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2021/2022

1.º SEMESTRE

SEBENTA PRÁTICA DE

T E O R
I A G E R A L D O
DIREITO CIVIL
Miguel Louro
Com os apontamentos de
Faculdade de Direito da Universidade do Porto 2021/2022

APONTAMENTOS SEMANAIS DE TEORIA GERAL DO


DIREITO CIVIL - PRÁTICA

Aula de 01/10/2021
1.A invocou / arguiu a nulidade do negócio celebrado com B.
Há duas formas de invalidade, a nulidade (mais grave) e a anulabilidade, menos
grave. Nulidade encontra-se prevista no 286º do CC. Anulabilidade no 287º.
Nulidade pode ser invocada a todo o tempo e por qualquer interessado ou
oficiosamente declarada pelo tribunal. A anulabilidade só pode ser arguida pelas
pessoas em cujo interesse a lei estabelece, no prazo de um ano. No entanto, quando
um negócio não está concluído, a anulabilidade pode ser arguida sem dependência
de prazo. Não pode ser declarada oficiosamente pelo tribunal.
2. O tribunal declarou a nulidade do negócio concluído entre A e B.
Na anulabilidade, o tribunal anula o negócio. Na nulidade, o tribunal limita-se a
declará-lo nulo.
3. A celebrou com B um contrato de compra e venda.
4. A e B, por acordo, revogaram o contrato que haviam celebrado no ano anterior.
A resolução é unilateral. Como neste caso é por acordo entre as partes, o contrato
é revogado, de acordo com o artigo 406º/1 do CC.
5. A intentou uma ação de indemnização contra B.
6. A interpôs recurso da decisão proferida pelo tribunal de primeira instância.
Em termos hierárquicos, seguem-se aos tribunais de primeira instância os
tribunais da Relação e o Supremo Tribunal de Justiça, na hierarquia civil. Os juízes
de primeira instância designam-se Juízes de Direito, os da Relação designam-se
Desembargadores e os do Supremo Juízes Conselheiros.
7. A resolveu o contrato por incumprimento com B.
A resolução é unilateral, também pode ser designada de rescisão e está prevista
no artigo 798º do CC. O princípio geral, do 406º, é a pontualidade do cumprimento
dos contratos, pelo que a resolução é excecional. Além do incumprimento, o
direito à resolução também pode resultar, por exemplo, da alteração superveniente
das circunstâncias (437º).
8. A declaração negocial de A encontra-se viciada / inquinada por erro.
9. A disposição do artigo 410º, n.º 3, CC aplica-se ao contrato celebrado entre A e B.

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10. O contrato é nulo porque as partes não outorgaram a necessária escritura pública.
Por força do 875º do CC, o contrato de compra e venda de bens imóveis só é válido
se for celebrado por escritura pública ou por documento particular autenticado. Os
negócios podem ser consensuais ou formais. Os negócios são consensuais quando
se bastam com o consenso das partes, não sendo necessária nenhuma formalidade
adicional. A consensualidade é a regra, por força do 219º do CC. Os negócios são
formais, excecionalmente, quando requerem a existência de uma forma especial.
A consequência da inobservância da forma especial está prevista no 220º do CC,
sendo a nulidade do negócio.
As formalidades são comportamentos complementares ou acessórios à celebração
de um negócio, podendo ser anteriores, concomitantes ou posteriores à sua
celebração. Existem sempre formalidades num contrato, nem que sejam
declarações verbais, pois a forma é o modo de exteriorização de um negócio, mas
isso não torna o negócio formal, pois estes requerem um modo de formalização
especial, previsto em lei.
A consequência da inobservância de uma formalidade tem como consequência a
nulidade, por força do 294º do CC.
11. A retificou o erro de cálculo na sua declaração negocial.
O direito a retificar ocorre quando há um lapso legal ou de escrita, nos termos do
249º do CC.
12. A ratifica o negócio que B havia celebrado em seu nome.
A representação voluntária é a atribuição a outrem, voluntariamente, de poderes
representativos, através de uma procuração, pelo 262º do CC. Pelo 268º do CC, o
negócio que uma pessoa, sem poderes de representação, celebre em nome de
outrem é ineficaz em relação a este, se não for por ele ratificado.
13. A revogou a procuração a favor de B.
Pelo 265º/2 do CC, a procuração é livremente revogável pelo representado, não
obstante convenção em contrário ou renúncia ao direito de revogação.
14. O procurador de A renunciou à procuração.
Pelo 265º/1 do CC, a procuração extingue-se quando o procurador a ela renuncia,
ou quando cessa a relação jurídica que lhe serve de base, exceto se outra for, neste
caso, a vontade do representado.
15. A ilidiu a presunção de culpa que sobre ele recaía.
Uma presunção é quando, através de um facto conhecido, se dá por assente um
facto desconhecido. As presunções podem ser legais, resultantes da nossa lei, ou
judiciais, fixadas por um tribunal. As presunções também se dividem entre iuris
et de iure (ou inelidíveis) e iuris tantum (ou ilidíveis). Uma presunção iuris et de

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iure não admite prova em contrário, como é o caso do 243º/3 do CC. Uma
presunção iuris tantum admite prova em contrário e é a regra geral.
16. A sede social foi designada nos estatutos.

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APONTAMENTOS SEMANAIS DE TEORIA GERAL DO


DIREITO CIVIL – PRÁTICA – TURMA 2
Aula de 08/10

17. Os efeitos da nulidade produzem-se ex tunc.


Significa que os efeitos da nulidade se produzem retroativamente. Os efeitos da nulidade
produzem-se ex tunc pelo 289º do CC. O contrário de ex tunc é ex nunc, ou seja, quando
os efeitos se produzem para o futuro.
18. A obrigação de indemnizar depende da verificação cumulativa dos
pressupostos previstos no artigo 483º CC.
19. No contrato de compra e venda o vendedor está obrigado a entregar a coisa
vendida.
O contrato de compra e venda tem vários efeitos e um deles é a entrega da coisa vendida,
nos termos do 879º/1/b) do CC. A par desta obrigação, também há a obrigação de pagar
o preço e da transmissão da propriedade. A diferença entre uma obrigação e um ónus é
que o incumprimento de uma obrigação implica uma sanção, enquanto que a não
observância de um ónus não, podendo, no entanto, acarretar uma desvantagem. Dentro
das obrigações, é possível distinguir entre as civis e as naturais. As obrigações civis são
judicialmente exigíveis, ou seja, um indivíduo pode exigi-las judicialmente, ao passo que
as obrigações naturais não são judicialmente exigíveis, apesar de pertencerem igualmente
à ordem jurídica. Um exemplo de uma obrigação natural são as dívidas prescritas, pois
nos termos do 304º/1 do CC, completada a prescrição, tem o beneficiário a faculdade de
recusar o cumprimento da prestação ou de se opor, por qualquer modo, ao exercício do
direito prescrito, ou seja, decorrido o tempo da prescrição, o devedor pode recusar-se a
cumprir. No entanto, pelo 304º/2, não se pode exigir a restituição de uma dívida prescrita,
ainda que paga por ignorância da prescrição.
20. No contrato entre si celebrado, A e B convencionaram uma cláusula
penal.

21. O locador denunciou o contrato para o termo do prazo.


A denúncia é um modo de extinção de contratos que duram no tempo, pelos artigos 1098º
e 1099º do CC. A locação, pelo 1022º do CC, é o contrato pelo qual uma das partes se
obriga a proporcionar à outra o gozo temporário de uma coisa, mediante retribuição.
Consoante essa coisa, o contrato de locação possui designações distintas. Se se tratar de
um imóvel designa-se arrendamento e se for um móvel designa-se aluguer. A locação
difere do comodato, que pelo 1129º do CC, é o contrato gratuito pelo qual uma das partes
entrega à outra certa coisa, móvel ou imóvel, para que se sirva dela, com a obrigação de
a restituir, pois este é gratuito. Também se distingue do contrato de mútuo, que pelo 1142º

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do CC é o contrato pelo qual uma das partes empresta à outra dinheiro ou outra coisa
fungível, ficando a segunda obrigada a restituir outro tanto do mesmo género e qualidade.
Os bens imóveis são sempre infungíveis, pelo que se aplica apenas aos bens móveis.
22. A e B constituíram uma sociedade comercial.
23. A instituiu uma fundação.
Nos termos do artigo 185º do CC. A instituição é um negócio jurídico unilateral, bastando
uma declaração negocial, ao contrário dos contratos, em que são necessárias duas
declarações negociais.
24. A constituiu B seu procurador.
Estamos a falar de um exemplo de representação voluntária. Pelo 262º do CC, diz-se
procuração o ato pelo qual alguém atribui a outrem, voluntariamente, poderes
representativos. Diferente da representação voluntária é a representação legal, que
decorre da lei. Este é o caso das pessoas que, pela lei, não têm capacidade de exercício,
como os menores ou os maiores acompanhados.
25. A assembleia geral da sociedade deliberou aumentar o capital social.
As decisões dos órgãos colegiais tomam a forma de deliberações, ao contrário das
decisões dos órgãos singulares, que se designam decisões.
26. Na ausência de B, A foi nomeado seu curador provisório.
Esta questão remete ao instituto da ausência, que consta dos artigos 89º e seguintes. Este
instituto existe para fazer face ao problema da administração do património de alguém
cujo paradeiro seja desconhecido. Das várias soluções, a menos intrusiva é a curadoria
provisória, prevendo também a lei a curadoria definitiva e a morte presumida.
27. A requereu ao tribunal que decretasse as providências previstas no n.º 2 do artigo
70º, CC.
O artigo 70º trata da tutela geral da personalidade. O número 2 determina que
independentemente da responsabilidade civil a que haja lugar, a pessoa ameaçada ou
ofendida pode requerer as providências adequadas às circunstâncias do caso, com o fim
de evitar a consumação da ameaça ou atenuar os efeitos da ofensa já cometida. Por
exemplo, se existir uma ofensa à honra de alguém, um pedido público de desculpas pode
ser uma providência adequada para atenuar os efeitos da ofensa.
28. O juiz conheceu/declarou oficiosamente a nulidade do contrato.
29. Na ação intentada por B, A excecionou com a prescrição do direito.
A defesa processual pode dar-se por duas formas: por impugnação ou por exceção. A
defesa por impugnação é quando o réu ou nega diretamente os factos alegados pelo autor
ou, apesar de não negar os factos, nega o efeito jurídico que o autor pretende retirar. Por
outro lado, quando se defende por exceção, o réu ou alega factos novos que obstam ao
conhecimento do mérito da causa (por exemplo, que o tribunal é incompetente) ou alega
factos novos que sejam modificativos, impeditivos ou extintivos do direito (como é o caso
da prescrição). Esta matéria será desenvolvida em Direito Processual Civil, no 3º ano.

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30. A arguiu a anulabilidade do negócio por via de exceção.


31. A autorizou o acompanhamento.
A é o acompanhado. Pelo 141º do CC, o acompanhamento é requerido pelo próprio ou,
mediante autorização deste, pelo cônjuge, pelo unido de facto, por qualquer parente
sucessível ou, independentemente de autorização, pelo Ministério Público.
32. O tribunal designou B acompanhante de A.
33. O tribunal decretou o internamento do maior acompanhado B.
34. A adquiriu o direito de propriedade sobre o terreno X.
35. O direito de propriedade de A está onerado com uma servidão de passagem.
Direito de servidão é um direito real menor, em contraposição com o direito de
propriedade, que é o direito real por excelência. Pelo 1543º do CC, servidão predial é o
encargo imposto num prédio em proveito exclusivo de outro prédio pertencente a dono
diferente; diz-se serviente o prédio sujeito à servidão e dominante o que dela beneficia.
36. A assumiu a dívida de B.
37. A exigiu a B o cumprimento da obrigação.

CÓDIGO CIVIL

O atual CC data de 1966, tendo entrado em vigor em 1967. O período entre a publicação
e a entrada em vigor designa-se de vacatio leges. O CC que o precedia era o Código de
Seabra, de 1867. Antes do Código de Seabra, o Direito Civil era regido pelas Ordenações
Filipinas, precedidas pelas Ordenações Manuelinas e Afonsinas. Entre as diferentes
Ordenações, as mudanças foram mais em termos de sistematização do que conteúdo. As
suas muitas lacunas eram preenchidas por Direito subsidiário e extravagante.
Os trabalhos de preparação do Código de Seabra foram realizados pelo Visconde de
Seabra, que se inspirou no movimento codificador do séc. XIX. O Código de Seabra é
inspirado no CC francês de 1804. Fruto das crenças da época, é marcado pelo
antropocentrismo, ao contrário do atual, marcado pela relação jurídica.
O atual CC é baseado no Código alemão de 1900, conhecido por BGB, sigla de
“Bürgerliches Gesetzbuch”, que significa “Livro Jurídico dos Cidadãos”. Assim, o nosso
CC é inspirado na pandectística alemã, o que se reflete na sua sistematização,
nomeadamente na adoção de uma parte geral.
O CC é composto por 5 livros (Parte Geral, Obrigações, Reais, Família e Sucessões).

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Desde a sua entrada em vigor, o CC já sofreu 79 alterações. Uma das mais importantes
foi a ocorrida em 1977, na sequência da aprovação da CRP de 1976. A principal alteração
ocorrida neste ano foi no livro do Direito da Família.

PARTE GERAL

O Prof. Orlando Carvalho critica a sistematização do nosso CC, por considerar que é
marcado pela desumanização, já que coloca pessoas, factos jurídicos e exercício de
direitos ao mesmo nível. Além desta crítica, o Prof. considera que a parte geral não é a
melhor opção para chegar a soluções, por tornar mais confusa e complexa a aplicação do
Direito.
As vantagens de uma Parte Geral são a clareza - pois é um local onde se encontram as
matérias gerais -, a racionalização do Direito e sua simplificação, o impedimento das
repetições e o facto de garantir tratamento igual para cada solução, impedindo o
fracionamento. Assim, antecipa um conjunto de matérias aplicáveis a todos os negócios
jurídicos.
As suas desvantagens são a abstração, a heterogeneidade de matérias - já que cumula de
tudo um pouco sem que haja ligação entre matérias -, a necessidade de estabelecer
regimes de exceção, porque a regra geral não pode ser aplicada a todos os casos, e as
dificuldades que gera do ponto de vista pedagógico, porque há certas matérias que
estudamos e não estão na Parte Geral.

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APONTAMENTOS SEMANAIS DE TEORIA GERAL DO


DIREITO CIVIL – PRÁTICAS – TURMA 2
Aula de 15/08
Caso prático nº 1:

A vendeu à Câmara Municipal de X um edifício de três andares de que era


proprietário no centro da localidade a fim de esta última aí instalar uma secção dos
serviços camarários de água e saneamento. No entanto, apesar de a Câmara
Municipal ter acordado no pagamento integral do preço uma semana após a
celebração do contrato, não cumpriu com o combinado sem dar qualquer justificação
para o efeito. A, perante o sucedido, intentou uma acção no tribunal comum contra
a Câmara Municipal, exigindo o pagamento da quantia em causa, acrescida de juros
de mora. A Câmara Municipal contestou a acção invocando a incompetência absoluta
do tribunal comum em razão da matéria, alegando que a acção deveria ter sido
intentada no tribunal administrativo. Terá razão na sua argumentação?

