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University of W. | sconsin–Madison
723 State Stº º
Madison W. 5.3706–1494
(|\[|\]|\||\||\||\]\,:
POR

A, PEREIRA DA CUNHA.

==.

QUAER e 3RRRÃes.

LISBOA
rIPOGRAFIA DA GAZETA DOS TRIBUNASé,
Rua dos Fanqueiros n.º 82.

1sã6.
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A MEU PRIMO E AMIGO

39ão fachabo pinheiro forrea be filetto,


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uíz infeixar n’este ramo de rozas silvestres,


colhidas pelos montes do Minho, — intentei guar
dar neste livro das minhas saudades, a triste
memoria dos quatro irmãos desgraçados, que se
mataram numa contenda, e que repoizam agora
na mesma campa, nos arrabaldes de Guima
rães.
Folhearam-se os livros da freguezia, e nem
siquer se encontrou lembrança do estranho suc
cesso !
Fui sentar-me na tampa da sepultura, raspei
o musgo sêcco da pedra, procurei soletrar uns
signaes apagados, que o terror da vizinhança,
depois, converteu em symbolos d'aquella historia
de sangue... e não pude intendel-os.
Voltei-me para a tradição, portanto; estudei
no povo; revolvi o seu thesoiro de poesia, em
que reluz tanto diamante, em bruto — e arreca
dei as mutiladas feições do lastimavel caso, dis
persas por entre o nevoeiro dos tempos.
Vou seguil-a aqui pura e estreme; parece-me
natural e verdadeira, e sái conforme com a his
toria, que me contava, em pequeno , a minha
querida avó D. Maria Joanna de Mello: — Deus
lhe pague, no céo, as horas, que me entreteve
pasmado!
Vianna, 11 de Junho de 1846,
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I.

E se acaso acode um gosto


Do sol nascido ó sol posto
Dos desgostos nom se estrema.
P. de A. Caminha — Epist. XXII,

A MÃE E o FILHO.

— Que linda tarde está, meu filho! nunca


vi... é uma tarde de rosas; não corre nem
um arzinho de vento siquer. E aqui dentro... e
Jezus! vai um calor!..
— Vai calor, vai.
— Pois olha: queres tu? abro uma greta d'es
te postigo... Não te faz mal.
— Eu... parece-me que não fará.
— Não faz; antes bem.
— Então abra, minha mãe, abra.
E a Sr.° Brites do Couto, ou a thia Brites do
Couto, como toda a gente no logar lhe chamava,
foi-se muito direita á janella, abriu de vagar o
postigo, e pozpolo de sorte, que não viesse dam
1
2
no ao seu ricco Manuel, que alli estava na cama
doente; a Manuel, a quem tanto, tanto queria...
Se ele era o mais novo dos quatro filhos, que
Deus lhe dera!
A pobre mulher não via outra coisa no mun
do Punha n'elle toda a esperança da alegria de
sua vida.
E coitada ! curta vida sería a sua jagora. Com
perto de settenta janeiros andados, e com má
goas e desgostos, que inda é peior...
Mas cuidam talvez que era uma velha inge
lhada e feia... Não, senhor; nada. A thia Bri
tes andava sempre tam lavada e aceadinha, que
fazia gôsto. Gibão e saia de panno razo, muito
escovado; o lenço e o camizote, a reluzir-lhe
d'alvo, como a pura neve...
Não se parecia, nem de longe com a malaza
da bruxa, — que bruxa estou em dizer que era,
e mais bruxa do que todas quantas se represen
taram áquelle celebre poeta inglez, e ao outro
da Alemanha tambem, que tantas maravilhas
referiu de um doutor de malas-artes, que pri
meiro foi theologo e depois feiticeiro... e até, se
bem me lembro, ao divertido Gil-Vicente, com
quem os nossos reis antigos diz que se regalavam
de rir... Bons tempos eram!
Porém a nossa honrada viuva do Couto havia
se de estremar bem d’ella, havia; dessa velha,
esgalgada, como um pinheiro bravo, e triste,
como o peccado, que me sahiu d'uma congosta
a manquejar d'um pé, e vestida de baeta negra,
e que me contou ésta historia verdadeira dos qua
tro-irmãos, acontecida, ha duzentos e tantos an
nos ou mais; contou-m'a, e por signal com uma
falla grossa que punha mêdo, emquanto enchia o
+

seu cantaro na fonte, que rebenta e corre por


baixo de umas arvores juncto da campa dos qua
tro desgraçados, que ainda la estão todos apar
representados bem claramente em quatro pedras,
com as suas cruzes á cabeceira, e com os seus
cajados esculpidos ao lado.
Fica mesmo na estrada, á mão direita de quem
vem de Braga para Guimaraens. .

Ora a thia Brites, como eu ia dizendo, nunca


teve outro emprego, nem outra fama, senão a
de uma boa e sancta lavradora do Minho. Oc
cupava-se de noite e dia em governar a sua vida
honestamente; em trazer a sua casa como um
palmito, e cheia e farta de tudo; em deitar as
suas teias, colhêr o seu pão... e valer a quanto
pobre de Christo ou perigrino lhe batia á porta,
e a quanto necessitado havia na sua freguezia de
San Martinho de Saude.
E assim foi sempre desde rapariga.
Por isso ella merecia a benção e o louvor de
toda a vizinhança, que nunca poderam invejas
contra a sua virtude; por isso ella mostrava uma
cara de riso para todos, riso agradavel e singel
lo, deste que so nasce da segurança do coração,
que nunca fez, que nunca desejou mal a ninguem.
E que olhos tam formosos tinha, a sancta mu
lher!.. azuis-claros, e tam serenos!..
Vela como os deita agora pela fenda do pos
.tigo, que abriu... como os extende por ahi fóra,
por esses campos da freguezia!.. e ficou... ficou...
Em que pensaria?... quem sabe! talvez nas
horas de felecidade innocente, que em casada, que
em moça, que em descuidados annos disfructou
por esses logares todos, em que ja não encontra,
senão saudades! por esses logares...
A!
San Martinho de Sande parece um jardim. As
casinhas brancas como pérolas sôltas por entre os
vinhaes, e por baixo dos altos castanheiros, que
as toldam, fazem uma vista!..
Muito bonito é !
Mas a thia Brites... a thia Brites... em que pen
sa ella?... é, decerto, em coisa de pezar, por
mais que me digam, que la se lhe estão a ar
razar os olhos d'agua...
Ainda bem que Manuel a tirou d'aquele pas
mo, d'aquella scisma.
— Venha para aqui, minha mãe; assente-se
aqui á beira da minha cama.
— Que me queres tu, meu filho ?
E assentou-se aopé d'elle.
— Quero que me falle... e converse commigo;
quero que me não esteja assim a pensar em não
sei que negra tristeza... quero que espalhe, que
se alegre... e que me não mostre esse infado...
— Infado!... eu!... oh Manuel... pois mereço
te... pois tu?... -

— Não merece, não, minha mãe; é quê...


E o rapaz quebrado de alentos pela doença,
abalado por aquellas palav as de amarga resigna
ção, arrependido... desatou num chôro, que fa
zia dó. Agarrou com fôrça nas mãos da velha,
e escondeu n’ellas as lagrimas, que pareciam de
fogo, e as faces descoradas, como a propria
Cera.
Brites sentia partir-se-lhe a alma em duas
metades; começou a consolal-o... mas, ao fallar,
intalava... eram os soluços uns atraz dos outros:
— Não chores, meu filho... não chores...
— Minha mãe.. minha mãe... perdoe-me.
— E que te heide eu perdoar?... tonto! não
5
ehores; bem sabes... Se, ás veses, ando mais
triste e opprimida...
— E porque tem desgostos que a consomem...
— É porque te vejo, vai por seis mezes, com
essa queixa... que te mata... que nos mata a ambos.
— Oh! porque me não havia de levar Deus
para si!.. -

E Manuel pôz então no ceo uma vista firme e


supplicante.
— Filho... meu filho... isso é coisa que tu pro
firas?! — atalhou Brites, erguendo-se meia-agas
tada, meia-espavorida, e ja com a voz quasi li
vre e natural, — era coisa que tu proferisses,
Manuel!..
— Eu era so para...
— Era para o quê?... Não era para nada. E
acabou-se. Não se fale mais em similhante...
— Não falla, minha mãe, não.
— E se quizer que eu não me infade, nem
peleije... é ter-me juizo! ouviu? Foi do agra
do do Senhor dar-te esse mal...
— É verdade.
— Louvado seja Elle para sempre; amein...
anda, dize ameien, anda...
— Digo, digo, e do fundo do coração.
— Ora, pois; e do mais... tens umas malei
tas... hão de passar: hasde ficar bom de todo,
são e forte como d'antes. A senhora da Piedade,
tua madrinha, hade nos accudir. Verás. Hade
alumiar o sr. cirurgião, para que te acerte com
& CUTā...

