leonídia, amor de infância do poeta Castro Alves, que, após ter
sido deixada por este, enlouqueceu e passou o resto de seus dias internada precisamente
na antiga casa de seu único amor260. Morreu aos 81 anos no hospital, em 23 de janeiro de
passado faz os gestores andarem em círculos, repetindo velhas fórmulas e velhos erros.
razão única da existência de todo aquele universo, as vidas, muitas vezes perdidas, entre
os muros institucionais.
Leonidia Fraga261
260
Leonydia, a musa infeliz do poeta Castro Alves, de Myriam Fraga, publicado em 2002
261
Foto extraída do site http://www.projetomemoria.art.br/CastroAlves/memorias/memorias_morte.html’
192
Buscou-se então um novo olhar para os objetos que, para muitos que ali
trabalhavam, eram apenas algo insensato ou inútil. A resistência inicial foi significativa.
Era como se fosse necessário deixar de lado tudo o que não fizesse sentido, que tivesse
função de letra ou de objeto sem um fim útil, para garantir a sustentação do discurso da
todo o hospital. De tão presentes, eles se fundiram com a paisagem institucional perdendo
portanto, grita aos primeiro passos dentro do edifício. É como se alguém gritasse tanto
que o grito deixasse de ser ouvido por fazer parte do ruído ambiente. Ou como se, dos
pacientes, restassem apenas seus objetos a: seus gritos, seus excrementos, seus restos de
comida, suas pequenas mensagens que não são recolhidas por nenhum Outro.
Rodrigues Ferreira, psiquiatra e escritor de uma grande biografia em três tomos do poeta
Castro Alves, herdou do então diretor do Hospital o espólio de Leonídia. No espólio, sem
dúvidas, o mais importante item era o caderno de pensamentos. Diz Hermelino Ferreira:
Hermelino Ferreira chama atenção para a relíquia que Leonídia carregou até o fim
da vida. Não fosse esse resgate feito por ele, o espólio da musa se perderia nos tempos.
Aprendemos, com a clínica lacaniana das psicoses, a valorizar esses pequenos troços que
os pacientes internados carregam consigo. São pequenos embrulhos sem valor aparente,
262
Apud Fraga, p.118
193
objetos que são guardados como preciosidades por muitos loucos. São eles, finalmente, a
irrupção do objeto a no real, já que não são separados do corpo por nenhum discurso
(Lacan, 2001c). A falta, precisamente, de um discurso estabelecido faz com que esses
mostrados. Eles surgem como incidências contingentes, não planejadas, que perturbam a
são planejados apenas para estabelecer algum modo de disciplina: espaços para as
Marcos Prado ao filmar Estamira. Não se trata de expor a arte como sucesso terapêutico
de alguma oficina de artes, mas de capturar o real desses objetos, elevando-os à dignidade
da Coisa (Lacan, 1986)263. Daí sua afinidade com o real. Esses objetos não interessam a
incomunicável do sujeito. Toda arte que se presta a essa função promove, ainda que
parcialmente, a extração do objeto a. Ela se torna aquilo que o paciente tem de mais
valioso, mas que, ao mesmo tempo, não se encaixa em nenhum dos discursos que
O interior do hospital nos dava a ver, para além do humano, os objetos destacados
da vida de seus pacientes. Não se trata, aqui, da separação do objeto como possibilidade
anômalo que se funde com a arquitetura sombria imposta pela necessidade dos muros.
263
Lacan, J., Le Séminaire VII: L´éthique de la psychanalyse, p.133
194
produzidos. Seria muito simples responsabilizá-la quando na verdade nos deparamos com
um pacto coletivo e complexo que culminou com a secreção do objeto a nos muros
institucionais.
Um dos autores que mais defendem este ponto é o canadense Erving Goffman.
Sua obra Manicômios, prisões e conventos, de 1961, mostrou ao mundo o universo das
apagamento de uma tragédia real por um discurso. Para ele, mais a psiquiatria se fechou
no interesse pela doença mental, mais as condições dos doentes foram deixadas em
segundo plano.
Foram necessárias as vozes dos artistas, dos teóricos sociais, dos juristas e,
sobretudo, dos próprios loucos, para que a condição do internamento asilar causasse a
O hospital modelo não terá corpos nus, seios à mostra, excrementos, etc. Para
rabiscadas com mensagens contendo escritos sem respostas, etc. Foi possível constatar
que no hospital psiquiátrico encontramos uma exposição do corpo, de partes dele, que
não visa a sedução. Seios, nádegas, genitálias, o corpo é exposto ao olhar indiferente da
equipe, dos vigilantes ou mesmo dos outros pacientes. O olhar e a voz também eram
presenças constantes. Gritos perdidos pelos corredores, uma arquitetura que privilegia o
olhar ao contato, enfim, por todos esses aspectos podemos dizer que o hospital se tornara
a casa do objeto a.
retorno maciço no real dos gritos dos pacientes e dos olhares que nada dizem e tudo vêem
fotografou o interior do hospital deixando-se levar exclusivamente pelo que se dava a ver
(Malysse, 2001). O resultado desse trabalho não deve ser confundido com um
estudo/denúncia da situação precária do hospital no ano 2000. Ele é valioso por mostrar
que na instituição, sua arquitetura, seus muros e grades, sua luminosidade, tudo levava ao
saltasse ao olhar, o hospital não enxergava as ações, as mensagens, os objetos tudo que
confundiam com a arquitetura, por vezes criando insólitas mensagens, cartas que a
evento contou com a presença de críticos de arte, jornalistas, universitários e toda uma
era a “Louco pra ver”, de Stéphane Malysee. Tratava-se de uma grande tenda fechada,
que foi instalada no saguão de entrada do hospital, cujo interior era repleto de fotos
tiradas durante sua pesquisa. O visitante, para entrar no hospital, tinha que passar
necessariamente pelo interior da cabana, defrontando-se com as fotos. Caso não quisesse
entrar, a tenda possuía orifícios que permitiam ver seu interior. Diante da tenda, foi
visitante. Diante do que se dava a ver, e da dúvida sobre entrar ou não na casa dos loucos,
cabana.
200
dignidade dos pacientes através dos ideais de justiça e reparação. No caso dessa
exposição a equipe adotou uma proposta diferente. Apoiada na teoria do objeto, ela
prescindiu dos ideais e confrontou a sociedade com sua própria divisão subjetiva, ao
marca de nosso tempo a ruptura da barreira dos ideais e do belo. Brousse chama atenção
que por muito tempo a imagem do belo revestia o objeto, I(A) recobria a.
Hoje, essa barreira acabou. I(A) não governa mais a abordagem do objeto
pulsional pela Arte. A separação entre o Ideal e o objeto é consumida e é o a
sem véu que se adianta. O artista interpreta diretamente ao modo do objeto
pulsional, que corre entre os objetos comuns e anima nosso mundo, nossos
corpos, nossos hábitos, nossos estilos de vida e, portanto, nossos modos de
gozo (Brousse, 2008)264.
época (Lacan, 1966c)265. Quando a psicanálise se associa aos autores que apontam a queda
dos ideais e a prevalência do objeto no coração da civilização, ela reafirma que não é pela
escritura sem sentido e a obra de arte que não tem compromisso com o belo. Assim como
264
Brousse M-H., O objeto de arte na época do fim do belo: do objeto ao abjeto, p.174
265
Lacan, J. Fonction et Champ de la parole et du langage en Psychanalyse, p.321.
201
equipamento de Saúde mental com vocação para ser uma instituição total (Goffman,
ambulatório, sem nenhuma outra opção de tratamento fora dos muros da unidade. O fato
de estarem no mesmo prédio não fez com que houvesse integração entre esses três eixos
paciente.
gigantismo da proposta: mais de noventa mil atendimentos ambulatoriais por ano, quinze
equipes estivessem mais preparadas para a intervenção abrupta do que para a escuta
paciente das motivações subjetivas. Assim, a tendência da equipe era buscar soluções
dispensar tempo na escuta das motivações subjetivas. Uma pesquisa concluiu que nos
que mais insiste para que o paciente seja hospitalizado (Lidz, Mulvey et al., 2000).
Para que falar, uma vez que as frases não se terminam, que as propostas são
indecifráveis, as palavras apenas esboçadas ou, sem continuidade, parecem
sem pé nem cabeça? Somos sensíveis ao desamparo mudo e às vezes intenso
desses pacientes. Salta aos olhos que eles são freqüentemente invadidos pela
angústia.
