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2021/2022

SEBENTA DE 1.º SEMESTRE

D I R
E I T O
PENAL
José Santos
Com os apontamentos de
Maria Luís Carvalho
Faculdade de Direito da Universidade do Porto 2021/2022

Nota introdutória:

Esta sebenta de Direito Penal, disponibilizada pela Comissão de Curso dos alunos do 2º ano da
licenciatura em Direito, foi elaborada pelo estudante José Santos e revista pelos estudantes:
Filipa Moreira, Mariana Coelho e André Rosa. Esta sebenta tem por base as aulas teóricas
lecionadas pelo Sr. Professor Almeida Costa, os apontamentos semanais da estudante Maria
Luís Carvalho (com ajuda da estudante Rafaela Paralvas), os apontamentos pessoais da
estudante Maria Inês Costa e o Manual de Direito Penal do Doutor Figueiredo Dias, sendo que
constitui um mero complemento do estudo, não dispensando, por isso, a leitura das obras
obrigatórias e a frequência das aulas teóricas e páticas.

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José Santos
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Índice
Sebenta de Direito Penal ............................................................................................................ 4
Parte I – Introdução ao Direito Penal ......................................................................................... 4
Título I – O sentido e a função do direito penal: definição formal de Direito Penal ............. 4
1.1 Direito penal em sentido material: a tutela das condições necessárias à convivência
comunitária e à livre realização da pessoa. O conceito de bem jurídico. ........................... 5
1.2 Conceito material de crime ........................................................................................... 8
1.3 Conceito material de sanção ....................................................................................... 11
1.3.1 Teorias absolutas ou ético-retributivas ............................................................... 11
1.3.2 Teoria relativa ou preventiva .............................................................................. 13
1.3.2.1 Prevenção Geral ........................................................................................... 13
1.3.2.2 Prevenção Especial ...................................................................................... 14
1.3.3 Doutrinas da Prevenção Integral: ........................................................................ 17
1.3.3.1 Prevenção geral positiva ou de integração: .................................................. 20
1.4 Inserção do Direito Penal no ordenamento jurídico global ........................................ 23
Título II – A Lei Penal e a sua aplicação ............................................................................. 27
1.1 O Princípio da Legalidade em Direito Penal. ............................................................. 27
1.2 A Interpretação da Lei Penal e a Integração das Lacunas. ......................................... 28
1.3 A aplicação da Lei Penal no Tempo. .......................................................................... 29
1.4 A aplicação da Lei Penal no Espaço ........................................................................... 34
Parte II – A Teoria Geral do Crime ......................................................................................... 40
Título I – O significado metodológico da doutrina geral do crime. As grandes
construções dogmáticas da atualidade .............................................................................. 40
1.1 As grandes construções gerais do crime ................................................................ 41
1.1.1 Sistema Clássico ............................................................................................. 41
1.1.2 Sistema Neoclássico ou Normativista ............................................................. 44
1.1.3 Sistema finalista .............................................................................................. 47
1.1.4 A luta de escolas ............................................................................................. 50
1.1.5 Sistema teleológico ou racional ...................................................................... 51
Título II – Teoria Geral dos Crimes de Ação Dolosa .......................................................... 54
1.1 Conceito dogmático de ação ....................................................................................... 54

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1.2 A figura do ilícito-típico ............................................................................................. 56
1.2.1 Tipos incriminadores e tipos justificadores ................................................. 57
Elementos estruturantes do tipo: .............................................................................. 58
1.2.2 O Tipo Objetivo .................................................................................................. 60
Doutrinas contemporâneas desde o século XX. ....................................................... 61
Três figuras especiais de imputação objetiva: ......................................................... 65
1.2.3 O Tipo Subjetivo ................................................................................................. 67
Elemento intelectual: ............................................................................................... 67
Elemento volitivo:.................................................................................................... 74

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Sebenta de Direito Penal

Parte I – Introdução ao Direito Penal

Título I – O sentido e a função do direito penal: definição formal de


Direito Penal

De forma muito ampla e geral, Direito Penal é o ramo do Direito que define as condutas
que constituem crimes e que, por outro lado, estabelecem as sanções. Estas podem ser: penas
ou medidas de seguranças.

A definição formal de Direito Penal traz a necessidade de proceder a uma definição


material dos seus polos essenciais: crime e sanção penal.

FD (Figueiredo Dias): “Chama-se direito penal ao conjunto de normas jurídicas que


ligam a certos comportamentos humanos, os crimes, determinadas consequências jurídicas
privativas deste ramo de direito. A mais importante destas consequências – tanto do ponto de
vista quantitativo, como qualitativo (social) – é a pena, a qual só pode ser aplicada ao agente
do crime que tenha atuado com culpa. Ao lado da pena prevê, porém, o direito penal
consequências jurídicas de outro tipo: são as medidas de segurança, as quais não supõe a
culpa do agente, mas a sua perigosidade.”

Direito Penal ou Direito Criminal?

• Podem usar-se como sinónimos;


• As duas designações estão consagradas no nosso ordenamento jurídico e são usadas
por este indiscriminadamente;
o Direito Criminal é uma definição incompleta, não estudamos apenas os
crimes. Deixa, pois, de fora a conduta do inimputável;
o Direito Penal toma como matriz o étimo pena, mas as sanções não são
apenas penas, podendo ser também medidas de segurança.
• Percebemos, então, que ambas as designações têm problemas e incompleições.

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Perspetiva histórica:

Código Napoleónico de 1810 – código francês, alemão e espanhol: encontramos uma


divisão tripartida das infrações penais.

• Crimes – mais graves;


• Delitos – gravidade média;
• Contravenções – infrações menos graves (bagatelas penais).

o Estávamos perante uma distinção quantitativa.

o Em Portugal, esta divisão tripartida nunca vigorou.

Entre nós, no velho código penal de 1852 e também no de 1886, consagrava-se uma divisão
bipartida, por influência do código brasileiro. A distinção era apenas entre: crime e
contravenção.

• Crime ou delito – gravidade média e alta;


• Contravenção – diminuta gravidade.

Esta divisão e distinção entre as penas, a par de serem de índole quantitativa, permeavam
uma filosofia que se materializava em penas degradantes. Ora, por força da Constituição de
1974, as penas degradantes são estritamente proibidas – o agente, com o cumprimento da pena,
paga tudo aquilo a que estava obrigado, e daí não fazer sentido desencadear efeitos degradantes,
difamantes, que era uma das consequências ligadas à divisão bipartida dos velhos códigos
penais portugueses de 1852 e de 1886.

Avançada esta primeira definição formal, percebemos rapidamente que é insuficiente para
obtermos uma visão substancial do Direito Penal. Essa só será possível através da definição
material.

1.1 Direito penal em sentido material: a tutela das condições necessárias à


convivência comunitária e à livre realização da pessoa. O conceito de bem
jurídico.

Caracterização material de crime:

O crime traduz-se numa lesão de bens jurídicos essenciais à livre realização da pessoa
em comunidade. Ou seja, numa conduta humana violadora de uma norma de determinação que
seja essencial para proteger os bens jurídicos supramencionados.

O Direito penal tutela os bens jurídicos essenciais, considerados indispensáveis à


convivência comunitária e à livre realização da pessoa.

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Diferença entre bem jurídico e valor:

O valor é o adjetivo e o bem o substantivo. Temos os valores estéticos; os valores da


utilidade; e também os valores jurídicos – interação humana, relação; os valores surgem como
o critério de toda a ação humana. Nos pequenos atos da nossa vida, estamos sempre a tomar
decisões com base nos valores.

O bem é o concreto objeto que participa desse valor – o valor é o justo; o bem é a
decisão justa. O valor é o bom ou o mal; o bem é a decisão boa ou a conduta boa, eticamente
louvável.

O Direito Penal não tutela valores supra-históricos: está condicionada no tempo e no


espaço. Ao invés, tutela bens jurídicos:

Este, atendendo à sua natureza intrínseca, pode traduzir-se:

• Numa realidade física: a vida humana necessita de um corpo biológico funcional;


• Numa realidade incorpórea: honra, bom nome;
• Numa relação entre pessoas ou num sistema de relação entre pessoas: crimes contra a
família;
• Numa relação entre a pessoa e um bem: o furto de um objeto afeta a relação de utilidade
entre o titular e o bem.

O bem jurídico pode assumir:

• Natureza individual: vida, saúde, propriedade, património.


• Natureza supraindividual ou coletiva: segurança externa do Estado, sistema monetário,
etc.

O bem jurídico, portanto, é todo o quid que pode ser objeto de relação ou sistema de
relações, de natureza individual ou supraindividual, que se mostra socialmente valioso e por
isso digno da tutela do direito em geral. O Direito Penal irá tutelar apenas, de entre todos esses
bens jurídicos, os essenciais à convivência comunitária.

Desta conclusão resulta um problema: como determinar que bens são essenciais à
sociedade, dado que vivemos numa comunidade extremamente plural e diversificada, com
inúmeras opiniões sobre o assunto. A resposta avançada é a seguinte: através do consenso
comunitário.

Todas as pessoas são diferentes; numa sociedade plural, existem múltiplas mundividências;
todavia, por trás destas diferenças, existe um conjunto de valores que toda a gente acredita,
algo que nos une a todos; apelando ao consenso comunitário, devemos determinar quais os
bens jurídicos essenciais que devem constituir o objeto da tutela do Direito Penal.

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Critério do consenso comunitário:

Alguma doutrina, que tende a ser maioritária, reporta ao quadro axiológico da


Constituição. A CRP traduz em formas de validade jurídica o conteúdo do consenso
comunitário.

Este apelo para o consenso comunitário deve ser feito numa perspetiva minimalista
ou maximalista?

Perspetiva maximalista: deverá procurar-se pela maioria, plasmar as convicções da


maioria.

® Não deve ser esta seguida num quadro de um Estado de Direito onde a liberdade é a
regra e a restrição da liberdade, a exceção.

Perspetiva minimalista: não se trata de quais os valores para a maioria devem ser
protegidos, mas devemos perguntar ao consenso comunitário as condições mínimas e
indispensáveis à vida em sociedade.

Deve adotar-se a perspetiva minimalista; num Estado de Direito e democrático, o Direito


Penal só deve intervir em relação àqueles bens jurídicos fundamentais indispensáveis à
convivência comunitária.

Isto encontra expressão no modelo da CRP – no princípio da proporcionalidade em sentido


amplo plasmado no artigo 18º.

As sanções do DP são as mais pesadas, afetam o núcleo íntimo das pessoas: há limitações
de Direitos Fundamentais constitucionalmente protegidos.

Artigo 18º/2 – Força jurídica:

2. A lei só pode restringir os direitos, liberdades e garantias nos casos expressamente


previstos na Constituição, devendo as restrições limitar-se ao necessário para salvaguardar
outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.

• Este artigo (18º/2 CRP), ao enunciar o princípio da proporcionalidade em sentido


amplo, embora não se restrinja apenas ao Direito Penal, tem aplicação direta no mesmo.
• O Direito Penal restringe sempre direitos fundamentais; as sanções invadem a esfera
pessoal dos indivíduos, por isso deve-se ter uma especial atenção e cautela.

O Direito Penal está aqui para proteger as condições mínimas e essenciais à convivência
comunitária, não para defender uma religião, tradição etc. – só deve intervir quando necessário.

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Duas ideias decorrentes do princípio da proporcionalidade:

• Dignidade penal: só quando estejam em causa bens jurídicos essenciais, que


condicionam o livre desenvolvimento da pessoa, é que o DP intervém - e mesmo aí só
deve intervir quando haja lesões graves desses bens.
• Necessidade de pena: mesmo quando estejam em causa bens jurídicos com dignidade
penal, o DP só deverá intervir quando for necessário. Pode haver situações em que a
lesão de um bem jurídico, que tem dignidade penal porque é um bem jurídico essencial
à livre realização da pessoa e convivência comunitária, encontre noutros ramos do
direito uma sanção que se revela suficiente.

O legislador, sempre que estiver a regular matéria penal, tem de atender cumulativamente
a estes dois requisitos, caso contrário, incorrerá numa inconstitucionalidade material, por
violação do artigo 18º/2 e do princípio da proporcionalidade em sentido amplo.

1.2 Conceito material de crime

Para termos um crime é necessário:

• que a conduta vá contra um bem jurídico essencial – dignidade penal


• que não seja acautelado pelas sanções dos outros ramos do direito – necessidade de
pena

A tutela penal de bens jurídicos tem um caráter fragmentário:

• Não pretende intervir na regulamentação de toda a vida social;


• Não pretende regular um concreto setor de atividade;
• Não pretende regular todas as infrações de um bem jurídico, apenas cede uma tutela
fragmentária, procedendo à análise dos dois critérios supramencionados. Mesmo
estando em causa um bem jurídico essencial, o DP só intervém perante uma lesão grave
e que por outro lado se mostre necessária dada a insuficiência de outros ramos para
proteger esse bem jurídico.

Exemplo: Álcool – entre 0.5 e 1.2g; Caráter fragmentário – o DP não vai tutelar a segurança
rodoviária contra todos os atentados; só contra os mais graves, neste caso, em que a taxa de
álcool é superior a 1.2 gramas de álcool por litro de sangue.

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O Direito Penal tutela bens jurídicos, realidades concretas, de natureza material ou
imaterial, individual ou supraindividual, mas que correspondam a bens essenciais à
convivência comunitária no presente, isto é: o DP está preso ao seu contexto histórico.

● Descriminalização: havia condutas que antes eram vistas como crimes e hoje em dia
não.
● A evolução das mundividências, das condições sociais e económicas, fizeram com que
condutas que antes eram consideradas crimes hoje já não o sejam (ex.: adultério).
● Também há o fenómeno inverso; o da neocriminalização: por exemplo, crimes
ambientais.

Há normas que mudam com o tempo; o direito penal está dependente do contexto
histórico, social e económico.

Essencial para definição material:

Os bens jurídicos também são tutelados por outros ramos do direito - o direito civil também
tutela a vida. Um homicídio no DP é um atentado à vida. No plano do direito civil, um
homicídio dá aso a uma indemnização.

➔ Não há dupla punição, simplesmente são coisas diferentes que estão em causa: tem a
ver com a perspetiva de intervenção do Direito Penal. Tanto o Direito Civil como o
Penal, intervêm para proteger o património e a vida, mas protegem à luz de
terminologias diferentes.

O que distingue o Direito Penal dos outros ramos do Direito?

A diferença está na teleologia do Direito Penal; definir o âmbito e o objeto da


intervenção do DP.

Qual o conteúdo e sentido das sanções criminais?

➔ A definição formal convoca a necessidade de uma definição material.

Há dimensões cumulativas no Direito Penal: dignidade penal (dimensão axiológica) e


necessidade de pena (aplica-se quando as sanções dos outros ramos do Direito não forem
competentes para tutelar os interesses).

Destas 2 ideias resulta o caráter subsidiário da tutela penal, que apenas deve intervir como
ultima ratio. Daqui resulta a fragmentariedade, pois o Direito Penal nunca pretende regular
toda a vida social, nem um setor social, nem cobrir a totalidade de um bem jurídico. Assim
sendo, o âmbito do Direito Penal é menor do que o do Direito Civil.

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O Direito (ordem jurídica na generalidade) analisa-se em 2 planos:

➔ Função de ordenação ou conformação:

Define a esfera de liberdade de cada cidadão; ónus e deveres de cada um.

Esta distribuição assenta em critérios de justiça distributiva - perspetiva do direito privado.

As sanções têm por objetivo repor a situação tal qual se verificava antes da lesão, repor a
tal ordem de justiça distributiva.

Nesta função, inclui-se desde logo o direito privado:

O que está em causa é a tutela da esfera jurídica dos cidadãos, pelo que o ilícito só se
verifica quando existe um dano. Por mais censurável ou reprovável que a conduta seja, se não
lesou a esfera jurídica e, portanto, não lesou a ordem jurídica distributiva, a conduta é
indiferente para o Direito Privado. Ex.: A dispara contra B (surdo), mas não acerta – causou
zero danos, é indiferente para o direito civil porque não houve dano efetivo.

Outro exemplo - Direito Administrativo, numa compatibilização entre o público e o


privado, também pretende manter a justiça distributiva. A repartição das oportunidades,
direitos, deveres e ónus, numa compatibilização de interesses públicos e privados também
passa pelo DA (ex.: conseguir uma licença de porte de arma é direito administrativo – interesse
privado: a pessoa que se sente insegura; interesse público: a restante sociedade que não
pretende ser baleada).

➔ Função de proteção ou garantia:

Normas de determinação – o legislador pretende determinar o comportamento futuro das


pessoas, impondo-lhes bens jurídicos essenciais.

Tem componente imperativa, querendo moldar o comportamento das pessoas.

Enquanto na primeira função se olha para a violação da ordem jurídica distributiva no


passado, estas normas têm a perspetiva para o futuro – pretendem influenciar e moldar o
comportamento das pessoas, afastando-as de lesar os bens jurídicos.

Não é necessário verificar-se o dano, é pura desobediência à norma, basta a tentativa – por
isso existem crimes de perigos / tentativa. O desrespeito da norma já chega para ser considerado
crime. O núcleo não está no desvalor do resultado, mas sim no desvalor de ação.

➔ O Direito Penal inclui-se nesta função.

O ilícito é a desobediência à norma, por isso é que não é preciso verificar-se o dano – a
pura desobediência à norma é o que conta. Para o Direito Civil a tentativa não conta, para o
DP, sim.

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Desta forma aproximamo-nos do conceito material de crime. Não se limita à lesão de um
bem jurídico (especialmente porque há bens que são tutelados por outros ramos do Direito).
Há um crime quando a lesão resulta de uma desobediência de uma norma de determinação.

O que o Direito Penal tutela é realmente a vigência da norma – protege os bens jurídicos
de forma mediata, de forma a proteger e garantir a segurança da norma e os bens jurídicos para
o futuro, uma vez que já foram violados.

Objeto de proteção da norma - o DP intervém depois do crime ter sido praticado. O objeto
de proteção da norma é o bem jurídico.

Objeto de proteção da sanção - é a própria norma. Faz com que no futuro haja menos
violações da norma, logo há menos violações de bens jurídicos.

O conceito material de crime é constituído por uma conduta humana, violadora de uma
norma de determinação, que tem por objeto a tutela de bem jurídico essencial (obedecendo aos
critérios de dignidade penal e necessidade), desde que a intervenção do Direito Penal seja
necessária.

FG: “... para definir materialmente o crime, a verdade é que um preceito legal pertencerá
apenas ao nosso ramo do direito se e quando, para sancionamento de um certo comportamento
ilícito ou antijurídico que prevê, for prescrita uma pena ou uma medida de segurança
criminais…”.

1.3 Conceito material de sanção

Historicamente, falamos de duas grandes orientações:

➔ Teorias absolutas ou ético-retributivas;


➔ Teorias relativas (prevenção geral; prevenção especial).

1.3.1 Teorias absolutas ou ético-retributivas

Os autores que defendem esta conceção partem da liberdade humana.

A pena é um fim em si mesmo – é uma exigência em si, um imperativo de justiça. Tal


como se considera normal e justo que alguém numa conduta meritória receba um prémio,
também é um imperativo de justiça que alguém que incorreu numa conduta danosa seja alvo
de uma sanção. Assim, a sanção é a justa paga pelo ato danoso para a sociedade. Como
retribuição, a sociedade aplica-lhe uma pena. A pena é retribuição e não uma forma de defesa
pessoal.

A pena viria a ser, por isso, proporcional à gravidade do crime. Uma exigência de
justiça.

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Não é uma proporcionalidade na espécie olho por olho, dente por dente, mas sim uma
proporcionalidade axiológica. A gravidade da pena corresponde à gravidade do crime.

O ilícito ou a ilicitude permite transmitir o desvalor de um ato. O ilícito de um furto é


sempre menos grave do que o ilícito de um homicídio. A gravidade da pena deve ser
proporcional à gravidade do crime praticado.

Nesta teoria, o DP não pretende prevenir crimes futuros, mas sim reprovar os que já
foram cometidos; funciona com os olhos postos no passado.

Críticas à doutrina ético-retributiva

1. A liberdade humana não é demonstrável cientificamente. Esta crítica vale pouco;


não se prova cientificamente a liberdade, mas também não se prova cientificamente o
contrário. O problema da liberdade é o da adesão.

Crítica mais importante:

2. É o próprio sentido retributivo da pena. O mal do crime não justifica a repetição da


pena. Esta ideia da retribuição é a expressão da vingança privada. É compreensível que
perante uma agressão a si próprio ou a alguém próximo, o indivíduo tenha um impulso de
vingança – é uma reação natural, mas não é necessariamente moral. Dito isto, a vingança
privada nunca poderá ser a ideia que subjaz ao funcionamento do Direito Penal. Dois males
serão sempre piores do que um, logo um mal não justifica outro mal. Num quadro de Estado
de Direito a vingança não pode ser o fundamento do Direito Penal, o castigo pelo castigo
não pode ser justificação.

3. Críticas aos efeitos práticos: a retribuição não atende aos imputáveis normais ou
por tendência/delinquentes especialmente perigosos. Eles chegam a ser menos livres que
o criminoso comum, pois têm menos escolha quando praticam o crime, fará parte da sua
própria natureza; são menos livres, são menos culposos, portanto, o crime é menos grave e
a pena tem de ser, também, menos grave. Porém, estamos a esquecer-nos que esses
criminosos “menos livres” são precisamente os mais perigosos: paradoxalmente esta teoria
acaba por aplicar aos criminosos mais graves as sanções mais levianas, deixando a
sociedade completamente indefesa contra estes fenómenos. Deste modo, tem de chamar em
seu auxílio a prevenção especial.

4. Revela insuficiências quanto aos inimputáveis, a doutrina não lhe dá resposta, tem de
chamar a doutrina da prevenção especial.