—O sr. cirurgião, o sr. cirurgião, que vem


da villa todas as semanas por via de mim... e
eu então que não presto para nada, que não
valho Siquer... o gasto, que se faz...
G

Não pôde ouvir mais a extremosa velha;


rompeu-se-lhe a alma toda n'um mar de pranto,
— se ela morria por aquele rapaz! e cahiu so
bre ele de bruços, a beijal-o... a beijal-o...
— Manuel, Manuel! empenhára... vendêra
tudo para te salvar... a camisa do corpo, se fôra
preciso...
— Mlinha mãe!
O moço indireitou-se para cima, assentou-se e
apertou contra o peito a cabeça incanecida da velha.
Oh! que abraço! #

Era como o rebentão da oliveira abrasado pe


la seccura, a incostar-se ao tronco musgoso,
que lhe déra a vida, e que lhe não póde ja dar
succo! que abraço!.. -

Quem nunca chorou no seio de sua mãe, ou


de aflicção, ou de alegria... não leia este meu
conto que me não intende...
A thia Brites continuou depois:
— Vendêra tudo, tudo... que tu és o meu
querido filho... o filho que a mim se chega, que
me não fala atravessado. Teus irmãos... valha
me Deus... João não cuida senão de gados e la
voira... isso lá bom era; mas que modo... que mo
do!... nunca se abre aquela bocca!.... olhar
de atraiçoado! Pedro... esse então peior. E can
tar e tocar na viola e serões e festas e romarias...
e moças, Manuel, que eu bem no sei.
— Agora!..
— Sei, sei.
A velha parou aqui, para dar um suspiro co
mo de quem toma o folego, e seguiu logo para
diante:
— Antonio está na cidade a estudar para cle
rigo...
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— E Antonio, minha mãe...
—Tem seu genio, tem: que se lhe hade fa
zer ?
— E quando estava em casa...
— Andava sempre em brigas, sempre em dit
tos colos outros... menos comtigo, que tu... Sa
bes ? quem teve a culpa foi teu pae na escurida
de em que deixou o seu testamento. So por cau
sa d'aquella agua da poça do caminho... Negras
partilhas tem sido.
— E serão.
— Ora eis-ahi está o que me traz pezarosa:
vês? filho, meu ricco filho... mas deixa estar que
o Senhor hade dar-te o pago do bem, que me
fazes, da consolação que me dás, que tambem...
se tu não fôras...
Manuel começava a estar anciado e interrom
peu-a :
— Oh minha mãe... se alli me abrisse mais o
postigo...
— Pois que é?... pois que tens tu?..
— Nada. \

— Estás tam córado, filho!... terás febre?..


—Não tenho, não.
— E verdade que hoje não é dia; foi hontem;
e elas são terçans...
— Ande, minha mãe, abra a janella, que me
regalo com este fresco da tarde...
— Mas...
— Abra.
— Ora, então espera, agazalha-te, cobre-te
bem... vê la !
O rapaz deitou-se; Brites conchegou-lhe a rou
pa, e depois, ao tempo que descerrava o posti
go, deu um grito de admiração:
8

— Ai, quem ali vem pelo atalho!..


– Quem é?
— O primo e amigalhão de teu pae... o Sr.
padre Francisco Pedreira!
— O Sr. padre cura!..
—Sim, sim. E não sabes quem traz comsi
go? a sobrinha. •

— A Sr." Maria-da-egreja!..
—Tal e qual. Ora vejam... E eil'os aqui es
tão ja no portello...
— A Sr." Maria, que diz que não ha vela,
nem merecela ninguem... e tral'a o thio agora
ca!... deve de ser milagre!... isto é grande novi
dade !
Mas em quanto Manuel fallava assim quasi com
sigo proprio, alizou e burniu a virtuosa Brites o
topete; ageitou o lenço; escovou com as mãos o
gibão e a saia; poz na voz e nos olhos um sorri
zo, que lhe luzia pelas lagrimas ainda mal inxu
tas, como sol de trovoada a tremer nas gotas da
chuva, que ficaram nas folhinhas do silvado; cor
reu á porta do patim a receber a vizita, que nem
por sonhos cuidava esperar, e fez-lhe uma mi
zura com tal gravidade, que fôra digna do mais
sisudo minuette da córte.
9

II.

Bie. — Em quem tens tu agora essa esperança?


Die. — Em Deus primeiramente, e nos amigos
Que nunca perdi d'elles confiança.
[D. Bernardes, o Lima, Eclog. XVI.]

O THESOIRO DO PADRE CURA •

452 Que devoção, que respeito fazia ali em


San Martinho de Sande, a todo aquelle povo, o
Sr. padre Francisco Pedreira!
Morriam-se por elle, veneravam-no, parecia
lhes mesmo um sancto...
E era um sancto, era ! Um anjo, que o Se
nhor mandou á terra para consolar os tristes, pa
ra confortar os aflictos com palavras de paz e pro
messas de recompensa na outra vida, para tomar
aos hombros a cruz dos desgraçados, e ajudal-os.
Casa da freguezia, em que houvesse desgôsto
e pranto, la o haviam de topar logo, era certo
para o inxugar. Para festas e folguedos não; pa
ra isso ninguem no fosse chamar, que lhe não
quadravam alegrias ao seu genio, nem ao seu em
prego.
Nem ele se ria quasi nunca... ou nunca, tal
vez.
O rosto trazia-o sempre sereno, mas melan
cholico. Deixem-me dizer: era como quem vê
n'uma tarde, em que não ha vento, um lago li
zo e socegado, em que se espelha o céo tolda
do de nuvens côr de cinza.
Suas vistas andavam sempre no chão; erguia-as
somente para o pobre, para o desvalido, ou
então... para Deus.
Os cabellos tinha-os brancos, como uma estri
2
10
ga de linho; e mas não era velho, velho... con
tava sessenta e dous annos feitos! O corpo
tinha-o alquebrado; as pernas trôpegas e arras
tadas... o que lhe valia era o bordão a que se
apegava.
O seu vestido era uma loba preta ja ruça de
usada, e com mais de vinte remendos!
Ah! padres, padres ! que se assim foreis to
dos desapegados dos enganos da terra, não ha
haveria tanto hereje, nem tanta maldade pelo
mundo.
Malpeccado! se assim foreis todos como este...
Era um sancto, cra um sancto, realmente, em
corpo e alma.
O tempo, que lhe ficava livre das obrigações
de cura e coadjutor do reverendo parocho, em
cuja companhia morava, do parocho de San Mar
tinho, que era ja idoso tambem, mas tam des
cuidado da egreja e tam amigo de bons manja
res e de boas merendas... cala-te, bocca — e as
horas, que lhe sobravam da missa e do breviario,
levava-as a concertar as suas meias de lan e o
soli-deo de troçal aberto, e a dar proveitosos con
selhos e exemplos á sobrinha, que era a meni
na dos seus olhos, o arrimo da sua velhice, que
era o seu amor, o seu ai-Jesus, o branco lirio,
que cultivava
bafo impestadopara
dos oshomens.
jardins do céo, arredado do
• +

E Maria... oh ! Maria muito linda era !


Parece-me que a estou a ver agora toda in
vergonhada em casa da thia Bristes... com receio
de levantar para a gente a vista... com a bocca
fechada, como um botão de rosa; com as faces
coradas... coradas, como uma braza, com os ca
bellos — pretos de azeviche — a cahirem-lhe em
11

anneis, como se foram fios de seda, a poizarem


lhe preguiçosos pelo collo e pelo peito, que pa
recia de rijo marmore, e que palpitava meio
revelado pela fina camiza, de que mal se dife
rençava em alvura... e com aquele corpo, como
pintado ao pincel, tam delicado, tam airoso com
seu gibão escuro d'abas golpeadas, e saia de gran
carmezim barrada de veludo!..
Pois é verdade. Maria estava invergonhada e
tinha razão. Não andava afeita a ver nem a tra
ctar com pessoas de fóra... porque chegava a tan
to que até, nos domingos, ouvia a missa por uma
fresta de grades, que de um corredor das casas
da residencia deitava para a capela-mór. Estava
cheia de acanhação, não sabia o que havia de fa
zer, coitada! afastou-se para o vão da janella, e
poz-se a desfolhar com os beiços um mal-me-que
res, que trouxera na mão.
Manuel sopezara-se na cama já desafrontado
d'aquella aflicção, que lhe viera; e olhava, ora
para a rapariga, — isso rara vez e quasi a furto
— ora para o padre Francisco, ora para a thia
Brites, que ingasgava e tossia e não atinava com
um cumprimento rasgado para fazer ao Sr. Cu
ra... e por fim despicava-se em venias e cor
tezias.
Athe que depois sempre foi começando, con
forme poude;
— Ora assente-se... ande, Sr. padre Francis
co — e chegou-lhe uma cadeira de espaldar, que
pesava!... — assente-se, que ha-de vir cançadi
nho... é verdade, e talvez queira uma pinga... se
quer...
— Não quero; não bebo vinho, comadre.
— Não?! porém vamos, vamos, diga-me
2 *
12
agora o que o trouxe a esta sua casa, e descan
CC... •

— Obrigado, obrigadissimo, Sr."...


— Brites do Couto, uma criada de vocencé,
criada, fregueza e muito veneradora, que ainda
me lembra da amizade, que o meu defuncto...
o seu primo que Deus haja...
— Era muito meu amigo era; tempos, tem
pos!... .
— Oh! Sr. padre cura, que tempo!... que re
galada vida!... hoje...
E a boa da velha immudeceu, imbaraçou-se
lhe a voz na garganta com os suspiros, que lhe
rebentavam do coração.
O padre Francisco Pedreira fez-lhe signal, apon
tou-lhe para o ceo.
Ela intendeu-o; resignou-se com a vontade
do ALTISSIMo, abaixou a cabeça, alimpou as la
grimas com as costas da mão, e como quem não
repara no que faz, nem se recorda do que fez...
tornou a chegar-lhe a cadeira:
— Assente-se, padre e socegue.
— Ja lhe disse que não, comadre. Agradeço
lhe o seu cuidado, mas não posso. Não me di
lato aqui mais que o espaço de dous ou tres
credos.
— Agora! pois...
— Vim so para lhe pedir um favor.
— Ai! se estiver na minha mão, Sr...
— Está, está.
— Pois então... não tem mais que...
— Ora olhe ca, thia Brites: tome conta:
E o padre pegou-lhe pelo braço, foi com ella
para um canto da salla, e falou-lhe quasi ao
ouvido:
13

— Você bem sabe que tenho creado ésta mi


nha sobrinha... recatada no temor de Deus e...
—Sei, sei que é innocente e pura como uma
estrella; e assim fôra minha filha se vivesse...
Guiomar, a sua afilhada, padre cura, que mor
reu ainda nas mantilhas! e assim fosse eu como
a Sr.° Mariquinhas... aquelle cherubim de virtu
de .. -