[...] Afora as questões correntes do exame, não se encontra nada mais a dizer a
esses homens e mulheres já que, eles mesmos, igualmente não dizem nada. O
sono, ou ao menos o repouso inaugural com os quais eles são gratificados
tranqüiliza, portanto, todo mundo (Grivois, 2007)266.
momento em que em plena emergência surgiu uma clínica feita por psicólogos e demais
bastante simples gerou um efeito importante. O local da emergência deixou de ser apenas
266
Grivois, H., Parler avec les fous, p.62 – tradução nossa
203
plantão, que prescrevia sua orientação. Aos poucos, elas passaram a congregar servidores
tumulto da emergência, uma vez que esta tinha o maior fluxo de pacientes do estado,
atender até trinta pacientes em uma manhã. Como escutar um paciente novo, apreender a
menos de trinta minutos, ainda mais quando a próxima consulta é marcada para, em
média, quatro meses depois? É fácil compreender que o paciente, nesse atendimento, com
muita freqüência era reduzido à sua queixa, ainda mais quando ele, informado pela mídia,
já chegava com um diagnóstico feito: meu filho é hiperativo, tenho transtorno de pânico,
medicamento.
seis meses, apenas para renovar sua prescrição. Ele se tornava, assim, mais um número
das estatísticas de pacientes que se consideram doentes dos nervos, sem que nenhum
dessa residência segue até hoje voltado para a pertinência da psicanálise em uma
instituição de saúde mental. Com ela, foi possível trazer psicanalistas para a supervisão
complexo hospitalar com um novo discurso. “Os psicanalistas”, como eram chamados,
aportaram na instituição sob o olhar curioso de muitos servidores, às vezes com certa
melhorar a vida hospitalar. Eles foram mais que um fato efêmero, nunca antes o hospital
O SETA
partir da idéia de que uma instituição complexa como o Juliano Moreira apresenta várias
oito mil pacientes que passavam pela instituição, a maioria praticamente anônima e sem
uma direção clínica plausível. Por ser o hospital de referência no estado, por mais que se
quanto, por exemplo, uma jovem adolescente em seu primeiro surto, eram obrigados a
permanecer em uma mesma sala quente, com bancos de concreto, totalmente fechada por
grades para evitar fugas. O contato com o pessoal da recepção igualmente era feito
Obter uma consulta ambulatorial tampouco era uma tarefa simples. Um paciente
em estado de estranheza do mundo, ainda sem uma psicose desencadeada, deveria esperar
meses pelo atendimento. Como destino rotineiro, antes da consulta o estado se agravava e
A nova proposta de acolhimento visava reverter esse quadro, digno de uma tela de
reformar o atendimento, um convite foi feito aos profissionais da casa, mesmo aqueles
que não estavam lotados na emergência, para que dessem duas a três horas de sua carga
de trabalho na escuta e acolhimento das demandas. Com isso foi possível, mobilizando a
convidado a voltar alguns dias depois, para mais uma ou duas consultas, e depois se
206
encerrava o papel da instituição. Geralmente, no final da manhã, o trabalho das duplas era
com o próprio diretor geral. Foi possível criar um espaço em que a clínica e não a
burocracia orientasse a conduta. O objetivo era acolher a demanda do paciente e dar uma
resposta, mesmo que negativa, mas evitando que este permanecesse no limbo, vagando
que não tem mais medicamentos até a próxima consulta ambulatorial ou o paciente que,
após sua consulta, precisa aumentar o neuroléptico. Esse paciente, quando se dirige ao
profissional de saúde, pois não está marcado para aquele dia. Porém, quando então ele se
dirige à emergência a situação é ainda pior, pois ele é igualmente barrado logo na portaria
Esses pacientes passaram, com o SETA, a ser atendidos e triados logo de manhã,
por alguém do quadro superior - e não um simples vigilante distribuindo fichas - que se
dirigia a eles e racionalizava o tempo de espera. O que parecia algo bem simples teve, na
convidado a dar uma entrevista para um jornal de grande circulação sobre o novo
universitário logo na porta de entrada era algo que acontecia em vários lugares. Que, por
se deparar com um dos próprios diretores logo na própria entrada. No dia seguinte à
entrevista, o jornal estampou a matéria: “Juliano Moreira lança método japonês de Saúde
Mental”. Durante vários dias, fomos procurados por diversos outros meios de
pública pode ser o primeiro ciclo de uma pergunta que o sujeito faz sobre si mesmo e não
sobre sua doença (Miller, 2005a). Criou-se um dispositivo que leva em conta os efeitos
(Mattos, 2003)267.
psiquiátricos eram feitos, é fácil concluir que pouco ou nada da história do sujeito
aparece nas consultas. No caso da emergência, em que muitas vezes o paciente reluta em
ser atendido, era necessário passar “da urgência segundo o Outro à urgência do sujeito
(Barreto, 2004)268. Quando a equipe do SETA se defrontava com um caso destes, ela
atenderia o paciente de quatro até dezesseis vezes com um a freqüência de uma ou duas
267
Mattos, S., O uso da psicanálise em uma instituição invisível, p. 39
268
Barreto, F.P., A urgência subjetiva na saúde mental (uma introdução) p.47
208
vezes por semana, visando encontrar alguma solução terapêutica. Somente após este
ambulatório, mas uma grande parcela dos casos era equacionada ali mesmo, no GRUS.
de psiquiatria, à média de três consultas por ano, seriam necessários quase cinco anos
para realizar as dezesseis consultas. Uma vez que se criou um dispositivo em que os
Sonnenberg desde os anos noventa chama atenção para a necessidade de trazer de volta o
estranheza e protesto por parte de alguns psiquiatras. O fato é que um grande número de
pacientes passou pelo GRUS, teve alta da instituição, e não fez uso de nenhum
sem alguma receita nas mãos. A medicalização do sofrimento é tamanha que justifica a
resposta que nos foi dada por uma paciente à pergunta sobre o que é um psiquiatra: “Ora,
pacientes, mesmo nas crises, buscando uma posição ativa destes na subversão do real em
casos passou a ser mais importante no âmbito da instituição do que o gerenciamento das
normas. Não que estas sejam dispensadas, mas o paciente se tornou o pivô das ações
onde, antes, era a própria afirmação do discurso da instituição que ocupava esse lugar.
210
portanto, de uma clínica que não interessa aos que procuram, na saúde mental, apenas
Lacan inovou o método das apresentações e fez delas sua principal fonte de teorização
sobre as psicoses.
livremente pela cidade e cujo papel do analista é secretariá-los nos momentos difíceis,
sobretudo na relação com o outro, tal como propunha Lacan no Seminário das psicoses
(Lacan, 1981)269. Em dois deles o passado de internações psiquiátricas deixou uma dura
recordação, mas em nenhum dos três ela se fez necessária no longo período de
acompanhamento psicanalítico que se seguiu. À sua maneira, cada um foi capaz de uma
assume uma perspectiva muito mais sutil, longe da situação limite que a internação
269
Lacan, J., Le Séminaire III, Les psychoses, p.233
212
psiquiátrica representa para o sujeito. Nos três casos, algo da localização do gozo
passagem ao ato.
Os três casos nos servem igualmente para uma reflexão sobre o que seria uma
sinthoma o caso Joyce eleva a barra a um nível muito elevado. Joyce não era um
trabalho Joyce seria precisamente a psicose que não é recoberta pelo campo da saúde
mental.
uma amarração suficientemente tenaz para que o sujeito adquira um savoir y faire avec le
sinthome (Lacan, 1977). Ou seja, um saber fazer com o sintoma no momento em que o nó
psicoses desencadeadas. Ela seria mesmo a condição de cura das psicoses diante do
campo da saúde mental. Aprendemos com o último ensino de Lacan que é possível
(... ) Para terminar, mais uma pequena peça satírica tirada da clínica do Doutor
Ziehen: apresentação de uma neurose obsessiva. O paciente tem a obsessão de
que, nas ruas, ele deve passar a mão sob as saias das mulheres. Ziehen ao
auditório: “Senhores, nós devemos cuidadosamente examinar se tratamos aqui
de uma obsessão sexual”. Eu vou perguntar ao paciente se ele experimenta
igualmente esta impulsão na presença de mulheres de certa idade”. O paciente,
interrogado: “Infelizmente, Professor, até mesmo com minha própria mãe e
minha irmã”. Nesse ponto, Ziehen: “Vejam os senhores que não pode haver
aqui nada de sexual em jogo”. Ao assistente: “Escreva no processo verbal: o
paciente sofre de uma obsessão que não é de conteúdo sexual e sim absurdo!”
