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AS TRÊS MISSÕES DE MARIA KNEBEL1

por Alice K e Zebba Dal Farra

Como resistir neste mundo de loucos?


Maria: aperfeiçoando-se.
Onde você pega forças?
Eu me aperfeiçoo.2

Em um ensaio de 1933, para iniciar uma reflexão sobre experiência e transmissão,


Walter Benjamin narra a seguinte história:

Em nossos livros de leitura havia a parábola de um velho que no momento da


morte revela a seus filhos a existência de um tesouro enterrado em seus vinhedos.
Os filhos cavam, mas não descobrem qualquer vestígio do tesouro. Com a
chegada do outono, as vinhas produzem mais que qualquer outra na região. Só
então compreenderam que o pai lhes havia transmitido uma certa experiência: a
felicidade não está no ouro, mas no trabalho.3

Se o aprendiz é o herdeiro da experiência do mestre, a descoberta do valor deste tesouro


deve se dar cedo na relação entre eles – o aprendiz tem que afinar sua escuta e sua
receptividade, e direcionar as antenas para o mestre. O mestre sabe e ensina que a
transmissão e a educação só têm sentido porque somos mortais e porque somos natais:
porque o novo nasce. O mestre escolhe os aprendizes a quem transmitirá o seu legado.

Quando buscamos desenhar a figura de Maria Knebel, pelas vozes de dois de seus
ilustres aprendizes, os diretores Anatoli Vassiliev4 e Adolf Shapiro5, vemos emergir uma
artista delicadamente obstinada e dedicada a transmitir o legado de experiências teatrais
de três grandes mestres, com a perseverança de uma missionária: Mikhail Tchekov,
Constantin Stanislavski e Vladimir Némirovitch-Dantchenko.

Maria nasce em 1898, ano da criação do Teatro de Arte de Moscou, gestada no célebre
encontro de Stanislavski, então com trinta e quatro anos, e Dantchenko, aos quarenta.
Seu pai, Joseph, galego, filho de família judia, numerosa e miserável, sai de casa nos
anos sessenta, em busca de fortuna em Viena. Estuda na Faculdade de Medicina e no
Instituto do Comércio. Ali, no último dia de aula, joga com seus colegas o país em que
cada um vai trabalhar. O sorteio declara: a Rússia. Ele parte para Moscou e, apaixonado
por pintura, prazer cultivado nas galerias e museus vienenses, propõe a Tritiakov, um rico
marchand e industrial têxtil, a edição de livros de arte. Esta é a origem de seu bem
sucedido negócio – a “Casa de Edição J. Knebel” - e que, certamente, lhe permitirá
introduzir-se no círculo da alta burguesia moscovita, que cultiva os pintores, os museus, a
ópera. Na direção da sociedade que favorece o desenvolvimento da música nacional, está
o industrial Constantin Alekseev, conhecido nos círculos amadores como Stanislavski.
Este mundo é cenário longínquo do encontro de Maria com Stanislavski, no Teatro de Arte
de Moscou, em 1921, quando atua no papel de Petra, a filha do Doutor Stockman - de Um
inimigo do povo, de Ibsen - interpretado por Stanislavski. Nesta época, depois de vê-la em
cena em Um sonho do tio, de Dostoiévski, Meyerhold veio às coxias: “O quê você está
fazendo no Teatro de Arte? Quando você vai ter a chance de fazer aqui um ótimo papel?
1 Material de estudo de 'Atuação I', ministrada por Alice K, Helena Bastos e Zebba Dal Farra. CAC, 2011.
2 SHAPIRO, Adolf. Maria Knebel, une écoute lumineuse. In KNEBEL, 2006: 21.
3 BENJAMIN, 1985.
4 VASSILIEV, Anatoli. Le début. In KNEBEL, 2006: 5-7.
5 SHAPIRO, Adolf. Maria Knebel, une écoute lumineuse. In KNEBEL, 2006: 9-36.
Venha pro meu teatro. Aqui, você não tem futuro.” Maria não levou a proposta
em consideração.

Stanislavski dizia que o estudo de suas propostas teatrais deveria começar pela
observação do ator Mikhail Tchekov, que exprimia toda a substância de seu método,
quando atuava. Sobrinho do dramaturgo, Mikhail entra aos dezesseis anos no Teatre de
Souvorine, em São Petersburgo, com dezenove torna-se ator do Teatro Mali – o teatro
dramático mais antigo de Moscou – e, aos vinte, ingressa no Teatro de Arte. Em 1928,
emigra para a Alemanha e, em 38, para os Estados Unidos. No ano de 1917, é o primeiro
mestre de Maria, então com dezenove anos. No dizer de Shapiro, para Tchekhov,
interessado menos pelo resultado que pela apreensão dos procedimentos da técnica
interior ou exterior, o ator deveria se aperfeiçoar ao ponto que tais procedimentos se
tornassem novas possibilidades de sua alma. A fuga do artista impõe a Maria Knebel sua
primeira missão: publicar os escritos teatrais de Mikhail Tchekhov. Depois de muita
batalha, ela consegue presenciar o lançamento do primeiro volume, mas morre antes da
publicação do segundo.