Não podemos deixar de reconhecer o contributo das doutrinas ético-retributivas ao longo


da história. Contribuíram para que a pena não ultrapassasse o princípio da proporcionalidade,
em nome da defesa da dignidade da pessoa conjugada com a ideia da justiça.

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A retribuição ou compensação da culpa não é nem pode constituir uma finalidade da pena.

® Está provado que a retribuição não dá uma resposta satisfatória.

1.3.2 Teoria relativa ou preventiva

A sanção não é um fim em si. A sanção pretende evitar uma repetição do dano e da
violação da norma. A pena é um meio de defesa social contra a criminalidade.

O Direito Penal tem os olhos postos no futuro.

Subdivide-se em duas doutrinas:

1.3.2.1 Prevenção Geral

Pretende prevenir a prática de crimes atuando sobre a generalidade da coletividade,


sobre todos os potenciais delinquentes. Atua pelo medo, pela coação psicológica e intimidação,
de modo a que a coletividade não cometa crimes por medo de uma sanção. Aplica-se àquele
delinquente a sanção de modo a meter medo aos outros.

Imagine-se que crime x começa a ser muito recorrente; nesta teoria, perante esse
crescimento, deve-se aplicar uma sanção mais grave de forma a evitar que as pessoas o repitam,
tendo por base a intimidação geral. Trata-se, atualmente, de uma prevenção geral negativa ou
de intimidação.

Se o criminoso pratica um crime é porque a prática do crime dá uma espécie de


prazer/benefício. Nesse sentido, a pena deve conter um quanto de sofrimento superior ao
desprazer de não praticar o crime. Esse sofrimento deve ser uma intimidação para aqueles que
sentiriam prazer cometendo o mesmo crime.

Entende-se que a sanção pode ser muito mais grave do que a que resultaria da simples
proporcionalidade; porque o crime constituiu um exemplo que pode levar outros a praticá-los,
então, a função seria a de intimidar a generalidade das pessoas, aplicando uma pena severa em
ordem a que os potenciais criminosos ficassem dissuadidos de cometer o crime.

O crime continua a ser pressuposto da sanção, mas já não é medida, porque a pena não
pretende ser a justa paga, pretende antes defender a comunidade, pois a medida ser-nos-á dada
pela necessidade de prevenção geral.

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Críticas à teoria da prevenção geral:

1. Este pensamento pode conduzir a um direito penal de terror. Um DP brutal,


extremamente severo, com penas que vão muito para além da proporcionalidade do crime,
penas injustas e atentatórias da dignidade humana, inadmissíveis num Estado de Direito.

2. A prevenção geral é contraditória porque pode levar ao efeito que pretende evitar: a
movimentos de solidarização com o concreto crime; solidarização pelo delinquente.

3. A teoria afirma que para prevenir o crime é preciso aplicar sanções pesadas. No entanto,
provou-se que a brutalidade/severidade das penas não equivale a prevenção. O que é de
facto importante são as instâncias de controlo. Se as instâncias formais de controlo
funcionarem devidamente, a pena pode limitar-se ao justo e proporcional à gravidade do
crime, sem ter de incorrer em penas brutais para dissuadir o potencial criminoso.

4. Outra crítica é o fenómeno da habituação social (dado provado cientificamente): o


crime diminui temporariamente, mas volta a aumentar pouco depois. O aumento das penas
pode levar à sua prevenção, reduzindo-se a prática de crimes, mas no médio-longo prazo
volta à situação original, porque se deu a habituação daquela pena. Assim, acaba por ter um
efeito perverso, porque uma sociedade que se habitua à violência, mesmo do Estado, é mais
criminológica.

5. A prevenção geral deixa de fora os delinquentes que são mais perigosos, porque os
imputáveis com tendência/delinquentes especialmente perigosos não se deixam intimidar
como o homem comum, precisam de medidas mais enérgicas, daí que tenham chamar em
seu auxílio a prevenção especial.

A prevenção geral é sem dúvida importante – só o medo da sanção, por vezes, evita crimes.
É uma dimensão importante no âmbito da sanção penal; mas precisa de limites,
nomeadamente de justiça que têm de ser retirados das doutrinas ético-retributivas.

1.3.2.2 Prevenção Especial

A pena é um simples meio de defesa social e não um fim em si mesmo. Defende que a
prevenção deve atuar sobre o concreto delinquente. Se houve quem cometeu um crime, também
há o risco deste ser repetido, por isso deve atuar-se de forma a evitar crimes futuros.

Como atuar?

Distinguem-se três modalidades:

➔ Intimidação individual: procura intimidar o concreto delinquente através de uma pena


severa, afastando-o de uma repetição do crime.

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➔ Incapacitação: procura incapacitar o delinquente, privando-o daquele espaço de
liberdade em que revelou a perigosidade da prática de crimes. Ex.: Num caso de
pedofilia, a solução seria retirar o poder paternal, impedir de ser professor/a de menores,
etc.

A estas duas modalidades também se pode chamar prevenção especial negativa,


apesar de o professor Almeida Costa não apreciar o termo. Isto porque, em ambas, se limita a
ação do delinquente; estabelecem-se limites negativos, barreiras à liberdade do delinquente.

➔ Reintegração social ou socialização do delinquente: prevenção especial positiva. É


uma vertente mais humanista, pois cria condições na pena para que, após o seu
cumprimento, o delinquente possa viver em sociedade sem praticar crimes. O que está
em causa é dar ao delinquente, através do cumprimento da pena, as condições para que
no futuro possa viver em liberdade sem perturbar a comunidade.

Não confundir este conceito com regeneração moral – uma vez que o Direito Penal
apenas defende bens jurídicos essenciais, não atende a nenhuma moral social. Pretende-
se evitar a reincidência – prevenção de futuros crimes.

A prevenção especial teve uma expressão extrema no virar do século XIX para o século
XX, apoiando-se no positivismo naturalista, que também se expressou no Direito Penal.

Decorrente do pensamento da época, surge uma perspetiva, a propósito da Escola


Positiva Italiana e da Escola Alemã, que negava a liberdade individual e afirmava que certas
pessoas nasceriam causalmente determinadas para a prática do crime, surgindo o:

Delinquente nato: o sujeito que nascia predestinado para o crime. O autor pretendia
identificar estes sujeitos antes que praticassem o crime, atuando, assim, o Direito Penal
de modo ex ante.

Ao negar a liberdade humana, nega-se, consequentemente, a culpa. Falava-se, portanto,


em perigosidade, pelo que o comportamento humano estava entregue à causalidade e a conduta
humana seria condicionada como qualquer outro fenómeno natural (sismos, por exemplo).

Assim, seria necessário descobrir, através de métodos científicos, quem seriam essas
pessoas dentro da sociedade.

Alguns autores, nomeadamente o fundador da escola positiva italiana (Lombroso),


permitia isolar e identificar esses elementos perigosos mesmo antes do crime. Tentar-se-ia
definir os delinquentes – aqueles que nasceram já para a prática do crime.

Seriam identificados por características físicas e psicológicas, aliadas a certos modos


de vida, demonstrariam que eram delinquentes e agir-se-ia adequadamente se se identificasse
o elemento perigoso – analogia entre a sanção penal e a anatomia. As sanções teriam um

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carácter médico e seriam indeterminadas – tal como o médico não estabelece uma terapia
definitiva, o mesmo sucederia nas sanções penais; seriam ajustáveis durante a sua execução.

São visões extremas da prevenção especial.

• O crime não era nem pressuposto nem medida.


• O objeto de ação era a perigosidade mostrada pelo agente.
• A defesa da prevenção especial não tem de passar por estas formas extremas.

Vamos ver que, tirando algumas exceções ao longo da história, não surgem teorias
puras unilaterais só de prevenção geral ou só de prevenção especial. Nenhuma das teorias
responde de forma completamente satisfatória. Dada a insuficiência de cada uma destas
orientações para por si só darem conta do problema de delinquência, sempre houve a
necessidade de as combinar.

Explanadas as teorias supra, importa deixar claro que a ordem de exposição não
corresponde a uma sequência histórica. Há períodos em que se verifica a prevalência da
prevenção especial ou geral e outros da retribuição.

Críticas à teoria da prevenção especial:


1. Se na prevenção geral era o perigo de um direito penal demasiado severo, aqui o perigo
é o de um direito penal terapêutico, com práticas em que se assemelham as reações
criminais à medicina – uma total indeterminação das sanções; deixando os cidadãos à mercê
do Leviatã que é o Estado. À luz de critérios utilitários, transformam o criminoso num
objeto terapêutico, atentando contra a sua dignidade humana. Tudo se passa em segredo
nos hospitais, fora dos controlos democráticos e da opinião pública, por isso, ainda é mais
perigoso que o “Direito Penal do Terror”. A total indeterminação das sanções ligado a este
modelo terapêutico pode levar a que as pessoas fiquem condenadas para sempre, o que o
torna inadmissível num Estado de Direito. Deve ser limitado pelo respeito da dignidade
humana e da justiça.

2. Também a prevenção especial revela insuficiências para dar resposta a certos setores
da delinquência, nomeadamente da delinquência ocasional.

Delitos ocasionais: ficam predominantemente a dever-se às circunstâncias do momento; o


agente não tem propensão para o crime. Há uma predominância do circunstancialismo
exterior, de difícil repetição. O agente foi perigoso, mas já não o é, porque praticou o crime
num contexto atípico/raro e de difícil repetição, não havendo, necessariamente,
perigosidade para o futuro. Este ficaria impune e originaria uma absolvição em massa deste
tipo de delinquentes.

Isto levou a alguns autores que partiam dos pressupostos extremos da prevenção especial a
introduzir alguns limites.

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Devido a estas insuficiências, temos de combinar as três teorias de forma a dar uma resposta
satisfatória ao crime.

Quando nos referimos às teorias absoluta e relativa, não estamos a falar de teorias acabadas.
Os Estados e legisladores não conseguem evitar sempre a criminalidade, e por isso
escolhem um destes para ponto de partida. Daí vão associando com outras teorias e ideias,
de forma a criar uma resposta satisfatória ao problema da criminalidade.

Por si só consideradas, todas as teorias têm insuficiências. Cada uma das teorias,
isoladamente, não responde de forma completamente satisfatória ao problema da
criminalidade. E por isso funcionam em conjunto umas com as outras.

Sintetizando:

1.3.3 Doutrinas da Prevenção Integral:

Houve uma primeira orientação que pretendeu combinar as teorias da prevenção geral
e especial – prevenção integral.

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Foram tentativas falhadas, pretendiam deixar de parte a retribuição, não considerando
a ideia da justiça e proporcionalidade, pretendendo apenas combinar a prevenção geral e
especial. Assim, têm apenas valor histórico.

Prevenção integral de Exner – deixa de fora a ético-retribuição, baseando a pena na


prevenção geral e intimidação, atendendo à perigosidade do delinquente. Só resolve o problema
da delinquência de forma aparente, porque sem critérios de justiça, as penas poderão ser
demasiado gravosas. E, quanto aos delinquentes especialmente perigosos, não oferece resposta.
Uma questão se coloca: qual a pena adequada para intimidar a generalidade das pessoas? A
medida adequada da prevenção geral funciona entre o máximo e o mínimo, não havendo uma
medida aritmética, e satisfaz as exigências da prevenção, consoante haja maior ou menor
perigosidade do delinquente e as necessidades sociais.

Assim, aplicam-se as críticas da prevenção geral, uma vez que as penas não estão
sujeitas ao princípio da proporcionalidade e justiça, o que leva ao perigo do “Direto Penal do
Terror”. A pena excessiva pode gerar movimentos de solidariedade para com o criminoso,
como já vimos, não tem em consideração a importância das instâncias de controlo e não se
consideram os criminosos especialmente perigosos.

Prevenção integral de Lizt – parte da prevenção especial extrema. A pena deveria ser
totalmente indeterminada e não deve ser estabelecida pela gravidade ou necessidade, mas em
função do delinquente ser perigoso ou não. Tal leva à libertação de um agente que tenha
praticado um crime no passado, mas que no momento do julgamento já não seja considerado
perigoso. Por outro lado, se continuasse sucessivamente perigoso, a pena poderia ser perpétua.
Deste modo, estabelece penas indeterminadas, algo inadmissível. Não oferece, também,
resposta à criminalidade ocasional.

Para dar resposta às críticas, Lizt introduziu uma alteração na teoria – haveria sempre
um mínimo de pena aplicável. Satisfazia as exigências da prevenção geral, para evitar a prática
de delitos ocasionais. A pena passa a ser indeterminada só no seu máximo e já não no mínimo,
independentemente de o sujeito ser perigoso ou não, mas apenas porque cometeu um crime.

Contudo, as outras críticas mantêm-se:

● Não eliminou as outras críticas, apenas a da delinquência ocasional.


● Desde logo a do DP terapêutico – penas sem qualquer limite axiológico, intimamente
ligado à presença de perigosidade.
● Ainda que atenuadamente, estas teorias da prevenção (geral e especial) continuavam a
merecer as mesmas críticas por parte da doutrina, sendo por isso afastadas.

Doutrina do Professor Eduardo Correia, de base ético-retributiva:

● A pena é um fim em si mesmo, será a justa paga pelo mal do crime;


● O agente, conceptualmente livre, tinha a possibilidade de decidir entre praticar ou não
o crime, e praticou-o;

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● Partia da ideia de que o crime era o pressuposto e a medida da sanção, não há pena sem
culpa, mas também não há culpa sem pena;
● Pretende aplicar ao criminoso uma pena proporcional à gravidade do crime;
● Ele era sensível à crítica de que esta doutrina não dava resposta à delinquência
extremamente perigosa. O criminoso por tendência é menos livre, pelo que seria menos
culpado, os seus crimes teriam um peso menor de culpa. Deixava-se a sociedade
indefesa, aplicando penas menos severas aos criminosos mais perigosos.

Por saber da incompletude da sua doutrina, introduziu uma modificação nos seus
pressupostos: a pena justa é suficiente para produzir a intimidação geral. Introduz também uma
modificação que consiste no apelo à teoria da culpa na formação da personalidade.

Como seres humanos, somos responsáveis pelas nossas atitudes ao longo da vida; a
experiência tem impacto em quem somos. A partir desta ideia assenta a culpa da formação da
personalidade, na qual este autor vai prender a sua ramificação da teoria. O criminoso passa
pela culpa do facto e pela culpa da formação da personalidade; ele é culpado por essa tendência
ou hábito que o arrasta para o crime. Introduz aqui aquilo que se tinha perdido na culpa do
facto, podendo chegar a uma pena que considerasse a perigosidade na totalidade. Por força da
existência da tendência do agente, a culpa do facto é diminuída, mas segundo esta ideia, o que
era perdido na culpa do facto, compensava-se na culpa da formação da personalidade,
considerando-se que o agente tinha culpa da sua tendência para o crime e, por isso, juntando
ambas as culpas era possível aplicar uma pena adequada ao agente.

➔ Esta ideia já vem de Aristóteles e é algo que experienciamos todos os dias. É uma ideia
respeitável, mas inquinada pela sua utilização para resolver um problema de fundo.
➔ É natural, quando uma pessoa sofre um ataque, querer atacar de volta. Porém, não pode
ser o sustentáculo do funcionamento da justiça penal.

Como determinar se é ou não responsável pelo hábito que o arrasta para o crime?

● Isto é um exercício de engenharia jurídica a que Eduardo Correia recorreu para salvar
o seu ponto de vista.

Crítica essencial (mesma das teorias ético retributivas):

o A prática do crime não pode ser a única razão para a aplicação de uma sanção.
o Eduardo Correia pretendia encontrar um artifício de engenharia jurídica que lhe
permitisse, sem sair da pureza ético-retributiva, resolver os seus problemas. Mas,
em concreto, não é possível.
o Em suma, não pode ser aceite qualquer ideia ético-retributiva stricto sensu no
Direito Penal.

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1.3.3.1 Prevenção geral positiva ou de integração:

Autores: Figueiredo Dias e Costa Andrade.

Esta é uma perspetiva mais moderna, com maior adesão em Portugal (na atualidade) e a
adotada no curso de Direito.

● Esta doutrina parte ou adota um ponto de partida que parece não visar os fins das penas,
mas que os satisfaz;
● O ponto de partida é o seguinte: a finalidade primeira da sanção é a reafirmação
contrafática da norma; o reforço da vigência prática da norma violada e na restauração
da paz social – o crime constitui a violação de uma norma, essa norma, aos olhos da
comunidade, perde força, podendo, pelo fenómeno da imitação, gerar uma maior
criminalidade.

O crime é a violação de uma norma, retirando força vinculativa à mesma, pelo que pode
haver multiplicação da delinquência. O juiz ao aplicar a pena diria que a norma mantém o seu
valor e força – vertente simbólica de aplicação da pena.

Vertente hegeliana – afirmação, negação e negação da negação: a afirmação é a norma, a


negação é o crime, e a negação da negação é a pena que vem negar o crime e reafirmar o valor
essencial da norma perante a comunidade.

O ponto de partida é preventivo – restaurar a vigência da norma. É de prevenção geral,


porque procura que o seu efeito se produza em primeira linha na generalidade da sociedade –
prevenção geral positiva, pois desencadeia o seu efeito pela afirmação do valor essencial
daquela norma e do bem jurídico que ela protege. É uma prevenção geral de integração –
aprofunda a crença dos cidadãos na norma e dos bens que protege.

Defende uma pena de acordo com os critérios de justiça – limites de justiça. Penas que
não sejam justas geram maior desconfiança da comunidade no Direito – a pena tem de ser
proporcional à gravidade do crime.

Limites da justiça:

è Afasta-se penas injustas, demasiado severas;


è Nas teorias ético-retributivas, há um binómio da conceção de culpa, que vai nos dois
sentidos: não há culpa sem pena e não há pena sem culpa;
è A justiça manda tratar o igual como igual e o desigual como desigual;
è Pode haver culpa sem pena, quando tal não for necessário.

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Artigo 74.º e 40.º do CP (Código Penal) – concretização da conceção unilateral da culpa,
ou seja, a culpa é só um limite, não fundamento da punição. A haver pena, não pode ultrapassar
o limite da gravidade da conduta culposa.

Se a pena tem de ser conforme à justiça, então tem de atender às circunstâncias do caso
concreto e ao agente específico. Esta doutrina permite dar resposta às exigências da prevenção
especial, ajustando as sanções ao limite dessa perigosidade.

Desta forma afasta-se o perigo do Direito Penal de terror (prevenção geral no seu extremo)
e o perigo do Direito Penal terapêutico (prevenção especial no seu extremo).

Para se poder atender a critérios de justiça, tem que se atender a cada caso individualmente,
então é possível, como desejava a teoria de prevenção especial, verificar a perigosidade de cada
agente. Mais ainda, a análise caso a caso permite distinguir o imputável do inimputável,
podendo aplicar-se a diferenciação de tratamento – i.e medidas de segurança. Acomoda
exigências de prevenção especial e geral.

è Esta é a doutrina maioritária no universo português e adequa-se à lei penal portuguesa.

O legislador, contudo, vai estabelecer limites – artigo 40º CP (doutrina da prevenção geral
positiva ou de integração).

Artigo 40.º - Finalidades das penas e das medidas de segurança

1 - A aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e


a reintegração do agente na sociedade.
2 - Em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa.
3 - A medida de segurança só pode ser aplicada se for proporcionada à gravidade do
facto e à perigosidade do agente.

1: não há retribuição, a ideia da pena não é castigar;

2: a culpa é limite e não fundamento; a pena não pode ultrapassar a medida da culpa, mas
pode ficar aquém; conceção unilateral ou unívoca do princípio da culpa (observa-se repúdio do
legislador por uma conceção puramente retributiva);

3: a função limitativa do conceito unilateral da culpa é desempenhada no âmbito das


medidas de segurança pela perigosidade – a medida de segurança não pode ultrapassar a
gravidade média do agente quanto aos seus crimes futuros.

As medidas de segurança também têm limites, uma vez que não atendem à culpa, e
assentam na ideia de proteção dos direitos dos arguidos perante o próprio Estado. Aplicam-se
maioritariamente a inimputáveis (a quem não pode ser atribuído culpa), mas não só.

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Aplicam-se os seguintes princípios às medidas de segurança:

è Princípio da legalidade das medidas de segurança: as medidas de segurança só se


aplicam nos casos expressos na lei.
è Princípio da necessidade das medidas de segurança: aplica-se a medida de segurança
quando é necessária à proteção da sociedade perante a grave perigosidade do
delinquente.
è Princípio da menor intervenção possível (ramificação do da necessidade):
concretização do mínimo de intervenção das penas.
è Princípio da proporcionalidade – mesma função que o princípio da culpa nas penas -
é um limite. A restrição de direitos do arguido deve ser proporcional à gravidade dos
crimes, mas de que crimes?
Dos crimes que se espera que o agente possa vir a cometer no futuro.
è Princípio do ilícito-típico – o DP atende à culpa do agente, mas sempre numa ótica de
subjetividade que se manifesta a nível fáctico. A subjetividade só pode ser tomada em
consideração desde que concretizada no princípio do ilícito-típico, ou seja, efetivada
num facto (perigosidade de acordo com o crime praticado - se é um crime contra o
património, a perigosidade é medida quanto a futuros crimes patrimoniais).
è Princípio da judicialidade – as medidas de segurança são aplicadas apenas e só por
tribunais e em processo penal. O DP vive no processo penal e só juízes o podem aplicar.
A doutrina continua a afirmar estes princípios porque dizia-se (muito por influência das
teorias ético-retributivas) que as medidas de segurança não eram medidas penais, mas
sim administrativas de higiene pública. Esta ideia já está ultrapassada. A medida de
segurança tal como a pena tem fins preventivos, simplesmente aplicam-se a criminosos
diferentes.