(Freud e Abraham, 1969)270.
Antológico e humorístico, o tom desse fragmento histórico nos deixa com uma
em uma hora de folga, menos épicos e mais próximos. O humor, contudo, não deixa de
nos indicar que um ponto de resistência fora tocado. Aqui, Freud ri de uma clínica
manifestação de uma doença, busca-se apreender o caminho que cada paciente encontrou,
270
Freud, S., e Abraham, K., Correspondance, p.104, tradução nossa
214
ou ainda procura, para reconstruir sua vida após o desencadeamento da psicose. Miller
equipes de enfermagem, mas pouca atenção da equipe médica. Apesar do interesse geral,
e poder, situando o psicanalista como mais uma das figuras de cerceamento da loucura.
Quando trazemos à tona o tema das apresentações de pacientes, há, sem dúvidas,
terceiro. Constitui-se desse modo uma tríade composta pelo entrevistador, o entrevistado
quando essa é efetuada pelo psicanalista, abre espaço para a surpresa. Esse desconforto
seja totalmente passivo, tornando o ato mesmo de presenciar a entrevista uma decisão que
implica um referendo ético daquele que escuta. A semelhança com o teatro é forte.
215
encontro dessa tríade precedente com o advento de um quarto elemento que escapa aos
cálculos, o inconsciente. Sua irrupção não segue o cálculo coletivo e sim os descaminhos
objeto de amostragem, o paciente será isolado da tríade e tratado como elemento que fala
manobra que impede que o saber sobre o caso seja exclusivamente do entrevistador.
entrevistador apenas o saber fazer, saber técnico que permite o alcance do saber inédito.
vacuolar, espaço entre parênteses dentro da instituição psiquiátrica, onde o paciente “tem
o lazer, por certo tempo restrito, de ser sujeito, ou seja, de faltar a ser” no discurso que
cada um na assistência (Briole, 2002). A ética que preside essa formação é a mesma que
elevará a contingência desta transmissão a “uma modalidade do real” (Laurent, E., 1998).
216
esquizofrenia, onde para Lacan o sujeito não se serve de nenhum discurso estabelecido
(Lacan, 2001c), entendemos que, em sua fala, tal como na língua fundamental do
Lacan afirma que "a condição do sujeito (neurótico ou psicótico) depende do que se passa
271
no Outro” (Lacan, 1966a) . Trata-se, aqui do Outro simbólico, ou seja, marcado pelo
equívoco do significante. Desse modo, ele demarca uma posição distinta da psiquiatria
clássica e passa da clínica do olhar para a clínica do discurso. Esta se assenta na premissa
apresentações, não devemos pensar, contudo, que lançar mão de um procedimento que
busca-se separar o que é dialético, o que pode mudar a posição do sujeito diante de algum
ponto que lhe impulsiona à passagem ao ato, do ponto de delírio que é inamovível, que
retorna sempre ao mesmo lugar, ponto de real. Trata-se de atingir, pela fala do paciente, a
dos efeitos de sentido que a fala do paciente comporta. Ela nos ensina, precisamente,
271
Lacan J., D´une question preliminaire..., p.549
272
Miller, J-A., Semblants et sinthomes, p.131
217
como o paciente reage diante do real sem sentido, e que invenções ele será levado a
questionário. Os questionários são cada vez mais utilizados nas pesquisas em psiquiatria
e saúde mental. O uso é tamanho que não são mais apenas os pacientes que são avaliados
Uma pesquisa demonstrou que a dimensão do encontro pessoal não deve ser
O real, como impossível de ser dito, não pode ser alcançado a partir de um
questionário padrão, o que faz da avaliação proposta pela psicanálise algo muito distante
dos rumos que toma a ciência atual (Miller e Milner, 2004). No que tange à apresentação
de pacientes, o fato de Lacan sempre ter sustentado que o sujeito da psicanálise nada mais
científico. Ela não é uma experiência reproduzível, cada apresentação deve ser vista
como singular.
dispositivo científico rompe uma dialética entre o sujeito e o Outro onde se ancora o
saber. Para Lacan, o saber designado como S2, pressupõe sua articulação com o S1,
estabelecendo desse modo o par ordenado: S1-S2 (Lacan, 1991). Já para a ciência o S2
não remete ao S1. Somente é valorizado o que faz sentido ou pode ser demonstrado sem
furos. Ora, para a psicanálise, o mais importante desse par ordenado é justamente que o
saber (S2), conectado ao S1, aponta para o gozo do sujeito. Essa situação é mencionada
aliviá-lo de sua pane de sentido (Lapeyre e Sauret, 2008). A apresentação de Lacan visa
precisamente esse S1 assemântico. Ele não surge necessariamente como uma pequena
deduzir, da fala do paciente, um neologismo, uma frase ou mesmo um gesto que possua
apenas uma significação pessoal, não fazendo parte da comunidade de sentido presidida
pelo Outro, tão como nos foi possível demonstrar com o exemplo da “Donadecasa”.
Contudo, não se trata meramente de atingir esse ponto de real, o saber que se constrói na
Maria localiza o início do seu padecimento aos nove anos, após a morte da mãe
em decorrência de um parto. Assim diz: “depois que minha mãe morreu tudo se acabou”.
274
Lacan J., Le Séminaire XVII, p.43
219
fortes, mas mesmo assim, quando lhe foi dada uma oportunidade, ela falou longamente
“carimbo”, referente à seus documentos, mais do que um equívoco da fala, aponta para
diz Maria, mais de uma vez durante a apresentação. Ali onde deveria surgir a palavra
carimbo, que funciona como sanção do Outro, surge o neologismo curinga, que permite
responde a uma filiação que traz, para a paciente, um conteúdo enigmático. É possível,
suportou a separação do pai e a morte da mãe sem que uma psicose se desencadeasse. É
no momento em que a paciente ocupa uma posição (o puerpério) que foi causa mesma da
morte da mãe (um parto) que o sentido da existência e do amor materno fracassou, não
fazendo existir um lugar no mundo para a paciente, que o significante curinga, escrito em
medicação foi possível uma escuta que ajudasse Maria a estruturar um delírio de modo a
extrair os elementos que lhe permitam fazer uma suplência à nomeação que lhe falta.
Assim o delírio em sua identidade trouxe um pouco de alívio para o seu sofrimento.
certamente incidirá muito mais sobre a particularidade da cada caso do que sobre a
em conta que o saber individual sobre um caso pode, e deve ter o poder de transformar a
instituição. É o que nos levou até aqui a sustentar que a presença da psicanálise subverte
a clínica no que ela tem de universal. Trata-se de observar a singularidade dentro das
esquizofrenia. Uma paciente esquizofrênica, hoje na casa dos 60 anos, teve sua primeira
crise psicótica logo após o nascimento de sua segunda filha, por volta dos 25 anos de
idade. Seu quadro psicótico, apesar de todas as dificuldades que sua doença trouxe, não
impossibilitou que fosse boa esposa e criasse bem todos os seus filhos, hoje profissionais
bem sucedidos.
A transferência para com o analista é muito boa, uma vez que ele é a única pessoa
com quem se abre quando está em crise. Com a experiência dos anos de doença, adquiriu
a prudência de evitar falar de seus delírios e alucinações com a família, para não
aborrecê-los. Muitas vezes, durante as crises, ela sequer precisa vir até o consultório.
