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Excerto 1
Finge-se, na introdução, que Inês Pereira, filha de uma mulher de baixa sorte, muito fantesiosa,
está lavrando em casa, e sua mãe é a ouvir missa. E ela diz:
INÊS Si,
venha e veja-me a mi,
quero ver, quando me vir,
se perderá o presumir
logo em chegando aqui,
pera me fartar de rir.
PÊRO Homem que vai aonde eu vou Cuido que lhe trago aqui
não se deve de correr; peras da minha pereira;
ria embora quem quiser, hão de estar na derradeira.
que eu em meu siso estou. Tende ora, Inês per i.
Não sei onde mora aqui: INÊS E isso hei de ter na mão?
olhai que m'esquece a mi! PÊRO Deitai as peas no chão.
Eu creio que nesta rua, INÊS As perlas pera enfiar,
e esta parreira é sua; três chocalhos e um novelo,
já conheço que é aqui. e as peas no capelo...
E as peras onde estão?
Chega a casa de Inês Pereira:
PÊRO Nunca tal me aconteceu!
Digo que esteis muito embora. Algum rapaz m'as comeu;
Folguei ora de vir cá. que as meti no capelo,
Eu vos escrevi de lá e ficou aqui o novelo,
uma cartinha, senhora: e o pentem não se perdeu.
E assi que de maneira... Pois trazia-as de boa mente.
MÃE Tomai aquela cadeira. INÊS Fresco vinha aí o presente
PÊRO E que val aqui uma destas? com folhinhas borrifadas.
INÊS (Oh, Jesu! Que João das bestas! PÊRO Não, que elas vinham chentadas
Olhai aquela canseira!) cá em fundo no mais quente.
Assentou-se com as costas pera elas, e diz: Vossa mãe foi-se? Ora bem,
PÊRO Eu cuido que não estou bem... sós nos leixou ela assi?
MÃE Como vos chamais, amigo? Cant'eu quero-me ir daqui,
PÊRO Eu Pêro Marques me digo, não diga algum demo alguém...
como meu pai que Deus tem. INÊS Vós que me havíeis de fazer?
Faleceu (perdoe-lhe Deus, Nem ninguém que há de dizer?
que fora bem escusado) (O galante despejado!)
e ficamos dous ereos; PÊRO Se eu fora já casado,
porém, meu é o mor gado. d'outra arte havia de ser,
MÃE De morgado é vosso estado? como homem de bom pecado.
Isso viria dos céus!
INÊS (Quão desviado este está!
PÊRO Mais gado tenho eu já quanto, Todos andam por caçar
e o maior de todo o gado, suas damas sem casar,
digo maior algum tanto. e este, tomade-o lá!).
E desejo ser casado, PÊRO Vossa mãe é lá no muro?
prouguesse ao Espírito Santo, INÊS Minha mãe, eu vos seguro,
com Inês; que eu m’espanto que ela venha cá dormir.
quem me fez seu namorado. PÊRO Pois, senhora, eu quero-me ir
Parece moça de bem, antes que venha o escuro.
e eu de bem er também. INÊS E não cureis mais de vir.
PÊRO Virá cá Lianor Vaz, Que sempre disse e direi:
veremos que lhe dizeis. mãe, eu me não casarei
INÊS Homem, não aporfieis, senão com homem discreto,
que não quero, nem me praz. e assi vo-lo prometo
Ide casar a Cascais. ou antes o leixarei.
PÊRO Não vos anojarei mais,
ainda que saiba estalar; Que seja homem mal feito,
e prometo não casar feio, pobre, sem feição,
até que vós não queirais. como tiver discrição,
não lhe quero mais proveito.
Estas vos são elas a vós: E saiba tanger viola,
anda homem a gastar calçado, e coma eu pão e cebola.
e quando cuida que é aviado, Siquer uma cantiguinha!
escarnefucham de vós. Discreto, feito em farinha,
Creio que lá fica a pea... porque isto me degola.
Pardeus! Boom ia eu à aldeia!
Senhora, cá fica o fato. MÃE Sempre tu hás de bailar
INÊS Olhai se o levou o gato. e sempre ele há de tanger?
PÊRO Inda não tendes candeia? Se não tiveres que comer,
o tanger te há de fartar?
Ponho per cajo que alguém INÊS Cada louco com sua teima.
vem como eu vim agora, Com uma borda de boleima
e vós às escuras a tal hora: e uma vez d'água fria,
parece-vos que será bem? não quero mais cada dia.
Ficai-vos ora com Deus: MÃE Como às vezes isso queima!
cerrai a porta sobre vós
com vossa candeiazinha; E que é desses escudeiros?
e siquaes sereis vós minha, INÊS Eu falei ontem ali,
entonces veremos nós. que passaram por aqui
os judeos casamenteiros
Vai-se Pêro Marques e diz Inês Pereira: e hão de vir agora aqui.