—Oh! mulher! o Senhor permitta que se


não engane,
— Não engano.
— Inda bem. Tenha fé. Porem oiça : você
bem sabe que nunca a deixo sahir nem appare
cer a viv'alma...
— E faz muito bem, faz o que deve.
— Quando vou de noite visitar algum infer
mo ou levar o sagrado viatico, la fica Cecilia a
ama, a criada do Sr, parocho para olhar por
ella... •

— E é mulher capaz e como se quer, a se-.


nhora Cezilia ! de tantas orações, e uma chari
dade... ha poucas d'aquellas.
— Pois sim, sim; mas o peior é que... ora
veja... Cezilia está de cama com o reumatismo...
— Está com resmatiz !..
— E grita... grita, que mette compaixão...
E então logo hoje... são nos meus peccados!
ora eu que nunca saio da freguezia!.. e não ha
remedio; aqui tem você uma ordem do Sr. ar
cebispo, que me manda chamar á cidade.
E mostrou um pergaminho dobrado.
— Ai, senhor! appello eu! á cidade!.. e pa
ra que será ! — exclamou a velha atando as mãos
na cabeça.
— Isso é o que me não dá freima nenhuma.
14

Quem mal não usa mal não cuida. O que mais


peso me fazia n'alma era ver aonde havia de dei
xar a pequena, porque estando Cezilia doente...
e até quem sabe o tempo que por la me inredarão!
— E tem razão, tem.
— Porfim de contas... tanto lidei e batalhei
comigo que... n'uma palavra, senhora Brites:
seu marido... meu compadre e meu parente...
foi homem de bem ás direitas...
—Não que isso... não é por me gabar...
— Foi homem de bem... e os filhos não hão
de desmentir da casta. •

Brites poz-se vermelha como uma roman.


O padre não reparou e foi proseguindo:
— Você Brites, tem boa fama e bom credi
to... é verdade.
— São favores, sr. padre.
E fez-lhe outra misura.
—Tem; e portanto aqui lhe entrego a Ma
ria... guarde-m'a que é o meu thesoiro, que é
quanto tenho de meu sobre a terra.
Padre Francisco calou-se por alguns instantes,
e descahiu-lhe a cabeça para baixo; depois ca
minhou firme e direito para a sobrinha, decla
rou-lhe o aviso de que estava, deu-lhe novos
conselhos, abençoou-a, e disse-lhe virado para
a thia Brites:
—Marial respeita-a como se fôra tua propria mãi.
A moça chorava... e ficavam-lhe tam bem aquel
las lagrimas, cristallinas como os orvalhos da ma
drugada!..
A velha... essa chorava de alegria e de orgulho;
chamava-lhe sua filha e apertava-a contra o seio.
O padre cura deu-lhes o derradeiro adeus, dei
tou a ultima benção á sobrinha, incommendando-a
15
outra vez ao ceo e á thia Brites, e partiu que
era
nesseperto
dia do sol-pôsto, e tinha de chegar inda
a Braga, •

Partiu... /, .

Maria acompanhou-o com a vista em quanto


poude; acenou-lhe quando ele ia a sumir-se nos
copados arvoredos da estrada, e veio logo triste
e pensativa para aope de Brites que fazia por lhe
dar animo — que lhe afirmava por todos os sanc
tos da sua devoção que seu thio havia de tornar
breve e sem perigo. >

Ella escutava-a... eis que Manuel se põe, de


repente, a gritar: • •

— Minha mãe, minha mãe... eu oiço, o tro


pel d'uma besta que vem pelo caminho... olhe...
lá oiço a voz do nosso Antonio a chamar por você…
— D'Antonio!... não póde ser. - ,, º

—Não poderá, não... então?... ouve?..


Comefeito não se enganava, o rapaz,
Brites correu á janella, e viu a seu filho estu
dante, que se apeava d’uma egoazinha castanha
ás portas da casa. • • • *

— Bemditto, sejais meu Deus! — exclamou a


velha, como doida de contentamento, — inda ha
pouco meu lamentava, Manuel, de vivermos aqui
tam sós... e vai sem nem siquer o esperar-mos...
bemditto seja, o Senhor para sempre “ que nos
trouxe a companhia desta mocinha — e beijou a
Maria na face — e que temos agora tambem a
Antonio... • - -

— E mais a mim,
Respondeu d’alli uma voz rouca, que surdiu da
banda da porta como por arte de feitiçeria,
Voltaram-se todos varados, e mais varados fi
caram quando descobriram que era João.
16

III.
Não possa mais a paixão
Que o que deveis fazer!
Mettei n’isso bem a mão
Que é de fraco coração
Sem porquê matar mulher.
(G. de Rezende, Trov. a D. Ign. de Cast.)
Pois JA!

Grandes
Couto! alegrias vão em casa de Brites do
• #

E a boa da viuva devia estar bem contente,


devia. Pois podéra não!... ver alli reunida quasi
toda a sua gente.. Antonio, que, havia tantos
mezes, que estava la pela cidade, e que apro
sueto, que tivera, para lhe
veitára tres dias de
vir dar aquele gosto que não esperava... a Sr."
Maria, cuja visita estimava tanto e tanto, que
não sabia que mais lhe fizesse de agrados e de
mimos... João, que parecia diferente do que de
antes fôra, achegar-se para elas, a olhar direi
to... e até — coisa admiravel! — a dar a sua fal
la tambem, de quando em quando!... Ai, que se
não fossem as maleitas de Manuel... pobre mo
ço!... e se não fosse a ausencia de Pedro que tar
dava... tardava... que andaria... quem sabe? per
dido, mal-incaminhado talvez... Eram essas ne
gras lembranças, que vinham istorvar o prazer,
que a sancta velha sentia, atravessavam-lhe, de
contínuo, pela alma, como estas nuvens, que,
ás vezes, passam ao meio-dia, por diante do sol,
e lhe intristecem a luz e o brilho. " * #

E que são por este modo todos os gozos no


mundo. - . . , , , , . .. . * *

Infeliz mulher!
17
Mas ainda assim... conversou... riu, e espa
lhou bastante as suas penas nessa noite. O peior
é que se iam fazendo horas de repoisar; era
tarde, e como tudo ja estava ceado e farto... ás
mil maravilhas... Não havia remedio; ficaram as
conversas para de manhanzinha bem cedo... re
zaram, abraçaram-se e saudaram-se... e cada
qual cuidou de se ir recolher.
Brites e a Sr." Maria la foram ja para a sua
alcova... e que bonita alcova não era! com a sua
cortina branca na porta... com as paredes todas pin
tadas de ramagens vermelhas e amarellas, e guar
necidas de registos de sanctos — alguns illumi
nados, que era uma suspensão velos, — e com
as molduras do tecto infeitadas com fructas tam
lindas e cheirosas, que davam consolo a uma
pessoa que alli estivesse dentro.
O aposento dos quatro rapazes é que era maior
e menos aceiado. Tinha uma arca de pinho, em
que se arrecadava o centeio; tinha um contador
de pau-sancto, e torneado com bem primor! ti
nha uma banca de carvalho com o seu oratorio
ja defumado com o Senhor pregado na cruz, a
Virgem, nossa Senhora, e o bem-aventurado
evangelista, da banda, e uma caldeirinha d'agua
enta mercada nas loiceiras da villa, e tinha
dois leitos com muitos feitios e bilros na cabecei
ra: um em que dormia, antigamente, Pedro com
Antonio, e outro que tocára a João e Manuel...
quando estava de saude; tinha tudo isto, é ver
dade; mas nem pintado, nem caiado era siquer,
nem agasalhado para o inverno... #

Inda valia ser agora de verão.


E fazia um calor!..
Antonio, — porque João mal que chegou, dei
18
tou-se e ficou como... pedra em poço; — Anto
nio, que andava afeito a accommodar-se tarde,
quiz tomar a fresca, e foi-se até á janella.
E que noite! que formosa noite!
A lua parecia uma alampada de prata burnida
a pender do azul dos ceos, tam azul, tam puro,
como a propria saphira. Corria uma vir cão que
regalava... e trazia uns aromas tam suaves das
malvarosas e das violetas do prado!... a folhagem
copada das arvores ondeava, ondeava a tremer,
como as aguas do mar em calmaria; e d’entre
a fechada espessura cantava docemente um rou
xinol suas namoradas queixas, poisado á beira
d'um regato, que fugia por entre a relva e os
ruivos seixinhos, em fios de cristal fino... e em
espumas de claro aljofar.
Oh! que noite! •

Quem teria um peito duro de pdra ou de fer


ro, que não sentisse... nem eu sei, nem eu me
atrevo dizer bem o quê ?
Antonio ficou-se a olhar pensativo... e quedo.
Eram aquelles os campos, em que folgou, em
pequeno; o ribeiro que lhe matava a sêde; as
sombras, a que se acoitava, as flores que o en
feitiçavam... Ao longe... via a egreja de San Mar
tinho, onde resava e pedia a Deus por seu pae...
agora sepultado, e por sua mãe... velha e aca
badinha ja!... via a egreja com a sua torre alva
centa, a representar-se-lhe uma dessas coisas
ruins, de que ouvira contar ás thias da vizi
nhança!... e tudo em tão profunda mudez, que
somente se escutava a cantiga do rouxinol e o
suspirar mansinho da aragem!..
O mancebo, coitado ! começou-se-lhe o cora
cão a apertar, a cobrir-se-lhe d'uma tristeza…
• 19

que era doce e amargosa ao mesmo tempo, e de


sejava..., não sabia o que desejava.
- Vieram-lhe saudades; porém de quê? da vida
innocente, que por alli lhe fugira em sonhos,
ou foi de alguma dama — que a mulher acode
sempre á lembrança então — de alguma dama de
quem andava captivo?
Ai lhe
ideas Braga, Braga!...
corriam que tropel.
todas em era para la que as •

