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Narrador, Democracia, Capitalismo, Teatro

Prof. Dr. José Batista (Zebba) Dal Farra Martins

Resumo

“A democracia em que vivemos é uma democracia sequestrada,


condicionada, amputada (…) As grandes decisões são tomadas
numa outra esfera. E todos sabemos qual é. As grandes
organizações financeiras internacionais, os FMIs, as Organizações
Mundiais do Comércio, os Bancos Mundiais, (…) nenhum desses
organismos é democrático. Como podemos falar de democracia, se
aqueles que efetivamente governam o mundo não são eleitos
democraticamente pelo povo?” A fala do escritor português José
Saramago denuncia a contradição entre democracia e capitalismo,
já que, no mundo contemporâneo, os sentidos destas palavras
frequentemente se harmonizam em um campo contaminado, como
se o capitalismo se escondesse atrás da democracia. A democracia
é a máscara do capitalismo. Nos processos teatrais, essa tensão
semântica aparece nas relações do narrador e da narração com uma
comunidade de escuta. Impulsionado por essas questões, este
artigo propõe uma breve reflexão sobre o quadrinômio 'narrador,
democracia, capitalismo, teatro', apoiada por duas experiências de
criação teatral e de escuta, desenvolvidas em São Paulo:
Teatrosamba do Caixote (Grupo dos 7, 2002-2006) e Mestre Inácio
(SESC Piracicaba, 2014); e pelos textos O Narrador, de Walter
Benjamin e Elogio à profanação, de Giorgio Agamben.

Abstract

"The democracy we live in is an abducted democracy, conditioned,


amputated (...) Major decisions are taken in another sphere. And we
all know what it is. Large international financial organizations, the
IMF, the World Trade Organizations, the World Banks, (...) none of
these organisms is democratic. How can we talk about democracy, if
those who effectively govern the world are not elected
democratically by the people?" The speech of the Portuguese writer
José Saramago denounced the contradiction between democracy
and capitalism, although, in the contemporary world, the senses of
these words often harmonize in a contaminated field, as if
capitalism hid itself behind democracy. Nowadays, democracy is the
mask of capitalism. In the theatrical process, this semantic stress
appears in the relations of the narrator and the narration with a
listening community. Driven by these issues, this paper proposes a
brief reflection on the polynomial 'narrator, democracy, capitalism,
theater', through the presentation of two experiences on theatrical
creation and listening, developed in São Paulo: Teatrosamba do
Caixote (Grupo dos 7, 2002-2006) and Mestre Inácio (SESC
Piracicaba, 2014); and supported by the texts The Storyteller, by
Walter Benjamin, and In Praise of Profanation, by Giorgio Agamben.

Democracia, Capitalismo

A democracia em que vivemos é uma democracia


sequestrada, condicionada, amputada (…) As grandes
decisões são tomadas numa outra esfera. E todos sabemos
qual é. As grandes organizações financeiras internacionais,
os FMIs, as Organizações Mundiais do Comércio, os Bancos
Mundiais, (…) nenhum desses organismos é democrático.
Como podemos falar de democracia, se aqueles que
efetivamente governam o mundo não são eleitos
democraticamente pelo povo?

A fala do escritor português José Saramago denuncia a contradição


entre democracia e capitalismo, já que, no mundo contemporâneo,
os sentidos destas palavras frequentemente se harmonizam em um
campo contaminado, como se o capitalismo se escondesse atrás da
democracia. A democracia é a máscara do capitalismo.

Não obstante a distância entre democracia e capitalismo, apontada


por Saramago, diariamente somos bombardeados por frases do tipo
'desrespeito à democracia', 'lutamos por liberdade e democracia',
como se essa palavra, democracia, que adota a igualdade como seu
primeiro lema, encapsulasse o capitalismo, que adota a
desigualdade pela exploração. A comunicação interoceânica a um
clique e a participação no banquete diário da informação nos dão a
sensação de posse e de liberdade para opinar. Porém, basta nos
atentarmos para a borra amarga que lateja no fundo de nossa
língua, para descobrirmos que a comida é sempre a mesma e
requentada e o banquete não passa de fast food. Basta nos
colocarmos como um estrangeiro observador de nosso próprio fluxo
verbal, para percebermos que dizemos palavras flutuantes,
desenraizadas, esmigalhadas no terreno plastificado do consumo.
Condenadas e protegidas pelo uso cotidiano e por sua condição de
informação, as palavras driblam o risco da experiência e nem
vivem, nem morrem: vegetam. Permanecem anestesiadas, sem
peso, sem espessura. O perigo da exposição à singularidade da voz
justifica todos os esforços dos especialistas, dos políticos, dos
funcionários, dos jornalistas, narradores contemporâneos, para
esvaziá-la de conotação, de melodia, de ritmo, de ressonância, de
música, de cor, e reduzi-la à condição de portadora de informação, à
sua mínima condição utilitária. No dizer do filósofo espanhol José
Luis Pardo (2004: 53, tradução nossa), desta “língua dos
deslinguados” extirpou-se o seu sabor de boca, pois