Resposta:
Neste caso, é estabelecido um contrato de compra e venda de um imóvel, presente nos
artigos 874º e seguintes do CC, com os efeitos do 879º, sendo um deles a obrigação do
pagamento do preço. Quando há dúvida quanto a que tribunal deve julgar um caso,
estamos perante uma dúvida de jurisdição, neste caso se deve ser julgado pelos Tribunais
Comuns, que julgam questões de Direito Civil, ou nos Tribunais Administrativos, que
julgam questões de Direito Administrativo, nos termos do artigo 29º da Lei de
Organização do Sistema Judiciário (62/2013).
Quando há estes conflitos de jurisdição, os mesmos devem ser resolvidos pelo Tribunal
de Conflitos.
Summa Divisio do Direito é a distinção entre Direito Público e Direito Privado. Esta
relação inclui-se no Direito Privado. Para o sabermos, usamos três critérios de distinção:

• Critério dos interesses – o Direito Público prossegue interesses públicos e


o Direito Privado prossegue interesses privados. Este critério é refutado
porque não é rigoroso, já que há normas de Direito Privado que
prosseguem interesses públicos (por exemplo 875º CC – prossegue o
interesse público da certeza e segurança jurídica ou o Direito do
Consumidor, que tem normas imperativas que prosseguem interesses
públicos) e normas de Direito Público que prosseguem interesses privados
(por exemplo, normas de acesso ao Ensino Superior são normas de Direito
Público que prosseguem interesses privados). Assim, este critério é apenas
tendencial, mas não suficiente.

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• Critério da posição relativa dos sujeitos – as relações de Direito Público


caracterizam-se por uma desigualdade entre as partes e as de Direito
Privado pela igualdade. Este critério falha porque nem sempre acontece
assim, por exemplo nos contratos de adesão, onde há uma relação jurídica
privada, mas faticamente há uma desigualdade entre as partes ou na
relação entre pai e filho, uma relação jurídica de Direito Privado que por
força da lei se caracteriza por uma desigualdade. Do mesmo modo, as
relações jurídicas entre duas autarquias são regidas pelo Direito Público,
mas as partes estão em posição de igualdade.
• Critério da qualidade dos sujeitos – temos de atender à existência de ius
imperium, ou seja, se o ente público atua munido de ius imperium estamos
perante uma relação de Direito Público, se atua sem ius imperium estamos
perante uma relação jurídica privada. Este é o critério mais rigoroso para
se realizar a distinção entre Direito Público e Direito Privado.

Neste caso em particular, o tribunal deveria dar razão a A quanto à competência absoluta,
já que a Câmara Municipal atua sem ius imperium, pelo que a competência para julgar o
caso pertence efetivamente ao tribunal comum.

Caso prático nº2:


Hipótese A:
A, desempregado, vende o carro da sua mãe a X a fim de conseguir dinheiro para
emigrar para a Austrália.

Resposta:
Sendo a mãe titular do direito de propriedade, A não o pode transmitir. A venda de bens
alheios, pelo artigo 892º do CC, é nula, com o regime do 286º e efeitos do 289º. Em
termos técnico-jurídicos, a venda de bens alheios é a venda de um bem alheio como se
fosse próprio.
Se A, quando se apresenta para vender o carro, dissesse a X que a mãe lhe iria doar o
carro no futuro, já não se trataria de uma venda de bens alheios, mas sim uma venda de
bens futuros, pelo 893º do CC. Pelo 880º, o vendedor de bens futuros fica obrigado a
exercer as diligências necessárias para que o comprador adquira os bens vendidos
segundo o que for estipulado ou resultar das circunstâncias do contrato. Esta venda é
válida, mas apenas é eficaz quando a mãe de A efetivamente lhe doar o bem.
Se A, nas negociações com X, afirmasse que o automóvel pertence à mãe e que esta
pretende vender o automóvel, estando assim na qualidade de seu representante,
estaríamos no âmbito da representação voluntária, nos termos do 262º e seguintes do CC.
Caso não existisse procuração, estaríamos no âmbito de uma representação sem poderes.

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Ainda assim, poderia celebrar o negócio, mas este só seria eficaz se a mãe o ratificasse.
Se não o fizer, ele será ineficaz.
Se fosse celebrado um contrato-promessa de compra e venda, regulado pelo 410º do CC,
ou seja, se A, agindo em nome da mãe e tendo poderes de representação, prometesse
vender o automóvel a X e X prometesse comprar o automóvel, as partes obrigar-se-iam a
celebrar um contrato no futuro, ao contrário dos casos anteriores, em que o negócio fora
celebrado no imediato.

Hipótese B:
B, proprietário de um stand de automóveis, vende uma carrinha em segunda mão a
C, técnico de vendas. A carrinha, no entanto, não era de B, mas sim de D, que a tinha
colocado no stand com o objectivo de B a vender, facto que este último ocultou ao
comprador.

Resposta:
Estamos perante um contrato de compra e venda de um bem móvel, em que não existem
poderes de representação. Assim, seria uma venda de bens alheios.
No entanto, esta venda de bens alheios está sujeita a um regime especial, a do 467º do
Código Comercial. Isto porque tanto B como C são comerciantes, pelo artigo 13º do
Código Comercial. Pelo 467º, esta compra e venda é válida, ao contrário da compra e
venda de bens alheios civil, criando no vendedor a obrigação de vender o bem, sob pena
de ter de indemnizar. Esta diferença entre a compra e venda de bens alheios civil e
comercial existe porque, por um lado, no âmbito comercial, os negócios são celebrados
de um modo mais célere e, por outro, pelo interesse e confiança dos negócios comerciais
a celebrar. Assim, o contrato é válido e só depois se verá se haverá lugar a transmissão
de propriedade ou a indemnização.

Caso prático nº3:


I. A, engenheiro químico, obriga-se contratualmente perante a indústria
farmacêutica sua empregadora a não divulgar os segredos decorrentes da sua
actividade profissional.

Resposta:
O contrato é válido. Este dever de sigilo decorre do princípio geral da liberdade
contratual, prevista no 405º do CC, que por sua vez decorre do princípio mais amplo da
autonomia privada. Segundo o princípio da autonomia privada, os privados podem
estabelecer relações jurídicas segundo a sua vontade, dentro dos limites da lei. Da
autonomia privada decorre a liberdade contratual, ou seja, a possibilidade de se celebrar

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contratos livremente dentro dos limites da lei, definindo o seu conteúdo e estabelecendo
as cláusulas que as partes entenderem.
Além destes princípios, está aqui em causa o princípio da boa-fé, segundo o 227º do CC,
relativamente a uma fase pré contratual e o 762º/2, relativamente ao decurso do contrato
e numa fase posterior à sua celebração. A boa-fé pode ser entendida num sentido subjetivo
ou objetivo. Neste caso, estamos a convocar o sentido objetivo. Em sentido subjetivo,
refere-se ao estado psicológico do Homem, por exemplo no 243º/2. Em sentido objetivo,
a boa-fé remete-nos para o dever do comportamento, nomeadamente um comportamento
leal, honesto e fiel.

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DIREITO CIVIL – PRÁTICAS
Aula de 22/10
Caso Prático nº3 – continuação:

II. B celebra com C um contrato pelo qual se obriga a professar durante cinco anos
uma religião evangélica, mediante o pagamento de uma determinada quantia em
dinheiro.

Resposta: Está a ser posta em causa a liberdade religiosa, prevista no artigo 41º da CRP.
No entanto, não se põe em causa a liberdade contratual. Ainda assim, esta não é absoluta,
exerce-se dentro dos limites da lei, de acordo com o 405º do CC. Pelo artigo 280º, são
nulos o negócio jurídico cujo objeto seja física ou legalmente impossível, contrário à lei
ou indeterminável (número 1) e o negócio contrário à ordem pública, ou ofensivo dos
bons costumes (número 2). O negócio deste caso prático é contrário à ordem pública, pelo
que é nulo.
Ordem pública diz respeito aos princípios que se encontram plasmados na nossa ordem
jurídica, designadamente os princípios com consagração constitucional. O Direito Civil
dá tradução a estes princípios constitucionais no ordenamento civil. Ordem pública difere
de bons costumes, que dizem respeito à moral social vigente numa determinada
comunidade num determinado tempo. No caso concreto, podem ser violados
simultaneamente a ordem pública e os bons costumes. Neste caso, falamos apenas da
ordem pública. Um exemplo de um contrato eventualmente contrário aos bons costumes
poderia ser o caso de alguém que se dedica a transportar alguém para uma atividade ilícita
ou socialmente reprovável.
Sendo o contrato nulo, é aplicado o regime do 286º, tendo os efeitos do 289º do CC.

III. D doa a E, seu sobrinho, todo o seu património imobiliário na condição de este
casar com F.

Resposta: O contrato de doação é válido, mas a condição não. Esta condição põe em
causa o direito a constituir família e a liberdade de casamento, em particular a liberdade
negativa, ou seja, ninguém pode ser obrigado a casar com quem não quiser. Também põe
em causa a liberdade positiva, porque não permite que E case com quem quiser.
Pelo 2233º do CC, a condição de casar ou não casar é contrária à lei, apesar de ser aplicada
ao testamento ou legado. No entanto, o 967º, referente ao contrato de doação, remete as
condições ou encargos física ou legalmente impossíveis, contrários à lei ou à ordem

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pública, ou ofensivos dos bons costumes às regras estabelecidas em matéria


testamentária. Assim, o 2233º aplica-se a este caso.

IV. G é impedido de entrar numa discoteca pelo facto de ser indiano.

Resposta: Esta conduta é ilícita porque viola o princípio da igualdade, presente no artigo
13º da CRP. Assim, é contrário à ordem pública. Além disso, a lei 93/2017, que estabelece
o regime jurídico de proibição, prevenção e combate à discriminação, no seu artigo 2º,
número 2, alínea d), proíbe a discriminação no acesso a bens e serviços.

V. H, pai de I e de J, faz um testamento no sentido de deixar toda a quota disponível


do seu património ao primeiro. E se o faz por J ser negro?

Resposta: Herança é composta por quota disponível e indisponível. A indisponível


(também chamada legítima) está reservada a herdeiros legitimários. Como doa toda a
quota disponível, não há aqui qualquer ilícito.
No entanto, o motivo já não é lícito nos termos do artigo 2186º do CC, que determina que
é nula a disposição testamentária, quando da interpretação do testamento resulte que foi
essencialmente determinada por um fim contrário à lei ou à ordem pública, ou ofensivo
dos bons costumes.

VI. L, proprietário de um imóvel, tendo recebido de M uma oferta para a sua compra
no valor de 100.000 euros, decidiu vendê-lo a N que por ele ofereceu 50.000 euros.

Resposta: O contrato é válido, pois está no âmbito do instituto da liberdade contratual. O


facto de o contrato não ser favorável a L não é relevante para a análise jurídica do caso.

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Caso prático nº4

I. Um médico, numa situação de urgência, nega-se a tratar um seu inimigo pessoal.

Resposta: Limita-se a liberdade contratual do médico, em concreto a liberdade de


celebração do contrato, porque há um dever de contratar. A liberdade contratual decorre
da autonomia privada.
Neste caso, há um dever de contratar por se tratar de uma situação de emergência.

II. A, avô de B e de C, vende a este último uma joia de família sem consentimento de
B.

Resposta: Pelo 877º do CC, os pais e avós não podem vender a filhos ou netos, se os
outros filhos ou netos não consentirem na venda. Esta norma é uma limitação à liberdade
contratual. A consequência da venda sem consentimento é a anulabilidade do contrato,
nos termos do 877º/2, sendo que a anulação pode ser pedida pelos filhos ou netos que não
deram o seu consentimento, dentro do prazo de um ano a contar do conhecimento da
celebração do contrato, ou do termo da incapacidade, se forem incapazes. Sendo um
contrato anulável, se após um ano os filhos ou netos nada fazem, o contrato convalida-se.
A teleologia da norma é garantir a igualdade dos descendentes, porque o legislador
desconfia que uma venda a um filho ou neto seja uma venda simulada de doação, ou seja,
que as pessoas estão a simular vender, mas não há verdadeiramente pagamento do preço.
Isto porque as doações podem estar sujeitas a colação, segundo a qual os descendentes
que pretendam entrar na sucessão do ascendente devem restituir à massa da herança, para
igualação da partilha, os bens ou valores que lhes foram doados por este, segundo o 2104º
do CC. Para evitar que se contornem as normas imperativas da colação, existe o 877º.

III. D, casado com E no regime de comunhão de bens, aliena um prédio urbano sem
consentimento do cônjuge.

Resposta: Em regime de comunhão de bens, é necessário consentimento,


independentemente de ser geral ou de adquiridos, pelo 1682º-A do CC.

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IV. F celebra com G um contrato-promessa de compra e venda. Mais tarde recusa-se


a celebrar o contrato.

Resposta: Estamos perante um contrato-promessa previsto no 410º do CC. O


incumprimento contratual pode dar lugar à responsabilidade civil contratual (ou
obrigacional) do 798º.
No âmbito do contrato-promessa, pode haver lugar a execução especifica, nos termos do
artigo 830º. Execução específica constitui uma alternativa à responsabilidade civil
obrigacional. De acordo com o número 1 deste artigo, se alguém se tiver obrigado a
celebrar certo contrato e não cumprir a promessa, pode a outra parte, na falta de
convenção em contrário, obter sentença que produza os efeitos da declaração negocial do
faltoso, sempre que a isso não se oponha a natureza da obrigação assumida.
Não pode ser pedido simultaneamente o ressarcimento dos bens, consequência da
responsabilidade civil e da execução específica, pois esta é uma alternativa à primeira.

V. Uma empresa celebra com H e I um contrato individual de trabalho para as mesmas


funções, prevendo, no entanto, remunerações diferentes para cada um deles.

Resposta: A limitação da liberdade contratual decorre do contrato de trabalho. Assim,


se a função é a mesma, a remuneração tem de ser igual, segundo o Código do Trabalho.
Neste caso estaria em causa a violação do princípio da igualdade. Trabalho igual exige
remuneração igual, também visível nos termos do artigo 59º/1/a) da CRP.

Caso prático nº 5

C é titular de um cartão de crédito emitido pelo Banco B, de que é cliente. Recém-


chegado do Brasil, é surpreendido pelo extracto que o banco lhe envia relativo a
aquisições efectuadas com o cartão no qual constam taxas elevadíssimas e comissões
relativas à realização de operações no estrangeiro. C diz desconhecer tais tarifários,
mas o Banco contrapõe-lhe as “Condições gerais de utilização do cartão”, onde se lê:
— “As anuidades, preços de operações no estrangeiro e de descobertos, taxas de juros,
comissões e demais encargos relativos à utilização do cartão encontram-se disponíveis
ao balcão de qualquer agência do Banco mediante prévia solicitação do titular”.
Aprecie a validade da cláusula transcrita.