Basta um telefonema para ouvir a voz do analista, e ela se tranqüiliza e consegue suportar
o tumulto das crises. Contudo, de todas as questões, a que mais a incomoda nesses anos
A paciente, segundo suas próprias palavras, “sofre por não sofrer de amor”. Isso
não impede que, no plano das identificações, exerça com poucos entraves os papéis
sociais de esposa, mãe e avó dedicada, assim com foi funcionária exemplar antes de se
aposentar devido à doença. Sempre teve uma vida sexual constante apesar do medo
atrelado ao sexo. Esse medo deve-se a recordação de uma de suas crises iniciais,
desencadeada precisamente durante um ato sexual onde o que parecia ser um orgasmo se
sexo onde o gozo é obtido mediante a masturbação. O sexo, portanto, não se ancora
suficientemente na dialética fálica para impedir que o real de um gozo por demais
intrusivo tome conta de seu ser. A masturbação, nesse sentido, não deve ser atrelada à
lógica fálica, e sim à possibilidade de localizar em um ponto corporal o gozo que fazia
“Etérea” é como ela descreve os momentos em que seu corpo não mais lhe
pertence. Relata que entra em conexão com o cosmos e com a vida de todos os seus
mortos, como se todos eles invadissem seu corpo, proferindo mensagens que se
aqui se rompe a temporalidade instalada pela cadeia significante, uma vez que a condição
do dizer, estruturada a partir do eixo a - a’, é precisamente que tudo o que pode ser dito
romper essa diacronia quando o inconsciente se manifesta a céu aberto. O fato de não
(Es)S a’
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Si
(A) Significantes
a
em
sincronia
223
“Não são as idéias malucas – diz ela - o que me faz diferente dos outros, é o fato
de não ter sentimentos, não conseguir amar nada. Gosto de meus netos, de meu marido,
mas não sou normal, fico só, com meus números, embora todos achem que eu estou bem
por que converso com todos e faço tudo em casa normalmente”. Trata-se de um mundo
onde é possível aplicar a denominação clássica de Helen Deutsch de As if, “como se”,
onde as atividades da vida cotidiana são realizadas “como se” tudo estivesse normal em
Fora das crises, contudo, queixa-se de que a vida é muito monótona. Para não
perder o domínio de seus pensamentos ela cifra o mundo contando tudo que pode. Conta
números.
Como vimos anteriormente, em seu texto Étourdit275, ele afirma que o sujeito
esquizofrenia está aqui diretamente implicado no fracasso da condição amorosa, uma vez
sexual. Por não haver extração de objeto, a paciente não se serve da pulsão para dar uma
função de gozo aos órgãos de seu corpo (Laurent, Eric, 1998). Igualmente, na relação
parceiro.
275
Lacan Jacques, Étourdit, in Autres écrits, Éditions du Seuil, Paris 2001, p. 474
224
Nesse caso clínico, isso não impede que os laços familiares existam de modo
relações sexuais, mesmo não sendo satisfatórias, sustentam a relação com o parceiro
fazendo parte das práticas contábeis que lhe trouxeram a percepção de um mundo em que
pudesse viver. Não por acaso sua escolha profissional, da qual foi aposentada por
invalidez, foi ligada ao mundo da contabilidade financeira. Até hoje uma de suas
desse mundo de números ela é consumida pela loucura, perde seu corpo, as idéias
Seu mundo contábil, contudo, não pode se apoiar em uma garantia universal.
Nesse sentido, descrente do pai, ela se torna igualmente descrente do amor. Como efeito
da foraclusão, a relação com o Outro não lhe traz nada de bom. A paciente tem que
assegurar, por si mesma, a ordem dos números sem apoio da função paterna, apesar de
comentário de Eric Laurent (Laurent, 1998b)276 de que para o sujeito psicótico, que não
que crê no pai, lhe resta o recurso à letra para estabilizar o buraco do significante. Desse
modo, a busca pelo amor é uma tarefa impossível, uma vez que a paciente separa a
e é a condição mesma do labirinto amoroso, sua contabilidade não expressa mais do que
Ao analista cabe a função de assegurar esse código quando tudo mais vacila. Nos
momentos de crise chega a ligar dez, quinze vezes por dia para seu telefone. Às vezes,
276
Laurent, E., Seminário sobre “De una question preliminar a todo tratamento possible de la psicosis” ,
p.44
225
quando o mesmo está incomunicável, fala com qualquer pessoa da casa, até mesmo a
faxineira semanal. As ligações são geralmente muito rápidas e produzem alívio imediato
à sua angústia. É necessário, contudo, que alguém esteja do outro lado da linha. Nos
períodos em que vai bem, chega a passar semanas sem dar um telefonema ou ir ao
consultório.
esteja presente. É possível identificar que sua função na cura obedece à mesma lógica de
assegurar que o código é eficaz e que ela não será “sublimada” – expressão dela - pelas
idéias vindas do Outro. É o que pode ser demonstrado pelo modo como procurou o
analista atual pela primeira vez, há quase duas décadas. Simplesmente ligou para ele se
apresentando e dizendo: “Há vinte anos sou tratada pelo Dr. X, ele morreu ontem e, como
não posso ficar sem psiquiatra, decidi ligar logo para o senhor”. Logo na primeira
consulta as bases foram estabelecidas sem que nenhuma sombra de luto pela morte
daquele que foi seu médico por anos a fio fosse esboçada.
Nesse caso a impossibilidade de amar não deixa de ser uma defesa do sujeito
sob os auspícios do Pai, faz do amor um acontecimento, ou seja, algo que na vida de um
sujeito cessa de não existir. Essa existência, contudo, está longe de ser eterna uma vez
que, seguindo o dito popular “não há amor que nunca se acabe”. Todavia, quando a
crença no Pai não pode ser sustentada, no caso de sua foraclusão, as coisas do amor se
passam de modo bem diferente. Quanto ao sujeito “dito esquizofrênico”, como ressalva
Lacan, nenhum discurso amoroso permitirá que o parceiro escolhido sustente o objeto
perdido, uma vez que o objeto “a”, ele o tem em seu próprio bolso (Lacan, 1967a).
226
cerca de dez anos. O Outro se tornara para ele insuportável, tornando a dimensão de uma
passagem ao ato uma constância em sua vida. Recém chegado à cidade, M. não se
adaptava a cultura local, terra natal de sua mãe, lugar que desconhecia até então.
O desentendimento freqüente e a irritação para com todos era cada vez maior.
confidenciado, para pânico de seus familiares que pensava em explodir o local em que
com sua mãe, se tornassem igualmente cada vez mais freqüentes. Nessas ocasiões,
É assim que, isolado de todos e com muita resistência, finalmente acata procurar
um profissional, dizendo de antemão que a psicanálise nada poderia fazer para aplacar
situação patética de ter que pagar para ter um interlocutor". Foi essa condição,
justamente, o único meio para tentar certo enganche da transferência: ele vinha porque
contra o analista. Ele reconhecia ter encontrado neste, contudo, alguém a quem julgava
menos rude que os demais. Por vezes se mostrava ameaçador, gritando muito e dizendo
que nada o demovia da idéia de que a psicanálise era uma tapeação, já em outros
momentos, quando as coisas se passavam bem, conversava com o analista por quase
uma hora. Eram conversas que continham uma erudição um pouco afetada. Discutiam
sobre cultura, literatura, vinhos, etc. Essa etapa do trabalho, que durou aproximadamente
cinco meses, finalmente permitiu, com cautela, restituir um pouco de sua história.
Sua mãe, havia se casado com um forasteiro e se mudado para a terra do pai,
onde logo as coisas se passaram muito mal. A mãe de M. era espancada e vivia em um
relatos, tanto do paciente quanto da mãe, com quem pude falar algumas
vezes, confirmaram que o pai, "sem nenhuma razão aparente", se punha a espancar o
paciente desde a mais tenra idade, chegando por vezes a bater sua cabeça no chão até
sangrar. Quando M. tinha três anos, a mãe se separa do pai e foge para sua cidade natal.
Devido às condições muito precárias, ela foi obrigada a colocar seu filho em um
internato durante a semana. Nos fins de semana M. voltava para a casa da mãe
Refere-se a esses anos como os piores de sua vida, uma vez que era tratado no
orfanato como franzino e branquinho, sempre vítima de trotes e agressões por partes dos
outros alunos. É assim que, a partir da adolescência, passa a se dedicar à prática de lutas
marciais, alegando que desde então jamais alguém conseguiria agredi-lo novamente.
228
Alguns anos mais tarde, sua mãe constitui um novo relacionamento com um rico
estudos universitários, inicialmente Direito - que logo abandona por não conseguir
onde consegue obter seu diploma. Nesse momento, sua mãe decide morar no exterior e
propõe que M. e sua atual namorada tentem a vida no novo país às custas de sua ajuda
financeira. Apesar de ser custeado pela mãe, M. consegue manter uma relação estável
da mãe que, segundo M., usava de seu poder financeiro para controlar a vida do casal.