Para acessar à linguagem, temos que falar uma língua (a


– ou as – materna/s, ao menos em princípio) e falá-la
desde dentro, com nossa própria voz (manifestando nossas
dores e prazeres com ela) e com nossa própria língua. E isso
faz que as palavras nos deixem um resíduo na ponta da
língua, um sabor de boca (doce ou amargo, bom ou mau), o
que elas nos fazem saber (nos dão a saborear) de nós
mesmos e que ninguém mais do que nós pode saber, porque
ninguém mais pode saboreá-las com nossa língua e nossa
boca, porque a ninguém mais podem soar como a nós nos
soam.

Submetidas à “imagem mecânica e instrumental da linguagem que


nos propõe o grande sistema de mercado” (NOVARINA, 2003: 13),

às palavras convertidas em informação sucede o mesmo


que, segundo Marx, sucede ao dinheiro convertido em
instrumento de troca: não circulam devido ao seu valor
(quantidade de informação ou de noticias que veiculam)
senão que, ao contrário, adquirem valor porque circulam
(seja qual seja a informação de que sejam portadoras).
(PARDO, 2004: 107, tradução nossa).
Não falamos: somos falados. Todos rezamos na missa capitalista de
cada dia, consumimos mercadoria em comunhão, ajoelhados diante
do mercado. O cartão de crédito é a hóstia capitalista que inserimos
na boca da máquina, e aguardamos que um sistema superior
abençoe a transação. Em um notável ensaio de 2005, cujo centro é
um fragmento póstumo de Walter Benjamin, Agamben (2010: 70)
narra:

Segundo Benjamin, o capitalismo não representa apenas,


como em Weber, uma secularização da fé protestante, mas
ele próprio é, essencialmente, um fenômeno religioso, que
se desenvolve de modo parasitário a partir do cristianismo.
Como tal, como religião da modernidade, ele é definido por
três características: 1. é uma religião cultual, talvez a mais
extrema e absoluta que jamais tenha existido. Tudo nela tem
significado unicamente com referência ao cumprimento de
um culto, e não com respeito a um dogma ou a uma ideia. 2.
Esse culto é permanente; é “celebração de um culto sans
trêve et sans merci”. Nesse caso, não é possível distinguir
entre dias de festa e dias de trabalho, mas há um único e
ininterrupto dia de festa, em que o trabalho coincide com a
celebração do culto. 3. O culto capitalista não está voltado
para a redenção ou para a expiação de uma culpa, mas para
a própria culpa.

Eis a democracia a que estamos condenados: a obrigação litúrgica


que nos atinge a todos. Agamben (2010: 73) evidencia a analogia
entre capitalismo e religião, quando confronta o Museu e o Templo.

O Museu ocupa exatamente o espaço e a função em outro


tempo reservados ao Templo como lugar de sacrifício. Aos
fieis do Templo – ou aos peregrinos que percorriam a terra
de Templo em Templo, de santuário em santuário –
correspondem hoje os turistas, que viajam, sem trégua em
um mundo entranhado em Museu. Mas enquanto os fieis e
os peregrinos participavam, no final, de um sacrifício que,
separando a vítima na esfera sagrada, restabelecia as justas
relações entre o divino e o humano, os turistas celebram,
sobre a sua própria pessoa, um ato sacrificial que consiste
na angustiante experiência da destruição de todo possível
uso. (…) Aonde quer que vão, eles encontrarão, multiplicada
e elevada ao extremo, a própria impossibilidade de habitar,
que haviam conhecido nas suas casas e suas cidades, a
própria incapacidade de usar, que haviam experimentado
nos supermercados, nos shopping centers e nos espetáculos
televisivos.