Não pôde mais o estudante — a poesia d’uma


noite assim é uma espada que vara o peito a
quem está melancholico... — não pôde mais...
ergueu-se; prometteu a si proprio que voltava
no outro dia para a cidade; encostou a janella,
apagou a luz que ardia na candêa e caminhava
para o leito... mas vel-o que estaca, derepente,
e que se põe a ouvir uma voz rija e afinada
que vinha cantando ao direito da horta:
Deixa-mir por qui abaixo
Com a minha capa cahida... _>
Vou-me vêr a minha amada
S é ja morta, ou s'inda é viva:
Trai la ri lo lé.
Antonio alegrou-se todo:
— É Pedro, — disse ele — é Pedro que vem
por ahi d'algum serão, decerto.
A voz continuou, e ja rente ás casas:
Tu'amada, meu Senhor,
É morta, que eu bem na vi:
Os signaes que ella levava
Eu t"os digo...
E ficou nestas palavras a copla; porque o mo
ço, que a intoava — um mocetão alto e forte—
20
teve de se calar para subir ao balcão, subia,
empurrou a janella e saltou em pêso ao sobrado.
Era Pedro: o mais guapo e bem posto dos fi
lhos de Brites do Couto; um corpo airoso e des
impenado; um rosto moreno — rosto d'homem —
com barbas e cabellos pretos... era um rapaz,
como uma prata... e valente, valente d'uma vez!
Trazia a viola presa e sobraçada, e nas mãos
o seu cajado de cerquinho.
Antonio correu para elle com os braços abertos:
— Meu irmão!
Pedro recuou meio-espantado: afirmou-se...
que mal se podia ver no aposento — - os parrei
rais, que toldavam a janella, impediam a clari
dade do luar; so entrava uma restiazinha — mal
se diferençavam os vultos, e para quem chega
va de fóra... Pedro reparou... pela falla é que lhe
deram
SC; ares... até que em emfim... conheceram

— Antonio! pois tu!...


— Sou eu, sou.
—Tu por cá, moço!...
— É verdade.
— Ora vejam. Com que então vieste... pois
inda bem, Antonio, inda bem; e ha que tem
pos vai que...
— Vai, vai: deixa-me ver... dous e dous
quatro e um... espera...
— Ha passante de sette mezes ou mais, cui
do eu.
— E tens razão: ha sette mezes e uns tantos
dias. Advinhaste... ou trazias o tempo certo e
contado.
— E se o eu não havia de trazer! eu, que
sou... que não quero que ningem tenha mais lei
21
à sua gente... e sabes? isso de disputas acabou
para sempre.
— Não era bonito, não.
— Isso acabou. Ora o nosso Antonio!... — e
chegou-se com ele por a mão para diante, que
dava alli mais a luz — ora o nosso estudante!..
— Pois é verdade: aqui me tens.
— E então... dize-me ca: pela cidade... aos
domingos e ás noites é divertir qu'o farte?..
— Vamos indo... faz-se o que póde ser... é
conforme.
— Que inveja teu tenho, Antonio! se me
apanhára lá; mas que fôra por uma semana...
verias, tu verias. E de moças, que tal?
— Ai, Pedro, nem me falles nellas.
— Boas, das legitimas... não?
— Das mais gentis e pintadas, como tu nun
ca vistes, nem sonhaste... Pois uma certa, que
eu ca sei... essa...
— Ah! Antonio, Antonio! que inveja me fa
zes! E olha tu: aqui por San Martinho não ha
coisa que valha... nem...
— Que mais quer você?.
— Que mais quero...
—Sim, sim; pois a nossa hospeda...
—Qual?... o que?...
— E verdade: tu inda não sabes nada.
— Qual?... quem?... dize, Antonio, avia-te...,
— Não sabes: é que temos de portas a den
tro...
— Avia-te... dize...
— Aquella nossa contra-parenta... a sobrinha
do padre cura.
— Maria ?
— Sem pôr, nem tirar.
22
— Eu me benzo com a mão toda! A Sr."
Maria da egreja...
— A Sr." Maria tal e qual.
—Tu mentes-me...
— Ne joco quidem mentiretur.
— O quê?
— E latim: quer dizer que nem a folgar se
deve mentir. •

— E Jesus! eu estou varado que mais não póde


ser. A Sr. Maria !..
E como ficaram ambos calados... ouvia-se ago
ra claramente a respiração funda e desinquieta de
João... sería sonho? dormir penso. que dormia;
que tinha os olhos pregados. Foi sonho, foi; que
não deu mais rumor de si, depois.
Pedro é que estava ainda assombrado com ta
manha nova:
— Sempre é grande maravilha o que tu me
contas, homem! mas deixa que... uma vez que
nós a temos segura... tam certo desincantasse eu
o thesoiro d'aquella moira da serra, como a Sr."
Maria hade ser minha namorada.
— Isso veremos, — respondeu Antonio.
— Veremos?!
— Veremos... que inda o tem de dizer mais
alguem. •

— E quem se atreverá?
— Eu.
—Tu, Antonio! tu!..
— Eu: e desde ja te protesto e juro que não
cedo da minha vêz. Estava ca primeiro: e Maria
ha-de ser minha, ou... ou mal por mim.
Antonio, ergueu-se-lhe n'alma todo o seu or
gulho, cegou-se de raiva; e adeus, promessas de
23

amizade, e adeus, memorias de Braga, que tudo


lhe esqueceu ali ja.
João tiuha os olhos abertos, mas não tugia,
nem rugia, siquer.
Pedro sufocava, armou-se-lhe na garganta um
no, as faces eram de lume, e tremia e rompeu
a dizer;
— Antonio... não queiras pegar comigo... não
queras que...
— Pedro ! não venhas tu como useiro e vezeiro
a metter-te ca nos meus amores...

—Não venhas tu bolir comigo tambem... vai


te sumir, demonio... vai-te!.. Olha que sempre
as pagaste bem pagas...
— Por isso mesmo.
— Ah! tu porfias?..
E Pedro alevantou para ele o punho cerrado.
— Porfio, sim; e um de nós hade ficar hoje
aqui sem...
— Inda t'o digo mais esta vêz: toma conta...
—Toma-a tu da tu'alma que não va inda ho
je de mergulho aos infernos...…
— Agora vai?..
— E saia, se é capaz...
Antonio recuou duas passadas.
Pedro incruzou os braços e respondeu-lhe por
modo de zombaria:
— Guar-te, lage que te parto!., Tem-te, Por
tugal, arreda, Castella!..
O estudante ia a atirar-se-lhe com as unhas
ao pescoço; ia começar uma briga como as do
costume, porem mais incarniçada e perigosa, de
certo, quando a porta se abriu de par em par...
e Manuel, — amarello, como uma cidra; a tre
mer, como varas verdes; com um lençol pelos
24
hombros; descalço, e com uma luz na mão, lhes
gritou com um tom de voz desfalecido e anciado:
— Pois ja!
Os dous ficaram estatelados e mudos.
— Pois ja, meus irmãos — continuava a po
bre infermo — inda agora vos encontrais e logo
heisde começar em desavenças!... Meus iumãos!
pelas chagas de Christo... por alma de nosso pai...
não acordeis a desconsolada velha, que dorme ahi
dentro... deixai-lhe aquelle somno, que não tem
outro bem n’este mundo... Não na mateis, não
na queirais matar, meus irmãos!.. E cahiu, de
joelhos, a soluçar diante d'elles.
As palavras queixosas do moço... a sua figura
denudada e franzina — que era a pelle pegada nos
ossos! — foi um golpe d'agua fria no cachão da
fervura.
Pedro... abaixou a cabeça, e corrido, inver
gonhado... despiu-se e metteu-se na cama.
Antonio... cobriu-se com a sua capa e foi-se
encostar para cima da arca do pão.
Oh! Manuel fôra um anjo que lhes apparecêra!
2$

IV.

O'filho, a quem eu tinha .


So para refrigerio e doce amparo
D'esta cançada ja velhice minha,
Que em choro acabará penoso e amaro.
(Camões, Lus. cant. IX.)

DE MAL EM PEIOR,

Ja clareia a manhan.
A velha acordou com o desgarrado assoviar de
um melro, que Manuel criára, de pequeno, em
casa e que estava pela banda de fóra da janella,
na sua gaiola de canna e vimes, — acordou, vi
rou-se de um lado e de outro, assentou-se, ben
zeu-se e poz-se a dizer a meia-voz para a sua
companheira:
— Maria ?... Maria?... a pé, minha filha, que
é dia claro! não vês? ja vem reluzindo o sol pe
las fendas alli da porta. Arriba, calaceira! não
ouves?.. -

Oiço, oiço,
thiafilha!
— Que me dizes,

Brites, e ja me ergui.

— Pois então? e estava agora aqui de joe


lhos á beira da cama.
— A rezar, Maria ?
— A rezar, sim sr.", e por isso não lhe res
pondi, mal me falou.
— Mas tu, minha filha... mas que tiveste?..
não dormiste bem?... foi co'as saudades, não que
rem ver?
— Saudades...
— Do thio cura... que isso la!.. mimos como
aquelles! anda, magana, que te não vai mal.
— Pois olhe, dormi, dormi regaladamente...
3
26

e... ai, senhor! que la toca á missa na egreja.


Aviar, thia, aviar ! levante-se e vamo-nos a aprom
ptar, que são horas.
— Vamos la, vamos. •

E a boa da velha, como ia apertando o co


lete, cortava, de vez em quando, a conversa, pa
ra metter o atacador, ao tino, porque fazia es
curo na alcova:
— Ora vejam! dormiste... Pois sabes? eu tam
bem não estremeci, nem siquer em toda a san
cta noite.
— Inda bem! — respondeu, baixinho, a mô
ca; e alçou as mãos e a vista ao ceu fervoroza
mente, como quem lhe dá graças.
A viuva desceu do leito, correu logo a corti
na da porta, e foi-se d’alli direita para a cozi
nha, onde costumava lavar-se e burnir-se dian
te do vidro de um espelho, que tinha arrecadado
entre os loiros do prateleiro.
A rapariga ficou..... deixou-se ficar so
zinha. -

— Ai, Maria, Maria ! que negra tristeza é


essa? porque trazes sem côr as faces... desmaiadas,
como a rosa branca?... porque trazes teus olhos ne
gros, assim pregados no chão ? porque não sorri
agora a alegria na tua bôcca ?..
A innocente moça ia quasi a pegar no somno,
quando foi da conversa dos dois irmãos, desper
tára... e escutára tudo. O que depois começou
naquele peito virgem... soube-o ella e Deustam
SOmente.

