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Quando buscamos desenhar a figura de Maria Knebel, pelas vozes de dois de seus
ilustres aprendizes, os diretores Anatoli Vassiliev4 e Adolf Shapiro5, vemos emergir uma
artista delicadamente obstinada e dedicada a transmitir o legado de experiências teatrais
de três grandes mestres, com a perseverança de uma missionária: Mikhail Tchekov,
Constantin Stanislavski e Vladimir Némirovitch-Dantchenko.
Maria nasce em 1898, ano da criação do Teatro de Arte de Moscou, gestada no célebre
encontro de Stanislavski, então com trinta e quatro anos, e Dantchenko, aos quarenta.
Seu pai, Joseph, galego, filho de família judia, numerosa e miserável, sai de casa nos
anos sessenta, em busca de fortuna em Viena. Estuda na Faculdade de Medicina e no
Instituto do Comércio. Ali, no último dia de aula, joga com seus colegas o país em que
cada um vai trabalhar. O sorteio declara: a Rússia. Ele parte para Moscou e, apaixonado
por pintura, prazer cultivado nas galerias e museus vienenses, propõe a Tritiakov, um rico
marchand e industrial têxtil, a edição de livros de arte. Esta é a origem de seu bem
sucedido negócio – a “Casa de Edição J. Knebel” - e que, certamente, lhe permitirá
introduzir-se no círculo da alta burguesia moscovita, que cultiva os pintores, os museus, a
ópera. Na direção da sociedade que favorece o desenvolvimento da música nacional, está
o industrial Constantin Alekseev, conhecido nos círculos amadores como Stanislavski.
Este mundo é cenário longínquo do encontro de Maria com Stanislavski, no Teatro de Arte
de Moscou, em 1921, quando atua no papel de Petra, a filha do Doutor Stockman - de Um
inimigo do povo, de Ibsen - interpretado por Stanislavski. Nesta época, depois de vê-la em
cena em Um sonho do tio, de Dostoiévski, Meyerhold veio às coxias: “O quê você está
fazendo no Teatro de Arte? Quando você vai ter a chance de fazer aqui um ótimo papel?
1 Material de estudo de 'Atuação I', ministrada por Alice K, Helena Bastos e Zebba Dal Farra. CAC, 2011.
2 SHAPIRO, Adolf. Maria Knebel, une écoute lumineuse. In KNEBEL, 2006: 21.
3 BENJAMIN, 1985.
4 VASSILIEV, Anatoli. Le début. In KNEBEL, 2006: 5-7.
5 SHAPIRO, Adolf. Maria Knebel, une écoute lumineuse. In KNEBEL, 2006: 9-36.
Venha pro meu teatro. Aqui, você não tem futuro.” Maria não levou a proposta
em consideração.
Stanislavski dizia que o estudo de suas propostas teatrais deveria começar pela
observação do ator Mikhail Tchekov, que exprimia toda a substância de seu método,
quando atuava. Sobrinho do dramaturgo, Mikhail entra aos dezesseis anos no Teatre de
Souvorine, em São Petersburgo, com dezenove torna-se ator do Teatro Mali – o teatro
dramático mais antigo de Moscou – e, aos vinte, ingressa no Teatro de Arte. Em 1928,
emigra para a Alemanha e, em 38, para os Estados Unidos. No ano de 1917, é o primeiro
mestre de Maria, então com dezenove anos. No dizer de Shapiro, para Tchekhov,
interessado menos pelo resultado que pela apreensão dos procedimentos da técnica
interior ou exterior, o ator deveria se aperfeiçoar ao ponto que tais procedimentos se
tornassem novas possibilidades de sua alma. A fuga do artista impõe a Maria Knebel sua
primeira missão: publicar os escritos teatrais de Mikhail Tchekhov. Depois de muita
batalha, ela consegue presenciar o lançamento do primeiro volume, mas morre antes da
publicação do segundo.
São tempos difíceis. Em 1937, a morte de dois diretores impõe ao Studio Ermolova, de
Moscou, sua fusão com o Teatro do ator Nicolas Khmelev, que, como antigo colega do
Teatro de Arte, convida Maria para criar um novo teatro. Trata-se também de um studio -
em russo studija –, uma estrutura teatral relativamente livre, entre o laboratório e o atelier,
que permite a reunião de um grupo em torno de um ator ou de um encenador jovens, com
o objetivo de pedagogia e de experimentação. Stanislavski define assim: nem teatro
pronto para funcionar, nem escola para iniciantes, mas laboratório de experiências para
artistas mais ou menos formados. Em um studio, onde não temos medo de errar, afirma
Shapiro, é que Maria Knebel poderá verificar o tesouro na prática, o Método da Análise
pela Ação, para o qual “é indispensável voltar os olhos do homem para seu próprio
interior, de despertar a força elementar de improvisação que dorme em cada ator.”6
Knebel tinha o vírus do jogo – que passava por contágio a seus alunos.
O amor desinteressado de Maria pelo teatro faz lembrar uma outra Maria, Zambrano,
filósofa malaguenha, que escreveu, no início de “Filosofía y poesía”: “não se passa do
possível ao real, mas do impossível ao verdadeiro” 8. O impossível torna-se verdadeiro só
por um ato de fé poética, da fé no maravilhoso, de que fala Maria Knebel: “o segredo
verdadeiro da fé no maravilhoso consiste em encontrar impulsos psicológicos que levem o
espectador a acreditar na possibilidade mesmo, e bem mais, na necessidade do milagre a
se realizar.”9
BENJAMIN, Walter. Experiência e pobreza. In: Magia e técnica, arte e política. São Paulo:
Brasiliense, 1985.
ZAMBRANO, María. Filosofía y poesía. México: Fondo de Cultura Económica, 1996, p.7.