Artigo 40º: tanto umas como outras estão ao serviço da prevenção geral ou especial; a culpa
como limite e não fundamento.

Monismo ou dualismo das reações criminais

Esta querela visa responder à seguinte questão: poderemos aplicar, pela prática de um só
crime e de forma cumulativa, penas e medidas de segurança?
Os monistas dirão que não – medidas de segurança para inimputáveis e penas para os
imputáveis.
Os dualistas dirão que em relação a um mesmo agente e pela prática de um mesmo facto
pode verificar-se a prática cumulativa de uma pena e uma medida de segurança, sempre que se
verificar uma perigosidade que o justifique.
Defende-se que o nosso sistema é monista. Razões históricas para tal:
è Razões gerais – no passado, a medida de segurança era aplicada com finalidades
terapêuticas, sem garantias, havendo o esforço da doutrina para restringir as medidas
de segurança aos inimputáveis.

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è Razão ligada ao circunstancialismo histórico – antes do 25 de abril tínhamos um regime
autoritário; relativamente ao DP, este regime respeitava os princípios democráticos,
excluindo a questão dos crimes políticos, utilizando medidas de segurança como
“arma” do Regime. Pretendia-se, então, restringir ainda mais a aplicação das mesmas.
Estas razões não procedem nem relevam nos dias de hoje. Assim, aparenta não haver
motivos para manter o monismo. Contraditoriamente, muitos autores continuam a afirmá-lo.

O nosso direito positivo admite expressamente a aplicação de medidas de segurança a


imputáveis, sendo que existem duas modalidades: medidas de segurança detentivas e não
detentivas.

è Medidas de segurança não detentivas – Art. 100.º e ss do CP. O legislador admite a


aplicação cumulativa de penas a imputáveis: demonstração do sistema dualista.
è Medidas de segurança detentivas – Art. 91.º do CP. Aqui o legislador restringe o
internamento aos inimputáveis.
Aparentemente, aqui, os monistas teriam razão. Apenas aparentemente, uma vez que se
trata de uma técnica legislativa, porque no artigo 83.º do CP está regulada a pena relativamente
indeterminada – em que uma pessoa é condenada a uma pena de dois ou mais anos de prisão e
mais tarde é-o novamente. Quando há fundados indícios desta repetição deve o juiz aplicar uma
pena relativamente indeterminada – agente tem de cumprir um mínimo de pena, dependendo o
máximo do desenvolvimento da sua execução. Esta pena não é uma verdadeira pena, é uma
sanção mista – metade pena, metade medida de segurança.
Sendo esta pena uma sanção mista que se traduz numa reclusão, numa medida de segurança
privativa de liberdade, podemos dizer que este 83º e ss. são a consagração do sistema dualista
nas reações criminais.
Desta forma, podemos considerar o sistema português um sistema dualista, admitindo para
imputáveis a possibilidade de combinação de pena e medida de segurança (para inimputáveis
não se faz a aplicação conjunta porque as penas baseiam-se na culpa – que não se aplica aos
inimputáveis).

1.4 Inserção do Direito Penal no ordenamento jurídico global

1. Direito Processual Penal ou Direito Penal Adjetivo


2. Direito Penal Substantivo
3. Direito da Execução das Reações Criminais

O ramo jurídico que regula toda a atividade de prova e julgamento do facto é o direito
processual penal ou direito penal adjetivo – que será objeto de disciplinas futuras. No direito
processual penal regulam-se os caminhos para aplicar a pena, mas com valores próprios.

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Vamos estudar o direito penal substantivo, apenas o que regula e define os crimes e estabelece
as penas.

Direito da execução das reações criminais


è Nomeadamente, execução da pena de prisão.
è É também autónomo quer em relação ao direito processual penal quer em relação ao
direito penal substantivo.
O DP em todas as suas dimensões só funciona através do processo penal e do controlo do
tribunal.

Localização da disciplina no contexto do ordenamento jurídico global:


è Estaremos perante um ramo de direito público ou privado? – ramo de direito público,
desde logo devido ao interesse coletivo dos bens jurídicos na sua dimensão supra
individual. O DP tutela as normas da determinação que tutelam esse bem jurídico, não
os bens jurídicos em concreto.
Critério dos interesses: o DP tutela interesses públicos, traduzidos em bens jurídicos
essenciais à convivência humana, à vida, ao património, etc. O DP não tutela a vida da
vítima de homicídio, mas a vida em geral.

Estrutura da relação jurídica/critério da posição relativa dos sujeitos: no Direito Privado há


relações paritárias, o Estado intervém despido de ius imperium. Nas relações jurídico-penais o
Estado surge vestido do seu ius imperium e como titular do monopólio da justiça, logo, é parte
do Direito Público – não há uma relação simétrica/paritária, mas sim uma relação assimétrica,
o Estado intervém numa posição de supremacia.
Assim sendo, o Direito Penal é Direito Público.
Importa fazer um contraponto com os vários ramos do Direito em concreto.

Direito Penal vs.:


è Direito Constitucional – contempla as traves-mestras do Direito estadual. Não podemos
confundir o objeto do DP com o do DC. DP tem uma função autónoma, de tutela dos
bens jurídicos essenciais à convivência comunitária, não havendo confusão possível.
Dada a importância da matéria penal, o legislador dá força constitucional a algumas normas
de DP – constituição penal. Mas não há, contudo, confusão entre os dois ramos, pois essas
normas não deixam de ser normas penais. O DP tem finalidades próprias e o DC será apenas
um referente. Art. 27.º e seguintes da CRP: chamados a constituição penal – são formalmente
constitucionais, mas são, de facto, normas penais.

è Direito Privado – delimita a esfera de liberdade de cada cidadão. Essa delimitação é


feita por normas de valoração que se limitam a descrever essa situação de repartição de
direitos, ónus e deveres, de acordo com a justiça distributiva. O ilícito existe sempre
que alguém está a receber mais ou menos do que merece à luz da justiça distributiva.
Se não afeta em nada a esfera de outra pessoa, é indiferente para o direito civil, em

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particular. Quando não há ação propriamente dita, a intenção é indiferente para o direito
civil, mas a intenção muito importa para o DP.

è Direito Administrativo - as infrações refletem um desvalor de resultado. As sanções


também têm como objetivo a reparação do dano e as normas também são valorativas.

è Outros ramos do Direito Sancionatório – incluem-se na função de proteção ou garantia:

- Direito disciplinar dos funcionários públicos: a administração pública cumpre funções


muito relevantes, especialmente no Estado democrático social. O bom funcionamento
da administração é um corolário de um Estado moderno, existe uma necessidade
fundamental no estabelecimento de hierarquias e disciplina, em nome da boa
prossecução dos interesses públicos. Os funcionários públicos estão obrigados ao
cumprimento de determinados deveres, e quem os violar comete uma infração
disciplinar a que corresponde uma sanção. As sanções têm uma função punitiva,
predominantemente preventiva.

Tal como o DP, também as normas do direito disciplinar têm natureza de determinação.
Pretendem comandar a atuação dos funcionários públicos em ordem à correta
prossecução dos interesses públicos. A diferença entre o penal e o disciplinar está na
natureza dos bens jurídicos em causa. Neste caso, são bens jurídicos internos –
disciplina, competência, hierarquia; são bens jurídicos muito relevantes, com natureza
pública, mas que têm um relevo inferior aos bens jurídicos criminais. Esta diferença
repercute-se na modelação das condutas.
A natureza sancionatória do direito disciplinar é revelada pelo facto do direito penal
ser direito subsidiário do direito disciplinar – tudo o que não for regulado pelo direito
disciplinar, aplicar-se-á a lei penal e a lei processual penal.

- Direito de mera ordenação social ou direito das contraordenações: é um direito de


criação recente. Surgiu na Alemanha, em 1950. O seu surgimento em Portugal data de
1982 e a sua lei geral é o DL 433/82.

O nosso DP atual não considera a divisão tripartida do código napoleónico nem


a divisão bipartida de inspiração brasileira. As contravenções incluíam as bagatelas
penais, mas não tinham dignidade penal, pelo que deveriam ser remetidas para um
direito menor, onde estivessem contempladas. Apenas continham finalidades
organizatórias e funcionais – estacionamento, regras de tráfego, etc.; o que estava em
causa eram valores públicos importantes, mas que verdadeiramente eram bens jurídicos
instrumentais.

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Este ramo tutela a vida em sociedade, os cidadãos; então, a diferença entre o DP
e o Direito de mera ordenação social está na gravidade das infrações do bem jurídico –
critério qualitativo (é ou não necessária a atuação do DP? Porque ainda que o bem tenha
dignidade penal, o DP só pode atuar, baseando-se no critério da proporcionalidade, ou
seja, se for necessário).

Quanto ao processo, o direito de mera ordenação social ocorre em primeira linha


pela autoridade administrativa, ao contrário dos crimes que são julgados logo poder
judicial. As infrações são contraordenações. A estas decisões administrativas cabe
recurso, mas para os tribunais comuns e não administrativos. A regra é de que em 1ª
linha as contraordenações são apreciadas pela autoridade administrativa – artigos 33º;
61º e 73º do DL 433/82.

A sanção deste direito chama-se coima. As coimas são predominantemente de


natureza pecuniária. As únicas sanções que estão previstas a título principal são as
pecuniárias, admite-se como sanção acessória outro tipo de sanções.
Sanção principal: pode ser aplicada autonomamente.
Sanção acessória: só pode ser aplicada juntamente com uma sanção principal.
Em legislação extravagante temos exemplos de coimas principais que não têm
natureza pecuniária – caso da lei da droga: certas sanções deixam de se aplicar se o
agente se sujeitar a tratamento – esse tratamento é uma sanção não pecuniária.
Como direito sancionatório, o direito de ordenação está subordinado aos princípios já
falados – artigo 1º e 10º do DL 433/82. A menor severidade das sanções permite alguma
elasticidade.
O direito de mera ordenação social nasceu como um propósito válido e respeitável, mas
tem existido perversões. Este direito está a transformar-se em fonte de rendimento do Estado.
• A coima é a sanção pecuniária deste direito.
• A multa é a sanção pecuniária do DP.
• A coima pode ir até 1350 milhões. No caso da lei da concorrência, até aos 1780 milhões.
• São valores muito superiores do que as multas do DP que vão até os 30 milhões.
Ou merece essa pena e então é um crime, ou não merece e é violação do princípio da
proporcionalidade.

Olhar para o Direito Penal como fonte de rendimento do Estado é perverter o próprio DP, no
pior dos sentidos.

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Título II – A Lei Penal e a sua aplicação
1.1 O Princípio da Legalidade em Direito Penal.

Princípio da legalidade

Nullum crimen, sine lege.


Nullum puene, sine lege.

Este enunciado não deriva do direito romano, pois este não reconhecia o princípio da
legalidade como o conhecemos hoje. Deriva, sim, do Direito Penal moderno.
Para haver crime, tem de existir uma lei anterior que estabeleça o ato como tal,
juntamente com a respetiva sanção.
Decidir o que é crime ou não é da soberania do povo e, por isso, deve ser o órgão com
representação do povo a tomar essas decisões – poder legislativo; em Portugal, a AR (art.165º/b
da CRP).
è É ao poder legislativo que compete a qualificação dos atos como crimes e as respetivas
sanções.
Este princípio da legalidade é um limite ao ius puniendi estatal, impedindo que o Leviatã
do Estado persiga os privados – segurança dos particulares.
Os crimes, as penas e as medidas de segurança têm de estar previstas em lei anterior. Esta
ideia traduz-se no seguinte: lei prévia (que preveja), escrita (retira-se os usos e costumes da
definição de crime e pena), restrita (formal, o Governo só pode legislar sob autorização) e
certa (determinada).

Fala-se do princípio da legalidade, em alguns planos:


1. Plano da extensão: este princípio vale para todo o Direito Penal; abrange toda a matéria
da incriminação;
2. Plano da fonte: necessidade de lei formal, dos parlamentos. Surge o problema das
normas penais em branco, nas quais o legislador recorre a institutos de outros ramos do
Direito, que não estão sob reserva da AR e provêm de diplomas que não são da AR –
não se trata de uma violação do princípio da legalidade, porque é o próprio legislador
penal (AR) que chama a si esses institutos de outros ramos, para que atuem no Direito
Penal;
3. Plano da determinalidade: exigência de que a lei seja certa – certeza do direito. Os
privados, perante a gravidade do DP, têm direito a saber o que está em jogo, por isso o
DP tem de ser claro e certo de forma a que os privados possam evitar crimes e
consequentemente, evitar sanções. Isto não impede o uso de conceitos indeterminados
e cláusulas gerais, desde que sejam objetivas e claras.
Este princípio está consagrado no art.29º CRP e art.1º CP – a CRP contém em si normas
materialmente penais, devido à importância do DP.

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Artigo 1º: - Princípio da legalidade

1 - Só pode ser punido criminalmente o facto descrito e declarado passível de pena


por lei anterior ao momento da sua prática.
2 - A medida de segurança só pode ser aplicada a estados de perigosidade cujos
pressupostos estejam fixados em lei anterior ao seu preenchimento.
3 - Não é permitido o recurso à analogia para qualificar um facto como crime,
definir um estado de perigosidade ou determinar a pena ou medida de segurança que lhes
corresponde.

Nº1: princípio da legalidade dos crimes e princípio da legalidade das penas; é necessária
lei anterior;
Nº2: de acordo com o regime do velho código, a lei nova poder-se-ia aplicar; de acordo
com o regime atual, a lei nova não se pode aplicar, no sentido de proteger os privados da burla
de etiquetas e da própria certeza e segurança.

O princípio da legalidade repercute-se na interpretação da lei e na integração das lacunas


penais.

1.2 A Interpretação da Lei Penal e a Integração das Lacunas.

Que interpretação deve ser utilizada na lei penal?


è Teleológica.
A lei é o meio de acesso para aceder ao sentido da norma.

A interpretação da norma pode ser:


• Declarativa
• Restritiva
• Extensiva
- Desde que atenda ao espírito da lei.
Na opinião do Professor Almeida Costa, o intérprete deve fazer uma interpretação objetiva
de acordo com o permanente fluir da vida social.

Nº3: Não se pode recorrer à analogia para colmatar as lacunas penais; não se pode usar a
analogia para aumentar a pena, dizer que um ato é crime, etc. – aplicação de penas, de medidas
de segurança, de agravantes (ou seja, matéria desfavorável ao arguido). Não se aplica a
analogia legis (o regime está previsto na lei, que se aplicaria a uma situação análoga) nem a
analogia iuris (cria-se uma “norma” nova, de acordo com o espírito do sistema).
Em matéria favorável ao arguido, a analogia é aplicável.

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As normas de interpretação e integração de lacunas, presente no CC, que valem para todo
o Direito, também se aplicam inteiramente ao Direito Penal (exceto a analogia iuris e a
analogia legis, que não se aplica em matéria desfavorável ao arguido)

1.3 A aplicação da Lei Penal no Tempo.

Existe um princípio geral da irretroatividade da lei penal – qualquer conduta só pode ser
crime em virtude de lei anterior.

è Defesa da segurança das pessoas contra os poderes públicos.

Princípio da não retroatividade – concretização do princípio da segurança dos particulares.


Se fosse possível aplicar uma lei retroativamente, abria-se a porta para que certos grupos de
pessoas fossem punidas à posteriori, quando no momento do facto tal ato era lícito ou conforme
ao direito.

É no momento da prática do facto que o agente tem de saber se a conduta é ilícita. O


princípio da não retroatividade da lei penal – artigo 2º/1 CP.

Artigo 2.º - Aplicação no tempo

1 - As penas e as medidas de segurança são determinadas pela lei vigente no momento da


prática do facto ou do preenchimento dos pressupostos de que dependem.

2 - O facto punível segundo a lei vigente no momento da sua prática deixa de o ser se uma
lei nova o eliminar do número das infracções; neste caso, e se tiver havido condenação, ainda
que transitada em julgado, cessam a execução e os seus efeitos penais.
3 - Quando a lei valer para um determinado período de tempo, continua a ser punível o
facto praticado durante esse período.
4 - Quando as disposições penais vigentes no momento da prática do facto punível forem
diferentes das estabelecidas em leis posteriores, é sempre aplicado o regime que
concretamente se mostrar mais favorável ao agente; se tiver havido condenação, ainda que
transitada em julgado, cessam a execução e os seus efeitos penais logo que a parte da pena
que se encontrar cumprida atinja o limite máximo da pena prevista na lei posterior.

Existe, no entanto, um problema generalizado em determinar o momento da prática do


facto. Ex: Senhor A dá um tiro no senhor B no dia 1 de janeiro. Senhor B só falece no dia 15.

O artigo 3.º do CP é o princípio-regra (o relevante será o momento em que o agente atua,


ou devia ter atuado, independentemente dos efeitos), mas há exceções – a retroatividade das
leis de conteúdo favorável ao arguido.

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José Santos
Faculdade de Direito da Universidade do Porto 2021/2022


Artigo 3.º - Momento da prática do facto

O facto considera-se praticado no momento em que o agente actuou ou, no caso de


omissão, deveria ter actuado, independentemente do momento em que o resultado típico se
tenha produzido.

Se o legislador entende que os interesses em questão podem ser salvaguardados por um


regime menos severo, não faria sentido aplicar a lei anterior, que consagra uma sanção mais
severa.

Lei concretamente mais favorável – se há uma lei nova, e em princípio melhor, não faz
sentido continuar a aplicar a lei do momento na prática, então aplica-se a lei concretamente
mais favorável.

Ex.:

Lei do momento da prática do facto -> pena 2 a 6 anos de prisão.

Momento de julgamento -> pena 6 a 8 anos de prisão.

è Parece que a 2ª é mais severa e não se aplica retroativamente.

è Porém, suponhamos que apesar de estabelecer em abstrato uma pena mais pesada,
contempla uma cláusula de exclusão de pena que não existia na 1ª.

Neste caso, a lei concretamente mais favorável seria a segunda, caso se verificasse os
pressupostos para efetivar a cláusula de exclusão.

Lei posterior pode ser mais favorável de uma destas 2 maneiras: ou uma conduta que era
crime deixa de ser crime; ou consagra uma sanção mais favorável/menos grave para o agente.

A nossa lei estabelece regimes diversos: nem todas as hipóteses de descriminalização vão
estar previstas.

Primeiro, refere-se o nº2 do artigo 2º do CP:

- Mesmo que o agente esteja a cumprir pena, cessa a execução da pena.

è Aqui está compreendida a descriminalização pura e simples.

Existem duas situações/possibilidades:

Ø A lei posterior pode ser favorável de duas formas:

• Descriminalização (o ato deixa de ser crime) – nº2 do art.2º do CP – a lei vigente no


momento da prática do ato foi substituída por outra que elimina a respetiva conduta
como crime. Aplica-se retroativamente a lei nova, mesmo quando já se está perante

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José Santos
Faculdade de Direito da Universidade do Porto 2021/2022


uma condenação transitada em julgado, a pena cessa imediatamente, assim como os
efeitos da sua culpa – esta é a descriminalização pura e simples.

• Despenalização (a sanção diminui): nº4 do art.2º do CP – a gravidade da pena


diminuiu depois da prática do ato; uma nova lei torna a pena menos severa. Este nº4
prevê outra modalidade, a descriminalização que substitui o regime sancionatório penal
(mais severo), por um regime contraordenacional.

Sintetizando, existem três possibilidades que surgem da interpretação dos números 2 e 4 do


artigo 2.º do CP, são elas:

• Descriminalização total de um comportamento em toda a ordem jurídica (são raras,


ex.: interrupção voluntária da gravidez), aplica-se o nº2;

• Descriminalização, traduzida na conversão de um crime penal para contraordenação,


aplica-se o nº4;

• Despenalização, onde a ordem jurídica continua a considerar o ato crime, mas define
uma pena menos severa, aplica-se o nº4.

Artigo 2.º número 4/parte 2 do CP (após o ponto e vírgula): a redação originária tinha
razões de ordem prática, mantendo a pena da lei anterior, isto porque os tribunais não tinham
capacidade para re-julgar todos os casos transitados em julgado que, entretanto, pudessem ser
alterados por uma lei nova. Atualmente, há respeito pelo trânsito em julgado, sendo que o
agente continua a cumprir a pena aplicada pela lei velha, terminando a mesma no limite da
pena determinada pela lei nova. Por exemplo: Sr. A foi condenado a 5 anos por um respetivo
crime com pena entre os 4 e 6 anos. Entretanto, saiu nova lei que baliza a pena do mesmo crime
entre os 2 e os 4 anos. Quando o Sr. A tiver cumprido 4 anos de prisão, será libertado
automaticamente.

Leis intermédias

As leis intermédias vigoram entre o momento da prática do facto e o momento do


julgamento sem, todavia, estarem em vigor em nenhum dos dois momentos de ação.

Imagine-se o seguinte:

L1: em vigor no momento da prática do facto

L2: em vigor na fase de instrução

L3: em vigor no julgamento em 1ª instância

L4: em vigor no momento da decisão final da sanção

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L2 e L3 são leis intermédias, que não estão em vigor nos momentos mais cruciais do
processo.

Para a determinação da lei aplicável, relevam as leis intermédias? A doutrina diz que
sim. O juiz deve “julgar” à luz das 4 leis e aplicar a lei mais favorável, isto porque o arguido
não tem culpa da demora do processo.

Leis temporárias ou de emergências

As leis temporárias ou de emergência visam dar resposta a uma situação de crise.

São leis que à partida fixam um determinado tempo de vigência; respeitam a situações de
crise/exceção (guerra, fome, etc.).

è O legislador integra regimes excecionais.

A lei de emergência suscita alguns problemas. Esta lei é de prazo fixo e o processo criminal
é prolongado; isto significa que os crimes ocorridos em tempo de vigência da lei de emergência
seriam julgados no fim dessa vigência, ou seja, em regime normal, que é mais favorável. Os
crimes ocorridos na crise em questão, aplicando-se a retroatividade das leis mais favoráveis,
nunca seriam julgados pela lei de emergência (porque a lei normal é sempre mais favorável).

