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Preâmbulo
A presente sebenta foi elaborada pelos estudantes Beatriz Oliveira e Rita Botelho,
sob a coordenação de Filipa Teixeira, tendo por base as aulas lecionadas pelo/a docente, Sr.
Professor Doutor Almeida Costa com o complemento de bibliografia, o livro Manual de
Direito Penal de Doutor Figueiredo Dias considerada obrigatória para esta unidade curricular.

A equipa de Direito Penal deu o seu melhor para garantir a qualidade dos
apontamentos semanais e, agora, desta sebenta.

Esta sebenta constitui somente um complemento de estudo, não dispensando por


isso, a devida presença às aulas teóricas e práticas e a leitura das obras obrigatórias e
complementares da cadeira.

De estudantes para estudantes,

Bom Estudo!

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Índice
Título I - Introdução ao Direito Penal............................................................................................... 5
1.1. Definição em sentido formal - sentido e função do Direito Penal.............................................. 5
1.2. Definição em Sentido Material do Direito Penal........................................................................6
Descriminalização e Neocriminalização..........................................................................................11
1.3. Conceito Material da Sanção: o problema dos fins das penas..................................................14
Teorias Absolutas ou Ético-Retributivas......................................................................................... 14
Teorias relativas ou preventivas..................................................................................................... 17
Doutrinas de Prevenção Integral.................................................................................................... 23
Prevenção integral de France Exner.........................................................................................23
Prevenção integral de Liszt...................................................................................................... 24
Doutrina do Professor Eduardo Correia, de base ético-retributiva:.........................................24
Prevenção integral de Roxin.....................................................................................................26
Finalidades das Penas e das Medidas de Segurança...................................................................... 28
Monismo ou Dualismo das Reações Criminais............................................................................... 31
1.4. Inserção do Direito Penal no ordenamento jurídico global: o problema da caracterização.......32
Direito Penal Clássico vs. Direito Penal Secundário........................................................................33
Natureza Pública do Direito Penal e Contraposição com outros ramos de Direito........................ 34
Título II - Teoria da Lei Penal..........................................................................................................39
2.1. O Princípio da Legalidade em Direito Penal.............................................................................39
Vetores do Princípio da Legalidade................................................................................................ 40
2.2. Interpretação da Lei Penal e a Integração de Lacunas..............................................................42
2.3. Aplicação da Lei Penal no Tempo............................................................................................ 44
Crimes Permanentes e Crimes Continuados.................................................................................. 47
Leis Intermédias............................................................................................................................. 49
Leis Temporárias ou de Emergência............................................................................................... 49
2.4. Aplicação da Lei Penal no Espaço............................................................................................ 51
Princípio fundamental da territorialidade...................................................................................... 53
Princípio da defesa dos interesses nacionais..................................................................................56
Princípio da nacionalidade............................................................................................................. 57
Princípio da universalidade ou da aplicação universal................................................................... 59
Princípio da administração supletiva da justiça penal....................................................................60
Limites da aplicação da lei penal portuguesa no espaço e o problema dos efeitos negativos das
sentenças estrangeiras................................................................................................................... 62
2.5. Aplicação da Lei Penal quanto às Pessoas............................................................................... 65
Título III - Teoria Geral do Crime ou do Delito................................................................................ 66
3.1. O significado metodológico da doutrina geral do crime. As grandes construções dogmáticas da
atualidade.....................................................................................................................................66
3.2. As grandes construções gerais do crime.................................................................................. 68
Sistema Clássico - Positivista/Naturalista....................................................................................... 68
Sistema Neoclássico ou Normativista.............................................................................................73

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Sistema Finalista............................................................................................................................. 78
A luta de escolas - Communis Opinio............................................................................................. 82
Sistema teleológico ou racional......................................................................................................83
1. Doutrina de Claus Roxin....................................................................................................... 84
2. Doutrina Maioritária............................................................................................................ 84
3. Doutrina de Bernd Schünemann..........................................................................................85
3.3. Teoria Geral dos Crimes de Ação Dolosa................................................................................. 86
Conceito dogmático de ação.......................................................................................................... 86
Conceito pessoal ou personalista da ação......................................................................................86
A figura do ilícito-típico.................................................................................................................. 89
Tipos incriminadores e tipos justificadores..............................................................................90
O tipo objetivo................................................................................................................................94
Doutrinas contemporâneas desde o século XX........................................................................96
Teoria das Condições Equivalentes ou Equivalência das Condições.................................. 96
Teoria da Adequação......................................................................................................... 98
Teoria da conexão do risco................................................................................................ 99
Teoria defendida por Figueiredo Dias e Eduardo Correia, mas da qual o Professor
discorda............................................................................................................................. 99
O tipo subjetivo............................................................................................................................ 105
Elemento intelectual..............................................................................................................105
Elemento volitivo................................................................................................................... 113
Elemento emocional.............................................................................................................. 119

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Título I - Introdução ao Direito Penal

1.1. Definição em sentido formal - sentido e função do Direito Penal

De forma muito ampla e geral, o Direito Penal é o ramo jurídico que define as
condutas que constituem crimes e que, respetivamente, estabelece as sanções que podem
ser penas ou medidas de segurança.

A definição formal de Direito Penal convoca a necessidade de proceder a uma


definição material dos seus pólos essenciais, por um lado, a infração/crime e, por outro
lado, as reações ou sanções penais.

Diz-nos Figueiredo Dias, que “chama-se direito penal ao conjunto de normas jurídicas
que ligam a certos comportamentos humanos, os crimes, determinadas consequências
jurídicas privativas deste ramo de direito. A mais importante destas consequências – tanto
do ponto de vista quantitativo, como qualitativo (social) – é a pena, a qual só pode ser
aplicada ao agente do crime que tenha atuado com culpa. Ao lado da pena prevê, porém, o
direito penal consequências jurídicas de outro tipo: são as medidas de segurança, as quais
não supõe a culpa do agente, mas a sua perigosidade.”

Contudo, esta definição é insuficiente na medida em que é importante perceber na


substância o que distingue e define crime, bem como determinar o objetivo do legislador ao
aplicar as sanções. Deste modo, a definição formal demonstra-se insuficiente por haver
necessidade de preenchimento material dos seus conteúdos.

Direito Penal ou Direito Criminal?

Podem usar-se como sinónimos, sendo que as duas designações estão consagradas no
nosso ordenamento jurídico e são usadas por este indiscriminadamente.

É de notar que o Direito Criminal toma como referência o crime, deixando de fora a
conduta do inimputável - trata-se assim de uma definição incompleta, pois não se estudam
somente os crimes, para haver crime é preciso haver culpa e isso deve igualmente ser
avaliado.

Já o Direito Penal toma como matriz a pena, mas as sanções não são apenas penas,
abrangendo também as medidas de segurança, dado que o Direito Penal também versa
sobre os atos e comportamentos ilícitos praticados sem culpa (os inimputáveis).

Assim, como se vê, são definições que apresentam alguns problemas e incompleições.

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Perspetiva histórica

Atualmente as infrações penais resumem-se aos crimes, mas nem sempre foi o caso, por
exemplo, na vigência do Código Napoleónico de 1810 (código francês, alemão e espanhol),
distinguiam-se as infrações penais numa divisão tripartida de:

1. Crimes - os mais graves;


2. Delitos - com gravidade média;
3. Contravenções - as infrações menos graves.

Estava-se, então, perante uma distinção quantitativa, mas em Portugal esta divisão
nunca vigorou. Entre nós, no velho Código Penal de 1852 e também no Código Penal de
1886, consagrou-se uma distinção bipartida, por influência do código brasileiro. A distinção
era, então, dividida entre:

1. Crime ou delito - com gravidade média e alta


2. Contravenção - com diminuta gravidade.

Esta divisão e distinção entre penas, a par de serem de índole quantitativa, permeavam
uma filosofia que se materializava em penas degradantes que iam contra o princípio de
Estado de Direito (ex.: perda de direitos).

Todavia, por força da Constituição de 1974, as penas degradantes tornam-se


estritamente proibidas, pelo entendimento de que o agente com o cumprimento da pena,
“paga” tudo aquilo a que estava obrigado, daí que não faça sentido desencadearem-se
efeitos degradantes, difamantes, que antes eram consequências ligadas à divisão bipartida
dos velhos códigos penais portugueses (de 1852 e 1886).

Finalmente, de acordo com o Código Penal vigente (1982), as infrações penais


resumem-se ao crime e as distinções fazem-se apenas quanto à gravidade. Quanto às
sanções associadas às contraordenações, estas foram abrangidas por outros ramos do
Direito.

Avançada a definição formal1, percebe-se rapidamente que esta é insuficiente para se


obter uma visão substancial do Direito Penal. Assim, essa só será possível através da
definição material.

1.2. Definição em Sentido Material do Direito Penal

Caracterização material de crime - o que distingue o crime de outras infrações penais?

1
A definição formal define as condutas que são crimes.

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Diz-nos Figueiredo Dias, “quando se pergunta pelo conceito material de crime
procura-se uma resposta, à questão da legitimação material do direito penal, isto é, à
questão de saber qual a fonte de onde promana a legitimidade para considerar certos
comportamentos humanos como crimes e aplicar aos infratores sanções de espécie
particular.”

Ora, face a isto, importa o Conceito de Bem Jurídico, já que o crime traduz-se numa
lesão de bens jurídicos essenciais, tanto para a livre realização da pessoa em comunidade,
como para a convivência comunitária. Ou seja, o crime concretiza-se numa conduta humana
violadora de uma norma de determinação que seja essencial para proteger os bens jurídicos
supramencionados.

Assim, o Direito Penal tutela os bens jurídicos essenciais, considerados


indispensáveis à convivência comunitária e à livre realização da pessoa. Note-se que aqui
fala-se de bens jurídicos e não de valores jurídicos, sendo que o valor é o adjetivo e o bem
substantivo.

O valor surge como o critério de toda a ação humana - pautam-se na vida humana,
partindo do pressuposto da verdade humana, ou seja, é com base nestes valores que nos
pequenos atos do dia a dia se tomam determinadas decisões em detrimento de outras.

Assim existem, valores éticos (bem e mal), estéticos (bonito e feio) e os valores
pragmáticos/de utilidade (útil e inútil), que se pautam pela hierarquização e polaridade. No
universo jurídico, existem ainda os valores jurídicos/de justiça, que se concretizam numa
determinada época histórica em determinados bens a respeito da interação humana, das
relações que se criam.

O bem jurídico é o concreto objeto que participa desse valor – se o valor é o justo,
então o bem é a decisão justa. O valor é o bom ou o mal, então o bem é a decisão boa ou a
conduta boa, eticamente louvável. Assim, o bem é o objeto, situação ou sistema de relações
consideradas socialmente valiosas, necessárias e indispensáveis à convivência comunitária e
por participar desse valor social é tutelado pelo direito.

O Direito Penal não tutela valores supra-históricos: está condicionada no tempo e no


espaço, ao invés, tutela bens jurídicos. Este (o bem), atendendo à sua natureza intrínseca,
pode traduzir-se:

● Num substrato físico (a vida humana necessita de um corpo biológico funcional, ex.:
o homicídio tem de ter um corpo) ou não (substrato incorpóreo, ex.: honra, bom
nome);
● Numa relação ou num sistema/conjunto de relações (ex.: crimes contra a família);

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● Numa relação entre a pessoa e um objeto (ex.: propriedade – o furto de um objeto
afeta a relação de utilidade entre o titular e o bem).

Pode ainda assumir-se:

● De natureza individual: vida, saúde, propriedade, património;


● Ou de natureza supra-individual ou coletiva: segurança externa do Estado, sistema
monetário, etc.

O bem jurídico, portanto, é todo o quid que pode ser objeto de relação ou sistema de
relações, de natureza individual ou supra-individual, que se mostra socialmente valioso e por
isso digno da tutela do direito em geral. O Direito Penal irá tutelar apenas, de entre todos
esses bens jurídicos, os essenciais à convivência comunitária.

Nota: Os bens sujeitos à tutela do direito vão mudando em função das convenções
atuais - sujeição à dimensão histórica.

Desta conclusão, resulta um problema: como determinar que bens são essenciais à
sociedade, dado que vivemos numa comunidade democrática extremamente plural e
diversificada, com inúmeras opiniões sobre o assunto. A resposta avançada é a seguinte:
através do consenso comunitário.

Todas as pessoas são diferentes, numa sociedade plural, existem múltiplas


mundividências. Todavia, por detrás destas diferenças, existe um conjunto de valores que
todos acreditam, algo que une toda a comunidade. Assim, apelando ao consenso
comunitário, determina-se quais os bens jurídicos essenciais que devem constituir o objeto
da tutela do Direito Penal.

Critério do consenso comunitário

Alguma doutrina, que tende a ser maioritária, reporta ao quadro axiológico que
subjaz na Constituição. A CRP deve refletir o quadro de valores e representações que são
partilhadas consensualmente pela generalidade dos membros da comunidade, assim, traduz
em formas de validade jurídica o consenso comunitário e dá maior precisão à delimitação
destes bens, pois remete-os para normas e torna mais preciso o contexto de senso
comunitário, traçando as linhas deste consenso através das normas da lei geral.

O consenso comunitário pode ser perspetivado tendo em vista o máximo denominador


comum ou o mínimo denominador comum.

● Perspetiva do máximo denominador comum: a mundividência predominante, a


vontade da maioria;

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Levava a uma ditadura da maioria porque se teria de penalizar a lesão de bens
considerados essenciais para a maioria que poderiam não corresponder aos bens realmente
necessários para a convivência.

● Perspetiva do mínimo denominador comum: não se trata de quais os valores para a


maioria devem ser protegidos, mas deve-se perguntar ao consenso comunitário as
condições mínimas e indispensáveis à vida em sociedade.

Deste modo, aquela que deve presidir é a segunda, a perspetiva minimalista (mínimo
denominador comum), porque num Estado de Direito e Democrático, a liberdade é a regra,
por isso, o que está em causa é privilegiar o direito à diferença. Assim sendo, a intervenção
do Direito Penal deve pautar-se por um critério de indispensabilidade para a convivência
comunitária e tutelar o mínimo indispensável à convivência comunitária.

Daqui resultam duas notas sobre a delimitação do Direito Penal (cumulativas):

1) Dignidade penal: só quando estejam em causa bens jurídicos essenciais, que


condicionam o livre desenvolvimento da pessoa, é que o Direito Penal intervém - e
mesmo aí só deve intervir quando haja lesões graves desses bens jurídicos (ex.: vida,
integridade física, etc.). Mas pode haver bens jurídicos e condutas atentatórias de
bens jurídicos abrangidas por outros ramos. É um critério axiológico que atenta à
gravidade da conduta.

No entanto, pode haver bens jurídicos e condutas atentatórias de bens jurídicos que
têm dignidade penal e que, todavia, podem ser acauteladas por meios sancionatórios menos
severos, sendo que aqui o direito penal não deve intervir.

2) Necessidade de pena: mesmo quando estejam em causa bens jurídicos com


dignidade penal, o Direito Penal só deverá intervir quando for necessário. Pode haver
situações em que a lesão de um bem jurídico, que tem dignidade penal porque é um
bem jurídico essencial à livre realização da pessoa e convivência comunitária,
encontre noutros ramos do direito uma sanção que se revela suficiente. O legislador
só deve fazer intervir o direito penal quando estiver perante uma conduta que
simultaneamente tenha dignidade penal e que haja necessidade.

Relacionada com a ideia da necessidade fala-se do princípio da subsidiariedade – ultima


ratio, ou seja, é uma intervenção apenas em último caso, mesmo estando em causa
condutas que lesam bens jurídicos graves. A criminalização das condutas tem de passar
pelos dois critérios.

Desta ponderação cumulativa dos planos da dignidade penal e necessidade de pena


resulta uma característica geral apontada à tutela dos bens jurídicos pelo Direito Penal – o
caráter fragmentário. O Direito Penal não pretende regular um setor da vida social, mas

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pretende regular todos os setores sempre que estiver em causa uma lesão grave do bem
jurídico.

Isto encontra expressão no modelo da CRP – no princípio da proporcionalidade em


sentido amplo plasmado no artigo 18º.

Artigo 18º nº2 – Força jurídica:

2. A lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente


previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para
salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.

Este artigo (18.º nº2 CRP), ao enunciar o princípio da proporcionalidade em sentido


amplo, embora não se restrinja apenas ao Direito Penal, tem aplicação direta no mesmo.

O Direito Penal restringe sempre Direitos Fundamentais constitucionalmente protegidos,


ou seja, as sanções invadem a esfera pessoal dos indivíduos de forma mais pesada e, por
isso, deve-se ter uma especial atenção e cautela. Assim, mesmo estando em causa lesões
graves de bens jurídicos, só se pode aplicar o Direito Penal quando for necessário. O Direito
Penal está aqui para proteger as condições mínimas e essenciais à convivência comunitária,
não para defender uma religião, tradição etc. – só deve intervir quando necessário.

O legislador, sempre que estiver a regular matéria penal, tem, então, de atender
cumulativamente a estes dois requisitos, caso contrário, incorrerá numa
inconstitucionalidade material, por violação do artigo 18.º nº2 e do princípio da
proporcionalidade em sentido amplo.

b) Conceito Material de Crime

Para termos um crime é então necessário:

● Que a conduta vá contra um bem jurídico essencial – dignidade penal;


● Que não seja acautelado pelas sanções dos outros ramos do direito – necessidade de
pena.

A tutela penal de bens jurídicos tem um caráter fragmentário:

● Não pretende intervir na regulamentação de toda a vida social;


● Não pretende regular um concreto setor de atividade;
● Não pretende regular todas as infrações de um bem jurídico, apenas cede uma tutela
fragmentária, procedendo à análise dos dois critérios supramencionados. Mesmo
estando em causa um bem jurídico essencial, o Direito Penal só intervém perante
uma lesão grave e que, por outro lado, se mostre necessária a sua tutela dada a
insuficiência de outros ramos para proteger esse bem jurídico.

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Exemplo: Segurança rodoviária. Nas condutas que atentam contra a segurança rodoviária
está a condução sob efeito do álcool, entre 0.5 e 1.2g/l no sangue. Tendo o Direito Penal
caráter fragmentário, não vai tutelar a segurança rodoviária contra todos os atentados, só
contra aqueles que são mais graves, neste caso, em que a taxa de álcool seja superior a 1.2
gramas de álcool por litro de sangue.

Descriminalização e Neocriminalização

O Direito Penal tutela bens jurídicos, realidades concretas, de natureza material ou


imaterial, individual ou supra-individual, mas que correspondem a bens essenciais à
convivência comunitária no presente. Consoante a evolução das conceções, as condutas
consideradas crime vão variando, assim há normas que mudam com o tempo. Assim, o
Direito Penal está dependente do contexto histórico, social e económico.

Daí nasce o fenómeno da descriminalização que acontece quando as condutas vão


deixando de ser consideradas crimes porque o bem jurídico em questão deixa de ser de
extrema importância para a vida em comunidade no entendimento do legislador (ex.:
adultério).

Também há o fenómeno inverso, o fenómeno da neocriminalização, onde se


encontram os bens jurídicos cuja importância se descobre com o tempo e cuja violação
passa a ser objeto de tutela pelo Direito Penal (ex.: questões ambientais).

Essencial para a definição material do Direito Penal:

Os bens jurídicos também são tutelados por outros ramos do direito,


nomeadamente, o direito privado (ex.: o direito civil) que também tutela a vida. Um
homicídio no Direito Penal é um atentado à vida - no plano do direito civil, um homicídio dá
azo a uma indemnização.

Neste contexto, não há dupla punição, simplesmente são coisas diferentes que estão
em causa, o que distingue verdadeiramente o Direito Penal dos outros ramos de direito não
é o objeto de tutela, mas sim a perspetiva da tutela do direito. Tanto o Direito Civil como o
Penal, intervêm para proteger o património e a vida, mas protegem à luz de terminologias
diferentes.

Então, o que distingue o Direito Penal dos outros ramos do direito?

A diferença está na teleologia do Direito Penal, como dito anteriormente, a diferença


está na definição do âmbito e do objeto de atuação/intervenção do Direito Penal.

Nestes termos, o âmbito e o objeto de intervenção do Direito Penal, devido às suas


dimensões cumulativas anteriormente referidas (dignidade penal e necessidade de pena), e
também como consequência da fragmentariedade que o caracteriza, é necessariamente

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menor do que nos outros ramos de direito, bem como face ao caráter subsidiário que institui
que limita a tutela penal para ultima ratio (em última circunstância).

O desempenho do direito (ordem jurídica na generalidade) analisa-se em duas funções:

1) Função de ordenação ou conformação

Segundo esta função, o direito define a esfera de liberdade de cada cidadão, o ónus e
deveres de cada um. Por isso, o direito procede, neste contexto, a uma repartição dos custos
e da existência coletiva, ou seja, reparte aquilo que cada um deve beneficiar da vida em
comunidade e também dos custos, definindo uma ordem de justiça distributiva.

O ilícito traduz-se, para os ramos de direito que se inserem nesta função, no desvalor dos
parâmetros de justiça distribuída, e acontece sempre que alguém está a receber menos do
que devia receber. Deste modo, as sanções possuem uma finalidade compensatória
(espécie ou equivalente) que visam repor o lesado na situação em que estava antes e que
ainda estaria se a lesão não se tivesse verificado.

Nesta função, inclui-se desde logo o direito privado:

O que está em causa é a tutela da esfera jurídica dos cidadãos, pelo que o ilícito só se
verifica quando existe um dano. Deste modo, por mais censurável ou reprovável que a
conduta seja, se não lesou a esfera jurídica e, portanto, não lesou a ordem jurídica
distributiva, a conduta é indiferente para o Direito Privado. Ex.: A dispara contra B (surdo),
mas não acerta – causou zero danos, então é indiferente para o direito civil porque não
houve dano efetivo.

Outro exemplo, no caso do Direito Administrativo, numa compatibilização entre o


público e o privado, também se pretende manter a justiça distributiva. A repartição das
oportunidades, direitos, deveres e ónus, numa compatibilização de interesses públicos e
privados também passa pelo Direito Administrativo. Ex.: Conseguir uma licença de porte de
arma é direito administrativo – interesse privado: a pessoa que se sente insegura; interesse
público: a restante sociedade que não pretende ser baleada.

2) Função proteção ou garantia


3)
● Diz respeito às normas de determinação: o legislador pretende determinar o
comportamento futuro das pessoas, impondo-lhes bens jurídicos essenciais
(componente imperativa).

Enquanto na primeira função se olha para a violação da ordem jurídica distributiva no


passado, estas normas têm a perspetiva para o futuro – pretendem influenciar e moldar o
comportamento das pessoas, afastando-as de lesar os bens jurídicos em momentos futuros.

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Então, não chega uma indemnização porque deve haver uma sanção associada à violação
futura para afastar as pessoas da prática de ilícitos, impondo assim o respeito pelos bens
jurídicos em causa.

Em síntese, à função proteção subjazem normas de determinação porque visam


determinar, condicionar, comandar (ex.: não matar, não roubar) o comportamento futuro
das pessoas, afastando-as da prática de atos que podem vir a lesar bens jurídicos. Portanto,
esta função possui intrinsecamente uma componente imperativa.

Outra característica que se destaca nesta função é a ligação que tem com a função
punitiva, dada ao facto de a proteção dos bens jurídicos exigir uma sanção adicional. Por
essa razão, não é necessário verificar-se o dano, ao contrário do que acontece no Direito
Civil, no Direito Penal basta a pura desobediência à norma, basta a tentativa – daí que
existam crimes de perigo2/ tentativa.

Conclui-se então que o destaque nesta função é o Direito Penal:

➔ A violação destas normas realiza-se no puro atentado à norma. O ilícito é a


desobediência à norma, por isso é que não é preciso verificar-se o dano – a pura
desobediência à norma é o que conta.

➔ O desrespeito da norma já chega para ser considerado crime, pelo que o núcleo não
está no desvalor do resultado, mas sim no desvalor de ação. Por exemplo, se A
dispara sobre B, ainda que falhe, intentou uma conduta atentatória à norma
respeitante à tutela da vida, pelo que merece ser punido.

Desta forma, aproximamo-nos do conceito material de crime, já que não se limita à


lesão de um bem jurídico (especialmente porque há bens que são tutelados por outros
ramos do Direito). Há um crime quando a lesão resulta de uma desobediência de uma
norma de determinação.

O que o Direito Penal tutela é, realmente, a vigência da norma – protege os bens


jurídicos de forma imediata, de maneira a proteger e garantir a segurança da norma e os
bens jurídicos para o futuro, uma vez que já foram violados.

● Objeto de proteção da norma: é o concreto bem jurídico. Pelo que o Direito Penal
intervém depois do crime ter sido praticado (ex.: “não mates, não furtes, não
roubes”).
● Objeto de proteção da sanção: é a própria norma e o núcleo do ilícito está no
desvalor da ação, o próprio desrespeito da norma (não é preciso haver a morte para
haver um delito consumado). Faz com que no futuro haja menos violações da norma,

2
Crime de perigo: o legislador criminaliza algo antes de existir um desrespeito da norma.

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logo há menos violações de bens jurídicos. As sanções não têm finalidades
compensatórias, em consequência disso, antes visam prevenir a prática desses
crimes.

O conceito material de crime é constituído por uma conduta humana, violadora de


uma norma de determinação, que tem por objeto a tutela de bem jurídico essencial
(obedecendo aos critérios de dignidade penal e necessidade), desde que a intervenção do
Direito Penal seja necessária para preservar o interesse em causa – é a concretização do
desvalor da ação.

Por exemplo, A estava numa carreira de tiro e B pôs-se (agindo contra os


regulamentos) atrás de uma das carreiras. A falha o alvo e acerta em B: não há desvalor da
ação, porque estão abstraídas todas as condutas que não foram previstas. Como não há
desvalor da ação, A não pode ser punido por atirar em B.

É por referência a esta definição que tem de funcionar tudo aquilo que foi
previamente referido (necessidade de pena, dignidade penal, carácter fragmentário).

Finalmente, é importante salientar que o Direito Penal não esgota este campo,
inclui-se ainda, por exemplo, entre outros ramos, o de Direito de Mera Ordenação Social
(aborda contraordenações e consequentes coimas).

Figueiredo Dias: “... para definir materialmente o crime, a verdade é que um preceito
legal pertencerá apenas ao nosso ramo do direito se e quando, para sancionamento de um
certo comportamento ilícito ou antijurídico que prevê, for prescrita uma pena ou uma
medida de segurança criminais...”.

1.3. Conceito Material da Sanção: o problema dos fins das penas

Historicamente, autonomizam-se duas grandes orientações:

● Teorias absolutas ou ético-retributivas;


● Teorias relativas ou preventivas: de prevenção geral e de prevenção especial.

Não há teorias puras porque qualquer um destes setores, isoladamente considerado,


não dá uma resposta cabal e satisfatória ao problema dos fins. Assim, embora se dê
prevalência a um destes pontos de vista, o legislador viu-se obrigado a olhar para outras
perspetivas. Mais do que teorias puras, fala-se dos grandes vetores que podem interferir na
questão das teorias dos fins.

Figueiredo Dias: “Pode-se dizer que a questão dos fins das penas constitui a questão do
destino do direito penal e do seu paradigma.”

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Teorias Absolutas ou Ético-Retributivas3

A pena é um fim em si mesmo – é uma exigência em si, a realização de um imperativo


de justiça. Tal como se considera normal e justo que alguém numa conduta meritória receba
um prémio, também é um imperativo de justiça que alguém que incorreu numa conduta
danosa seja alvo de uma sanção. Por isso, a sanção é a “justa paga” pelo ato danoso para a
sociedade. Como retribuição, a sociedade aplica-lhe uma pena.

Deste modo, a pena é vista como uma retribuição e não como uma forma de defesa
pessoal sendo, portanto, o justo castigo em si. Por essa razão, seria um fim em si mesma, a
realização de um fim de justiça.

A pena viria a ser, por isso, proporcional à gravidade do crime: é o resultado da ação
censurável da lesão de bens jurídicos essenciais.

Nesta medida, se a pena seria a “justa paga” pela prática do crime, para esta teoria, a
gravidade da sanção tem de refletir a gravidade do próprio crime. Ou seja, tem de haver
uma proporcionalidade axiológica, e não uma proporcionalidade na espécie olho por olho,
dente por dente. A gravidade da pena deve corresponder à gravidade do crime praticado.

Pela gravidade da sanção dever ser proporcional ao crime, concluiu-se que o facto é
pressuposto, ou seja, sem crime não há sanção, e medida da sanção, a sanção é a justa paga
e, por isso, tem de haver proporcionalidade.

Figueiredo Dias: ”A medida concreta da pena com que deve ser punido um certo agente
por um determinado facto não pode ser encontrada em função de outros pontos de vista
que não sejam o da correspondência entre a pena e o facto.”

O desvalor resulta de uma ponderação cumulativa:

● Por um lado, da gravidade objetiva do facto (desvalor objetivo);


● Por outro, do conteúdo de censura (desvalor subjetivo).

É de notar que a gravidade do crime se determina com a ponderação entre o ilícito e a


culpa, sendo que a ilicitude se reporta à gravidade do crime em si e a culpa está relacionada
com o grau de censura.

O ilícito ou a ilicitude permite transmitir o desvalor de um ato, e por isso o ilícito de um


furto é sempre menos grave do que o ilícito de um homicídio. Por exemplo, se A mata B, mas
A é inimputável, o desvalor de cada facto resulta da ponderação do conteúdo do ilícito, mas
também do conteúdo de censura (há um desvalor objetivo e outro subjetivo que se traduz
em maior ou menor culpa).

3
Os autores que defendem esta conceção partem da liberdade humana.

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Nesta teoria, o Direito Penal não pretende prevenir crimes futuros, mas sim reprovar os
que já foram cometidos - funciona com os olhos postos no passado.

Críticas à doutrina ético-retributiva

1) A liberdade humana não é demonstrável cientificamente, pelo que se está a basear


todo o fundamento do Direito Penal numa ideia indemonstrável, tendo, por isso, um
substrato frágil.

Esta crítica vale pouco, porque se não se prova cientificamente a liberdade, também
não se prova a falta dela. Todos têm um espaço, por mais ínfimo que seja, em que se pode
decidir sobre as atuações diárias, daí que se ache normal que se premeie quando se pratica
atos positivos, ou se castigue quando se pratique atos negativos. O problema da liberdade é
o da adesão.

Crítica mais importante:

2) É o próprio sentido retributivo da pena. O mal do crime não justifica a repetição da


pena. Esta ideia da retribuição é a expressão da vingança privada.

É compreensível que perante uma agressão a si próprio ou a alguém próximo, o


indivíduo tenha um impulso de vingança – é uma reação natural, mas não é
necessariamente moral. Dito isto, a vingança privada nunca poderá ser a ideia que subjaz ao
funcionamento do Direito Penal.

Dois males serão sempre piores do que um, logo um mal não justifica outro mal.
Num quadro de Estado de Direito a vingança não pode ser o fundamento do Direito Penal, o
castigo pelo castigo não pode ser justificação.

3) Críticas aos efeitos práticos: a retribuição não atende aos imputáveis normais ou
por tendência/delinquentes especialmente perigosos, tendo dificuldade em dar
resposta à criminalidade endógena.

Acredita-se que haja uma propensão para a prática de crimes, pelo que há uma
tendência que arrasta a pessoa a cometê-los, logo, essa pessoa é naturalmente menos livre
que o criminoso comum, pois tem menos escolha quando pratica crime, uma vez que faz
parte da sua própria natureza.

Se são menos livres, são menos culpados, portanto, o crime é menos grave e a pena
tem de ser, também, menos grave. Forma-se aqui um contrassenso, na medida, em que é
esquecido o facto de que esses criminosos “menos livres” são precisamente os mais
perigosos: paradoxalmente esta teoria acaba por aplicar aos criminosos mais graves as
sanções mais levianas, deixando a sociedade completamente indefesa contra estes
fenómenos. Deste modo, tem de chamar em seu auxílio a prevenção especial.

16
Desta crítica ainda se formula uma outra:

4) Revela insuficiências quanto aos inimputáveis, a doutrina não lhe dá resposta, tem
de se chamar a doutrina da prevenção especial.

Apesar disto, não se pode deixar de reconhecer o importante contributo da doutrina


ético-retributiva ao longo da história. Neste contexto, esta doutrina contribuiu diretamente
para que a pena não ultrapassasse o princípio da proporcionalidade, em nome da defesa da
dignidade da pessoa conjugada com a ideia da justiça, funcionando, então, como um limite
às tendências extremas da prevenção especial e, consequentemente, como elemento de
moderação.

No entanto, não dá, isoladamente, uma resposta satisfatória. Por isso, a retribuição ou
compensação da culpa não é nem pode constituir uma finalidade da pena.

Teorias relativas ou preventivas

A sanção não é um fim em si. A sanção pretende evitar uma repetição do dano e da
violação da norma. A pena é um meio de defesa social contra a criminalidade. → O Direito
Penal tem os olhos postos no futuro.

Figueiredo Dias: “Contrariamente às teorias absolutas, as teorias relativas são, com


plena propriedade, teorias de fins.”

Esta teoria subdivide-se em duas doutrinas:

Prevenção Geral

Pretende prevenir a prática de crimes atuando sobre a generalidade da coletividade,


sobre todos os potenciais delinquentes. Atua pelo medo, pela coação psicológica e
intimidação, de modo que a coletividade não cometa crimes por medo de uma sanção.
Aplica-se àquele delinquente a sanção de modo a meter medo aos outros.

Assim, a pena deve ter um quantum de intimidação para afastar potenciais delinquentes.