Encontrando-se só, M. decide se mudar para a terra do pai, em busca de conhecer mais da
cultura paterna e, de um modo mais velado, se lançar na busca desse pai, que
praticamente não conhecera. Quando perguntado sobre o motivo que o movia a fazer tal
busca, ele dizia que não era por razão afetiva, mas que via aí a possibilidade de conseguir
Uma rápida passagem por esse país também termina mal. As relações com a
1966j)277. Tendlarz chama atenção para o fato de que Lacan, em sua tese – em que trata
Capgras, que pensavam que a evolução do delírio era algo incerto e que se confundia com
relatando diversos incidentes que, na sua leitura, teriam sido orquestrados exclusivamente
sair do local, ainda sem ter estabelecido um vínculo com o pai, temendo que todos
que nos permite ter o sentimento da realidade perceptiva. Ocorre que devemos entender a
fantasia. No caso da paranóia, embora o objeto não esteja colado ao sujeito, tampouco
podemos falar de extração, uma vez que o objeto olhar está permanentemente colado ao
Outro. O olhar nesse caso “se impõe ao sujeito e o sevicia permanentemente” (Miller,
2008b)279. No caso de M., a partir do momento em que se encontra na terra do pai o olhar
em inimigos que apenas queriam saber de seu dinheiro. Essa desconfiança se confirmava
278
Tendlarz, S., Aimée con Lacan, p.48
279
Miller, J-A., A imagem do corpo em psicanálise, p.27
230
O corpo e as mulheres
Uma única coisa parecia lhe trazer certo bem-estar: as horas em que se
proprietário de uma academia de ginástica. M. despendia muitas horas por dia na busca
do aprimoramento de sua forma física. É, igualmente, nas academias que ele buscava
conquistas e proezas sexuais. Eram sempre conquistas efêmeras, que fazia questão de
contar em minúcias.
virilidade estava sendo posta a prova pela parceira. Às vezes isso ocorria em algum jogo
sexual que ele não considerava apropriado aos homens, outras vezes, quando elas se
terminaram com insultos e brigas. No momento dessas rupturas seu ânimo despencava,
achavam que ele não era suficientemente viril. Essa preocupação, por vezes, o levava
a gestos desesperados. Certa feita não hesitou a baixar as calças em plena sessão para
que o analista conferisse se algo estaria errado com seus órgãos sexuais. Ao analista
somente coube lhe dizer que poderia ficar tranqüilo, que ele era realmente um homem e
Foi então que um novo projeto de vida foi plenamente apoiado pelo analista na
resgatar sua atividade de jornalista, deixando um pouco de lado a idéia de montar uma
analista suas opiniões sobre os acontecimentos políticos. Suas fontes eram colhidas
através de consultas pela internet dos diversos jornais de grande circulação mundial.
Eram textos sempre bem escritos, onde as opiniões refinadas procuram desvendar o
sentido menos evidente dos temas que tratava. A hipocrisia de determinado país, o
Essa fase de crítica ao mundo contemporâneo abriu uma nova etapa em seu
vive. Passou da crítica aos vizinhos à denúncia do gozo do Outro na forma de crítica às
lado para se localizar no horizonte assintótico dos sites da internet. Aos poucos,
conseguiu estabelecer alguns laços de amizade em um novo grupo social, ainda ligado
assim a tragédia de sua própria infância. Nas visitas que faz às entidades de assistência,
ele é sempre muito querido pelas crianças. M. crê que educar é uma função possível. É
232
assim que ele espera poder restaurar o campo dos Ideais corrompidos pelo gozo
Nos últimos anos, embora o convívio com os outros tenha se tornado mais fácil,
compulsão escópica, olhar para os objetos valiosos dos outros, tornou-se um obstáculo
permanente nas suas relações. Passou a mudar, com relativa freqüência, de ambiente
social, julgando que seu olhar sobre os objetos seria interpretado como vontade de roubar
algo do outro. Perguntamo-nos se não haveria, aqui, o retorno no real do objeto olhar.
Temos inicialmente o gozo do olhar do Outro, a perseguição sem tréguas desse olhar, e
em seguida, uma reversão que gera a compulsão a olhar, sem que o sujeito se reconheça
como aquele que olha. Diferente, aqui, do momento em que a subjetivação do olhar foi
possível na condição de observador e crítico do mundo pela internet. Esse terceiro tempo
trouxe um temor derivado do gozo localizado em seu próprio olhar, mas experimentado
como outro280.
algum sentido ao real desse gozo, lhe permitindo, assim, resgatar algo da subjetivação.
sobre isso. A resposta do analista à compulsão escópica foi a seguinte: “Não sou eu quem
diz, mas te darei uma interpretação freudiana, se você melhorar é porque a psicanálise
está certa: a bolsa que você olha significa a política de direita, o capitalismo”. M. ouviu
atentamente essa interpretação e, nas sessões seguintes, me disse que era bem possível
outro. Essas situações têm sido cada vez mais raras. A iminência de uma passagem ao ato
reduziu sensivelmente, mesmo quando o analista temeu uma reviravolta no dia em que
sua mãe, “a única pessoa que, apesar das brigas, realmente o amava”, faleceu. Há alguns
pensando em se casar.
concretizasse a passagem ao ato auto ou heteroagressiva que tanto anunciava. Uma das
vertentes da passagem ao ato na psicose, como comenta Tendlarz, aponta para a tentativa
de estabelecer uma diferença simbólica no real, ou seja, produzir uma extração de gozo
Inicialmente, para fugir dessa posição, o analista optou por assumir a posição de
que baixa as calças, expondo seus órgãos genitais ao olhar do analista deu a este a certeza
de não ocupar o lugar do Outro que poderia fazer-lhe algum mal. A partir desse momento
foi possível adotar uma posição mais ativa na cura, encorajar novos rumos, desaprovar as
ameaças aos próximos, enfim, assentar-se em uma posição mais cômoda na transferência.
281
Tendlarz S., e Garcia, C., A quién mata el asesino?, p.80
234
especular. As horas de exercício diante do espelho buscavam lhe dar uma forma que
fosse capaz de evitar qualquer escape de gozo feminilizante. M. defendia-se do gozo não
mapeado pela sua lógica viril tentando capturá-lo mediante o excesso de corpo adquirido
Um dia M. pede ao analista uma sessão em urgência. Como em raras vezes, surge
adormecido, em sua sala, teve a certeza de que seu corpo não lhe pertencia, que algo
estranho se apoderara dele a tal ponto que pensou em se matar para matar também a
coisa. Aos poucos foi se tranqüilizando, na medida em que o analista lhe assegurava que
era apenas um sonho. Por um instante M. perdera sua imagem corporal. Essa experiência
Levantei-me, com as mãos estendidas, virando-me tão depressa que quase caí!
Pois bem!...enxergava-se como em pleno dia, e eu não me vi no espelho!...Ele
estava vazio, claro, profundo, cheio de luz! Minha imagem não estava lá...e eu
estava diante dele!
[...] e não ousava mais avançar, não ousava mais fazer qualquer movimento,
sentindo, no entanto, que ele estava lá, mas que me escaparia de novo, ele, cujo
corpo imperceptível havia devorado meu reflexo (Maupassant, 1997)282.
Percebemos que a tentativa de localização do gozo real pela via da imagem, além
Outro. A compulsão escópica buscava estabelecer uma medida fálica que permitisse ao
sujeito se equilibrar entre os homens. Quando a questão do olhar tornou-se uma ameaça
para o laço social foi necessária uma intervenção que recolocasse, mediante um risco
282
Maupassant, G., O Horla, p.113
235
que o Outro perseguidor não se situava mais tão próximo a ponto de ter que ser
eliminado. Ele se tornou muito distante, um vago Outro capitalista ou país imperialista,
que impeça que o imaginário parta a deriva. O enodamento dos três registros não seria
analista uma interpretação, ele não busca saciar o seu desejo de saber, ele busca a fixação
de um gozo pela letra. O que mantém a transferência, nesse sentido, não é uma suposição
de saber de M. sobre o analista e sim sua posição de secretário que possibilita a escritura
de um sinthoma.