Por isso, a lei de emergência é ultrativa (nº3 do art.2º CP – ultratividade) e, então, os


crimes praticados na situação de crise, são julgados pela lei de emergência. Isto porque os
crimes praticados nesse período de vigência são considerados mais graves, por, precisamente,
se estar numa situação de crise/emergência.

A redação do nº3 do art.2º do CP não é a melhor, tem falhas.

A retroatividade da lei favorável baseia-se na mudança de perceção do legislador – isto não


sucede, em regra, nas leis de emergência, porque as ações praticadas no período de emergência
continuam a ser consideradas mais gravosas (isto acontece na dicotomia lei comum/lei de
emergência), tanto que caso houvesse uma nova crise de semelhante natureza o legislador
aplicaria a mesma lei. Nestes casos o legislador não muda de conceção, muda sim o regime em
vigor (mas essa mudança não ocorre porque o legislador considera o crime menos gravoso,
mas sim porque a situação que deu aso à lei de emergência terminou).

Por exemplo: considere-se que num período de crise temos, inicialmente a L1 e, mais tarde,
L1 é revogada por L2, no mesmo período de emergência.

Pessoa A cometeu um crime ao abrigo da L1 e quando estava a ser julgado, estava em vigor
a L2, mais favorável ao arguido. Qual se aplica? Depende, teremos de verificar os pressupostos
que levaram à L2:

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• Se L2 surgiu após a mudança de conceção do legislador (ex.: recebeu críticas pela
sanção que determinou), que considerou que os interesses em questão podiam ser
salvaguardados por uma menor sanção, aplica-se L2.

• Se L2 surgiu pela alteração das circunstâncias de facto do período de emergência, então


aplica-se L1, porque no momento da prática do ato L1 estava em vigor para responder
a crise no seu estado atual (mais grave) e, logo, o crime é considerado mais gravoso.

Entre duas leis de emergência só se aplica a lei mais favorável, somente quando essa lei
nova decorre de uma mudança de conceção do legislador.

Sintetizando:

Um crime praticado à luz de uma lei de emergência, será sempre julgado pela mesma.

Haverá aplicação retroativa da lei de emergência quando essa diminuição resultar da


alteração das conceções do legislador.

Alteração das conceções do legislador no que à natureza do crime concerne: Lei


do cheque e o crime de provisão de cheques

Contexto: Até 1990, o cheque sem provisão era considerado um crime que lesava a
“confiança pública no cheque”, sendo esse o bem jurídico que a sua criminalização visava
defender. No entanto, em 1990, o legislador muda a sua conceção e vem considerar o cheque
sem previsão uma burla especial. Esta alteração muda o bem jurídico que se visa proteger, mas
não altera o facto do mesmo crime continuar a ser punido, ou seja, não existe qualquer tipo de
vazio de punição, como alguns alegaram na altura.

Outros exemplos surgiram, como com o crime de violação (e outros de índole sexual),
onde antes se considerava um atentado aos bons costumes e depois, que se mantém atualmente,
passou a ser um atentado à liberdade de autodeterminação.

Concluindo: o facto de existir uma alteração do bem jurídico que se visa proteger não
significa que haja uma alteração do ilícito; nestas situações não há descriminalização e
neocriminalização – existe, sim, continuidade do ilícito.

Problemática quanto aos crimes de execução permanente: qual o momento da


prática do ato?

Já vimos que o momento relevante para determinar a lei a aplicar é o momento do ato
(art. 3.º do CP). A questão que se coloca é como determinar a lei a aplicar quando estamos
perante crimes permanentes, ou seja, aqueles cuja execução se prolonga no tempo.

Se a regra é a aplicação não retroativa da lei penal, importa saber qual é o momento da
prática do facto.

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Vejamos um exemplo: num sequestro de uma semana, temos uma constante repetição
do crime, ou seja, a execução do ato ocorre todos os dias. Ao 3º dia do sequestro surge uma lei
nova; se a lei nova for mais favorável, aplicamos essa (não há dúvidas, seguimos o princípio
de aplicação da lei mais favorável ao arguido). O problema releva quando a lei nova é mais
severa para o arguido.

Para esta problemática surgiram várias respostas doutrinais:

• Uns defendem que devemos aplicar a lei em vigor no início do ato (pouco acolhimento);
• Outros – doutrina maioritária – defendem que devemos julgar o crime (por exemplo,
um sequestro) como se na verdade fossem dois, ou seja, até à entrada em vigor da lei
nova, estaríamos perante um crime, depois da entrada da lei nova, estaríamos perante
outro. Julgaríamos o arguido acumulando os dois crimes.
• Finalmente, existe a doutrina avançada pelo Sr. Professor Almeida Costa, que defende
a aplicação da lei nova independentemente de ser desfavorável ao arguido. A ideia por
trás deste critério prende-se com a assunção que o criminoso aceitou tacitamente a lei
nova quando continuou a praticar o crime. Esta solução revela-se mais vantajosa, em
comparação com a da doutrina maioritária, para o arguido, uma vez que a aplicação
cumulativa de dois crimes será sempre mais severa que a de apenas um.

Importa ressalvar que o legislador equipara os crimes permanentes aos crimes continuados.
Isto prende-se com a habilidade do legislador fundir a pluralidade de crimes num só, o que se
prova favorável para o arguido. Assim, a doutrina (incluindo o Sr. Professor Almeida Costa)
aplica aos crimes permanentes as mesmas soluções que utiliza para os crimes continuados.

1.4 A aplicação da Lei Penal no Espaço1

Com a internalização da vida moderna e do próprio fenómeno da criminalidade, há cada


vez mais crimes cuja consumação e repercussões se estendem por vários Estados e ordens
jurídicas. Este género de criminalidade tende a ser mais perigosa que a criminalidade
considerada comum – veja-se o caso do tráfico de estupefacientes ou do terrorismo. Coloca-se
assim o problema: qual das ordens jurídicas envolvidas será competente para regulamentar
a situação concreta? Para responder a esta questão, há que determinar o âmbito especial de
aplicação de cada ordem jurídica.

Coloca-se, então, a questão: em relação a que factos, no plano espacial, devemos


aplicar o Direito Penal Português?

Esta problemática é abordada pelo Direito Penal Internacional (remissão para os artigos
4.º e 7.º do CP), e poderá dizer-se que esta tem um objeto muito mais específico do que o

1
Esta matéria não foi lecionada no âmbito das aulas teóricas, remeter-se-á, então, para o manual do Doutor
Figueiredo Dias e à Sebenta Prática de Direito Penal de Vítor Costa.

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Direito Internacional Penal, dado que abarca apenas as regras de aplicação espacial da lei penal
interna, enquanto este último abrange virtual e indistintamente todas as normas de Direito
Internacional que versam sobre matéria penal.

Sem dever esquecer-se que o Direito Internacional Penal leva por vezes à consagração
de certas soluções no âmbito do Direito Penal Internacional, no que toca ao se e ao como da
competência estadual para conhecimento de certos crimes, nomeadamente através da
vinculação dos Estados em convenções internacionais sobre o assunto.

O sistema estadual de aplicação da lei penal no espaço baseia-se em diversos princípios


e num certo modelo da sua combinação:

Ø Princípio-base: princípio da territorialidade, segundo o qual o Estado aplica o seu


Direito Penal a todos os factos penalmente relevantes que tenham ocorrido no seu
território, com indiferença por quem ou contra quem foram tais factos cometidos.

o Princípios acessórios ou complementares:


- princípio da nacionalidade, segundo o qual o Estado pune todos os factos
penalmente relevantes praticados pelos seus nacionais, com indiferença pelo
lugar onde eles foram praticados e por aquelas pessoas contra quem o foram.
- Princípio da defesa dos interesses nacionais, segundo o qual o Estado exerce
o seu poder punitivo relativamente a factos dirigidos contra os seus
interesses nacionais específicos, sem consideração do autor que os cometeu
ou do lugar em que foram cometidos.
- Princípio da aplicação universal/universalidade, que manda o Estado punir
todos os factos contra os quais se deva lutar a nível mundial ou que
internacionalmente ele tenha assumido a obrigação de punir, com
indiferença pelo lugar da comissão, pela nacionalidade do agente ou pela
nacionalidade da vítima.
- Princípio da administração supletiva da justiça penal (introduzido pela
revisão do CP de 1998, através da alínea e) do artigo 5º/1)

Princípio básico da territorialidade

O DP português assume como princípio basilar de aplicação da sua lei penal no espaço
o princípio da territorialidade e não o da nacionalidade.

A assunção do princípio da territorialidade como base do sistema de aplicação da lei


penal no espaço é a via que facilitará em maior medida a harmonia internacional, o respeito
pela não ingerência em assuntos de um Estado estrangeiro. Se a aplicação espacial da lei penal
nacional é rigorosamente demarcada sobre as fronteiras de cada Estado, e se a generalidade dos

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Estados aceita este princípio, está então descoberto o melhor caminho para que não se gerem
conflitos internacionais – positivos ou negativos – de competência interestadual. Se a
generalidade dos Estados aceitar o princípio-base da territorialidade, um Estado que aceite o
princípio pessoal ver-se-á a cada passo confrontado com aqueles conflitos e com a acusação da
respetiva ingerência.

É na sede do delito que mais vivamente se fazem sentir as necessidades de punição e de


cumprimento das suas finalidades, nomeadamente, de prevenção geral positiva. É a
comunidade onde o facto teve lugar que viu a sua paz jurídica por ele perturbada e que exige,
por isso, que a sua confiança no ordenamento jurídico e as suas expectativas na vigência da
norma sejam estabilizadas através da punição. A estas razões (que poderiam chamar-se
“substantivas”) acresce que o lugar do facto é também aquele onde melhor se pode investigá-
lo e fazer a sua prova (razão “processual”) e onde, por conseguinte, existem mais fundadas
expectativas de que possa obter-se uma decisão judicial justa.

® Este princípio está consagrado no artigo 4º/a) do CP.

Torna-se assim indispensável determinar, por um lado, o que é “território português” e, por
outro, qual o locus delicti - dizer qual o lugar onde um facto é praticado. A primeira questão é
do âmbito do direito constitucional – artigo 5º CRP, por isso apenas nos debruçaremos sobre a
segunda.

O problema da sede do delito

Para determinação do locus ou sedes delicti rege o artigo 7.º, onde o legislador,
diferentemente do que sucede com a determinação do tempus delicti (legislador optou pelo
critério da conduta em desfavor do do resultado), cumulou os dois critérios no sentido daquilo
que doutrinalmente corre como solução mista ou plurilateral. Assim, considera-se
competente para regular um crime face a uma conduta praticada ou a resultado verificado em
território português. O mesmo é dizer que considera que o crime foi praticado em Portugal
quer se tenha verificado aqui a conduta (ato central ou não) ou o resultado. Ao falarmos
de conduta, não nos referimos apenas ao ato central do delito, mas também a qualquer ato de
comparticipação.

Artigo 7.º - Lugar da prática do facto

1 - O facto considera-se praticado tanto no lugar em que, total ou parcialmente, e sob


qualquer forma de comparticipação, o agente actuou, ou, no caso de omissão, devia
ter actuado, como naquele em que o resultado típico ou o resultado não compreendido
no tipo de crime se tiver produzido.

2 - No caso de tentativa, o facto considera-se igualmente praticado no lugar em que,


de acordo com a representação do agente, o resultado se deveria ter produzido.

Princípio complementar da nacionalidade

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A complementaridade do princípio da nacionalidade relativamente ao da
territorialidade logo significa que não se pretende, por meio dele, obviar a todo e qualquer
crime que possa ser cometido por um português fora do seu país. Apenas se reconhece existirem
casos perante os quais, se tudo repousasse no princípio português da territorialidade, poderiam
abrir-se novas lacunas de punibilidade indesejáveis para uma política criminal internacional
concertada e eficiente. E isto porque existe uma máxima aceite pelo direito internacional: da
não extradição de cidadãos nacionais.

Se não os extradita, então os princípios da convivência internacional devem conduzir a


que, uma vez que eles se encontrem de novo no país da nacionalidade, o Estado nacional os
puna: o Estado ou extradita (entrega) ou quando não extradita, pune (julga).

Princípio da personalidade ativa: atende à nacionalidade do agente ativo do crime. O agente é


um português.

Princípio da personalidade passiva: atende à parte passiva do crime, ou seja, à vítima, ao


ofendido. Aplicação da lei penal portuguesa a factos cometidos no estrangeiro por estrangeiros
contra portugueses.

® O nosso Código Penal considera os dois conjuntamente.

Artigo 5.º/1/c) - Factos praticados fora do território português

1 - Salvo tratado ou convenção internacional em contrário, a lei penal portuguesa é ainda


aplicável a factos cometidos fora do território nacional:

c) Quando constituírem os crimes previstos nos artigos 144.º-A, 144.º-B, 154.º-B e


154.º-C, 159.º a 161.º e 278.º a 280.º, desde que o agente seja encontrado em Portugal
e não possa ser extraditado ou entregue em resultado de execução de mandado de
detenção europeu ou de outro instrumento de cooperação internacional que vincule o
Estado Português;

e) Por portugueses, ou por estrangeiros contra portugueses, sempre que:

i) Os agentes forem encontrados em Portugal;


ii) Forem também puníveis pela legislação do lugar em que tiverem sido
praticados, salvo quando nesse lugar não se exercer poder punitivo; e
iii) Constituírem crime que admita extradição e esta não possa ser
concedida ou seja decidida a não entrega do agente em execução de mandado de

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detenção europeu ou de outro instrumento de cooperação internacional que vincule o
Estado Português;

De acordo com este artigo, a lei penal portuguesa é aplicável a factos cometidos fora do
território nacional por portugueses (princípio da personalidade ativa) ou por estrangeiros contra
portugueses (princípio da personalidade passiva), sob uma tríplice condição:

I. De os agentes serem encontrados em Portugal;


II. De tais factos sere puníveis tanto pela legislação do lugar em que tiverem sido
praticados, salvo quando nesse lugar se não exercer poder punitivo, como pela
legislação portuguesa;
III. De constituírem crime que admita extradição e esta não possa ser concedida. Existindo,
ainda, alguns requisitos:
a. Há requisitos processuais, relacionados com as adequadas garantias de defesa,
a inexistência de pena de morte e de prisão perpetua no país onde a extradição
será feita.
b. Os nacionais não serão extraditados (artigo 33.º da CRP)2 – muito relevante
para os Direitos Continentais embora sem relevância para os Direitos Anglo-
saxónicos.
c. Há crimes que não admitem a extradição, atendendo à sua natureza própria –
crimes especificamente políticos (e não apenas cometidos por motivos
políticos) e crimes militares.

Princípio complementar da universalidade

Este princípio visa permitir a aplicação da lei penal portuguesa a factos cometidos no
estrangeiro que atentem contra bens jurídicos carecidos de proteção internacional ou que, de
todo o modo, o Estado português se obrigou internacionalmente a proteger.

O princípio deve valer independentemente da sedes delicti e da nacionalidade do


agente.

Trata-se - só - do reconhecimento do caráter supranacional de certos bens jurídicos e


que, por conseguinte, apelam para a sua proteção a nível mundial. Deste modo, aponta Jescheck
como fundamentos do princípio, a solidariedade do mundo cultural face ao delito e a luta contra
a delinquência internacional perigosa.

Princípio complementar da administração supletiva da justiça penal

Não se trata de mais um princípio de conexão do poder punitivo do Estado nacional


com o crime cometido. Do que verdadeiramente se trata – e por isso se fala com particular

2
Ter em atenção as exceções do artigo 33/3.º da CRP.

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razão da supletividade na administração da justiça - é de atuação do juiz nacional em vez ou
em lugar do juiz estrangeiros, não deixando de aplicar a ordem jurídico-penal nacional.

O objetivo é fazer com que Portugal não incorra no risco de se tornar num “valhacouto
de criminosos estrangeiros”. Isto porque este princípio, consagrado no artigo 5.º/1/e), apenas
foi introduzido na revisão de 1998. Até então, podia suceder que um cidadão estrangeiro, tendo
praticado um crime, normalmente grave, no estrangeiro, viesse buscar refúgio a Portugal, onde,
por um lado, não podia ser julgado, dada a ausência de uma conexão relevante com a lei
portuguesa, e de onde, por outro lado, não podia ser extraditado, dadas as proibições de
extraditar em função da gravidade da consequência jurídica impostas pelo sistema nacional.

No artigo acima mencionado, encontram-se as três condições dentro das quais, segundo
este princípio, a lei penal portuguesa é aplicável a factos cometidos por estrangeiros no
estrangeiro.

Enunciados os princípios subsidiários e a regra geral, convirá proceder a uma


hierarquização dos mesmos, que nos poderá ser útil a nível prático:

• Como princípio fundamental, temos o princípio da territorialidade.

• Segue-se o princípio da defesa dos interesses nacionais, que limite uma competência
sem reservas.

• Depois, o princípio da nacionalidade, nas suas duas modalidades, com os seus três
requisitos e com exigência de impossibilidade de extradição.

• O princípio da universalidade,

• O princípio da administração supletiva da justiça.

Elencados os casos onde existe competência da lei portuguesa para regular determinado
crime, importa, também, ressalvar as situações onde apesar da lei portuguesa ser competente,
não será aplicada. Estas situações encontram-se expostas no artigo 6.º do CP.

• Quando seja atribuída eficácia à sentença penal estrangeira.


• Quando, preenchidos certos requisitos, os Tribunais portugueses julgarem o caso
concreto com base em Direito Penal estrangeiro.

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Parte II – A Teoria Geral do Crime
Título I – O significado metodológico da doutrina geral do crime. As grandes
construções dogmáticas da atualidade

Em voga do que foi supramencionado, importa agora estudar as Teorias Gerais do


Crime. Estas pretendem dar ao juiz (decisor último em matéria penal) um caminho teórico para
verificar se estamos realmente perante um crime. Deste modo, decompõe analiticamente o
conceito material de crime – conduta humana violadora de uma norma de determinação –
dando-lhe pressupostos e critérios fixos, numa ótica piramidal (do mais genérico para o mais
específico).

Qual é o caminho de realização para chegarmos ao verdadeiro crime?


• A TGDCrime dá-nos os critérios:
® Ação
® Tipicidade
® Ilicitude
® Culpa
® Punibilidade
Ou seja, vai verificar se preenche estes requisitos.

Virtualidade da teoria geral do crime:


• É sempre importante realçar a virtualidade das TGDCrimes, sendo um raciocínio
lógico, é, na generalidade dos cursos de Direito Penal, utilizado como um esquema
pedagógico, dada a sua utilidade para aprofundar o conceito material de crime e tornar
claro os elementos integradores do mesmo.
• É, também, relevante mencionar o seu já referido valor como proposta metodológica -
caminho de realização do DP – o juiz perante os casos concretos, segue os passos (ação,
típica, ilícita, culposa e, para alguns autores, punível) da teoria geral do crime.
Contribui, desse modo, para a segurança jurídica.
Em sede de recurso, para o tribunal verificar a justiça da decisão tomada, vai usar os
mesmos passos que a 1ª instância, percebendo se se deveria ter chegado a outra
conclusão, sendo, assim, um método coerente que protege o particular através da
certeza e segurança que pressupõe as TGDCrimes e consequentemente o DP.

Podemos falar das TGDCrimes em vários momentos históricos, mas atenderemos à dogmática
moderna, do século XX à atualidade.

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Daqui, destacar-se-ão as três grandes construções da TGCrime:

® Teoria clássica: inspirado pelo positivismo naturalista (século XIX-XX).


® Sistema neoclássico/normativista: de inspiração neokantiana.
® Sistema finalista: ligado a um grande nome do direito penal, Hans Welzel.
Sistema que resulta de uma grande luta entre escolas, neste período:
® Sistema teleológico-racional: combina elementos dos três sistemas.

1.1 As grandes construções gerais do crime

1.1.1 Sistema Clássico

“A conceção chamada clássica do facto punível assenta numa visão do jurídico


decisivamente influenciada, em perspetiva político criminal, pela Escola Moderna Alemã e, de
forma geral, pelo naturalismo positivista que caracterizou o monismo científico próprio de todo
o pensamento da segunda metade do séc. XIX. Também o Direito teria como ideal a exatidão
científica própria das ciências da natureza e a ele deveria incondicionalmente submeter-se. Do
mesmo modo, o sistema do facto punível haveria de ser apenas constituído por realidades
mensuráveis e empiricamente comprováveis, pertencessem elas à facticidade (objetiva) do
mundo exterior ou antes a processos psíquicos internos (subjetivos).” FD

Influenciado pelo positivismo naturalista do século XIX-XX.


Há dois vetores que influenciaram este sistema:
1. Positivismo naturalista: o universo da razão prática para estes autores era uma
aparência. A conduta humana era condicionada (tal como qualquer fenómeno natural)
por condições endógenas e exógenas. Cria-se, portanto, a crença de que todas as
ciências humanas deviam funcionar do mesmo modo das naturais, fazendo-se revestir
de conceitos formalistas e descritivos desprovidos de valor axiológico – reportando-se
a realidades empíricas (factos empíricos, que se deveriam traduzir em conceitos
descritivos e axiologicamente neutrais).
o Positivismo jurídico: na base do princípio da divisão de poderes caberia ao
legislador/parlamento a definição da lei e ao juiz caberia apenas uma aplicação
automática dessa mesma lei. Funcionava através do silogismo judiciário e defendia-se
o carácter descritivo e formal dos conceitos jurídicos, pois só eles permitiam controlar
a liberdade do juiz e assegurar a “segurança dos particulares”.
Foi daqui que resultou a conformação deste sistema clássico, que dominou a literatura/doutrina
alemã até aos anos 20.