Figueiredo Dias:” O denominador comum das doutrinas da prevenção geral radica na


conceção da pena como instrumento político-criminal destinado a atuar sobre a
generalidade dos membros da comunidade, afastando-os da prática de crimes através da
ameaça penal estatuída pela lei, da realidade da sua aplicação e da efectividade da sua
execução.”

● Prevenção geral negativa ou de intimidação: imagine-se que crime x começa a ser


muito recorrente. Nesta teoria, perante esse crescimento, deve aplicar-se uma

17
sanção mais grave de forma a evitar que as pessoas o repitam, tendo por base a
intimidação geral.
○ Esta teoria atua através de um quantum de sofrimento, suscetível de levar,
pelo medo, os potenciais criminosos a não praticarem o crime.

● Teoria da coação psicológica (P.A.Feuerbach): Se o criminoso pratica um crime é
porque a prática do crime dá uma espécie de prazer/benefício. Nesse sentido, a pena
deve conter um quanto de sofrimento superior ao desprazer de não praticar o crime.
Esse sofrimento deve ser uma intimidação para aqueles que sentiriam prazer
cometendo o mesmo crime.
○ A coação psicológica seria feita a dois níveis: a nível da ameaça (previsão na
lei das penas) e a nível da execução (confirmação da ameaça).

Entende-se que a sanção pode ser muito mais grave do que a que resultaria da
simples proporcionalidade, porque o crime constituiu um exemplo que pode levar outros a
praticá-los, então, a função seria a de intimidar a generalidade das pessoas, aplicando uma
pena severa em ordem a que os potenciais criminosos ficassem dissuadidos de cometer o
crime.

O crime continua a ser pressuposto da sanção, mas já não é medida, pelo que a pena
passa a ser atribuída para necessidade de prevenção geral, por isso, já não pretende a justa
paga, mas pretende antes defender a comunidade, pois a medida será dada pela
necessidade de prevenção geral. É uma doutrina preventiva, visando a defesa social perante
o crime.

Críticas à teoria da prevenção geral

1. Este pensamento pode conduzir a um direito penal de terror. Um Direito Penal


brutal, extremamente severo, com penas que vão muito para além da
proporcionalidade do crime, penas injustas e atentatórias da dignidade humana,
inadmissíveis num Estado de Direito.

A pena pretende intimidar, só que a pura lógica da prevenção geral admite que, em
crimes de diminuta gravidade, se apliquem penas demasiado severas para instrumentalizar
um criminoso, levando outros a não praticar os mesmos crimes. Tem de haver limites de
proporcionalidade, já que a pena já não é medida do crime.

18
2. A prevenção geral é contraditória porque pode levar ao efeito que pretende evitar: a
movimentos de solidarização com o concreto crime4 ou de solidarização pelo
delinquente.
3. A teoria afirma que para prevenir o crime é preciso aplicar sanções pesadas. No
entanto, provou-se que a brutalidade/severidade das penas não equivale a
prevenção. O que é de facto importante são as instâncias formais de controlo. Se as
instâncias formais de controlo funcionarem devidamente, a pena pode limitar-se ao
justo e ser proporcional à gravidade do crime, sem ter de incorrer em penas brutais
para dissuadir o potencial criminoso.
4. Outra crítica é o fenómeno da habituação social (dado provado cientificamente): o
crime diminui temporariamente num curto prazo devido ao aumento das penas, mas
volta a aumentar pouco depois.

Deste modo, o aumento das penas pode levar à sua prevenção, reduzindo-se a
prática de crimes, mas a médio-longo prazo volta à situação original, porque se deu o
fenómeno de habituação social daquela pena. Assim, acaba por ter um efeito perverso,
porque uma sociedade que se habitua à violência, mesmo do Estado, é mais criminológica.

5. A prevenção geral deixa de fora os delinquentes que são mais perigosos, porque os
imputáveis com tendência/delinquentes especialmente perigosos não se deixam
intimidar como o homem comum, precisam de medidas mais enérgicas.

Resume-se no facto de que o legislador atende ao estereótipo do homem comum,


pelo que a gravidade procura afastar o homem comum, mas não conta com aqueles com
natural tendência à prática de crimes (criminosos especialmente perigosos), daí que tenham
de chamar em seu auxílio a prevenção especial.

A prevenção geral é sem dúvida importante – só o medo da sanção, por vezes, evita
crimes. É uma dimensão importante no âmbito da sanção penal, mas precisa de limites,
nomeadamente de justiça que têm de ser retirados da doutrina ético-retributiva. Em síntese,
é um vetor a ter em conta na luta contra o crime, mas por si só, não permite uma resposta
adequada para os problemas da criminalidade porque não dá resposta em relação aos
criminosos especialmente perigosos e pode levar a um Direito Penal injusto.

Prevenção Especial

A pena é um simples meio de defesa social e não um fim em si mesmo. Defende que
a prevenção deve atuar sobre o concreto delinquente. Se houve quem cometeu um crime,

4
Como o caso em que uma cidadã portuguesa foi apanha em Macau por tráfico de droga, sendo condenada à
pena de morte. Isto gerou uma tamanha onda de solidariedade por ser excessiva a pena tendo em conta o
crime praticado.

19
também há o risco deste ser repetido, por isso deve atuar-se de forma a evitar crimes
futuros, não atuando assim na generalidade das pessoas.

Figueiredo Dias:” As doutrinas da prevenção especial ou individual têm por denominador


comum a ideia de que a pena é um instrumento de atuação preventiva sobre a pessoa do
delinquente com o fim de evitar que, no futuro, ele cometa novos crimes.”

Distinguem-se três modalidades de atuação:

1. Intimidação individual: procura intimidar o concreto delinquente através de uma


pena tão severa, que o afasta de uma possível repetição do crime;
2. Incapacitação: procura incapacitar o delinquente, privando-o daquele espaço de
liberdade em que revelou a perigosidade da prática de crimes. Ex.: Num caso de
pedofilia, a solução seria retirar o poder paternal, impedir de ser professor/a de
menores, etc. limita-se a liberdade do concreto delinquente nos setores de atividade
que mostrou o poder de deliquar.

A estas duas modalidades também se pode chamar prevenção especial negativa,


apesar do Sr. Professor Doutor Almeida Costa não apreciar o termo. Isto porque, em ambas,
se limita a ação do delinquente, estabelecem-se limites negativos, barreiras à liberdade do
delinquente.

3. Reintegração social ou socialização do delinquente: prevenção especial positiva. É


uma vertente mais humanista, pois cria condições na pena para que, após o seu
cumprimento, o delinquente possa viver em sociedade sem praticar crimes. O que
está em causa é dar ao delinquente, através do cumprimento da pena, as condições
para que no futuro possa viver em liberdade sem perturbar a comunidade.

O criminoso é uma pessoa em crise, pelo que as sanções devem procurar dar as
condições para que o delinquente viva, no futuro, sem praticar crimes, através de terapias
de grupo, formação profissional, etc.

Importa não confundir este conceito com regeneração moral, uma vez que o Direito
Penal apenas defende bens jurídicos essenciais, não atende a nenhuma moral social,
religião, entre outros. Não é suposto converter uma pessoa porque seria uma invasão da
esfera privada de cada um, o que se pretende realmente é evitar a reincidência – prevenção
de futuros crimes.

A ideia da prevenção especial mudou muito durante certos períodos históricos, mas
teve uma expressão extrema no virar do século XIX para o século XX, apoiando-se no
positivismo naturalista, que também se expressou no Direito Penal.

20
Decorrente do pensamento da época, surge uma perspetiva, a propósito da Escola
Positiva Italiana e da Escola Alemã, que negava a liberdade individual e afirmava que certas
pessoas nasceriam causalmente determinadas para a prática do crime, surgindo os
conceitos:

● Homo delinquente: sujeito que nasceu destinado a praticar crimes;


● Delinquente nato: o sujeito que nasceu predestinado para o crime.

O autor pretendia identificar estes sujeitos antes que praticassem o crime, atuando,
assim, o Direito Penal de modo ex ante. Ao negar a liberdade humana, nega-se,
consequentemente, a culpa. Falava-se, portanto, em perigosidade, pelo que o
comportamento humano estava entregue à causalidade e a conduta humana seria
condicionada por fatores externos como qualquer outro fenómeno naturalístico (sismos, por
exemplo) apenas aumentando o número de variáveis (mais complexo, portanto).

Assim, seria necessário descobrir, através de métodos científicos, quem seriam essas
pessoas dentro da sociedade. Alguns autores, nomeadamente o fundador da escola positiva
italiana (Lombroso), permitia isolar e identificar esses elementos perigosos mesmo antes do
crime, na medida em que tentar-se-ia definir os delinquentes – aqueles que nasceram já
para a prática do crime. Por essa razão, seriam identificados por características físicas e
psicológicas, aliadas a certos modos de vida, que demonstrariam que eram delinquentes e
agir-se-ia adequadamente se se identificasse o elemento perigoso – analogia entre a sanção
penal e a anatomia.

As sanções teriam um caráter médico e seriam indeterminadas, tal como o médico


não estabelece uma terapia definitiva, o mesmo sucederia nas sanções penais. Seriam
ajustáveis durante a sua execução.

São visões extremas da prevenção especial que afirmavam que o crime não era nem
pressuposto nem medida e o objeto de ação era a perigosidade mostrada pelo agente, pelo
que atualmente a defesa da prevenção especial não passa por estas posições.

Como referido, tirando algumas exceções ao longo da história, não surgem teorias
puras unilaterais só de prevenção geral ou prevenção especial, pois nenhuma das teorias
responde de forma completamente satisfatória. Dada a insuficiência de cada uma destas
orientações para, por si só, darem conta do problema de delinquência, sempre houve a
necessidade de as combinar.

Explanadas as teorias supra, importa deixar claro que a ordem de exposição não
corresponde necessariamente a uma sequência histórica. Há períodos em que se verifica a
prevalência da prevenção especial ou geral e outros da retribuição.

Críticas à teoria da prevenção especial

21
1) Se na prevenção geral era o perigo de um direito penal demasiado severo, aqui o
perigo é o de um direito penal terapêutico, com práticas em que se assemelham as
reações criminais à medicina (ex.: lobotomias) – uma total indeterminação das
sanções; deixando os cidadãos à mercê do Leviatã que é o Estado.

À luz de critérios utilitários, transformam o criminoso num objeto terapêutico, atentando


contra a sua dignidade humana. Tudo se passa em segredo nos hospitais, fora dos controlos
democráticos e da opinião pública, por isso, ainda é mais perigoso que o “Direito Penal do
Terror”. A total indeterminação das sanções ligado a este modelo terapêutico pode levar a
que as pessoas fiquem condenadas para sempre (sanção perpétua), o que o torna
inadmissível num Estado de Direito. Deve ser limitado pelo respeito da dignidade humana e
da justiça.

2) Também a prevenção especial revela insuficiências para dar resposta a certos setores
da delinquência, nomeadamente da delinquência ocasional.

Delitos ocasionais: ficam predominantemente a dever-se às circunstâncias do momento,


assim o agente não tem propensão para o crime. Há uma predominância do
circunstancialismo exterior, de difícil repetição. O agente foi perigoso, mas já não o é,
porque praticou o crime num contexto atípico/raro e de difícil repetição, não havendo,
necessariamente, perigosidade para o futuro. Este ficaria impune e originaria uma
absolvição em massa deste tipo de delinquentes – entendimento de Franz von Liszt. Se
houvesse o mínimo de pena que se aplicasse, não em nome da prevenção especial, mas em
nome da prevenção geral, então muitos desses crimes não seriam praticados pela
intimidação geral.

Quando se referiu às teorias absoluta e relativa, não se estava a falar de teorias


acabadas. Os Estados e legisladores não conseguem evitar sempre a criminalidade, e, por
isso, escolhem um destes para ponto de partida. Daí vão associando com outras teorias e
ideias, de forma a criar uma resposta satisfatória ao problema da criminalidade.

Por si só consideradas, todas as teorias têm insuficiências - cada uma das teorias,
isoladamente, não responde de forma completamente satisfatória ao problema da
criminalidade e por isso funcionam em conjunto umas com as outras.

Isto levou a que alguns autores que partiam dos pressupostos extremos da
prevenção especial a introduzir alguns limites. Por isso, construíram-se as doutrinas de
prevenção integral – o ponto de partida é a prevenção especial extrema (total
indeterminação das sanções), mas corrige-o no ponto em que a pena, enquanto se mantiver
a perigosidade, mantém-se. Todavia, haveria sempre um mínimo de pena a aplicar-se em
nome da intimidação geral. Devido a estas insuficiências, há que combinar as três teorias de
forma a dar uma resposta satisfatória ao crime.

22
Síntese:

Doutrinas de Prevenção Integral

Prevenção integral de France Exner

Parte da prevenção geral, mas diz que a medida de pena adequada à intimidação não
é fixa e determinada, porque há uma janela/período de tempo que cumpre a ideia de
prevenção geral. Assim, deixa de fora a ético-retribuição, baseando a pena na prevenção
integral e intimidação, atendendo à perigosidade do delinquente.

Só resolve o problema da delinquência de forma aparente, porque se a medida


adequada à prevenção geral não é pontual e exata, está dentro deste máximo e mínimo
concedido pela prevenção geral, sem qualquer critério de justiça, pode-se fazer atuar a
prevenção especial a qualquer momento e fazer aumentar ou diminuir a pena em função do
delito, então, as penas poderão ser demasiado gravosas.

Além disso, a articulação com a prevenção especial tem uma espécie de engenharia
jurídica, porque a prevenção geral mede-se pela capacidade de intimidar o homem médio,
ou seja, quanto aos criminosos especialmente perigosos, não oferece resposta, porque estes
últimos não se deixam intimidar como os outros.

23
Assim, aplicam-se as críticas da prevenção geral, uma vez que as penas não estão
sujeitas ao princípio da proporcionalidade e justiça, o que leva ao perigo do “Direito Penal
do Terror”. A pena excessiva pode gerar ainda movimentos de solidariedade para com o
criminoso, como já se viu, não tem em consideração a importância das instâncias de
controlo e não se consideram os criminosos especialmente perigosos.

Prevenção integral de Liszt

Esta parte da prevenção especial extrema. A pena deveria ser totalmente


indeterminada e não deve ser estabelecida pela gravidade ou necessidade, mas em função
do delinquente ser perigoso ou não. Deste modo, os órgãos de execução da pena teriam de
verificar a evolução do delinquente e ir adaptando a pena à evolução deste. Tal leva à
libertação de um agente que tenha praticado um crime no passado, mas que no momento
do julgamento já não seja considerado perigoso. Por outro lado, se continuasse
sucessivamente perigoso, a pena poderia ser perpétua5. Conclui-se que esta teoria
estabelece penas indeterminadas, algo inadmissível. Além disso, não oferece, também,
resposta à criminalidade ocasional.

Por estes fatores, possuem as mesmas críticas às orientações extremas da prevenção


especial supra referidas.

Para dar resposta a essas críticas, Liszt introduziu uma alteração na teoria - haveria
sempre um mínimo de pena aplicável. Esta alteração satisfaz as exigências da prevenção
geral, para evitar a prática de delitos ocasionais. A pena passa a ser indeterminada somente
no seu máximo e já não no mínimo, independentemente de o sujeito ser perigoso ou não,
mas apenas porque cometeu um crime.

No entanto, as outras críticas mantêm-se:

● Não eliminou as outras críticas, apenas a da delinquência ocasional;


● Desde logo a crítica do Direito Penal terapêutico: as penas sem qualquer limite
axiológico, intimamente ligado à presença de perigosidade;
● Ainda que atenuadamente, estas teorias da prevenção (geral e especial) continuavam
a merecer as mesmas críticas por parte da doutrina, sendo por isso afastadas.

Doutrina do Professor Eduardo Correia, de base ético-retributiva:6

Nesta doutrina, a pena é um fim em si mesmo, será sempre a justa paga pelo mal do
crime. Aqui, o agente, conceptualmente livre, tinha a possibilidade de decidir entre praticar
ou não o crime e optou por o praticar.

5
Paralelismo com a medicina: se o paciente não evolui, então aumenta-se a dose, e quando está curado, então,
termina a terapia.
6
Já foi uma doutrina prevalecente em Portugal.

24
Parte então da ideia de que o crime é pressuposto e medida da sanção, pelo que não
há pena sem culpa, mas também não há culpa sem pena. Desta maneira, pretende aplicar
ao criminoso uma pena proporcional à gravidade do crime e essa gravidade mede-se pela
ponderação dos ilícitos e da culpa.

Ademais, o professor Eduardo Correia mostra-se sensível à crítica de que esta


doutrina não dava uma resposta à delinquência extremamente perigosa, isto porque, no
âmbito desta teoria, o criminoso especialmente perigoso, por tendência, é menos livre, pelo
que seria menos culpado. Por isso, os seus crimes teriam um peso menor de culpa, seria
menos grave, o que levaria a aplicar, tendo em conta a proporcionalidade da gravidade da
pena, uma pena menos grave. Nestes termos, deixava-se a sociedade indefesa por se aplicar
penas menos severas aos criminosos mais perigosos.

Por saber de tal incompletude da sua doutrina, introduziu, então, uma modificação
nos seus pressupostos: a pena justa é suficiente para produzir a intimidação geral.

Ainda introduz uma modificação que consiste no apelo à teoria da culpa na


formação da personalidade. Segundo esta teoria, parte-se do pressuposto da liberdade
humana e, como tal, como seres humanos, somos responsáveis pelas nossas atitudes ao
longo da vida e aí distingue-se a culpa do facto e a culpa da personalidade.

Neste sentido, entende-se que, no dia a dia, todos são responsáveis por si próprios
nas respetivas escolhas que tomam, na medida em que se vão adquirindo hábitos e
tendências, em relação às quais somos igualmente responsáveis, começando estes hábitos e
tendências a fazer parte de nós. Assim, o criminoso passaria pela culpa do facto e pela culpa
da formação da personalidade e, por essa tendência ou hábito, é, então, arrastado para o
crime. Introduz aqui aquilo que se tinha perdido na culpa do facto, podendo chegar a uma
pena que considerasse a perigosidade na sua totalidade.

Por força da existência da tendência do agente, a culpa do facto é diminuída, mas


segundo esta ideia, o que era perdido na culpa do facto, compensava-se na culpa da
formação da personalidade, considerando-se que o agente tinha culpa da sua tendência
para o crime e, por isso, juntando ambas as culpas era possível, sem sair da lógica
retributiva, aplicar uma pena mais adequada ao agente e à proteção da sociedade.

Em suma, estes criminosos eram, sem dúvida, condicionados pelas tendências e


hábitos que tinham, mas eram responsáveis pela perigosidade que os seus atos representam
uma vez que deixaram enraizar hábitos de comportamento que os levam à criminalidade.
Então, no momento concreto da pena, o juiz não poderia apenas atender à culpa do facto.

Para quem aceita a dignidade humana, embora num indeterminismo relativo, é


natural quando uma pessoa sofrer um ataque querer atacar de volta, porque, na verdade,
comanda-se a vida conformando-a com a realidade que se vive, por isso, é admissível que se
possa lutar contra ou deixar enraizar tendências e hábitos criminais, e, nessa medida, ser

25
responsável e culpado. Porém, isto não pode ser sustentáculo do funcionamento da justiça
penal.

Críticas da doutrina de Eduardo Correia

● O problema desta teoria não está na ideia, mas sim ao tentar operacioná-la no plano
concreto. Assim, como é que o juiz pode averiguar se alguém teve ou não culpa nos
hábitos criminais?
● Continua a aceitar o ponto de partida retributivo, compreendendo a pena como um
castigo e fim em si mesma - a velha ideia da vingança privada, que não é uma ideia
que possa funcionar no quadro de um Estado de Direito. A ideia desta teoria é
argumentar a favor de um monismo, afirmando que para os imputáveis
especialmente criminosos basta a pena.

Crítica essencial (a mesma das teorias ético-retributivas):

● A prática do crime não pode ser a única razão para a aplicação de uma sanção. O que
o professor Eduardo Correia pretendia era encontrar um artifício de engenharia
jurídica que lhe permitisse, sem sair da pureza ético-retributiva, resolver os seus
problemas. Mas em concreto, não é possível. Em suma, não pode ser aceite qualquer
ideia ético-retributiva stricto sensu no Direito Penal.

Prevenção integral de Roxin

Afastadas as doutrinas de prevenção especial, Claus Roxin avança, nos anos 70, com
uma doutrina que procurava fazer funcionar as várias teorias de pena em momentos
diferentes:

● No momento da lei funcionaria a prevenção geral;


● No momento do julgamento funcionaria a ideia de justiça e retribuição;
● No momento de execução funcionaria a prevenção especial;

É uma doutrina desastrada porque não se pode dizer que no momento da lei só
funciona a prevenção geral, mas depois dizer que a pena tem de ser definida de acordo com
os ideais de justiça, por isso, também tem de estar presente a ideia de justiça. Além disso,
no momento do julgamento o juiz deve procurar aplicar a pena adequada e justa, mas
também ter em atenção a prevenção geral e especial. Finalmente, quanto à execução, deve
este momento atender à prevenção especial, mas também ao respeito e dignidade do
recluso.

Em síntese, em todos os momentos devem intervir todos os fins para que sejam
cumpridas as finalidades da justiça, demonstrando, assim, a incoerência desta teoria.

26
Prevenção geral positiva ou de integração7

Autores: Figueiredo Dias e Costa Andrade.

Esta é uma perspetiva mais moderna, com maior adesão em Portugal (na atualidade)
e a adotada no curso de Direito.

A matriz desta doutrina é uma teoria de prevenção geral porque pretende atuar, em
primeira linha, sobre a generalidade da sociedade. A sua finalidade positiva ou de integração
é contrária ao raciocínio feito na prevenção geral clássica e consiste em atribuir à pena,
como objetivo primeiro, a reafirmação contrafática da norma. Pretendendo o
restabelecimento da confiança comunitária no direito e a continuação da vigência daquela
norma.

Portanto, o crime é a violação de uma norma e, por isso, retira força vinculativa à
mesma, pelo que pode haver multiplicação da delinquência. O que o juiz faz ao aplicar a
pena é dizer que a norma mantém o seu valor e força – vertente simbólica de aplicação da
pena.

Há um paralelo com a dialética hegeliana: afirmação, negação e negação da negação:


a afirmação é a norma, a negação é o crime e a negação da negação é a pena que vem negar
o crime e a reafirmar o valor essencial da norma perante a comunidade.

Resumindo, o ponto de partida desta teoria é preventivo porque pretende restaurar


a vigência da norma; é uma teoria de prevenção geral porque procura que o seu efeito se
produza na generalidade da sociedade; e é uma prevenção geral positiva ou de integração,
pois desencadeia o seu efeito pela afirmação do valor essencial daquela norma e do bem
jurídico que ela protege, bem como aprofunda a crença dos cidadãos nessa norma e dos
bens que protege.

Posto isto, defende uma pena de acordo com os critérios de justiça - limites de
justiça -, pois se uma pena não for justa gera maior desconfiança da comunidade no Direito.
Assim, a pena tem de ser proporcional à gravidade do crime.

Limites da Justiça:

● Afasta-se penas injustas, demasiado severas;


● Nas teorias ético-retributivas, há um binómio da conceção de culpa, que vai nos dois
sentidos: não há culpa sem pena e não há pena sem culpa - a justiça manda tratar o
igual como igual e o desigual como desigual;
● Pode haver culpa sem pena, quando tal não for necessário.

7
Há várias orientações dentro desta e nem todas apontam num sentido de respeito pela dignidade humana,
nomeadamente a de Jakobs do Direito Penal do Inimigo que defende a prevenção geral positiva de integração
mas utilitária.

27
Artigo 40º e 74º do CP (Código Penal) – concretização da conceção unilateral da
culpa, ou seja, a culpa é só um limite, não fundamento da punição. A haver pena, não pode
ultrapassar o limite da gravidade da conduta culposa.

Em suma, a aplicação da pena justa está a satisfazer a prevenção geral sem


negligência da justiça, e ao mesmo tempo da prevenção especial, pois se a pena tem de ser
conforme à justiça, tem de atender às circunstâncias do caso concreto e ao agente
específico. Então, esta doutrina permite, por isso, dar resposta às exigências da prevenção
especial (a adequação) e permite a admissibilidade das medidas de segurança. Desta forma,
trata-se o igual como igual e o desigual como desigual.

Para se poder atender a estes critérios de justiça, tem que se atender a cada caso
individualmente como já visto, então é possível, como desejava a teoria de prevenção
especial, verificar a perigosidade de cada agente. Mais ainda, a análise caso a caso permite
distinguir o imputável do inimputável, podendo aplicar-se a diferenciação de tratamento, daí
a necessidade das medidas de segurança.

Desta maneira, afasta-se o perigo do Direito Penal de terror (prevenção geral no seu
extremo) e o perigo do Direito Penal terapêutico (prevenção especial no seu extremo).

Esta é a doutrina maioritária no universo português e adequa-se à lei penal


portuguesa. O legislador, contudo, vai estabelecer limites – artigo 40º CP (doutrina da
prevenção geral positiva ou de integração).

Finalidades das Penas e das Medidas de Segurança

As medidas de segurança merecem referência autónoma, porque a culpa só funciona


para as penas uma vez que nas medidas de segurança fala-se do inimputável (a quem não
pode ser atribuído culpa), por isso terá de se adaptar a pena ao caso em concreto.

Deste modo, têm uma característica especial em relação às penas. No caso das
penas, não pode haver pena sem culpa e nenhuma pode ultrapassar na sua medida a
gravidade. Não se pode dizer o mesmo das medidas de segurança, que têm como objetivo a
prevenção especial. Na sua origem, foram pensadas para inimputáveis.

Ademais, têm como objetivo a segurança da sociedade, com medidas de prevenção


social positiva: reintegrar, ou seja, dar àquela pessoa concreta condições para que se possa
voltar a inserir na sociedade.

Artigo 40.º - Finalidades das penas e das medidas de segurança

1. A aplicação de penas e de medidas de segurança visa a proteção de bens jurídicos e a


reintegração do agente na sociedade.
2. Em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa.

28
3. A medida de segurança só pode ser aplicada se for proporcionada à gravidade do
facto e à perigosidade do agente.

Nº1: Não há retribuição, a ideia da pena não é castigar; salienta, em excluir os outros
fins, a reintegração do delinquente, prevenção especial positiva (aspeto essencial do Estado
de Direito Social).

Nº2: A culpa é limite e não fundamento. A pena não pode ultrapassar a medida da
culpa, mas pode ficar aquém - consagra a conceção unilateral ou unívoca do princípio da
culpa (observa-se o repúdio do legislador por uma conceção puramente retributiva);

Nº3. A função limitativa do conceito unilateral da culpa é desempenhada no âmbito


das medidas de segurança pela perigosidade - a medida de segurança não pode ultrapassar
a gravidade média do agente quanto aos seus crimes futuros. A aplicação de medidas de
segurança é legítima, mas tem de ter limites, não pode estar totalmente indeterminada, só é
aceitável se proporcionada à gravidade do facto e à perigosidade do agente. Só existe a
partir do momento em que exista perigosidade.

→ Tanto umas como outras estão ao serviço da prevenção geral ou especial.

Neste sentido, as medidas de segurança também possuem limites, uma vez que não
atendem à culpa e assentam na ideia de proteção dos direitos dos arguidos perante o
próprio Estado. Aplicam-se maioritariamente a inimputáveis, mas não só.

No estabelecimento desses limites à sua aplicação está o problema de fazer com que
não caia no extremo do “direito penal terapêutico”, sem respeito à dignidade humana. Neste
sentido, a doutrina foi elaborando um conjunto de princípios no âmbito de nortear a
aplicação de medidas de segurança que constituem então limites para o respeito da
dignidade humana:

● Princípio da legalidade das medidas de segurança

As medidas de segurança só se aplicam nos casos expressos na lei, bem como nas
condições estabelecidas por lei.

● Princípio da necessidade das medidas de segurança

Aplica-se a medida de segurança quando é necessária à proteção da sociedade


perante a grave perigosidade do delinquente - no estrito âmbito da prevenção especial;

● Princípio da menor intervenção possível (ramificação do princípio anterior)

Concretização do mínimo de intervenção das penas, ou seja, de entre todas as


medidas de segurança adequadas a suster aquele tipo de perigosidade, deve-se aplicar a
que implicar uma menor invasão da esfera jurídica do sujeito em causa.

29
● Princípio da proporcionalidade – tem mesma função que o princípio da culpa nas
penas - é um limite.

A restrição de direitos do arguido deve ser proporcional à gravidade dos crimes, mas
de que crimes? Dos crimes que se espera que o agente possa vir a cometer no futuro. A
proporcionalidade de que se fala neste princípio é distinta daquela que diz respeito às penas
(que olham para o passado).

Existe, neste contexto, um sentido prospectivo, na lógica de dizer que a invasão da


esfera jurídica do destinatário deve ser proporcional aos crimes que o agente pode praticar.
Isto porque, em investigações longitudinais (por exemplo, de Robert Filho) de criminosos
reincidentes, percebeu-se que há uma propensão para repetir certos tipos de crimes, mas
não impede que os delinquentes pratiquem outros tipos de crime.

É também posto em causa o Escalation Effect, que dizia que os criminosos começam
por crimes mais leves e iam agravando, mas provou-se que isso estava errado porque a
oscilação da gravidade dos crimes era de 1 para 4% (ou seja, de 20 para 24 ou 24 para 20,
por exemplo), por isso as cadeiras criminais mantinham uma gravidade média. Assim, o
crime que tinham praticado antes era indício para a gravidade do crime que seria praticado a
seguir.

● Princípio do ilícito-típico - É este princípio que traduz as exigências do Direito Penal.

O Direito Penal atende à culpa do agente, mas sempre numa ótica de subjetividade
que se manifesta a nível fáctico. A subjetividade só pode ser tomada em consideração desde
que concretizada no princípio do ilícito-típico, ou seja, efetivada num facto (perigosidade de
acordo com o crime praticado - se é um crime contra o património, a perigosidade é medida
quanto a futuros crimes patrimoniais).

● Princípio da judicialidade

Exige-se, para a aplicação do Direito Penal, inclusive da aplicação das medidas de


segurança, que esta seja levada a cabo por um juiz e órgãos independentes (os tribunais) em
processo penal, dada a gravidade da invasão da esfera jurídica do agente.

Há medidas de segurança detentivas, isto é, privativas da liberdade, que dizem


respeito ao internamento - regulado no art. 91.º nº2 e ss. do Código Penal e outras medidas
de segurança que são interdições de direitos que estão reguladas nos arts. 100º e ss, em
que a pessoa está em liberdade. Tanto nas penas como nas medidas de segurança vigora a
regra de que as mais graves, as detentivas, só se aplicam quando as outras se mostrarem
insuficientes ou inadequadas.

A doutrina continua a afirmar estes princípios porque dizia-se (muito por influência
das teorias ético-retributivas) que as medidas de segurança não eram medidas penais, mas
sim administrativas de higiene pública. Esta ideia já está ultrapassada. A medida de

30
segurança tal como a pena tem fins preventivos, simplesmente aplicam-se a criminosos
diferentes.

Monismo ou Dualismo das Reações Criminais

Estas querelas visam dar resposta à questão de se saber se, num determinado
processo, pela prática de um só crime, o agente pode ser alvo cumulativamente de penas e
medidas de segurança.

Os monistas dirão que não, justificando que as medidas de segurança são para os
inimputáveis e as penas para os imputáveis.

Os dualistas dirão que em relação a um mesmo agente e pela prática de um mesmo


facto pode verificar-se a prática cumulativa de uma pena e de uma medida de segurança,
sempre que se verifique uma perigosidade que o justifique, exceto se esse agente for
inimputável, aí só se aplicam as medidas de segurança.

Em Portugal, defende-se, segundo a opinião maioritária, que se segue o regime


monista, principalmente por razões históricas. Em geral, porque no passado, a medida de
segurança era aplicada com finalidades terapêuticas, sem garantias, havendo o esforço da
doutrina para restringir as medidas de segurança aos inimputáveis. Conclui-se que nem
sempre aqueles princípios supramencionados vigoravam, no que respeita ao domínio das
medidas de segurança havia uma certa insegurança por não haver critérios específicos (o
delinquente estava no meio das instituições penitenciárias).

Além disso, também se pode justificar esta afirmação por uma questão ligada ao
circunstancialismo histórico pelo que antes do 25 de abril havia um regime autoritário, que,
consequentemente, possuía um regime de aplicação de medidas de segurança aos
dissidentes políticos, havendo também a possibilidade de prolongamento dessas medidas
enquanto houvesse essa dissidência. O tempo de aplicação das medidas era indeterminável.

Hoje as medidas de segurança estão subordinadas a princípios que lhes garantem um


carácter quase tão garantístico como o das penas, principalmente por estarmos numa
democracia estabilizada, e, por isso, estas razões históricas em favor do monismo não
procedem nem relevam nos dias de hoje. Assim, aparenta não haver motivos para manter o
monismo. Contraditoriamente, muitos autores continuam a afirmá-lo.

Na prática, discordando da opinião maioritária, pode dizer-se que o sistema


português é dualista porque é de facto possível a aplicação de penas e medidas de
segurança em simultâneo em determinadas situações.

Neste sentido, o direito positivo português admite expressamente a aplicação de


medidas de segurança a imputáveis, sendo que existem duas modalidades, já anteriormente
referidas:

31
● Medidas de segurança não detentivas – Art. 100.º e ss. do CP. O legislador admite a
aplicação cumulativa de penas a imputáveis: demonstração do sistema dualista.
● Medidas de segurança detentivas – Art. 91.º do CP. Aqui o legislador restringe o
internamento aos inimputáveis.