Era uma batalha rija que la dentro se lhe tra


vára. Os conselhos da austera virtude que sem
pre lhe dera o thio; a estreme e casta singelle
za de su'alma... afastavam-lhe o pensamento d'es
27
sas palavras que ouvíra; mas... dois moços a bri
* garem por via d’ella... dois moços, que peleja
vam por lhe querer bem...
Oh! de que serviu tanto disvello e recato pa
ra guardar a pureza n'aquelle coração de pom
ba ?..
É que a mulher tem de amar e ama por um
podêr occulto, que a cega, que a infeitiça, que
lhe dá vida... E como as aves, como as flores
perfumadas do bosque. •

Maria não amava ainda; mas adivinhava... adi


vinhava não sei o quê; e padecia e luctava comsi
go... que mais não podéra ser. E então para se
disfarçar quando a velha voltou para a alcova!..
A thia Brites chegou-se a ella, abraçou-a, e
disse-lhe cheia de contentamento:
— Maria... deixa-me ver... muito, linda és
minha filha ! és um sol! O Senhor te faça dito
sa... como tu mereces. Hade fazer.
Foi, depois, a uma arquinha de pau de fóra
que tinha debaixo do leito, tirou d’ella um co
fre pequeno, pintado a fingir charão, abriu-o e
mostrou a Maria as mais lustrosas contas, e ar
recadas, e um breve, e um laço — doiro fino,
tudo aquillo, e cravejado de diamantes! — como
talvez não houvesse coisa egual em todos os ou
rives da cidade de Braga.
— Maria — disse então a velha — vês o meu
oiro e as minhas pedras ?
— Vejo, sr.", vejo.
— E são riccas, minha filha, não são?
— Isso... muito.
Respondeu a moça, como se tivera n'outra
parte o pensamento.
— Pois, Maria — continuou Brites do Couto
3 º
28
— éstas joias... como não ha segundas em San
Martinho... deu-mas o meu homem no dia das
nossas vodas.
— Foi o seu homem, o thio?..
— Foi. Oh! Maria ! que se tu viras... que dia
de festa aquelle! se tu souberas... que puro con
tentamento!... captivar-se a gente de um moço...
estremecelo... e chegar a casar com elle; e de
pois ao voltar da egreja — entre flores e confei
tos — ouvir-lhe ali prometter que nem a mor
te... nos hade apartar... oh ! filha minha!..
E não poude proseguir, a velha: era o pran
to em fio pela cara abaixo.
Maria, essa estava... como havia ella de es
tar? depois do que ouvíra de noite, podéra!
—Não fallemos de pezares, Maria — atalhou
Brites derepente, enxugando os olhos — que
bem basto eu para pezarosa. Mudêmos para ou
tra coisa. Olha: este oirinho, para que eu mor
ri ao inviuvar... este oiro, que orvalhei com la
grymas de alegria, e sôbre que chóro agora de
saudades e tristeza... hade infeitar-te ainda para
o teu noivado...
— A mim, credo! •

— A ti... porque é teu... porque to dou ,


filha. |-

— Oh! Sr.º!
— E hade infeitar-te ja hoje — continuou a
velha meia a sorrir — porque pertendo que vo
cê appareça na egreja... casquilha e secia...
umameflor. • •

E começou então a aceiar a rapariga que lhe


beijava as mãos, em silencio, porque não tinha
palavras para lhe agradecer.
Até que a viuva exclamou porfim :
20

— Agora é que tu vais metter a um cante...


não digo as moças da freguezia, que essas, mal
peccado!... mas as damas... as mais formosas da
mas da villa, se ca viessem á nossa missa.
— Pois nós, thia Brites... não vamos ter com
a sr." Cezilia, como é do costume ?
— Não, filha, não; tu vens comigo para bai
xo, para o arco-cruzeiro; que me quero rega
lar de te mostrar a toda a gente... e cuido que
o meu compadre não hade ir fóra d’isso... não vai.
— Não irá? — perguntou Maria com as faces
vermelhas... de vergonha.
— Não vai. O Senhor que te fez bonita não
foi para... O ser bonita não é peccado: pecca
do é fazer acções ruins, e não poupar as vidas
alheias. Ouviu ? ora escute: agora vamos de ca
minho á missa; depois... vamos á residencia... E
não nos dilatomos, que é tarde. Eu chego alli
dentro a ver o meu filho; espera tu aqui por fó
ra... que ja volto, não me detenho. *-* - -

A velha entrou no apozento do infermo que


desfigurado, co'os olhos póstos, com a bocca sêc
ca e livida, e colo rosto crivado de pintas roi
xas... arquejava como se estivera a espedir.
A desgraçada soltou um grito. * -

Elle... olhou. Oh! e que vista aquella!baça,


quebrada, sem luz! - - -

— Tu estás peior, meu filho... tu morres!


Manuel deu um ar de riso triste e sumido.
— Falla — bradava Brites — fala-me, ó fi
lho, se não queres que eu fique aqui ja redonda
no chão... Manuel... meu filho?.. não ouves?..
}
O mancebo extendeu-lhe a mão — suava frio
como a
lecer: pura neve ! — e respondeu-lhe a desfal

30
—Minha mãe... não chore; eu... inda estou
vivo.
—Oh! Deus poderoso!.. meu Deus que des
graça ésta!..
E a velha atava as mãos na cabeça a tremer,
a carpir-se... e deitou pela casa adiante a cla
mar pelos rapazes que lhe acudissem.
Appareceu-lhe o maluco, somente.
— Que é d'Antonio? onde está Pedro? —
perguntou ella quasi sufocada.
— Antone.. hade estar para casa do Braz do
barbeiro,
— E Pedro... e Pedro?... que é d'ullo?
— Esse la... boa vai ella!... sahiu com meia-ho
ra de noite-fechada, e...
—Oh! que filhos, que filhos que o Senhor
me deu! e logo hoje ter eu de sahir da casa... e
ser de preceito a missa!., Olha, João; vem ca:
vai-me ali para a beira de teu irmão, e não te
arredes d'ao-pe d'elle sem que eu volte da egre
ja... promettes-mo?
— Pois sim sr."; sim.
— E depois hasde ir n’um pulo á villa pelo
sr. doutor, -

—Sim, sr."; mas então a missa ?


— Ouvirás a das onze na Senhora da Olivei
ra. E agora, filho, ve la !... não me deixes o
doente sosinho... não m’o desampares, nem si
quer... emquanto se diz-Jesus.
— Não desimparo, não...
— Ora Deus te dará o pago.
A velha foi-se outra vez para onde o infermo,
Chegou-se a elle devagar, pé ante pé...
— Filho... meu filho! não estás peior?
—Não estou sr. mãe; socegue — tornou-lhe
31
o rapaz mais alentado na voz e nos olhos—ja
se me varreu quasi a febre; e verá... quando
vier logo da egreja hade topar-me...
—Thia Brites? — gritou Maria de fóra da
porta:
— Que me queres tu, moça? — respondeu a
Ylt]Vå.

— É que ja está picando o sino para o altar...


e não chegâmos, decerto.
— Se eu nem por tal dava agora! — disse a
velha por entre os dentes; e despediu-se então
do filho com aquelle amor... de mãe: — Ma
nuel, eu não tardo aqui... adeus.
O mancebo levou aos beiços crestados a mão
de Brites.
Ella... acenou-lhe da porta, sahiu, arrancou um
suspiro d'alma; e mais esperançada e senhora
sua,Pobre mãe!Maria pelo atalho da egreja fóra.
foi com •
32

V.

Suspirasle, ora eu te intendo


E ver-nos hemos despºis
Por ora a Deos te encomêdo.
Saa de Miranda — Basto, Ecgloga.

ENTRE A HOSTIA E O CALIX.

A viuva
tristes e Maria
e mudas. para a egreja caminham
- •

. Uma... não se lhe tira o filho do pensamento,


e consome-se
dados e mata-se
e desvellos. — matam-na os seus cui •

A outra lida, no que lida uma rapariga boni


ta, afeita ao recato mais apertado, e que agora
vai amostrar-se ás moças... e aos moços da fre
guezia, que vai amostrar-se infeitada com tanto
oiro e tantas pedras, que cegavam... …"
Oh! e que inveja lhe não hãode ter as ou
tras secias da aldea !.. e então elles, os mance
bos! quantos e quantos se não captivarão, ao
vêl'a!... e se algum chegar a querer-lhe tanto,
depois, que... Se vier a achar um noivo, que
a estremeça, como a thia Brites lhe contou que
foi seu marido...
Ai! o coração dizia-lhe que ia ali amar, co
mo se ama somente uma vez — pela primeira
vez, na vida; dizia-lhe que a branda paz de seu
peito havia de queimar-lhe a paixão, como a
cresta queima os prados, ao meio-dia.
As esperanças e os receios batalhavam-lhe n'al
ma. Ora,
outra lhe vinha
de pezar, mais uma
negroonda
quedea noite.
alegria... ora, •

Sería pois o coração que a inganava?..