Seguindo os requisitos da TGDCrime supramencionados:

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José Santos
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→ Ação causal: uma ação, que era definida em termos causais; este conceito era
estritamente objetivo e descritivo (axiologicamente neutro). O que releva é a descrição
fáctico-exterior da conduta. Esta ação casual não pretendia explicar o crime omissivo
(quando alguém está vinculado ao dever jurídico de proteger x e não o faz; omissão de
auxílio, por exemplo). Se todo o crime partia de uma ação casual, uma omissão fica de
fora das previsões normativas, umas vez que este não interveio/não modificou o mundo
exterior.
Em suma:
O crime era toda a modificação do mundo exterior, causalmente ligada a uma vontade
e cega de valores.
estritamente objetiva;
vontade como motor do processo causal;
descritivo/axiologicamente neutra;
não se atende a aspetos valorativos.

→ Tipicidade/tipo: descrição de um concreto delito – tipo do furto, da burla, das ofensas


à integridade física. Limitava-se a descrever as ações causais penalmente relevantes (de
forma objetiva e descritiva/axiologicamente neutral). Isto revela diversos problemas,
por exemplo: lei que proíbe o golpe com uma face a outrem. A ação de um cirurgião e
de um faquista seriam idênticas, dado que a intenção é ignorada, em detrimento de uma
“descrição puramente externo-objetiva da realização da ação, completamente estranha
a valores e a sentidos”, conforme Figueiredo Dias.
Outro exemplo prático do problema da objetivação cega da conduta humana: senhor A
dá um empurrão no senhor B. O que é isto? Depende. Se este empurrão for a
consequência de uma intenção final de matar é tentativa de homicídio; se o objetivo
final fosse violar, é tentativa de violação, etc.
A conduta humana é uma objetivação de uma subjetividade, não é apenas objetiva. Na
mera observação exterior, esquecendo a subjetividade, as tentativas não seriam tidas
em conta.

→ Ilicitude ou anti juridicidade (usavam como sinónimos): significa contrariedade à


ordem jurídica, quando considerada na sua totalidade. É necessário um desvalor,
aparente elemento valorativo. Note-se que nem todas as ações típicas são
necessariamente ilícitas. Em contraposição ao tipo justificador, existiria uma série de
contratipos que, quando verificados, se tornam causas de exclusão da ilicitude. Por
exemplo, matar é ilícito, mas não o é em legítima defesa. Ou seja, o juiz deveria
procurar subsumir o facto concreto a um determinado tipo incriminador, e analisar os
contratipos de modo a aferir da existência ou não de uma causa de exclusão da ilicitude.
A valoração não era real, o juiz era convocado ao método subsuntivo (seguindo o
silogismo judiciário) – era um procedimento meramente automático.

Os seus contratipos:
- Descritivos
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- Estritamente objetivos (não se atende à vontade do agente)

Exemplo:
Arrufo entre senhor A e senhor B, vizinhos. Por vingança, o senhor A parte a janela do
senhor B. Porém, existia uma fuga de gás na casa de B e aquele acabou por salvar este
da morte.
A intenção desta conduta era causar o dano, não era salvar a vida de B, por isso o ato
não é justificável. A conduta humana não é objetiva, a subjetividade e intenção relevam
no DP e, ainda que pudessem existir atenuantes, a conduta não seria ignorada ou
valorada positivamente só por ter, no fim, um resultado positivo.

→ Culpa: conceito psicológico de culpa. Nexo psicológico que liga o agente ao seu facto.
Só aqui, na última etapa da Teoria, é que entra a subjetividade do agente, sendo esta
“suscetível de legitimar a imputação do facto ao agente a título de dolo (conhecimento
e vontade de realização do facto) ou de negligência (deficiente tensão de vontade
impeditiva de prever corretamente a realização do facto).”
- Dolo
- Negligência

Esta distinção entre dolo e negligência resumia-se à contraposição de dois diferentes


nexos psicológicos, não intervindo quaisquer nexos valorativos, quando na realidade, o
que deve estar subjacente a esta distinção é uma hierarquia de desvalor. Se a culpa se
reduz ao nexo psicológico entre o agente e o seu facto, deixa de se fazer distinção entre
imputável e inimputável. Isto porque os inimputáveis também agem dolosamente ou
em negligência, mas não há culpa – a definição de culpa é, neste sistema, erróneo.
Ainda há que considerar a inexigibilidade que descarta uma situação de culpa (também
não é tomada em conta neste sistema), por fatores exógenos ao sujeito – ex.: matar alguém para
salvar a própria vida. Diga-se, ainda, que enquanto esta descarta a culpa por fatores exógenos,
a inimputabilidade descarta com base em fatores endógenos.

Distinção

Inimputabilidade: exclusão de culpa por fatores endógenos, internos do agente.


Exigibilidade: exclusão de culpa, fatores exógenos, exteriores ao agente – exemplo dos
náufragos.

Existem ainda dois tipos de negligência:


● Negligência consciente: está consciente dos riscos, mas decide avançar com o ato,
crente de que conseguirá evitar o perigo.
● Negligência inconsciente: não representa o caráter perigoso da conduta e o agente nem
sequer antecipa o perigo.
o O conceito psicológico de culpa não prevê a negligência inconsciente.

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Este sistema centra-se numa perspetiva causalista e objetiva, não exprimindo o sentido
valorativo das condutas jurídico-criminais.
Assim, o sistema clássico, pela sua construção, deixa de fora dos conceitos-chave diversas
previsões e subtipos:
O conceito de ação causal, deixa de fora o crime de omissão.
O conceito de culpa deixa de fora a distinção entre imputável e inimputável e a
negligência inconsciente.
A subjetividade da conduta humana passa ao lado deste sistema, por este assentar na
causalidade e em aspetos estritamente objetivos.

Esquematização do sistema clássico:

Sistema
Clássico

Culpa
Ilícita ou
Ação Causal Tipicidade antijurídica Conceito
Psicológico de culpa

Descritiva/
Objetiva Axiologicamente Objetiva Descritiva Objetiva "Subjetiva"
neutral

Durou até 1920, mas não teve relevância no universo português.


A dogmática alemã penetrou no sistema português já na doutrina que se seguiu

1.1.2 Sistema Neoclássico ou Normativista

É de grande influência alemã, sendo que nos anos 30 e 40 ela vem influenciar a doutrina
portuguesa, pelas mãos de Eduardo Correia, Cavaleiro Ferreira e Beleza dos Santos. Teve uma
importância enorme porque marcou a separação dos postulados do positivismo naturalista (base
do sistema clássico).
Este sistema partia da radical oposição dos universos da natureza e do universo social
e humano; a realidade da vida prática. Universo de realidade de valorações, de normas –
universo da conduta humana.
Enquanto os fenómenos naturais se explicavam pela regra da causalidade; a conduta
humana tinha subjacente o fenómeno da valoração – a valoração é o nosso critério de ação.

Podemos falar de valores éticos, estéticos, pragmáticos e jurídicos.


Devido à indeterminação do nosso comportamento – todas as nossas escolhas assentam
em valorações; o critério do nosso juízo são os valores.

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Se penso em ir para casa e tenho 3 caminhos:


- Escolho 1 porque é mais curto – valor pragmático.
- Escolho 2 porque tem paisagens bonitas – valor estético.
- Escolho 3 porque passo por uma associação de caridade e posso fazer uma
contribuição – valor ético.
Isto leva a que necessariamente o método de construção conceitual tenha de ser
diferente dos das ciências da natureza, é o método referencial.
Método concetual de referencial de valores
Parte da base kantiana; filosofia neokantiana:
● Realidade em si é inatingível ao conhecimento humano.
● Descontínuo heterogéneo – caos, desordem, pluralidade de coisas sem qualquer
conexão entre elas.
Este descontínuo não é compreensível pela mente humana e deve convertê-lo num
contínuo homogéneo.
● Este descontínuo heterogéneo não atende a diferenças qualitativas – é a perspetiva das
ciências naturais.
Para os neokantianos não é suficiente para compreender toda a realidade, por isso surge uma
segunda forma:
● Discreto heterogéneo – privilegia as qualidades; está à procura do sentido, do seu valor.
Aqui atende-se aos valores e valoriza-se a individualidade (não procura a relação entre
as coisas). É, assim, a perspetiva das ciências humanas.
Quer as ciências naturais quer as humanas acabam por criar a própria realidade ou uma
representação da mesma, assim como o discreto heterogéneo. É uma forma de decomposição
para compreender a realidade.

Esta perspetiva referencial a valores, quando transportada para a dogmática penal:


→ Ação referencial a valores ou ação social: a ação refletir-se-ia um acontecimento
exterior, positivo ou negativo, valor ou desvalor. Ultrapassa a dificuldade do sistema
clássico existente na ação causal no que concerne os crimes de omissão, mas a ação
continuava a ser entendida em termos puramente objetivos, o que impediu este sistema
de se desprender do causalismo; se toda a ação é afirmadora ou negadora de valores, eu
posso negar um valor jurídico através de uma ação positiva para o danificar, ou através
da não atuação quando esta deve existir (abrange, então, o crime por omissão).
A ação e a omissão deixam de valer pela sua configuração externa, passando a valer
pelo seu valor e desvalor.
A ação é um processo de lesão de um bem jurídico, comandado pela vontade, que pode
ser uma ação ou omissão, um ato positivo ou negativo (predomina o aspeto objetivo; a
vontade é apenas o motor, mas não se atende à mesma, mas sim à manifestação
exterior).

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→ Ilicitude: a letra da lei não vale por si vale apenas como meio de mostrar a ilicitude
(interpretação teleológica); a ilicitude só vale quando prevista na lei.
Esta é entendida em termos objetivos, focando-se no desvalor de resultado. O juízo
material de ilicitude, que determina quais os bens e valores importantes e daí as
condutas relevantes para o DP, deve ser feita da forma mais precisa possível. Essa
precisão é conseguida através do tipo.
→ Tipo/tipicidade: deixa de ser uma categoria autónoma e une-se à ilicitude, gerando o
ilícito-típico ou o tipo de ilícito.
O ilícito típico esgota-se no desvalor de resultado, sendo estritamente objetivo (não
atende a padrões subjetivos).

Como se explica a tentativa (em que não há resultado); como se distinguem os crimes
de dano e os crimes de perigo?
Teoria dos elementos subjetivos do tipo:
O ilícito é estritamente objetivo, não se atende à subjetividade do agente (continua com
os mesmos problemas da teoria clássica). Excecionalmente e por força do princípio da
legalidade, podíamos atender a alguns elementos subjetivos. Por exemplo, no furto,
exige-se a intenção de apropriação, na burla, a intenção de enriquecimento. Esta Teoria
dos elementos subjetivos do tipo é uma tentativa de adaptar e adequar a teoria
neoclássica à lei.

→ Culpa: contributo quase definitivo; abandono do conceito psicológico de culpa dos


positivistas e da teoria clássica, substituindo-o pelo conceito normativo de culpa.
A culpa não é um facto (mero nexo psicológico), é juízo de valor/censura, que tem
como pressuposto a liberdade humana. O Direito não faz concorrência com a
psicologia, logo, a culpa é um juízo de valor/censura.
Dolo e negligência deixam de se reconduzir a um único conceito, passando a ser
distinguidos por graus de censura. A negligência seria menos censurável que o dolo e,
por isso, menos punível.
Na base deste conceito podem distinguir-se os imputáveis dos inimputáveis – estes
podem praticar atos dolosos ou negligentes, mas por força de fatores
endógenos/internos diz-se que não podem ser constituídos perante um juízo de culpa.
Ou seja, um inimputável também pratica atos por dolo ou negligência, mas não é
passível de juízo de censura.
Também se é assim capaz de distinguir a imputabilidade das situações de exigibilidade
/ não exigibilidade.

Sumário do sistema:
Prometeu uma total rutura com os quadros anteriores e um método referencial a valores.
Porém, ficou aquém das suas promessas, não se desprendendo completamente da
causalidade e do desvalor do ato, continuando a não dar resposta à tentativa e aos crimes
de perigo.

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Onde este sistema deu um contributo quase definitivo foi no conceito normativo de
culpa (autores principais: Frank e Freudenthal); a culpa não é um facto psicológico
(como foi outrora), não se esgotando num facto empírico.

Esquematização do sistema neoclássico:

Sistema
Neoclássico

Ação social Ilicitude + Culpa


(referencial a tipicidade Conceito Normativo
valores) ilícito típico de culpa

Objetiva Objetiva e Subjetiva Objetiva e Subjetiva

1.1.3 Sistema finalista


Dogmática um pouco contraditória.
Esta teoria tem como principal criador Hans Welzel, o maior penalista da sua época. Este
partia do reino da natureza e do universo da realidade prática/social, de valorações e liberdade.
Dizia que a conduta humana era a exteriorização de uma intencionalidade de sentido e não uma
conduta objetiva. O Ser Humano reage a provocações com comportamentos cognitivos,
vontade e elementos emocionais. Ao mesmo tempo que o “eu” conhece, também valora.

● Ação era um ato de comunicação.


● Ação era uma unidade subjetivo-objetiva; não havia problemas, tínhamos a base
perfeita, porque essa exteriorização abrangia o comportamento doloso e negligente, o
comportamento por ação e o comportamento por omissão.
Temos de considerar essa unidade subjetivo-objetiva para ter em consideração a ação.

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Se Welzel se tivesse mantido fiel às posições que tomou até cerca de 1935, a sua dogmática
não incorreria em tantos problemas, mas por esta altura alterou a sua doutrina, por razões
estranhas ao DP (relacionadas com a experiência totalitária do regime nazi, que partia de
premissas algo semelhantes na sua aplicação do DP).
Assim, temos duas vertentes da dogmática de Welzel.

No plano metajurídico, aderiu ao ordinalismo concreto. Dizia que o Direito


correspondia não à lei, mas a um conjunto de valores, regras e princípios que habitavam na
consciência comunitária. O Direito legislado tinha valor secundário, na medida em que se
exprimissem esses valores comunitários. Havendo oposição, era a lei que tinha de ceder. Esta
ideia levou a que se legitimasse o nazismo e os seus atos. Nem Welzel, nem o institucionalismo
(que surgiu no século XIX) eram nazis, mas as suas ideias foram aproveitadas para o legitimar
no campo do Direito Penal.

Por esta apropriação das ideias de Welzel, este viu-se obrigado a fechar a sua teoria, de
forma a não se associar ao nazismo. Assim, a partir de 1935, muda de perspetiva – passando a
ser um “segundo Welzel”, numa segunda parte da sua carreira. Sentiu-se obrigado a abandonar
aquele ponto de partida inicial e fechou o sistema.
Foi isso que levou a uma 2ª fase do seu pensamento, afirmando a partir de 1935, com ponto
alto em 1939 – “Estudos sobre o Sistema do Direito Penal”, mantendo a ideia de que a ação é
uma unidade subjetivo-objetiva e de que para se entender o ato, tem que se atender à
intencionalidade.

1. Ação final: traduz-se na ação dolosa, com modificação do mundo exterior.


o Esta ação já não era estritamente objetiva; tinha elementos objetivos e
subjetivos, só que era um conceito limitado dada a necessidade der ser uma ação
dolosa.
o Torna esta ideia inaplicável à negligência (pelo menos a inconsciente), porque
na negligência não há finalidade.
o Também deixa de lado a omissão (que não gera modificação no mundo
exterior);
o Tem críticas dos sistemas anteriores.
2. Tipo: unidade objetivo-subjetiva.
o Crimes negligentes.
o Crimes dolosos.
o Se a negligência não cabia no conceito de ação final, como é que se pode
considerar os crimes negligentes – Welzel passou a restante carreira a tentar
encaixar a negligencia na ação final.
o O tipo era meramente descritivo, apontando apenas as matérias de proibição –
não exprime o sentido de desvalor das condutas.

Verifica-se a primeira contradição: se a negligência não cabia no conceito de ação final


e se todo o tipo tinha de se reportar a uma ação final, a negligência não tinha lugar.

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O tipo já abrangia elementos objetivos e subjetivos; a contradição aqui é que não consegue
encaixar o crime negligente.

Este pensamento levava ao crime puramente descritivo; Welzel dizia que era a pura
matéria de proibição. Se o legislador usasse uma cláusula geral – ex.: boa fé; ele dizia que era
um tipo incompleto – tipos carentes de complementação, já que para ele o tipo era uma
descrição.

A valoração vinha mostrar que a ilicitude era matéria de proibição. Esta ilicitude já não era
objetiva; a ilicitude era um ilícito pessoal que pretendia retratar o sentido do ato como unidade
subjetivo-objetiva. Este formalismo metodológico aproxima-se do formalismo do sistema
clássico.

3. Ilicitude: se o tipo é a descrição formal das ações humanas relevantes para o DP, então
a ilicitude é o conteúdo do tipo, a proibição em si.
o Esta ilicitude não era objetiva, pois tratava-se de um ilícito pessoal que pretendia
retratar o sentido do ato como unidade objetivo-subjetiva. Atende-se
primeiramente à intencionalidade por detrás da conduta do agente.
4. Culpa: conceito normativo de culpa.
o O dolo e a negligência, no plano da culpa, surgiam como graus de culpa, agora
considerados no plano pessoal.
No plano da ilicitude e da culpa atende-se ao mesmo substrato valorativo e por isso se
faz a mesma distinção (negligência e dolo).
No plano do ilícito, valora-se a ação sem subjetivação do agente. Ou seja, com
referência ao “homem comum”.
No plano da culpa, a valoração é feita em função das características daquele
concreto agente (subjetividade).

A inovação do sistema finalista consiste precisamente nisto. O conceito do ilícito


pessoal contrapõe-se aos sistemas anteriores, dado que nestes a ilicitude seria sempre de ordem
objetiva e apenas na culpa a subjetividade teria importância no raciocínio lógico. Para esta
conceção, no plano do ilícito faríamos a distinção entre o ilícito doloso e o ilícito negligente,
só que a valoração desta conduta subjetiva-objetiva seria feita através da ação do Homem
médio, onde não se considera as características individuais do agente. A culpa, pelo contrário,
seria considera pelo concreto agente, dando aso a conclusões onde seria possível existir um
ilícito não culposo, por exemplo, de um inimputável. Em ambos os planos, tanto da ilicitude
como da culpa, considera-se que está a ser contrariada uma norma de determinação, estando o
núcleo do crime no desvalor da ação, e não do resultado.

No entanto, a teoria continua inquinada por todos os males da definição de conceito de


ação final (tudo seria ultrapassado se Welzel mantivesse o conceito de ação que antes defendia:
exteriorização de uma intencionalidade de sentido). Ele abandonou essa primeira ideia para

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que pudesse chegar a um conceito fechado, respondendo à crítica de que a sua teoria cedia a
arbitrariedades.
Apesar das suas contradições, foi um sistema extremamente importante.

Esquematização do sistema finalista:

Sistema finalista

Ação Final Tipo Ilicitude Culpa

Descritivo: Proibição Mantém-


Objetivos Subjetivos Crimes Crimes Ilícito se o
Negligentes pura stricto
Dolosos matéria de sensu Pessoal conceito
proibição normativo
de culpa

1.1.4 A luta de escolas

Estes três sistemas marcaram os três primeiros quarteis do seculo XX, com uma luta
acesa. Quando esta luta de escolas acalmou, veio implantar-se um sistema que passou a
constituir a generalidade da doutrina; sistema esse que aproveitou aspetos de cada um destes
três sistemas.
Herdou, do sistema clássico, as categorias (ação, tipo, ilicitude, culpa); do sistema
neoclássico, a perspetiva material, normativa, em que as categorias exprimam essencialmente
conteúdos de valor e, sobretudo, a conceção normativa de culpa (ultrapassou-se
definitivamente o conceito psicológico de culpa do sistema clássico); finalmente, do
finalismo, herdou a conceção do ilícito pessoal – para se determinar o significado objetivo e o
sentido do ato, não podemos ficar pelos aspetos externo-objetivos da conduta: a conduta
humana não é objetiva, mas antes uma unidade subjetiva-objetiva.

Sistema que resultou da luta de escolas:


É evidente que havia grandes divergências entre os autores.

Essencial:
Ação – ação referencial a valores/ação humana (unidade objetivo-subjetiva)

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Ilícito – ilícito pessoal (atende-se à intencionalidade por detrás da conduta, não apenas à sua
configuração no plano externo-objetivo); distingue-se entre ilícito doloso e ilícito negligente.
Reconduz o ilícito penal ao desvalor da ação que permite fazer tal distinção.
Culpa – manteve-se o conceito normativo de culpa (referencial a valores)

Este foi, então, o sistema que saiu da luta de escolas.


Foi sobre este sistema que se veio a construir o sistema teleológico ou racional que é a
construção a que adere o nosso curso e a maioria da doutrina portuguesa.

1.1.5 Sistema teleológico ou racional

Este sistema vai contruir-se sobre esta base supramencionada que resultou da luta de
escolas, já com a divisão dogmática dos crimes de ação dolosos e negligentes.
Tem influência de Klaus Roxin e atende às considerações de pena.

O que traz de novo?


● Pretende introduzir a necessidade de pena nos elementos da teoria geral do crime.