Aparentemente, aqui, os monistas teriam razão. Mas a verdade é que não, uma vez
que se trata de uma técnica legislativa, porque no artigo 83º do CP está regulada a pena
relativamente indeterminada – em que uma pessoa é condenada a uma pena de dois ou
mais anos de prisão e mais tarde é-o novamente. Quando há fundados indícios desta
repetição deve o juiz aplicar uma pena relativamente indeterminada – o agente tem de
cumprir um mínimo de pena, dependendo o máximo do desenvolvimento da sua execução,
ou seja, durante o cumprimento da pena acompanha-se a evolução do delinquente quanto à
perigosidade e ele será libertado quando mostrar determinadas melhorias. Esta pena não é
uma verdadeira pena, é uma sanção mista – metade pena, metade medida de segurança.

Sendo esta pena uma sanção mista que se traduz numa reclusão, numa medida de
segurança privativa de liberdade, e considerando que toda a privação da liberdade que vá
para além da pena aplicável ao crime é uma medida de segurança, pode dizer-se que este
artigo 83º e ss. são a consagração do sistema dualista nas reações criminais.

Posto isto, pode considerar-se o sistema português um sistema dualista, admitindo


para imputáveis a possibilidade de combinação de pena e medida de segurança (para
inimputáveis não se faz a aplicação conjunta porque as penas baseiam-se na culpa – que não
se aplica aos inimputáveis).

1.4. Inserção do Direito Penal no ordenamento jurídico global: o


problema da caracterização

O que está em causa é compreender o Direito Penal no contexto das ciências-jurídico


criminais e no contexto da ordem jurídica atual, sendo que este não esgota as
ciências-jurídicas relacionadas com crime. Assim, destacam-se três ramos:

1. Direito Processual Penal ou Direito Penal Adjetivo;


2. Direito Penal Substantivo;
3. Direito da Execução das Reações Criminais.

O ramo que regula toda a atividade de prova e julgamento do facto (circunstâncias,


vítimas, autores, etc.) é o direito processual penal ou direito penal adjetivo. No direito
processual penal regulam-se os poderes de intervenção dos órgãos, os caminhos para
aplicar a pena através de valores próprios. Deste modo, tem o objetivo de regular a decisão
das causas penais e diz-se ser instrumental face ao Direito Penal substantivo, mas tem
autonomia por atender a um objetivo próprio. Entre os fins temos a realização da justiça, a

32
procura da verdade e o respeito pelos direitos fundamentais (que marca a autonomia
própria do Direito Penal).

O direito penal substantivo apenas define os crimes e condutas que constituem


crimes e estabelece as respectivas penas. Tem uma parte geral de princípios gerais e uma
parte especial onde o legislador escreve os concretos crimes, abrangendo inúmera legislação
extravagante. Estudar-se-á somente a parte geral, aquela relativa aos crimes, deixando de
parte a das sanções - Teoria do crime (primeiros 40 artigos do Código Penal).

Finalmente, o direito de execução das reações penais, nomeadamente, a execução


da pena de prisão, é igualmente autónomo quer em relação ao direito processual penal quer
em relação ao direito penal substantivo. Sucede ao direito penitenciário porque a pena de
prisão durava muito tempo e, por isso, precisava de regulamentação.

O Direito Penal em todas as suas dimensões só funciona através do processo penal e


do controlo do tribunal.

Direito Penal Clássico vs. Direito Penal Secundário

Importa fazer distinção do direito penal clássico (ou de justiça) e do direito penal
secundário. Para isso, é necessário voltar atrás e ter em conta que o Direito Penal tutela
bens jurídicos essenciais, que dependem da estrutura social, das convicções de cada época,
daí os fenómenos já estudados de neocriminalização e descriminalização. Assim sendo:

O direito penal clássico contempla as incriminações dotadas de maior importância


histórica como matar, corromper, ofensas à integridade física, etc. Percebe–se que já foram
interiorizadas ao nível da consciência axiológica comunitária. Nestes termos, não deve ser
mexido, há evolução da técnica, mas o núcleo permanece. Está historicamente consolidado.

Uma criança, através dos processos de integração normal, vai apreendendo estes
conteúdos ilícitos, quase ao nível do senso comum.

No direito penal secundário, o cidadão que quer viver de acordo com o Direito não
conhece a norma se esta não lhe for indicada. O cidadão só pode apreender essas normas e
comportamentos se lhe for dado conhecimento. Por isso, neste direito fala-se de áreas
específicas que escapam ao senso comum.

Não é menos grave por ser secundário, os danos sociais destes ilícitos até podem ser
maiores do que os do direito penal clássico. Em ambos os casos estão em causa ilícitos
graves.
O que o direito penal secundário faz é adaptar as particulares características do setor
em causa: no plano substantivo (para permitir a maior adaptação e elasticidade que permita
consequentemente uma evolução) e no plano adjetivo/processual.

Falar-se-à, essencialmente, no Direito Público clássico.

33
Natureza Pública do Direito Penal e Contraposição com outros ramos de Direito

O Direito Penal é ramo de direito público, atendendo a qualquer dos critérios de


distinção de direito público e direito privado. Desde logo, atendendo à natureza dos
interesses em causa, ou seja, ao interesse coletivo pela proteção dos bens jurídicos
essenciais à convivência comunitária, mesmo quando intervêm para salvaguardar interesses
pessoais.

O Direito Penal tutela as normas de determinação que, por sua vez, tutelam esses
bens jurídicos, não os bens jurídicos em concreto.

● Critério dos interesses: O Direito Penal tutela interesses públicos que se


traduzem em bens jurídicos essenciais à convivência humana, à vida, ao
património, etc. O Direito Penal não tutela a vida da vítima de homicídio, mas
a vida em geral.

Atendendo à estrutura da relação jurídico-penal/critério da posição relativa dos


sujeitos, no Direito Privado há relações paritárias, o Estado intervém despido de ius
imperium. Nas relações jurídico-penais o Estado surge vestido do seu ius imperium e como
titular do monopólio da justiça, logo, é parte do Direito Público – não há uma relação
simétrica/paritária, mas sim uma relação assimétrica, o Estado intervém numa posição de
supremacia. Assim sendo, o Direito Penal é Direito Público.

Figueiredo Dias: “Porventura em nenhuma outra disciplina jurídica como nesta


surgirá uma tão nítida relação de supra/infra-ordenação entre o Estado soberano, dotado
de ius puniendi, e o particular submetido ao império daquele.”

Interessa fazer um contraponto com os vários ramos do Direito em concreto:

Direito Penal vs. Direito Constitucional

Direito Constitucional - Todos os ramos de direito ordinário estão sujeitos ao Direito


Constitucional, por isso, as normas de direito ordinário têm de ser conforme à CRP sob pena
de serem nulas ou inexistentes. Mas não se pode confundir o objeto do Direito Penal com o
do Direito Constitucional, assim, o Direito Penal tem uma função autónoma, de tutela dos
bens jurídicos essenciais à convivência comunitária, não havendo confusão possível.

O Direito Constitucional é um referente do Direito Penal, mas não elimina a sua


autonomia, apenas o guia. Dada a importância da matéria penal, o legislador dá força
constitucional a algumas normas de Direito Penal - constituição penal. Contudo, não há
confusão entre estes dois ramos, pois essas normas não deixam de ser normas penais.

34
Figueiredo Dias: “ De um ponto de vista material, o relacionamento entre o direito
constitucional e o direito penal constitui uma das questões mais complexas da disciplina.”

O Direito Penal tem finalidades próprias e o Direito Constitucional será para ele um
referente - Arts. 27º e seguintes da CRP: chamados a constituição penal, são formalmente
constitucionais, mas são, de facto, normas penais.

Direito Penal vs. Direito Privado

É mais fácil de se comparar porque se fala das duas funções da ordem jurídica:
conformação/ordenação e proteção/garantia.

Direito Privado em sentido geral (função de conformação/ordenação) - Delimita a


esfera de liberdade de cada cidadão. Essa delimitação é feita por normas de valoração que
se limitam a descrever essa situação de repartição de direitos, ónus e deveres, de acordo
com a justiça distributiva.

O ilícito e o desvalor do resultado só existe se alguém está a receber mais ou menos


do que merece à luz da justiça distributiva por mais censurável que seja a conduta. A sanção
visa a reposição da situação anterior (espécie ou equivalente pecuniário). Se não afeta em
nada a esfera de outra pessoa, é indiferente para o direito civil, em particular. Quando não
há ação propriamente dita, a intenção é indiferente para o direito civil, o que não acontece
no Direito Penal.

O Direito Penal olha para o futuro, tem uma função de proteção/garantia, na medida
em que a ordem merece tutela, por isso, sempre que haja lesão de um bem jurídico
essencial, então o Direito Penal intervém sem finalidade de compensar o dano, mas sim de
prevenir para o futuro.

Direito Penal vs. Direito Administrativo

Também se pode fazer esta contraposição com direito administrativo em geral, que
embora direito público, também intervém na ordem de justiça distributiva (ex.: ideia do
rendimento garantido), como o Direito Privado.

As sanções refletem um desvalor de resultado e, sempre que existem, têm uma


função reparadora e não prospectiva, quer sempre a reposição da situação anterior à
infração, contrariamente ao Direito Penal.

Por isso, apesar da diferença entre direito administrativo e direito privado, no plano
da contraposição das disposições fundamentais em relação ao Direito Penal, as razões são as
mesmas. São ramos que se incluem na função de reparação, distinta do Direito Penal.

35
Levanta-se, finalmente, o problema de contrapor o Direito Penal a outros ramos do
direito que também se incluem na função de proteção/garantia - outros ramos do direito
sancionatório/direito punitivo:

Direito Disciplinar dos Funcionários Públicos

A administração pública cumpre funções muito relevantes, especialmente no Estado


democrático social. O bom funcionamento da administração é um corolário de um Estado
moderno, existe uma necessidade fundamental no estabelecimento de hierarquias e
disciplina, em nome da boa prossecução dos interesses públicos. Os funcionários públicos
estão obrigados ao cumprimento de determinados deveres, e quem os violar comete uma
infração disciplinar a que corresponde uma sanção. Ou seja, estabelecem-se ordens de
determinação para ordenar as condutas, estando em causa bens jurídicos importantes, mas
que se prendem com interesses internos da administração pública, que quando violadas
geram sanções.

Estas sanções têm uma função punitiva, predominantemente preventiva.

Tal como o Direito Penal, também as normas do direito disciplinar têm natureza de
determinação. Pretendem comandar a atuação dos funcionários públicos em ordem à
correta prossecução dos interesses públicos. A diferença entre o penal e o disciplinar está na
natureza dos bens jurídicos em causa. Neste caso, são bens jurídicos internos – disciplina,
competência, hierarquia; são bens jurídicos muito relevantes, com natureza pública, mas
que têm um relevo inferior aos bens jurídicos criminais. Esta diferença repercute-se na
modelação das condutas.

No que respeita à natureza sancionatória do direito disciplinar, esta é revelada pelo


facto do direito penal ser direito subsidiário do direito disciplinar – tudo o que não for
regulado pelo direito disciplinar, aplicar-se-á a lei penal e a lei processual penal.

Nestes termos, no Direito Penal há ainda um princípio de nullum crimen sine lege,
porque sendo as sanções mais graves há uma necessidade de precisão. No ilícito disciplinar
há o recurso a cláusulas gerais e conceitos indeterminados, que é impensável no Direito
Penal, devido a uma necessidade de adequação à atividade administrativa. As sanções são
também mais leves que no Direito Penal, mas podem afetar de forma gravosa a vida das
pessoas, daí haver sempre a possibilidade de recurso para os tribunais administrativos (a
mais grave é o afastamento compulsivo).

É importante reter que o ilícito disciplinar e penal são autónomos por isso podem
verificar-se em conjunto com sanções diferentes, mas pode acontecer que a infração penal
absorva o conteúdo da infração disciplinar com que é aplicada a norma penal e só se pode

36
avaliar à luz dos preceitos em causa e de acordo com o caso concreto – é a assunção penal.
Mas, em princípio, são domínios diferentes.

Direito de Mera Ordenação Social ou das Contraordenações

É um direito de criação recente, consolidado na Alemanha em 1950. Surgiu em


Portugal data de 1982 e a sua lei geral é o Decreto-lei 433/82 (Lei-Quadro das
Contraordenações).

O nosso Direito Penal atual não considera a divisão tripartida do código napoleónico
nem a divisão bipartida de inspiração brasileira, por isso, este direito surge com a função de
aliviar o campo do Direito Penal, de infrações, como as contravenções, que incluíam as
“bagatelas” penais, mas que não tinham dignidade penal, e que podiam ser acauteladas
através de sanções mais leves e menos gravosas. Isto porque apenas continham finalidades
organizatórias e funcionais – estacionamento, regras de tráfego, etc.; o que estava em causa
eram valores públicos importantes, mas que verdadeiramente eram bens jurídicos
instrumentais.

Daqui resultava uma intoxicação dos tribunais, no entanto, com a criação deste
Direito aliviou-se a carga dos tribunais. Este ramo tutela, então, a vida em sociedade, os
cidadãos. Assim, a diferença entre o Direito Penal e o Direito de Mera Ordenação Social está
na gravidade das infrações do bem jurídico - critério qualitativo (isto é, se é ou não
necessária a atuação do Direito Penal, porque ainda que o bem tenha dignidade penal, o
Direito Penal só pode atuar, baseando-se no critério da proporcionalidade, ou seja, se for
necessário).

Quanto ao processo, o direito de mera ordenação social ocorre em primeira linha


pela autoridade administrativa, ao contrário dos crimes que são julgados logo pelo poder
judicial. As infrações são contraordenações. A estas decisões administrativas cabe recurso,
mas para os tribunais comuns e não administrativos.

● A regra é de que em 1ª linha as contraordenações são apreciadas pela autoridade


administrativa – artigos 33º; 61º e 73º do DL 433/82.

O objetivo é o de prevenir a prática de futuros crimes, mas as sanções são, nestes


casos, menos graves. Por isso, a sanção deste direito chama-se coima.

● A coima é a sanção pecuniária deste direito;


● A multa é a sanção pecuniária do Direito Penal.

37
As coimas são predominantemente patrimoniais. As únicas sanções que estão
previstas a título principal são as pecuniárias, mas admite-se como sanção acessória outro
tipo de sanções.

● Sanção principal: pode ser aplicada autonomamente.


● Sanção acessória: só pode ser aplicada juntamente com uma sanção principal.

Em legislação extravagante, existem exemplos de coimas principais que não têm


natureza pecuniária, por exemplo, o caso da lei da droga: certas sanções deixam de se
aplicar se o agente se sujeitar a tratamento – esse tratamento é uma sanção não pecuniária.

Como direito sancionatório, o direito de ordenação está subordinado aos princípios


já referidos – artigo 1º e 10º do DL 433/82. A menor severidade das sanções permite
alguma elasticidade.

Em síntese, a inicial ideia e também o que autonomizava este direito do Direito Penal
era analisada em três vertentes:

1. Natureza pública e essencial dos bens jurídicos, mas relativos a aspetos


organizacionais e funcionais de mera ordenação social - interesses menos graves e
infrações quantitativos;
2. Sanções de menor gravidade (coimas) e nunca estaria em conta a privação de
liberdade (prisão), por isso, em geral teriam uma natureza pecuniária;
3. Quem decide as sanções a aplicar é a autoridade administrativa8, diferentemente do
Direito Penal em que as sanções são aplicadas pelos tribunais de acordo com o
princípio de juridicidade (art. 33.º do DL 433/82).

Finalmente, o direito de mera ordenação social nasceu como um propósito válido e


respeitável, mas tem existido perversões. Este direito está a transformar-se em fonte de
rendimento do Estado por ser um instrumento de fácil manejo pelos governos. Tornou-se,
nos dias de hoje, portador de sanções mais graves que as do Direito Penal.

● A coima pode ir até 1350 milhões de euros. No caso da lei da concorrência,


até aos 1780 milhões. Valores muito superiores às multas do Direito Penal
que vão até aos 30 milhões de euros. Ou merece essa pena e então é um
crime, ou não merece e é violação do princípio da proporcionalidade.
● Além disso, é a mesma autoridade administrativa que investiga, acusa e pune.

8
Há a possibilidade de impugnação judicial da decisão administrativa para os tribunais comuns, e também
estabelecida a possibilidade em relação às contraordenações mais graves para o tribunal da relação.

38
Título II - Teoria da Lei Penal

2.1. O Princípio da Legalidade em Direito Penal

● Nullum crimen, sine lege9.


● Nulla poena, sine lege10.
● Artigo 1.º nº1 e 2.º do CP e 29.º da CRP.

Seria inaceitável que uma norma jurídica penal afirmasse que o crime é toda a
conduta que violar os bens jurídicos essenciais. Assim, a delimitação do crime deve sempre
ser expressa da forma mais clara possível e é feita pelo princípio da legalidade.

Deste modo, o princípio da legalidade afirma que ninguém pode ser punido pela
prática de um crime a não ser que essa conduta praticada tenha sido previamente
estabelecida como punível por lei anterior e ninguém pode sofrer com uma pena a não ser
que essa pena esteja previamente estipulada em lei anterior e seja definida especificamente
para a conduta praticada.

Este enunciado não deriva do direito romano, pois este não reconhecia o princípio da
legalidade como se conhece hoje - deriva, sim, do Direito Penal moderno.

Também as medidas de segurança não podem ser aplicadas sem que os seus
pressupostos estejam definidos por lei anterior - daí a necessidade do nº2 do artigo 1º do
CP, como forma de evitar a possibilidade de o legislador ordinário perverter a aplicação das
leis, qualificando como medida de segurança aquilo que era uma pena.

Mas nem sempre foi assim, durante muito tempo, nomeadamente durante a vigência
do Código Penal de 1886, as normas relativas às medidas de segurança eram de aplicação
imediata e não se implicava a sua aplicação retroativa (porque é relativa a um estado de
perigosidade, pelo que aplicando-se imediatamente estava a aplicar-se a algo que era atual).
Mas os códigos modernos vêm estabelecer um regime próximo das penas para vincular a
segurança dos particulares próximo das burlas.

Desta forma, decidir o que é crime ou não é da soberania do povo e, por isso, deve
ser o órgão com representação do povo a tomar essas decisões – trata-se do poder
legislativo. No caso de Portugal, fala-se da Assembleia da República (art.165º al. b) da CRP).

● É ao poder legislativo que compete a qualificação dos atos como crimes e as


respetivas sanções.

9
Para haver crime, tem de existir uma lei anterior que estabeleça o ato como tal;
10
Para haver pena (sanção), tem de existir uma lei anterior que a estabeleça como consequência para
determinado crime.

39
Por estas razões, este princípio da legalidade é um limite ao ius puniendi estatal,
impedindo que o Leviatã do Estado persiga os privados – segurança dos particulares. Assim,
este princípio caracteriza-se na exigência de lei prévia, escrita, estrita e certa:

● Prévia – tem de existir lei anterior a qualificar crime, estabelecer pena e/ou os
pressupostos de medidas de segurança;
● Escrita – para afastar o costume (realidade fluída que não é fonte de direito em
Portugal) e os usos da definição de crime e pena; visa definir bens jurídicos essenciais
à convivência comunitária; A matéria penal é de competência reservada da
Assembleia da República pelo que deverão ser os representantes do povo com o
poder legislativo a fixar a matéria penal vigente e a prever os bens jurídicos
essenciais; o Governo pode legislar sobre matéria penal sob autorização legislativa
da Assembleia da República;
● Certa – no sentido de dever ser determinada pela mesma exigência de segurança e
certeza da aplicação do direito. Exige que esteja redigida em termos certos com
conteúdo determinado, que previamente à conduta do sujeito, este possa saber se a
conduta é lícita ou ilícita.

Não significa que o Direito Penal não possa contemplar conceitos indeterminados e
cláusulas gerais, porque pode, sob pena de a lei penal se tornar rapidamente obsoleta como
consequência de estar desatualizada. Mas é uma indeterminação que deve ser determinada,
ou seja, quando o legislador recorre a conceitos normativos, são conceitos indeterminados,
mas são determináveis sob conceitos objetivos.

Vetores do Princípio da Legalidade


Fala-se do princípio da legalidade, em alguns planos:

1. Plano da fonte (art. 165.º nº1 al. c)): necessidade de lei formal, dos parlamentos.
Restringe a competência criminal (legislar e aplicar a lei) à Assembleia da República,
o Governo só poderá legislar em matéria penal com autorização da AR.

Surge o problema das normas penais em branco, nas quais o legislador recorre a
institutos de outros ramos do Direito, que não estão sob reserva da AR e provêm de
diplomas que não são da AR – não se trata de uma violação do princípio da legalidade,
porque é o próprio legislador penal (AR) que chama a si esses institutos de outros ramos,
para que atuem no Direito Penal.

2. Plano da extensão das matérias penais: este princípio vale para todo o Direito Penal;
abrange toda a matéria da incriminação. Assim, a exigência de lei restrita à AR vale
tanto para as matérias desfavoráveis ao arguido como para as favoráveis (exclusão da
responsabilidade ou de atenuação da pena).

Há quem defenda que, em teoria, o princípio da legalidade estaria relacionado com a


proteção dos particulares frente ao Estado, portanto a exigência de legalidade só se exigiria

40
materialmente nas matérias de agravação de reações criminais. Já nas matérias favoráveis, o
problema do legislador ir além ou não já não se punha.

O professor Almeida Costa discorda, porque entende que este princípio deve
abranger tudo, desde logo para evitar confusões (ex.: a AR criminalizar e o Governo
descriminalizar). Atendendo ao carácter essencial do objeto de intervenção penal, toda a
matéria penal deve estar sujeita a reserva de lei.

3. Plano da determinabilidade: exigência de que a lei seja certa e precisa – certeza do


direito.

Os privados, perante a gravidade do Direito Penal, têm direito a saber o que está em
jogo, por isso as normas penais têm de ser claras e certas de forma a que os privados
possam evitar crimes e, consequentemente, evitar sanções - princípio de lealdade. Isto não
impede o uso de conceitos indeterminados e cláusulas gerais, desde que sejam objetivas e
claras.

Este princípio está consagrado no art. 29.º CRP e art. 1.º CP – a CRP contém em si
normas materialmente penais, devido à importância do Direito Penal, como já visto.

Artigo 29.º - Aplicação da lei criminal

1. Ninguém pode ser sentenciado criminalmente senão em virtude de lei anterior que
declare punível a ação ou a omissão, nem sofrer medida de segurança cujos
pressupostos não estejam fixados em lei anterior.
2. O disposto no número anterior não impede a punição, nos limites da lei interna, por
ação ou omissão que no momento da sua prática seja considerada criminosa
segundo os princípios gerais de direito internacional comummente reconhecidos.

(...)

Nº1: Princípio da legalidade, do crime, da pena e da medida de segurança - têm de


estar expressamente designadas em regime anterior.

Suscita o problema de que este princípio tem um fundamento exterior ao penal, o


fundamento constitucional que é o princípio da divisão de poderes que subjaz. Daí que
resulta da competência exclusiva da AR (a reserva) para legislar sobre Direito Penal. Desde
logo, a ideia de legalidade está ligada ao princípio da divisão de poderes como base do
sistema democrático.

Assim, subjazem finalidades internas do Direito Penal: prevenção geral e especial que
pressupõem que o crime e a pena estejam previstos em lei anterior, porque para prevenir é
necessário que a população esteja informada.

Nº2: Vem alargar o âmbito da criminalização aos chamados crimes dos direitos das
gentes (crimina iuris gentium), ou seja, condutas consideradas crimes pelo ius cogens, que

41
se consideram serem crimes contra a paz e a humanidade, que refletem valores e crimes
aceites universalmente aceitos e que são considerados universalmente como crimes contra
a humanidade (ex.: nazismo; caso Ruanda: crimes contra tutsis e hutus).

A ideia de que o direito internacional pode impor diretamente deveres de natureza


penal aos indivíduos consolidou-se a partir dos julgamentos de Nuremberga e de Tóquio.

Estes crimes estão previstos na lei portuguesa, mas nos países em que não estão
previstos podem e frequentemente levantam problemas.11

Artigo 1.º: - Princípio da legalidade

1. Só pode ser punido criminalmente o facto descrito e declarado passível de pena por
lei anterior ao momento da sua prática.
2. A medida de segurança só pode ser aplicada a estados de perigosidade cujos
pressupostos estejam fixados em lei anterior ao seu preenchimento.
3. Não é permitido o recurso à analogia para qualificar um facto como crime, definir um
estado de perigosidade ou determinar a pena ou medida de segurança que lhes
corresponde.

Nº1: princípio da legalidade dos crimes e princípio da legalidade das penas; é


necessária lei anterior;

Nº2: princípio da legalidade das medidas de segurança; de acordo com o regime do


velho código, a lei nova poder-se-ia aplicar; de acordo com o regime atual, a lei nova não se
pode aplicar, no sentido de proteger os privados da burla de etiquetas e da própria certeza e
segurança.

O princípio da legalidade repercute-se na interpretação da lei e na integração das


lacunas penais.

2.2. Interpretação da Lei Penal e a Integração de Lacunas


● Artigo 1.º nº3 do CP

O nº3 do artigo 1.º do CP admite qualquer modalidade de interpretação, isto porque


a interpretação deve ter o mínimo de correspondência na letra da lei, ao contrário da
integração de lacunas. Na integração de lacunas, a analogia tem duas modalidades:

11
O Direito Internacional Público (DIP), neste ponto, é a lei, por isso, mesmo que não esteja previsto na lei, será
de admitir como uma boa doutrina, não sendo então uma exceção ao princípio da legalidade porque todos
estes valores protegidos pela criminalização das condutas atentatórias contra a paz e humanidade assentam na
lei.

42
1. Legis – um determinado instituto não tem regulação, mas há um regime previsto na
lei que, por analogia, pode aplicar-se a esse instituto enquanto situação análoga,
depois de confirmada determinados pressupostos;
2. Iuris – não há regime, então o intérprete cria uma “norma” nova segundo o espírito
do sistema para regular a situação.

Nº3: Não se pode recorrer à analogia para colmatar as lacunas penais; não se pode
usar a analogia para aumentar a pena, dizer que um ato é crime, etc. – aplicação de penas,
de medidas de segurança, de agravantes (ou seja, matéria desfavorável ao arguido). Não se
aplica a analogia legis, nem a analogia iuris. Por outro lado, em matéria favorável ao
arguido, a analogia é aplicável.

As normas de interpretação e integração de lacunas, presentes no CC, que valem


para todo o Direito, também se aplicam inteiramente ao Direito Penal (exceto a analogia
iuris e a analogia legis, que não se aplica em matéria desfavorável ao arguido).

Ou seja, no Direito Penal, tanto o recurso à analogia legis ou iuris não pode funcionar
em matéria mais desfavorável ao arguido (in malem partem), isto é, em matéria de
agravação da pena ou declaração de pressupostos de declaração de perigosidade. Já em
matéria de exclusão de responsabilidade ou atenuação de responsabilidade, bem como a
exclusão da aplicação de pena é permitido, porque se o recurso à analogia se levar a algum
excesso do aplicador já não vai contra o arguido, mas a seu favor.

Ainda em relação à interpretação, suscita-se o problema da caracterização.

Que interpretação deve ser utilizada na lei penal?

Na interpretação teleológica a letra é o meio de acesso ao espírito da lei e deve


encontrar-se através da letra a razão da norma - a lei é o meio de acesso para o sentido da
norma. A interpretação da norma pode também ser:

● Declarativa;
● Restritiva;
● Extensiva.

Desde que atenda ao espírito da lei.

Resta compreender se a interpretação deve ser feita no sentido histórico, em que se


deve recuperar o sentido daquela norma no contexto histórico em que foi criada, ou
atualista, adaptando a norma às convenções sociais.

Ou ainda, no sentido objetivista, olhando as opções político-criminais, as concepções


de justiça, a inserção sistemática da própria norma no contexto global do diploma em
apreço, ou subjetivista, de acordo com o sentido do legislador.

43
Na opinião do Professor Almeida Costa, o intérprete deve fazer uma interpretação
teleológica, objetiva e atualista.

● Deve ser objetivista porque o direito não está parado no tempo, por isso, para se
realizar a justiça material no âmbito criminal, o próprio texto da norma deve
adequar-se à evolução e deve procurar a melhor solução para o caso;
● Atualista por uma questão de se adaptar aos critérios de valor da lei à evolução
social.

2.3. Aplicação da Lei Penal no Tempo


● Artigo 2.º nº1 do CP

O princípio da legalidade repercute-se noutro tema, que diz respeito à aplicação da


lei penal no tempo.

Isto conduz ao princípio geral da irretroatividade ou não retroatividade da lei penal


- princípio basilar do Direito Penal, que diz que qualquer conduta só pode ser crime em
virtude de lei anterior, ou seja, o crime deve ser regulado de acordo com a lei penal em vigor
à data da prática do ato.

Figueiredo Dias: “O problema da aplicação da lei no tempo é resolvido através das


normas chamadas de direito inter-temporal. Este direito como que se reduz, no âmbito
penal, ao princípio que traduz uma das consequências mais fundamentais do princípio da
legalidade: o da proibição de retroatividade em tudo quanto funcione “contra reum” ou “in
malem partem”. Através dele se satisfaz a exigência constitucional e legal de que só seja
punido o facto descrito e declarado passível de pena por lei anterior ao momento da prática
do facto.”

Princípio da não retroatividade – É a concretização do princípio da segurança dos


particulares. Se fosse possível aplicar uma lei retroativamente, abria-se a porta para que
certos grupos de pessoas fossem punidas à posteriori, quando no momento do facto tal ato
era lícito ou conforme ao direito.

Neste contexto, é no momento da prática do facto que o agente tem de saber se a


conduta é ilícita ou lícita.

Artigo 2.º - Aplicação no tempo

1. As penas e as medidas de segurança são determinadas pela lei vigente no momento


da prática do facto ou do preenchimento dos pressupostos de que dependem.
2. O facto punível segundo a lei vigente no momento da sua prática deixa de o ser se
uma lei nova o eliminar do número das infracções; neste caso, e se tiver havido
condenação, ainda que transitada em julgado, cessam a execução e os seus efeitos
penais.

44
3. Quando a lei valer para um determinado período de tempo, continua a ser punível o
facto praticado durante esse período.
4. Quando as disposições penais vigentes no momento da prática do facto punível
forem diferentes das estabelecidas em leis posteriores, é sempre aplicado o regime
que concretamente se mostrar mais favorável ao agente; se tiver havido condenação,
ainda que transitada em julgado, cessam a execução e os seus efeitos penais logo
que a parte da pena que se encontrar cumprida atinja o limite máximo da pena
prevista na lei posterior.

Existe, no entanto, um problema generalizado na determinação do momento exato


da prática do crime. Por exemplo, o senhor A dá um tiro no senhor B no dia 1 de janeiro,
mas o senhor B só faleceu 15 dias depois. Tendo em conta que durante os 15 dias pode
verificar-se uma sucessão de leis penais no tempo, considera-se o momento de conduta (do
tiro) ou o do resultado (da morte de B)?

O artigo 3.º do CP é o princípio regra que responde a estas situações, assim sendo, o
relevante será o momento em que o agente atua, ou devia ter atuado, independentemente
dos efeitos. Mas há exceções - retroatividade das leis de conteúdo mais favorável ao
arguido.

Artigo 3.º - Momento da prática do facto

O facto considera-se praticado no momento em que o agente atuou ou, no caso de


omissão, deveria ter atuado, independentemente do momento em que o resultado típico se
tenha produzido.

Se o legislador entende que os interesses em questão podem ser salvaguardados por


um regime menos severo, não faria sentido aplicar a lei anterior, que consagra uma sanção
mais severa.

● Lei concretamente mais favorável – se há uma lei nova, e em princípio melhor, não
faz sentido continuar a aplicar a lei do momento na prática, então aplica-se a lei
concretamente mais favorável.

A lei resolve o problema do artigo 3.º ao estabelecer um critério bilateral: é no


momento da conduta que o agente deve saber se a sua conduta é lícita ou ilícita, sendo na
base da lei em vigor ao momento da conduta que o agente faz (ou não) as suas previsões e
deve saber as consequências das suas ações. Há sempre um fator de aleatoriedade para
com o momento da prática do crime, por esse motivo, a lei deve ser concretamente mais
favorável não num sentido abstrato, mas em concreto, isto é, à priori pode parecer que a lei
menos favorável é a mais favorável e vice versa, o que, consequentemente, significa que
para se saber qual é a lei mais favorável, o juiz tem de fazer dois julgamentos:

(1) Julgar à luz da lei da prática do ato;

45
(2) Julgar à luz da lei nova.

E desencadear todos os mecanismos e, em função do resultado em concreto,


comparar.

Exemplo:
○ Lei do momento da prática do facto - pena de 2 a 6 anos de prisão;
○ Momento do julgamento - pena de 6 a 8 anos de prisão.

Parece que a 2ª é mais severa e, por isso, não se aplica retroativamente. Porém,
suponha-se que apesar de estabelecer em abstrato uma pena mais pesada, contempla uma
cláusula de exclusão de pena que não existia na 1ª. Neste caso a lei concretamente mais
favorável seria a segunda, caso se verificassem os pressupostos para efetivar a cláusula de
exclusão.

Em suma, as leis novas de conteúdo concretamente mais favorável aplicam-se


retroativamente. Aceita-se esta exceção porque se o legislador entendeu que a matéria não
tem integridade penal ou, se a determinada conduta continua a ser crime, a sua tutela é
mais leve, há uma mudança de juízos de valor que apontam no sentido de não se estar em
matéria penal ou estar em matéria penal, mas a tutela faz-se com punições mais leves, não
fazendo sentido a aplicação de medidas mais pesadas.

Neste contexto, a lei portuguesa estabelece regimes diversos para a aplicação


retroativa do Direito Penal com conteúdo concretamente mais favorável, consoante a lei
nova descriminalize ou despenalize.