Companheiro milenar da caminhada humana, o narrador, aquele


que ritualizava o mito, não deve escapar do toque sagrado da mão
invisível do mercado.
Narrador, Capitalismo

Em dois ensaios cardinais, Experiência e pobreza e O Narrador,


Benjamin (1987; 2010) atribui a decadência e destruição da
experiência à Grande Guerra de 1914-1918 e seus efeitos nos
corpos e na economia. Sua conclusão profetiza: “A crise econômica
está diante da porta, atrás dela está uma sombra, a próxima
guerra.” Giorgio Agamben (2002: 25, tradução nossa) confronta esta
análise com o cotidiano atual.

Sabemos, não obstante, hoje, que para destruir a


experiência não é preciso uma grande catástrofe: a vida
cotidiana, em uma grande cidade, garante este resultado
perfeitamente, em tempos de paz. Em uma jornada de
trabalho do homem contemporâneo, não há, com efeito,
quase mais nada que possa se traduzir em experiência: nem
a leitura do jornal, tão rico de notícias irremediavelmente
estranhas ao leitor, mesmo que concernentes; nem o tempo
passado nos engarrafamentos ao volante de um automóvel;
nem a travessia dos infernos onde se precipitam as linhas do
metrô; nem o cortejo de manifestantes, barrando
bruscamente toda a rua; nem a bruma de gás lacrimogênio,
que se desfia lentamente entre os imóveis do centro da
cidade; nem ainda as rajadas de armas automáticas que
explodem não se sabe onde; nem a fila de espera que se
alonga diante dos guichês de uma administração; nem a
visita ao supermercado, esta nova terra da fantasia; nem os
eternos instantes passados com desconhecidos, no elevador
ou no ônibus, em muda promiscuidade. O homem moderno
volta para casa à noite consumido por um punhado de
acontecimentos – divertidos ou perturbadores, insólitos ou
ordinários, agradáveis ou atrozes – sem que nenhum deles
se transforme em experiência.

Agamben escreve em meados dos anos 70, mas sua descrição não
só se encaixa plenamente em nossa observação diária: amplificam-
se os supermercados nos shoppings e as brumas nas nuvens de
poluição, multiplicam-se os engarrafamentos e as cachoeiras
humanas nas escadas do metrô. A despeito da leveza sedutora da
virtualidade e da ilusão de domínio do tempo e do espaço, o mundo
pesa. Os velocímetros indicam altos limites de velocidade, mas os
automóveis andam em andamento de carroça. Além disso, a
destruição da experiência parece desenhar-se com mais nitidez com
a progressiva abstração da presença entre vozes e corpos, cujo
contato se faz de forma artificial, na virtualidade mediada por
aparelhos eletrônicos. A esse cenário Benjamin associa o
desaparecimento do narrador e da possibilidade de transmissão da
experiência, pela narração. Benjamin (2010:079) observa:
“Raramente nos damos conta que a relação ingênua do ouvinte com
o narrador está dominada pelo interesse de conservar o narrado.” O
ouvinte que escuta sem preconceito, desarmado e receptivo,
distraidamente atento, assegura a possibilidade de reprodução. Há
um circuito entre o narrador e seu ouvinte, ativado pelas
polaridades do dizer e do escutar, que, conectado a milhares de
outros circuitos, cria uma rede de histórias, feito malha percorrida
por correntes alternadas. Podemos então afirmar que todo narrador
clama por uma comunidade de escuta, e a existência desta
condiciona reciprocamente a daquele. Ações da experiência em
queda progressiva, como observamos em nossa sociedade de
consumo, atingem em cheio e ao mesmo tempo o narrador e sua
comunidade de escuta, que, ao desaparecer, condena o narrador à
busca de novas orelhas, frequentemente estranhas ao coletivo
original: musealiza-o. Comunidade de peregrinos, nichos de
mercado.

Narrador, Teatro

Durante os anos de 2003 e 2004, ininterruptamente, tinha roda do


Teatrosamba do Caixote todo domingo às seis da tarde, no
estação7, espaço do Grupo dos 7 financiado pela Lei do Fomento
Teatral para a Cidade de São Paulo.