Não. Eu cuido que esse... nunca nos mente.
33
Quando a velha e Maria passavam á porta de
mestre Braz, appareceu-lhes Antonio, que de la
vinha sahindo.
Ora, o senhor estudante — como quasi todo
o estudante quando vem á terra, a pensar que
hade metter tudo num chinello — mercára em
Braga a certo morgado jogador e perdido com
farçantas, um vestido de panno fino — mas ver
dade, verdade, mui bem usado e trazido ja —
que pozera para o seu corpo, e que desfigurára
de modo, que o podesse trazer afoitamente...
porque era bem, n'aquelles tempos, que o vil
lão se estremasse, no seu trajo, dos fidalgos.
Antonio introixára, portanto, a roupa e sa
híra, ao lusco-fusco, da casa para a loja de mes
tre Braz, do barbeiro, seu valido, e companheiro
da criação, d’onde agora vinha um frança, um
gamenho dos meus peccados.
Trazia o buço tam escanhoado, e o cabello,
que era loiro, incaracollado com tal primor, que
— salvo o respeito devido ás imagens — até po
déra comparar-se ao San'Joãosinho da capella da
Silva, o mais lindo e devoto da freguezia.
As maçans do rosto tinha-as inchadas e roi
xas, do muito que o barbeiro lhe arrochára o
cinto, para lhe dar graça á figura.
Os calções eram pardacentos; e o gibão, que
fôra alionado, algum dia, — e que estava ago
ra estruido co'as muitas nodoas, ficou-lhe razo,
quasi sem as abas, e mal se lhe differençavam
os signaes do pesponto das passamanes d'oiro que
tivera, d'antes... — oiro falso e defumado, que
ro dizer — porque os ligitimos, que trouxera,
em novo, empenhara-os o sr. fidalgo, á segun
da vez, que o vestíra. ",
34
As meias e os capatos é que eram mais so
menos, eram; mas, inda assim ! não se me
riam do meu elegante, que não quizera nunca
estreiar os seus aceios na cidade — e mais podia
fazel'o sem acanhamento — so pelo gosto de ver
como se ralavam d'invejosos os pimpões de San'
Martinho, e Pedro, e seu irmão Pedro, sobre to
dos os mais.
Inda que não fosse agora, senão pela porfia
de qual dos dois havia de agradar á sobrinha do
Cura.
Por isso ele se não dilatou em seguila, o es
tudante, mal a avistou com sua mãe, pelo ata
lho; e d’ahi... chegou-se pela beira d’ella, sus
pirou, tossiu... e por fim sempre lhe foi dizen
do com uma voz doce... como os favos do mel:
— Se a menina quer ir pela minha mão...
— Pois elle... era o que faltava — acudiu Bri
tes com um modo agastado, muito fóra do seu
natural — ora, melhor você cuidára em estudar
pelos seus livros, ou ficar á cabeceira de seu ir
mão, que está tam malsinho... e Jesus! que até
brada aos ceos ver-te assim, Antonio, a cuida
res de te preparar... e com roupas qne se não fi
zeram para gente da tua egualha.
— Oh ! minha mãe! tambem...
O estudante não acertava com o que tinha a
dizer: as palavras da velha deram-lhe um golpe
mortal.
A viuva prosseguiu, sem lhe pôr os olhos:
_ — Ande lá para deante, avie-se; — e foi di
zendo depois como se fallára colos seus botões:
— nem a mim me faltava ver outra coisa! dar
lhe a mão... ele! o inguiçado... que parece que
lhe deram inguiço!...,
35
Inda foi por Deus não ter Antonio ouvido es
tas palavras da velha, que era capaz até... de
lhe faltar ao respeito.
Foram pois os tres andando, andando, sem da
rem fala uns aos outros, e d’alli a quatro pas
sadas, chegaram ás portas da egreja,
Oh! quem podéra ser um pintor como o nosso
portuguez Coelho, para aqui descrever pelo miu
do a singella mas devota pompa d'aquela sanc
ta casa do Senhor!
Os altares, ornados com simples aceio, com
as suas toalhas-brancas de neve — as suas cruzes
infeitadas com ramos de cravos e perpetuas; o
retabulo principal, lizo, sem esses arabescos de
acanthos, com caras d'anjo, como querendo imi
tar os que dizem que fazia o Cellini; os tochei
ros de cera pura, que ondeam brandamente com
a aragem fresca e recendente da manhã; o pa
dre — um clerigo alto e magro, que viera fazer
as vezes do cura, e que estava celebrando ao al
tar — o padre, que parecia, se pode dizer, co
roado de luz, por que um raio do sol, que se
atteava formozo dos montes, rompendo pela es=
treita fresta ingradada de silvas, vinha bater-lhe,
a prumo, sobre a calva da cabeça.
E o povo... o povo todo, tam feliz na sua po
breza, como está rezando fervorosamente!... como
brota a oração do fundo d'aquellas almas... a su
bir em rôlos ao throno de Deus, como o fumo
do incenso, que se queima nos thuribulos!
O povo das aldeas tem fé: por isso elle é vir
tuoso e nobre: virtuoso por que sofre, sofre...
e nobre, por que perdoa sempre, e mais tem
tanto que perdoar...
Quando Brites entrou na egreja com a sua com
36

panheira todas as vistas se ergueram e sentiu-se


por modo de um rumor surdo.
A velha fez a sua venia ao Sanctissimo do al
tar, e aioelhou-se chegada ao arco-crnzeiro; Ma
ria ficou a traz d’ella, e o estudante que estava
mais inchº do e soberbo, do que um rei, esse
pôz-se meio d'esguelha, e ora deitava os lhos
para a linda sobrinha do padre Francisco, ora
sorria com ar de desprezo para os mancebos...
e para as môças de San Martinho.
Porém María não mostrava dar-lhe... não lhe
dava attencção nenhuma. Ella sim! com as can
didas mãos erguidas, e com o rosto modestamen
te inclinado... parecia uma figura de cera ou de
jaspe — a figura d'um seraphim, dos que estão:
entre as nuvens do throno do Deus-vivo.
E tambem não lhe quadravam aquelles tregei
tos d'Antonio; por certo que havia de ser bem
diverso o modo por que o noivo da thia Brites
lhe punha os olhos, no tempo em que andavam
namorados. •, , , …

O amor que sonham as viagens é puro e es


treme e singello; o que assím não fôr não no
querem, que é falso — infada-as.
A missa ia quasi em meio...
Chegou-se ao erguer a Deus. A torre da egre
ja estremeceu com uma badalada do sino; o sa
cristão tocava a campainha, e o povo batia nos
peitos e prostrava-se por terra. -

Oh! tudo isto se misturava n'um hymno de lou


vor solemne, que se exalava para o ceo e punha
devoção e respeito áquella gente. ; ·
Maria inclinou-se a beijar a pedra das sepul
turas, e depois, quando foi a alevantar-se, acer
tou de deitar a vista para as bandas da sacristia.
37
Lá dentro, ao direito da porta, estava Pedro,
o filho de Brites.
O mancebo, com o seu vestido negro, que lhe
cahía á maravilha, n'aquele corpo gentil; com
o seu camizote de linho tam alvo, como a pedra
da cal; colos seus cabellos e barba a voarem
lhe desalinhados; com a viola prêsa, á esquerda,
por uma fita vermelha... havia de ser, por cer
to, como um desses trovadores, que, antigamen
te, andavam por castellos de nobres e lhes leva
vam as filhas incantadas de os ouvir... e de os ver.
Pedro estava em pé, firme e quedo; tinha os
braços em cruz sôbre o peito e os olhos... pre
gara-os em Maria por uma tal sorte, que falla
vam, que diziam tudo! cravara-os n’ella de um
modo... como logo da primeira vez se olha para
a mulher, que se hade amar... por toda a vida,
A moça... deu-lhe o coração uma pancada:
lembrou-se da conversa que os dois irmãos tive
ram de noite... e tremia e corava e descorava,
quasi á uma.
A sua turbação delatava-a, e delatava tambem
a Pedro...
O estudante reparou... accendeu-se-lhe o ciu
me e a negra inveja em lavaredas la por dentro,
e sem dar pelo que fazia, ergueu-se e rompeu,
a eito, por entre o povo fóra.
Ao chegar ao adro, abaixou-se a uma pedra,
e armou-se para esperar a Pedro, e tam doido,
tam perdido vinha, que nem attentou em João,
que, em bicos de pés, sôbre um montão de in
tulho, espreitava, apegado á parede, por uma fres
ta para dentro da egreja.
Ora o maluco — e pouco poz em desobedecer
á mãe, e abandonar o doente! — o maluco fi
38
cou varado ao ver a Antonio com a cara assim
demudada, desceu, chegou-se a ele e falou-lhe.
— Tu que tens, Antone? onde vás ?
— Que hei eu de ter ? não sabes? é que vou
dar cabo d'elle, por uma vez.
— De quem?... pois então?.
— De quem soube captivar Maria...
— Que me dizes!..
— Digo-te que Pedro tem artes do demo,
que... mas hade pagal-as hoje.
João infiou; pozeram-se-lhe os olhos de lume!..
porém disfarçou, e maluco maluco, sempre mos
trou ser mais avisado que o estudante... e d’ahi
deitou-lhe com alma as mãos ao braço e disselhe:
— Larga a pedra, Antone.
—Não largo...
— Larga a pedra, e deixa estar que... deixa-o
COIT)I]OSCO, , ,

— Comnosco?..
— Cal-te, ao jantar... nós lhe fallaremos.
39

VI.

Este alevanta
A caça por que a cata;
Porém sempre outrem a mata.
(Gil Vicente. —Auto das fadas.)
UM BEIJO,

A cozinha das casas da thia Brites deitava pa


ra uma horta repartida com seus canteiros de al
fazêma. • •

No fim d'este quintal rustico, havia uma rua


espessa e fechada de verdura, que levava a um
retiro para tomar a fresca.
O retiro... toldavam-no murtas bravas e limoei
ros, inlaçados com mosquetas e madre-silvas,
que mal deixavam coar para dentro o clarão do
sol.
O chão tinha o mais brando tapete de relva,
que nunca se vio; brando e estrellado de boninas
alvissimas e de botões de macella, que pareciam
d'oiro fino. •

Duas raizes d'antigos sovereiros, vestidos d'um


musgo viçoso, como veludo, e cercadas de ale
crim e dedaleiras, davam regalado geito para a
gente se assentar á sombra.
O aroma puro e suave, que alli se respirava,
e aquella tepida luz, em que os olhos se repoi
savam do ardor do meio-dia...
Era como na gruta dos Jardins das infantas
d'Aragão, ou dessas formosas fadas, em que di
zem os nossos antigos, que havia sette fontes e
sette mil flores.
Era um ceo-aberto, proprio, deveras, para
dois namorados se abraçarem pela primeira vêz.