● A lei posterior pode, então, ser mais favorável de uma destas duas maneiras: ou a
conduta que era crime deixa de ser crime ou consagra uma sanção mais
favorável/menos grave para o agente.

Descriminalização (o ato deixa de ser crime) – nº2 do art. 2º do CP – a lei vigente no


momento da prática do ato foi substituída por outra que elimina a respetiva conduta como
crime. Aplica-se retroativamente a lei nova, mesmo quando já se está perante uma
condenação transitada em julgado, a pena cessa imediatamente, assim como os efeitos da
sua culpa – descriminalização pura e simples.

Despenalização (a sanção diminui): nº4 do art.2º do CP – a gravidade da pena


diminuiu depois da prática do ato. Uma nova lei torna a pena menos severa. Este nº4 prevê
outra modalidade, a descriminalização que substitui o regime sancionatório penal (mais
severo), por um regime contraordenacional.

Sintetizando, existem três possibilidades que surgem da interpretação dos números 2


e 4 do artigo 2.º do CP, são elas:

46
1. Descriminalização total de um comportamento em toda a ordem jurídica (são raras,
ex.: interrupção voluntária da gravidez), aplica-se o nº2;
2. Descriminalização, traduzida na conversão de um crime penal para
contraordenação, aplica-se o nº4;
3. Despenalização, onde a ordem jurídica continua a considerar o ato crime, mas
define uma pena menos severa, aplica-se o nº4.

Artigo 2.º nº 4 (parte 2) do CP (após o ponto e vírgula, adicionada pela reforma de


2007): a redação originária tinha razões de ordem prática, mantendo a pena da lei anterior,
isto porque os tribunais não tinham capacidade para re-julgar todos os casos transitados em
julgado que, entretanto, pudessem ser alterados por uma lei nova. Atualmente, há respeito
pelo trânsito em julgado, sendo que o agente continua a cumprir a pena aplicada pela lei
velha, terminando a mesma no limite da pena determinada pela lei nova.

Por exemplo: Sr. A foi condenado a 5 anos por um respetivo crime com pena entre os
4 e 6 anos. Entretanto, saiu nova lei que baliza a pena do mesmo crime entre os 2 e os 4
anos. Quando o Sr. A tiver cumprido 4 anos de prisão, será libertado automaticamente.

Crimes Permanentes e Crimes Continuados

O problema do momento da prática do facto adquire contornos especiais quando se


fala de crimes permanentes/duradouros.

Os crimes permanentes são aqueles cuja execução é permanente, isto é, a sua


execução prolonga-se no tempo e, como o crime a cada momento que passa está a ser
executado e consumado, levanta-se a questão de saber qual seria a lei aplicável, uma vez
que durante a sua execução pode haver uma sucessão de leis no tempo.

Se a lei nova for mais favorável não há problema de identificação, a lei nova aplica-se.
O problema coloca-se quando a lei nova é mais severa.

Veja-se um exemplo: num sequestro de uma semana, temos uma constante


repetição do crime, ou seja, a execução do ato ocorre todos os dias. Ao 3º dia do sequestro
surge uma lei nova; se a lei nova for mais favorável, aplicamos essa (não há dúvidas,
seguimos o princípio de aplicação da lei mais favorável ao arguido). O problema releva
quando a lei nova é mais severa para o arguido.

A este propósito, a orientação que tem usado de alguma concordância da doutrina e


da jurisprudência (doutrina maioritária) é a de que sendo a lei nova mais severa, então não
se deve aplicar à primeira parte do crime que ainda está em execução. Assim sendo, o que
aconteceria era uma divisão do crime em partes:

(1) À primeira parte aplicar-se-ia a lei antiga (ao início do crime);

47
(2) Na segunda parte aplicar-se-ia a lei nova (à execução permanente do crime
que coincide com a sucessão das leis).

Esta solução que parece à primeira vista ser muito garantística, não o é porque
substitui um crime de sequestro por dois, o que resulta num concurso de crimes, que é
punido mais gravemente.

Também não parece ser possível seguir uma outra concessão que é a de se o crime
começar na vigência da lei velha que é mais favorável, então, por essa razão, o delinquente
tem o direito de ser julgado por uma lei só, neste caso, a lei em vigor no início do ato
(doutrina com pouco acolhimento).

Finalmente, na opinião do Professor Almeida Costa, a solução mais indicada seria


aplicar a lei nova, mesmo quando é mais severa. Isto explica-se pela assunção de que o
criminoso aceitou tacitamente a lei nova quando decidiu continuar a praticar o crime. Ou
seja, se o delinquente não queria ser punido com a lei nova, teria interrompido o sequestro
e libertado o cativo. No entanto, manteve a execução do sequestro, como que se
conformando com a lei nova. Por essa razão, deverá ser punido pela lei que estiver a vigorar
no momento final da execução do crime, quer seja esta mais favorável, quer seja menos
favorável.

Esta solução revela-se mais vantajosa, em comparação com a da doutrina


maioritária, para o arguido, uma vez que a aplicação cumulativa de dois crimes será sempre
mais severa que a de apenas um.

Este problema põe-se também para o crime continuado, que assenta numa hipótese
de concurso de crimes, assim, o agente praticou vários crimes e vai ser julgado apenas num
julgamento por esses crimes todos.

Isto porque o legislador, nos termos do artigo 30.º nº2 e 3 do CP, determinou que,
em certos casos de crimes, essa pluralidade de crimes vai ser tratada como um único crime
compilado que começa com um crime e termina com a consumação do último crime que
integra essa pluralidade.

Artigo 30.º - Concurso de crimes e crime continuado

1. O número de crimes determina-se pelo número de tipos de crime efetivamente


cometidos, ou pelo número de vezes que o mesmo tipo de crime for preenchido pela
conduta do agente.
2. Constitui um só crime continuado a realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de
vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico,
executada por forma essencialmente homogénea e no quadro da solicitação de uma
mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente.

48
3. O disposto no número anterior não abrange os crimes praticados contra bens
eminentemente pessoais.

Nestes casos, se a regra geral é a aplicação não retroativa da lei penal, importa saber
qual é o momento da prática do facto que se considera para efeitos da lei nova ou velha. A
regra geral é a do princípio da não retroatividade da lei penal. A determinação do tempus
delicti, do momento da prática do facto, é o critério unilateral que atende ao momento da
conduta e não ao momento do resultado. Como já visto, esta regra tem de abrir a exceção
da aplicação retroativa das leis penais de conteúdo concretamente mais favorável (artigo 2.º
do CP).

Importa ressalvar que o legislador equipara os crimes permanentes aos crimes


continuados. Isto prende-se com a habilidade do legislador fundir a pluralidade de crimes
num só, o que se prova favorável para o arguido. Assim, a doutrina (incluindo o Sr. Professor
Almeida Costa) aplica aos crimes permanentes as mesmas soluções que utiliza para os
crimes continuados.

Leis Intermédias

● Art. 2.º nº 4 do CP

A lei intermédia é uma lei que vigora entre o momento da prática do facto e o
momento do julgamento, sem, todavia, estar em vigor em nenhum dos dois momentos de
ação. Imagine-se o seguinte:

● L1: em vigor no momento da prática do facto;


● L2: em vigor na fase de instrução;
● L3: em vigor no julgamento em 1ª instância;
● L4: em vigor no momento da decisão final da sanção.

L2 e L3 são leis intermédias, que não estão em vigor nos momentos mais cruciais do
processo. Assim, para a determinação da lei aplicável, relevam as leis intermédias?

A doutrina diz que sim. O juiz deve “julgar” à luz das 4 leis e aplicar a lei mais
favorável, isto porque o arguido não tem culpa da demora do processo. Por isso, as leis
intermédias relevam para o efeito de determinação da sanção mais favorável na medida em
que a responsabilidade do momento de julgamento cair na vigência de outra lei não é
responsabilidade do arguido, que, por esse motivo, não deverá ficar prejudicado por essa
razão. Logo, todas as leis intermédias devem contar com vista à determinação da lei
concretamente mais favorável.

Leis Temporárias ou de Emergência


São leis temporárias ou de emergência as leis que foram criadas para vigorar num
curto espaço de tempo.

49
Regra geral, estão ligadas a situações de calamidade pública, pelo que as leis de
emergência, são regimes de exceção (ex.: crise, guerra, seca, fome ou pandemia).
Estabelecem regimes mais severos.

Nas leis temporárias, via de regra, o que o legislador faz é fixar nas disposições finais
o tempo de vigência dessas leis.

A lei de emergência suscita alguns problemas - esta lei é de prazo fixo e o processo
criminal é prolongado. Isto significa que os crimes ocorridos em tempo de vigência da lei de
emergência seriam julgados no fim dessa vigência, ou seja, em regime normal, que é mais
favorável. Os crimes ocorridos na crise em questão, aplicando-se a retroatividade das leis
mais favoráveis, nunca seriam julgados pela lei de emergência (porque a lei normal é sempre
mais favorável).

Por isso, a lei de emergência é ultrativa (nº3 do art.2º CP – ultratividade) e, então,


os crimes praticados na situação de crise, são julgados pela lei de emergência, mesmo que
esta já não esteja em vigor. Isto porque os crimes praticados nesse período de vigência são
considerados mais graves, por, precisamente, se estar numa situação de crise/emergência.

A redação do nº3 do art.2º do CP não é a melhor, tem falhas.

A retroatividade da lei favorável baseia-se na mudança de perceção do legislador –


isto não sucede, em regra, nas leis de emergência, porque as ações praticadas no período de
emergência continuam a ser consideradas mais gravosas (isto acontece na dicotomia lei
comum/lei de emergência), tanto que caso houvesse uma nova crise de semelhante
natureza o legislador aplicaria a mesma lei.

Nestes casos o legislador não muda de conceção, muda sim o regime em vigor (mas
essa mudança não ocorre porque o legislador considera o crime menos gravoso, mas sim
porque a situação que deu aso à lei de emergência terminou).

Por exemplo: considere-se que num período de crise temos, inicialmente a L1 e, mais
tarde, L1 é revogada por L2, no mesmo período de emergência.

● Pessoa A cometeu um crime ao abrigo da L1 e quando estava a ser julgado, estava


em vigor a L2, mais favorável ao arguido. Qual se aplica? Depende, teremos de
verificar os pressupostos que levaram à L2:
○ Se L2 surgiu após a mudança de conceção do legislador (ex.: recebeu críticas
pela sanção que determinou), que considerou que os interesses em questão
podiam ser salvaguardados por uma menor sanção, aplica-se L2.

○ Se L2 surgiu pela alteração das circunstâncias de facto do período de
emergência, então aplica-se L1, porque no momento da prática do ato L1
estava em vigor para responder à crise no seu estado atual (mais grave) e,
logo, o crime é considerado mais gravoso.

50
Entre duas leis de emergência só se aplica a lei mais favorável, somente quando essa
lei nova decorre de uma mudança de conceção do legislador.

Sintetizando:

Um crime praticado à luz de uma lei de emergência, será sempre julgado pela
mesma. Haverá aplicação retroativa da lei de emergência quando essa diminuição resultar
da alteração das conceções do legislador.

Alteração das conceções do legislador no que à natureza do crime concerne: Lei do cheque
e o crime de provisão de cheques

Contexto: Até 1990, o cheque sem provisão era considerado um crime que lesava a
“confiança pública no cheque”, sendo esse o bem jurídico que a sua criminalização visava
defender. No entanto, em 1990, o legislador muda a sua conceção e vem considerar o
cheque sem provisão uma burla especial. Esta alteração muda o bem jurídico que se visa
proteger, mas não altera o facto do mesmo crime continuar a ser punido, ou seja, não existe
qualquer tipo de vazio de punição, como alguns alegaram na altura.

Outros exemplos surgiram, como com o crime de violação (e outros de índole


sexual), onde antes se considerava um atentado aos bons costumes e depois, que se
mantém atualmente, passou a ser um atentado à liberdade de autodeterminação.

Concluindo, o facto de existir uma alteração do bem jurídico que se visa proteger não
significa que haja uma alteração do ilícito; nestas situações não há descriminalização e
neocriminalização – existe, sim, continuidade do ilícito.

2.4. Aplicação da Lei Penal no Espaço

Com a internalização da vida moderna e do próprio fenómeno da criminalidade, há


cada vez mais crimes cuja consumação e repercussões se estendem por vários Estados e
ordens jurídicas. Este género de criminalidade tende a ser mais perigosa que a criminalidade
considerada comum – veja-se o caso do tráfico de estupefacientes ou do terrorismo.

Coloca-se assim o problema: qual das ordens jurídicas envolvidas será competente
para regulamentar a situação concreta? Para responder a esta questão, há que determinar o
âmbito especial de aplicação de cada ordem jurídica.

Coloca-se, então, a questão: em relação a que factos, no plano espacial, devemos


aplicar o Direito Penal Português?

Esta problemática é abordada pelo Direito Penal Internacional, que diz respeito ao
direito interno, a cada uma das ordens jurídicas, designado pelo conjunto de normas que

51
caracterizam o âmbito espacial da aplicação da lei penal, presentes nos artigos 4.º a 7.º do
Código Penal (enquanto regras gerais).

O Direito Internacional Penal é o direito internacional público que versa sobre


matéria penal em termos internacionais e, por isso, abarca apenas as regras de aplicação
espacial da lei penal interna (ex.: Convenção sobre o combate ao terrorismo).

O Direito Internacional Penal conheceu desenvolvimentos de magnitude sem


precedentes, com a instituição dos Tribunais Internacionais Penais ad hoc para a antiga
Jugoslávia, e para o Ruanda, e com a aprovação do Estatuto de Roma (Tribunal Penal
Internacional).

Figueiredo Dias: “Trata-se de verdadeira aplicação, por órgãos internacionais ou


mesmo nacionais, de direito internacional penal, embora essa competência seja limitada ao
conhecimento de certos crimes.”

Assim, o Direito Penal Internacional tem um objeto muito mais específico que
abrange virtual e indistintamente todas as normas de Direito Internacional que versam sobre
matéria penal. Sem dever esquecer-se que o Direito Internacional Penal leva por vezes à
consagração de certas soluções no âmbito do Direito Penal Internacional, no que toca ao se
e ao como da competência estadual para conhecimento de certos crimes, nomeadamente
através da vinculação dos Estados em convenções internacionais sobre o assunto.

Figueiredo Dias: ” O Direito Penal já não é monopólio da legislação e da jurisdição


dos Estados.”

O sistema estadual de aplicação da lei penal no espaço baseia-se em diversos


princípios e num certo modelo da sua combinação:

Princípio da territorialidade12 - art. 4.º do CP , princípio fundamental, base desta


matéria - segundo o qual o Estado aplica o seu Direito Penal a todos os factos penalmente
relevantes que tenham ocorrido no seu território, com indiferença por quem ou contra
quem foram tais factos cometidos.

Princípios acessórios, subsidiários ou complementares - artigo 5.º CP:

12
Historicamente, este princípio conflituava com o princípio da personalidade do direito ou da nacionalidade,
que trazia consigo a ideia de que o estatuto jurídico da pessoa a acompanhava para onde quer que fosse. Desta
forma, o Direito Penal de um Estado aplicar-se-ia sempre aos seus nacionais, independentemente do lugar
onde o crime fosse cometido. Este princípio da nacionalidade do direito vigorou em vários momentos da
história, como é exemplo o da reconquista. No entanto, este princípio perdeu influência para o princípio da
territorialidade.

52
● Princípio da nacionalidade/personalidade jurídica - alíneas b) e e) - alarga a
competência do princípio basilar, já não competindo com este. Pode ser ativo ou
passivo.
● Princípio da defesa dos interesses nacionais - alínea a), segundo o qual o Estado
exerce o seu poder punitivo relativamente a factos dirigidos contra os seus interesses
nacionais específicos, sem consideração do autor que os cometeu ou do lugar em
que foram cometidos.
● Princípio da aplicação universal/universalidade - alíneas c) e d), que manda o Estado
punir todos os factos contra os quais se deva lutar a nível mundial ou que
internacionalmente ele tenha assumido a obrigação de punir, com indiferença pelo
lugar da comissão, pela nacionalidade do agente ou pela nacionalidade da vítima.
● Princípio da administração supletiva da justiça penal - introduzido pela revisão do
CP de 1998, através da alínea f), tem como intuito completar um vazio de previsão.

Princípio fundamental da territorialidade


O Direito Penal assume como princípio basilar de aplicação da sua lei penal no
espaço o já mencionado princípio da territorialidade e não o da nacionalidade, outrora
conflituante com este.

Figueiredo Dias: ”A generalidade dos sistemas legislativos penais dos nossos dias
assume como princípio basilar de aplicação da sua lei penal no espaço o princípio da
territorialidade, não o da nacionalidade. Pode afirmar-se que nesta preferência convergem
razões de índole interna e razões de índole externa ou, se quiser ser-se mais preciso, razões
próprias de direito penal e de política criminal, de um lado, razões de direito internacional e
de política estadual, do outro.”

A assunção do princípio da territorialidade como base do sistema de aplicação da lei


penal no espaço é a via que facilitará em maior medida a harmonia internacional, o respeito
pela não ingerência em assuntos de um Estado estrangeiro.

Se a aplicação espacial da lei penal nacional é rigorosamente demarcada sobre as


fronteiras de cada Estado, e se a generalidade dos Estados aceita este princípio, está então
descoberto o melhor caminho para que não se gerem conflitos internacionais – positivos ou
negativos – de competência interestadual.

Se a generalidade dos Estados aceitar o princípio-base da territorialidade, um Estado


que aceite o princípio pessoal ver-se-á a cada passo confrontado com aqueles conflitos e
com a acusação da respetiva ingerência. Deste modo, a importância deste princípio provém
da ideia de que o Direito Penal é a expressão de soberania do Estado que, como referido,
tem como limite o seu próprio território.

Assim sendo, é na sede do delito que mais vivamente se fazem sentir as


necessidades de punição e de cumprimento das suas finalidades, nomeadamente, de

53
prevenção geral positiva. É a comunidade onde o facto teve lugar que viu a sua paz jurídica
por ele perturbada e que exige, por isso, que a sua confiança no ordenamento jurídico e as
suas expectativas na vigência da norma sejam estabilizadas através da punição. A estas
razões (que poderiam chamar-se “substantivas”) acresce que o lugar do facto é também
aquele onde melhor se pode investigá-lo e fazer a sua prova (razão “processual”) e onde, por
conseguinte, existem mais fundadas expectativas de que possa obter-se uma decisão judicial
justa.

Além disso, importa perceber que se o Direito Penal pretende preservar os bens
jurídicos essenciais à convivência comunitária naquele concreto Estado, então, de acordo
com este ponto de vista, o que é praticado fora do território do Estado é, em princípio,
irrelevante.

Conclui-se que, de acordo com este princípio, a lei penal portuguesa é aplicada a
todos os factos praticados em território nacional, independentemente da nacionalidade
do agente ou da vítima.

Artigo 4.º - Aplicação no espaço: princípio geral

Salvo tratado ou convenção internacional em contrário, a lei penal portuguesa é


aplicável a factos praticados:
a) Em território português, seja qual for a nacionalidade do agente; ou
b) A bordo de navios ou aeronaves portugueses.

Alínea a): entende-se como território português: o território terrestre, o território


fluvial, o território marítimo, e ainda o espaço aéreo a estes correspondentes.

A exceção é dos navios em alto mar e aviões no estrangeiro que também são
expansão do território português e, mesmo aí, aplica-se o Direito Penal português.

Contudo, por exemplo, em caso de avião estacionado em território francês, deve


dar-se preferência ao direito que fundamenta a sua competência no princípio da
territorialidade, por isso deve ser aplicado o francês. No máximo há conflito positivo, por
isso a exceção só se aplica quando se fala em alto mar ou em espaço aéreo.

Alínea b): alarga o critério da territorialidade através do critério do pavilhão. Este


critério foi ampliado pelo Decreto-Lei nº 254/2003, de 18 de outubro, sendo que a maior
amplitude espacial dada à aplicação do direito penal teve como objetivo evitar conflitos
negativos de competência.

Assim, salvo tratado ou convenção internacional em contrário, a lei portuguesa é


aplicável às infrações previstas nos artigos 4.º e 5.º quando cometidas:

● A bordo de aeronave alugada, com ou sem tripulação, a um operador que tenha a


sua sede em território português;

54
● A bordo de aeronave civil registada noutro Estado, em voo comercial fora do espaço
aéreo nacional, se o local de aterragem seguinte for em território português e o
comandante da aeronave entregar o presumível infrator às autoridades portuguesas
competentes.

Assim, é punido com a pena aplicável ao respectivo crime quem, a bordo de uma
aeronave civil em voo comercial, praticar uma série de crimes; quem, a bordo de uma
aeronave civil em voo comercial, desobedecer a ordem ou instrução legítima destinada a
garantir a segurança, a boa ordem e a disciplina a bordo, dada pelo comandante da
aeronave ou por qualquer membro da tripulação em seu nome; ou quem, a bordo de uma
aeronave civil em voo comercial, difundir informações falsas sobre o voo.

Isto porque, ao perceber que este princípio alarga o mundo de hipóteses,


compreende-se que pode levar a conflitos positivos, o que é claramente solucionável - se
alguém foi condenado por um crime no estrangeiro não pode ser condenado por esse
mesmo crime noutro Estado -, por outro lado, não dá resposta aos conflitos negativos e
consequente impunidade do criminoso, por isso é preferível alargar o âmbito de atuação.

Torna-se assim indispensável determinar, por um lado, o que é “território português”


e, por outro, qual o locus delicti - dizer qual o lugar onde um facto é praticado. A primeira
questão é do âmbito do direito constitucional – artigo 5º CRP, por isso apenas se falará da
segunda.

Problema da sede do delito


● Artigo 7.º do CP

Este é um problema que respeita à determinação do critério que preside à definição


do lugar da prática do crime13.

Nestes termos, para determinação do locus ou sedes delicti rege o artigo 7.º, onde o
legislador, diferentemente do que sucede com a determinação do tempus delicti (legislador
optou pelo critério da conduta em desfavor do do resultado), cumulou os dois critérios no
sentido daquilo que doutrinalmente corre como solução mista ou bilateral. Desta forma,
considera-se competente para regular um crime face a uma conduta praticada ou a
resultado verificado em território português. O mesmo é dizer que considera que o crime foi
praticado em Portugal quer se tenha verificado aqui a conduta (ato central ou não) ou o
resultado. Ao falar de conduta, não se refere apenas ao ato central do delito, mas também a
qualquer ato de comparticipação.

Artigo 7.º - Lugar da prática do facto

13
Paralelo ao problema de definir qual o momento relevante para a aplicação da lei no tempo.

55
1. O facto considera-se praticado tanto no lugar em que, total ou parcialmente, e sob
qualquer forma de comparticipação, o agente actuou, ou, no caso de omissão, devia
ter actuado, como naquele em que o resultado típico ou o resultado não
compreendido no tipo de crime se tiver produzido.
2. No caso de tentativa, o facto considera-se igualmente praticado no lugar em que, de
acordo com a representação do agente, o resultado se deveria ter produzido.

Nº1: Critério bilateral suprarreferido. Trata-se de evitar conflitos negativos de


competências e vazios de punição.

Nº2: Nos casos de tentativa, se o projeto do agente era consumar o crime em


território português, ainda que a tentativa tenha ocorrido no estrangeiro, isso tem
relevância, ou seja, se estava planeado que o resultado se tivesse produzido em Portugal,
mesmo que este não tenha acontecido, o facto considera-se praticado.

Exemplo:

● Se A estiver em Elvas do lado português, e a vítima, B, estiver no lado espanhol.


● A dispara e mata B.

Se Portugal seguisse o critério unilateral do resultado, então a lei portuguesa era


incompetente e se Espanha seguisse o critério da conduta era também incompetente. Para
evitar isso, consideram-se os dois critérios.

Se for crime de perigo não é preciso verificação de dano para consumar o crime, mas
ao crime pode seguir-se o dano, daí que a lei portuguesa diga que, estando em causa o
crime de perigo e se o perigo projetado estiver em causa o dano em Portugal, então esse
resultado conta para a concretização do dano do crime e fundamenta a competência da lei
portuguesa.

Além disso, o legislador diz que a conduta pode ser parcial ou total e quanto ao
resultado, este pode ser útil ou não, mas no caso de tentativa o lugar conta como o
resultado onde teria sido produzido.

Em suma, a regra é de que a lei penal portuguesa se aplica a todos os crimes


praticados em Portugal, independentemente da nacionalidade do criminoso. No entanto,
existem casos em que a competência da lei penal portuguesa se estende a casos praticados
fora do território português. Os requisitos estão enunciados no artigo 5.º onde o legislador
enuncia os já vistos princípios subsidiários ou complementares do princípio da
territorialidade, que admitem a extensão da competência da lei penal portuguesa a factos
praticados no estrangeiro.

Princípio da defesa dos interesses nacionais

● Artigo 5.º nº1 al. a) do CP

56
Existem interesses que são específicos do Estado português e que, por isso,
independentemente do lugar em que crime teve lugar, a lei penal portuguesa não reconhece
competência superior à sua. Assim, mesmo que o crime tenha sido praticado no estrangeiro,
a lei penal portuguesa considera-se competente.

Princípio da nacionalidade
● Artigo 5.º nº1 al. b) e e) do CP

A complementaridade do princípio da nacionalidade relativamente ao da


territorialidade logo significa que não se pretende, por meio dele, obviar a todo e qualquer
crime que possa ser cometido por um português fora do seu país. Apenas se reconhece
existirem casos perante os quais, se tudo repousasse no princípio português da
territorialidade, poderiam abrir-se novas lacunas de punibilidade indesejáveis para uma
política criminal internacional concertada e eficiente. E isto porque existe uma máxima
aceite pelo direito internacional: da não extradição de cidadãos nacionais.

Se não os extradita, então os princípios da convivência internacional devem conduzir


a que, uma vez que eles se encontrem de novo no país da nacionalidade, o Estado nacional
os puna: o Estado ou extradita (entrega) ou quando não extradita, pune (julga).

Duas modalidades:

1. Princípio da personalidade ativa: atende à nacionalidade do agente ativo do crime. O


agente é um português.
2. Princípio da personalidade passiva: atende à parte passiva do crime, ou seja, à
vítima, ao ofendido. Aplicação da lei penal portuguesa a factos cometidos no
estrangeiro por estrangeiros contra portugueses.

Há casos em que se verifica simultaneamente ativa e passiva quando crime é


praticado no exterior mas, só por acaso o crime foi no exterior, porque o agente e interesses
são portugueses, por isso estende-se excecionalmente a competência da lei portuguesa.

Artigo 5.º nº1 als. b) e e) - Factos praticados fora do território português

1. Salvo tratado ou convenção internacional em contrário, a lei penal portuguesa é


ainda aplicável a factos cometidos fora do território nacional:

b) Contra portugueses, por portugueses que viverem habitualmente em Portugal ao


tempo da sua prática e aqui forem encontrados;

e) Por portugueses, ou por estrangeiros contra portugueses, sempre que:

i) Os agentes forem encontrados em Portugal;

57
ii) Forem também puníveis pela legislação do lugar em que tiverem sido praticados,
salvo quando nesse lugar não se exercer poder punitivo;

iii) Constituírem crime que admita extradição e esta não possa ser concedida ou seja
decidida a não entrega do agente em execução de mandado de detenção europeu ou
de outro instrumento de cooperação internacional que vincule o Estado Português.

De acordo com este artigo, a lei penal portuguesa é aplicável a factos cometidos fora
do território nacional por portugueses (princípio da personalidade ativa) ou por estrangeiros
contra portugueses (princípio da personalidade passiva), sob uma tríplice condição
(requisitos cumulativos):

1. De os agentes serem encontrados em Portugal;


2. De tais factos serem puníveis tanto pela legislação do lugar em que tiverem sido
praticados, salvo quando nesse lugar se não exercer poder punitivo, como pela
legislação portuguesa;
3. De constituírem crime que admita extradição e esta não possa ser concedida.

No que respeita a extradição ainda existem alguns limites, ou seja, outros requisitos:

a. Requisitos processuais, relacionados com as adequadas garantias de defesa, a


inexistência de pena de morte e de prisão perpétua no país onde a extradição será
feita que são sanções inadmissíveis no quadro do repseito da dignidade humana, por
isso, são consideradas igualmente inadmissíveis à luz da lei portuguesa. Deste modo,
o processo penal do Estado que pede a extradição deve conter as garantias do
indivíduo, deve ser um processo conforme ao Estado de direito.
b. Os nacionais não serão extraditados (artigo 33.º da CRP) – muito relevante para os
Direitos Continentais embora sem relevância para os Direitos Anglosaxónicos, pois
nos sistemas continentais era interdita em absoluto a extradição, ao contrário da
regra dos direitos anglo-saxónicos que a permitiam como regra geral.

Portugal admite a extradição de nacionais apenas em dois casos: terrorismo ou


organizações criminosas internacionais. - artigo 33.º nº3.

c. Há crimes que não admitem a extradição, atendendo à sua natureza própria –


crimes especificamente políticos (e não apenas cometidos por motivos políticos) e
crimes militares porque estão excluídos da cooperação internacional. Contudo,
quando o agente for estrangeiro admite-se a extradição.

Este princípio nas suas duas vertentes é chamado a produzir efeitos mais largos do
que acontece no âmbito do princípio geral da nacionalidade da alínea e).

58
Princípio do registo

● Artigo 5.º nº1 al. g) do CP

Nesta alínea consagra-se um princípio equivalente ao princípio da nacionalidade


ativa e passiva, para as pessoas coletivas. Nestes termos e fazendo remissão ao artigo 11.º
do CP, admite-se responsabilidade penal de pessoas coletivas.

A nacionalidade da pessoa coletiva é a nacionalidade do país em que está


registada.

Este princípio é equivalente ao princípio da nacionalidade, pelo que só intervém


quando outros princípios de valor superior não se sobrepuseram. Apenas ocupa o lugar que
o princípio da nacionalidade da alínea e) ocupa para pessoas singulares.

Princípio da universalidade ou da aplicação universal

● Artigo 5.º nº1 als. c) e d) do CP

Este princípio visa permitir a aplicação da lei penal portuguesa a factos cometidos no
estrangeiro que atentem contra bens jurídicos carecidos de proteção internacional ou que,
de todo o modo, o Estado português se obrigou internacionalmente a proteger.

O princípio deve valer independentemente da locus ou sedes delicti e da


nacionalidade do agente.

Trata-se do reconhecimento do caráter supranacional de certos bens jurídicos e que,


por conseguinte, apelam para a sua proteção a nível mundial. Assim, é o princípio que
contempla os crimes contra a paz e a humanidade, que atentam contra valores essenciais a
toda a comunidade. Onde quer que estes crimes fossem praticados, toda a humanidade era
afetada, como por exemplo, o genocídio, a escravidão, o terrorismo em geral, tráfico de
pessoas, narcotráfico, etc.

Deste modo, aponta Jescheck como fundamentos do princípio, a solidariedade do


mundo cultural face ao delito e a luta contra a delinquência internacional perigosa.

Estava previsto nas alíneas c) e d) do nº1 do artigo 5.º, mas perdeu o seu carácter
originário e passou a adquirir um sentido funcional, na medida em que passou a incluir
crimes que, por razões político-criminais, a comunidade internacional entendeu que se
justifica uma cooperação internacional.

Artigo 5.º nº1 als. c) e d) - Factos praticados fora do território português

Salvo tratado ou convenção internacional em contrário, a lei penal portuguesa é


ainda aplicável a factos cometidos fora do território nacional:

59
c) Quando constituírem os crimes previstos nos artigos 144.º-A, 144.º-B, 154.º-B e
154.º-C, 159.º a 161.º, 278.º a 280.º, 335.º, 372.º a 374.º, desde que o agente seja
encontrado em Portugal e não possa ser extraditado ou entregue em resultado de execução
de mandado de detenção europeu ou de outro instrumento de cooperação internacional que
vincule o Estado Português;

Estes crimes estão incluídos no princípio da universalidade no sentido tradicional.


Dos artigos elencados nesta alínea, os artigos 335.º, 372.º e 374.º já não estão incluídos no
sentido tradicional, tendo havido, então alargamento da competência deste artigo a estes
crimes.

d) Quando constituírem os crimes previstos nos artigos 171.º, 172.º, 174.º, 175.º e
176.º a 176.º-B e, sendo a vítima menor, os crimes previstos nos artigos 144.º, 163.º e 164.º:

i) Desde que o agente seja encontrado em Portugal e não possa ser extraditado ou
entregue em resultado de execução de mandado de detenção europeu ou de outro
instrumento de cooperação internacional que vincule o Estado Português; ou

ii) Quando cometidos por portugueses ou por quem resida habitualmente em


Portugal; ou

iii) Contra menor que resida habitualmente em Portugal;

Nesta alínea fala-se de um alargamento em sentido tradicional do princípio da


aplicação universal a crimes contra crianças, como a pedofilia (artigos 171.º, 174.º, 163.º e
164.º).

Aqui o legislador introduziu uma novidade em 2021: acrescentou três alíneas que
não são cumulativas, são alternativas, que dizem que a lei penal portuguesa é competente
para se aplicar a estes crimes ou quando cometidos por portugueses (nacionalidade ativa)
ou residentes em Portugal (critério da residência) ou ainda contra menor que resida em
Portugal.

Nota-se ter sido resultado de pressão internacional de enxertar na alínea d)


sobretudo estes últimos requisitos, porque esta matéria devia considerar-se
autonomamente do critério de nacionalidade.