Miguel Louro 4
Faculdade de Direito da Universidade do Porto 2021/2022

Resposta: Estamos no âmbito de um contrato de adesão, em que o conteúdo não pode ser
modelado por uma das partes. Por se perceber que o aderente se encontrava fragilizado,
surgiram normas de proteção do consumidor, inseridas no Decreto-lei 446/85,
transposição de uma diretiva da UE.
Os contratos de adesão são previamente formulados e unilateralmente determinados,
sendo imodificáveis.
O DL 446/85 é aplicado, do ponto de vista subjetivo, às relações com consumidores finais
ou entre empresários ou entidades equiparáveis.
O diploma faz um controlo de inclusão e de conteúdo. Quanto ao controlo de inclusão, a
questão é saber se a cláusula contratual foi conhecida (ónus da comunicação) e se o
aderente foi informado dessa mesma cláusula (ónus da informação). Caso a cláusula não
passe neste controlo, considera-se excluída, pelo artigo 8º. Neste caso, o aderente alega
não conhecer a cláusula, pelo que a cláusula estaria excluída. Pelo 5º/3, cabe ao banco
provar a comunicação.

Miguel Louro 5
Faculdade de Direito da Universidade do Porto 2021/2022

APONTAMENTOS SEMANAIS DE TEORIA GERAL DO


DIREITO CIVIL – PRÁTICAS
Aula 04/10 – aula de reposição
Caso prático nº 5 – continuação
Neste caso, estamos perante uma relação com o consumidor final (o cliente do banco).
Do controlo de inclusão decorrem o ónus da comunicação (art. 5º) e o dever de
informação (art. 6º).
Relativamente ao ónus da comunicação, o art. 5º do Decreto-lei 446/85 diz que as
cláusulas devem ser comunicadas na íntegra e o número 2 diz que deve ser realizado de
modo adequado e nos termos da complexidade do contexto, sendo assim um ónus de
informação qualificado. Nos termos do número 3, é ao predisponente (o que submete as
cláusulas) que cabe o ónus da prova da comunicação. Não cabe, no entanto, ao
predisponente garantir que o aderente lê todas as cláusulas.
O dever de informação do artigo 6º também é um dever qualificado, que decorre do 227º
do CC, já que um dos deveres de comportamento impostos pela boa-fé pode ser o de
informação. Por este dever, o aderente tem de ter todos os meios disponíveis para aderir
ao contrato com consciência da sua decisão.
Caso o ónus da comunicação ou dever de informação não sejam cumpridos, a
consequência está no art. 8º do DL 446/85. No entanto, pelo art. 9º, o contrato continua a
ser válido, com exclusão daquelas cláusulas. O contrato apenas será nulo nos termos do
número 2 do mesmo artigo, caso haja uma indeterminação insuprível de aspetos
essenciais ou um desequilíbrio nas prestações gravemente atentatório da boa-fé.
Assim, o diploma consagra princípio de favor negotii, ou seja, tenta salvar o negócio
jurídico, que subsiste a não ser que em última instância não seja possível.
Desta preocupação decorre também a proibição das “cláusulas surpresa”, aquelas que
pelo contexto, epígrafe ou apresentação gráfica passam despercebidas a um contratante
normal ou que estejam inseridas depois da assinatura do formulário.
Se o controlo da inclusão falha, não precisamos de passar a controlo de conteúdo, pois as
cláusulas consideram-se excluídas.
A nossa lei vem descrever algumas cláusulas que são absolutamente proibidas ou
relativamente proibidas. Como neste caso se trata de um consumidor final, importam os
artigos 18º, 19º, 21º e 22º. Esta lista não é taxativa, apenas exemplificativa.
No caso prático, a cláusula que exige que se desloque ao banco para conhecer as
anuidades, preços de operações no estrangeiro e de descobertos, taxas de juros, comissões
e demais encargos relativos à utilização do cartão, parece enquadrar-se no 22º/1/o), pois
o banco exige este comportamento adicional que parece ser supérfluo. Sendo
relativamente proibida, depende da apreciação do contexto negocial.

Miguel Louro 1
Faculdade de Direito da Universidade do Porto 2021/2022

Se considerarmos, atendendo ao quadro negocial, que é proibida, a consequência é a


nulidade, pelo art. 12º. No entanto, pelo art. 13º, o contrato pode subsistir caso o aderente
assim o queira.

Em relação à interpretação destes contratos de adesão, é regida pelos artigos 10º e 11º do
diploma, que esclarecem como é que as cláusulas devem ser interpretadas caso sejam
duvidosas. Em caso de ambiguidade, pelo art. 11º, prevalece o sentido que lhe daria o
contratante indeterminado normal. Mas, pelo número 2, na dúvida, permanece o sentido
mais favorável ao aderente. Isto demonstra que o nosso ordenamento vem responsabilizar
o predisponente por apresentar cláusulas ambíguas, ou seja, se tem a liberdade para
formular as cláusulas, também deve ser responsabilizado.
Se no contrato existirem cláusulas gerais e particulares, prevalecerão, em caso de
contrariedade entre umas e outras, as particulares, por serem as que melhor espelham a
autonomia privada e liberdade contratual.
Em suma, neste caso prático, as condições gerais de utilização estão assinadas por C, pelo
que está realizado o controlo de inclusão. Relativamente ao controlo do conteúdo, releva
o art 22º/1/o).

Nota: a lei 32/2021 vem alterar o art. 21º do DL, acrescentando que as cláusulas com
tamanho inferior a 11 ou a 2,5 milímetros e com um espaçamento entre linhas inferior a
1,15 são também absolutamente proibidas.

Caso prático nº 6

B, comerciante de automóveis em segunda mão, vendeu a C um veículo da marca


Toyota com matrícula de 2010. Das “condições gerais do contrato” entre ambos
celebrado constava uma cláusula pela qual C se comprometia a renunciar ao recurso
às vias judiciais para qualquer questão emergente do contrato bem como a não
reivindicar quaisquer pretensões indemnizatórias em caso de defeitos de
funcionamento apresentados pelo automóvel.

a) C, no entanto, pretende agora recorrer aos tribunais para exigir de B a redução do


preço pago uma vez que o veículo não se encontrava nas condições asseguradas por
este último aquando da celebração do contrato. Poderá fazê-lo?

Resposta:
É celebrado um contrato de compra e venda de um automóvel, que não está sujeito a
nenhuma forma legal.

Miguel Louro 2
Faculdade de Direito da Universidade do Porto 2021/2022

Estamos no âmbito de um contrato de adesão com recurso a cláusulas contratuais gerais.


O âmbito de aplicação subjetivo é uma relação com o consumidor final.
O controlo de inclusão não levanta problemas, pois C não alega desconhecimento ou falta
de informação, pelo que passamos ao controlo de conteúdo.
A cláusula em questão é absolutamente proibida, nos termos do 21º/h), pois impossibilita
a possibilidade de requerer tutela judicial e do 21º/d), pois há uma exclusão da
responsabilidade por vício da prestação. Assim, a cláusula é nula, pelo art. 12º, mas o
contrato subsiste, nos termos do artigo 13º.
Relativamente ao controlo processual previsto no diploma, ele conhece duas formas:
controlo incidental ou controlo abstrato. O controlo incidental é invocado no âmbito de
um litígio concreto e a decisão do tribunal só vai ter eficácia naquele contrato em
concreto. O controlo abstrato faz-se através da ação inibitória, prevista no artigo 25º,
realizada independentemente da inserção em algum contrato, ou seja, proíbe-se que se
utilize no futuro determinada cláusula independentemente de ter sido inserida num
contrato ou não. Tanto neste caso prático como no anterior, está em causa um controlo
incidental.

b) Por outro lado, C tem sido constantemente interpelado por X para lhe entregar o
carro com o argumento de que B lho terá vendido em 2012. Quid iuris?

Resposta: A venda de C a X é uma venda de bens alheios. Pelo 892º CC, venda de bens
alheios é nula. Como o contrato entre B e C é valido, tem como efeito a transmissão de
propriedade, pelo 879º/a). Estando a propriedade na esfera patrimonial de C, então B está
a celebrar uma venda de bens alheios.
Importa também referir o art. 408º, que diz que a transferência de direitos reais sobre uma
coisa se dá por mero efeito do contrato. O registo do contrato tem um mero efeito
declarativo e não constitutivo.

Caso prático nº 7

A contratou com B, operadora de comunicações móveis, um serviço de telemóvel pelo


qual paga, há já vários anos, a quantia fixa de vinte e cinco euros mensais. Depois de
uma recente viagem ao estrangeiro, durante a qual utilizou o seu telemóvel, recebeu
uma conta de “comunicações extra” no valor de quinhentos e cinquenta euros,
facturadas, de acordo com B, “nos termos previstos na cláusula 28º do contrato
subscrito por A”. A, no entanto, recusa-se a pagar alegando que desconhece o
clausulado que B invoca, e que este é, em consequência, nulo. B contrapõe que a
invocação da nulidade por A configura um comportamento abusivo, uma vez que este
sempre cumpriu com o previsto no contrato.

Miguel Louro 3
Faculdade de Direito da Universidade do Porto 2021/2022

a) Aprecie os argumentos apresentados por A e B no conflito que os separa.

Resposta:
Trata-se de um contrato de adesão com recurso a cláusulas contratuais gerais. O âmbito
subjetivo de aplicação é uma relação com o consumidor final.
Neste caso, o controlo de inclusão falha, na medida em que A desconhecia a cláusula 28ª,
porque à partida não lhe foi comunicada, nos termos do art. 5º. Assim, é a operadora de
telecomunicações que tem de provar que cumpriu o ónus da comunicação (art.º 5/3).

A consequência do incumprimento do controlo de inclusão não é a nulidade, ao contrário


do que A alega. A consequência é a exclusão desta cláusula (art. 8º), mas o contrato
subsiste (art. 9º)
Se estivéssemos a defender B, poderíamos dizer que o ónus da comunicação foi cumprido
com a assinatura (fazer prova da comunicação). Mas o que B faz é dar razão a A, pois B
invocou o abuso de direito. O abuso de direito é um limite externo ao exercício do direito
subjetivo, que resulta da cláusula geral prevista no art. 334º do Código Civil. Só em casos
que excede manifestamente a boa-fé ou os bons costumes é que se admite o abuso de
direito.
Assim, A sempre cumpriu o contrato e agora disse que não cumpre pois desconhece uma
cláusula. Será isto abusivo? Não, pois até pode ter cumprido o contrato por vários anos,
mas o problema só se levantou agora, pois só agora é que teve o conhecimento do mesmo.

Modalidades de abuso de direito construídas doutrinalmente (são apenas exemplos


de situações mais comuns):
- Venire contra factum proprium:
- Supressio/neutralização/Verwirkung (a figura original é esta, em alemão).
- Tu quoque.
- Atos emulativos.
O abuso de direito leva à impossibilidade de cumprir o exercício de um direito, visto que
é ilegítimo. Pode ainda dar lugar à responsabilidade civil, com o pagamento de uma
indemnização.

Miguel Louro 4
Faculdade de Direito da Universidade do Porto 2021/2022

b) Aprecie, também, a validade de uma cláusula inserida no contrato que prevê a


prescrição do direito ao recebimento das mensalidades contratadas no prazo de
doze meses.

Resposta:
São 6 meses, nos termos da Lei 23/96 (art.º 10).
O art. 13º consagra a imperatividade das normas que preveem direitos para os utentes.
Logo, são nulas as cláusulas que limitam os efeitos da lei.
Assim, nos termos do art. 13º, a cláusula do caso prático é nula.

Miguel Louro 5
Faculdade de Direito da Universidade do Porto 2021/2022

APONTAMENTOS SEMANAIS DE TEORIA GERAL DO


DIREITO CIVIL – PRÁTICA
Aula de 05/11
Caso prático nº 8

A e B, sócios de clubes de futebol rivais, assistem juntos a um jogo do campeonato em


que as duas equipas se defrontam. Em consequência de uma jogada duvidosa A
reclama a marcação de um penalty, insultando os jogadores da equipa adversária. B,
discordando da opinião de A e descontente com a actuação da sua equipa, agride-o
violentamente causando-lhe ferimentos tais que, durante uma semana, este fica
impossibilitado de trabalhar. A pede a B uma indemnização pelos danos materiais e
morais causados pela agressão. A sua pretensão terá êxito?

Resposta:
Estamos no âmbito da responsabilidade civil extracontratual/extraobrigacional. A
responsabilidade civil divide se entre extracontratual/extraobrigacional e
contratual/obrigacional. Na responsabilidade civil obrigacional há um vínculo entre as
partes que determina a existência de uma obrigação à qual corresponde um direito de
crédito/relativo. Por outro lado, na responsabilidade civil extracontratual, não há este
vínculo prévio entre as partes, sendo violado um direito absoluto. Um direito absoluto
tem vinculação erga omnes e tem como contraponto um dever geral de abstenção. Os
direitos relativos vinculam apenas as partes determinadas em qualquer obrigação.
Nos artigos 405º e seguintes estão previstas as fontes das obrigações, institutos cuja
aplicabilidade vai dar lugar ao nascimento de uma obrigação. Como há mais obrigações
que os contratos é mais correto dizer responsabilidade civil obrigacional que contratual.
Se a obrigação não é cumprida, há lugar à responsabilidade civil obrigacional.
A responsabilidade civil extraobrigacional pode ser por factos ilícitos/subjetiva (com
culpa - ex: 483º), objetiva (independentemente da culpa - ex: 500º) ou por factos lícitos
(ex: 339º/2)
A responsabilidade civil obrigacional também pode ser por factos ilícitos/subjetiva (com
culpa - 798º), objetiva (independentemente da culpa – ex: 800º) ou por factos lícitos (ex:
1229º)

Aquele que sofre dano em princípio terá de suportar esse prejuízo (sentit dominus), a não
ser que o possamos imputar a outrem. Por regra, apenas existe responsabilidade civil se
existir culpa (por factos ilícitos/subjetiva), pois pelo 433º/2, apenas existe obrigação de
indemnizar sem culpa nos casos especificados na lei.

Miguel Louro 1
Faculdade de Direito da Universidade do Porto 2021/2022

Para existir responsabilidade civil por factos ilícitos tem de haver:


1- Facto humano - neste caso, a agressão
2- Ilícito - porque viola um direito absoluto, em particular um direito de
personalidade, neste caso o direito à integridade física, que constitui a projeção
física ao direito à inviolabilidade pessoal. O bem protegido é o corpo ou a
saúde da pessoa. Os direitos de personalidade são inatos (à exceção de dois: o
direito de autor e o direito ao nome) inalienáveis, irrenunciáveis (não são
passíveis de renúncia, mas pode haver limitação voluntária de alguns, nos
termos do artigo 81º) e intransmissíveis (nem inter vivos nem mortis causa).
A tutela dos direitos de personalidade no ordenamento jurídico português faz-
se através da responsabilidade civil, mas cumulativamente a pessoa pode
requerer quaisquer providências adequadas, quer para evitar a consumação do
dano, quer para atenuar os seus efeitos, nos termos do 70º/2 do CC.
3- Culposo – a culpa traduz-se num juízo de censura, porque o agente deveria ter
agido de outra maneira. O critério para fazermos este juízo é o da diligência
de um bom pai de família, nos termos do art. 487º/2.
Para o direito civil, a culpa pode tomar a forma de dolo (com intenção) ou de
mera culpa (negligência). Neste caso pático, há dolo. Se existisse mera culpa,
a lei prevê limitação de indemnização, no caso da responsabilidade
extraobrigacional.
Nota: para o direito penal, o dolo e a negligência não são formas de culpa.
Importante não confundir.
4- Danoso – os danos podem ser na esfera patrimonial do lesado ou na sua esfera
pessoal. Consoante suceda o primeiro ou segundo caso, os danos podem ser
patrimoniais ou morais, respetivamente.
Relativamente aos danos morais, nem todos merecem um ressarcimento nos
termos do nosso ordenamento jurídico. Pelo 496º, na fixação da indemnização
deve atender-se aos danos não patrimoniais que pela sua gravidade mereçam
tutela do direito, ou seja, não são todos que merecem tutela do direito. Esta
norma está inserida no âmbito da responsabilidade civil extraobrigacional,
mas atualmente entende-se que pode haver ressarcimento de danos morais na
sequência de responsabilidade civil obrigacional.
Relativamente aos danos patrimoniais, estes dividem-se em duas
possibilidades, nos termos do 564º: danos emergentes (prejuízos causados) e
lucros cessantes (benefícios que o lesado deixou de obter). Importante não
confundir lucros cessantes com danos futuros. Danos futuros, pelo 564º/2, são
danos que previsivelmente vão ocorrer, mas no momento da apreciação ainda
não existem.
Quanto ao ressarcimento de danos, o critério geral, pelo 562º, é a da
reconstituição natural. A exceção é o pagamento em dinheiro, ou seja, a
reintegração por equivalente, de acordo com o 566º.