40

Foi para este retiro incantado que Maria viera


matar as horas da sésta. -

Como se viu sozinha, sem ter companhia...


por que a velha não se arredava da cabeceira do
filho, — que não estava peior, antes a confortava
com palavras de esperança — e consumia-se, con
sumia-se com a tardança de João, que não vi
nha da villa, e mais fôra para la — cuidava ella
— tam cedo, que nem ja na volta da missa o
topára em casa; Antonio deu volta, mal acabou
de comer; e Pedro, Pedro... nem siquer para
jantar apparecêra. Seria a fazer-se grave? talvez.
Maria desceu pela rua do arvoredo abaixo en
trou na gruta, assentou-se á sombra da folha
gem... e com a viração que alli corria, em quan
to a calma crestava tudo lá por fóra, e as ci
garras cantavam pelos campos do trigo... deu-lhe
o somuo, e adormeceu.
Oh! e que feitiço não era vêl-a por aquella
sorte!
A cabeça descahia-lhe sôbre o braço direito,
que poisava n'uma galha de limoeiro... o braço
meio-nu e branco e burnido, como se fôra de
marfim torneado.
Na mão esquerda, que lhe pendia na aba da
saia, segurava um abraço de videira.
O cabello fino e lustroso esvoaçava-lhe pelos
hombros e pelo peito, que... não quero dizer mais
nada — era uma suspensão contemplal-o.
Os olhos... aquelles olhos de fogo, cerrados
agora, bem podéra assimilhal-os á luz sagrada da
egreja, que arde na alampada transparente de
alabastro.
A bocca sorria-lhe... ai! não lhe sorria ja,
como d'antes; andava ali a sombra d'um cuida
41
do, que lhe inodoava a innocencia, que lhe ar
quejava no coração!
De joelhos, aos pés de Maria, no meio da relva,
estava João, que viera, pé ante pé, dentre o
arvoredo, logo que a sentira adormecida.
Eu não sei... nem que o soubesse, poderia
aqui pôr claramente o modo extranho, por que o
maluce alli estava !
Quem ja lesse o livro, em que vem d'um si
neiro muito feio — Quasimodo se chamava elle
faça de conta que vae ver um homem muito mais
bronco e mal-azado, ainda.
A cabeça — aquela cabeça de gigante! — co
bria-lh'a uma carapinha ruiva, e crespa como de
negro, que nem dos Brazis. As mãos felpudas e
calejadas tinha-as erguidas... mostrando que ado
rava a Maria. Na testa viam-se-lhe as veias in
cruzadas, que fingiam ser uma rede de cobras.
Com a bôcca descerrada, como se fôra a fal
lar, mas sem dizer nem meia palavra... suspi
rava de quando em quando; e os ais, que dava,
sahiam-lhe por entre os beiços incortiçados e de
negridos, cemo o bajefo do lume n'uma forja de
ferreiro. As ventas latejavam-lhe abertas á simi
lhança das do tigre; e os olhos não nos desvia
va do rosto da donzella, e tinha-os fitos... fitos
e tam arrazados de lagrimas, que reluziam n'a-
quelle rosto duro e gretado, como duas bolhas
d'agua n'um baldio queimado da sécca.
Alli ficára por largo tempo o triste, embebi
do na lindeza de Maria, que repoisava... ali fi
cára tomado d'embaraço e de respeito, se o não
despertára uma voz queixosa, que se ouvia ao
longe... •

Era Pedro que vinha cantando:


42
Ai, ma hora em que teu vi,
Nunca t'eu chegára a ver!..
Quando mal me precatava
Teu captivo, ai, vim a ser.

— Mal haja a hora em que a viste!.. mal o


hajas tu, mail'as cantigas que sabes... — murmu
rou João a ranger os dentes de raiva — mal o
hajas, inganador de moças, mas guar-te... que
vai chegar a tua vez agora...
O maluco não acabou; ergueu-se, deitou uma
vista de olhos atravessada para a banda d'onde
vinha a voz, e sumiu-se por traz dos troncos das
àI'VOTOS.

Maria não dava signaes de acordar.


Pedro vinha pensativo e mudo; infiou direito
para o retiro, entrou... ficou estacado e deu em
tremer... como o junco da junqueira.
— Maria ! — bradou elle com a fala prêsa
de espanto... E não disse mais que ésta palavra!
Oh ! mas que será, que o nome de Maria pa
rece que fecha e incerra quanto a mulher tem de
sublime?..
Não ha nome assim, não; nem póde haver ou
tro que melhor sôe na bocca do homem.
— Maria — proseguiu Pedro depois de cobrar
animo — Maria! que podêr te poz Deus nessa
formosura... que nunca vi!... Não foi como com
as outras... mataste-me! Maria ! mal que as nos
nas vistas se incontraram... veio-me uma espe
rarça... veio-me do ceu! e mais ando triste, an
do triste como uma noite... oh ! porque será ! se
me tu queres, Maria, se t'eu quero tanto e tan
to, que...
E Pedro aproximou-se d’ella... — não tinhaja
43
mão em si! — e ousou... beijal-a devotamento na
face.
Ella... despertou de salto, alevantou-se, quiz
fugir e gritar... e não poude: não resistiu áquel
les olhos, que lhe pediam perdão. -

E Pedro... ai, Pedro, ia a apertal-a, como


doido, contra o peito, quando o maluco... vem
derepente, e deitou-lhe as mãos para o afogar.
… Maria escoou-se por entre elles, e correu, sem
tino, pelo arvoredo fóra... Ia a pedir soccorro,
e sufocou-se: deu duas passadas... e cahiu, com
um desmaio, por terra,
Oh! comº se póde contar a incarniçada briga
d’estes dois irmãos!.. •

Logo que Pedro se viu assim colhido á trai


ção, deu certo geito ao corpo, e descarregou tres
punhadas contra o João, que o apertava, em pê
so, pelas costas... que o fez cambalear e largal-o
á primeira.
Depois atiraram-se, de cara a cara, e com tal
impeto, um contra o outro, que ambos foram,
de golpe, ao chão. E de tam, abraçados que an
davam, iam rolando contra aquelles troncos, co
mo se foram de pedra, -

O maluco tinha os dentes cravados no alto do


peito a Pedro, que nem siquer o folego lhe dei
xava tirar. - - - -

Podia esganal-o, era perigo... vai senão quan


do apparece alli Antonio, como por milagre, e
atira-se ao meio d'elles bradando;
— Apartai-vos, rapazes ! que é isto aqui?..
E o estudaute a podêr de muito custo sempre
foi conseguindo fallar-lhes e desvial-os:
— Então? victor-serio! então?
— Deixa-nos...
4 a
44
— Deixa-nos cá...
Responderam Pedro e o maluco ja outra vez
para começarem.
—Não deixo... não quero. Ágora vos eu dei
xava! É cedo, por ora... inda não é tempo, ra
pazes!
— É cedo por ora?... porquê? — perguntou
Pedro como admirado.
— Fuge, estudante — gritou João, a espumar
que nem um toiro bravo — fuge d’ahi ja, ou te
leva o demo, fóra as ordens... se as tens...
—Não cahes em ti, João?... que é isto? pela
manhan não eras tu o avizado... e eu...
— Fuge lá, estudante...
— E não viste que me accommodei?.. cahe
na razão!... inda é cedo...
— Fuge...
—Não, não... Tem-te! deixa ouvir, João,
deixa ouvir o que elle diz de ser cedo ainda —
acudiu então Pedro, erguendo-se direito para o
estudante, •

— É cedo — proseguiu Antonio com voz se


gura — por que não se deve qatalhar aqui.
— E quem no ordena?
— Ordeno-o eu.
— Tu!
— Eu... por que esta noite pelo escuro, que
o luar sahe tarde, brigaremos a decidir.
— Todos tres?..
— Todos! E á beira do caminho hade ser...
ali se ajustarão aquelas diferenças da poça...
alli, se ajustarão as partilhas..." e est'outras con
tas mais sérias.
— Alli morreremos, os tres, Antonio! está
ditto,
45
— E vamos à dar as mãos, Pedro, e mais
tu, João... isso, assim ! e pelo sol, que nos aquen
ta, juremos... que Maria nem será tua, moço...
— Nem tua, estudante!
—Nem tua tam pouco, maluco!
—Nem minha... Nem... de ninguem,
M6

VII.

Fazei, que em vós se vêja


Que mais que o braço, o coração pelêja.
(J. X. de Matos, Canç. IV. ao M. de Marialva.)

sANGUE !