Na modelação do conceito material de crime inserem-se os seguintes conceitos:


1- Dignidade penal.
2- Necessidade de pena.
Em todos os sistemas que estudamos não se verifica nenhuma consideração da necessidade
de pena – se a teoria geral do crime é a analise e decomposição do conceito material de crime,
então temos de considerar a necessidade e a dignidade penal. Teremos assim a nossa definição
final de crime: conduta humana que violava uma norma jurídica que tinha como objeto a
tutela de bens jurídicos essenciais, quando nenhuma outra sanção de outro ramo do Direito
é adequada ou suficiente.
Esta é a ideia central, mas, apesar desta base ser consensual entre os adeptos da teoria
teleológica ou racional, as discórdias quanto a outros problemas subsiste.
Questiona-se então: como inserimos a necessidade de pena na TGDCrime?
Existem três vias a considerar:

– Doutrina de Claus Roxin

Roxin: mantém o sistema intocado - ação, tipo, ilícito – mas substitui a categoria da
culpa pela categoria da responsabilidade. Analisar-se-ia em dois momentos, por um lado, para
haver responsabilidade, tinha de haver culpa (1) – censurabilidade individual do agente. Mas
a culpa não bastava. Para haver responsabilidade penalmente relevante, era preciso que
houvesse necessidade de pena (2). Com esta categoria remonta-se ao conceito unilateral
unívoco de culpa (não há crime sem culpa, mas pode haver culpa sem crime).

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Resolve a questão acantonando as considerações político-criminais de prevenção, através desta


categoria da responsabilidade. Mas esta orientação não é seguida pela maioria.

– Doutrina Maioritária

Jorge Figueiredo Dias e maioria dos autores: mantém tudo igual até à culpa e depois
introduzem mais uma categoria, a da punibilidade, onde interviriam as considerações da
necessidade de pena. É preciso que a ação seja punível no sentido de ser necessária a pena.
Portanto, difere da teoria de Roxin apenas na separação dos conceitos que ele já tinha criado
dentro da responsabilidade (distinção meramente formal). Em vez do raciocínio da culpa e da
necessidade de pena serem feitos ao mesmo tempo, encontram-se divididos em dois momentos
estanques.

1. Ação
2. Ilícito
3. Tipo
4. Culpa
5. Punibilidade: a pena é necessária.

– Doutrina de Bernd Schunemann

A teoria de Bernd Schunemann e é a que mais apraz ao professor: não podemos


acantonar num só estrato do sistema as considerações de necessidade de pena e dignidade
penal, estas considerações devem estar e percorrer todas as partes: a nível da modelação do
tipo; a nível dos tipos justificadores do ilícitos e a nível da culpa.
Tanto a dignidade penal como a necessidade de pena têm de se modular ao longo de
todo o sistema, em cada uma das categorias. Projeta-se tanto nos aspetos objetivos como
subjetivos da ação.

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José Santos
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Esquematização do sistema teleológico:

Teleológico/racional

Roxin Bernd
(não é a via mais Figueiredo Schunemann
seguida pelos que Dias + maioria (pela qual o
adotam este da doutrina professor se guia)
sistema)

Substitui a categoria da
A dignidade penal e a
culpa pela categoria da Introduzem necessidade de pena devem
responsabilidade. mais uma projetar-se ao longo de todo
Analisa-se em 2 categoria: o sistema, em cada categoria.
momentos: PUNIBILIDADE.

Para haver Também tinha


responsabilida de existir Punível no
necessidade de sentido de ser
tinha de haver
pena. necessária.
culpa.

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Recapitulando: todas estas teorias gerais do delito foram relevantes para a chegada final à
communis opinio. O sistema adotado pelo nosso curso é o teleológico-racional, que se irá
desmembrar em três dogmáticas distintas: a dos crimes dolosos de ação; a dos crimes de ação
negligentes e a dos crimes de omissão.

Título II – Teoria Geral dos Crimes de Ação Dolosa

Os crimes dolosos são caracterizados por uma relação de simetria ou de congruência


entre o lado subjetivo e objetivo do crime. O que o agente pensa e pretende no seu
interior é o que ele realiza numa através de uma conduta exterior.
Na negligência, em princípio, o agente até quer praticar um ato lícito, mas por acidente
e circunstancialismos pratica um ato ilícito, pratica um crime; há uma relação de
assimetria.

Crimes de ação dolosos:

Método categorial classificatória a que obedece a teoria geral do crime, vamos começar
pelo requisito menos exigente e avançar para categorias mais exigentes.

1.1 Conceito dogmático de ação

1.ª categoria da ação: em alguns tratados (tratado de Roxin e Figueiredo Dias)


começamos por caracterizar aquilo que deve ser o conceito de ação para efeitos penais.
Seguindo a proposta de Jescheck, deve cumprir três ou quatro funções:

Classificação: Conceito de ação deve ser suficiente para abarcar todas as formas de
ação jurídico-penalmente relevantes.

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José Santos
Faculdade de Direito da Universidade do Porto 2021/2022


Definição: Apesar de ser um conceito suficientemente amplo, a ação deve ser
determinável.
Ligação: Deve ser suscetível de suportar todas as posteriores predicações.
Delimitação: Afastar, logo numa primeira abordagem, todas aquelas situações que
não sendo ações humanas, não se provam como jurídico-penalmente relevantes; não
podem ser violações de normas de determinação e portanto jamais poderão ser crimes.
Este conceito de ação e as suas funções valem para todas as outras categorias (como o
conceito de tipicidade), ou seja, este conceito nada nos diz concretamente sobre a ação,
mas sim sobre todo o método da teoria geral do crime doloso.

Conceito pessoal ou personalista da ação:


A ação reconduz-se à pura e simples exteriorização de uma intencionalidade de sentido.
Designação de Beling.
Ex.: Pessoas estão numa esplanada. Passa alguém que tropeça e cai. Várias reações são
possíveis: solidariedade (quem se levanta e vai ajudar); indiferença; quem ri com os olhos de
quem se compraz com a desgraça alheia.
Ação é um ato de comunicação.

Todos os comportamentos, sejam ativos, sejam omissivos, sejam dolosos, sejam


negligentes constituem a exteriorização de uma intencionalidade de sentido – o agente
projeta para o exterior uma determinada atitude interna. Estas ações podem consubstanciar a
negação de uma norma de determinação – conceito de ação humana para efeitos jurídico-
penais.

Conceito de ação cumpre duas funções, de forma correta (do ponto de vista do
Professor):
- Função positiva: este conceito de ação coloca a tónica na ideia de que o núcleo do crime
está no desvalor da ação; é um comportamento humano, logo, vincula a construção do sistema
à perspetiva valorativa do DP. As normas penais têm como exclusivos destinatários pessoas
humanas.

- Função negativa: Jescheck reportava-se a esta função. Afasta-se do campo do interesse


do DP tudo aquilo que não seja conduta humana (fenómenos naturais, comportamentos
animais), ainda que tenham como consequência a penalização de bens jurídicos. Excluímos do
conceito de ação penal comportamentos de pessoas, mas que não são ações humanas para o
DP, como casos de:
o Ação por inconsciência (sonambulismo ou hipnose);
o Efeitos reflexos (ex.: ataques de epilepsia);
o Atos praticados por coação absoluta (vis absoluta) - se alguém me puser uma arma na
mão e premir o meu dedo forçosamente, não fui eu quem premiu o gatilho – o tiro é
responsabilidade da pessoa que me coagiu.

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Problema da responsabilidade penal das pessoas coletivas:

o No século XIX, afirmava-se que as pessoas coletivas não podiam ter responsabilidade
penal. Esta máxima foi abandonada no século XX, passando a admitir-se a
responsabilidade penal das pessoas coletivas, através da analogia com o comportamento
humano.
o Visou ultrapassar graves dificuldades de prova. Sabe-se que nas pessoas coletivas a
decisão não é fruto de uma pessoa só. Quando são todos responsáveis, regra geral não
é nenhum – é difícil provar a responsabilidade.

Levanta sérios problemas porque a sanção aplicada à pessoa coletiva, regra geral é a multa –
multas elevadas, responsabilizando os sócios que muitas vezes não têm peso na vida da
empresa. No fundo, são estas pessoas que vão sofrer as consequências, ainda que não sejam
diretamente responsáveis pelas decisões da empresa.

Deixando este problema de parte, adotamos um conceito pessoal ou personalista da ação:


● Conceito suficientemente amplo.
● Vantagem de estar logo na base do sistema – vincar a perspetiva das valorações penais.
● O núcleo essencial do crime está no desvalor da ação.
● Nem todas as ações desvalorativas são crime, elas têm de ser ilícitas.

1.2 A figura do ilícito-típico

Tal como já sucedia no sistema neoclássico, na construção geral do delito não se


autonomiza o tipo do ilícito, antes se considera um estado unitário o ilícito-típico. O tipo é a
expressão ou o expediente técnico preconizado para expressar o juízo de ilicitude. O tipo
é a forma. O ilícito é o conteúdo.
O ilícito-típico traduz-se na fusão da ilicitude e da tipicidade. Não há lugar a separá-
las (tipo do homicídio, tipo do furto, tipo das ofensas à integridade física). O tipo ou a descrição
típica não vale por si pois as palavras são expressão de um juízo de valor. Valem enquanto
mero meio de acesso ao espírito/sentido da lei. A nossa interpretação da lei é sempre, por isso,
uma interpretação teleológica. Temos de procurar por trás da letra da lei o sentido das
valorações que estão subjacentes à mesma, porque essas valorações são o juízo de ilicitude.

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Numa 1.ª abordagem temos de avaliar a conduta humana como ato geral. Aqui podemos
distinguir entre ação dolosa e ação negligente.
O ilícito doloso é uma unidade subjetiva-objetiva. A definição das ações dolosas
penalmente relevantes tem de ser feita com a maior precisão possível, no momento da
tipicidade.
O tipo é a forma através da qual se exprime a ilicitude. É preciso precisar o conceito
do tipo. O momento da tipicidade coincide com o próprio princípio da legalidade. Todos os
pressupostos da punição têm de estar previstos na lei. O tipo no plano do sistema tem um
sentido mais restrito – abrange apenas aqueles elementos da descrição da lei que contendem
com o valor subjetivo do sentido do ato.
O legislador, ao descrever um crime, fá-lo na generalidade.

Quando falamos no ilícito-típico, no sentido dogmático, contemplamos apenas os


elementos da definição legal que caracterizam o desvalor pessoal objetivo do ato. Assim sendo,
se o tipo incriminador mais não é do que a expressão do tipo de ilicitude, então também tem de
contemplar tanto os elementos objetivos como subjetivos.
Atenção: importa reter que o tipo é uno – unidade subjetiva-objetiva; é uma unidade
dolosa – simetria entre o lado subjetivo do crime (ele conhece e quer) e a conduta exterior (o
que ele realmente realiza). A falta de um elemento subjetivo tem a mesma consequência que a
falta de um elemento objetivo: não há preenchimento do tipo.

O tipo objetivo congregaria os elementos objetivos do ilícito-típico.


O tipo subjetivo congregaria os elementos subjetivos do ilícito-típico.

Outra distinção relevantes:


Tipos incriminadores
Tipos justificadores

1.2.1 Tipos incriminadores e tipos justificadores

O legislador por norma descreve as condutas criminosas (homicídio, ofensas à


integridade física, etc.). Essas descrições de cada figura-delito (de cada modalidade de crime)
são o tipo incriminador.
Mas sucede que há circunstâncias especiais que quando ocorrem na situação concreta
retiram o desvalor jurídico-criminal (matar em legítima defesa; praticar ofensas à integridade
física em estado de necessidade – são tipos justificadores). Diz-se que a determinação do
carácter ilícito de uma situação concreta depende de uma ponderação dos tipos incriminadores
e tipos justificadores.

Para que exista um ilícito é necessário que a conduta por um lado preencha os elementos do
tipo incriminador e por outro que não preencha nenhum requisito do tipo justificador.

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Ambos concorrem para concretizar o juízo de ilicitude em cada caso concreto. Porém,
a doutrina portuguesa trata-os em separado, porque apesar de serem complementares, fazem-
se de maneira diversa.

O tipo incriminador – de modo concreto: caracteriza o ilícito, definindo o seu


conteúdo específico (por exemplo, homicídio) e permite distingui-lo de todas as outras figuras-
delito. Pela positiva: determinada os elementos do tipo incriminador que são necessários
preencher para estarmos perante um ilícito.

O tipo justificador – de modo geral: os tipos justificadores não estão destinados a uma
determinada figura-delito, pelo contrário, valem para todos estes (por exemplo, a legítima
defesa e o estado de necessidade aplicam-se à generalidade dos crimes). Pela negativa: para
termos um ilícito é preciso que não se verifiquem nenhuns dos pressupostos do tipo
justificador.

Daqui resulta que estes tipos possam ter regimes diversos porque têm estruturas distintas.
Por isso é que, sem abandonar a função dos dois momentos do ilícito típico, iremos
tratar primeiro os tipos incriminadores e depois os justificadores.

Tipo incriminador:

Unidade subjetivo-objetiva

Elementos estruturantes do tipo:

Agente
Conduta
Bem jurídico

Agente:
Existem duas modalidades no que ao agente concerne: crimes comuns e crimes específicos
ou especiais.

● Crimes comuns: podem ser praticados por qualquer agente. São a norma.
● Crimes especiais: nestes crimes, o legislador circunscreve o alcance dos destinatários
da norma para agentes com características específicas. São a exceção.

o Crimes específicos puros ou próprios: a qualidade especial do agente é


fundamento da incriminação; sem aquela qualidade, não há crime (ex.: prevaricação
– se o agente não for juiz, não há prevaricação);

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o Crimes específicos impuros ou impróprios: a característica não é fundamento da
incriminação, mas serve de agravante ou atenuante da pena aplicável à prática do
crime (ex.: homicídio simples e homicídio qualificado – a relação de parentesco
agrava o crime).

Conduta:
Dentro da conduta existem várias tipificações:

1. Quanto à execução
● Crimes de execução imediata: crimes que cuja execução e subsequente consumação se
verificam num momento (por exemplo, no homicídio a consumação verifica-se com a
morte).
● Crimes duradouros: crimes cuja consumação se prolonga no tempo. Há uma sucessão,
isto é, a cada fração de tempo que passa ele está a ser executado e consumado
simultaneamente (por exemplo, sequestro).
2. Quanto à vinculação
o Crimes de execução livre ou não vinculada: a maioria dos delitos são desta natureza. O
legislador, na maioria dos casos, proíbe condutas que possam atentar contra
determinado bem jurídico. O que releva é a produção da situação de perigo ou de uma
lesão ao bem jurídico protegido; o modo de execução é irrelevante. Desde que a conduta
seja idónea e tenha posto em perigo o bem jurídico, está completo o pressuposto.

o Crimes de execução não livre ou vinculada: o legislador atribui uma particular


relevância a um particular processo executivo – modus operandi. Por exemplo, a burla
– burlão induz em erro a vítima e a vítima voluntariamente (por ter sido enganada)
entrega o bem -> crime de autolesão. Há entrega espontânea da coisa. É preciso que o
agente siga este processo de indução ao erro e aproveitamento do erro.

3. Quando ao objetivo naturalista


o Crimes formais ou de mera atividade: aqueles que se esgotam numa pura conduta –
numa pura non facie. Ex.: invasão de domicílio; traduz-se no puro entrar – desde que
entre sem autorização no domicílio de outra pessoa é uma pura conduta.
o Crimes materiais ou de resultado: a conduta depende de um resultado naturalístico.
Corresponde à maioria dos crimes. Estes crimes levantam o problema da imputação do
resultado da conduta (se a consumação do crime depende da produção de resultado,
deve-se encontrar o critério e o nexo causal que liga a conduta ao resultado).

Bem jurídico:
Como já houve oportunidade de mencionar, o bem jurídico é essencial na ótica do DP,
uma vez que este visa, em último caso, tutelá-los. É, portanto, em função do bem-jurídico que
determinamos o sentido do ilícito específico de cada crime que o distingue dos demais.

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Distinção entre crimes de perigo e crimes de dano:

o Crimes de dano – a consumação depende da lesão efetiva do bem jurídico. A


esmagadora maioria dos crimes são crimes de dano, pois só se consumam com a efetiva
lesão do bem jurídico. Por exemplo, no homicídio só há um crime consumado quando
há a lesão efetiva da vítima (morte).

o Crimes de perigo – muitas vezes, dada a específica importância dos bens jurídico-
criminais protegidos, legislador antecipa a tutela do bem-jurídico e desenha o crime em
termos que a consumação não depende da lesão, basta o simples pôr em perigo do bem-
jurídico. Este perigo divide-se entre: perigo abstrato vs. perigo concreto.

● Perigo abstrato: são crimes de perigo presumido. Não é necessário que o bem
jurídico tenha sido, na situação concreta, colocado em perigo. Não admite prova
em contrário (é uma presunção iuris et de iure) porque o legislador entende que
em qualquer situação, mesmo que não seja lesado nenhum bem jurídico
específico, essa situação é perigosa. Ex.: ultrapassar numa rotunda.
● Perigo concreto: aqui, o perigo é elemento do tipo. Por isso, é necessário provar-
se, em concreto, que a conduta do agente pôs em perigo um determinado bem-
jurídico. É uma prova ex post do perigo. O ónus da prova não cabe ao agente,
mas à contraparte.
● Crimes abstrato-concretos: introduz uma categoria intermédia. Seriam crimes
de perigo abstrato, mas que admitiriam prova em contrário; se o arguido
provasse que no caso específico não existiu perigo, não haveria crime. Envolvia
uma inversão do ónus da prova (o agente é que teria de provar que não tinha
havido dano, o que não é aceite no DP, visto que deve ser o tribunal a provar a
existência de dano e perante a falta de prova atua o princípio in dubio pro reu.
Devido a esta crítica inultrapassável, surgiram os crimes de aptidão.
● Crimes de aptidão: exige que a conduta ex ante seja perigosa. Então, teremos de
provar, sem inversões do ónus da prova, de uma perspetiva ex ante que naquela
situação concerta a conduta era perigosa. Se não se provar que a conduta ex ante
naquela situação concreta fosse perigosa, fica absolvido. Nos delitos de aptidão
é possível uma pessoa, desde que tome as devias providências e indague sobre
a situação concreta, praticar uma conduta que em abstrato seria perigosa, mas
que naquele caso não era por via da prova em contrário. Neste caso, o ónus da
prova cabe ao agente.

1.2.2 O Tipo Objetivo

O tipo objetivo contempla os elementos exteriores (sejam atinentes à conduta, sejam


atinente ao resultado) que caracterizam o desvalor da ação e o desvalor do resultado específicos

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de uma concreta figura-delito. O legislador ao desenhar as várias figuras-delito joga sempre
com algum ou todos estes três elementos (o agente, a conduta e o bem-jurídico).

ATENÇÃO: crimes formais e crimes materiais ≠ crimes de perigo e crimes de


dano.
Na distinção entre crimes formais (ou de mera atividade) e crimes materiais (ou de
resultado) o que está em causa é o objeto naturalístico da ação, a produção de um resultado
naturalístico. O legislador, num caso basta-se com a consumação de uma mera conduta (crimes
formais), enquanto nos crimes materiais exige que essa conduta produza um resultado
autónomo (resultado naturalístico, facto). Por sua vez, o critério da distinção entre crimes de
perigo e crimes de dano é o bem-jurídico, o objeto de proteção.
Há crimes formais que não são de perigo e crimes materiais que não são de dano. E há
crimes materiais que são de perigo e crimes formais que são de dano.
Por exemplo: a invasão do domicílio é um crime formal (esgota-se na conduta) e é um
crime de dano, porque lesa a integridade da vida privada. Ainda, a contrafação da moeda é um
crime material (exige um resultado, pois a mera conduta da falsificação não basta para haver
um crime de contrafação da moeda) e é um crime de perigo pois o bem jurídico só é lesado
quando a moeda é posta em circulação (dada a importância do perigo o legislador antecipou a
tutela, não esperou pela colocação da moeda em circulação, pune logo a falsificação pois é um
ato preparatório). Também a condução sobre o efeito de álcool é um crime formal e é de perigo.

A distinção crimes formais/crimes materiais é importante porque é a propósito dos


crimes materiais que se suscita a questão da imputação objetiva. Se a consumação do crime
depende do resultado, então quando se pode dizer que o resultado se verificou em consequência
da conduta? Este é um problema tradicionalmente de nexo de causalidade.

Imputação do resultado à conduta

Problema específico dos crimes materiais, dos crimes cuja consumação depende da
consequência, mas o resultado é espácio-temporalmente autónomo (maioria dos delitos) – ex.:
furto, homicídio. Pretende responder a seguinte questão: Qual é o nexo que tem de interceder
entre o resultado e a conduta para se dizer que o resultado foi mesmo proveniente da conduta?

Doutrinas contemporâneas desde o século XX.

Teoria da equivalência das condições (Maxon Buri) – doutrina alemã: pretendia


consagrar o conceito naturalístico de causa associado à teoria de John Stuart Mill. A
causa seria o conjunto de todas as condições necessárias para que se produzisse
determinado resultado – o mesmo das causas naturais.
Inconvenientes da doutrina:

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É uma doutrina descritiva, alheia a valores. O DP valora e o que está em causa é o crime
que tem o seu núcleo no desvalor da ação. Este critério alarga o conceito de causa de
forma incompatível com as valorações jurídico-criminais de modo a suportar resultados
absurdos. Por exemplo: Sr. A bate no Sr. B e este vai ao hospital. No hospital, Sr. B
recebe a medicação errada, devido a negligência do médico e morre. A morte não seria
imputada ao médico, porque se o Sr. A não tivesse batido no Sr. B este não tinha ido ao
hospital e recebido a medicação errada – mas se assim fosse, a morte podia ser imputada
aos pais do Sr. A porque se ele não tivesse nascido não tinha batido no Sr. B e este não
tinha morrido. Mas se assim fosse podia-se imputar a morte a “Adão e Eva”. Por isso
surge a limitação da culpa. Esta teoria acabaria assim por levar à punição de indivíduos
que praticaram ações causalmente relacionadas com o resultado, mas que nem
previsivelmente nem possivelmente teriam levado a tal resultado na perspetiva do
conhecimento geral e do próprio agente.
Esta doutrina é, por si só, insuficiente para dar uma resposta ao problema da
causalidade.