Allouch parte deste mesmo raciocínio para constatar que a suposição de saber do
caso Aimée procede do próprio Lacan. Para este autor, não é por acaso que ele tenha
Com o passar dos anos, foi possível perceber que M. situa o analista na
transferência como aquele que interpreta algo de sua experiência enigmática. No caso da
sob suspeição. A interpretação, portanto, deve ser feita com cautela para não fazer com
que algum excesso de sentido se converta em delírio. Em uma das últimas vezes que
procurou o analista fez o comentário, muito pertinente, por sinal: “Seus comentários
nunca tem muito pé nem cabeça, acho que você chuta um pouco, mas sei que me
aliviam”.
283
Allouch, J., Paranóia, p.432
236
obedecem a uma lógica que foi se configurando no transcurso de uma observação que se
estende por mais de vinte anos. Ana é uma mulher cultivada e de rara beleza que, nos
ambientes em que se encontra, atrai o olhar de homens e mulheres. Sua conexão com o
mundo, contudo, não se centra nas relações humanas. A presença do outro lhe é na
maioria das vezes, incômoda e persecutória. É pela cultura e pelas artes que ela
Durante todos esses anos, paradoxalmente, o leitmotiv das sessões é a busca incessante de
regulamente, em uma média de dois a três atendimentos por mês. O espaçamento entre as
sessões não deve ser visto como enfraquecimento do seu tratamento. Muito pelo
contrário, Ana encontrou na análise, segundo ela mesma, o único ponto sólido em que
pode se apoiar, o que indica que a transferência provavelmente tenderá a se prolongar até
o infinito.
284
Lacan, J., Homenagem a Marguerite Duras pelo arrebatamento de Lol V. Stein, p. 204.
237
É possível concluir que bons avanços foram feitos. Aos cinqüenta anos,
O emprego e o atual companheiro (ainda que, não por acaso, morando em casas
comentário feito por Ana define, não somente sua família, mas, de modo geral, o modo
como prefere estar no mundo: “família é boa para se ver nas fotos, no cotidiano é que é
horrível”. Essa frase, que ordinariamente muitas pessoas já disseram, é nesse caso uma
intersubjetividade.
colegas de trabalho. Nada muito explícito, nenhum delírio persecutório maior, porém não
há uma sessão sem que as “picuinhas” dos colegas contra ela sejam alvo de longa
explanação. Cada gesto ou comentário de seus colegas pode ser vivido como a prova de
que lhe perseguem e afirmam sua incompetência. Ao analista não cabe mais do que
acusar o recebimento dessa indignação e, por vezes, dissuadi-la de realizar uma ação
Apesar de tudo, o que lhe sustentou por muito tempo em um emprego fixo foi a
passava o dia pesquisando obras de arte, organizando exposições. É o que lhe permitia
estava sempre presente em seu cotidiano. Cada movimento da equipe podia ser
238
interpretado como uma segregação. Às vezes, a segregação tomava aspectos tão radicais
que pensava concluir o suicídio que tentara aos vinte anos de idade.
Lembrando-se desse passado dramático, nas raras vezes em que pede uma
consulta fora do dia marcado, é necessário atendê-la imediatamente, nem que seja por
telefone, muitas vezes apenas para lhe assegurar que ela conseguirá suportar as
dificuldades e que pode contar com o analista. Ainda assim, a morte é um tema que
delirante.
morte. Trata-se de um longo e detalhado estudo que fez sobre uma obra de arte célebre,
exuberância da moldura. Veremos como esse deslocamento da obra de arte para seu
Com efeito, o momento atual não deixa transparecer o tumulto que foi sua vida
dos dezessete aos trinta anos. Ana pouco fala desse período, mas o descreve como um
anos é seduzida por uma mulher mais velha, participante do universo social paterno, com
a qual se lança em uma paixão proibida. Lembra-se bem que, no dia em que o pai
surpreendeu o relacionamento, este lhe deu uma bofetada no rosto que ficou para sempre
239
marcado em sua memória. É importante relatar que, em todos esses anos, essa é a única
Relata que desde os dezessete anos o mundo ficou “bizarro”. Eram os anos 70 e a
jovem Ana se confundia com os hippies da época, sem que sua estranheza, cada vez
maior diante do mundo, fosse vista como algo muito diferente das viagens de seus
Contudo, ela mesma se dá conta de que sua estranheza não era como a dos outros.
O mundo se tornou “psicodélico” e ela passou a vagar pela praia junto aos hippies, sem
muita noção do que fazia. Recorda-se de uma experiência “mística” que lhe marcou
particularmente. Bem na época hippie, foi convidada a assistir uma palestra de um mestre
impressão de que não mais pertencia a seu corpo. Saiu da palestra vagando por dias pela
cidade como se fosse um “corpo sem alma”. Após dias andando “no total vazio” foi
tumultuadas com parceiros de ambos os sexos para se dedicar a um amor por uma mulher
célebre. Esse amor perdura até hoje, mas é, sobretudo, um amor platônico, sem a mínima
necessidade de reciprocidade. Assim, sua vida afetiva e sexual segue o mesmo destino
que sua vida somente teria sentido se “encontrasse” a morte. Pega então um revólver da
casa, se dirige a um ponto distante e dá um tiro no peito. Relata que não se tratou de um
240
Ao perceber que, apesar do ferimento em seu peito, ainda era capaz de andar, caminha até
sua cama, se deita e se cobre. Relata ainda que as horas que passou na cama esperando a
morte foram de grande paz. Ficou deitada, rezando, aguardando morrer tranqüilamente.
Na manhã seguinte, quando é descoberta pelos familiares, é levada em estado grave para
em um hospital psiquiátrico.
momento não mais necessita de internações e aos poucos o tumulto da época das
hospitalizações fica para trás. O papel das artes é crucial na estabilização dessa psicose,
mas não deve ser entendido no sentido de um sinthoma. Ou seja, constatamos que a arte
fixa para Ana uma posição, na qual ela faz uso do olhar para reordenar os fragmentos de
Ana está na faixa dos quarenta anos e há muito não apresenta qualquer crise
contingente dará um giro importante em sua vida. Em uma ocasião social ela é
encontro. Esse homem ficara impressionado com a semelhança física entre Ana e sua
esposa falecida. Eles iniciam um relacionamento que se fixa, de forma gradativa, e com
muita cautela. Não se trata de um relacionamento mediado pelo desejo. Viajam juntos e
por muito tempo dormem no mesmo quarto, abraçados apenas. Somente após alguns anos
de relacionamento passam a ter uma vida sexual. Mesmo assim, as questões do desejo e
do prazer jamais foram motivos de análise nas sessões. É assim que, pela primeira vez
após anos, Ana estabelece uma relação estável com alguém. Embora não morem juntos,
Foi necessário um período de mais de dez anos de tratamento para que Ana
de se tratar de uma alucinação mnêmica, o relato é crucial para situar o modo como esse
sujeito organiza seu corpo e se serve de uma identificação imaginária para se defender da
intrusão do gozo do Outro. Eis o relato. Brincava no quarto dos pais onde havia um
estilhaçado. Para além do susto, o que ela afirma ter sido o mais angustiante foi ver a
imagem de uma menina “muito parecida com ela”, desfigurada no espelho. A menina lhe
que não consegue decifrar diante do espelho. Ao relatar esse episódio é possível perceber
Em uma sessão posterior, ela mesma conclui que o tiro que dera em si mesma,
anos mais tarde, é a finalização de um processo iniciado com o primeiro tiro. “O espelho
Podemos abordar o caso Ana a partir das considerações que faz Miller sobre a
radical entre sentido e real, estabelecida por Lacan a partir de Seminário 22, R.S.I. Miller
de identificação é formalizado por Freud no célebre capítulo VII de seu texto sobre a
psicologia das massas (Freud, 1981). Nesse texto, a identificação primordial, também
unário, em que qualquer significante pode ser válido, contanto que seja procedente do
próprio, substância gozante a ser modelada pelas identificações que se sucederão. Assim,
a complexa relação entre o “corpo que se tem” e o “corpo que se é” vem do fato de que o
corpo imaginário se liga é esse misto de real do gozo e significação obtida do simbólico.
Para Lacan, essa operação se produz precisamente por meio da entrada do sujeito na
243
linguagem, uma vez que a incorporação converte o real do corpo em corpo habitado pela
linguagem. Ou seja, seguindo suas palavras, a linguagem come o real (Lacan, 2006b)285.