Princípio da administração supletiva da justiça penal


● Artigo 5.º nº1 al. f)
● Princípio de influência da lei alemã
● Visa completar um vazio de previsão

Não se trata de mais um princípio de conexão do poder punitivo do Estado nacional


com o crime cometido. Do que verdadeiramente se trata – e, por isso, se fala com particular

60
razão da supletividade na administração da justiça - é da atuação do juiz nacional em vez ou
em lugar do juiz estrangeiro, não deixando de aplicar a ordem jurídico-penal nacional.

O objetivo é fazer com que Portugal não incorra no risco de se tornar num
“valhacouto de criminosos estrangeiros”, de acordo com o Doutor Figueiredo Dias. Isto
porque este princípio, consagrado no artigo 5.º nº1 al. f), apenas foi introduzido na revisão
de 1998. Até então, podia suceder que um cidadão estrangeiro, tendo praticado um crime,
normalmente grave, no estrangeiro, viesse buscar refúgio a Portugal, onde, por um lado, não
podia ser julgado, dada a ausência de uma conexão relevante com a lei portuguesa, e de
onde, por outro lado, não podia ser extraditado, dadas as proibições de extraditar em
função da gravidade da consequência jurídica impostas pelo sistema nacional.

Por exemplo, um assalto a um comboio correio no Reino Unido em que o “cérebro da


operação” fugiu para Portugal. Este sujeito não podia ser extraditado uma vez que não havia
tratado de extradição entre Portugal e o Reino Unido e, para além disso, Portugal não o
podia punir por causa do princípio da territorialidade, já que o crime foi praticado no Reino
Unido.

Não se aplicava o princípio da defesa dos interesses nacionais, porque nenhum


interesse de Portugal estaria em causa. Não se aplicava o princípio da nacionalidade, porque
nem o agente, nem a vítima em causa eram portugueses. Também não se aplicava o
princípio da universalidade, porque não é um crime contra a humanidade, contra a paz.

Casos em que o crime foi praticado no estrangeiro e os agentes e vítimas são


estrangeiros, não estão em causa interesses nacionais nem interesses universais, e não é
possível a extradição, neste caso, se isto ocorresse em Portugal, aplicar-se-ia o direito penal
português, para se combater conflitos negativos de competência.

Hierarquia dos princípios

Enunciados os princípios subsidiários e a regra geral, convirá proceder a uma


hierarquização dos mesmos, que poderá ser útil a nível prático:

São princípios que traduzem uma diferente relação, um diferente vínculo entre o
crime e a legislação portuguesa.

Esta hierarquização dos princípios surge no âmbito da preocupação que o legislador


tem de que não haja vazios de previsão e, portanto, alargam-se estes princípios ao máximo
para que estes não aconteçam. Disto decorre que, às vezes, surgem sobreposições.

61
Limites da aplicação da lei penal portuguesa no espaço e o problema dos efeitos
negativos das sentenças estrangeiras

A preocupação de evitar conflitos negativos de competência, isto é, de evitar os


vazios de punição, pode levar a conflitos positivos de competência, em que ambos os
Estados se consideram competentes.

Assim, elencados os casos onde existe competência da lei portuguesa para regular
determinado crime, importa também ressaltar as situações em que, apesar da lei
portuguesa ser competente, não será aplicada. Estas situações encontram-se expostas no
artigo 6.º do CP.

Ao falar do afastamento da aplicação da lei penal portuguesa no espaço, fala-se


também dos efeitos negativos das sentenças estrangeiras. Isto porque os Estados,
excecionando o fenómeno da extradição, sempre foram avessos à cooperação internacional
e reconhecimento de valor jurídico às sentenças estrangeiras, uma vez que a sentença
estrangeira representa o valor de soberania estrangeira, ou seja, ao aplicar sentença
estrangeira, está a reconhecer-se um valor superior à sentença estrangeira
comparativamente à nacional. Mas os Estados foram obrigados a reconhecer-lhes valor, até
no seguimento de uma sequência de convenções a nível da UE.

Por isso, há situações em que a lei penal portuguesa é competente, mas a nossa
própria lei exclui a possibilidade de o caso ser julgado em Portugal, sendo que isso está

62
ligado ao problema da cooperação internacional em matéria penal supramencionado. Com
este problema os Estados foram obrigados a cooperar internacionalmente, havendo várias
convenções nesse sentido, como, por exemplo, a Convenção sobre a Extradição de 1957 e a
Convenção de 1959, que contemplava efeitos negativos da sentença estrangeira.

A Convenção do Conselho de Europa de 1959 vem reconhecer os efeitos negativos


das sentenças estrangeiras:

● Princípio do não duas vezes o mesmo (ne bis in idem): Se alguém foi julgado e
condenado e cumpriu a pena toda num Estado pela prática de um crime, não pode
ser condenado outra vez noutro Estado;
● Princípio do desconto: Se alguém foi julgado num Estado mas se furtou ao
cumprimento total ou parcial da pena pode voltar a ser julgado mas ao cumprimento
da pena retira-se o tempo já cumprido.

Por outro lado, já se reconheciam os efeitos positivos:

● Para efeito da reincidência;


● Para efeito da aplicação das medidas de segurança;
● Para efeitos das penas.

Mas interessam apenas os negativos.

Artigo 6.º - Restrições à aplicação da lei portuguesa

1. A aplicação da lei portuguesa a factos praticados fora do território nacional só tem


lugar quando o agente não tiver sido julgado no país da prática do facto ou se houver
subtraído ao cumprimento total ou parcial da condenação.
2. Embora seja aplicável a lei portuguesa, nos termos do número anterior, o facto é
julgado segundo a lei do país em que tiver sido praticado sempre que esta seja
concretamente mais favorável ao agente. A pena aplicável é convertida naquela que
lhe corresponder no sistema português, ou, não havendo correspondência directa,
naquela que a lei portuguesa previr para o facto.
3. O regime do número anterior não se aplica aos crimes previstos nas alíneas a) e b) do
n.º 1 do artigo anterior.

Nº1: Quando seja atribuída eficácia à sentença penal estrangeira.

Nos crimes que forem praticados fora do território português, sempre que tiver sido
condenado e cumprido a pena toda, o arguido não poderá voltar a ser julgado.

Em relação a factos praticados no estrangeiro, se o criminoso só tiver cumprido uma


parte ou nenhuma, então funciona o princípio do desconto, que admite que ele volte a ser
julgado, sendo subtraída à pena aplicada pelos tribunais portugueses a parte já cumprida.

63
Isto apenas para o caso em que não se fundamenta a competência da lei portuguesa no
princípio da territorialidade. Está relacionada à possibilidade de aplicação da lei penal
portuguesa a penas estrangeiras. Se tiver cumprido só parcialmente, vale ainda o artigo
82.º14.

No entanto, quando fundamentada no princípio da territorialidade, tendo sido


condenado no estrangeiro e cumprido totalmente ou parcialmente a pena, poderá ser
condenado outra vez. Isto acontece com base no princípio da igualdade (artigo 13.º CRP) - a
justiça penal tem como fundamento a soberania e para garantir a igualdade de todos
perante a lei penal portuguesa, todos os crimes praticados em Portugal devem ser julgados à
luz da lei penal portuguesa. Por isso, quando o crime foi praticado em território português,
ele será julgado por lei portuguesa pelo artigo 6.º nº1. Não se viola o princípio do ne bis in
idem porque a pena aplicada nunca será mais pesada.

Nº2: Pressuposto material. Quando preenchidos certos requisitos, os tribunais


portugueses julgarem o caso concreto com base em Direito Penal estrangeiro.

Restrições:

1. “nos termos do nº anterior” resulta que se exclui a possibilidade de aplicar lei penal
estrangeira quando a competência da lei penal portuguesa se fundar na
territorialidade, o que se compreende.
2. “lei do Estado em que tiver acontecido” lei estrangeira tem competência segundo
princípio da territorialidade.
3. “seja concretamente mais favorável ao agente”, o juiz tem de fazer dois julgamentos,
um para a lei portuguesa e outro para a lei estrangeira, desencadeando todos os
mecanismos possíveis.

Requisitos:

1. Portugal não pode aceitar competência de acordo com princípio da territorialidade;


2. A lei estrangeira tem que aceitar competência com princípio da territorialidade;
3. E a lei estrangeira tem que ser concretamente mais favorável.

Nº3:

1) São princípios da nacionalidade e da defesa dos interesses nacionais;


2) Combina nacionalidade ativa e passiva (agente e vítima portugueses) e ao tempo do
crime o agente deve viver em Portugal.

14
Remissão ao artigo 6.º, deve fazer-se uma leitura conjugada dos 2 artigos.

64
De uma forma sistemática, se quisermos enunciar os requisitos de que depende a
possibilidade de aplicação de Direito Penal estrangeiro por tribunais portugueses:

1) A lei penal portuguesa não pode ser competente com base no princípio da
territorialidade (artigo 6.º nº2);
2) Lei penal portuguesa também não pode ser competente na base dos princípios
nacionais (artigo 6.º nº3);
3) Também não pode ser competente com base na nacionalidade ativa e passiva (artigo
5.º nº1 al. b));
4) A lei estrangeira tem de fundar a sua competência no princípio territorialidade (do
lugar da prática do facto);
5) A lei estrangeira tem de ser concretamente mais favorável.

2.5. Aplicação da Lei Penal quanto às Pessoas

● Constituição da República Portuguesa

Atualmente, os autores partem da ideia da igualdade das pessoas perante a lei, nos
termos do artigo 13.º da CRP. Não se fala da justiça penal estratificada na Idade Média e
Moderna, mas sim da igualdade perante a lei fundada pelo princípio do Estado de Direito.

Foi com a revolução francesa que se lançaram as sementes da igualdade do cidadão


perante a lei. Nestes termos, fala-se de casos especiais que se passam no corpo diplomático
e consular, que não são julgados da mesma forma porque seria um Estado a pôr outro
Estado no banco do réu. Há, por isso, a expulsão por meios políticos. São regimes de
imunidade que se estendem. Trata-se de Direito Internacional Público, concretamente
direito diplomático, e não de Direito Penal.

Mais importante são as imunidades dos titulares de cargos políticos, que não põem
em causa a igualdade dos cidadãos perante a lei, apenas estabelecem especialidades que se
põem com a dignidade dos cargos.

Presidente da República

Artigo 130.º - Responsabilidade criminal

1. Por crimes praticados no exercício das suas funções, o Presidente da República


responde perante o Supremo Tribunal de Justiça.
2. A iniciativa do processo cabe à Assembleia da República, mediante proposta de um
quinto e deliberação aprovada por maioria de dois terços dos Deputados em
efectividade de funções.
3. A condenação implica a destituição do cargo e a impossibilidade de reeleição.

65
4. Por crimes estranhos ao exercício das suas funções, o Presidente da República
responde depois de findo o mandato perante os tribunais comuns.

Deputados

Artigo 157.º - Imunidades

1. Os Deputados não respondem civil, criminal ou disciplinarmente pelos votos e


opiniões que emitirem no exercício das suas funções.
2. Os Deputados não podem ser ouvidos como declarantes nem como arguidos sem
autorização da Assembleia, sendo obrigatória a decisão de autorização, no segundo
caso, quando houver fortes indícios de prática de crime doloso a que corresponda
pena de prisão cujo limite máximo seja superior a três anos.
3. Nenhum Deputado pode ser detido ou preso sem autorização da Assembleia, salvo
por crime doloso a que corresponda a pena de prisão referida no número anterior e
em flagrante delito.
4. Movido procedimento criminal contra algum Deputado, e acusado este
definitivamente, a Assembleia decidirá se o Deputado deve ou não ser suspenso para
efeito de seguimento do processo, sendo obrigatória a decisão de suspensão quando
se trate de crime do tipo referido nos números anteriores.

Não se tratam de exceções à igualdade, mas de manter a dignidade do órgão em


questão, preservar o prestígio e bom funcionamento das instâncias.

Membros do Governo

Artigo 196.º - Efetivação da responsabilidade criminal dos membros do Governo

1. Nenhum membro do Governo pode ser detido ou preso sem autorização da


Assembleia da República, salvo por crime doloso a que corresponda pena de prisão
cujo limite máximo seja superior a três anos e em flagrante delito.
2. Movido procedimento criminal contra algum membro do Governo, e acusado este
definitivamente, a Assembleia da República decidirá se o membro do Governo deve
ou não ser suspenso para efeito de seguimento do processo, sendo obrigatória a
decisão de suspensão quando se trate de crime do tipo referido no número anterior.

66
Título III - Teoria Geral do Crime ou do Delito

3.1. O significado metodológico da doutrina geral do crime. As grandes


construções dogmáticas da atualidade

Em voga do que foi supra mencionado, importa agora estudar as Teorias Gerais do
Crime com o intuito de decompor o conceito material de crime. Estas pretendem dar ao juiz
(decisor último em matéria penal) um caminho teórico para verificar se estamos realmente
perante um crime.

Aponta-se como núcleo do crime o desvalor da ação, que tem como norma de
determinação a estrutura do dever (não mates, não furtes, não roubes). Subjacente a cada
crime está uma norma de determinação num sentido imperativo que manda que os
cidadãos se abstenham de condutas atentatórias do bem jurídico. Mas como visto também,
há crimes que não envolvem lesão de um bem jurídico (crimes de perigo e tentativa em
geral).

Deste modo, o objetivo é decompor analiticamente o conceito material de crime –


conduta humana violadora de uma norma de determinação – dando-lhe pressupostos e
critérios fixos, numa ótica piramidal (do mais genérico para o mais específico, do exigente
para o mais exigente - os escalões avançam num tipo género-espécie).

Qual é o caminho de realização para chegarmos ao verdadeiro crime? A TGDCrime


prevê , então, os seguintes critérios:

● Ação;
● Tipicidade;
● Ilicitude;
● Culpa;
● Punibilidade.

Ou seja, o intuito é verificar se a conduta preenche estes requisitos de forma a


classificar-se como crime.

Esta teoria tem as suas virtualidades:

É sempre importante realçar a virtualidade das TGDCrimes, sendo um raciocínio


lógico, é, na generalidade dos cursos de Direito Penal, utilizado como um esquema
pedagógico, dada a sua utilidade para aprofundar o conceito material de crime e tornar
claro os elementos integradores do mesmo. Todavia, não é a sua função primordial.

A importância desta teoria vem no seu já referido valor como proposta metodológica
- caminho de realização do Direito Penal – para que o juiz perante os casos concretos, siga os

67
passos (ação, típica, ilícita, culposa e, para alguns autores, punível) da teoria geral do crime
para uma solução materialmente mais justa e segura, nomeadamente em sede de recurso.

Contribui, dessa forma, para a segurança e certeza jurídica, bem como para a justiça.

Além disso, até em sede de recurso, para o tribunal verificar a justiça da decisão
tomada, vai usar os mesmos passos que a 1ª instância, percebendo se se deveria ter
chegado a outra conclusão. Sendo, assim, um método coerente que protege o particular
através da certeza e segurança que pressupõe as TGDCrimes e consequentemente o Direito
Penal.

Pode-se falar-se das TGDCrimes em vários momentos históricos, mas em contexto de


aula só se atendeu à dogmática moderna, do século XX à atualidade.

Daqui, destacar-se-ão as três grandes construções da TGDCrime:

1. Teoria clássica: inspirado pelo positivismo naturalista (século XIX-XX).


2. Sistema neoclássico/normativista: de inspiração neokantiana.
3. Sistema finalista: ligado a um grande nome do direito penal, Hans Welzel.

O sistema que se tem hoje resulta de uma grande luta entre escolas:

● Sistema teleológico-racional: combina elementos dos três sistemas, é uma espécie


de communis opinio. No século XX havia dogmática, mas era diferente e não tinha
repercussão na doutrina. É uma evolução que se verificou na Alemanha e foi herdada
em Portugal, Espanha, Itália, Suíça e Áustria.

Na análise destes três sistemas tem-se em consideração que o conceito não vale por
si mas é uma reconstrução analítica, porque o conceito de crime vai ser o padrão crítico das
várias construções.

3.2. As grandes construções gerais do crime

Sistema Clássico - Positivista/Naturalista

Figueiredo Dias: “A conceção chamada clássica do facto punível assenta numa visão
do jurídico decisivamente influenciada, em perspetiva político criminal, pela Escola Moderna
Alemã e, de forma geral, pelo naturalismo positivista que caracterizou o monismo científico
próprio de todo o pensamento da segunda metade do séc. XIX. Também o Direito teria como
ideal a exatidão científica própria das ciências da natureza e a ele deveria
incondicionalmente submeter-se. Do mesmo modo, o sistema do facto punível haveria de ser
apenas constituído por realidades mensuráveis e empiricamente comprováveis,
pertencessem elas à facticidade (objetiva) do mundo exterior ou antes a processos psíquicos
internos (subjetivos).”

68
Influenciado pelo positivismo naturalista dos séculos XIX-XX.

Há dois vetores que influenciaram este sistema:

● Positivismo naturalista: o universo da razão prática para estes autores era uma
aparência. A conduta humana era condicionada (tal como qualquer fenómeno
natural) por condições endógenas e exógenas variáveis.

Cria-se, portanto, a crença de que todas as ciências humanas, inclusive o Direito


Penal, deviam funcionar do mesmo modo das naturais, fazendo-se revestir de conceitos
formalistas e descritivos desprovidos de valor axiológico – reportando-se a realidades
empíricas (factos empíricos, que se deveriam traduzir em conceitos descritivos e
axiologicamente neutrais).

● Positivismo jurídico: na base do princípio da divisão de poderes caberia ao


legislador/parlamento a definição da lei e ao juiz caberia apenas uma aplicação
automática dessa mesma lei. Funcionava através do silogismo judiciário e
defendia-se o carácter descritivo e formal dos conceitos jurídicos, pois só eles
permitiam controlar a liberdade do juiz e assegurar a “segurança dos particulares”.

Foi daqui que resultou a conformação deste sistema clássico, que dominou a
literatura/doutrina alemã até aos anos 20. Embora, a longo prazo, se tenha percebido que
este sistema é inadequado para expressar o sentido valorativo das ações criminais.

Seguindo os requisitos da TGDCrime supramencionados:

Ação Causal

Ação compreendida em termos causais. Este conceito é estritamente objetivo


porque não se considera o conteúdo da vontade, esta vontade é apenas o fator
desencadeador da modificação do mundo exterior e descritivo, isto é, cego a valores -
axiologicamente neutro. O que releva é a descrição fáctico-exterior da conduta.

Por outro lado, esta ação causal não pretendia explicar o crime omissivo (quando
alguém está vinculado ao dever jurídico de proteger x e não o faz, por exemplo, omissão de
auxílio), porque se todo o crime partia de uma ação causal, uma omissão fica de fora das
previsões normativas, uma vez que não se modificou o mundo exterior.

Em suma, o crime é toda a modificação do mundo exterior, causalmente ligada a


uma vontade e cega de valores:

● Estritamente objetiva;
● Vontade como motor do processo causal;
● Descritivo/axiologicamente neutra;
● Não se atende a aspetos valorativos.

69
Tipicidade/tipo

É preciso que a ação seja típica. Para ser crime é preciso que exista um tipo, isto é,
uma descrição de um concreto delito - tipo do furto, da burla, das ofensas à integridade
física, etc. Limitava-se a descrever as ações causais penalmente relevantes (de forma
objetiva e descritiva/axiologicamente neutral).

Isto revela diversos problemas, por exemplo: a lei que proíbe o golpe com uma faca a
outrem. A ação de um cirurgião e de um faquista seriam idênticas, dado que a intenção é
ignorada, em detrimento de uma “descrição puramente externo-objetiva da realização da
ação, completamente estranha a valores e a sentidos”, conforme Figueiredo Dias.

Revela-se, novamente, a inaptidão deste sistema. Nestes termos, outro exemplo


prático do problema da objetivação cega da conduta humana é por exemplo, o senhor A
empurrar o senhor B. O que é isto? Depende. Se este empurrão for a consequência de uma
intenção final de matar é tentativa de homicídio; se o objetivo final fosse violar, é tentativa
de violação, etc. Para determinar o próprio tipo em que a conduta se insere há uma
necessidade de se recorrer à subjetividade.

Não quer isto dizer que se confunda o ilícito com a culpa, porque se A dispara sobre
B, o sentido objetivo é o desvalor da norma de não disparar sobre outrem, mas há-que
considerar o sentido subjetivo que é, por exemplo, o facto de A ser inimputável. No plano do
ilícito típico valora-se o ato como ato humano em geral, ou seja, se A dispara sobre B é um
ilícito doloso, mas na questão de culpa é preciso perceber se se pode censurar o agente pelo
homicídio doloso (o senhor A, neste caso, era inimputável).

Conclui-se que a conduta humana é uma objetivação de uma subjetividade, não é


apenas objetiva. Na mera observação exterior, esquecendo a subjetividade, as tentativas
não seriam tidas em conta. Por isso, ao reconduzir o tipo do ilícito ao desvalor do resultado
não daria para explicar a tentativa, porque não haveria desvalor. Para demarcar o sentido
objetivo do ato, independentemente das características do agente, tem de se atender ao
sentido subjetivo - só se sabe se foi ofensa à integridade física ou tentativa de homicídio se
se atender ao sentido subjetivo.

Ilicitude ou antijuridicidade

A conduta típica descrita tem de ser ilícita, que significa contrariedade à ordem
jurídica, quando considerada na sua totalidade. É necessário um desvalor, aparente
elemento valorativo.

Note-se que nem todas as ações típicas são necessariamente ilícitas. Em


contraposição ao tipo justificador, existiria uma série de contratipos que, quando verificados,
se tornam causas de exclusão da ilicitude.

70
Assim, isto traduz-se na verificação de contratipos. Por exemplo, matar é ilícito, mas
não o é em legítima defesa. Ou seja, o juiz deveria procurar subsumir o facto concreto a um
determinado tipo incriminador, e analisar os contratipos de modo a aferir da existência ou
não de uma causa de exclusão da ilicitude. A valoração não era real, o juiz era convocado ao
método subsuntivo (seguindo o silogismo judiciário) – era um procedimento meramente
automático.

Os seus contratipos:

● Descritivos;
● Estritamente objetivos (não se atende à vontade do agente).

Exemplo: Arrufo entre senhor A e senhor B, vizinhos. Por vingança, o senhor A parte
a janela do senhor B. Porém, existia uma fuga de gás na casa de B e aquele acabou por salvar
este da morte. A intenção desta conduta era causar o dano, não era salvar a vida de B, por
isso o ato não é justificável. A conduta humana não é objetiva, a subjetividade e intenção
relevam no Direito Penal e, ainda que pudessem existir atenuantes, a conduta não seria
ignorada ou valorada positivamente só por ter, no fim, um resultado positivo.

Culpabilidade

Na medida em que partimos de uma conceção do ilícito e tipo puramente objetiva,


nestes planos não se considera a subjetividade do agente. A subjetividade só se consideraria
no momento da culpa.

● Culpa: conceito psicológico de culpa. Este conceito diz que a culpa é o nexo
psicológico que liga o agente ao seu facto. Só aqui, na última etapa da teoria, é que
entra a subjetividade do agente, sendo esta “suscetível de legitimar a imputação do
facto ao agente a título de dolo ou de negligência.”
○ Dolo - conhecimento e vontade de realização do facto;
○ Negligência - deficiente tensão de vontade impeditiva de prever
corretamente a realização do facto. Não há prática intencional, mas há
desvalor.

Esta distinção entre dolo e negligência resumia-se à contraposição de dois diferentes


nexos psicológicos, não intervindo quaisquer nexos valorativos, quando na realidade, o que
deve estar subjacente a esta distinção é uma hierarquia de desvalor.

Se a culpa se reduz ao nexo psicológico entre o agente e o seu facto, deixa de se fazer
distinção entre imputável e inimputável, é um conceito descritivo. Isto porque os
inimputáveis também agem dolosamente ou em negligência, mas não há culpa – a definição
de culpa é, neste sistema, erróneo.

71
Ainda há que considerar a inexigibilidade que descarta uma situação de culpa que
também não é tomada em conta neste sistema, por fatores exógenos ao sujeito. Por
exemplo, matar alguém para salvar a própria vida (legítima defesa). Diga-se, ainda, que
enquanto esta descarta a culpa por fatores exógenos, a inimputabilidade descarta com base
em fatores endógenos.

● Inimputabilidade: exclusão de culpa por fatores endógenos, internos do agente.


● Exigibilidade: exclusão de culpa, fatores exógenos, exteriores ao agente – exemplo
dos náufragos.

Existem ainda dois tipos de negligência:

1. Negligência consciente: está consciente dos riscos, mas decide avançar com o ato,
crente de que conseguirá evitar o perigo.
2. Negligência inconsciente: não representa o caráter perigoso da conduta e o agente
nem sequer antecipa o perigo.
a. O conceito psicológico de culpa não prevê a negligência inconsciente.

Em suma, e nas palavras do doutor Figueiredo Dias: “Esta conceção via na ação o
movimento corporal determinante de uma modificação do mundo exterior, ligada
causalmente à vontade do agente. Ação que se tornaria em ação típica sempre que fosse
lógico-formalmente subsumível num tipo legal de crime, isto é, numa descrição puramente
externo-objetiva da realização da ação, completamente estranha a valores e a sentidos.
Ação típica, por seu turno, que se tornaria em ilícita se no caso não interviesse uma causa de
justificação, é dizer, uma situação (legítima defesa, estado de necessidade, obediência
devida, etc.) que, a título excecional, tornasse a ação típica em ação lícita, aceite ou
permitida pelo direito; e que assim determinasse em definitivo a contrariedade da ação ao
ordenamento jurídico. E com isto ficaria perfeita a vertente objetiva do facto.”

“Quanto à vertente subjetiva do facto, ela concentrar-se-ia na categoria da culpa. A


ação típica e ilícita tornar-se-ia em ação culposa sempre que fosse possível comprovar a
existência, entre o agente (imputável, capaz de culpa) e o seu facto objetivo, de uma ligação
psicológica — daí esta doutrina ter ficado conhecida como conceção psicológica da culpa -
suscetível de legitimar a imputação do facto ao agente a título de dolo (conhecimento e
vontade de realização do facto) ou de negligência (deficiente tensão de vontade impeditiva
de prever corretamente a realização do facto). E com isto se teria logrado a apreensão
perfeita e completa do conceito de crime.”

Conclui-se que a maior crítica a este sistema é que este centra-se numa perspetiva
causalista e objetiva, não exprimindo o sentido valorativo das condutas jurídico-criminais,
desde logo porque o seu carácter é puramente descritivo e objetivo, porque a contraposição
entre ilícito e culpa não está no facto de um se reportar aos elementos objetivos do crime e
outro ao subjetivo, porque a diferença está na perspetiva de valoração.

72
Assim, o sistema clássico, pela sua construção, deixa de fora dos conceitos-chave
diversas previsões e subtipos:

● O conceito de ação causal, deixa de fora o crime de omissão.


● O conceito de culpa deixa de fora a distinção entre imputável e inimputável e a
negligência inconsciente.
● A subjetividade da conduta humana passa ao lado deste sistema, por este assentar
na causalidade e em aspetos estritamente objetivos.

Durou até 1920, mas não teve relevância no universo português.

Esquematização do sistema clássico:

Sistema Neoclássico ou Normativista

É de grande influência alemã, sendo que nos anos 30-40 vem influenciar a doutrina
portuguesa, pelas mãos de Eduardo Correia, Cavaleiro Ferreira e Beleza dos Santos.

Teve uma importância enorme porque marcou a separação dos postulados do


positivismo naturalista (base do sistema clássico), autonomizando, por um lado, a esfera da
natureza e da cultura dos sentidos e das valorações por outro, assim, reconhecendo
autonomia das ciências da natureza que pretendem explicar a realidade na base das
categorias da realidade e causalidade.

Este sistema partia então da radical oposição dos universos da natureza e do


universo social e humano - a realidade da vida prática. Universo de realidade de valorações,
de normas – universo da conduta humana.

Deste modo, está em causa o enquadramento dos fenómenos no esquema da


causalidade. Enquanto os fenómenos naturais se explicavam pela regra da causalidade, a

73
conduta humana tinha subjacente o fenómeno da valoração – a valoração é o nosso critério
de ação. Pode-se falar de valores éticos, estéticos, pragmáticos e jurídicos.

Devido à indeterminação do comportamento humano – todas as escolhas assentam


em valorações, o critério de juízo são os valores. Por exemplo, se A pensa em ir para casa e
pode fazê-lo por 3 caminhos:

● Escolhe 1 porque é mais curto – valor pragmático.


● Escolhe 2 porque tem paisagens bonitas – valor estético.
● Escolhe 3 porque passa por uma associação de caridade e pode fazer uma
contribuição – valor ético.

Isto leva a que necessariamente o método de construção conceitual tenha de ser


diferente dos das ciências da natureza, é o método referencial - método conceitual de
referencial de valores.

Por isso, passa por uma base kantiana - filosofia neokantiana:

● A realidade em si é inatingível ao conhecimento humano - o conhecimento da


realidade é ja deformado por categorias à priori, a mente humana não cria nada.
● Fenómeno de descontínuo heterogéneo – realidade de caos, desordem, pluralidade
de coisas sem qualquer conexão entre elas. Este descontínuo não é compreensível
pela mente humana e deve convertê-lo num contínuo homogéneo.
○ Este descontínuo heterogéneo não atende a diferenças de qualidade, mas de
causalidade e quantidade – é a perspetiva das ciências naturais.

Para os neokantianos isto não é suficiente para compreender toda a realidade, por
isso surge uma segunda forma:

● Discreto heterogéneo – privilegia as qualidades; está à procura do sentido, do seu


valor. Aqui atende-se aos valores e valoriza-se a individualidade (não procura a
relação entre as coisas). É, assim, a perspetiva das ciências humanas - o
anteriormente referido princípio de construção conceitual é referencial a todos.

Quer as ciências naturais quer as humanas acabam por criar a própria realidade ou
uma representação da mesma, assim como o discreto heterogéneo. É uma forma de
decomposição para compreender a realidade.

Esta perspetiva referencial a valores, quando transportada para a dogmática penal:

Ação referencial a valores ou ação social

A ação refletir-se-ia um acontecimento exterior, positivo ou negativo, valor ou


desvalor.

74
Ultrapassa a dificuldade do sistema clássico existente na ação causal no que
concerne aos crimes de omissão, mas a ação continuava a ser entendida em termos
puramente objetivos, o que impediu este sistema de se desprender do causalismo. Se toda a
ação é afirmadora ou negadora de valores, pode-se negar um valor jurídico através de uma
ação positiva para o danificar, ou através da não atuação quando esta deve existir (abrange,
então, o crime por omissão). A ação e a omissão deixam de valer pela sua configuração
externa, passando a valer pelo seu valor e desvalor.

A ação é um processo de lesão de um bem jurídico, comandado pela vontade, que


pode ser uma ação ou omissão, um ato positivo ou negativo (predomina o aspeto objetivo; a
vontade é apenas o motor, mas não se atende à mesma, mas sim à manifestação exterior).

Ilicitude

A letra da lei não vale por si, vale apenas como meio de mostrar a ilicitude
(interpretação teleológica).

A ilicitude só vale quando prevista na lei. Esta é entendida em termos objetivos,


focando-se no desvalor de resultado. O juízo material de ilicitude, que determina quais os
bens e valores importantes e daí as condutas relevantes para o Direito Penal, deve ser feita
da forma mais precisa possível. Essa precisão é conseguida através do tipo.

Tipicidade/tipo

Deixa de ser uma categoria autónoma e une-se à ilicitude, gerando o ilícito-típico ou


o tipo de ilícito. O ilícito típico esgota-se no desvalor de resultado, sendo estritamente
objetivo (não atende a padrões subjetivos).

O ilícito típico está na letra da lei. Já não se confunde a conduta do cirurgião com a
do faquista, porque no caso do cirurgião temos uma conduta positiva e na do faquista temos
uma conduta atentatória da dignidade humana. Não é um conceito descritivo mas
valorativo, por outro lado, como dito, continua a ser objetivo e continua a padecer do mal
do ilícito objetivo.

Assim, a teoria do ilícito pessoal afirma que o substrato da valoração é o mesmo


tanto no ilícito como na culpa, e pode ser doloso ou negligente, o que varia é o critério da
valoração.

○ No ilícito valora-se no sentido que teria se tivesse sido praticado por qualquer
pessoa, ao passo que na culpa se valora esse mesmo substrato mas com
atenção ao concreto agente.

Por exemplo, se A dispara sobre B é um homicídio doloso, mas se A é inimputável já


não é. Seria um homicídio doloso se praticado por qualquer pessoa, mas tem que se ter em

75
atenção as características do agente, porque sendo inimputável é incapaz de culpa e, por
isso, já não é crime.

Conclui-se o que já foi referido, esta teoria traz uma nova relação pelo que aqui o
ilícito típico é objetivo e esgota-se no desvalor do resultado o que significa que se continua
com a mesma dificuldade para determinar o sentido das condutas, sendo insuficiente para
esboçar as relações típicas de Direito Penal.

Sendo o desvalor objetivo, esgotando-se, portanto, na lesão do bem jurídico, como


se explica a tentativa (em que não há resultado), como se distinguem os crimes de dano e os
crimes de perigo?

Surge aqui a teoria dos elementos subjetivos do tipo: O ilícito é estritamente


objetivo, não se atende à subjetividade do agente. Todavia, excecionalmente e por força do
princípio da legalidade, pode atender-se a alguns elementos subjetivos. Por exemplo, no
furto, exige-se a intenção de apropriação, na burla, a intenção de enriquecimento.

Esta teoria dos elementos subjetivos do tipo é uma tentativa de adaptar e adequar a
teoria neoclássica à lei.

Culpa

● Contributo quase definitivo;


● Abandono do conceito psicológico de culpa dos positivistas e da teoria clássica,
substituindo-o pelo conceito normativo de culpa.