Teoria da adequação: perspetiva ex ante. O resultado só se imputa à luz das regras da


experiência, tendo em consideração o conhecimento geral das pessoas face à situação e
ao conhecimento concreto daquele agente.
Perante cada caso concreto o juiz tem de fazer um juízo de prognose: tem de atender às
condições em que estava o agente. É uma teoria da imputação jurídica, não da
causalidade. Esta teoria da adequação não atende apenas às circunstâncias em geral
conhecidas, mas também às de carácter especial conhecidas apenas pelo agente. Por
exemplo: A fere B, mas B era hemofílico e morre. Se A não soubesse que B era
hemofílico, atendendo às regras da experiência, ao conhecimento geral e ao
conhecimento concreto do agente, a morte não seria imputada a A. Mas se A soubesse
que B era hemofílico, a situação seria diferente.
Outro exemplo – situação do tiro: A quer matar B. Há 99,99% de hipóteses de falhar.
Porém, ele acerta. Imputa-se? Devemos atender às regras de previsibilidade ou às regras
de mera não impossibilidade? A doutrina diverge, mas o Professor defende a última
opção. Perante a não impossibilidade, a ação é proibida e punível
Devemos ter em consideração o critério da não impossibilidade, ou seja, ainda que não
fosse provável, este resultado não era impossível.

Teoria da conexão do risco: (defendida por Figueiredo Dias, mas da qual o Professor
discorda)
Aproveita aspetos das duas teorias anteriores, mas junta-lhe um terceiro elemento.
Perante uma situação concreta há que percorrer 3 degraus:
1. Nexo causal-naturalístico: de acordo com o critério de condição conforme às leis
naturais, que diz que a uma conduta corresponde um resultado (no entanto, em
situações de ponta há divergências).
Aqui vale a teoria da equivalência das condições, aplicando-se conjuntamente o
critério de condições conforme às leis naturais.

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2. Nexo de adequação: tem de haver um nexo causal, mas nem todo o nexo causal é
relevante. Uma conduta só pode imputar o resultado se, de acordo com as regras da
experiência e tendo em consideração os conhecimentos concretos do agente e gerais
da situação, nos termos do juízo de prognose póstumo, deixe antever a produção de
um resultado como uma consequência normal ou pelo menos não impossível.
3. Corretores de conexão de risco:
o Risco permitido: há setores de atividade necessários, mas que envolvem
riscos (ex.: tráfego rodoviário). Devido à importância social desses setores,
esses riscos não podem impedir que a atividade se desenrole de todo. Assim
sendo, o legislador faz uma ponderação de custo-benefício; na base dessa
ponderação estabelece normas de cuidado (legislação propriamente dita,
códigos deontológicos, regras técnico-científicas, etc.). Se a conduta
respeitar as normas de cuidado, não se imputa o resultado, ainda que
possível (ex.: se A conduz dentro das regras, mas há óleo na estrada e
atropela alguém, o crime não lhe é imputado).
o Princípio da diminuição do risco: sempre que a concreta lesão do bem
jurídico se mostra necessária para evitar uma lesão maior a conduta é lícita.
Por exemplo: A, para impedir que B seja atropelo, empurra-o causando-lhe
uma fratura. A fratura é uma lesão da integridade física mas preveniu uma
lesão superior. Neste caso não imputaremos A.
o Comportamento lícito alternativo: o agente age de forma ilícita, mas, a
posteriori, sabe-se que se tivesse agido de forma lícita, o resultado seria o
mesmo (que decorreu da ação ilícita), o agente pode ser apenas punido por
desvalor de ação (a título de tentativa, que se aplica apenas no dolo).
o Fim/âmbito de proteção da norma: só há crime quando a conduta viola o
fim/âmbito de proteção da norma. Se o resultado naturalístico não
corresponder à conduta ilícita praticada pelo agente, esse não lhe poderá ser
imputado. Por exemplo, numa certa estra existe um limite de velocidade de
50km/h devido apenas a um cruzamento. A circula nessa estrada a 80km/h
e, por acaso, rebenta-lhe um pneu causando um despiste e
consequentemente o atropelamento de B. Como o limite é 50km/h e A
estava a andar a 80, estaria já no risco proibido e poderíamos pensar que
deveria ser imputado. No entanto, a finalidade da norma deve-se ao
cruzamento e este não teve causa alguma no atropelamento, portanto, pela
teleologia da norma não deveríamos imputar o sr. A.
De acordo com esta teoria, há que percorrer os três momentos:
1. Verificar se há nexo causal-naturalístico: se não existir, não se imputa; se existir passa-
se para o 2º nível;
2. Verifica-se se há nexo de adequação: se não houver, não há imputação; se houver passa-
se para o 3º nível;
3. Verifica-se se algum dos corretores de conexão de risco é aplicável.

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O Sr. Professor Almeida Costa discorda desta teoria e propõe outra3:

Em primeiro lugar, a discordância surge na base da adoção, pela teoria da conexão do


risco, do ilícito pessoal. O que está em causa na imputação objetiva é a determinação do ato
juridicamente relevante, ou seja, traduz-se em saber os requisitos que reveste o nexo de ligação
do agente ao facto criminoso, para que este lhe possa ser imputado. Portanto, a imputação
objetiva não é um problema exclusivo dos crimes materiais, integrando, também, os crimes
formais.
Em segundo lugar, a teoria da adequação (segundo escalão integrado na teoria da
conexão do risco) não pode incluir o critério da imputação. Vejamos o seguinte exemplo para
tornar isto claro: um farmacêutico vende uma substância abortiva a A. É previsível que A venha
a abortar, mas isto não imputa a prática do aborto ao farmacêutico, ele limitou-se a vender a
substância. Os crimes dolosos necessitam da correspondência subjetivo-objetiva, ou seja, que
o agente conheça da situação, queira praticá-la e que a pratique efetivamente, seja sua obra.
Neste caso isto não se verifica, porque o farmacêutico só “tem mãos” na venda do
medicamento, não no ato de praticar o aborto.
Em terceiro lugar, os corretores de risco da teoria da conexão do risco não são
verdadeiramente critérios de imputação objetiva, seriam, sim, causas de exclusão de ilicitude.
Portanto, quando se verificam, não há sequer desvalor da conduta para ser subsumível a um
tipo incriminador em causa, a sua mera verificação é causa de exclusão da tipicidade do facto.
Em último lugar, para terminar as críticas, o comportamento lícito alternativo parte de
uma lógica defeituosa. Na dita teoria, estes só serviriam para crimes dolosos, mas na opinião
do sr. Professor, na senda de Jescheck e a Faria Costa, o comportamento lícito alternativo só
deve vigorar nos crimes negligentes, dado que nos crimes dolosos há o desvalor de uma
intenção, seguido do desvalor da ação e da produção efetiva do resultado. Para todos os efeitos,
o agente produziu o concreto resultado, atuando dolosamente. Assim, não reconhece nos casos
dos crimes dolosos qualquer relevância ao comportamento lícito alternativo. Logo, não
podemos considerar tentativa, desvalorizar uma ação, só porque o resultado iria ser igual. O
que está em causa não é isso, mas o desvalor da conduta.
Dito tudo isto, o Sr. Professor tem uma outra proposta para a imputação objetiva
dos crimes dolosos.
Em alternativa à teoria da conexão do risco, o problema da imputação objetiva dos
delitos dolosos deve depender de dois momentos distintos:
● O nexo de imputação: domínio do facto. Isto representa a síntese do tipo
objetivo e subjetivo dos crimes dolosos (que se dá quando o agente representa
e quer praticar o crime – o quando, como e o quê dependem da vontade do
agente).
● Causalidade naturalística: em último lugar, é necessário que a conduta seja
causa efetiva da produção do resultado. Aceita, portanto, a teoria da

3
Em sede de exame, definir, no início de cada pergunta, qual será a doutrina pela qual nos iremos guiar no que
toca à imputação objetiva: se será a Teoria da Conexão do Risco ou a Teoria advogada pelo Sr. Professor
Almeida Costa.

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equivalência das condições integrada pelo critério da condição conforme às leis
naturais.
Assim, o agente tem de ter controlo sobre o ato, pelo que não basta a mera
previsibilidade. É necessário estabelecer a diferença entre o nexo desta e o nexo de
dominabilidade.
● Nexo de previsibilidade
● Nexo de dominabilidade

Ex.: Sr. A quer matar Sr. B e vai ter com C, pedindo-lhe uma pistola emprestada. Este
empréstimo deixa claro o nexo de previsibilidade, mas isto não é suficiente. É necessário um
nexo de dominabilidade, que não está previsto neste exemplo, para que se possa falar de ilícito
doloso (ou seja, associado a este elemento volitivo, seria necessária a produção de um resultado
naturalístico, ou seja, a morte de B às mãos de A)
Portanto, o critério basilar que exprime o desvalor da ação característico do ilícito
doloso (e por isso tem de ser o critério da imputação objetiva aplicável tanto aos crimes
materiais como aos crimes formais), é o domínio do facto.
O domínio do facto exige um juízo de prognose póstuma análoga da teoria da
adequação. Sendo que neste teoria a pergunta do juiz seria algo como: “Será que é previsível
o resultado como consequência desta conduta?”
Contudo, nesta teoria será diferente, uma vez que a teoria de adequação exprime um
nexo de previsibilidade. No entanto, há situações em que um determinado crime é previsível,
sem, todavia, se poder dizer a respeito dele que constitui a concretização de uma decisão da
vontade do agente. Portanto, a pergunta do juiz realmente deveria ser: “Naquela situação,
atendendo às circunstâncias do caso, aquela conduta dá ao agente ou não o controlo sobre se,
quando e como - se dá o domínio do facto ou não?” É este o critério de imputação objetiva.
Este raciocínio é semelhante, mas não igual à teoria da adequação, pois não pergunta
se é um resultado previsível, mas se a conduta dá ao agente o controlo sob a verificação ou não
do resultado.

Três figuras especiais de imputação objetiva:

● Interrupção do nexo causal: são situações em que existem dois processos causais, que
concorrem entre si para a produção de um resultado, mas um deles antecipa-se e
interseta o processo causal original (dá origem ao resultado previamente).
o Por exemplo, sr. A dá um veneno para matar o sr. B. O sr. C também quer matar
o sr. B e também lhe dá um veneno. O veneno de C é mais potente. O veneno
de A demora 4h a atuar. O veneno de C atua, por sua vez, em 15 minutos.
Imputa-se o resultado a quem? A C, enquanto A será punido por tentativa,
porque o processo causal posto em marcha foi interrompido, ultrapassado por

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outro processo causal totalmente independente. C é o causador efetivo do
resultado.

● Casos de causalidade cumulativa: são situações em que nenhuma das condutas é


suficiente para produzir o resultado, mas as duas juntas já passam a ser suficientes.
o Ex.: o senhor A e o senhor B querem matar o senhor C e escolhem o veneno.
Cada um aplica a sua dose, só que cada uma das doses, isoladamente
considerada, não era apta para produzir a morte. Se apenas um deles tivesse
aplicado o veneno, o senhor A não morreria. No entanto, as duas doses juntas
vêm a produzir o resultado. Como resolver estes casos de causalidade
cumulativa? Existem três hipóteses:
▪ Se o senhor A e o senhor B não sabem do projeto criminoso um do outro,
não se pode imputar o resultado, porque as condutas isoladamente não
são aptas para produzir efetivamente o resultado. Neste caso, os dois
serão punidos a título de tentativa (tentativa inidónea ou impossível, nos
termos do art. 23º/3 CP);
▪ O senhor A aplica o veneno sem saber que o senhor B fez o mesmo, mas
o senhor B viu o senhor A aplicar a dose de veneno e sabe que a dose do
senhor A é insuficiente e, então, aplica-lhe aquele bocadinho de veneno
que lhe falta, para que a conduta seja eficiente para produzir a morte. A
é condenado por tentativa e B por consumação (o agente que atua em 2º
lugar conhece a atuação do 1º, e decide prosseguir com a ação)
▪ Coautoria: O caso de os dois atuarem concertadamente, mediante
acordo; em coautoria – dois agentes ou mais acordam, entre si,
colaborar na realização de um crime. Nestes casos de coautoria, há uma
imputação recíproca do comportamento de cada um dos agentes aos
demais – é como se cada um, isoladamente considerado, tivesse
praticado o crime.

● Casos de causalidade alternativa: são situações em que dois sujeitos desencadeiam,


sobre o mesmo bem jurídico, uma ação causal e qualquer das ações é adequada a
produzir o resultado, mas não se consegue provar qual delas produziu efetivamente o
resultado.
A doutrina maioritária resolve isto da seguinte forma:
o Na doutrina maioritária, e em Processo Penal, vigora o in dubio pro reo, pelo
que necessariamente, neste caso, se não se pode provar qual dos dois tiros ou
dos venenos, produziu a morte, não se pode imputar a morte a nenhum dos
agentes, pelo que os dois serão apenas punidos por tentativa.
Porque é que se pune menos pela tentativa, sendo que o desvalor da ação é o
mesmo? A tentativa é menos punida devido ao menor alarme social
relativamente a uma efetiva lesão do bem jurídico tutelado – justificação para a
diminuição da pena.

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Mas, na opinião do Professor, se há efetivamente uma lesão do bem jurídico (a
morte) então não há fundamento para a diminuição da pena, porque o alarme
social é tanto quanto se a lesão fosse cometida por uma só pessoa. Assim, nos
casos de causalidade alternativa, o resultado deveria ser imputado a todos os
agentes intervenientes, consequentemente punidos a título de crime consumado.

1.2.3 O Tipo Subjetivo

Por norma, o elemento subjetivo do tipo doloso é o próprio dolo. O dolo consiste numa
designação – conhecimento e vontade de realização do crime; o agente conhece as
circunstâncias em que está a atuar. Ele conhece e quer realizar o tipo objetivo. A abordagem
do tipo subjetivo isoladamente considerado é pedagógica, porque na avaliação concreta, parte-
se sempre da perspetiva subjetivo-objetiva.

A partir daqui falamos dos dois elementos do dolo – o intelectual e o volitivo:

Elemento intelectual:

Conhecimento da realidade concreta em que o agente está a atuar. A realidade fáctica


consiste no agente conhecer exatamente a natureza do objeto que está a atingir (o
agente conhece os elementos integradores do tipo objetivo), a natureza dos meios que
está a desencadear e dos seus próprios efeitos. O agente tem de atualizar/representar
todos os elementos integradores do tipo. Se isto não se encontrar preenchido, não
teremos dolo.
Exemplo: Sr. A vai à caça; vê um vulto, dispara e mata a achar que era um animal.
Afinal era um homem.
Aqui falta o elemento intelectual para se tratar de dolo. Ele precisava de saber que o
vulto era um homem. Será punido, portanto, a título de negligência.

O legislador muitas vezes socorre-se de conceitos descritivos (homem, casa, etc.); mas
por vezes socorre-se de elementos normativos – que convocam uma valoração – conceitos
normativos de índole técnico-jurídica.
O legislador recorre a conceitos técnico-jurídicos de outros ramos do direito (boa fé,
ato administrativo válido ou inválido, etc.)
O que está em causa é a realidade fáctica que ele quer retratar.

O problema que se coloca ao recorrer a estes conceitos é saber que tipo de conhecimento
iremos exigir ao agente. Temos de exigir o conhecimento técnico, dogmático ao agente
comum? Se assim fosse, só juristas especializados poderiam cometer esses crimes. Por isso é
que a generalidade da doutrina diz que se exige o conhecimento à esfera do leigo. A mesma

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ideia foi expressa por Beleza dos Santos (professor prefere esta perspetiva) – deve atender-se
às consequências práticas que se atribui a esses conceitos jurídicos.

E que tipo de conhecimento é necessário?


● Conhecimento quanto à extensão/conteúdo: o agente tem de representar toda a
factualidade típica, tanto aquela que é designada através de conceitos descritivos como
a designada através de conceitos normativos. Quanto aos conceitos normativos de
natureza técnico-jurídica exige-se o conhecimento à esfera de lei ou as consequências
práticas se ligam ao conceito jurídico. O agente tem também de representar o próprio
nexo causal que desencadeou no sentido da lesão ou colocação em perigo de um bem-
jurídico
● Conhecimento quanto ao modo: quando o agente atua de forma consciente/dolosa
existe um conjunto de conhecimentos que não eleva à consciência refletida, mas que
são implicados na sua conduta e em qualquer momento podem ser atualizados. A
atividade com consciência/conhecimento para a afirmação do elemento intelectual do
dolo vai muito para além do conhecimento que está ao nível da consciência refletida
(co-consciência). Por exemplo, apesar de não sentirmos que temos a roupa, sabemos
que estamos vestidos. O conhecimento que é exigido para a afirmação do elemento
intelectual do dolo não se restringe aos atos sobre os quais está focada a nossa
consciência (consciência refletida – momentos em que o agente atualiza e está
concentrado). Para além desse âmbito restrito da consciência refletida, a afirmação do
elemento intelectual vai até ao nível da co-consciência.

Concluímos, portanto, que não pode haver dolo sem elemento intelectual.

Como solucionamos as situações em que o elemento intelectual não existe?

● Situações de erro sobre as circunstâncias de facto/erro sobre a factualidade


típica – artigo 16/1.º do CP:
“Erro sobre as circunstâncias de facto:
1 - O erro sobre elementos de facto ou de direito de um tipo de crime, ou sobre
proibições cujo conhecimento for razoavelmente indispensável para que o agente possa
tomar consciência da ilicitude do facto, exclui o dolo.”

O erro sobre a factualidade típica caracteriza-se pela ausência do elemento


intelectual do dolo. Se não há este elemento, não há dolo.

O que se faz ao agente?


A falta do elemento intelectual do dolo poderá dar lugar à punição a título de
negligência.

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José Santos
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Punição a título de negligência:

O fundamento material da negligência é a violação do dever objetivo de cuidado. Pelo


simples facto de viver em sociedade, o homem, na medida em que recebe vantagens de viver
em sociedade, tem também alguns encargos – sendo que um deles é o dever objetivo de
cuidado. O dever objetivo de cuidado exige que todas as pessoas, ao longo da sua vida, em
todos os atos, mantenham a atenção psicológica necessária para antecipar as consequências dos
seus atos e se absterem daqueles que possam resultar na lesão de bens jurídicos.
Daqui resulta uma limitação quanto à punição do erro sobre a factualidade típica. O
agente só poderá ser punido a título de negligência se esse erro se ficar a dever a um descuido/
leviandade censurável no plano jurídico-criminal.

Esta punição, no entanto, depende de dois requisitos:

Formal: negligência é uma forma menos grave da responsabilidade; o artigo 13.º CP


determina a excecionalidade da negligência. Entende-se que sendo a negligência menos grave,
os interesses em causa podem ser acautelados com sanções de Direito Civil e, portanto, só em
casos mais graves, onde estejam em causa bens jurídicos de maior valoração, é que os crimes
de negligência serão puníveis pelo DP.
O crime em causa tem de admitir a opção da negligencia, através da lei (1º requisito).

Artigo 13º:
“Dolo e negligência:
Só é punível o facto praticado com dolo ou, nos casos especialmente previstos na lei,
com negligência.”

● Material: na negligência o agente não quer praticar um crime, mas, por descuido, não
pondera convenientemente o circunstancialismo fáctico em que atua, ou seja, sem
querer acaba por lesar o bem jurídico. Deste modo, o erro só poderá ser punido a título
de negligência se se provar que o agente, se tivesse atuado conforme ao dever objetivo
de cuidado (cuidado exigido ao homem médio), teria conhecido corretamente a
situação fáctica em que estava a atuar e assim não teria errado, podendo ter evitado
a lesão do bem-jurídico. Este requisito deriva do fundamento material que subjaz à
punição da negligência.

Artigo 16/3.º:
“Erro sobre as circunstâncias de facto:
3 - Fica ressalvada a punibilidade da negligência nos termos gerais.”
Ressalva a possibilidade de o agente vir a ser punido a título de negligência.

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Artigos 13.º (caráter excecional da punição por negligência – requisito formal de lei) e
15.º (requisito material da punição a título de negligência).
Artigo 15.º:
“Negligência:
Age com negligência quem, por não proceder com o cuidado a que, segundo as
circunstâncias, está obrigado e de que é capaz:
a) Representar como possível a realização de um facto que preenche um tipo de crime
mas actuar sem se conformar com essa realização (negligência consciente); ou
b) Não chegar sequer a representar a possibilidade de realização do facto. (negligência
inconsciente)”

É necessário que o erro se tenha ficado a dever a descuido do agente; se ele tivesse
agido com o cuidado mínimo, tinha conhecido o tipo e ter-se-ia, portanto, abstido da prática
dessa ação.

Artigo 16/1/1.ª parte:


“Erro sobre as circunstâncias do facto:
1 - O erro sobre elementos de facto ou de direito de um tipo de crime…”
A intenção do agente é praticar uma ação lícita.

Casos especiais do erro intelectual:

Nos casos especiais do erro sobre factualidade típica o projeto do agente é já um


projeto criminoso (projeto da prática de um ilícito), só que, também devido a um erro
intelectual ou de conhecimento (sobre o circunstancialismo de facto em que atua), vem a
produzir um crime diverso daquele que projetava.

Existindo, assim:

● Erro sobre a pessoa: o agente pratica o crime sobre pessoa diferente do que o
que tinha planeado.
Exemplo: Sr. A quer matar Sr. B. Vê um vulto, achando que era B e dispara, mas era
C.
● Erro sobre objeto: o agente pratica o crime sob um objeto diferente do
intencionado.
Exemplo: Sr. A quer roubar uma caixa de latão. Após furtar, repara que a caixa era de
ouro – queria praticar um furto simples, mas acaba por praticar um furto qualificado.