Essa operação, contudo, deixa um resto que encontra uma consistência lógica quando o
Nada garante que uma incorporação tenha dado um corpo à Ana. Aqui nos
remetemos aos comentários que faz Miller sobre Lol V. Stein, presentes nas últimas aulas
de seu curso Os usos do Lapso (Miller, 2004b). Assim como na história de Lol, o hiato
entre o primeiro e o segundo tiro produz um “instante eterno”, que não se inscreve no
tempo pela cadeia significante, Ana não subjetiva o gozo como sendo o gozo de seu
próprio corpo. Nesse sentido podemos aplicar o matema que Miller utiliza para descrever
o caso Lol.286
primeiro tiro, no espelho, obedece a uma estrutura que bem poderia ser a de um
desencadeamento. O curioso é que não é nesse momento e sim na entrada da fase adulta
que a psicose irrompe. É aos dezessete anos que, de uma forma bruta, rompe-se a
conexão entre o corpo vivo e sua imagem no espelho. A imagem especular, estilhaçada,
285
Lacan, J., O Seminário, livro 23 : O sinthoma. p. 31.
286
Miller, J.-A, Los usos del lapso, p.503.
244
espelho sem nenhuma mediação fálica. Nesse momento de angústia, o corpo perde seu
transformam em sinal de que o outro tem alguma intenção maligna sobre ela. Esse
sentimento a acompanha por toda a vida, transformando sua relação com os pequenos
Contudo, não é nesse momento que Ana enlouquece. Após o primeiro tiro, é
possível guardar uma distância desse duplo que, tal como Horla, é tão íntimo e tão
estranho. Do mesmo modo, esse outro no espelho é algo que fascina e causa horror. O
interesse pelo mesmo sexo, nesse caso, não tem nada do caráter “homo” que regularia
uma relação mediada pelo desejo. O interesse de Ana pelas mulheres é orientado,
precisamente, pelo duplo que fascina e causa estranheza. O distanciamento do duplo evita
precisamente no momento em que se depara com o sexo, sob a forma de uma relação
segundo tiro. Ana elabora como saber, em análise, que o segundo tiro foi um momento de
concluir. “Na verdade quis atirar no espelho quando dei o tiro em mim!”, exclama Ana
em uma sessão capital. Ou seja, no ato suicida do segundo tiro a verdadeira dimensão é
apaziguamento inédito para o sujeito. Uma formulação como essa dificilmente seria
É importante voltar ao ponto de que uma melhora significativa foi obtida bem
antes dessa fase do tratamento, quando, ainda internada, Ana descobriu a arte. Qual o
papel efetivo da arte em sua estabilização? A busca de um ofício ligado às artes pode, a
princípio, sugerir que a obra de arte surge como suplência nesse caso. A fórmula, porém,
nos parece diferente. Apesar da grande melhora do quadro clínico, após a aproximação
Para além das artes, o encontro com o parceiro, que lhe assegura o lugar de morta,
reforça a posição de observadora que não precisa fazer parte do mundo. Ana passa a viver
com mais leveza e as queixas diminuem muito. Surge então outra resposta para a
sinthomatização de sua psicose delirante. Um dia Ana fala longamente de seu interesse
particular por uma obra de arte que, na verdade, é uma moldura para o portal de um
jazigo. Trata-se da Porta do inferno de Rodin. Essa obra de arte, que a fascina, remete
diretamente ao espelho estilhaçado da infância, que é cercado por uma moldura. Assim,
ao se interessar pelo belo da moldura desse portal - que circunscreve as portas da morte -
espelho. Essa estratégia lhe permite desviar seu olhar do gozo que pode tragá-la para a
loucura.
246
nenhum discurso estabelecido para poder dar função de gozo a seu corpo. Na escuta de
de objetos externos que assumem valor de órgão para o sujeito. No caso Ana, o objeto
olhar, não extraído, retornava no real fixando-a sob o olhar do Outro perseguidor. A
estratégia, nos anos de tratamento, passou pela construção de uma moldura com a qual
pudesse se defender do real fixando o gozo neste artefato/olhar. Assim como Rodin o fez,
transferir o belo para a moldura faz desta uma obra e não um simples suporte para a
imagem. A moldura se torna uma escritura que permite organizar o gozo escópico, que
Ana cria a arte para sustentar seu olhar. Olhar para o espelho, porém, remete
envelope para sua imagem em estilhaços. Esta passa a ser contida por uma borda que
impede a queda no abismo. Para continuar viva Ana não pode se separar de seu olhar.
Recentemente uma situação pôs a prova o dispositivo criado por ela. Ao caminhar
pela rua, foi assaltada e, além de levarem seus pertences, sofreu diversas escoriações dos
ladrões. Passadas algumas semanas ela me traz uma seqüência de desenhos que narram os
retrata a cena do assalto, ela associa a figura dos agressores às agressões dos tempos de
internação psiquiátrica. Assim, ela substitui as armas por faixas de contenção e seringas
de medicamentos:
247
No segundo desenho Ana traz o que ela mesma chama de “resultado de anos de
onde mãe e filha formam uma única imagem, mas ao mesmo apontam para um
impressão de que de uma imagem surge o outro especular. Ao contrário de sua própria
O momento que ela chama de “cura” permite que ela veja o outro lado da
4 – A identificação à morta que lhe situa um ponto para ser olhada pelo outro;
moldura. A imagem não mais é ameaçadora como na infância, nem opaca ou mortificada,
como nas soluções anteriores. Surge uma imagem que ela relata como sendo de
felicidade, o seu corpo ereto, parece querer se levantar e sair da posição de morta. Ela
finalmente pode conceber algo do outro lado da moldura sem se sentir ameaçada.
249
250
CONCLUSÃO
251
introdução: a psicanálise tem uma teoria sobre a loucura que lhe é própria e que se
distingue das teorias que influenciam os discursos que guiam a saúde mental no Brasil.
Trata-se de uma teoria que aponta para o sujeito, buscando resgatá-lo da condição de
interrogar seu sintoma como criação que faz suplência ao que rateia na constituição do
laço social.
O imaginário pode definir nossa pesquisa sobre o campo da saúde mental287. Nos
Foi possível constatar que a pluralidade discursiva gera muitas vezes desconfianças e
reorganizados a partir de uma imagem unificadora cada vez mais presente, e cada vez
mais ilusória: o homem normal. O primeiro capítulo nos serviu para ver que, em suas
bases, a reforma psiquiátrica no Brasil foi um grito contra os poderes que fixavam o
loucos, estavam sendo ameaçadas. Nossa pesquisa nos mostrou que a saúde mental no
Brasil foi uma conquista deve muito à militância quiçá mais do que à ciência.
287
Chamaremos doravante apenas de campo
252
qualquer forma de poder sobre a liberdade da loucura. Na esfera social, constatamos que
a utopia do homem livre fez com que as questões subjetivas cedessem lugar às questões
combustível nos movimentos de maio de 68. Seus efeitos sobre o campo foram tamanhos
(Filho, 2008).
leis e referenciais simbólicos (Dufour, 2005)288. Para o melhor e o pior, o campo nunca
mais foi unificado. Em nosso percurso, procuramos mostrar que a saúde mental passou a
viver a difícil era das conversações, apontada por Miller, em seu curso O Outro que não
existe e seus comitês de ética (Miller, 2005b), como um sintoma da queda dos grandes
significantes mestres.
abranger, para além da loucura, toda a sociedade. O segundo capítulo serviu para que
atestássemos a predição lacaniana de que a queda de uma forma de poder pode ser
sucedida por outra forma ainda mais dogmática. É o que constatamos no momento em
ressonância magnética do cérebro e técnicas cada vez mais desenvolvidas para adequar o
autores como Foucault, Deleuze e Guattari não puderam ser confirmadas. Entre elas,
analisarmos a cronologia dos fatos, supomos que muito dos equívocos do Anti-Édipo, por
exemplo podem ter se originado do fato de que os Seminários de Lacan apenas foram
público nos anos 70. Enquanto Foucault era pródigo em publicações e o Anti-Édipo
representava como poucos livros o esprit du temps de maio 68, Lacan, fiel à sua
transmissão oral do Seminário, resistia a publicar sua obra (Miller, 2008c)289. Boa parte
de seu último ensino conhecido apenas agora, três décadas após sua morte.