A culpa não é um facto (mero nexo psicológico), é um juízo de valor/censura, que


tem como pressuposto a liberdade humana e assume duas modalidades - dois graus de
culpa. O Direito não faz concorrência com a psicologia, logo, a culpa é um juízo de
valor/censura.

Desta forma, o dolo e negligência deixam de se reconduzir a um único conceito,


passando a ser distinguidos por graus de censura. A negligência seria menos censurável que
o dolo e, por isso, menos punível. O agente tem que, na vida social, estar com um mínimo de
atenção e abster-se de produzir efeitos negativos na esfera alheia, e é nisso que se funda a
punição da negligência15.

Prende-se com a ideia de que o Direito Penal tem uma função preventiva, pune-se
quando é necessário e não como punição, por essa razão, o desvalor da negligência pode ser
acautelado por outros ramos de direito e só nos casos mais graves, quando se justificar, se
cobre pelo Direito Penal.

15
artigo 13.º CP punição excecional, apenas quando legislador previr.

76
Na base deste conceito podem distinguir-se os imputáveis dos inimputáveis – estes
últimos podem praticar atos dolosos ou negligentes, mas por força de fatores
endógenos/internos diz-se que não podem ser constituídos perante um juízo de culpa. Ou
seja, um inimputável também pratica atos por dolo ou negligência, mas não é passível de
juízo de censura. Também se é assim capaz de distinguir a imputabilidade das situações de
exigibilidade / não exigibilidade.

Sumário do sistema:

Em suma, de acordo com o Doutor Figueiredo Dias:

“Não pode dizer-se que esta nova conceção se tenha traduzido em um "novo"
conceito de ação relativamente ao sustentado pela conceção clássica. Descontados os
exageros naturalistas, agora substituídos pela ideia da "relevância social", a ação continuou
a ser concebida, no essencial, como comportamento humano causalmente determinante de
uma modificação do mundo exterior ligada à vontade do agente.”

“Já em matéria de tipicidade se considerava agora ser indispensável vê-la não apenas
como uma descrição formal-externa de comportamentos, mas materialmente como uma
unidade de sentido socialmente danoso, como comportamento lesivo de bens juridicamente
protegidos; para a qual relevavam não só elementos objetivos, mas, em muitos casos
necessariamente, igualmente elementos subjetivos. De tal modo que também o ilícito se
apresentava em diversas hipóteses como um conglomerado de elementos objetivos e
subjetivos, indispensável para a partir dele se concluir pela contrariedade material do facto à
ordem jurídica (exemplo paradigmático: ilícita no sentido do tipo do furto não é toda a
subtração de coisa móvel alheia, mas só aquela que ocorrer com ilegítima intenção de
apropriação)”

“Quanto à culpa, agora traduzida num juízo de censura — a chamada conceção


normativa da culpa —, ela enriquecia-se e diversificava-se nos seus elementos constitutivos:
a imputabilidade, como capacidade do agente de avaliar a ilicitude do facto e de se
determinar por essa avaliação; o dolo ou a negligência como formas ou graus de culpa; a
exigibilidade de um comportamento adequado ao direito.”

Libertou a dogmática da prisão positivista subjacente ao sistema clássico


reconduzindo o Direito Penal ao plano da cultura, isto é, prometeu uma total rutura com os
quadros anteriores e um método referencial a valores. Porém, ficou aquém das suas
promessas, não se desprendendo completamente da causalidade e do desvalor do ato,
continuando a não dar resposta à tentativa e aos crimes de perigo.

77
A nível de linguagem, importa, então, a referência a valor (a ação não é causal, é
referencial a valores; o ilícito típico também traduz essa valoração). Mas, por outro lado, em
tudo o resto manteve os quadros anteriores:

● A causalidade, mas agora não reportada a um facto natural mas a negação de


valores;
● O ilícito típico é objetivo que se esgota no desvalor do resultado (não explica
tentativa e crimes de perigo, tal como o sistema anterior e não extingue o real
sentido do ato);
● Há uma remissão da subjetividade para o momento da culpa. É uma subjetividade
excecionalmente reconhecida, mas é quase uma confissão dos autores da
insuficiência do seu ponto de partida.

Onde este sistema deu um contributo quase definitivo foi no conceito normativo de
culpa (autores principais: Frank e Freudenthal); a culpa não é um facto psicológico (como foi
outrora), não se esgotando num facto empírico.

Em suma, no plano teórico foi importante, mas a nível de organizações ficou aquém.

Esquematização do sistema neoclássico/normativo:

Sistema Finalista

● Dogmática um pouco contraditória.

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Esta teoria tem como principal criador Hans Welzel, o maior penalista da sua época.
No início a construção era adequada para cobrir as relações, mas a partir de determinada
altura por fatores exteriores mudou o caminho.

Este partia do reino da natureza e do universo da realidade prática/social, de


valorações e liberdade. Dizia que a conduta humana era a exteriorização de uma
intencionalidade de sentido e não uma conduta objetiva. Todas estas ações são expressões
perante uma determinada realidade exterior. Deste modo, o Ser Humano reage a
provocações com comportamentos cognitivos, vontade e elementos emocionais. Ao mesmo
tempo que o “eu” conhece, também valora. Assim:

● A ação era um ato de comunicação.


● Ação era uma unidade subjetivo-objetiva. Não havia problemas, tinha-se a base
perfeita, porque essa exteriorização abrangia o comportamento doloso e negligente,
o comportamento por ação e o comportamento por omissão.

Temos de considerar essa unidade subjetivo-objetiva para ter em consideração a


ação.

Se Welzel se tivesse mantido fiel às posições que tomou até cerca de 1935, a sua
dogmática não incorreria em tantos problemas, mas por esta altura alterou a sua doutrina,
por razões estranhas ao Direito Penal relacionadas com a experiência totalitária do regime
nazi, que partia de premissas algo semelhantes na sua aplicação do Direito Penal. Assim,
existem duas vertentes da dogmática de Welzel.

No que respeita ao plano metajurídico, aderiu ao ordinalismo concreto que afirmava


que o Direito correspondia não à lei, mas a um conjunto de valores, regras e princípios que
habitavam na consciência comunitária - justiça material. Por isso, o Direito legislado tinha
valor secundário, na medida em que se exprimissem esses valores comunitários. Havendo
oposição, era a lei que tinha de ceder.

Esta ideia levou a que se legitimasse o nazismo e os seus atos. Nem Welzel, nem o
institucionalismo (que surgiu no século XIX) eram nazis, mas as suas ideias foram
aproveitadas para o legitimar no campo do Direito Penal. Por esta apropriação das ideias de
Welzel, este viu-se obrigado a fechar a sua teoria, de forma a não se associar ao nazismo.

Assim, a partir de 1935, muda de perspetiva – passando a ser um “segundo Welzel”,


numa segunda parte da sua carreira. Sentiu-se obrigado a abandonar aquele ponto de
partida inicial e fechou o sistema.

Foi isso que levou a uma 2ª fase do seu pensamento, afirmando a partir de 1935,
com ponto alto em 1939 – “Estudos sobre o Sistema do Direito Penal”, mantendo a ideia de
que a ação é uma unidade subjetivo-objetiva e de que para se entender o ato, tem que se
atender à intencionalidade.

79
Ação final

● Traduz-se na ação dolosa, com modificação do mundo exterior.

Esta ação já não era estritamente objetiva, tinha elementos objetivos e subjetivos, só
que era um conceito limitado dada a necessidade de ser uma ação dolosa. Isto faz com que
esta ideia seja inaplicável à negligência (pelo menos a inconsciente), porque na negligência
não há finalidade. Também deixa de lado a omissão (que não gera modificação no mundo
exterior) por não ter pré-determinado um processo causal no sentido de proteger
determinado bem jurídico.

Por isso, tem as críticas dos sistemas anteriores.

Tipicidade

Unidade objetivo-subjetiva, descritiva e axiologicamente neutral. Distinguia a ação


dolosa e o tipo negligente.

● Crimes negligentes;
● Crimes dolosos.

Mas se a negligência não cabia no conceito de ação final, como é que se


consideravam os crimes negligentes. Isto significa que não pode convocar um tipo, porque
um tipo é a descrição de uma ação final juridicamente relevante. Então, o tipo, neste caso,
era meramente descritivo, apontando apenas as matérias de proibição – não exprime o
sentido de desvalor das condutas. Desta forma, Welzel passou a restante carreira a tentar
encaixar a negligência na ação final.

Verifica-se, desta forma, a primeira contradição: se a negligência não cabia no


conceito de ação final e se todo o tipo tinha de se reportar a uma ação final, a negligência
não tinha lugar. O tipo já abrangia elementos objetivos e subjetivos. A contradição aqui é
que não consegue encaixar o crime negligente.

Este pensamento levava ao crime puramente descritivo, como já referido, Welzel


dizia que era a pura matéria de proibição. Se o legislador usasse uma cláusula geral – ex.:
boa fé -, ele dizia que era um tipo incompleto – tipos carentes de complementação, já que
para ele o tipo era uma descrição.

A valoração vinha mostrar que a ilicitude era matéria de proibição. Esta ilicitude já
não era objetiva, era um ilícito pessoal que pretendia retratar o sentido do ato como
unidade subjetivo-objetiva. Este formalismo metodológico aproxima-se do formalismo do
sistema clássico.

80
Ilicitude

Se o tipo é a descrição formal das ações humanas relevantes para o Direito Penal,
então a ilicitude é o conteúdo do tipo, a proibição em si.

Esta ilicitude não era objetiva, pois tratava-se de um ilícito pessoal que pretendia retratar o
sentido do ato como unidade objetivo-subjetiva. Atende-se primeiramente à
intencionalidade por detrás da conduta do agente.

Culpa

● Conceito normativo de culpa.

O dolo e a negligência, no plano da culpa, surgiam como graus de culpa, agora considerados
no plano pessoal. No plano da ilicitude e da culpa atende-se ao mesmo substrato valorativo
e, por isso, se faz a mesma distinção (negligência e dolo).

● No plano do ilícito, valora-se a ação sem subjetivação do agente. Ou seja, com


referência ao “homem comum”.
● No plano da culpa, a valoração é feita em função das características daquele concreto
agente (subjetividade).

A inovação do sistema finalista consiste precisamente nisto. O conceito do ilícito


pessoal contrapõe-se aos sistemas anteriores, dado que nestes a ilicitude seria sempre de
ordem objetiva e apenas na culpa a subjetividade teria importância no raciocínio lógico.

Sintetizando, de acordo com o Doutor Figueiredo Dias:

“Decisivo seria determinar o "ser", a "natureza da coisa" que se escondia sob o


conceito fundamental de toda a construção do crime, é dizer, sob o conceito de ação: um
conceito pré-jurídico, como agora se compreende, que teria de ser ontologicamente
determinado e que, uma vez aceite pelo legislador, não poderia por ele ser reconformado,
antes teria de ser aceite não só em si mesmo, como em todas as suas implicações. Dele
resultaria pois o inteiro sistema do facto e do crime.”

“A verdadeira "essência" da ação humana foi encontrada por Welzel na verificação


de que o homem dirige finalisticamente os processos causais naturais em direção a fins
mentalmente antecipados, escolhendo para o efeito os meios correspondentes: toda a ação
humana é assim supradeterminação final de um processo causal. Eis a "natureza ontológica"
da ação, a partir da qual todo o sistema do facto punível haveria de ser construído.”

“A primeira consequência derivada desta conceção da ação é a de que o dolo (que no


parecer tanto da teoria clássica, como da neoclássica, constituía um elemento da culpa)

81
passa agora a conformar um elemento essencial da tipicidade. Não seria bastante dizer,
como afirmava a teoria neoclássica, que o tipo pode em certos casos conter elementos
subjetivos, ao lado do seu núcleo essencial constituído por elementos objetivos. Preciso seria
afirmar que o tipo é sempre constituído por uma vertente objetiva (os elementos descritivos
do agente, da conduta e do seu circunstancialismo) e por uma vertente subjetiva: o dolo ou
eventualmente a negligência.”

“Desta forma se substitui, às anteriores conceções causais-objetivas, uma conceção


pessoal-final do ilícito. Só assim também se atingiria uma verdadeira conceção normativa da
culpa, como havia sido intenção da orientação neoclássica. O erro desta teria residido em
continuar a juntar na categoria da culpa a valoração (o juízo de culpa, de censura) com o
objeto da valoração (o dolo e a negligência). Extraindo este objeto da valoração da culpa e
situando-o no tipo de ilícito, estava cumprida a condição necessária para "reduzir" a culpa
àquilo que verdadeiramente ela deveria ser: um "puro juízo de desvalor", um autêntico juízo
de censura. Juízo de censura do qual participariam os elementos da imputabilidade, da
consciência do ilícito e da exigibilidade de outro comportamento.”

Para esta conceção, no plano do ilícito faríamos a distinção entre o ilícito doloso e o
ilícito negligente, só que a valoração desta conduta subjetiva-objetiva seria feita através da
ação do Homem médio, onde não se considera as características individuais do agente. A
culpa, pelo contrário, seria considerada pelo concreto agente, dando aso a conclusões onde
seria possível existir um ilícito não culposo, por exemplo, de um inimputável.

Por isso, em ambos os planos, tanto da ilicitude como da culpa, considera-se que
está a ser contrariada uma norma de determinação, estando o núcleo do crime no desvalor
da ação, e não do resultado.

Contudo, a teoria continua inquinada por todos os males da definição de conceito de


ação final (tudo seria ultrapassado se Welzel mantivesse o conceito de ação que antes
defendia: exteriorização de uma intencionalidade de sentido). Ele abandonou essa primeira
ideia para que pudesse chegar a um conceito fechado, respondendo à crítica de que a sua
teoria cedia a arbitrariedades. Desta forma, no primeiro momento não cabe a tentativa e no
segundo não cabe a negligência. Ao fechar os conceitos maculou de forma definitiva o
sistema finalista.

Apesar das suas contradições, foi um sistema extremamente importante.

Esquematização do sistema finalista:

82
A luta de escolas - Communis Opinio

Estes três sistemas marcaram os três primeiros quartéis do século XX, com uma luta
acesa. Quando esta luta de escolas acalmou, veio implantar-se um sistema que passou a
constituir a generalidade da doutrina. Sistema esse que aproveitou aspetos de cada um
destes três sistemas.

Herdou do sistema clássico, as categorias (ação, tipo, ilicitude, culpa), do sistema


neoclássico, a perspetiva material, normativa, em que as categorias exprimem
essencialmente conteúdos de valor e, sobretudo, a conceção normativa de culpa
(ultrapassou-se definitivamente o conceito psicológico de culpa do sistema clássico) e,
finalmente, do finalismo, herdou a conceção do ilícito pessoal – para se determinar o
significado objetivo e o sentido do ato, não podemos ficar pelos aspetos externo-objetivos
da conduta: a conduta humana não é objetiva, mas antes uma unidade subjetiva-objetiva.

Sofreu igualmente com grandes divergências entre os autores.

O essencial:

● Ação – ação referencial a valores/ação humana (unidade objetivo-subjetiva);


● Ilícito – ilícito pessoal (atende-se à intencionalidade por detrás da conduta, não
apenas à sua configuração no plano externo-objetivo). Distingue-se entre ilícito
doloso e ilícito negligente. Reconduz o ilícito penal ao desvalor da ação que permite
fazer tal distinção;
● Culpa – manteve-se o conceito normativo de culpa (referencial a valores).

Foi sobre este sistema que se veio a construir o sistema teleológico ou racional que é
a construção a que adere o nosso curso e a maioria da doutrina portuguesa.

83
Sistema teleológico ou racional

Este sistema veio a construir-se sobre esta base supramencionada que resultou da
luta de escolas, já com a divisão dogmática dos crimes de ação dolosos e negligentes. Desta
forma, aceitou e herdou em larga medida o sistema communis opinio. Tem influência de
Claus Roxin e atende às considerações de pena.

O que traz de novo? Pretende-se introduzir a necessidade de pena nos elementos da


teoria geral do crime.

Isto porque na própria modelação do conceito material de crime inserem-se os


conceitos de dignidade penal e necessidade de pena e em todos os sistemas estudados não
se verifica nenhuma consideração da necessidade de pena, todavia, se a teoria geral do
crime é a análise e decomposição do conceito material de crime, então há que considerar a
necessidade e a dignidade penal.

Nestes termos, os sistemas vistos assentavam apenas em considerações penais


valorativas e as considerações político-criminais não intervinham.

Roxin e os subsequentes adeptos pretenderam fazer intervir considerações de


necessidade de pena/prevenção. Se o conceito material de pena resulta de considerações
cumulativas de considerações de necessidade de pena então é evidente que nas categorias
do sistema deve-se projetar a ideia de dignidade e necessidade penal.

Tem-se, assim, a nossa definição final de crime: conduta humana que violava uma
norma jurídica que tinha como objeto a tutela de bens jurídicos essenciais, quando
nenhuma outra sanção de outro ramo do Direito é adequada ou suficiente.

Esta é a ideia central, mas, apesar desta base ser consensual entre os adeptos da
teoria teleológica ou racional, as discórdias quanto a outros problemas subsistem.

Questiona-se então: Como se insere a necessidade de pena na TGDCrime? Existem


três vias a considerar:

1. Doutrina de Claus Roxin

Mantém o sistema intocado então começa com - ação, tipo, ilícito – mas substitui a
categoria da culpa pela categoria da responsabilidade. Uma vez que o Direito Penal não
quer retribuir a culpa, a culpa tem apenas função limitadora porque não há pena sem culpa
e a pena não pode passar a proporcionalidade da culpa. Mas além disso não tem
importância.

Assim, a responsabilidade jurídico-penal contemplaria dois momentos, por um lado,


para haver responsabilidade, tinha de haver avaliação da culpa (1) – censurabilidade

84
individual do agente. Mas a culpa não bastava. Para haver responsabilidade penalmente
relevante, era preciso que houvesse necessidade de pena (2).

Com esta categoria Roxin acolhe o conceito unilateral unívoco do princípio da culpa
(não há crime sem culpa, mas pode haver culpa sem crime). Resolvendo, por isso, a questão
do problema da necessidade da pena, acantonando as considerações político-criminais de
prevenção, através desta categoria da responsabilidade.

Mas esta orientação não é seguida pela maioria.

2. Doutrina Maioritária16

Figueiredo Dias e a maioria dos autores. Mantém tudo igual até à culpa e depois
introduzem mais uma categoria, a da punibilidade, onde interviriam as considerações da
necessidade de pena.

É preciso que a ação seja punível no sentido de ser necessária a pena. Portanto,
difere da teoria de Roxin apenas na separação dos conceitos que ele já tinha criado dentro
da responsabilidade (distinção meramente formal).

Pelo que a ideia de Roxin era que a culpa seria um limite à prevenção, a razão nunca
podia ir além do que é admissível para a dignidade humana e a culpa seria esse travão.
Deste modo, em vez do raciocínio da culpa e da necessidade de pena serem feitos ao
mesmo tempo, encontram-se divididos em dois momentos estanques - há uma
autonomização dos conceitos que antes não era feita.

1. Ação;
2. Ilícito:
3. Tipo;
4. Culpa;
5. Punibilidade: a pena é necessária.

3. Doutrina de Bernd Schünemann

Tem pouca expressão doutrinal e a que existe remonta aos anos de 1970/80. Mas é a
teoria de Bernd Schünemann a que mais apraz ao professor.

Esta teoria diz que não se pode acantonar num só estrato do sistema as
considerações de necessidade de pena e dignidade penal, estas considerações devem estar
e percorrer todas as partes: a nível da modelação do tipo; a nível dos tipos justificadores dos
ilícitos e a nível da culpa. Tanto a dignidade penal como a necessidade de pena têm de se
modelar ao longo de todo o sistema, em cada uma das categorias. Projeta-se tanto nos

16
Por ser a maioritária, então será esta a doutrina a seguir no curso.

85
aspetos objetivos, por exemplo, a modelação do crime e de causas de exclusão de ilicitude,
como subjetivos da ação.

Para o Senhor Professor Almeida Costa, esta é a teoria correta, na medida em que tal
como a dignidade penal se projeta no plano objetivo do ilícito e no subjetivo (maior ou
menor gravidade de culpa) também a necessidade de pena pode ter que ver com razões
objetivas (incriminador ou não) e subjetiva.

Esquematização do sistema teleológico:

sistema adotado pelo nosso curso é o teleológico-racional, que se irá desmembrar em três
dogmáticas distintas: a dos crimes dolosos de ação; a dos crimes de ação negligentes e a
dos crimes de omissão.

3.3. Teoria Geral dos Crimes de Ação Dolosa

Os crimes dolosos são caracterizados por uma relação de simetria ou de congruência


entre o lado subjetivo e objetivo do crime. O que o agente pensa e pretende no seu interior
é o que ele realiza numa através de uma conduta exterior.

Ao contrário do que acontece na negligência que, em princípio, o agente até quer


praticar um ato lícito, mas por acidente e circunstancialismos pratica um ato ilícito, pratica
um crime, há uma relação de assimetria entre o plano subjetivo e o plano objetivo.

86
Conceito dogmático de ação

Em primeiro lugar, surge o conceito de ação, pois para ter um crime doloso tem de
existir uma ação - 1.ª categoria da ação: em alguns tratados (tratado de Roxin e Figueiredo
Dias) começa-se por caracterizar aquilo que deve ser o conceito de ação para efeitos penais.

Seguindo a proposta de Jescheck, deve cumprir três ou quatro funções:

1. Classificação: Conceito de ação deve ser suficiente para abarcar todas as formas de
ação jurídico-penalmente relevantes;
2. Definição: Apesar de ser um conceito suficientemente amplo, deve também ser
determinável;
3. Ligação: Deve ser suscetível de suportar todas as posteriores predicações;
4. Delimitação: logo num primeiro momento, afastar todas aquelas situações que não
sendo ações humanas, não se provam como jurídico-penalmente relevantes, não
podem ser violações de normas de determinação e, portanto, jamais poderão ser
crimes.

Este conceito de ação e as suas funções valem para todas as outras categorias, como
o conceito de tipicidade, ou seja, este conceito nada diz concretamente sobre a ação, mas
sim sobre o método da teoria geral do crime doloso. O que interessa é a ação típica,
tipificada como criminalmente relevante pelo legislador. O que importa é esclarecer aquilo
que jamais pode constituir uma ação e que por isso está fora do sistema.

Conceito pessoal ou personalista da ação

Este conceito dá uma base suficientemente ampla para abranger todas as ações
relevantes. A ação é tudo o que pode atribuir-se ao homem como centro autónomo de
imputação. A ação reconduz-se à pura e simples exteriorização de uma intencionalidade de
sentido.

Ex.: Pessoas estão numa esplanada. Passa alguém que tropeça e cai. Surgem várias
reações possíveis: solidariedade (quem se levanta e vai ajudar); indiferença; quem ri com os
olhos de quem se compraz com a desgraça alheia, etc.

● Ação é um ato de comunicação.

Todos os comportamentos, sejam ativos, sejam omissivos, sejam dolosos, sejam


negligentes constituem a exteriorização de uma intencionalidade de sentido – o agente
projeta para o exterior uma determinada atitude interna. É toda a manifestação exterior da
vida consciente do indivíduo que envolve elementos intelectuais e emocionais. Estas ações
podem consubstanciar a negação de uma norma de determinação – conceito de ação
humana para efeitos jurídico-penais.

87
O conceito de ação cumpre duas funções, de forma correta (do ponto de vista do
Professor):

● Função positiva: este conceito de ação coloca a tónica na ideia de que o núcleo do
crime está no desvalor da ação, o incumprimento de uma norma de determinação.
Pressupõe-se que as normas penais têm como exclusivos destinatários pessoas
humanas, por isso, o incumprimento é um comportamento humano que vincula a
construção do sistema à perspetiva valorativa do Direito Penal.
● Função negativa: Jescheck reportava-se a esta função. Afasta-se do campo do
interesse do Direito Penal tudo aquilo que não seja conduta humana (fenómenos
naturais, comportamentos animais), ainda que tenham como consequência a
penalização de bens jurídicos.

Posteriormente, exclui-se do conceito de ação penal comportamentos de pessoas,


mas que não são ações humanas para o Direito Penal porque não há uma exteriorização
uma intencionalidade de sentido, como casos de:

○ Ação por inconsciência (sonambulismo ou hipnose);


○ Efeitos reflexos (ex.: ataques de epilepsia);
○ Atos praticados por coação absoluta (vis absoluta) - se alguém me puser uma
arma na mão e premir o meu dedo forçosamente, não fui eu quem premiu o
gatilho - o tiro é responsabilidade da pessoa que me coagiu.

Problema da responsabilidade penal das pessoas coletivas

No século XIX, afirmava-se que as pessoas coletivas não podiam ter responsabilidade
penal - societas delinquere non potest. A culpa era exclusiva da pessoa singular. No entanto,
esta máxima foi abandonada no século XX e generalizou-se a ideia de admissão de
responsabilidade penal das pessoas coletivas, através da analogia com o comportamento
humano.

Os argumentos que foram usados para esta posição foram, essencialmente, visar
ultrapassar graves dificuldades de prova porque sabe-se que nas pessoas coletivas a decisão
não é fruto de uma pessoa só, mas quando são todos responsáveis, regra geral, não é
nenhum, por isso, é difícil provar a responsabilidade de uma pessoa coletiva.

Além disso, pretende evitar lacunas de punição em domínios de alta gravidade penal
dado que a criminalidade das ações das empresas tem uma gravidade, geralmente, muito
elevada.

Por detrás disso estão também outras razões, uma vez que o direito sancionatório
passou a ser fonte de rendimento de Estado (multas e coimas eram antes receitas
extraordinárias, mas devido à UE hoje são receitas ordinárias) e o Direito Penal tem a ver
com a prevenção de crimes e não criação de receitas.

88
Isto é mais grave quando em relação às multas penais se estabelece
responsabilidade solidária (se multa é aplicada ao administrador, e o administrador não paga
então paga a empresa e vice-versa) o que estabelece a multa como uma obrigação
pecuniária.

Tudo isto levanta sérios problemas, nomeadamente a responsabilidade objetiva dos


sócios, isto é, a sanção quando aplicada à pessoa coletiva, regra geral é a multa – multas
elevadas, algumas até de milhões de euros, que mesmo um homem rico não tem património
para as suprir. O que acontecia é que se responsabilizavam os sócios que, muitas vezes, não
tinham sequer peso na vida da empresa. No fundo, eram estas pessoas que sofriam as
consequências, ainda que não fossem diretamente responsáveis pelas decisões da empresa.

Atualmente, entende-se que num Estado de Direito, essas multas de elevadíssimo


valor só têm as organizações como responsáveis do seu pagamento e esta ideia manter-se-à,
até porque acabou por criar um grande negócio entre as grandes empresas e escritórios
chamado compliance.

Em síntese, e deixando este problema de parte, adota-se então um conceito pessoal


ou personalista da ação:

● Suficientemente amplo;
● Com vantagem de estar logo na base do sistema – vincar a perspetiva das valorações
penais;
● O núcleo essencial do crime está no desvalor da ação;
● E nem todas as ações desvalorativas são crime, elas têm de ser ilícitas.

A figura do ilícito-típico

Tal como já sucedia no sistema neoclássico, na construção geral do delito não se


autonomiza o tipo do ilícito, antes se considera um estado unitário, o ilícito-típico - o crime
tem de ser uma ação e esta ação tem de se integrar num ilícito-típico.

Assim, o tipo é a expressão ou o expediente técnico preconizado para expressar o


juízo de ilicitude, ou seja, é a forma. Já o ilícito é o conteúdo material. Deste modo, o
ilícito-típico traduz-se na fusão da ilicitude e da tipicidade. Não faz sentido separá-las (tipo
do homicídio, tipo do furto, tipo das ofensas à integridade física).

O tipo ou a descrição típica não vale por si pois as palavras são expressão de um juízo
de valor. Valem enquanto mero meio de acesso ao espírito/sentido da lei. Logo, perante a
interpretação da lei e dos tipos de ilícito exige-se sempre uma interpretação teleológica em
ordem de encontrar o ilícito específico que subjaz. Ou seja, deve-se procurar por trás da

89
letra da lei o sentido das valorações que estão subjacentes à mesma, porque essas
valorações são o juízo de ilicitude.

Numa 1.ª abordagem é preciso avaliar a conduta humana como ato geral. Aqui
distingue-se entre ação dolosa e ação negligente.

O ilícito doloso é uma unidade subjetiva-objetiva. A definição das ações dolosas


penalmente relevantes têm de ser feita com a maior precisão possível, no momento da
tipicidade.

Como visto, o tipo é a forma através da qual se exprime a ilicitude, então, é


necessário precisar com alguma exatidão o conceito do tipo. O momento da tipicidade
coincide com o próprio princípio da legalidade. Todos os pressupostos da punição têm de
estar previstos na lei.

No entanto, o tipo no plano do sistema, isto é, a nível dogmático, tem um sentido


mais restrito – abrange apenas aqueles elementos da descrição da lei que contendem com o
valor subjetivo do sentido do ato. O legislador, ao descrever um crime, fá-lo na generalidade.
Por isso, quando se fala no ilícito-típico, no sentido dogmático, contemplam-se apenas os
elementos da definição legal que caracterizam o desvalor pessoal objetivo do ato.

Assim sendo, se o tipo incriminador mais não é do que a expressão do tipo de


ilicitude, então também tem de contemplar tanto os elementos objetivos como subjetivos.

Importante: é imprescindível reter que o tipo é uno – unidade subjetiva-objetiva. É


uma unidade dolosa – há simetria entre o lado subjetivo do crime (ele conhece e quer) e a
conduta exterior (o que ele realmente realiza). A falta de um elemento subjetivo tem a
mesma consequência que a falta de um elemento objetivo: não há preenchimento do tipo.

● O tipo objetivo congrega os elementos objetivos do ilícito-típico.


● O tipo subjetivo congrega os elementos subjetivos do ilícito-típico.

Posto isto, no âmbito da tipicidade, resta distinguir:

● Tipos incriminadores;
● Tipos justificadores.

Tipos incriminadores e tipos justificadores

O legislador por norma descreve as condutas criminosas (homicídios, ofensas à


integridade física, etc.) e essas descrições de cada figura-delito (de cada modalidade de
crime) são o tipo incriminador.

90
Sucede que há circunstâncias especiais que quando ocorrem na situação em
concreto retiram o desvalor jurídico-criminal, por exemplo, matar em legítima defesa ou
praticar ofensas à integridade física em estado de necessidade. A isto chamam-se tipos
justificadores.

Diz-se que a determinação do caráter ilícito de uma situação concreta depende de


uma ponderação cumulativa dos tipos incriminadores e tipos justificadores.

● Para que exista um ilícito é necessário que a conduta, por um lado, preencha os
elementos do tipo incriminador e, por outro, que não preencha nenhum requisito
do tipo justificador.

Ambos concorrem para concretizar o juízo de ilicitude em cada caso concreto.


Porém, a doutrina portuguesa trata-os em separado, porque apesar de serem
complementares, fazem-se de maneira diversa. Veja-se:

● O tipo incriminador – intervém de modo concreto porque caracteriza o ilícito,


definindo o seu conteúdo específico (por exemplo, homicídio) e permite distingui-lo
de todas as outras figuras-delito; e pela positiva, uma vez que determina os
elementos do tipo incriminador que são necessários preencher para se estar perante
um ilícito.
● O tipo justificador – intervém de modo geral pelo que os tipos justificadores não
estão destinados a uma determinada figura-delito, pelo contrário, valem para todos
estes (por exemplo, a legítima defesa e o estado de necessidade aplicam-se à
generalidade dos crimes); e pela negativa, pois para termos um ilícito é preciso que
não se verifiquem nenhuns dos pressupostos do tipo justificador.

Daqui resulta que estes tipos possam ter regimes diversos porque têm estruturas
distintas. Por isso é que, sem abandonar a função dos dois momentos do ilícito-típico,
tratar-se-á primeiro dos tipos incriminadores e depois os tipos justificadores.

Tipo Incriminador

Partindo da conceção unipessoal, o ilícito-típico é uma unidade subjetiva-objetiva.


Distingue-se aqui entre o ilícito doloso ou o ilícito negligente. Neste contexto, constitui a
expressão do conteúdo do ilícito - fala-se de um ilícito-típico doloso.

O legislador atua com três elementos estruturantes e podem classificar-se em várias


espécies: Agente; Conduta; e Bem jurídico.

● Agente

FD: ”Elemento constitutivo de todo o tipo objetivo de ilícito nos delitos dolosos de
ação é — apesar da natureza subjetiva ou intersubjetiva deste elemento - o autor da ação.
Autor que será em princípio uma pessoa individual.”

91
Existem duas modalidades no que ao agente concerne: crimes comuns e crimes
específicos ou especiais.

○ Crimes comuns: podem ser praticados por literalmente qualquer agente. São
a regra. Por exemplo, a prática de um crime de homicídio, em que não há
exigências específicas em relação ao agente.
○ Crimes especiais: nestes crimes, o legislador circunscreve o alcance dos
destinatários da norma para agentes com características específicas. São a
exceção.

Estes crimes especiais podem assumir natureza de puros/próprios ou


impuros/impróprios:

○ Crimes específicos puros ou próprios: a qualidade especial do agente é


fundamento da incriminação. Sem aquela qualidade, não há crime. A
qualidade é fundamento da ilicitude.

Exemplo: prevaricação – se o agente não for juiz, não há prevaricação; corrupção que
só pode ser praticada por um funcionário público.

○ Crimes específicos impuros ou impróprios: a característica não é fundamento


da incriminação, mas serve de agravante ou atenuante da pena aplicável à
prática do crime. Só podem ser praticados por pessoas de certas categorias.