Havia no Teatrosamba um hálito pedagógico, um salto para histórias


do Brasil e dos brasileiros, tendo a canção como guia e ponto de
reflexão poética. Guia, pois, desde sua origem, do tempo do samba
coletivo da casa da Tia Ciata ao rap ritmado das periferias, é
possível traçar itinerários históricos da vida nas cidades, pelas
narrativas rapsódicas do samba de breque e do partido alto, pela
exaltação de seus heróis anônimos e proibidos, pelo grito ordenado
da miséria, pela explosão incandescente do rock. O corpo que o
samba toca é também pensamento, cujo fluxo impele a uma
reflexão poética, crítica na medida do mergulho nas canções.
Durante os anos em que ocupou o terreiro do estação7, criou-se
uma comunidade de escuta em solidário elo com os narradores
cantores do grupo, reunidos todo domingo, na hora da Ave-Maria. A
mitologia, narrada e cantada nos murmúrios da memória da canção
brasileira, concretizava-se num rito que sempre começava e
acabava com dois sambas: Bebadosamba, de Paulinho da Viola, em
que a chama do fogo da memória chama uma linhagem de
sambistas ancestrais e, com eles, suas vozes, suas obras, seus
sambas, tecendo-se uma rede narrativa; e Yaô, de Pixinguinha,
composição da década de 20, que marca as tensões efervescentes
da passagem do terreiro para a cidade.

Quando dificuldades financeiras de manutenção obrigaram o Grupo


dos 7 a fechar o estação7, em 2005, apostamos na circulação da
roda de samba em outros espaços da capital. Esse movimento foi
acompanhado de um apuro técnico, construído em ensaios de
público ausente. A despeito desse crescimento e da obtenção de
outro financiamento, a roda perdera o frescor do improviso, o
desfiar da memória tecido dia a dia junto com uma comunidade de
iniciados, a festa. A disposição em arena antes incluía na
circunferência interior artistas e público; agora, dissolvida a
comunidade, os espectadores imperceptivelmente se afastam para
o entorno e, em seguida, para a frente. O Teatrosamba do Caixote
tornara-se frontal. Musealizado no DVD do Grupo dos 7
(2006)Caixotes no Caixote, desapareceu.

Em setembro de 2014, houve uma intervenção rapsódica do Mestre


Inácio, mestre de cavalo marinho da zona da mata pernambucana,
na cidade paulista de Piracicaba. Foi na unidade do Serviço Social do
Comércio (SESC), entidade privada mantida pelos empresários do
setor do comércio de bens e serviços, que não raro ocupa o vazio da
ação pública. Nessa noite, para assistir o relato encantado do
Mestre, havia apenas um casal no auditório. Mestre Inácio desfiava
as narrações já na plateia, antes que o evento se iniciasse, atrasado
que estava à espera de espectadores. Como era bela aquela voz
ruidosa e cheia de sulcos, encarquilhada pela vida, transbordante de
alegria de saber o cavalo marinho, o fluxo de um galope no chão
seco do sertão. Como era bela e antiga aquela voz, distante da
experiência de nossos corpos, habituados ao fumo e o sufoco da
cidade. A voz daquele homem entrava por nossos poros, mas não
éramos sua comunidade de escuta. Havia um vazio na voz
encantada, vazio do vidro que protege a mercadoria de arte num
museu.

Narrador, Democracia, Capitalismo, Teatro

Talvez no teatro a criação se faça pela superação das diferenças e


das igualdades, para o que se empenham todos os envolvidos no
ato artístico. Um processo assim constituído aceita as tensões
éticas, estéticas e políticas, como constituintes da cena, e não como
elementos indesejáveis, destinados à eliminação. O teatro pode
propor uma navegação de risco, em que afetos e ideias em
confronto compõem a substância do mar em que navega o barco.
Talvez enfrente tempestades e acabe numa ilha, como o navio de
Próspero. Talvez enfrente sonoridades e escape de uma ilha, como o
navio de Odisseu. Talvez erre no mar aberto.

Talvez por ser um ato público de presença, o teatro possa ainda


germinar comunidades de escuta e narradores profanos.

Profanação do Improfanável?

Fontes

AGAMBEN, Giorgio. Enfance et histoire. Paris: Éditions Payot, 2002.


__________________. Elogio à Profanação. In: Profanações. São Paulo:
Boitempo Editorial, 2010.

BENJAMIN, Walter. Experiência e pobreza. In: Magia e técnica, arte e


política. São Paulo: Brasiliense, 1987.

________________. El narrador. Santiago de Chile: Ediciones Metales


Pesados, 2010.

GRUPO DOS 7. Caixotes no Caixote. São Paulo: Cooperativa Paulista


de Teatro, 2006. 1 DVD.

NOVARINA, Valère. Diante da palavra. Rio de Janeiro: Viveiros de


Castro Editores, 2003.

PARDO, José Luis. La Intimidad. Valencia: Pre-Textos, 2004.

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