Miguel Louro 2
Faculdade de Direito da Universidade do Porto 2021/2022

Quanto aos danos morais não se pode realizar uma reconstituição natural nem
pagar uma indemnização em dinheiro, pois não é possível tornar indemne (sem
dano) um dano moral. Assim, há lugar a uma compensação.
5- Nexo de causalidade – o dano tem de ter sido causado pelo facto.
Caso prático nº 9
C, proprietário de um snack-bar, comprou um “plasma” no hipermercado D a fim de
substituir o seu velho aparelho de televisão. Ficou acordado que D entregaria o
“plasma” no estabelecimento de C até à quarta-feira seguinte, dia em que a televisão
transmitia um importante desafio de futebol, pretendendo C o aparelho para que os
seus clientes pudessem assistir ao jogo. No entanto, o funcionário de D encarregado
de distribuir as várias entregas esqueceu-se de incluir o “plasma” de C na distribuição
dessa semana, procedendo à sua entrega uma semana mais tarde. Assim, C vem exigir
o pagamento de uma indemnização em virtude da quebra de movimento que teve nessa
quarta-feira, uma vez que os seus clientes foram todos ver o jogo de futebol para um
café concorrente. Quid iuris?

Resposta:
Neste caso prático há duas responsabilidades civis a ter em conta.
Por um lado, a responsabilidade civil obrigacional objetiva, ou seja, independentemente
da culpa, por parte do hipermercado. Pelo 800º do CC, o devedor é responsável perante o
credor pelos atos dos seus representantes legais ou das pessoas que utilize para o
cumprimento da obrigação, como se tais atos fossem praticados pelo próprio devedor. A
responsabilidade civil objetiva ocorre quando o facto é ilícito, causa dano, há nexo de
causalidade, mas já não se aprecia a questão da culpa
Por vezes, podes ser difícil distinguir o 800º do 500º. O 800º aplica-se à responsabilidade
civil obrigacional, ou seja, alguém responde aos atos de outrem praticados no
cumprimento de uma obrigação. No 500º estamos no âmbito da responsabilidade
extraobrigacional, pela qual se alguém se serve de outrem, responde pelos atos q ele causa
desde que sobre ele também recaia a obrigação de indemnizar. Por exemplo, se na entrega
do plasma, o motorista atropelasse uma pessoa, seria uma responsabilidade civil
extraobrigacional por factos ilícitos. O comitente pode responder pelos atos do
comissário, de acordo com o artigo 500º.

Por outro lado, o hipermercado pode responsabilizar o funcionário por responsabilidade


civil obrigacional subjetiva. Para tal, tem de haver um facto, neste caso, uma omissão,
não ter entregado o plasma. O facto tem de ser ilícito, neste caso porque viola o direito
de crédito de C decorrente do contrato. Nos termos dos artigos 805º e 801º, se o contrato
estabelecia um prazo certo, quando passa esse prazo a pessoa é constituída em mora,
independentemente de interpelação. Neste caso, além de mora, pode haver perda do

Miguel Louro 3
Faculdade de Direito da Universidade do Porto 2021/2022

interesse do credor, por já ter passado o jogo, pelo que, pelo 808º, há incumprimento
definitivo. Além de ilícito, o facto tem de ser culposo, neste caso por mera culpa, ou seja,
sem dolo. Além disso, também tem de haver dano, neste caso lucros cessantes, de acordo
com o 564º do CC. Por fim, tem de haver nexo de causalidade, o que também se verifica.

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APONTAMENTOS SEMANAIS DE TEORIA GERAL DO


DIREITO CIVIL – PRÁT ICA
Aula de 12/11
Caso prático nº10

E é motorista e proprietário de um táxi. Ao transportar um cliente, andando um pouco


distraído, não repara que um peão atravessa uma passadeira à sua frente. Apesar de
uma travagem violenta, já não consegue evitar que o peão seja colhido pelo seu táxi,
causando-lhe ferimentos. Ao mesmo tempo, o cliente transportado sofre contusões
quando é lançado contra as costas do assento da frente. O próprio táxi é danificado,
apresentando amolgadelas no para-choques dianteiro. Quid iuris?

Resposta: Aqui há danos em três pessoas (peão, passageiro e motorista do táxi). Deve-se
apreciar se há a possibilidade de se imputar os danos a outrem ou não.

No caso dos danos ao motorista do táxi, são patrimoniais e emergentes. Não se pode
imputar a responsabilidade a outrem, o taxista terá de suportar os danos que sofreu,
segundo a regra geral de causa sentit dominus.

Relativamente ao peão, estamos no âmbito de responsabilidade civil extraobrigacional,


imputável ao taxista. Esta responsabilidade civil é por factos ilícitos ou subjetiva. O
taxista teve culpa, pelo que podemos formular um juízo de censura no acidente, pelo que
estamos no âmbito do art. 483º do CC. Tem de existir um:
- Facto humano - viola um direito absoluto, em particular um direito de
personalidade – à integridade física;
- Ilícito;
- Danoso - danos não patrimoniais e eventualmente patrimoniais emergentes –
despesas do hospital. Se ficou impedido de trabalhar, terá também lucros cessantes. A
regra é a da reconstituição natural, mas quando tal não for possível terá lugar a
reintegração por equivalente. Como existem danos morais, importa também o 496º. Os
danos morais não são passiveis de indemnização, mas sim de uma compensação em
dinheiro;
- Culposo - neste caso, há negligência ou mera culpa. Pelo 497º, tem de ser
provada pelo lesado. Estando no âmbito da responsabilidade civil extraobrigacional, há a
possibilidade de limitar a indemnização, fixando-a abaixo dos danos, equitativamente, se
se encontrarem previstas as circunstâncias do 494º;
- Nexo de causalidade – os danos foram causados pelo facto ilícito.

Miguel Louro 1
Faculdade de Direito da Universidade do Porto 2021/2022

Pelo 503º, aquele que tiver a direção efetiva de qualquer veículo de circulação terrestre e
o utilizar no seu próprio interesse, ainda que por intermédio de comissário, responde pelos
danos provenientes dos riscos próprios do veículo, mesmo que este não se encontre em
circulação. Esta norma não se aplica ao nosso caso, pois o condutor ia distraído e não se
apercebeu que o peão ia a atravessar na passadeira, pelo que o taxista tem culpa. Como o
taxista tem culpa, prevalece a responsabilidade civil subjetiva. Se não existisse culpa,
poderíamos enquadrar a questão no 503º. Por exemplo, se se despistasse por causa de
óleo na estrada, não havendo culpa, não poderíamos imputar responsabilidade civil por
factos ilícitos, mas sim responsabilidade civil objetiva, ou seja, independentemente da
culpa.
O art. 506º não é tão linear como possa parecer. Encontra-se na responsabilidade pelo
risco, mas enquadra casos de responsabilidade civil que não são pelo risco, pelo que
apenas será estudado no âmbito do Direito das Obrigações. O mesmo acontece com o
503º/3, pelo que nos devemos ater ao 503º/1.

Relativamente ao passageiro, estamos no âmbito da responsabilidade civil por factos


ilícitos, por se tratar de um contrato de prestação de serviços. São violados direitos de
personalidade (integridade física) e de crédito (pois há um contrato celebrado entre as
partes e um incumprimento obrigacional). Estamos no âmbito do artigo 798º, relativo à
responsabilidade civil obrigacional.
O direito de crédito aqui violado corresponderá a um dever de segurança, pois o taxista
está vinculado a transportar o cliente a determinado sítio em segurança. Este é um dever
de comportamento, pelo que decorre da boa-fé. Este ato é também culposo (por
negligência), mas o 494º apenas se aplica à responsabilidade civil extra obrigacional, pelo
que não interessa para este caso. Também há nexo de causalidade, pelo 563º do CC.

A violação de um direito absoluto (neste caso a integridade física) é sempre uma


responsabilidade extracontratual, independentemente de ter decorrido dentro de um
contrato ou não. Então, como respondemos ao problema do mesmo facto fundamentar
duas responsabilidades, uma obrigacional e uma extracontratual?
A doutrina avança várias soluções:
- Tese do não cúmulo – defendida pelo professor Mário Júlio Almeida Costa –
prevalência da responsabilidade civil obrigacional, por consunção. Há uma relação de
especialidade entre as duas, pelo que a obrigacional, que seria especial, consumiria a
geral, ou seja, a extraobrigacional.
- Teses do cúmulo:
- Teoria da combinação ou da ação híbrida – do professor Vaz Serra – o
lesado pode recorrer às normas que entender mais favoráveis das diferentes
responsabilidades, ou seja, criar um regime ad hoc.

Miguel Louro 2
Faculdade de Direito da Universidade do Porto 2021/2022

- Teoria da dupla indemnização – claramente minoritária. Defende que há


lugar às duas indemnizações das responsabilidades civis obrigacional e extraobrigacional.
Está ultrapassada porque configura um enriquecimento injusto por parte do lesado, já que
a indemnização apenas torna o dano indemne, não deve enriquecer o lesado.
Teoria da opção – defendida pelos professores Antunes Varela e Carneiro
de Frada – o lesado poderia escolher a responsabilidade que entende mais adequada, mas
tem de escolher o regime em bloco, na sua totalidade, ou seja, ou opta pela
responsabilidade civil obrigacional ou extraobrigacional. Na ponderação pelo lesado,
podem importar alguns fatores, nomeadamente: o ónus da prova, já que pelo 799º, na
obrigação incumbe ao devedor provar que a falta de cumprimento ou o cumprimento
defeituoso da obrigação não procede de culpa sua, enquanto que na extraobrigacional a
culpa tem de ser provada pelo lesado; o facto de ser mais difícil de aplicar o 500º do que
o 800º; o prazo de prescrição, que pelo 309º são 20 anos na obrigacional e no 498º são 3
anos, para a extraobrigacional e o facto do 494º apenas se aplicar à responsabilidade civil
extraobrigacional. Em face destas diferenças, o lesado pode optar.

Caso prático nº11

A é proprietário de uma vivenda que se encontra arrendada a B que nela habita há já


muitos anos. Quando B, há cinco anos atrás, solicitou verbalmente a A a instalação de
uma loja de artigos desportivos no rés-do-chão da moradia, A acedeu imediatamente
na medida em que vislumbrou nesse facto uma oportunidade para despejar o
arrendatário. Assim, instalado B no seu negócio, A vem agora intentar uma acção de
resolução do contrato de arrendamento contra B com fundamento na utilização do
arrendado para fim distinto do previsto no contrato (fim habitacional). Quid iuris?

Resposta: Pelo 1083º/c), é fundamento de resolução o incumprimento que, pela sua


gravidade ou consequências, torne inexigível à outra parte a manutenção do
arrendamento, designadamente, quanto à resolução pelo senhorio, o uso do prédio para
fim diverso daquele a que se destina, ainda que a alteração do uso não implique maior
desgaste ou desvalorização para o prédio. No caso, nos termos contratuais o fim era
habitacional, mas as partes verbalmente acordaram que o fim deixaria de ser habitacional
e A faria uso da instalação do negócio para fazer uso do 1083º/c).
Parece que estamos perante um caso de abuso do direito, previsto no 334º. É importante
perceber se existe direito ou não, ou seja, se A tem o direito a resolver o contrato ou não.
Se não existir o direito, não pode haver abuso de direito.
A cláusula não é válida, pelo que a argumentação de que A não tem o direito não tem
razão. Esta cláusula deveria ter sido introduzida por escrito, pelo 1069º. Assim, a
introdução da clausula que altera o contrato também deveria ter sido celebrada por escrito.
Logo, o senhorio tem direito a resolver o contrato. Mas existindo esse direito, temos de

Miguel Louro 3
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nos abstrair do direito estrutural e ver se a ponderação de interesses que está na base do
direito é a mesma que o titular quer prosseguir e, aparentemente, não é. Ele já tinha
conhecimento da alteração do fim do locado e aproveita-se disso para resolver o contrato.
Os interesses na base do direito de resolução por alteração do fim do locado não são esses,
pelo que há lugar ao exercício abusivo de um direito.
Este exercício abusivo de direito pode ser definido na modalidade de tu quoque.
Se alguém é titular de um direito subjetivo, à partida pode exercê-lo nos termos que
quiser. Só em casos muito especiais se justifica o instituto do abuso do direito. O art. 334º
define 3 limites: quando o exercício do direito é manifestamente atentatório da boa-fé,
bons costumes e do fim social ou económico do direito.

Modalidades de abuso de direito:


- venire contra factum proprium – a mais frequente. Designa a existência de dois
comportamentos contraditórios tomados pela mesma pessoa. Alguém adota um facto
impróprio e posteriormente um contraditório a este. Ao adotar o primeiro, cria
expectativas noutros de que não iria adotar posteriormente um comportamento contrário.
É preciso perceber se existem dois comportamentos contraditórios, imputados ao mesmo
agente, se o lesado está de boa fé e se existe um nexo de causalidade entre a confiança do
lesado e o comportamento.
- inalegabilidades formais – são uma forma de venire contra factum proprium –
também existem dois comportamentos contraditórios, mas circunscrevem-se aos vícios
de forma. Ou seja, se alguém provoca um vício de forma (exclusivamente ou contribuindo
para ele) e posteriormente quer invocar o mesmo vício de forma.
- supressio/neutralização – outra modalidade de venire contra factum proprium.
Traduz-se no exercício de direito por parte do titular depois de um período longo de tempo
onde ele se absteve do seu exercício, o que criou expectativas da contraparte.
- tu quoque – significa “tu também”. Remete para os casos em que alguém comete
um ato ilícito e depois quer aproveitar-se das consequências do ato ilícito de outrem. No
nosso caso prático, o senhorio viola o 1069º e depois quer aproveitar-se do ato ilícito do
inquilino, que introduziu o seu negócio.
- atos emulativos – modalidade mais ampla em que a pessoa exerce o direito
apenas tendo em vista prejudicar outrem. Necessário aplicar com cautela, pois é natural
que o exercício de um direito cause danos. No entanto, há um princípio do mínimo dano,
pelo qual o exercício de um direito deve ser feito de modo a causar o mínimo dano
possível. A doutrina desenvolveu três indicadores para ver se estamos perante um ato
emulativo: se há intenção de prejudicar; se o exercício do direito não traz nenhuma
vantagem para o titular; se há uma vantagem mas ela é mínima em comparação com o
sacrifício imposto.