“O decurso real do acontecimento corresponde inteiramente ao intentado, só que o


agente se encontra em erro quanto à identidade da pessoa ou do objeto a atingir –
existe um erro na formação de vontade.” Figueiredo Dias

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José Santos
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Devemos fazer uma questão prévia: há ou não identidade típica entre o crime
projetado e o crime consumado? Há coincidência entre o desvalor intencionado e o desvalor
de resultado?

Se houver identidade típica entre o crime projetado e o crime consumado (se o crime
praticado couber no mesmo tipo legal do crime intencionado) o erro não releva, vai ser punido
pelo crime consumado a título de dolo.
Quanto ao 1º exemplo – é sempre homicídio; Sr. A quer matar uma pessoa e mata uma
pessoa.

Mas e quando não há identidade típica? Há alguma divergência doutrinal.

Na doutrina portuguesa, houve quem quisesse tratar como um só crime.


Eduardo Correia defendia que o agente deveria ser punido pelo crime projetado como
se o tivesse consumado.
Contraria o processo do DP do facto.
O Dr. Cavaleiro Ferreira defendia que o agente deveria ser sempre punido pelo crime
consumado, o que também não nos parece uma solução correta.
Contraria o processo do DP da culpa.

Em face desta dificuldade, a doutrina alemã e a doutrina maioritária portuguesa


seguindo a doutrina alemã, elaborou a seguinte solução:
Relativamente aos casos em que não há identidade típica, o agente seria punido pelo
concurso de crimes (crime projetado a título de tentativa + crime praticado consumado) –
solução concursal (ex.: quando alguém pretende roubar uma caixa de ouro, mas acaba por
roubar uma de latão. Não existe identidade típica entre o crime projetado e o consumado, pelo
que o agente será punido a título de tentativa de roubo de ouro, e crime consumado de roubo
de latão).
Esta modalidade de erro (casos em que falta a identidade típica entre o crime projetado
e o crime consumado) não está expressamente prevista da lei – por isso, para a doutrina
maioritária, a solução resulta do funcionamento das regras gerais no sentido da tentativa e da
negligência.

● Erro sobre a execução: O agente tem um projeto criminoso, mas vem a praticar um
diverso do intencionado, porque tem uma execução defeituosa. O agente tem uma
intenção criminosa, mas vem a consumar um crime diferente: isto não é
resultado de um indevido conhecimento da realidade, mas da deficiente execução.
Assemelha-se, de certa forma, ao erro sobre pessoa – tanto que se tentou aplicar o
mesmo regime desse erro (a teoria da identidade típica), mas essa ideia foi
descartada.
Exemplo: A quer matar B. A vê B a conversar com C. Ele sabe quem é o senhor B e
o senhor C, portante não há nenhum erro de representação da realidade. Mas ao

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disparar para B acerta em C e mata C em vez de B. Há uma execução defeituosa. Se
ele tem um exato conhecimento sobre a realidade, é um erro de execução e não
sobre a pessoa ou objeto. Nestes casos, a doutrina considera que o agente deve ser
punido sempre por concurso de crimes (tentativa face ao crime projetado, e crime
consumado face ao resultado que efetivamente se verificou);

● Erro sobre o processo causal: O sr. professor Almeida Costa considera que este
erro é igual ao anterior, mas a doutrina maioritária entende que neste o agente
produz o resultado que queria no objeto que queria, só que num processo causal
distinto do projetado.
Exemplo: O senhor A quer matar o senho B por afogamento, atirando-o da ponte de
D. Luís, só que ele acaba por morrer, mas não de afogamento, antes por o embate
num dos pilares. O objeto e o resultado são o mesmo, mas produzido por um
processo causal diferente do projetado.

Existem diversas soluções:


o A solução por tentativa – partia do pressuposto do tipo como um dolo
natural (ou seja, do dolo que se esgota no nexo psicológico entre o
agente e o facto). O dolo natural do agente restringia-se a um processo
de matar por afogamento, por exemplo; logo, não abrangia o processo
de matar por embate. O agente só podia ser punido nos quadros de um
concurso de crimes. Do ponto de vista teórico, esta solução é de uma
coerência irrepreensível – o dolo do agente restringe-se à vontade de
conhecimento e realização de uma morte por afogamento. Mas a
morte não se realizou por afogamento, logo não podemos imputar
um resultado. Temos apenas uma tentativa. Por outro lado, isto
desvirtua o sentido do ato – e a isto se junta um outro inconveniente: a
punição por negligencia é excecional, bem como a punição por
tentativa, o que significa que se estivermos perante crimes que não
admitem ambas as soluções, o agente fica impune.
o A solução por consumação – que tradicionalmente foi defendida por
Eduardo Correia. Dizia que sempre que, apesar de não corresponder ao
processo causal representado, o processo causal efetivamente ocorrido
coubesse no perigo típico da conduta e fosse previsível, o agente seria
punido pelo crime consumado a tipo de dolo. Só assim não se sucederia
se o resultado não fosse previsível.
o A solução pessoal-objetiva (sr. Professor Almeida Costa) – o ser
humano tem que antever as consequências possíveis da sua conduta. O
homem médio ao realizar este ato, está a conformar-se com qualquer
uma das consequências, mesmo que lhe seja preferível uma delas. O
agente tem que ser punido pela consumação do ato. Há uma
diferença entre esta solução e a anterior – o problema do dolo não é
o dolo natural; esta solução ultrapassa a dificuldade dogmática da

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solução anterior (caso o agente, tanto na perspetiva do homem médio
como na sua própria perspetiva subjetiva, tenha conhecimento de uma
série de resultados possíveis em consequência da sua conduta, para além
do projetado, e um deles se verifique, é lhe imputado esse resultado a
título de dolo)

● Dolus generalis4: traduz-se no agente pôr em prática um projeto criminoso,


atingindo o resultado pretendido, só que este resultado é realizado e
consumado por um ato que o agente projetou já com o objetivo de encobrir
o crime praticado, isto é, posterior. Para uma parte da doutrina, no fim de
contas, o ato de encobrimento é algo de presumível (é uma consequência quase
necessária da prática do crime) dai que nestas situações o que verificamos é um
desvio do processo causal – o processo causal foi alterado pelo agente e o
resultado vem a produzir-se não pelo processo causal pensado, mas sim através
de outro.
Tem diversas soluções doutrinas:

o Maioritária: o erro subjacente às hipóteses dolus generalis não deve


relevar e o agente deve ser sempre punido nos quadros da unidade
criminosa, ou seja, pelo crime consumado a título doloso.
o Do sr. Professor Almeida Costa: teremos de considerar se o homem
médio teria em conta as circunstâncias (o comportamento de atirar um
corpo a um rio resultaria num homicídio consumado); se o homem
médio também errasse perante aquele quadro, teríamos verdadeiramente
uma tentativa de ocultação de cadáver, não um homicídio. Em função
destas duas diferentes respostas, será também diferente a solução
apresentada.

● Erro sobre as proibições: não é um erro sobre a factualidade (o agente tem um


conhecimento correto sobre a realidade); a diferença está na própria natureza
dos ilícitos, das normas, das proibições. Nas sociedades modernas, há setores
de atividade que exigem particulares conhecimentos científicos e técnicos; no
domínio económico e financeiro, a realidade está sempre a mudar, pelo que a
legislação não dá tempo suficiente para as suas proibições serem conhecidas
pelas pessoas. São proibições que pela sua natureza técnica escapam ao
conhecimento do homem comum. A única forma de conhecer este tipo de
proibições é conhecer a lei – sem este conhecimento expresso, a pessoa comum
não pode tomar conhecimento. Nestes casos (preenchido os requisitos formal e
material) o agente é julgado a título de negligência.

4
Esta questão não será abordada em sede de exame

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Artigo 16º/1/2.ª parte:
“Erro sobre as circunstâncias do facto:
1 - O erro sobre elementos de facto ou de direito de um tipo de crime, ou sobre
proibições cujo conhecimento for razoavelmente indispensável para que o
agente possa tomar consciência da ilicitude do facto, exclui o dolo.”

Artigo 17.º:
“Erro sobre a ilicitude:
1 - Age sem culpa quem actuar sem consciência da ilicitude do facto, se o erro
lhe não for censurável.
2 - Se o erro lhe for censurável, o agente é punido com a pena aplicável ao
crime doloso respectivo, a qual pode ser especialmente atenuada.”

Qual a diferença entre o erro sobre as proibições e o erro sobre a ilicitude?

A natureza dos ilícitos em causa. No caso do artigo 17.º estão em causa ilícitos
cuja aprendizagem resulta dos próprios processos normais de integração
(roubar, matar, violar, etc. é proibido); já estão interiorizados na consciência
axiológica comunitária.
Se o erro sobre as tais proibições já interiorizadas na comunidade for censurável,
será punido a título de dolo.
No erro sobre proibições trata-se de erros de caráter técnico que escapam ao
conhecimento do homem comum. Em alguns setores de atividade social os
ilícitos adquirem carácter especializado.
Para que o agente tome consciência dessa ilicitude, alguém tem de lhe mostrar
essa tal norma. O erro sobre as proibições, embora não seja um erro sobre as
circunstâncias de facto, é também um erro intelectual, daí que se aplique o
regime do erro das circunstâncias de facto (caso o desconhecimento da norma,
de carácter técnico, lhe seja censurável, pode ser punido a título de negligência).

Elemento volitivo5:

O dolo não é só conhecimento: é conhecimento e resultado; o agente conhece e


quer realizar uma conduta que preenche o tipo objetivo do ilícito. Daí que exista a
confluência entre o tipo objetivo e o tipo subjetivo no âmbito dos crimes dolosos. É o

5
O elemento volitivo não será objeto de hipóteses práticas no exame. Pode, no entanto, ser questionado em
perguntas teóricas, por exemplo: distinga dolo eventual e negligência consciente; qual é o regime aplicado no
dolo; etc.

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elemento volitivo que distingue o dolo da negligência; é aqui que encontramos o
elemento distintivo do dolo jurídico-penalmente relevante. Só através do elemento
volitivo é que podemos dizer quando é que o agente quis o facto.

Artigo 14.º:
“Dolo:
1 - Age com dolo quem, representando um facto que preenche um tipo de crime, actuar
com intenção de o realizar.
2 - Age ainda com dolo quem representar a realização de um facto que preenche um
tipo de crime como consequência necessária da sua conduta.
3 - Quando a realização de um facto que preenche um tipo de crime for representada
como consequência possível da conduta, há dolo se o agente actuar conformando-se
com aquela realização.”

Existem, assim, três modalidades de dolo:


Dolo direto/direto de 1.º grau - a finalidade primeira da conduta é a própria prática do
crime (art. 14/1.º)
Dolo necessário/indireto de 2.º grau - o crime surge não como objetivo central da
conduta, mas como uma consequência necessária e inevitável ou muito provável. O
agente não quer praticar o crime, quer praticar outra coisa, mas dessa conduta e desse
fim que prossegue, resulta como consequência necessária à prática do crime (art. 14/2.º)
Dolo eventual - tem um elemento comum com o dolo necessário: a prática do crime
não é o objetivo central, é uma consequência secundária da ação. Só que essa
consequência secundária, o crime, surge não como uma consequência necessária e
inevitável, mas possível – o grau de probabilidade é menor (14/3º). Daqui coloca-se o
problema de determinar a diferença entre o dolo eventual e a negligência de consciente.

Exemplo muito ilustrativo que combina as três hipóteses:

A tem um ódio tremendo a B. A decidiu, portanto, lançar fogo à casa de B. Sucede que
o senhor C tinha o carro estacionado na garagem de B.
A nem tem nada contra C, mas continua a querer lançar fogo à casa de B. B tem uma
empregada (D) que aparece muito raramente, nunca se sabe quando estará por casa: A sabe
desta situação. Apesar disto, A ateia fogo a casa da B. O carro de senhor C fica destruído, a
empregada (D) encontrava-se em casa e morreu.
Temos, então, as 3 hipóteses de dolo:
● Direto em relação à casa de B;
● Necessário em relação ao automóvel de C;
● Eventual em relação à empregada (D).

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A diferença entre o necessário e o eventual está na maior ou menor probabilidade da
conduta.

O grande problema encontra-se na distinção entre dolo eventual e a negligência


consciente. O elemento intelectual do dolo eventual e da negligencia consciente é o mesmo,
uma vez que o agente visualiza o crime como conduta possível; a diferença está no elemento
volitivo. Perante a representação do resultado como consequência possível, no dolo eventual,
o agente conforma-se com o resultado, ou seja, atua dizendo para si que o resultado lhe é
indiferente (por isso é que a doutrina considera que neste dolo ainda há um elemento de
vontade). É este elemento subjetivo que permite à doutrina tradicional considerar o dolo
eventual como ainda uma forma de dolo, diferentemente da negligência consciente. Nesta, o
agente visualiza também a conduta como possível, mas atua porque está convencido que
naquele caso tudo vai correr bem e que não se vai realizar a conduta do ilícito-típico (é o
chamado agente positivista). Na negligência, o agente não quis o resultado. Num caso, o
agente conforma-se; no outro caso, o agente só leva a conduta em diante porque
acredita que o crime não se vai consumar – a diferença entre ambos se encontra, portanto,
no elemento volitivo (a distinção baseia-se fundamentalmente num nexo psicológico).

Tal como está prevista na lei, a negligência consciente tem um elemento intelectual
idêntico ao do dolo eventual, como dissemos anteriormente.

Artigo 15.º/a):
“Negligência:
Age com negligência quem, por não proceder com o cuidado a que, segundo as circunstâncias,
está obrigado e de que é capaz:
a) Representar como possível a realização de um facto que preenche um tipo de crime mas
actuar sem se conformar com essa realização; ou
b) Não chegar sequer a representar a possibilidade de realização do facto.”

Nem sempre as situações de dolo eventual e negligência consciente foram resolvidas


da mesma forma, tanto que alguma doutrina (minoritária) defende a aplicação de um critério
objetivo (teorias da verosimilhança – Eduardo Correia ou teorias da probabilidade – Figueiredo
Dias). No fundo, dava-se completa arbitrariedade ao juiz.

É preciso um critério seguro.


A doutrina elege um critério de natureza subjetiva.

Teoria da conformação – consagrada na nossa lei nos artigos 14/3.ª e 15.ª/a):


O dolo eventual e a negligência consciente têm o mesmo elemento intelectual; em
ambos os casos o agente representa o resultado como possível. A diferença está no

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elemento volitivo. Na negligência, o agente não se conforma (ex.: ultrapassar – achar
que dá tempo, e depois afinal não dá; ele analisou e sabe do que pode acontecer, apesar
de não o querer). No dolo eventual, o agente coloca os seus interesses acima da norma
jurídica; ele não se conforma com o resultado, mas acredita que este não iria acontecer.

Mas e se o agente não toma uma posição?


Houve várias soluções, mas do ponto de vista do sr. Professor a que melhor satisfaz as
valorizações jurídico-criminais é a teoria da dupla negativa.

Teoria da dupla negativa (solução do Professor Eduardo Correia):


Pretende resolver o problema das situações em que o agente representa a situação como
possível, mas não toma posição.
Ele usa a relação de contrariedade entre conceitos.
Contrário de branco? Não branco – pode ser verde, amarelo, vermelho, desde que não
seja branco.
O Professor Eduardo Correia parte do conceito de negligência (em que o agente confia
que o resultado não se verificará) e em tudo o resto aplica-se o dolo eventual (quando
o agente não confia que o resultado não se verificará). Acredita que o não tomar de uma
posição face à eventual lesão de um bem jurídico essencial é tão grave quanto a
conformação com esta mesma lesão, e representa um perigo semelhante para a
sociedade, pelo que deve ser punido de igual modo.

Dolo eventual – agente não confia que o resultado não se vai reproduzir
Negligência – agente confia que o resultado não vai acontecer

A distinção do dolo direito/indireto e eventual corresponderá a uma hierarquização do dolo?


A maioria da doutrina diz que não, tratando-se apenas de uma estruturação (porque há
momentos em que o dolo eventual é mais grave do que o dolo direto). Não acontece o mesmo
na Alemanha, onde se acredita na hierarquização do dolo, considerando o eventual mais
“leve”.

O Professor Almeida Costa também defende que existe uma valoração gradativa. Sugere que
se termine com a gradação bipartida das condutas (dolo/negligência), passando a uma distinção
tripartida:
1. Dolo de resultado (onde se insere o dolo direto e o dolo indireto).
2. Dolo de perigo (onde se insere o dolo eventual e a negligência consciente). Esta
seria uma categoria intermédia, entre o dolo de resultado e negligência. O
professor Figueiredo Dias apresenta uma proposta semelhante onde aborda a
classificação da temeridade (numa semelhança ao sistema anglo-americano
onde existe a categoria da recklessness). Isto porque a distinção entre
negligência consciente e dolo eventual baseia-se nas características psicológicas

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do concreto agente (deverá o otimista desmesurado ser punido face a outro
agente mais pessimista, ou com maior consciência da realidade?)
3. Negligência (onde se insere a negligência inconsciente).

Esta distinção levanta, no entanto, problemas. A tentativa só é punível a


título de dolo e não de negligência. Mas será que poderia ser punida a título de
dolo de perigo, que inclui tanto o dolo como a negligência? Outro problema
consiste na graduação da pena – hoje temos as penas aplicadas ao dolo e à
negligencia; por isso, teríamos de arranjar penas que se aplicassem a uma
situação intermédia.

Esta é apenas uma proposta para o Direito a constituir.


Enquanto tivermos a lei atual, continuaremos com os artigos 14.º - (1) dolo direto; (2) dolo
indireto e (3) dolo eventual; e 15.º (alínea a) – negligência consciente; (alínea b) – negligência
inconsciente e teremos de continuar a fazer as distinções tradicionais.

Há ainda que abordar três modalidades do dolo:


Dolus alternativos;
Dolus antencedens ou dolo antecedente;
Dolus subsequens.

● Dolus alternativus ou dolo alternativo: caso em que alguém empreende uma conduta
e antevê como possíveis dois ou mais resultados alternativos. Quando há duas ou mais
hipóteses de resultado da conduta, ocorrendo um deles, o agente conforma-se com este
resultado. Como se lida com estes crimes? Na doutrina alemã verifica-se alguma
doutrina divergente:
o Concurso ideal entre o crime tentado (a título de tentativa) e o crime consumado
(a título de negligência) – não é defendida por ninguém, porque em Portugal
nem sequer existe a figura de “concurso ideal”;
o Posição de Figueiredo Dias – julga unicamente o crime consumado a título de
dolo;
o Deve aplicar-se a pena mais pesada. O Professor Almeida Costa defende esta
ideia – aplica-se a norma que melhor se relaciona com a conduta do agente –
consunção. Ou seja, temos de aplicar o tipo que melhor retratará o desvalor ou
o sentido jurídico-penal da própria situação, que pode ser a norma
correspondente ao crime consumado ou a norma correspondente ao crime que
era alternativo. Tudo dependerá do caso concreto.
Ex.: Quem mata o pai pratica um homicídio simples e um qualificado. Vai ser
punido por apenas um crime. Deve ser punido por qual? Pelo mais gravoso.

● Dolus antencedens ou dolo antecedente: pretende-se com uma conduta projetada com
um certo resultado, mas esse resultado é realizado com um ato anterior, preparatório.
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Não é dolo, devido à falta do elemento volitivo – o ato em questão, que alcançou o
resultado, não tinha o objetivo de conseguir esse resultado. Ou seja, o agente, com esse
ato preparatório não queria cometer o resultado. Não releva juridicamente.
Ex.: Sr. A está a ver a sua casa ser assaltada pelo Sr. B e só tem intenção de pegar na
sua arma e disparar fazer quando B começar a furtar, mas, ao pegar na arma para se
preparar, a mesma dispara e mata B. Nesse momento, A não queria matar e por isso
pode ser acusado apenas por negligência. A vontade de consumar tem de estar sempre
presente para que haja dolo. Aqui temos simplesmente um ato preparatório e não um
ato que efetue o crime.

● Dolus subsequens ou dolo subsequente: sr A tem uma qualquer conduta não dolosa.
Tem uma arma e está a exercitar-se com a arma, mas absolutamente sem querer um dos
tiros atinge alguém. Vai lá ver a vítima e vê o seu antigo inimigo e fica contente por até
sem querer o atingir (um agente, através de uma determinada conduta, chega a um
resultado que não previa nem intencionava, mas posteriormente acaba por se conformar
com esse mesmo resultado). O ato que consuma o crime não é acompanhado do
conhecimento e vontade, a felicidade vem a posteriori, pelo que é jurídico-penalmente
irrelevante.

Estes dois últimos (dolus antencedens e dolus subsequens) não são penalmente
relevantes.

Terminamos, assim, o estudo do dolo.


O tipo subjetivo do ilícito-culposo acaba com o dolo.

Excecionalmente, o legislador pode, a nível do tipo subjetivo, exigir requisitos especiais:


Especiais intenções
Ex.: Para um furto consumado não basta a intenção de subtrair um bem; é necessário
que se faça com intenção de apropriação;
Especiais impulsos afetivos;
Especiais motivos;
Especiais características da personalidade que se concretizem no ato.

Serão todos estes critérios especiais admissíveis?


Não serão alguns de caracter ético-moral?

Não iremos estudar este problema. Muitos destes elementos subjetivos especiais
resultam, pela história, de critérios de ordem moralista, por muito que de forma inconsciente.

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Não estamos a abandonar o elemento do facto do DP, é necessário haver uma conduta
com lesão ou colocação em perigo de um bem jurídico, é ainda necessário, que o ato tenha sido
praticado com um determinado fim – ex.: no crime de furto não basta produzir o dano, é
necessário que a conduta seja praticada com intenção de apropriação, de fazer ilegitimamente
seu e é isso que distingue o furto tout court do furto de uso; na burla é necessário que esta seja
feita com a intenção de enriquecimento; art. 132º alínea e, f e j por força do art. 145º, nº 2
também se aplicam às ofensas da integridade física qualificadas.

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José Santos

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