Por exemplo, o furto ou abuso de confiança são crimes comuns, mas o peculato é um
furto ou abuso de confiança agravado praticado por funcionário público que lhe foram
entregues em virtude da sua função. O homicídio simples e o homicídio qualificado são
crimes comuns nos termos do artigo 131.º do CP, mas é agravado quando existe uma relação
de parentesco (artigo 132.º al. a) do CP).

● Conduta

FD: “Aqui se contém a exigência geral de que se trate de comportamentos humanos,


o que, obviamente, exclui a capacidade de ação das coisas inanimadas e dos animais (...).
Exige-se ainda que o comportamento seja voluntário, isto é, presidido por uma vontade, o
que exclui os puros atos reflexos (v.g., o caso de alguém que perde o controlo do seu carro e
colide com outro veículo em virtude de uma reação instintiva de defesa contra um inseto que
lhe entrou num olho), os cometidos em estado de inconsciência (v. g., em situações de
sonambulismo, de hipnose, de delírio profundo ou durante um ataque epilético), ou sob o
impulso de forças irresistíveis.”

Dentro da conduta existem várias tipificações:

92
1. Quanto à execução
○ Crimes de execução imediata: crimes cuja execução e subsequente
consumação se verificam num momento (por exemplo, no homicídio a
consumação verifica-se com a morte).

○ Crimes duradouros: crimes cuja consumação se prolonga no tempo. Há uma
sucessão, isto é, a cada fração de tempo que passa ele está a ser executado e
consumado simultaneamente (por exemplo, o crime de sequestro).

2. Quanto à vinculação
○ Crimes de execução livre ou não vinculada: a maioria dos delitos são desta
natureza. O legislador, na maioria dos casos, proíbe condutas que possam
atentar contra determinado bem jurídico.

O que releva é a produção da situação de perigo ou de uma lesão ao bem jurídico


protegido; o modo de execução é irrelevante. Desde que a conduta seja idónea e tenha
posto em perigo o bem jurídico, está completo o pressuposto.

○ Crimes de execução não livre ou vinculada: o legislador atribui uma


particular relevância a um particular processo executivo – modus operandi.

Por exemplo, a burla, o burlão induz em erro a vítima e a vítima voluntariamente (por
ter sido enganada) entrega o bem - crime de autolesão. Há entrega espontânea da coisa. É
preciso que o agente siga este processo de indução ao erro e aproveitamento do erro.

3. Quando ao objetivo naturalista


○ Crimes formais ou de mera atividade: aqueles que se esgotam numa pura
conduta, o preenchimento do tipo, a consumação do delito, esgota-se numa
mera atividade – numa pura non facie.

Por exemplo, a invasão de domicílio; traduz-se no puro entrar – desde que entre sem
autorização no domicílio de outra pessoa é uma pura conduta.

○ Crimes materiais ou de resultado: a conduta depende de um resultado


naturalístico. A consumação depende da conduta, mas também do resultado
que, mais que consequência da conduta, é autónomo dessa conduta.
Corresponde à maioria dos crimes.

Por exemplo, no furto não basta a conduta dirigida à subtração de coisa alheia, é
preciso que essa subtração ocorra efetivamente.

Estes crimes levantam o problema da imputação do resultado da conduta (se a


consumação do crime depende da produção de resultado, deve-se encontrar o critério e o
nexo causal que liga a conduta ao resultado).

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● Bem jurídico

Como já surgiu oportunidade de mencionar, o bem jurídico é essencial na ótica do


Direito Penal, dado que visa, em último caso, tutelá-los. É, portanto, em função do bem
jurídico que se determina o sentido do ilícito específico de cada crime que o distingue dos
demais.

FD: “ (...) o bem jurídico é definido como a expressão de um interesse, da pessoa ou


da comunidade, na manutenção ou integridade de um certo estado, objeto ou bem em si
mesmo socialmente relevante e por isso juridicamente reconhecido como valioso.”

Há uma distinção entre crimes de perigo e crimes de dano:

1. Crimes de dano

A consumação depende da lesão efetiva do bem jurídico. A esmagadora maioria dos


crimes são crimes de dano, pois só se consumam com a efetiva lesão do bem jurídico. Por
exemplo, no homicídio só há um crime consumado quando há a lesão efetiva da vítima
(morte).

2. Crimes de perigo

Frequentemente, dada a específica importância dos bens jurídicos criminais


protegidos, o legislador antecipa a tutela do bem jurídico e desenha o crime em termos dos
quais a consumação não dependa da lesão, basta o simples pôr em perigo do bem jurídico.

Por exemplo, a condução sob efeito do álcool é crime e não é necessário a


verificação de um acidente para que assim o seja.

Estes crimes de perigo têm duas modalidades - perigo abstrato vs. perigo concreto:

2.1. Perigo abstrato – são crimes de perigo presumido. Não é necessário que o bem
jurídico tenha sido, na situação concreta, colocado em perigo.

O crime é fundamento da proibição. Não admite inversão do ónus da prova, ou seja,


não se admite prova em contrário (é uma presunção iuris et de iure) porque o legislador
entende que em qualquer situação, mesmo que não seja lesado nenhum bem jurídico
específico, essa situação é perigosa. Ex.: Ultrapassar numa rotunda ou conduzir sob efeito de
álcool, mesmo que o agente não tenha tido um acidente como já mencionado.

2.2. Perigo concreto – aqui, o perigo é elemento do tipo. Por isso, é necessário
provar-se, em concreto, que a conduta do agente pôs em perigo um determinado bem
jurídico. É uma prova ex post do perigo. O ónus da prova não cabe ao agente, mas à
contraparte, ou seja, permite-se a inversão do ónus da prova (que se prove o contrário).

94
Com o objetivo de restringir a intervenção penal sobretudo pela severidade, sob uma
ideia garantística, os autores criaram os crimes abstrato-concretos:

2.3. Crimes abstrato-concretos – introduzem uma categoria intermédia. Seriam


crimes de perigo abstrato, mas que admitiriam prova em contrário.

Se o arguido provasse que no caso específico não existiu perigo, não haveria crime.
Envolvia uma inversão do ónus da prova - o agente é que teria de provar que não tinha
havido dano -, o que não é aceite no Direito Penal devido às leis probatórias, visto que deve
ser o tribunal a provar a existência de dano e perante a falta de prova atua o princípio in
dubio pro reo.

Devido a esta crítica inultrapassável, surgiram os crimes de aptidão.

2.3.1. Crimes de aptidão: exige que a conduta ex ante seja perigosa. Então, há que
provar, sem inversão do ónus da prova, de uma perspetiva ex ante que naquela situação
concreta a conduta era perigosa. Se não se provar que a conduta ex ante naquela situação
concreta fosse perigosa, o agente fica absolvido.

Nos delitos de aptidão é possível que uma pessoa, desde que tome as devidas
providências e indague sobre a situação concreta, pratique uma conduta que em abstrato
seria perigosa, mas que naquele caso não era por via da prova em contrário. Neste caso, o
ónus da prova cabe ao agente.

O tipo objetivo

O tipo objetivo contempla os elementos exteriores (sejam inerentes à conduta, sejam


referentes ao resultado) que caracterizam o desvalor da ação e o desvalor do resultado
específicos de uma concreta figura-delito. O legislador ao desenhar as várias figuras-delito
joga sempre com algum, ou todos estes três elementos (o agente, a conduta e o
bem-jurídico).

Crimes formais e crimes materiais ≠ crimes de perigo e crimes de dano

Na distinção entre crimes formais (ou de mera atividade) e crimes materiais (ou de
resultado) o que está em causa é o objeto naturalístico da ação, a produção de um resultado
naturalístico. O legislador, no caso dos crimes formais basta-se com a consumação de uma
mera conduta, enquanto nos crimes materiais exige que essa conduta produza um resultado
autónomo (resultado naturalístico, facto).

Por sua vez, o critério da distinção entre crimes de perigo e crimes de dano é o bem
jurídico, o objeto de proteção. Há crimes formais que não são de perigo e crimes materiais
que não são de dano, e há crimes materiais que são de perigo e crimes formais que são de
dano. Por exemplo:

95
- A invasão do domicílio é um crime formal (esgota-se na conduta) e é um crime de
dano, porque lesa a integridade da vida privada.
-
- Ainda, a contrafação da moeda é um crime material (exige um resultado, pois a mera
conduta da falsificação não basta para haver um crime de contrafação da moeda) e é
um crime de perigo pois o bem jurídico só é lesado quando a moeda é posta em
circulação (dada a importância do perigo o legislador antecipou a tutela, não esperou
pela colocação da moeda em circulação, pune logo a falsificação pois é um ato
preparatório).
-
- Também a condução sob o efeito de álcool é um crime formal e é de perigo.

Conclui-se, então, que a tendência que existe em sobrepor ambas as classificações e


concluir que todos os crimes formais são crimes de perigo porque se esgotam na atividade e
todos os crimes materiais são de dano, não é verdade, são classificações que apenas se
cruzam.

A distinção crimes formais/crimes materiais é importante porque é a propósito dos


crimes materiais que se suscita a questão da imputação objetiva. Se a consumação do crime
depende do resultado, então quando se pode dizer que o resultado se verificou em
consequência da conduta? Se eu não imputar o resultado, então o agente não pode ser
punido por crime consumado, apenas por tentativa, e a tentativa nem sempre é punida, só
nos casos mais graves (quando o crime consumado é punido com prisão superior a 3 anos
ou quando o legislador o declara).

Este é um problema tradicionalmente de nexo de causalidade.

Imputação do resultado à conduta

É um problema específico dos crimes materiais, dos crimes cuja consumação


depende da consequência, como suprarreferido, mas o resultado é espácio-temporalmente
autónomo (maioria dos delitos) – ex.: furto, homicídio.

Pretende responder a seguinte questão: Qual é o nexo que tem de interceder entre o
resultado e a conduta para se dizer que o resultado foi mesmo proveniente da conduta?

Doutrinas contemporâneas desde o século XX

Teoria das Condições Equivalentes ou Equivalência das Condições

Doutrina alemã que teve como responsável Maxon Buri. Pretendia consagrar o
conceito naturalístico de causa associado à teoria de John Stuart Mill. A causa seria o

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conjunto de todas as condições necessárias para que se produzisse determinado resultado -
o mesmo das causas naturais.

FD: “Um primeiro degrau constitutivo da exigência mínima que, de uma perspetiva
externo-objetiva, tem de (ou pode) fazer-se ao relacionamento do comportamento humano
com o aparecimento do resultado, para que este deva atribuir-se ou imputar-se àquele, é
pois o da pura causalidade: a ação há-de, ao menos, ter sido causa do resultado, aferida
através da teoria das condições equivalentes”.

Para esta doutrina naturalista não se pode fazer uma hierarquização, ou seja, todas
as condições têm o mesmo valor porque basta que falte uma delas para que não se verifique
o resultado - critério da conditio sine qua non (condição sem a qual não).

Maxon dizia que sendo a causa de um determinado resultado de crime material, o


conjunto das condições para a produção desse mesmo resultado, imputava-se o resultado à
conduta sempre que, através de um juízo hipotético, o juiz concluísse que naquela situação,
se não se tivesse verificado a conduta do agente, então o resultado não se tinha produzido.

FD: “Por isso, todas as condições que, de alguma forma, contribuíram para que o
resultado se tivesse produzido são causais em relação a ele e devem ser consideradas em pé
de igualdade, já que o resultado é indivisível e não pode ser pensado sem a totalidade das
condições que o determinaram.

“Para apurar quais as condições que deram causa a um certo resultado deveria assim
o juiz suprimir mentalmente cada uma delas: caso pudesse afirmar que o resultado não se
teria produzido sem essa condição, tal significa que esta seria relevante para efeitos do
estabelecimento do nexo de causalidade”.

Inconvenientes da doutrina:

A teoria da equivalência das condições alarga em demasia. É uma doutrina descritiva,


alheia a valores. O Direito Penal valora e o que está em causa é o crime que tem o seu
núcleo no desvalor da ação. O que este critério da conditio sine qua non faz é alargar o
conceito de causa de forma incompatível com as valorações jurídico-criminais de modo a
suportar resultados absurdos.

Por exemplo: Sr. A bate no Sr. B e este vai ao hospital. No hospital, Sr. B recebe a
medicação errada, devido a negligência do médico e morre.

Com base nesta doutrina o que se entende é que a morte não seria imputada ao
médico, porque se o Sr. A não tivesse batido no Sr. B, este não tinha ido ao hospital e
recebido a medicação errada – mas se assim fosse, a morte podia ser imputada aos pais do

97
Sr. A porque se ele não tivesse nascido, não tinha batido no Sr. B e este não tinha morrido.
Mas se assim fosse também se podia imputar a morte a “Adão e Eva”.

FD: ”Verifica-se deste modo que a fórmula da conditio sine qua non acaba por
abranger a mais longínqua condição, implicando uma espécie de regressus ad infinitum, e
deveria excluir da problemática qualquer consideração sobre a interrupção do nexo causal
devida à atuação do ofendido ou de terceiro, ou ainda por efeito de uma circunstância
extraordinária ou imprevisível.”

Por isso surge a limitação da culpa. Esta teoria acabaria assim por levar à punição de
indivíduos que praticaram ações causalmente relacionadas com o resultado, mas que nem
previsivelmente nem possivelmente teriam levado a tal resultado na perspetiva do
conhecimento geral e do próprio agente. Esta doutrina é, por si só, insuficiente para dar uma
resposta ao problema da causalidade.

Os adeptos desta teoria abandonaram o critério da conditio sine qua non,


determinando que perante determinada situação se devem ter em conta os conhecimentos
que temos sobre a situação e com base neles ajuizar a condição. É a condição conforme às
leis naturais. Segundo este critério, o estabelecimento da causalidade está dependente de
“saber se uma ação é acompanhada por modificações no mundo exterior que se encontram
vinculadas a essa ação de acordo com as leis da natureza e são constitutivas de um
resultado típico.”

No entanto, os dados científicos disponíveis sobre a conformidade às leis naturais ou


não dizem nada, ou não são suficientes, ou não são fiáveis, pelo que nada mais restaria
senão o apelo às leis da experiência, de base estatística ou probabilística. Esta teoria
continua a ser imprestável porque não se ajusta aos critérios do Direito Penal.

FD: “Apesar de todas as críticas formuladas e de todas as dificuldades encontradas, a


doutrina das condições equivalentes continua a recolher generalizada aceitação em direito
penal.

(...) o seu defeito principal reside na exagerada extensão que confere ao objeto da
valoração jurídica. Isso porém nada diz em definitivo contra a teoria da equivalência como
máximo denominador comum de toda a teoria da imputação.”

Teoria da Adequação

Perspectiva ex ante, que pretendeu substituir a anterior. O resultado só se imputa à


luz das regras da experiência, tendo em consideração o conhecimento geral das pessoas face
à situação e ao conhecimento concreto daquele agente.

98
FD: “A teoria da adequação pretende traduzir o critério segundo o qual a imputação
penal não pode nunca ir além da capacidade geral do homem de dirigir e dominar os
processos causais.

(...) para a valoração jurídica da ilicitude serão relevantes não todas as condições,
mas só aquelas que, segundo as máximas da experiência e a normalidade do acontecer- e
portanto segundo o que é geral previsível-, são idóneas para produzir o resultado.
Consequências imprevisíveis, anómalas ou de verificação rara serão pois juridicamente
irrelevantes.”

Perante cada caso concreto o juiz tem de fazer um juízo de prognose póstuma: tem
de atender às condições em que estava o agente. É uma teoria da imputação jurídica, não da
causalidade. Esta teoria da adequação não atende apenas às circunstâncias em geral
conhecidas, mas também às de carácter especial conhecidas apenas pelo agente.

O juiz, no juízo de prognose póstuma, deve deslocar-se mentalmente para o passado,


para o momento em que foi praticada a conduta e ponderar, enquanto observador objetivo,
se, dadas as regras gerais da experiência e o normal acontecer dos factos, a ação praticada
teria como consequência a produção do resultado. Se entender que a produção do resultado
era imprevisível ou que, sendo previsível, era improvável ou de verificação rara, a imputação
não deverá ter lugar.

Por exemplo: A fere B, mas B era hemofílico e morre. Se A não soubesse que B era
hemofílico, atendendo às regras da experiência, ao conhecimento geral e ao conhecimento
concreto do agente, a morte não seria imputada a A. Mas se A soubesse que B era
hemofílico, a situação seria diferente.

Outro exemplo: Situação do tiro: A quer matar B. Há 99,99% de hipóteses de falhar.


Porém, ele acerta. Imputa-se? Deve-se atender às regras de previsibilidade ou às regras de
mera não impossibilidade? A doutrina diverge, mas o Professor defende a última opção.
Perante a não impossibilidade, a ação é proibida e punível.

Deve-se ter em consideração o critério da não impossibilidade, ou seja, ainda que


não fosse provável, este resultado não era impossível.

Teoria da conexão do risco

Teoria defendida por Figueiredo Dias e Eduardo Correia, mas da qual o Professor
discorda.

Aproveita aspetos das duas teorias anteriores, mas junta-lhe um terceiro elemento.
O ponto de partida é o da teoria das condições equivalentes, perspetiva naturalista, depois o
resultado a que se chega sofre a primeira correção da teoria da adequação e só depois é que
se introduz um terceiro escalão dos corretores de conexão de risco.

99
Assim, perante uma situação concreta há que percorrer 3 degraus17/etapas:

1. Nexo causal-naturalístico

De acordo com o critério de condição conforme as leis naturais, que diz que a uma
conduta corresponde um resultado (no entanto, em situações de ponta há divergências).

Como referido, aqui vale a teoria da equivalência das condições, aplicando-se


conjuntamente o critério de condições conforme às leis naturais. O objetivo é perceber se se
imputa resultado ou não. Não sendo isto suficiente, passa-se à segunda etapa.

2. Nexo de adequação

Tem de haver um nexo causal de adequação, mas nem todo o nexo causal é
relevante. Uma conduta só pode imputar resultado se, de acordo com as regras da
experiência e tendo em consideração os conhecimentos concretos do agente e gerais da
situação, nos termos do juízo de prognose póstuma, deixe antever a produção de um
resultado como uma consequência normal ou pelo menos não impossível.

No entanto, neste caso haveria aqui situações em que havia uma imputação injusta,
pelo que é necessário avançar para um terceiro passo.

3. Corretores de conexão de risco

Vão excluir o resultado em casos que, de acordo com a teoria anterior, deviam
imputar-se. Distinguem-se 4 corretores:

● Risco permitido: há setores de atividade necessários, socialmente úteis e, por isso,


permitidos, mas que envolvem riscos para bens jurídicos (ex.: tráfego rodoviário).

Devido à importância social desses setores, esses riscos não podem impedir que a
atividade se desenrole de todo. Assim sendo, o legislador faz uma ponderação de
custo-benefício. Pondera, por um lado, as vantagens decorrentes dos setores e, por outro
lado, os perigos. A partir daí, estabelece normas de cuidado que consubstanciam limitações
ao exercício dessa atividade (legislação propriamente dita, códigos deontológicos, regras
técnico-científicas, etc.).

Se a conduta respeitar as normas de cuidado, não se imputa o resultado, ainda que


possível (ex.: se A conduz dentro das regras, mas há óleo na estrada e atropela alguém, o
crime não lhe é imputado).

● Princípio da diminuição do risco: sempre que a concreta lesão do bem jurídico se


mostra necessária para evitar uma lesão maior a conduta é lícita.

17
Há variações destas etapas, nomeadamente de Roxin que afirma a existência de somente 2 degraus.
Contudo a divisão de Figueiredo Dias é a mais adequada.

100
Por exemplo: A para impedir que B seja atropelado, empurra-o causando-lhe uma
fratura. A fratura é uma lesão da integridade física mas preveniu uma lesão superior. Neste
caso não se imputará A.

● Comportamento lícito alternativo: o agente age de forma ilícita, mas, a posteriori,


sabe-se que se tivesse agido de forma lícita, o resultado seria o mesmo (que
decorreu da ação ilícita), o agente pode ser apenas punido pelo desvalor de ação (a
título de tentativa, que se aplica apenas no dolo).

Por exemplo: Um fabricante de pincéis português encomendou umas cerdas da


China para fazer pincéis. A lei portuguesa exigia que, antes de qualquer operação de fabrico,
as cerdas tivessem que ser desinfetadas, mas como estes procedimentos eram caros, o
produtor omitiu as desinfeções. Em decorrência disso, os trabalhadores (8 ou +
trabalhadores) vieram a ser internados por terem sido contaminados por uma bactéria das
cerdas.

Seria de imputar o resultado, dado que houve violação das normas, e, por isso, o
produtor devia ser responsabilizado. Contudo, em tribunal provou-se que mesmo que ele
tivesse procedido às desinfeções o resultado tinha sido o mesmo porque a bactéria era de
uma estirpe desconhecida na Europa, resistente e imune aos procedimentos conhecidos.

Na parte em que o tribunal se circunscreve à lesão de bens jurídicos, o resultado não


se imputa e ele vai ser apenas responsabilizado pelo desvalor da ação. Atuou com
negligência porque não queria matar – só seria punível por tentativa (mas a tentativa não é
punível por negligência, logo, impunível).

Este corretor é diferente dos anteriores, porque os outros tornavam a conduta lícita,
mas aqui permanece ilícita, apenas se exclui a imputação do resultado.

● Fim/âmbito de proteção da norma: só há crime quando a conduta viola o


fim/âmbito de proteção da norma. Se o resultado naturalístico não corresponder à
conduta ilícita praticada pelo agente, esse não lhe poderá ser imputado.

Por exemplo, numa certa estrada existe um limite de velocidade de 50km/h devido
apenas a um cruzamento. A circula nessa estrada a 80km/h e, por acaso, rebenta-lhe um
pneu causando um despiste e consequentemente o atropelamento de B. Como o limite é
50km/h e A estava a andar a 80, estaria já no risco proibido e podia pensar-se que deveria
ser imputado. No entanto, a finalidade da norma deve-se ao cruzamento e este não teve
causa alguma no atropelamento, portanto, pela teleologia da norma não se deveria imputar
o sr. A.

Assim, à luz desta norma de cuidado, só se lhe poderia imputar o resultado que
estivesse na base do fim de proteção da norma (se ele tivesse tido um acidente no
cruzamento).

101
Em suma, a doutrina da conexão do risco junta as teorias anteriores e reutiliza-as.
Por isso, no âmbito desta teoria, há que percorrer os três momentos:

1. Verificar se há nexo causal-naturalístico: imputação do resultado à conduta,


se não existir, não se imputa; se existir passa-se para o 2º nível;
2. Verificar se há nexo de adequação: cumprimento das regras de atuação, se
não houver, não há imputação; se houver passa-se para o 3º nível;
3. Verificar se algum dos corretores de conexão de risco é aplicável.

O Sr. Professor Almeida Costa discorda desta teoria e propõe outra18:

Em primeiro lugar, a discordância surge na base da adoção, pela teoria da conexão do


risco, do ilícito pessoal. O que está em causa na imputação objetiva é a determinação do ato
juridicamente relevante, ou seja, traduz-se em saber os requisitos que revestem o nexo de
ligação do agente ao facto criminoso, para que este lhe possa ser imputado. Portanto, a
imputação objetiva não é um problema exclusivo dos crimes materiais, integrando,
também, os crimes formais.

Em segundo lugar, a teoria da adequação (segundo escalão integrado na teoria da


conexão do risco) não pode incluir o critério da imputação objetiva, uma vez que,
historicamente, este conceito não teve esse significado. De acordo com Larenz, no início do
século XX, o conceito de imputação objetiva expressava uma espécie de juízo de culpa sobre
o homem médio, enquanto a imputacio iuris era a imputação do resultado danoso à
liberdade daquele concreto agente, e assim expressava um desvalor pessoal do ato.

Segue um exemplo para melhor entendimento: um farmacêutico vende uma


substância abortiva a A. É previsível que A venha a abortar, mas isto não imputa a prática do
aborto ao farmacêutico, ele limitou-se a vender a substância. Os crimes dolosos necessitam
da correspondência subjetiva-objetiva, ou seja, que o agente conheça da situação, queira
praticá-la e que a pratique efetivamente, seja sua obra. Neste caso isto não se verifica,
porque o farmacêutico só “tem mãos” na venda do medicamento, não no ato de praticar o
aborto.

Desta forma, o critério dos crimes dolosos não está na previsibilidade, só se pode
imputar o facto a alguém quando da vontade desse alguém depende o “se”, o “quando” e o
“como” do crime. Ao contrário do nexo de previsibilidade, entende-se que o critério de
imputação é um nexo de dominabilidade.

18
Em sede de exame, definir, no início de cada pergunta, qual será a doutrina pela qual nos vamos guiar no que
toca à imputação objetiva: se será a Teoria da Conexão do Risco ou a Teoria advogada pelo Sr. Professor Dr.
Almeida Costa.

102
Em terceiro lugar, os corretores de risco da teoria da conexão do risco não são
verdadeiramente critérios de imputação objetiva, seriam, sim, causas de exclusão de
ilicitude. Portanto, quando se verificam, não há sequer desvalor da conduta para ser
subsumível a um tipo incriminador em causa, a sua mera verificação é causa de exclusão da
tipicidade do facto.

Em último lugar, o comportamento lícito alternativo parte de uma lógica defeituosa.


Na dita teoria, estes só serviriam para crimes dolosos, mas na opinião do sr. Professor, na
direção de Jescheck e a Faria Costa, o comportamento lícito alternativo só deve vigorar nos
crimes negligentes, dado que nos crimes dolosos há o desvalor de uma intenção, seguido do
desvalor da ação e da produção efetiva do resultado. Para todos os efeitos, o agente
produziu o concreto resultado, atuando dolosamente. Assim, não reconhece nos casos dos
crimes dolosos qualquer relevância ao comportamento lícito alternativo. Logo, não se pode
considerar tentativa, desvalorizar uma ação, só porque o resultado iria ser igual. O que está
em causa não é isso, mas o desvalor da conduta.

Dito isto, o Sr. Professor Almeida Costa tem uma outra proposta para a imputação
objetiva dos crimes dolosos. Em alternativa à teoria da conexão do risco, o problema da
imputação objetiva dos delitos dolosos deve depender de dois momentos distintos:

1. Nexo de imputação: domínio do facto. Isto representa a síntese do tipo objetivo e


subjetivo dos crimes dolosos (que se dá quando o agente representa e quer praticar
o crime – o “quando”, “como” e “o quê” dependem da vontade do agente como foi
visto, já mencionado).
2. Causalidade naturalística: em último lugar, é necessário que a conduta seja causa
efetiva da produção do resultado. Aceita, portanto, a teoria da equivalência das
condições integrada pelo critério da condição conforme às leis naturais.

Deste modo, o agente tem de ter controlo sobre o ato, pelo que não basta a mera
previsibilidade. É necessário estabelecer a diferença entre o nexo desta e o nexo de
dominabilidade.

3. Nexo de previsibilidade
4. Nexo de dominabilidade

Por exemplo: O Sr. A quer matar o Sr. B e vai ter com C, pedindo-lhe uma pistola
emprestada. Este empréstimo deixa claro o nexo de previsibilidade, mas isto não é
suficiente. É necessário um nexo de dominabilidade, que não está previsto neste exemplo,
para que se possa falar de ilícito doloso (ou seja, associado a este elemento volitivo, seria
necessária a produção de um resultado naturalístico, ou seja, a morte de B às mãos de A).

Portanto, o critério basilar que exprime o desvalor da ação característico do ilícito


doloso (e por isso tem de ser o critério da imputação objetiva aplicável tanto aos crimes
materiais como aos crimes formais), é o domínio do facto.

103
O domínio do facto exige um juízo de prognose póstuma análoga da teoria da
adequação. Sendo que nesta teoria a pergunta do juiz seria algo como: “Será que é previsível
o resultado como consequência desta conduta?”

No entanto, aqui será diferente, uma vez que a teoria de adequação exprime um
nexo de previsibilidade. Porém, há situações em que um determinado crime é previsível,
sem, todavia, se poder dizer a respeito dele que constitui a concretização de uma decisão da
vontade do agente. Portanto, a real pergunta do juiz deveria ser: “Naquela situação,
atendendo às circunstâncias do caso, aquela conduta dá ao agente ou não o controlo sobre
“se”, “quando” e “como” - se dá o domínio do facto ou não?” É este o critério de imputação
objetiva.

Este raciocínio é semelhante, mas não igual à teoria da adequação, pois não
pergunta se é um resultado previsível, mas sim se a conduta dá ao agente o controlo sob a
verificação ou não do resultado.

Três figuras especiais de imputação objetiva:

1. Interrupção do nexo causal: são situações em que existem dois processos causais
independentes, que concorrem entre si para a produção de um resultado, mas um
deles antecipa-se e interseta o processo causal original (dá origem ao resultado
previamente).
○ Por exemplo, o sr. A dá um veneno para matar o sr. B. O sr. C também quer
matar o sr. B e também lhe dá um veneno. O veneno de C é mais potente. O
veneno de A demora 4h a atuar. Por sua vez, o veneno de C atua em 15
minutos. Imputa-se o resultado a quem? A C, enquanto A será punido por
tentativa, porque o processo causal posto em marcha foi interrompido,
ultrapassado por outro processo causal totalmente independente. C é o
causador efetivo do resultado.

2. Casos de causalidade cumulativa: são situações em que nenhuma das condutas é


suficiente para produzir o resultado, mas as duas juntas já passam a ser suficientes.

○ Ex.: o sr. A e o sr. B querem matar o sr. C e escolhem o veneno. Cada um


aplica a sua dose, só que cada uma das doses, isoladamente considerada, não
era apta para produzir a morte. Se apenas um deles tivesse aplicado o
veneno, o senhor A não morreria. Contudo, as duas doses juntas vêm a
produzir o resultado. Como resolver estes casos de causalidade cumulativa?
Existem três hipóteses:

104
- Se o senhor A e o senhor B não sabem do projeto criminoso um do outro, não
se pode imputar o resultado, porque as condutas isoladamente não são aptas
para produzir efetivamente o resultado. Neste caso, os dois serão punidos a
título de tentativa (tentativa inidónea ou impossível, nos termos do artigo 23º
nº3 CP);
-
- Coautoria: O caso de os dois atuarem concertadamente, mediante acordo;
em coautoria – dois agentes ou mais acordam, entre si, colaborar na
realização de um crime. Nestes casos de coautoria, há uma imputação
recíproca do comportamento de cada um dos agentes aos demais – é como
se cada um, isoladamente considerado, tivesse praticado o crime.
-
- O senhor A aplica o veneno sem saber que o senhor B fez o mesmo, mas o
senhor B viu o senhor A aplicar a dose de veneno e sabe que a dose do
senhor A é insuficiente e, então, aplica-lhe aquele bocadinho de veneno que
lhe falta, para que a conduta seja eficiente para produzir a morte. A é
condenado por tentativa e B por consumação (o agente que atua em 2º lugar
conhece a atuação do 1º, e decide prosseguir com a ação) .

3. Casos de causalidade alternativa: são situações em que dois sujeitos desencadeiam,


sobre o mesmo bem jurídico, uma ação causal e qualquer das ações é adequada a
produzir o resultado, mas não se consegue provar qual delas produziu efetivamente
o resultado.

A doutrina maioritária resolve isto da seguinte forma:

● Na doutrina maioritária, e em Processo Penal, vigora o in dubio pro reo, pelo que
necessariamente, neste caso, se não se pode provar qual dos dois tiros ou dos
venenos, produziu a morte, não se pode imputar a morte a nenhum dos agentes,
pelo que os dois serão apenas punidos por tentativa.

Porque é que se pune menos pela tentativa, sendo que o desvalor da ação é o
mesmo? A tentativa é menos punida devido ao menor alarme social relativamente a uma
efetiva lesão do bem jurídico tutelado – justificação para a diminuição da pena.

Mas, na opinião do Professor, se há efetivamente uma lesão do bem jurídico (a


morte) então não há fundamento para a diminuição da pena, porque o alarme social é tanto
quanto se a lesão fosse cometida por uma só pessoa. Assim, nos casos de causalidade
alternativa, o resultado deveria ser imputado a todos os agentes intervenientes,
consequentemente punidos a título de crime consumado.

105
O tipo subjetivo

Por norma, o elemento subjetivo do tipo doloso é o próprio dolo. O dolo consiste
numa designação – conhecimento e vontade de realização do crime, o agente conhece as
circunstâncias em que está a atuar. Ele conhece e quer realizar o tipo objetivo.

A abordagem do tipo subjetivo isoladamente considerado é meramente pedagógica,


porque na avaliação concreta, parte-se sempre da perspetiva subjetiva-objetiva. Ou seja, o
tipo objetivo e o tipo subjetivo não são estratos dogmáticos independentes, o estudo em
separado serve apenas para fins de melhor compreensão.

A partir daqui fala-se dos dois elementos do dolo – o intelectual e o volitivo.

Elemento intelectual

Conhecimento da realidade concreta em que o agente está a atuar. A realidade fática


consiste no agente conhecer exatamente a natureza do objeto que está a atingir (o agente
conhece os elementos integradores do tipo objetivo), a natureza dos meios que está a
desencadear e dos seus próprios efeitos.

FD: ”Do que neste elemento verdadeiramente e antes de tudo se trata é da


necessidade, para que o dolo do tipo se afirme, que o agente conheça, saiba, represente
corretamente ou tenha consciência (consciência “psicológica” ou consciência “intencional”)
das circunstâncias do facto que preenche um tipo de ilícito objetivo.”

“A razão desta exigência deve ser vista à luz da função que este elemento
desempenha: o que com ele se pretende é que, ao atuar, o agente conheça tudo quanto é
necessário a uma correta orientação da sua consciência ética para o desvalor jurídico que
concretamente se liga à ação intentada, para o seu carácter ilícito.”