O simbólico pode ser representado pelos capítulos III e IV, onde falamos da teoria
lacaniana das psicoses. Nossa proposta foi identificar de que modo a teoria nos auxilia a
mestres que permitem uma ordenação do campo da saúde mental a partir da psicanálise.
continuidade, apostando que, apesar dos avanços e rupturas internas, Lacan formou um
grande e único corpo teórico para o estudo das psicoses. Procuramos recuperar, desse
modo, aspectos de seu primeiro ensino das psicoses que alguns consideravam obsoletos
O segundo ponto crucial foi a possibilidade de fazer uma leitura inédita da clínica
dos anos 50, sobretudo do esquema L de Lacan, a partir de dois livros de Miller, Silet e O
osso de uma análise. Até então, nos debruçávamos sobre esse esquema tomando a
“conversão de perspectiva”, introduzida por Miller no final dos anos 90, nos permitiu
rever o eixo do inconsciente como local de gozo, dando assim uma função à linguagem
o que remete ao diálogo e o que remete ao monólogo na relação entre os homens. Daí a
língua privada” (Laurent, 2008c)290. A lalíngua faz com que toda comunicação tenha um
núcleo de gozo que se satisfaz sem o Outro, conseqüentemente fora do laço social.
Assim, a conversão de perspectiva nos permitiu propor uma nova leitura ao que é
discurso afirmando que, no fundo, o laço social nada mais é do que um delírio (Miller,
1993). O laço serve primordialmente para gozar e não para comunicar. Essa visão é
distinta dos ideais de reinserção social, tão comuns nos discursos da saúde mental.
psicanálise se tivéssemos que prescindir do laço social. Ele representa a célula mínima
que une os dois campos. Daí a pergunta que nos ocupou durante todo o percurso, como
fazer o laço se o psicótico tem o objeto de gozo “no seu bolso” (Lacan, 1967a)? É, no
290
Laurent, E., Usages des neuro-sciences pour la psychanalyse, p.117
255
fundo, a questão que intrigava Lacan sobre Finnegans Wake, ele compreendia porque
Joyce o havia escrito, mas não porque ele havia publicado (Miller, 2008c).
a, clínica que visa separar o sujeito precisamente do gozo que é experimentado como
teoria do sinthoma (Lacan, 2005b) percebemos que ganhou espaço na clínica lacaniana a
separação entre o que é útil, intercambiável, presente nas trocas relacionais, e o que tem
diferença entre psicanálise e saúde mental. Por mais eficientes que sejam os discursos
sobre a loucura, por mais que a ciência avance nas descobertas genéticas, farmacológicas
sustentar apenas nos ideais. Buscamos demonstrar que o campo psicanalítico se separa da
saúde mental quando percebe nesses restos o índice de que a subjetividade está presente e
que é possível levar o sujeito a elaborar uma equação para o impasse de sua existência
Nosso trabalho nos fez vez que, na saúde mental, prevalece uma lógica de
do Outro, etc. A psicanálise toma uma outra vertente, ela aposta na reinserção pelo fato
de que todos deliram, e não porque todos são cidadãos. Promovemos, desse modo, uma
consentimento do sujeito e não o consentimento do Outro, para que algo do gozo saia dos
256
limites da lalíngua e possa circular no campo do sentido. Na clínica dos anos 50, o
Nome-do-Pai era concebido como o pivô dessa báscula. A partir dos anos 60, o
que a teoria do sinthoma nos permite uma reflexão sobre dois modos distintos de pensar a
Nem toda extração é uma criação. A extração muitas vezes leva o psicótico à
Após termos apresentado o modo como a teoria lacaniana das psicoses promove
um novo recorte sobre o campo da saúde mental, nos foi possível escrever avançar sobre
o terceiro eixo de nosso trabalho, o real da clínica. Chegamos à conclusão que somente é
possível confirmar nossa hipótese inicial, de que a psicanálise tem uma teoria para a
saúde mental, distinta das demais teorias que habitam o campo, se preservarmos o real na
condição de impossível que escapa a todos os saberes. Nosso ponto de referência foi a
separação entre o sentido e o real que opera Lacan a partir do seminário XXII, situando o
psiquiátrica intramuros. Fazemos coro aos que denunciam a degradação a que podem
consolidação dos princípios da reforma psiquiátrica. Com isso, afirmamos que nossa
pesquisa não nos levou a constatar uma antítese entre os princípios da cidadania e os
para ser “O” discurso que daria a bússola ao campo político na saúde mental. Seu
discurso não opera através do ideal, ao contrário, ele aponta para o real que faz todos os
ideais fracassarem.
esse gesto motivou um novo olhar para a instituição. O hospital encontrado não era uma
instituição de doentes, era a instituição do objeto a. Aqui nossa pesquisa encontrou uma
Seminário da angústia (Lacan, 2004b)291. Foi possível pensar in loco a distinção entre
tradicionalmente pela crítica ao poder, que reduz o paciente a ser objeto de algum
discurso, a psicanálise nos ajudou a perceber que o paciente do Juliano Moreira havia se
tornado o resto real que escapava a todos os discursos que recortavam a instituição. Em
nossa pesquisa, foi revelador perceber a diferença entre considerar que a instituição
transforma o paciente em objeto e considerar que a instituição faz dele seu objeto a.
Encontramos aqui um ponto que nos pareceu inédito para apoiar o distanciamento
entre Foucault e Lacan. Na fábula do Rei Jorge III, percebemos que o poder passa do rei
ao médico, do médico aos servos e desses ao discurso que impõe a ordem e a disciplina.
A fábula, contudo, não deixa de mencionar o momento em que é dado ao Rei Jorge a
possibilidade de sua redenção. No momento em que ele joga os excrementos sobre seu
médico ele pode negar seu poder. Nesse momento ele se faz sujeito. Encontramos a
291
Lacan, J., Le Séminaire X, l’ angoisse, p.248
258
mesma recusa em ser objeto no riso de Artaud em sua Carta aos médicos-chefes dos
manicômios: “As leis e os costumes vos concedem o direito de medir o espírito. Essa
jurisdição soberana e temível é exercida com vossa razão. Deixai-nos rir” (Artaud, 1986).
de Malysse (Malysse, 2001), mostrar que os pacientes haviam sido reduzidos a objetos a:
vozes, olhares, partes do corpo, excrementos, sem que nenhum discurso fosse alvo de
mensagens a um vago Outro por trás das lentes, outros pacientes passavam indiferentes,
muitos expondo, em sua nudez, o gozo limitado ao objeto que eles mesmos se tornaram.
A descrição das estratégias para o resgate da subjetividade nos fez ver que a
apresentados no capítulo VI, procuramos pensar a clínica lacaniana das psicoses como o
nó que mantém unidos os aspectos imaginários, simbólicos e reais de nossa tarefa. Nos
três casos nos deparamos com situações que são relativamente comuns no campo da
saúde mental. O modo como pudemos nos servir do legado de Lacan na condução do
tratamento fez, contudo um diferencial. Nos três casos, a clínica permitiu o surgimento de
Nosso percurso, ao mesmo tempo em que nos esclareceu, abriu as portas para
novas indagações. Ao menos uma das interrogações nos deixou o caminho que poderia
render uma nova tese. Procuramos estabelecer três pousos para a teoria das psicoses em
que poderíamos acrescentar à série o seminário XX, Encore. Não exploramos como
instigante. Lacan interroga se não poderíamos interpretar uma das faces do Outro, a face
Deus, como sendo sustentada pelo gozo feminino (Lacan, 1975b)292. Sabemos que Lacan
avança a questão da feminilidade a partir da afirmação de que as mulheres não são folles
du tout. Seria esse um modo de se pensar o empuxo à mulher? O que Schreber pode ter
contratação de uma paisagista e da recuperação dos espaços verdes, uma velha máquina
perfeitamente afinada com a teoria lacaniana. A coisa foi pintada em cores vivas, elevada
à dignidade de uma peça de arte e, em seguida, colocou-se diante dela uma pequena placa
onde estava escrito: “Impossível de retirar”. Familiarmente, para a instituição, ela passou
Nesse momento uma idéia atravessou nosso pensamento, as gestões passam, o impossível
permanece.
261
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