É noite fechada.
O céo está coberto e dão relampagos, de quan
do em quando.
Vem umas bafagens de vento quente, e rede
moinham pelos campos as folhas dos choupos e das
uveiras.
A thia Brites infadada com a dilação do ma
luco, infadada a valer, de o esperar am vão, sem
que lhe ele apparecesse, nem mandasse novas
do sr. doutor, tirou-se de seus cuidados e veio
para a cozinha preparar uma sopa doce, de vi
nho, mel e pão branco, para dar alento ao seu
infermo estremecido.
Assentou-se, pois, a bôa da velha na lareira,
ajunctou as brazas... chegou-se á bocca do forno,
onde tinha a rocca, a peneira e o pichel do azei
te, e pôz-se a temperar a sôpa n'uma escudélla
de barro vermelho.
Depois tirou do peito os bentinhos, uma figa
de azevíche, e um ramo de arruda, e começou
a benzer em cruz... porque Brites, com toda a
sua virtude, acreditava em dadas e em máus que
brantos
Maria entrou, e como se não quizera conver
sas, incostou-se para a masseira, e ficou pen
sativa.
— Em que cuidas tu, Maria? — perguntou
a viuva, quando deu por ella.
47
— Eu... em nada, thia Brites; não cuidava
em nada.
—Não, isso, Maria!... tu não és liza commigo
agora; chega-te cá, deixa ver... deixa-me ver
aqui á luz,... Maria ! tu que tens?..tu choraste!..
— Não chorei, não... devéras.
— Maria! — proseguiu a velha, segurando-a
com força pelo braço, e levantando-lhe o rosto
para cima com a mão direita — eu bem te vêjo
os olhos inchados... Filha; filha da minh'alma...
tu que tens?... tu por que choras?..
A môça ja não podia conter-se... desatou num
soluçar sufocado, e com a vóz orvalhada de la
grimas, respondeu á viuva que a acarinhava:
—Thia Brites... thia Brites... amanhãa quero
me ir embora.
— Pois que é... pois que te fizeram?
— Não sei... mas não posso... oh ! perdoe-me...
não devo estar nesta casa.
— Maria ! que dizes tu...
— Digo que... • •

A donzella encostou a cara ao seio ingelhado


da velha, que pôz as mãos e exclamou com amar
gura:
—Oh! meu Deus! inda terei mais crueis pe=
IldS...

—Não tem, não n'as terá por minha via —


lhe tornou a moça, alimpando os olhos e beijan
doa-a com respeitoso temor,
— Pois... por via de quem, filha?..
Maria estava talvêz em confessar tudo a Brites;
ia contar-lhe como por sua causa andavam em
rixa os tres rapazes da casa, e o que, á tarde,
lhe succedêra... ia contar-lhe, emfim, a incli
nação fatal, que tinha por seu primo Pedro…
43

quando um rumor de brados confusos as fez esta


car e immudecer a ambas.
— Que será isto? — exclamaram ellas, quasi
á uma.
O alarido crescia, crescia... e ja se diferenz
çavam
dante. claramente as vozes de Pedro e do estu
• •

A velha estremeceu, e gritou passada de susto:


— Ai, Deus do céo! que é certa a minha
desgraça!
Palavras não eram dittas, quando Manuel rom
peu a arrastar-se com vacillantes passos, pela por
ta dentro, e atravessou como uma sombra da mor
te, para o patim das escadas do quintal.
… Oh! com que afilicção a thia Bristes correu
direita a elle, a segural-a com ancia pela man
ta de burel, que o cobria!... Oh! com que an
gustia lhe não fallava !
de —
vásManuel,
?.. Manuel... meu filho! e Jesus! on
|- •

— Minha mãe... por quem é, não me deta


nha... +

— Mas espera... ouve cá meu filho...…


A viuva suspendia-o agora pela camiza, em
que nadava, á larga, aquelle corpo consumido pe
las maleitas.
O mancebo batalhava por lhe escapar.
— Não me detenha... deixe-me...
— Pois onde vas tu? quero sabel-o...
— Vou poupar-lhe um pezar, que a mataria.
— E não me acabas tu?.. matas-me, filho,
SC... • • |-

— Deixe-me, senhora... adeus!


Foram sêccas e decididas éstas vozes do mo
ço!... fuzilava-lhe na vista um clarão... como o da
K9
luz antes de extinguir-se; e tanto lidou que apo
der d’esforços... desembaraçou-se dentre as mãos
da velha...
Ella, coitada! fugiram-lhe os pés, cahiu de
joelhos, cahiu de bruços, e rojava-se atraz do
infermo, carpindo-se e clamando: •

— Manuel, Manuel... tem dor de mim... ma


taste-me!
Mas seu filho descèra; não chegou a ouvil-a,
não chegou a vel-a, assim prostrada por terra ;
que senão... ao respeito e á lei que lhe tinha...
Maria chegou-se a ella, ergueu-a para cima,
em pêso, amparou-lhe a cabeça contra o peito,
e rociou-lh'a de lagrimas ardentes; confortou-a,
por fim; porem Brites não lhe respondeu... poz
lhe os olhos, que nem viam siquer, porque lh'os
vidrava o pranto, e ficou-se a arquejar, a ar
quejar... * •

Ah!.. mas que eloquencia não havia naquelle


choro, n'aquelle gemer abafado, naquelles suspi
ros brotados d'alma, em que éstas duas mulhe
res confessavam, mutuamente, os seus receios!..
Era de partir um coração de rocha vel-as a
braçadas, lamentando-se !... os negros anneis de
Maria cenfundidos com as alvas madeixas da viu
va!.. as faces mimosas da virgem repoizando na
descarnada face da velha!.. •

As primeiras fallas que Brites preferiu, que


se intendessem, foram para pedir ao Senhor que
a levasse d’este mundo, se não lhe havia de acu
dir em tammanha apertura.
A moça procurava consolal-a — e mais care
cia de consolação na sua magua propria!
—Socegue, thia Brites, socegue, que Deus
não hade permittir... não... -
50

— Ai, que se tu suspeitáras, Maria, o porque


eu temo!... e Jesus Senhor! meu filho, meu ric
co filho... quero seguil-o, não me segures moça
quero ir com ele... e salval-o, que não pode...
A triste mãe debatia-se para se desprender
d’entre os braços de Maria; desemparou-a o a
contra eo oseio
lento, animo, e ficou desmaiada, outra vez
da donzella. •

O motim dos gritos ia serenando... serenárá,


como as ondas do mar, quando mugem depois
da tormenta a emballar o lenho do batel despe
daçado.
As duas infelizes viraram-se com anciedade...
Era o padre Francisco Pedreira.
Veio então pelas escadas arriba um rumor de
passos atropellados...
— Meu thio, meu querido thio!... — bradou
Maria a voar para o sacerdote, como se tivera
n'elle um abrigo certo para o seu cuidado.
A velha exclamon tambem forcejando para pôr
se em pé:
— Padre, Padre! não ouviu, não nos topou?..
falle, falle... — e o mais que tinha a dizer, dis
se-o... colos olhos. •

O cura deu dois passos para diante... A sua


figura tinha não sei que temeroso aspecto; o ros
to trazia-o descorado, como o papel, e livido,
como o de um desinterrado; as cãas estacavam
se-lhe na cabeça, a prumo, e a loba coberta de
po do caminho, mostrava uns laivos... verme
lhos.
É que o desgraçado — oh! quem tal adivinhá
ra! — ao voltar da cidade, veio incontrar na es
trada a profiosa briga dos quatro-irmãos, e cahia
lhe agora em sorte...
51
A viuva e Maria da Egreja attentaram-lhe no
vestido, e recuando, como assombradas da pe
dra do raio, romperam dizendo a um tempo:
Sangue, sangue!...
O padre cura não lhes deu palavra... mas nae
quelle silencio de dois ou tres credos revelava-se
inteira a crua verdade.
As miseras, infiadas e balbuciantes, prostra
ram-se e abraçaram-se-lhe aos joelhos. Elle...
amparava-as brandamente nos braços, e tinha-se
mudo e alçado, com a vista firme no ceu, a
pedir valor para aquella dura míssão.
A thia Brites afoitou-se a perguntar, final
Jmente:
les— Padre...
foí?.. ja agora... declare-m'o... qual d'el

— A vontade de Deus seja feita! — respon


deu-lhe o sacerdote num tom solemne, que pu
nha mêdo.
—Oh! que martirio, padre!.. acabe... qual
d'elles?..
—Todos. — Tornou-lhe o cura, immovel,
que parecia um penedo.
—Todos!.. ai, Senhor, que...
A velha, começava quasi a varrer-se-lhe a luz
da razão; espantada da vista, com a bocca sec
ca; com as maçans do rosto tingidas d'um rubor
pasmado... era a febre da aflição que tinha mão
n'ella; ao apagar-se-lhe aquelle fogo, apagava
se-lhe a vida tambem.
Que dó não mettia vel-a e ouvil'a!..
— Todos... oh ! mente... mente... não póde ser..,
ingana-me... pois ele... pois seria assim, Deus
do ceu?... seria o estudante?.. * * *

- Antonio...
52
— Diga...
— La fica á beira do caminho...
— Ai, negras partilhas...
— La fica banhado em sangue.
.… — Nome de Jesus! quem me acode... e Pedro?..
—Tambem. |-

— Castigo de mens peceados!


A viuva arrepelava-se e esbofeteava a cara.
Maria turbaram-se-lhe os sentidos, e cahiu meia
morta sobre a lareira. -

O thio não na soccorreu, que nem siquer


d’isso deu fé. So cuidava em confortar a Brites,
Aque reunindo todo o seu vigor, como se o des
vario da paixão lhe clareasse por um momento,
deitou-lhe as mãos e interrogou-o convulsa:
— Não me ingane, padre... descubra-me a
verdade... diga-me... e então ele?...
— Quem, mulher?..
— Elle... o doente... o meu filho?..
— Manuel ... •

— Ai! que é?..


— Manuel...
— Parti-lhe a cabeça c'o mascoto do arado !
— atalhou João, que assomava ao patim.
A thia Brites não chegou a ouvil'o... ja tinha
cahido estatelada no chão.
O cura co'o braço direito alçado, parecia es
conjurar o maluco... porém ficou-se alli quedo
ao velo.
E tinha razão...
Os cabellos e o vestido era uma pasta do ter
ra e sangue... do sangue que lhe manava meio
coalhado do craneo; da bocca escorria-lhe uma
espuma verde... Causaria mais horror o mendigo
que Murilho pintou?
53

A cambalear... encostado ás paredes... foi-se


chegando á beira da moça, e sem fazer cabedal
do thio, que estava varado, prostrou-se diante
d’ella, tomou-lhe a mão descorada... e com os
olhos turvos de agonia da morte, e com uma
voz funda que lhe rebentava das cavernas do pei
to, similhante ao rugir do tigre... balbuciou-lhe
éstas palavras fataes:
— Maria... matei a meus irmãos, por possuir
te... Maria...
Não se lhe intendeu mais que um gemido...
Era o derradeiro!
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