Miguel Louro 4
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Quais as consequências do abuso de direito? Duas possibilidades: ou se impede que o


agente exerça o direito ou faz-se o agente incorrer em responsabilidade civil, tendo de
indemnizar os danos causados. A doutrina (nomeadamente o professor Baptista
Machado) defende que se estivermos perante um vício de forma, ou seja, uma
inalegabilidade formal, a consequência não pode ser impedir o exercício do direito, mas
apenas a responsabilidade civil, pois se impedíssemos o exercício do direito, estaríamos
a admitir a existência de um contrato que é nulo.

Miguel Louro 5
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APONTAMENTOS SEMANAIS DE TEORIA GERAL DO


DIREITO CIVIL - PRÁTICA
Aula de dia 19/11

Caso prático nº 12

“A, agente imobiliário, acordou com B a conclusão de um contrato de compra e venda


de um terreno que tinha herdado de sua mãe e que confinava com um campo que o
segundo cultivava. A convenceu B que o contrato podia ser celebrado numa folha de
papel azul, selada e assinada por ambos, e que assim se evitavam as despesas notariais.
Cinco anos mais tarde, A intenta uma ação judicial com vista à declaração da invalidade
formal do negócio celebrado com B, pretendendo assim obter o terreno de volta, uma
vez que a zona onde este se situava tinha passado a ser "zona urbanizável", com a
aprovação do novo Plano Diretor Municipal da região, o que levou a uma subida "em
flecha" dos preços. Deverá o tribunal atender à sua pretensão?

(Cfr. Acórdão do STJ de 17.01.2002 (Miranda Gusmão), CJ — Acórdãos do STJ, I, 2002,


pp. 48-50 e Acórdão da Relação de Coimbra de 14.12.1993 (Moreira Camilo), CJ, V,
1993, pp. 48-50).”

Resposta:

A exigência de forma legal relativamente à compra e venda de imóveis está prevista no


art. 875º do CC (uma exceção ao 219º) e as consequências no 220º. Assim, este negócio
é nulo, pelo que A é titular do direito à invocação da nulidade. Resta saber se o está a
exercer abusivamente.
A contribui para a falta de forma, pois convence B de que o contrato pode ser celebrado
com um papel azul selado. Por isso, trata-se de um exercício abusivo do direito, cuja
cláusula geral consta do 334º.
Recordando os tipos de abuso de direito, podemos ter:
- venire contra factum proprium;
- inalegabilidades formais;
- suspensio;
- tu quoque;
- atos emulativos.
Estamos perante um caso de inalegabilidade formal, uma forma de venire contra factum
proprium, em que existem dois comportamentos contraditórios, relativamente aos vícios
de forma.
Sendo o contrato nulo, a consequência da declaração de abuso de direito não é desimpedir
o exercício do direito, mas sim a responsabilidade civil. Assim, A teria de indemnizar B
pelos danos causados. Isto porque, pela nossa doutrina, o 875º tem interesses públicos por

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detrás, nomeadamente na segurança e publicidade, pelo que esta norma não pode ser
afastada, sendo necessário declarar na mesma a nulidade do contrato.
Além disso, pelo 286º, que consagra o regime da nulidade, esta é do reconhecimento
oficioso do tribunal, pelo que mesmo que as partes não a invocassem, o tribunal tem o
dever de a reconhecer oficiosamente.

Casos do Powerpoint apresentado pela professora, relativamente ao abuso de


direito

Acórdão do TRP, de 12/02/2019

Ou entendemos que a cláusula foi revogada tacitamente e não há direito a invocá-la ou


entendemos que as partes não revogaram tacitamente a cláusula e poderíamos ponderar o
exercício abusivo. Ainda assim, se a seguradora tem direito a acionar a cláusula, não
parece haver abuso de direito.
Neste caso, a cláusula parece ter sido tacitamente revogada pela declaração posterior.

Resposta: Perante a invocação da cláusula, a seguradora não incorre em abuso do direito.

Acórdão do TRP, de 18/11/2002

Se o contrato é válido porque em 1993 não eram exigidas as formalidades, não há direito
à invocação da nulidade. Não é uma questão de abuso do direito, mas de falta de
titularidade do direito.

Resposta: Perante a invocação da nulidade do contrato, o promitente comprador não é


titular do direito.

3º caso

Quando alguém, pelo exercício do direito por um longo período de tempo, cria a
expectativa de que tem um direito, há supresio. Y constitui a expectativa de que tem
direito àquela quantia.

Resposta: O pedido de X LDA constitui supresio.

Acórdão do STJ, de 2018

Miguel Louro 2
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Na pendência do contrato de trabalho, os créditos salariais não têm prazo de prescrição,


tendo em conta que o trabalhador está em posição desfavorável. Só no final do contrato
se inicia o prazo de 1 ano, ao fim do qual prescrevem os créditos salariais.

Resposta: O pedido dos trabalhadores constitui o exercício legítimo de um direito.

Acórdão do STJ, de 2019

Ocorre um acidente e a seguradora oferece 50 000 para todos os danos, o que


aparentemente é prejudicial para a segurada. A segurada exita, mas aceita e assina. Não é
tido em conta o ligeiro atraso mental da segurada.

Do lado da seguradora, pode ser argumentado que as partes agiram no exercício da sua
liberdade contratual, pelo que a seguradora atua no exercício legítimo de um direito.

Do lado da segurada, pode ser argumentado que o exercício da liberdade contratual é


abusivo, porque excede manifestamente os limites impostos pela boa-fé. Assim, há um
exercício abusivo, pela cláusula geral.

Resposta: A seguradora, na celebração do acordo com Autora, atuou… nenhuma das


respostas está correta, pois há um exercício abusivo, pela cláusula geral. (A hipótese “no
exercício legítimo de um direito” poderia ser aceite, se bem fundamentada)

6º caso

Enquanto titular do direito de propriedade, Y pode colocar lá a churrasqueira. No


entanto, se tem intenção de prejudicar E, está a abusar do seu direito. Tal intenção é
muito difícil de provar.

Resposta: Y exerce abusivamente do seu direito se teve intenção de prejudicar.

Acórdão do STJ, de 14/03/19

O condómino que não pagou vem a tribunal pedir que o mesmo condene o condomínio
ao pagamento dos danos que sofre na sua fração por não terem sido feitas obras,
pedindo também a condenação do condomínio à realização das obras.

Resposta: O autor com o pedido invocado atua em abuso de direito, na modalidade de


tu quoque.

Acórdão do TRG, de 2/2/2017

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Quando celebra um contrato, a arrendatária sabia que não havia licença - concordaram
que a iriam obter. A arrendatária sempre pagou as rendas e lá desenvolveu a sua
atividade; agora invoca a falta de licença para denunciar o contrato. Assim, o contrato é
aceite e posteriormente há um comportamento contrário, a invocação de falta de licença.

Resposta: A arrendatária atua em venire contra factum proprium.


Aquisição originária vs Aquisição derivada

Na aquisição derivada a validade da aquisição depende do direito do transmitente: se não


existia o direito do transmitente, o adquirente não pode adquirir.

Nemo Plus Iuris ad alium transfere potest quam ipse habet – ninguém pode transmitir
mais direitos do que aqueles de que é titular.

Há exceções a este princípio:

1- Funcionamento do Registo
2- Proteção de terceiros de boa-fé (291º e 243º do CC)

Se alguém adquire apesar de o transmitente não poder transmitir, adquire a non domino.

Se A vende a B um imóvel por escrito particular (negócio nulo, pelos 220º e 875º) e B
vende a C, por força das exceções, C pode adquirir o direito de propriedade, não por força
do contrato, mas a non domino. C é um terceiro de boa-fé.

1- Registo: DL nº 224/84, 06 de julho (Código do Registo Predial)

Artigo 1º do Código de Registo Predial – registo predial destina-se a dar publicidade à


situação jurídica dos prédios, tendo em vista a segurança do comercio jurídico
imobiliário.

Artigo 34º do Código de Registo Predial – princípio do trato sucessivo. O registo


definitivo de constituição de encargos por negócio jurídico depende da prévia inscrição
dos bens em nome de quem os onera.

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Efeito central do registo:

- Artigo 5º - Os factos sujeitos a registo só produzem efeitos contra terceiros depois da


data do respetivo registo.
- Artigo 6º - O direito inscrito em primeiro lugar prevalece sobre os que se lhe seguirem
relativamente aos mesmos bens, por ordem da data dos registos e, dentro da mesma data,
pela ordem temporal das apresentações correspondentes – assim, se A vende a B, este não
regista e vende a C, o direito de C prevalece.

2- Proteção de terceiros de boa-fé

Requisitos para a aquisição a non domino por via do 291:

- Terceiro;
- Invalidade anterior;
- Bem imóvel ou movel sujeito a registo;
- Adquire o direito onerosamente;
- Regista a aquisição;
- Não ser proposta uma ação de invalidade dentro dos três anos posteriores à
conclusão do negócio;
- Boa fé (o terceiro adquirente que no momento da aquisição desconhecia, sem
culpa, o vício do negócio nulo ou anulável).

Requisitos para a aquisição a non domino por via do 243º do CC:

- Terceiro;
- Simulação anterior;
- Boa-fé do terceiro (com ou sem culpa).

Não precisa de registar, de ser um bem móvel ou imóvel ou de adquirir


onerosamente.

Exemplos do professor Orlando de Carvalho:


Primeiro caso:

“A vende a B de forma simulada. B vende a C.”

Resposta: Negócio simulado e nulo pelo 240º/2. C é terceiro afetado por situação anterior
e ignora a simulação. Assim, aplica-se o 243º.

Segundo caso:

Miguel Louro 5
Faculdade de Direito da Universidade do Porto 2021/2022

“A vende prédio de forma simulada a B e este vende a C. C ignora a simulação e não


regista.”

Resposta: Pelo 243º, C é um terceiro afetado por simulação anterior e está de boa fé. Não
é necessário registo.

Terceiro caso:

“A vende de forma simulada a B, que vende a C. C ignora a simulação com culpa”

Resposta: C ignora simulação com culpa. No entanto, a culpa é irrelevante, pelo artigo
243º.

Quarto caso:

“A vende de forma simulada a B, que doa a C, que ignora a simulação.”

Resposta: Ainda continuamos no 243º, porque não se exige que C adquira onerosamente.

Quinto caso:

“A vende prédio a B por escrito particular (vício de forma), que troca por escritura pública
com C, que ignora o vício de forma sem culpa e regista “

Resposta: Aplica-se o 291º, cumprem-se todos os requisitos.

Sexto caso:

“A celebra contrato comodato com B, que vende por escritura pública a C em 1982, que
celebra contrato de troca com D, que ignora a falta de legitimidade de B sem culpa e
regista, em 1984.”

Resposta: Comodato é um contrato pelo qual alguém empresta a outrem uma coisa
infungível, sendo um contrato gratuito. Assim, B não podia vender a C, porque o
comodato é um empréstimo. Deste modo, há venda de um bem alheio, nula pelo 892º.
Não é uma simulação, pelo que excluímos o 243º. D é um terceiro; trata-se de um bem
imóvel, há invalidade anterior, é contrato oneroso - regista e atua de boa-fé sem culpa.
Têm de passar 3 anos sem ação de invalidade anterior 1982 + 3 anos 1985.
Se até este ano não houver ação, D adquire.

Sétimo caso

Miguel Louro 6
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“A vende prédio por registo particular a B em 1980, que doa de forma simulada a C em
1982, que vende por escritura pública em 1984 a D. D ignora o vício de forma e a
simulação sem culpa e regista em 1986”

Resposta: Em relação ao vício de forma, apenas serve o 291º. D é terceiro, afetado por
invalidade anterior, o bem é imóvel. D adquire onerosamente, regista e têm de passar 3
anos sem ação de invalidade e agir de boa-fé sem culpa. É afastada a invalidade de ambos

os negócios. O 243º também seria aplicável ao negócio entre B e C, mas o 291º é


suficiente.

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APONTAMENTOS SEMANAIS DE TEORIA GERAL DO


DIREITO CIVIL – PRÁTICAS
Aula de 25/11
Resolução dos casos práticos do PowerPoint apresentado (continuação)
Oitavo Caso
A vende prédio a B por escrito particular em 1980;
B doa de forma absolutamente simulada a C por escritura pública em 1982;
C vende por escritura pública a D em 1983;
D ignora o vício de forma e a simulação sem culpa e regista 1983;
Registo de ação de simulação em 1984.

Os dois primeiros negócios são nulos, pelo que a propriedade seria de A. C não tinha direito,
por isso, pelo nemo plus iuris não pode transmitir a D.
Mas D poderia adquirir a non domino, pelo 291º do CC.
No negócio entre A e B há um terceiro, afetado por invalidade anterior, um bem imóvel é
adquirido onerosamente, registado em 1983, de boa fé sem culpa e não pode haver ação de
invalidade nos 3 anos posteriores - até 1983 não houve, pelo que já passou este período.
Relativamente ao negócio entre B e C, só perfazia 3 anos em 1985 e a ação é interposta em
1984, pelo que o 291º não o protege. Mas podemos aplicar o 243º, pois há um 3º de boa fé
afetado por simulação anterior.
Assim, D adquire a non domino em 1983, quando regista.

Nono Caso
A vende a B um prédio por escrito particular em 1980;
B doa por escritura pública a C em 1981 (regista em 1984) e vende por escritura pública a D
em 1982 (regista em 1983).
O negócio entre A e B é nulo nos termos do 220º, porque não cumpre a forma legal do 875º.
Logo, B não pode doar a C.
Relativamente a C, este não poderia aplicar o 291º, pois não adquire onerosamente, já que se
trata de uma doação. Assim, não pode adquirir o seu direito.
Já no caso de D, este cumpre todos os requisitos deste artigo, pelo que adquire em 1983.
C e D são terceiros para efeitos de registo que, pelo Código de Registo Predial, são os que
adquirem do mesmo transmitente direitos total ou parcialmente incompatíveis.
Quando C tenta registar em 1984 com um contrato cujo transmitente é B, não o poderá fazer
porque quem consta do registo é D, pois pelo princípio do trato sucessivo, o registo definitivo
de constituição de encargos por negócio jurídico depende da prévia inscrição dos bens em
nome de quem os onera (art. 34º do Código de Registo Predial).