Em 1936, talvez pelo sentimento da proximidade da morte e a consequente urgência de


transmitir suas descobertas recentes, Stanislavski pede a Maria para ensinar em seu
Studio. Como o pai da parábola, seu legado é um tesouro que floresce em um campo
onde “se ensina aprendendo”: é preciso descobri-lo e, muitas vezes, no dia-a-dia do
trabalho, adivinhá-lo, pois adivinhar é apostar na descoberta. O tesouro, uma série de
indagações e estudos práticos em torno dos problemas do “verbo artístico” e da “ação
verbal”, compreende uma nova forma de criação do espetáculo, fundada sobre a análise
do texto em ação. Maria vai dedicar os anos seguintes à interpretação, ao
aprofundamento e à transmissão desta descoberta. Esta a sua segunda missão.

São tempos difíceis. Em 1937, a morte de dois diretores impõe ao Studio Ermolova, de
Moscou, sua fusão com o Teatro do ator Nicolas Khmelev, que, como antigo colega do
Teatro de Arte, convida Maria para criar um novo teatro. Trata-se também de um studio -
em russo studija –, uma estrutura teatral relativamente livre, entre o laboratório e o atelier,
que permite a reunião de um grupo em torno de um ator ou de um encenador jovens, com
o objetivo de pedagogia e de experimentação. Stanislavski define assim: nem teatro
pronto para funcionar, nem escola para iniciantes, mas laboratório de experiências para
artistas mais ou menos formados. Em um studio, onde não temos medo de errar, afirma
Shapiro, é que Maria Knebel poderá verificar o tesouro na prática, o Método da Análise
pela Ação, para o qual “é indispensável voltar os olhos do homem para seu próprio
interior, de despertar a força elementar de improvisação que dorme em cada ator.”6
Knebel tinha o vírus do jogo – que passava por contágio a seus alunos.

Em 1949, Knebel é contratada pela faculdade de encenação do GITIS, Instituto de Estado


de Arte Teatral, uma das principais escolas teatrais da União Soviética, e dirige o Teatro
Central para Crianças, pertencente à periferia do “império teatral”. Para Vassiliev, a
chegada de Knebel no Teatro Central para Crianças iniciou o degelo do teatro soviético.

Terceira missão de Maria Knebel, a mais complexa: unir os ensinamentos de Stanislavski


à herança teórica do outro fundador do Teatro de Arte, Némirovitch-Dantchenko. Não
obstante sua complexidade, Maria se dedica plenamente a desembaraçá-la, também por
ser uma das únicas atrizes do Teatro de Arte a se relacionar com os dois diretores, há um
bom tempo em “inimizade amigável”. Revela-se aqui uma grande qualidade de Maria

6 Id., ibid.: 22-23.


Knebel, “condição de seu crescimento na pedagogia: a arte de saber ler os indivíduos.”7
Suas pesquisas e experiências – pois também trazia, na prática de seus ensaios,
conceitos de Dantchenko, como “segundo plano” e “monólogo interior” – resultaram no
livro “L'École de mise em scène de Némerovitch-Dantchenko”, a melhor obra já escrita
sobre o importante diretor teatral, segundo Shapiro.

O amor desinteressado de Maria pelo teatro faz lembrar uma outra Maria, Zambrano,
filósofa malaguenha, que escreveu, no início de “Filosofía y poesía”: “não se passa do
possível ao real, mas do impossível ao verdadeiro” 8. O impossível torna-se verdadeiro só
por um ato de fé poética, da fé no maravilhoso, de que fala Maria Knebel: “o segredo
verdadeiro da fé no maravilhoso consiste em encontrar impulsos psicológicos que levem o
espectador a acreditar na possibilidade mesmo, e bem mais, na necessidade do milagre a
se realizar.”9

7 Id., ibid.: 17.


8 ZAMBRANO, 1996: 7.
9 Id., ibid.: 29.
Maria Knebel como Carlota, de O Jardim das Cerejeiras, de Tchekhov
Teatro de Arte de Moscou

Maria Knebel no GITIS


Fontes

BENJAMIN, Walter. Experiência e pobreza. In: Magia e técnica, arte e política. São Paulo:
Brasiliense, 1985.

KNEBEL, Maria. L'analyse-action. Paris: Actes Sud, 2006.

ZAMBRANO, María. Filosofía y poesía. México: Fondo de Cultura Económica, 1996, p.7.

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