O agente tem de atualizar/representar todos os elementos integradores do tipo. Se


isto não se encontrar preenchido, não se tem dolo.

Exemplo: Sr. A vai à caça. Vê um vulto, dispara e mata a pensar que era um animal.
Afinal era um homem. Aqui falta o elemento intelectual para se tratar de dolo. Ele precisava
de saber que o vulto era um homem. Será punido, portanto, a título de negligência.

O legislador, muitas vezes, socorre-se de conceitos descritivos (homem, casa, etc.).


No entanto, por vezes, socorre-se também de elementos normativos – que convocam uma
valoração – conceitos normativos de índole técnico-jurídica. O legislador recorre a
conceitos técnico-jurídicos de outros ramos do direito (boa fé, ato administrativo válido ou
inválido, etc.). O que está em causa é a realidade fática que ele quer retratar.

O problema que se coloca ao recorrer a estes conceitos é saber que tipo de


conhecimento se irá exigir ao agente. Deve exigir-se o conhecimento técnico, dogmático ao

106
homem comum? Se assim fosse, só os juristas especializados poderiam cometer esses
crimes. Por isso, é que a generalidade da doutrina diz que se exige o conhecimento à esfera
do leigo.

A mesma ideia foi expressa por Beleza dos Santos (a qual o Sr. Professor prefere) que
diz que se deve atender às consequências práticas que se atribui a esses conceitos jurídicos.

E que tipo de conhecimento é necessário?

● Conhecimento quanto à extensão/conteúdo: o agente tem de representar toda a


factualidade típica, tanto aquela que é designada através de conceitos descritivos
como a designada através de conceitos normativos.

Quanto aos conceitos normativos de natureza técnico-jurídica, exige-se o


conhecimento à esfera da lei ou que as consequências práticas se liguem ao conceito
jurídico. O agente tem também de representar o próprio nexo causal que desencadeou no
sentido da lesão ou colocação em perigo de um bem jurídico.

● Conhecimento quanto ao modo: quando o agente atua de forma consciente/dolosa


existe um conjunto de conhecimentos que não eleva à consciência refletida, mas que
são implicados na sua conduta e em qualquer momento podem ser atualizados.

A atividade com consciência/conhecimento para a afirmação do elemento intelectual


do dolo vai muito para além do conhecimento que está ao nível da consciência refletida
(co-consciência). Por exemplo, apesar de não sentirmos que temos a roupa, sabemos que
estamos vestidos.

O conhecimento que é exigido para a afirmação do elemento intelectual do dolo


não se restringe aos atos sobre os quais está focada a nossa consciência (consciência
refletida – momentos em que o agente atua e está concentrado). Para além desse âmbito
restrito da consciência refletida, a afirmação do elemento intelectual vai até ao nível da
co-consciência.

Conclui-se, portanto, que não pode haver dolo sem elemento intelectual. Então
como se solucionam as situações em que esse elemento não existe?

● Situações de erro sobre as circunstâncias de facto/erro sobre a factualidade típica –


artigo 16.º nº1.º do CP:

“Erro sobre as circunstâncias de facto:

1 - O erro sobre elementos de facto ou de direito de um tipo de crime, ou sobre


proibições cujo conhecimento for razoavelmente indispensável para que o agente possa
tomar consciência da ilicitude do facto, exclui o dolo.”

107
O erro sobre a factualidade típica caracteriza-se pela ausência do elemento
intelectual do dolo. Se não há este elemento, não há dolo.

O que se faz ao agente? A falta do elemento intelectual do dolo poderá dar lugar à
punição a título de negligência.

Punição a título de negligência - erro intelectual

O fundamento material da negligência é a violação do dever objetivo de cuidado.


Pelo simples facto de viver em sociedade, o homem, na medida em que recebe vantagens
de viver em sociedade, tem também alguns encargos – sendo que um deles é o dever
objetivo de cuidado.

O dever objetivo de cuidado exige que todas as pessoas, ao longo da sua vida, em
todos os atos, mantenham a atenção psicológica necessária para antecipar as consequências
dos seus atos e se abstenham daqueles que possam resultar na lesão de bens jurídicos.
Daqui resulta uma limitação quanto à punição do erro sobre a factualidade típica.

O agente só poderá ser punido a título de negligência se esse erro se ficar a dever a
um descuido/ leviandade censurável no plano jurídico-criminal. Esta punição, no entanto,
depende de dois requisitos:

1. Formal: negligência é uma forma menos grave de responsabilidade.

O artigo 13.º do CP determina a excecionalidade da negligência - “só é punível o facto


praticado com dolo ou, nos casos especialmente previstos na lei, com negligência.”
Entende-se que sendo a negligência menos grave, os interesses em causa podem ser
acautelados com sanções de Direito Civil e, portanto, só em casos mais graves, onde estejam
em causa bens jurídicos de maior valoração, é que os crimes de negligência serão puníveis
pelo Direito Penal. Ou seja, o crime em causa tem de admitir a opção da negligência, através
da lei (1º requisito).

2. Material: na negligência o agente não quer praticar um crime, mas, por descuido,
não pondera convenientemente o circunstancialismo fático em que atua. Isto é, sem
querer acaba por lesar o bem jurídico.

Deste modo, o erro intelectual só poderá ser punido a título de negligência se se


provar que o agente, se tivesse atuado conforme ao dever objetivo de cuidado (cuidado
exigido ao homem médio), teria conhecido corretamente a situação fática em que estava a
atuar e assim não teria errado, podendo ter evitado a lesão do bem-jurídico. Este requisito
deriva do fundamento material que subjaz à punição da negligência.

Artigo 16 nº3.º do CP:

“Erro sobre as circunstâncias de facto:

108
3 - Fica ressalvada a punibilidade da negligência nos termos gerais.”

Artigos 13.º (caráter excecional da punição por negligência – requisito formal de lei)
e 15.º (requisito material da punição a título de negligência) do CP.

Artigo 15.º do CP:

“Negligência:

Age com negligência quem, por não proceder com o cuidado a que, segundo as
circunstâncias, está obrigado e de que é capaz:

a) Representar como possível a realização de um facto que preenche um tipo de


crime mas actuar sem se conformar com essa realização (negligência
consciente); ou
b) b) Não chegar sequer a representar a possibilidade de realização do facto.
(negligência inconsciente)”

É necessário que o erro se tenha ficado a dever por descuido do agente. Se ele
tivesse agido com o cuidado mínimo, tinha conhecido o tipo e ter-se-ia, portanto, abstido da
prática dessa ação.

Artigo 16 nº1, 1.ª parte:

“Erro sobre as circunstâncias do facto:

1 - O erro sobre elementos de facto ou de direito de um tipo de crime…”

Casos especiais do erro intelectual

Há casos especiais não previstos na lei, mas que resultam dos princípios gerais e são
erros de conhecimento. Nestes casos especiais do erro sobre factualidade típica o projeto
do agente é já um projeto criminoso (projeto da prática de um ilícito), só que, também
devido a um erro intelectual ou de conhecimento (sobre o circunstancialismo de facto em
que atua), vem a produzir um crime diverso daquele que projetava.

Existe, assim:

● Erro sobre a pessoa: o agente pratica o crime sobre pessoa diferente do que o que
tinha planeado.

Exemplo: Sr. A quer matar Sr. B. Vê um vulto, achando que era B e dispara, mas era C.

● Erro sobre o objeto: o agente pratica o crime sob um objeto diferente do


intencionado.

109
Exemplo: Sr. A quer roubar uma caixa de latão. Após furtar, repara que a caixa era de
ouro – queria praticar um furto simples, mas acaba por praticar um furto qualificado.

FD: “O decurso real do acontecimento corresponde inteiramente ao intentado, só que


o agente se encontra em erro quanto à identidade da pessoa ou do objeto a atingir – existe
um erro na formação de vontade.”

Devemos fazer uma questão prévia: há ou não identidade típica entre o crime
projetado e o crime consumado? Há coincidência entre o desvalor intencionado e o desvalor
de resultado?

Se houver identidade típica entre o crime projetado e o crime consumado (se o


crime praticado couber no mesmo tipo legal do crime intencionado) o erro não releva, vai
ser punido pelo crime consumado a título de dolo.

Quanto ao 1º exemplo – é sempre homicídio; Sr. A quer matar uma pessoa e mata
uma pessoa.

Mas e quando não há identidade típica? Há alguma divergência doutrinal. Na


doutrina portuguesa, houve quem quisesse tratar como um só crime.

- Eduardo Correia defendia que o agente deveria ser punido pelo crime projetado
como se o tivesse consumado. - contraria o processo do Direito Penal do facto.
- O Dr. Cavaleiro Ferreira defendia que o agente deveria ser sempre punido pelo crime
consumado, o que também não parece uma solução correta. - contraria o processo
do Direito Penal da culpa.

Em face desta dificuldade, a doutrina alemã e a doutrina maioritária portuguesa


seguindo a doutrina alemã, elaborou a seguinte solução:

Relativamente aos casos em que não há identidade típica, o agente seria punido pelo
concurso de crimes (crime projetado a título de tentativa + crime praticado consumado) –
solução concursal (ex.: quando alguém pretende roubar uma caixa de ouro, mas acaba por
roubar uma de latão. Não existe identidade típica entre o crime projetado e o consumado,
pelo que o agente será punido a título de tentativa de roubo de ouro, e crime consumado de
roubo de latão).

Esta modalidade de erro (casos em que falta a identidade típica entre o crime
projetado e o crime consumado) não está expressamente prevista da lei – por isso, para a
doutrina maioritária, a solução resulta do funcionamento das regras gerais no sentido da
tentativa e da negligência.

● Erro sobre a execução (aberratio ictus vel impetus): O agente tem um projeto
criminoso, mas vem a praticar um diverso do intencionado, porque tem uma
execução defeituosa. O agente tem uma intenção criminosa, mas vem a consumar

110
um crime diferente: isto não é resultado de um indevido conhecimento da realidade,
mas da deficiente execução. Assemelha-se, de certa forma, ao erro sobre pessoa –
tanto que se tentou aplicar o mesmo regime desse erro (a teoria da identidade
típica), mas essa ideia foi descartada.

FD: “Aqui o resultado ao qual se referia a vontade de realização do facto não se


verifica, mas sim um outro, da mesma espécie ou de espécie diferente. A ação falha o seu
alvo e apresenta por isso a estrutura da tentativa. A produção do outro resultado, que tanto
podia não ter lugar como ser de outra gravidade, só pode eventualmente conformar um
crime negligente. A punição deve por isso ter lugar só por tentativa ou por concurso desta
com um crime negligente; é a chamada teoria da concretização.”

Exemplo: A quer matar B. A vê B a conversar com C. Ele sabe quem é o senhor B e o


senhor C, portanto, não há nenhum erro de representação da realidade. Mas ao disparar
para B acerta em C e mata C em vez de B. Há uma execução defeituosa. Se ele tem um exato
conhecimento sobre a realidade, é um erro de execução e não sobre a pessoa ou objeto.
Nestes casos, a doutrina considera que o agente deve ser punido sempre por concurso de
crimes (tentativa face ao crime projetado, e crime consumado face ao resultado que
efetivamente se verificou);

● Erro sobre o processo causal: O sr. professor Almeida Costa considera que este erro é
igual ao anterior, mas a doutrina maioritária entende que neste o agente produz o
resultado que queria no objeto que queria, só que num processo causal distinto do
projetado.

Exemplo: O senhor A quer matar o senhor B por afogamento, atirando-o da ponte de


D. Luís, só que ele acaba por morrer, mas não de afogamento, antes por o embate num dos
pilares. O objeto e o resultado são o mesmo, mas produzidos por um processo causal
diferente do projetado.

Existem diversas soluções:

- A solução por tentativa – partia do pressuposto do tipo como um dolo natural (ou
seja, do dolo que se esgota no nexo psicológico entre o agente e o facto). O dolo
natural do agente restringia-se a um processo de matar por afogamento, por
exemplo, logo, não abrangia o processo de matar por embate. O agente só podia ser
punido nos quadros de um concurso de crimes.

Do ponto de vista teórico, esta solução é de uma coerência irrepreensível – o dolo do


agente restringe-se à vontade de conhecimento e realização de uma morte por afogamento.
Mas a morte não se realizou por afogamento, logo não se pode imputar um resultado.
Temos apenas uma tentativa.

111
Por outro lado, isto desvirtua o sentido do ato – e a isto se junta um outro
inconveniente: a punição por negligência é excecional, bem como a punição por tentativa,
o que significa que se estivermos perante crimes que não admitem ambas as soluções, o
agente fica impune.

- A solução por consumação – que tradicionalmente foi defendida por Eduardo


Correia. Dizia que sempre que, apesar de não corresponder ao processo causal
representado, o processo causal efetivamente ocorrido coubesse no perigo típico
da conduta e fosse previsível, o agente seria punido pelo crime consumado a tipo de
dolo. Só assim não se sucederia se o resultado não fosse previsível.
-
- A solução pessoal-objetiva (sr. Professor Almeida Costa) – o ser humano tem que
antever as consequências possíveis da sua conduta. O homem médio ao realizar este
ato, está a conformar-se com qualquer uma das consequências, mesmo que lhe seja
preferível uma delas. O agente tem que ser punido pela consumação do ato.

Há uma diferença entre esta solução e a anterior – o problema do dolo não é o dolo
natural; esta solução ultrapassa a dificuldade dogmática da solução anterior (caso o agente,
tanto na perspetiva do homem médio como na sua própria perspetiva subjetiva, tenha
conhecimento de uma série de resultados possíveis em consequência da sua conduta, para
além do projetado, e um deles se verifique, é lhe imputado esse resultado a título de dolo).

● Dolus generalis19: traduz-se no agente pôr em prática um projeto criminoso,


atingindo o resultado pretendido, só que este resultado é realizado e consumado
por um ato que o agente projetou já com o objetivo de encobrir o crime praticado,
isto é, posterior. Para uma parte da doutrina, no fim de contas, o ato de
encobrimento é algo de presumível (é uma consequência quase necessária da prática
do crime) daí que nestas situações o que verificamos é um desvio do processo causal
– o processo causal foi alterado pelo agente e o resultado vem a produzir-se não pelo
processo causal pensado, mas sim através de outro.

FD: “Do que substancialmente se trata sob esta epígrafe é de casos em que o agente
erra sobre qual de diversos atos de uma conexão da ação produzirá o resultado almejado. De
casos, digamos, que cronologicamente ocorrem em dois tempos: num primeiro momento o
agente pensa erroneamente ter produzido, com a sua ação, o resultado típico; num segundo
momento, fruto de uma nova atuação do agente (quase sempre com fins de encobrimento),
o resultado vem efetivamente a concretizar-se.”

Tem diversas soluções doutrinais:

19
Não vai ser avaliado em sede de exame.

112
- Maioritária: o erro subjacente às hipóteses do dolus generalis não deve relevar e o
agente deve ser sempre punido nos quadros da unidade criminosa, ou seja, pelo
crime consumado a título doloso.
- Do Sr. Professor Almeida Costa: teremos de considerar se o homem médio teria em
conta as circunstâncias (o comportamento de atirar um corpo a um rio resultaria
num homicídio consumado); se o homem médio também errasse perante aquele
quadro, teríamos verdadeiramente uma tentativa de ocultação de cadáver, não um
homicídio. Em função destas duas diferentes respostas, será também diferente a
solução apresentada.

● Erros sobre as proibições: não é um erro sobre a factualidade (o agente tem um


conhecimento correto sobre a realidade), a diferença está na própria natureza dos
ilícitos, das normas, das proibições.

Nas sociedades modernas, há setores de atividade que exigem particulares


conhecimentos científicos e técnicos; no domínio económico e financeiro, a realidade está
sempre a mudar, pelo que a legislação não dá tempo suficiente para as suas proibições
serem conhecidas pelas pessoas.

São proibições que pela sua natureza técnica escapam ao conhecimento do homem
comum. A única forma de conhecer este tipo de proibições é conhecer a lei – sem este
conhecimento expresso, a pessoa comum não pode tomar conhecimento. Nestes casos
(preenchidos os requisitos formal e material), o agente é julgado a título de negligência
(artigo 13.º do CP).

Artigo 16º nº1, 2.ª parte:

“Erro sobre as circunstâncias do facto:

1 - O erro sobre elementos de facto ou de direito de um tipo de crime, ou sobre


proibições cujo conhecimento for razoavelmente indispensável para que o agente possa
tomar consciência da ilicitude do facto, exclui o dolo.”

Artigo 17.º do CP:

“Erro sobre a ilicitude:

1 - Age sem culpa quem atuar sem consciência da ilicitude do facto, se o erro lhe não
for censurável.

2 - Se o erro lhe for censurável, o agente é punido com a pena aplicável ao crime
doloso respectivo, a qual pode ser especialmente atenuada.”

Qual é a diferença entre o erro sobre as proibições e o erro sobre a ilicitude?

113
A natureza dos ilícitos em causa. No caso do artigo 17.º estão em causa ilícitos cuja
aprendizagem resulta dos próprios processos normais de integração (roubar, matar, violar,
etc. é proibido); já estão interiorizados na consciência axiológica comunitária.

Se o erro sobre as tais proibições já interiorizadas na comunidade for censurável, será


punido a título de dolo. No erro sobre proibições trata-se de erros de caráter técnico que
escapam ao conhecimento do homem comum. Em alguns setores de atividade social os
ilícitos adquirem carácter especializado.

Para que o agente tome consciência dessa ilicitude, alguém tem de lhe mostrar essa
tal norma. O erro sobre as proibições, embora não seja um erro sobre as circunstâncias de
facto, é também um erro intelectual, daí que se aplique o regime do erro das circunstâncias
de facto (caso o desconhecimento da norma, de carácter técnico, lhe seja censurável, pode
ser punido a título de negligência).

Elemento volitivo

O dolo não é só conhecimento: é conhecimento e resultado, o agente conhece e


quer realizar uma conduta que preenche o tipo objetivo do ilícito. Daí que exista a
confluência entre o tipo objetivo e o tipo subjetivo no âmbito dos crimes dolosos.

FD: “O conhecimento (previsão) das circunstâncias de facto e, na medida necessária,


do decurso do acontecimento não podem, só por si, indiciar a contrariedade ou indiferença
ao dever-ser jurídico-penal, manifestada pelo agente no seu facto, que dissemos caracterizar
a culpa dolosa e, em definitivo, justificar a punição do agente a título de dolo. O dolo do tipo
não pode bastar-se com aquele conhecimento, mas exige ainda que a prática do facto seja
presidida por uma vontade dirigida à sua realização.”

É o elemento volitivo que distingue o dolo da negligência. Assim, é aqui que se


encontra o elemento distintivo do dolo jurídico-penalmente relevante. Só através do
elemento volitivo é que podemos dizer quando é que o agente quis o facto.

Artigo 14.º do CP:

“Dolo:

1 - Age com dolo quem, representando um facto que preenche um tipo de crime,
actuar com intenção de o realizar.

2 - Age ainda com dolo quem representar a realização de um facto que preenche um
tipo de crime como consequência necessária da sua conduta.

3 - Quando a realização de um facto que preenche um tipo de crime for representada


como consequência possível da conduta, há dolo se o agente atuar conformando-se com
aquela realização.”

114
Distinguem-se, então, três modalidades de dolo, que não estão ligadas em primeira
linha a uma hierarquização, embora a doutrina considere que uma delas é menos grave do
que as restantes. É um objetivo definitório que está enunciado no artigo 14.º do CP
supramencionado.

1. Dolo direto/direto de 1.º grau - a finalidade primeira da conduta é a própria


prática do crime (art. 14º nº1) - A quer matar B - o objetivo central da
conduta é o homicídio.

A generalidade da doutrina admite falar de dolo direto desde que a consequência


seja não impossível. Exemplo prático: A quer matar B. B está a uma grande distância. A tem
99% de hipóteses de falhar, mas acerta. O resultado não era provável, mas era não
impossível e basta a não impossibilidade para se imputar a título de dolo direto.

Justifica-se que o legislador impute a título de dolo direto já que há a violação da


norma de determinação que diz “não mates”, norma esta que determina que é preciso haver
a abstenção da prática de qualquer conduta que possa conduzir à morte.

2. Dolo necessário/indireto de 2.º grau - o crime surge não como objetivo


central da conduta, mas como uma consequência necessária e inevitável ou
muito provável.

O agente não quer praticar o crime, quer praticar outra coisa, mas dessa conduta e
desse fim que prossegue, resulta como consequência necessária a prática do crime (art. 14.º
nº 2 do CP) - exemplo: A quer assaltar um banco, mas tem de matar o guarda.

3. Dolo eventual - tem um elemento comum com o dolo necessário: a prática


do crime não é o objetivo central, é uma consequência secundária da ação.

Só que essa consequência secundária, o crime, surge não como uma consequência
necessária e inevitável, mas possível – o grau de probabilidade é menor (artigo 14º nº3º).
Daqui coloca-se o problema de determinar a diferença entre o dolo eventual e a negligência
consciente.

Exemplo muito ilustrativo que combina as três hipóteses:

A tem um ódio tremendo a B. A decidiu, portanto, lançar fogo à casa de B. Sucede


que o senhor C tinha o carro estacionado na garagem de B.

A nem tem nada contra C, mas continua a querer lançar fogo à casa de B. B tem uma
empregada (D) que aparece muito raramente, nunca se sabe quando estará por casa: A sabe
desta situação. Apesar disto, A ateia fogo a casa da B. O carro de senhor C fica destruído, a
empregada (D) encontrava-se em casa e morreu.

Destacam-se, então, as 3 hipóteses de dolo:

115
● Direto em relação à casa de B;
● Necessário em relação ao automóvel de C;
● Eventual em relação à empregada (D).

Assim, a diferença entre o necessário e o dolo eventual está na maior ou menor


probabilidade de conduta. O grande problema, como destacado acima, encontra-se na
distinção do dolo eventual e da negligência consciente.

O elemento intelectual do dolo eventual e da negligência consciente é o mesmo,


uma vez que o agente visualiza o crime como conduta possível, a diferença está no elemento
volitivo. Perante a representação do resultado como consequência possível, no dolo
eventual, o agente conforma-se com o resultado, ou seja, atua dizendo para si que o
resultado lhe é indiferente (por isso é que a doutrina considera que neste dolo ainda há um
elemento de vontade). É este elemento subjetivo que permite à doutrina tradicional
considerar o dolo eventual como ainda uma forma de dolo, diferentemente da negligência
consciente.

No que respeita à negligência consciente, o agente visualiza também a conduta como


possível, mas atua porque está convencido que naquele caso tudo vai correr bem e que não
se vai realizar a conduta do ilícito-típico (é o chamado agente positivista). Na negligência, o
agente não quis o resultado.

Em síntese, num caso, o agente conforma-se, no outro caso, o agente só leva a


conduta em diante porque acredita que o crime não se vai consumar – a diferença entre
ambos se encontra, portanto, no elemento volitivo (a distinção baseia-se fundamentalmente
num nexo psicológico).

Tal como está prevista na lei, a negligência consciente tem um elemento intelectual
idêntico ao do dolo eventual, como dito anteriormente.

Artigo 15.º al. a):

“Negligência:

Age com negligência quem, por não proceder com o cuidado a que, segundo as
circunstâncias, está obrigado e de que é capaz:

a) Representar como possível a realização de um facto que preenche um tipo de


crime mas actuar sem se conformar com essa realização; ou

b) Não chegar sequer a representar a possibilidade de realização do facto.”

Nem sempre as situações de dolo eventual e negligência consciente foram resolvidas


da mesma forma, tanto que alguma doutrina (minoritária) defende a aplicação de um
critério objetivo (teorias da verosimilhança – Eduardo Correia ou teorias da probabilidade –
Figueiredo Dias). No fundo, dava-se completa arbitrariedade ao juiz.

116
No entanto, é preciso um critério seguro. Por isso, a doutrina elege um critério de
natureza subjetiva.

Teoria da conformação – consagrada na nossa lei nos artigos 14º nº3 e 15º al. a):

O dolo eventual e a negligência consciente têm o mesmo elemento intelectual, em


ambos os casos o agente representa o resultado como possível. A diferença está no
elemento volitivo.

● Na negligência, o agente não se conforma (ex.: ultrapassar – achar que dá tempo, e


depois afinal não dá; ele analisou e sabe o que pode acontecer, apesar de não o
querer).
● No dolo eventual, o agente coloca os seus interesses acima da norma jurídica; ele
não se conforma com o resultado, mas acredita que este não iria acontecer.

Mas e se o agente não toma uma posição? Houve várias soluções, mas do ponto de
vista do Sr. Professor a que melhor satisfaz as valorizações jurídico-criminais é a teoria da
dupla negativa.

Teoria da dupla negativa (solução do Professor Eduardo Correia):

Pretende resolver o problema das situações em que o agente representa a situação


como possível, mas não toma posição. Ele usa a relação de contrariedade entre conceitos.

● Contrário de branco? Não branco – pode ser verde, amarelo, vermelho, desde que
não seja branco.

O Professor Eduardo Correia parte do conceito de negligência (em que o agente


confia que o resultado não se verificará) e em tudo o resto aplica-se o dolo eventual (quando
o agente não confia que o resultado não se verificará). Acredita que o não tomar de uma
posição face à eventual lesão de um bem jurídico essencial é tão grave quanto a
conformação com esta mesma lesão, e representa um perigo semelhante para a sociedade,
pelo que deve ser punido de igual modo.

● Dolo eventual: o agente não confia que o resultado não se vai produzir;
● Negligência: o agente confia que o resultado não vai acontecer.

Nestes termos, a distinção do dolo direto/indireto e eventual corresponderá a uma


hierarquização? Como já referido, a maioria da doutrina diz que de facto não existe,
tratando-se apenas de uma estruturação pelo que há momentos em que o dolo eventual é
mais grave do que o dolo direto. Não acontece o mesmo na Alemanha, onde se acredita na
hierarquização do dolo, considerando o eventual o mais “leve”.

O professor Almeida Costa também defende que existe uma valoração gradativa.
Sugere que se termina com a gradação bipartida das condutas (dolo/negligência), passando
a uma distinção tripartida:

117
1. Dolo de resultado (onde se insere o dolo direto e o dolo indireto);
2. Dolo de perigo (onde se insere o dolo eventual e a negligência consciente).

Esta seria uma categoria intermédia, entre o dolo de resultado e negligência.

Figueiredo Dias apresenta uma proposta semelhante onde aborda a classificação da


temeridade (numa semelhança ao sistema anglo-americano onde existe a categoria da
recklessness). Isto porque a distinção entre negligência consciente e dolo eventual baseia-se
nas características psicológicas.

3. Negligência (onde se insere a negligência inconsciente).

Porém, esta distinção levanta problemas. A tentativa só é punível a título de dolo e


não de negligência. Mas será que poderia ser punida a título de dolo de perigo, que inclui
tanto o dolo como a negligência? Outro problema consiste na graduação da pena – hoje
existem as penas aplicadas ao dolo e à negligência, por isso, tinha-se de arranjar penas que
se aplicassem a uma situação intermédia.

Esta é apenas uma proposta para o Direito a constituir. Enquanto se tiver a lei atual,
continuar-se-á com os artigos 14.º - (1) dolo direto; (2) dolo indireto e (3) dolo eventual -, e
15.º - al. a) negligência consciente; al. b) negligência inconsciente. A partir disto, faz-se as
distinções tradicionais.

Há ainda que caracterizar três modalidades do dolo20:

1. Dolus alternativus;
2. Dolus antencedens ou dolo antecedente;
3. Dolus subsequens.

Dolus alternativus ou dolo alternativo

Casos em que alguém empreende uma conduta e antevê como possíveis dois ou
mais resultados alternativos. Quando há duas ou mais hipóteses de resultado da conduta,
ocorrendo um deles, o agente conforma-se com este resultado.

Como se lida com estes crimes? Na doutrina alemã verifica-se alguma doutrina
divergente:

● Concurso ideal entre o crime tentado (a título de tentativa) e o crime consumado (a


título de negligência) – juntam-se os dois, não é defendida por ninguém, porque em
Portugal nem sequer existe a figura de “concurso ideal”;
● Posição de Figueiredo Dias – julga unicamente o crime consumado a título de dolo;

20
Os dois últimos não são penalmente relevantes.

118
● Deve aplicar-se a pena mais pesada. O Professor Almeida Costa defende esta ideia –
aplica-se a norma que melhor se relaciona com a conduta do agente – consunção.
Ou seja, tem-se de aplicar o tipo que melhor retratar o desvalor ou o sentido
jurídico-penal da própria situação, que pode ser a norma correspondente ao crime
consumado ou a norma correspondente ao crime que era alternativo. Tudo
dependerá do caso concreto.

Ex.: Quem mata o pai pratica um homicídio simples e um qualificado. Vai ser punido
por apenas um crime. Deve ser punido por qual? Pelo mais gravoso.

Dolus antencedens ou dolo antecedente

Pretende-se com uma conduta projetada com um certo resultado, mas esse
resultado é realizado com um ato anterior, preparatório. Isto é, o agente quer realizar a
conduta mas vem realizá-la em momento anterior ao pretendido.

Não é dolo, devido à falta do elemento volitivo – o ato em questão, que alcançou o
resultado, não tinha o objetivo de conseguir esse resultado. Ou seja, o agente, com esse ato
preparatório, não queria cometer o resultado. Não releva juridicamente.

Exemplo: Sr. A está a ver a sua casa ser assaltada pelo Sr. B e só tem intenção de
pegar na sua arma e disparar quando B começar a furtar, mas, ao pegar na arma para se
preparar, a mesma dispara e mata B. Nesse momento, A não queria matar e por isso pode
ser acusado apenas por negligência.

A vontade de consumar tem de estar sempre presente para que haja dolo. Aqui
existe simplesmente um ato preparatório e não um ato que efetue o crime.

Dolus subsequens ou dolo subsequente

Alguém que produz um resultado de forma não dolosa.

O sr. A tem uma qualquer conduta não dolosa. Tem uma arma e está a exercitar-se
com a arma, mas sem querer um dos tiros que dispara atinge alguém. Vai lá ver a vítima e vê
o seu antigo inimigo. Fica contente por, sem querer, o ter atingido (um agente, através de
uma determinada conduta, chega a um resultado que não previa nem intencionava, mas
posteriormente acaba por se conformar com esse mesmo resultado).

O ato que consuma o crime não é acompanhado do conhecimento e vontade, a


felicidade vem à posteriori, pelo que é jurídico-penalmente irrelevante. Quanto muito o
resultado só será imputável a título de negligência.

Termina-se, desta forma, o estudo do dolo.

119
Elemento emocional

A doutrina tradicional integra o elemento emocional na culpa. Assim, o dolo não se


esgota no conhecimento e vontade (não está somente associado ao dolo natural de
inspiração finalista - estrutura psicológica). O dolo é uma expressão do modo de ser, de uma
atitude perante o Direito Penal.

Pode acontecer que se preencham os elementos volitivos mas que não se esteja
perante o dolo como, por exemplo, no caso do erro intelectual presente no artigo 16.º nº1
(2ªparte) em que o agente quer realizar o ilícito-típico porque não sabe que é proibido, logo,
nessas situações existiria um ilícito-doloso que seria apenas punido por ilícito negligente e
com isso a própria natureza do ilícito pessoal seria pervertida/corrompida, uma vez que esse
ilícito pessoal pretende exprimir o sentido do ato como ato de uma pessoa em geral. Ainda a
nível do critério do homem médio, na situação de negligência consciente em que o agente
não se conforma, pelo que a conduta passa a ter tão só a lógica de descuido, por isso, o
sentido da conduta é o sentido de uma conduta negligente porque só exprime o descuido do
agente.

Outro exemplo está no erro sobre as proibições, onde também o homem médio não
tem presente as proibições técnicas porque é leigo, portanto, se ele ignora a ilicitude só
pode ser censurado por tal enquanto descuido, assim, também a este nível existe uma
conduta negligente e não um ilícito doloso.

Deste modo, a generalidade dos autores, particularmente Figueiredo Dias,


circunscrevem o dolo “do tipo” aos elementos intelectual e volitivo, o que ocasiona
consequências contraditórias como visto.

Consequentemente, isto significa que o dolo não se esgota/limita ao elemento


intelectual e volitivo. É preciso ter em conta o elemento emocional na definição do
ilícito-típico doloso. Este elemento resulta na averiguação de saber, em concreto, se, apesar
do agente saber e querer realizar o ilícito, manifesta atitude contrária ao Direito Penal ou
apenas é leviano e descuidado.

Deste modo, regra geral, o tipo subjetivo do ilícito-culposo esgota-se com o dolo.
Todavia, excecionalmente, pode o legislador exigir requisitos especiais:

● Especiais intenções;
● Especiais impulsos afetivos;
● Especiais motivos;
● Especiais características da personalidade que se concretizem no ato.

Muitos destes elementos subjetivos especiais resultam, pela história, de critérios de


ordem moralista, por muito que de forma inconsciente, mas não é um problema a ser
estudado por nós.

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Ainda assim, não se está abandonar o elemento do facto do Direito Penal, é
necessário haver uma conduta com lesão ou colocação em perigo de um bem jurídico, é
ainda necessário, que o ato tenha sido praticado com um determinado fim – por exemplo,
no crime de furto não basta produzir o dano, é necessário que a conduta seja praticada com
intenção de apropriação, de fazer ilegitimamente seu e é isso que distingue o furto tout
court do furto de uso, outro exemplo é a burla, na burla é necessário que esta seja feita com
a intenção de enriquecimento, entre outros - art. 132º als. e), f) e j) por força do art. 145º,
nº 2 também se aplicam às ofensas da integridade física qualificadas.

Com isto levantam-se grandes problemas, por exemplo, em alguns casos estão a ser
punidos determinados modos de ser.

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