Miguel Louro 1
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Décimo Caso
A vende de forma absolutamente simulada a B em 1980;
B doa a C por escrito particular em 1982;
C vende por escritura pública a D em 1984;
D regista em 1985, ignorando o vício sem culpa;
D constitui usufruto oneroso a E em 1986 (E não regista);
D vende sem reserva a F, que conhece os vícios e regista em 1987.
O negócio entre A e B é nulo pelo 240º.
A Doação por escrito particular é nula pelo 220º, por inobservância do 947º do CC.
D é terceiro, afetado por invalidade anterior. Temos de ver se vai adquirir a non domino. O
243º apenas o protege relativamente ao negócio entre A e B. Assim, D fica protegido pelo
291º - D é terceiro, afetado por invalidade anterior, trata-se de um imóvel, o terceiro adquire
onerosamente (não interessa que o negócio anterior seja gratuito), regista em 1985, está de
boa-fé sem culpa e têm de passar 3 anos sem registo de ação de invalidade. Logo, D adquire a
non domino em 1985.
Se adquire em 1985, em 1986 pode constituir usufruto a E.
Mas D vende sem reserva a F em 1987. Logo, E e F são terceiros para efeitos de registo, pois
adquirem do mesmo transmitente direitos incompatíveis.
O negócio entre D e E é valido. O facto de E não registar não afeta a validade do negócio,
pois o registo tem um efeito meramente declarativo e não constitutivo. Pelo 408º, a
transferência e transmissão de direitos reais dá-se por mero efeito do contrato.
A consequência de não registar é não conseguir opor o seu direito a terceiros, pelo art. 5⁰ a
contrario do Código de Registo Predial. Assim, F, quando regista, por força do efeito central
do registo, consegue opor o seu direito e este tem prioridade.
Logo, F adquire a propriedade sem reservas. Por sua vez, o direito de E vai extinguir-se por
decadência.

Décimo Primeiro Caso


A vende de forma simulada a B (com quem mantém relações adulterinas), mas sob este
negócio, existe uma doação que cumpre requisitos legais;
B vende a C, que regista em 1983 e não conhece a simulação anterior.

As partes disseram querer vender, mas na verdade queriam doar. Na simulação absoluta, as
partes não pretendem realizar nenhum negócio jurídico. Já na simulação relativa, as partes
pretendem realizar determinado negócio, prejudicial a terceiro ou em fraude à lei. Quando há
uma simulação relativa, o negócio simulado é nulo, mas o negócio dissimulado é válido. A
doação dissimulada entre A e B (1980) seria válida, pelo 241º. Mas não é, porque a A e B
mantêm relações adulterinas - pelo 2196º, é nula a disposição a favor da pessoa com quem o
testador casado cometeu adultério. Pelo 967º, relativo a contratos de doação, as condições ou
encargos física ou legalmente impossíveis, contrários à lei ou à ordem pública, ou ofensivos

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dos bons costumes ficam sujeitos às regras estabelecidas em matéria testamentária. Assim, o
2196º aplica-se às doações. Deste modo, o negócio dissimulado é nulo.
B decide vender a C, que regista em 1983. C é terceiro afetado por invalidade anterior, trata-
se de um imóvel, adquire onerosamente, regista em 1983, está de boa-fé sem culpa e têm de
passar 3 anos da data do negócio inválido – cumprem-se em 1983. Assim, cumpre os
requisitos. Mas também cumpre os termos do 243º (terceiro, de boa-fé, afetado por simulação
anterior) e por força deste artigo adquirira logo em 1982 - assim, deve ser este o aplicado.

Décimo Segundo Caso


A vende de forma simulada a B. Mas sob este negócio, existe uma doação que cumpre os
requisitos legais.
B vende a C por escritura pública.

A compra e venda é nula pelo 240⁰/2. A doação é válida, pois o negócio dissimulado, pelo
241º, é valido.
Se é válido, B adquire. Assim, pode vender a C, que adquire legitimamente.
Se C conhecesse a simulação, mas ignorasse sem culpa a indisponibilidade relativa da doação
dissimulada e registasse em 1984, não poderíamos aplicar o 243º, pois ele conhece a
simulação. Mas ignora sem culpa a indisponibilidade relativa, pelo que adquiriria por força
do 291º, em 1984, quando regista.

Resolução da Ficha de Casos Práticos


Caso prático nº 15
A celebrou com B um contrato de compra e venda de um terreno de que era proprietário, com
data de 20/10/2014. O contrato foi celebrado mediante escrito particular.
Seis meses mais tarde, B vende o terreno a C (mediante escritura pública), que regista a sua
aquisição.
Entretanto A morre e o seu filho D, seu único e universal herdeiro, vem intentar uma acção com
vista à declaração da nulidade do contrato celebrado entre A e B. C desconhecia a invalidade do
contrato anterior. Será a sua aquisição protegida por lei?
1ª hipótese: A acção foi proposta em Fevereiro de 2016.
2ª hipótese: A acção foi proposta em Janeiro de 2018.

No negócio entre A e B há um vício de forma, nos termos do art. 875º, uma exceção à regra
geral da liberdade de forma. Assim, a propriedade mantém-se com A.
Pelo nemo plus iuris, B não pode transmitir a C.
Mas veremos se C pode ser protegido por exceção a este princípio. De imediato excluímos o
243º, pois não há nenhuma simulação.
Na primeira hipótese, havendo ação de invalidade em 2016, C é terceiro, afetado por
invalidade anterior, há um bem imóvel, adquire onerosamente, regista, está de boa-fé (não

Miguel Louro 3
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está explícito no enunciado, mas vamos supor que sem culpa) e não pode ser interposta uma
ação de invalidade nos 3 anos posteriores ao negócio - cumprem se em 2017. Sendo a ação
interposta em 2016, C não está protegido e a propriedade pertence a A.
Na segunda hipótese, já passaram os 3 anos, pelo que C adquire a nom domino por forca do
291º.

Caso prático nº 16
E, comerciante, receosa de uma acção judicial com vista à declaração da sua insolvência em
virtude das avultadas dívidas acumuladas nos últimos anos, e pretendendo salvaguardar os seus
bens, forjou com F, sua empregada, um contrato de compra e venda de um valioso colar de
pérolas, recebendo um preço simbólico a título de pagamento.
Mais tarde, F doa o mesmo colar a G, sua filha, que, embora estranhando que a sua mãe tivesse
uma jóia tão valiosa, desconhecia o acordo entre E e F.
Que direitos assistem a G?

Estamos no âmbito das exceções ao nemo plus iuris, nomeadamente a proteção de terceiros
de boa-fé. A terceira é G, pelo que vamos tentar proteger a sua aquisição.
O negócio entre E e F é uma compra e venda simulada de forma absoluta, pois as partes não
pretendiam celebrar negócio nenhum. Logo, o negócio é nulo pelo 240º/2.
Assim, G é terceira afetada por simulação anterior. Está de boa-fé, mas parece ter culpa, por
estranhar que a mãe tenha joia tão valiosa. Mas, pelo 243º, a culpa não é requisito, pelo que
se aplica este artigo e G adquire o colar a non domino.
Por sua vez, o direito de E extingue-se por decadência.

Caso prático nº 17
M, viúvo, decidiu doar a sua casa sita na Av. da Boavista, ao seu único filho N, residente em
França, instalando-se num "Lar de Terceira Idade". N não regista a sua aquisição. Entretanto,
tendo-se M apercebido que o filho pretendia arrendar a casa a uma empresa, o que implicava o
"despejo" de uma empregada antiga (O) que ainda lá habitava, decidiu constituir a favor de esta
um usufruto até à sua morte, por via contratual. Ambos os contratos foram celebrados mediante
escritura pública.
N, quando preparava os documentos para arrendar a casa é confrontado com o registo do direito
de usufruto a favor de O, incompatível com a possibilidade de arrendamento.
Quid iuris?

M doa por escritura pública a N, que não regista e posteriormente constitui usufruto a O, que
regista.
N e O são terceiros para efeitos de registo.
Como N não regista, não pode opor o seu direito a terceiros.
O negócio entre M e N é valido, pois o registo não é constitutivo, mas apenas declarativo.
Sendo o contrato válido, N é o proprietário, mas o seu direito não é oponível perante
terceiros, ou seja, O. Assim, por força do art. 6º do Código de Registo Predial, tem prioridade

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o registo, podendo opor o seu direito perante N. Deste modo, existe um direito de propriedade
a favor de N onerado por um direito de usufruto a favor de O.
Se a doação de M a N tivesse sido celebrada por escritura particular, o contrato seria nulo,
nos termos do 947º, logo a propriedade seria de M e o contrato entre M e O seria válido.

Caso prático nº 18
A vende a B a sua casa de praia em Janeiro de 2012. B, no entanto, não registou a sua aquisição.
Posteriormente, verificando A que a casa ainda se encontrava registada em seu nome, decide doá-
la a um seu sobrinho C, que muito o havia ajudado na sua velhice. C, tendo conhecimento, antes
da aceitação da doação, do anterior negócio realizado pelo tio, sossegou-o dizendo que "o
proprietário é aquele que aparece mencionado como tal no registo", e como tal o tio estava no seu
pleno direito ao fazer a doação.
Quid iuris?
Há uma modificação subjetiva e uma aquisição derivada translativa.
O negócio entre A e B é valido e eficaz inter partes, mas inoponível a terceiros, porque B não
regista. Assim, B é proprietário, mas não consegue opor o seu direito a C, que é o terceiro
para efeitos de registo pelo art. 5⁰ do Código de Registo Predial. Sendo uma aquisição
derivada, depende do direito do transmitente. Como A não tem direito, fica prejudicada a
transmissão.
C, ao registar, consegue opor o seu direito a B e este prevalece, pelo art. 6º do Código de
Registo Predial. C só consegue registar porque quem figura no registo como proprietário é A.
A afirmação "o proprietário é quem figura no registo" não é correta, pois a propriedade
pertencia a B. O registo constitui uma presunção da titularidade do direito. Mas é uma
presunção ilidível, permite prova em contrário, de acordo com o art. 7º do Código de Registo
Predial.

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APONTAMENTOS SEMANAIS DE TEORIA GERAL DO


DIREITO CIVIL – PRÁTICA

Aula de dia 03/12

Caso prático nº 19
Suponha que numa determinada Conservatória de Registo Predial se encontram
registados relativamente a um imóvel, composto de um edifício destinado a habitação
e respectivo logradouro, os seguintes factos:
(...)
- aquisição por C, mediante contrato de compra e venda celebrado por escritura
pública, em 1960;
- aquisição por D, em 1995, por usucapião;
- aquisição por E, em 2015, em virtude de contrato de doação celebrado entre D e E
por escrito particular;
- usufruto constituído onerosamente por E a favor de F, em 2018, formalmente válido;
- uma acção judicial com vista à declaração da nulidade da doação realizada a favor
de E, intentada por D em 2019 (e registada no mesmo ano).
Tendo em conta os dados referidos, qualifique todos os fenómenos de aquisição de
direitos aqui em causa e diga que direitos incidem actualmente sobre o prédio em
questão e quais os respectivos titulares.

Resposta: Aquisição por C é uma aquisição derivada translativa (o seu direito depende
de um direito anterior). A aquisição por D por usucapião é uma aquisição originária (ou
seja, o seu direito de propriedade não depende do de C). A doação a E é uma aquisição
derivada translativa. O usufruto a favor de F é uma aquisição derivada constitutiva
(constitutiva porque o direito não existia).
A propósito das aquisições privadas, importa o princípio do nemo plus iuris, ninguém
pode transmitir direito que não possui.
O artigo 947º do CC estabelece a forma legal de doação de imóveis, pelo que este contrato
não respeita a forma legal, sendo assim nulo nos termos do artigo 220º. Se o contrato é
nulo, não produz efeitos, podendo a nulidade ser declarada a qualquer momento por
qualquer interessado e reconhecida oficiosamente pelo tribunal. A declaração da nulidade
terá como efeito a restituição do que foi prestado, neste caso, o bem. Um terceiro, para
efeitos de registo, é aquele que do mesmo transmitente adquire direitos total ou
parcialmente incompatíveis. Não é o que acontece neste caso prático, pois não há duas
pessoas que adquirem do mesmo transmitente. Assim, F é terceiro de boa-fé, ou seja,
alguém que vê a sua aquisição do direito afetada por uma invalidade anterior.
Enquanto terceiro de boa-fé, pode ser protegido pelo artigo 243º ou pelo 291º. Como não
há simulação, excluímos logo o 243º. Pelo 291º, F é terceiro, afetado por invalidade
anterior, trata-se de um bem imóvel, registou, adquire onerosamente, está de boa-fé

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(supomos que sem culpa) e têm de passar 3 anos da data do negócio inválido sem que
seja interposta ação de invalidade. Passam 3 anos em 2018, que é a data em que F regista,
pelo que este pressuposto também se verifica. Assim, F adquire a non domino.
Em suma, a propriedade incide sobre F, e E é titular do direito de usufruto.

Caso prático nº 13 (recuamos a este caso, pois tínhamos avançado esta matéria)

A é proprietário de um automóvel que lhe foi furtado por B. Um dia A vê C a entrar


no automóvel furtado. A dá um murro a C e tira-lhe a chave impedindo este de arrancar
com o carro. Aprecie a conduta de A.

Resposta: É um caso de autotutela, nomeadamente de ação direta. A ação direta, a par da


legítima defesa, do estado de necessidade e do consentimento do ofendido são causas de
exclusão da ilicitude. Pelo artigo 336º, “é lícito o recurso à força com o fim de realizar ou
assegurar o próprio direito, quando a acção directa for indispensável, pela impossibilidade
de recorrer em tempo útil aos meios coercivos normais, para evitar a inutilização prática
desse direito, contanto que o agente não exceda o que for necessário para evitar o
prejuízo.”
Assim, para exercer ação direta, tem de haver uma situação de inutilização prática do
direito, que tem de ser próprio; a ação direta tem de ser necessária e tem de respeitar o
princípio da proporcionalidade (apenas na medida de evitar o prejuízo). Deixa de ser lícito
quando se sacrificam interesses superiores.
A regra é a da heterotutela, devendo, se possível, recorrer-se aos meios coercíveis
normais, pelo que os meios de autotutela são entendidos em termos muito restritos. Neste
caso, os interesses em causa são, por um lado, o direito de propriedade e, por outro, o
direito à integridade física, ou seja, um direito patrimonial contra um pessoal. Como o
direito pessoal é superior ao patrimonial, não parece que aqui o uso da força seja
justificado. Além disso, C poderia estar de boa-fé, já que quem furtou foi B.
Logo, não sendo um ato lícito, A incorria em responsabilidade civil extracontratual por
factos ilícitos (ou subjetiva), nos termos do artigo 483º.

Caso prático nº 14

F é abordado à noite por um indivíduo empunhando uma faca exigindo a sua carteira.
1ª hipótese: F dá-lhe um pontapé e o indivíduo cai na rua.
2ª hipótese: F, que andava sempre armado, dá um tiro ao indivíduo

Resposta: É um caso de legítima defesa que, de acordo com o artigo 337º, é lícita quando
há uma agressão, atual ou iminente (não pode ser meramente preventiva), ilícita (pois o
indivíduo ameaça o direito à integridade física de F, bem como o seu património), contra
a pessoa ou património do agente (neste caso ambos) e admite-se a legítima defesa a favor
do próprio ou de terceiro (neste caso, do próprio). Além disto, é necessário não ser
possível recorrer aos meios coercíveis normais e existir proporcionalidade (entendida de

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um modo mais flexível, já que a legítima defesa apenas não pode ultrapassar
manifestamente os danos provocados). Além disso, a legítima defesa, mesmo que haja
exceção, pode ser justificada se este se tiver devido a medo ou perturbação do agente,
desde que não culposos, de acordo com o artigo 337º/2.
Assim, na 1ª hipótese, parece ser legítimo recorrer à legitima defesa.
Na 2ª hipótese, se considerarmos que há excesso manifesto, a legítima defesa não está
justificada. Se considerarmos que se deveu a medo ou perturbação de F, já pode ser
justificada.

Nota: se o agente achava que estavam verificados os pressupostos ou da legítima defesa


ou da ação direta, pelo artigo 338º, é obrigado a indemnizar os prejuízos causados, salvo
se o erro for desculpável.

Caso prático nº 20

Num dia de mar revolto, A foi pescar num pequeno barco para a barra de Viana do
Castelo. Perante o olhar impotente de alguns transeuntes, a embarcação voltou-se, foi
arrastada para o alto mar pela corrente, e nunca mais se viu A.
Diga se um credor de Braga, interessado na conservação dos bens de A para garantia
de vultuosos créditos, pode ser nomeado seu curador provisório nos termos dos artigos
89º e segs., e, sobretudo, 92º do Código Civil.

Resposta: É necessário perceber se estamos perante um desaparecimento (68º/3) ou uma


ausência (89º e seguintes). Ausência é quando não se sabe de alguém e é necessário
administrar os seus bens. Já no desaparecimento, a pessoa tem-se por falecida, já que as
circunstâncias em que a pessoa desaparece não fazem duvidar da morte dela.
Quando há uma situação de desaparecimento, é averbado um assento de morte real (pelo
208º, no caso específico do naufrágio). É este o caso em questão, pois na ausência não
temos notícias da pessoa e é necessário administrar o seu património, mas há uma
expectativa de regresso. Consoante a possibilidade de regresso diminui pela passagem do
tempo, há um conjunto de modalidades que a lei prevê (curadoria provisória, curadoria
definitiva e morte presumida).
Logo, nesta situação, estamos perante um problema de desaparecimento, pelo que o
credor não pode ser nomeado curador provisório.

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Caso prático nº 21

A e B, dois irmãos de 20 e 25 anos de idade, respectivamente, emigraram para o Brasil


em 1982. Na sua aldeia natal permaneceu um outro irmão C, o parente mais próximo
e o procurador de A e B.
Em Janeiro de 2014 morreu C, deixando em testamento os seus bens ao seu filho D e
ao irmão A.
Acontece que a partir de 2010 A não deu notícias, ignorando-se o seu paradeiro.
Quanto a B, desde 2003 nada se sabe.

a) Como, quando e por quem podem ser requeridas medidas para prover à
administração dos bens de A e B?

Resposta: Estamos perante um caso de ausência e é preciso administrar os bens de A e


B. Até 2014, tinham procurador, pelo que não havia lugar a curadoria provisória.
Em 2008, pelo artigo 99º, pode ser declarada a curadoria definitiva, em relação a B, pois
passam 5 anos desde a data das últimas notícias. Relativamente a A, 5 anos passariam em
2015, mas ele deixa de ter procurador em 2014, pelo que neste ano estão verificados os
pressupostos do artigo 99º.
Não há notícias de A desde 2010, pelo que em 2020 é decretada morte presumida. Como
não há notícias de B desde 2003, é decretada morte presumida em 2013, nos termos do
artigo 114º.

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APONTAMENTOS SEMANAIS DE TEORIA GERAL DO


DIREITO CIVIL - PRÁTICA
Aula de 09/12

Caso prático nº 22

F, grávida de 4 meses, é atropelada por G ao atravessar a rua com toda a atenção, numa
passadeira para peões. Conduzida de imediato ao hospital, é submetida a uma
intervenção cirúrgica de urgência. Supondo que o filho de F veio a nascer com uma
grave deformação física em resultado de traumatismos sofridos devido ao acidente,
diga se existe responsabilidade civil de G e, em caso afirmativo, quem tem direito a
indemnização e quais os danos indemnizáveis.
Poderá F accionar judicialmente o hospital, pedindo uma indemnização pelo facto de
ter sido operada sem o seu consentimento?

Resposta: Relativamente ao direito à indemnização, em relação à mãe, G incorre em


responsabilidade civil extraobrigacional subjetiva (ou por factos ilícitos), pelo art. 483º
do CC, por violação de um direito de personalidade, nomeadamente à integridade física.
Na responsabilidade civil extraobrigacional por factos ilícitos tem de haver:
- Um facto:
- Humano;
- Ilícito;
- Culposo - neste caso há mera culpa ou negligência. Pelo art. 487º, é o lesado que
tem de provar a culpa e o art. 494º dá a possibilidade de limitar a indemnização em caso
de negligência.
- Danoso – neste caso, patrimoniais e morais. A regra da reparação dos danos está
no artigo 562º e é a reconstituição natural. Não sendo possível, sendo excessivamente
onerosa ou não reconstituindo totalmente os danos, haverá lugar à reintegração por
equivalente, pelo art. 566º. Quanto aos danos patrimoniais, podem ser danos emergentes
ou lucros cessantes. Neste caso, temos despesas hospitalares, que são danos emergentes.
Relativamente aos danos não patrimoniais ou morais, só serão indemnizáveis os que pela
sua gravidade mereçam tutela do Direito. Neste caso, a grave deformação do filho
constitui um dano moral da mãe, tal como o sofrimento e a dor que sentiu devido ao
acidente.
- Tem de haver nexo de causalidade entre o facto e o dano, pelo artigo 563º. Era
necessário que ficasse provado que a grave deformação do filho se devesse ao acidente.

Relativamente ao filho, coloca-se paralelamente a questão dos direitos do nascituro. A


personalidade jurídica adquire-se no momento do nascimento completo e com vida, pelo
artigo 66º. A personalidade jurídica é a possibilidade de ser titular de direitos e
obrigações. Assim, à partida, só alguém já nascido pode ser titular de direitos e
obrigações. A diferença em relação à capacidade jurídica/de gozo é que a personalidade

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jurídica designa uma qualidade, ao passo que a capacidade jurídica designa uma
quantidade. A capacidade de exercício é a possibilidade de exercer por si ou através de
representante voluntário os direitos. Assim, os menores não têm capacidade de exercício,
sendo esta suprida pela representação legal, detida em princípio pelos responsáveis
parentais.
Neste caso prático, o nascituro não tinha ainda, por lei, personalidade jurídica, mas
alguma doutrina (por exemplo, os Profs. Carneiro da Frada, Maria Clara Sottomayor,
Menezes Cordeiro, Oliveira Ascensão, Paulo Otero e Pedro Pais de Vasconcelos) tem
entendido que o nascituro tem sim personalidade jurídica. Outros professores, como
Cabral de Moncada, Carlos Mota Pinto, Carlos Fernandes, Castro Mendes, Dias Marques,
Rita Lobo Xavier, Pires de Lima e Antunes Varela pronunciam-se contra a personalidade
jurídica do nascituro. Há, assim, uma grande divergência doutrinal em relação a este tema.

Em relação ao consentimento em relação à operação, este pode ser, quanto à forma,


presumido (pelo 340º/3) ou expresso (340º/1). Neste caso, é presumido. O Prof. Orlando
de Carvalho distingue também entre consentimento vinculante, autorizante e tolerante:
- Consentimento vinculante – atribui-se um poder jurídico de agressão. O titular
do direito de personalidade, ao consentir na lesão, atribui ao lesante um poder jurídico,
por exemplo através de contrato.
- Consentimento autorizante – é atribuído um poder fático de agressão.
- Consentimento tolerante – não constitui um verdadeiro poder de agressão, mas,
pelo contrário, o consentimento resulta num benefício para o titular do direito. Por
exemplo, se alguém consente numa operação cirúrgica para salvar a sua vida, estamos na
presença de consentimento tolerante. No caso prático, estamos perante consentimento
tolerante.

Assim, F não poderia pedir uma indemnização, porque o consentimento presumido é


válido. Se F estivesse em condições de consentir, mas não lhe tivesse sido pedido o
consentimento, já não haveria lugar a consentimento presumido, pelo que a consequência
de realizar uma intervenção cirúrgica sem o consentimento da pessoa seria a
responsabilidade civil do hospital, pela violação dos direitos à integridade física e à
liberdade.

Caso prático nº 23

B, médica investigadora no domínio da genética, acabou de dar à luz num hospital


público português uma criança do sexo feminino. A administração do hospital em
questão, perante as suspeitas há muito levantadas acerca do envolvimento da
parturiente em experiências de clonagem de seres humanos, pretende realizar uma
recolha de sangue da mãe e da filha para efeitos de comparação dos respectivos
códigos de DNA. Depara-se, porém, com a oposição de B, que nega a existência de
qualquer relação entre o nascimento da sua filha e a sua actividade profissional.
Quid iuris?

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Resposta: Por uma questão de mera opinião pública, B não poderia ser obrigada a
consentir. Se fosse feita recolha de sangue sem consentimento, seriam violados os direitos
à liberdade, à reserva da vida privada e ainda à integridade física, quer da mãe quer da
filha.
Tendo em conta a divisão tripartida de Orlando de Carvalho, caso B prestasse
consentimento, seria um consentimento autorizante.
Relativamente à filha, por ser menor, não poderia prestar o seu consentimento, pelo que
a sua incapacidade teria de ser suprida pela representante legal, ou seja, a mãe.

Se fosse feita a recolha de sangue sem consentimento, haveria lugar a responsabilidade


civil extraobrigacional, por violação de direitos absolutos.

Caso prático nº 24

Ao chegar a casa do seu amigo A, B depara com a porta da entrada aberta e com um
bilhete colado numa parede dizendo “Não me salves!”, compreendendo então que A
decidira cometer suicídio. Com efeito, A encontrava-se dentro da banheira esvaído em
sangue, mas ainda com vida.
Deverá B tentar salvar A?

Resposta: Estaria em causa o direito à vida, um direito indisponível (como todos os


direitos de personalidade), não sendo passível de limitação nem renúncia. Nenhum direito
de personalidade pode ser violado por terceiros, mas alguns podem ser limitados pelos
próprios, mas o direito à vida não é um desses casos, tal como acontece no direito à honra
propriamente dita.

Sendo um direito absoluto, vincula erga omnes, pelo que a todas as pessoas do lado
passivo corresponde um dever geral de respeito, que vincula todos a respeitar este direito.
Há, assim, uma obrigação de non facere. Mas, no caso dos direitos de personalidade, a
par deste dever geral de respeito, há também um dever de auxílio.

Logo, B deverá tentar salvar A. Se não o fizer, incorrerá em responsabilidade civil por
omissão. Se de facto houvesse lugar a esta ação de responsabilidade civil, B poderia
argumentar que o bilhete poderia traduzir um não consentimento numa intervenção de
que necessitasse para ser salvo. No entanto, B não poderia saber se foi mesmo A que
escreveu o bilhete nem se, mesmo que tenha sido escrito por B, a vontade expressa no
bilhete ainda seria atual. Além disso, sendo o direito à vida irrenunciável e indisponível,
se A estivesse a renunciar estaria a cometer um ato ilícito. Esta mensagem também não
poderia ser valorada como testamento vital, porque este exige uma forma especial que
não se verifica neste caso.

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Caso prático nº 25

E pretende accionar a “Phonemarketing Norte, S.A.”, empresa que se dedica à


realização de campanhas publicitárias através de telefone, exigindo-lhe o pagamento
da quantia de vinte mil euros por danos sofridos, com o argumento de que o seu
descanso tem vindo a ser perturbado há já mais de nove meses com várias chamadas
telefónicas diárias para o telefone de sua casa, no período compreendido entre as
20.30h e as 22.30h, com vista à publicitação de serviços de comunicações e bancários.
E tem uma actividade profissional muito intensa e sente-se perturbado por nunca
conseguir relaxar ao fim de um dia de trabalho. Apesar de ter alterado o seu número
de telefone fixo e, durante algum tempo, as chamadas pararem, logo foram reatadas
para o seu novo número, não obstante os constantes protestos de E. Por outro lado, E
não quer abdicar do seu telefone de rede fixa uma vez que com ele vivem os seus pais,
já de idade avançada, para quem este é o único meio de telecomunicação que sabem
utilizar.

Perante os factos apresentados, diga se E será bem-sucedido na sua pretensão e, em


caso afirmativo, em que termos será a ré chamada a responder pelos danos causados.

Resposta: Está em causa a violação de direitos de personalidade, em concreto à


integridade física e psíquica (porque é afetado o descanso) e à reserva da vida privada.
Estão também em causa os direitos à proteção de dados, à privacidade e a liberdade
negativa (poder não conversar com a “Phonemarketing Norte, S.A.”).

No artigo 13º-A da Lei 41/2004, é dito que “está sujeito a consentimento prévio e
expresso do assinante que seja pessoa singular, ou do utilizador, o envio de
comunicações não solicitadas para fins de marketing direto, designadamente através da
utilização de sistemas automatizados de chamada e comunicação que não dependam da
intervenção humana (aparelhos de chamada automática), de aparelhos de telecópia ou
de correio eletrónico, incluindo SMS (serviços de mensagens curtas), EMS (serviços de
mensagens melhoradas) MMS (serviços de mensagem multimédia) e outros tipos de
aplicações similares”. Ou seja, E teria de dar consentimento prévio para ocorrerem estas
comunicações.

Assim a “Phonemarketing Norte, S.A.” cometeu um ato ilícito, incorrendo em


responsabilidade civil extraobrigacional objetiva, nos termos do art. 500º do CC, pelo
qual o comitente responde pelos atos dos comissários. Ou seja, a empresa responde pelos
atos dos funcionários, independentemente de culpa. Sobre o funcionário, também recai a
obrigação de indemnizar, pelo 483º, por responsabilidade civil subjetiva (com culpa).

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Caso prático nº 26

Na sua edição de 3/5/09, uma revista espanhola publicou um escrito onde se podia ler:
“Os irmãos A e B passam droga através da fronteira portuguesa. Uma vez foram
surpreendidos a assaltar uma joalharia. Um deles fugiu para o Brasil e, no seu regresso,
a polícia deteve-o num hotel de Vigo, mas o outro, B, nunca o apanharam e vive agora
em Portugal, onde continua o seu tráfico ilegal, em estreito contacto com o fadista
português C, que é ele mesmo um capo da droga em Portugal”. Em 16/5/09, D, agência
noticiosa, enviou às redacções dos principais orgãos de comunicação social
portugueses um telegrama de cujo teor constava:
“A revista espanhola cita ainda outros portugueses implicados na rede de tráfico de
droga, entre eles, o fadista C, o qual é classificado pela fonte citada pela revista como
um dos cabecilhas da droga em Portugal”.
Assim, alguns orgãos de comunicação social portugueses deram grande relevo à
matéria constante do telegrama, com títulos de primeira página e caixa alta ou com
transcrições repetidas.
C, de cujo certificado de registo criminal nada consta, viu cancelados vários
espectáculos, após a divulgação do telegrama, e deixou de auferir uma quantia não
inferior a esc. 100.400 euros.
C sente-se lesado e pretende reagir. Quid iuris?
(Cfr. Acórdão da Relação de Lisboa (secção cível) de 22.01.1998, CJ, I, 1998, pp. 83-
87).

Resposta: Estão em causa direitos de personalidade, tendo sido potencialmente violados


os direitos à honra propriamente dita e à verdade pessoal. O direito à verdade pessoal é
violado quando são divulgados factos falsos, já o direito à honra pode ser violado tanto
pela divulgação de factos falsos como verdadeiros. No entanto, caso haja interesse
público ou justa causa na divulgação de factos verdadeiros, não há lugar à violação do
direito à honra, de acordo com o professor Mota Pinto.

Assim, estes órgãos de comunicação social incorrem em responsabilidade civil


extracontratual, nos termos do artigo 500º. Já o jornalista em concreto responde pelos
termos gerais do 483º.
Há danos patrimoniais na modalidade de lucros cessantes, pois C deixou de auferir uma
quantia e danos morais, por ter sido ofendida a sua honra.
Nos termos do artigo 70º/2, o jornal poderia ser condenado a desmentir estas notícias e a
pedir publicamente desculpas a C.

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DIREITO CIVIL – PRÁTICA
Aula de 16/12

Nesta aula resolvemos alguns casos que a professora considerou mais importantes.

Caso prático nº 27

A, doente renal crónico, contratou com o seu irmão B – que se encontrava em má


situação económica – a cedência de um rim deste para lhe ser transplantado,
entregando-lhe, como contrapartida, a quantia de 50.000 euros. Na véspera do dia
marcado para a operação, B, após ter recebido o dinheiro e gasto parte dele,
arrependeu-se e comunicou a A que não consentiria na extracção.
Em face da atitude do seu irmão, A pretende agir judicialmente contra este,
requerendo, nomeadamente, a condenação de B numa sanção pecuniária compulsória
com vista a obrigá-lo a cumprir o contrato.
Quid juris?

Resposta: Este contrato não é válido porque o contrato não pode ter como objeto um
órgão. Por força da lei 12/93, pelo art. 5º, há um princípio geral de gratuitidade, sendo
proibida a sua comercialização. Também o artigo 280º do CC diz que “é nulo o negócio
jurídico cujo objeto seja física ou legalmente impossível, contrário à lei ou
indeterminável”. Assim, o negócio seria nulo. Este artigo é uma limitação ao princípio da
liberdade contratual.
Ao vender o rim estaria a limitar direitos de personalidade, o que não poderá fazer por
via contratual.

Da parte de B, o consentimento prestado teria de ser autorizante, ou seja, atribuiria um


poder fático de agressão. Ao celebrar um contrato, prestou um consentimento vinculante.
Pelo art. 81º/2, a limitação voluntária, quando legal, é sempre revogável, apesar de poder
ter de indemnizar os prejuízos causados. Esta que lei privilegia a transição de órgãos post
mortem e a transição entre vivos, pelo art. 6º, é subsidiária. O consentimento tem de ser
livre, esclarecido, informado e inequívoco. A circunstância de B se encontrar em grave
situação económica poderia levantar o problema de o consentimento ser livre o não.

B veria limitados os direitos à integridade física e, por via contratual, à liberdade negativa
de não ceder o rim.

Relativamente a A, o consentimento prestado seria tolerante, pois resultaria num


benefício.

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Em suma, este contrato é nulo. Mesmo que tivesse sido válido, seria livremente revogável,
nos termos do artigo 81º/2.

Caso prático nº 29

Há alguns anos foi introduzido na televisão portuguesa um concurso com grandes


audiências no qual os vários concorrentes se obrigam a viver numa mesma casa, sem
qualquer contacto com o mundo exterior e durante um determinado período de tempo,
sendo todas as suas atividades filmadas e transmitidas, quer através da televisão, quer
através da Internet, durante as 24 horas do dia.
Dos contratos assinados pelos referidos concorrentes e pela cadeia televisiva
promotora constavam, nomeadamente, as seguintes cláusulas:
- “O concorrente dá a sua expressa, incondicional e irrevogável autorização para a
transmissão e quaisquer outras publicações ou reproduções [...] de todos os seus
registos [da estadia na casa];
- O concorrente tem conhecimento e autoriza que detalhes pessoais e outras
informações adicionais, incluindo imagens em directo da casa, estejam à
disponibilidade do público 24 horas por dia na Internet”.
Comente as cláusulas transcritas à luz do Direito Civil vigente.

Resposta: Há uma limitação de um direito de personalidade por via contratual e o


consentimento prestado pelos concorrentes é vinculante.
Estão em causa o direito à imagem e à palavra, que são a projeção física do direito à
inviolabilidade pessoal. Estão também em causa o direito à proteção de dados e da reserva
da intimidade da vida privada. Também o direito à liberdade de movimentos é limitado,
tal como o direito à honra, a projeção moral da inviolabilidade pessoal, neste caso estando
em causa a honra propriamente dita e o decoro.

Os direitos de personalidade são irrenunciáveis e alguns são indisponíveis (como é o caso


da honra propriamente dita).

Por força do artigo 81º/2, a primeira cláusula é nula, pois a limitação voluntária é sempre
revogável. No âmbito contratual em particular, este contrato é um contrato de adesão
celebrado com recurso a cláusulas contratuais gerais, pelo que o consentimento prestado
ainda se torna mais limitado do ponto de vista da liberdade de prestação de consentimento.
Se ele retirar o consentimento, incorre em responsabilidade civil obrigacional, pois estaria
a incumprir o contrato.
O Prof. Oliveira Ascensão entende que deve ser feita uma restrição da livre
revogabilidade no caso de ter sido celebrado um contrato, entendendo que esta só deve
existir se se fundar em aspetos essenciais à pessoa.

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Além da cláusula ser nula, pode ser levantada uma questão ao contrato em si, que se
prende com o facto de os direitos de personalidade serem irrenunciáveis e, neste caso, por
termos uma limitação tão violenta, por ser transmitido 24 horas por dia, poderíamos
entender que é uma renúncia a alguns direitos de personalidade, nomeadamente à reserva
da vida privada. Assim, o contrato seria ilícito.
Se entendermos que não há renúncia, mas apenas limitação, o contrato seria válido e o
consentimento também, mas a cláusula da irrevogabilidade seria nula.

Caso prático nº 32

A, advogada, frequentadora das chamadas “redes sociais”, viu recentemente


publicadas on-line várias fotografias de uma sua festa de aniversário, em sua casa,
onde aparecia juntamente com vários convidados em diferentes espaços interiores e
exteriores. As fotografias foram divulgadas por um seu convidado que acrescentava
vários comentários jocosos relativos à “animação” da aniversariante, às suas
“amizades masculinas” e às quantidades de álcool ingeridas pelos participantes nessa
noite. Em consequência desta divulgação, A recebeu inúmeros comentários na sua
página pessoal, bem como várias mensagens electrónicas que aludiam ao seu
comportamento menos próprio, inclusive de clientes, e foi advertida pela sociedade de
advogados para quem trabalhava de que, futuramente, estas atitudes seriam
inadmissíveis.
Que direitos assistem a A?

Resposta: Está aqui em causa uma violação de direitos de personalidade, nomeadamente


à reserva da vida privada. Além deste, estão também postos em causa o direito à honra
(em particular o decoro, a honra propriamente dito e a honra deontológica), à imagem e
aos dados pessoais.

Esta violação de direitos de personalidade não foi consentida por A, pelo que é ilícita.
Assim, tem por consequência a responsabilidade civil extracontratual. Temos um facto
ilícito, culposo e danoso e há um nexo de causalidade entre o facto e o dano.

Se existisse consentimento de A, seria um consentimento autorizante, pois haveria a


atribuição de um poder fáctico de agressão.

Pelo artigo 79º/2, “não é necessário o consentimento da pessoa retratada quando assim o
justifiquem a sua notoriedade, o cargo que desempenhe, exigências de polícia ou de
justiça, finalidades científicas, didáticas ou culturais, ou quando a reprodução da imagem
vier enquadrada na de lugares públicos, ou na de factos de interesse público ou que hajam
decorrido publicamente”. Não se verificando estas condições, seria necessário o
consentimento de A.

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Caso prático nº 40

C, com 17 anos de idade, comprou uma mota Harley Davidson por €40.000, gastando
todo o dinheiro que a sua avó lhe havia deixado em testamento, e escondeu-a na
garagem de um amigo até ao dia em que completou 18 anos, por saber que os seus pais
jamais concordariam com a compra. No dia 3 de junho de 2018, dia do seu aniversário,
C apareceu em casa com a sua mota nova, informando os pais tratar-se de uma prenda
que decidiu oferecer antecipadamente a si próprio. Tendo os pais ameaçado retirar-lhe
a mesada se este não devolvesse a mota, C pretende reagir contra o negócio. Poderá a
sua pretensão ser atendida?

Resposta: Trata-se de um contrato de compra e venda de um bem móvel, nos termos do


art. 874º.
Este negócio não é válido, porque C era menor. Pelo art. 130º, até aos 18 anos de idade,
os menores não têm capacidade de exercício, estando impossibilitados de dispor dos seus
bens. Como C, com 17 anos, não tinha capacidade negocial, não poderia celebrar este
negócio, sendo incapaz.
Apesar disto, há exceções à incapacidade dos menores, pelo art. 127º, nomeadamente
“atos de administração ou disposição de bens que o maior de dezasseis anos haja
adquirido por seu trabalho”; “os negócios jurídicos próprios da vida corrente do menor
que, estando ao alcance da sua capacidade natural, só impliquem despesas, ou disposições
de bens, de pequena importância” e os “negócios jurídicos relativos à profissão, arte ou
ofício que o menor tenha sido autorizado a exercer, ou os praticados no exercício dessa
profissão, arte ou ofício”. Não estando nenhuma distas situações em causa, o negócio é
anulável, pelo artigo 125º.

C pode reagir no prazo de 1 ano a contar da sua maioridade ou emancipação, pelo artigo
125º/b), ou seja, até 03/06/19.

Pelo art. 126º, “não tem o direito de invocar a anulabilidade o menor que para praticar o
ato tenha usado de dolo com o fim de se fazer passar por maior ou emancipado”. Não nos
é informado se C se fez passar por maior, pelo que não sabemos se este artigo pode ser
invocado pelo vendedor.

Miguel Louro 4
Faculdade de Direito da Universidade do Porto 2021/2022

Caso prático nº 42

C, nascido em 1 de fevereiro de 2001, celebrou com D um contrato-promessa pelo


qual se obrigou a vender uma quinta que havia herdado dos seus avós. O contrato foi
concluído em novembro de 2017, com completo desconhecimento de seu pai, E, e nele
ficou previsto que a escritura de compra e venda teria lugar em simultâneo com o
pagamento do preço, uma semana após C atingir a maioridade. E, pai de C, só tomou
conhecimento do contrato-promessa aquando do casamento do seu filho com F, em
abril de 2018.
Entretanto C morreu, vítima de um acidente de viação em junho de 2019, um mês
depois de D o ter demandado judicialmente exigindo o pagamento de uma
indemnização pelo incumprimento do contrato.
Poderão E e F, herdeiros de C, defender-se no processo invocando a invalidade do
contrato celebrado por C?

Resposta: O contrato-promessa de compra e venda é anulável, porque C o celebrou


quando era menor, logo, incapaz, não se preenchendo nenhuma exceção do 127º.
Nos termos do artigo 132º, o menor é emancipado pelo casamento, ou seja, em abril de
2018.
Nos termos do 125º/c), “a requerimento de qualquer herdeiro do menor, no prazo de um
ano a contar da morte deste, ocorrida antes de expirar o prazo referido na alínea anterior”.
No entanto, a emancipação foi em abril de 2018, pelo que se ele morresse até abril de
2019 esta alínea poderia ser aplicada. Ele morreu em junho, pelo que não se aplica.

Neste caso, E e F poderão defender-se invocando a anulabilidade, porque o artigo 287º/2


estabelece que enquanto o negócio não estiver cumprido, pode a anulabilidade ser
arguida, sem dependência de prazo, tanto por via de ação como por via de exceção. Assim,
pode ser arguida sem dependência de prazo, neste caso por via de exceção.

Caso prático nº 43

A, nascida a 2/12/2001, espera o nascimento do seu primeiro filho. Assim, em


adiantado estado de gravidez, celebrou verbalmente com B, em 16/05/2019, um
contrato de mútuo no montante de 3.000€; em 18/05/2019, adquiriu uma mobília de
quarto de criança, no valor de 500€, bem como dois pacotes de fraldas, no valor de
30€.
C, mãe de A, tomou conhecimento, no dia 01/06/2019, dos contratos celebrados por
A e pretende invalidá-los. Quid juris?

Miguel Louro 5
Faculdade de Direito da Universidade do Porto 2021/2022

Resposta: Foram aqui celebrados três contratos:


- Um contrato de mútuo: empréstimo de uma coisa fungível, nos termos
do art. 1142º;
- Um contrato de compra e venda de uma mobília;
- Um contrato de compra e venda de fraldas.

Em relação às fraldas, pelo art. 127º/b), “os negócios jurídicos próprios da vida corrente
do menor que, estando ao alcance da sua capacidade natural, só impliquem despesas, ou
disposições de bens, de pequena importância.” Assim, o contrato é válido.
Quanto à mobília, poderá caber igualmente na alínea b). É um ato próprio da vida corrente
de A, que está grávida. Estando prestes a celebrar 18 anos, está ao alcance da sua
capacidade natural.
Quanto ao contrato de mútuo, este é inválido, por não respeitar a forma legal do art. 1143º
(pela qual seria necessário que o documento fosse assinado pelo notário). Como não
respeita a forma legal, é nulo pelos termos do art. 220º.
Logo, a mãe não poderia invalidar as duas compras e vendas porque os negócios são
válidos, nos termos do art. 127º. Quanto ao contrato de mútuo, pelo artigo 286º, a nulidade
é invocável a todo o tempo por qualquer interessado e poderia ser invocada oficiosamente
pelo tribunal.

Caso prático nº 44

Em Janeiro de 2009, A celebrou com B um contrato pelo qual este último lhe vendeu
500 acções ao portador do Banco X. B, no entanto, era alcoólico, estando pendente
uma acção com vista ao seu acompanhamento.
Mais tarde, A tem conhecimento da sentença que decretou o acompanhamento de B e
pretende requerer a anulação do contrato celebrado. De facto, em virtude da recente
crise que afectou a Bolsa, o preço das acções desceu vertiginosamente logo após a
transacção 16 efectuada, causando graves prejuízos a A. Será A bem sucedido na sua
pretensão?

Resposta: Está pendente, à data de celebração do negócio, uma ação com vista ao
acompanhamento. Nos termos do art. 138º, pode ser suscetível de acompanhamento “o
maior impossibilitado, por razões de saúde, deficiência, ou pelo seu comportamento, de
exercer, plena, pessoal e conscientemente, os seus direitos ou de, nos mesmos termos,
cumprir os seus deveres”.
Quem pretende anular o negócio é A. Considerando o artigo 154º/11/b), que diz que “os
atos praticados pelo maior acompanhado que não observem as medidas de
acompanhamento decretadas ou a decretar são anuláveis quando posteriores ao registo do
acompanhamento”, podemos dizer que A não será bem-sucedido na sua pretensão, já que
B celebra o negócio antes de ser registado o acompanhamento.

Miguel Louro 6

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