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SEJA O QUE VOCÊ É

OS ENSINAMENTOS DE

SRI RAMANA MAHARSHI

SRI RAMANASRAMAM

TIRUVANAMALAI, INDIA
SEJA O QUE VOCÊ É

ENSINAMENTOS DE SRI RAMANA MAHARSHI

Ramana Maharshi foi um dos mais importantes mestres espirituais que surgiram na Índia
durante a primeira metade do século vinte e continua sendo amplamente admirado. A presente
compilação de conversações entre ele e os numerosos seguidores que chegaram a seu ashram
solicitando direção espiritual, contém a essência de seus ensinamentos.

___________________________________________________

David Godman viveu na Índia durante os últimos quinze anos, estudando e praticando
os ensinamentos de Sri Ramana Maharshi. Foi o bibliotecário do ashram de Sri
Ramana e editor do Mountain Path, uma revista dedicada a difundir os ensinamentos de
Sri Ramana.
INTRODUÇÃO

Em 1896 um escolar de 16 anos abandonou sua família guiado por um impulso


interior e lentamente dirigiu-se a Arunachala, uma montanha sagrada, centro de
peregrinação no sul da Índia. Ao chegar, descartou todas suas posses, inclusive
dinheiro e se entregou a um novo estado de consciência, no qual percebia que sua
natureza real não tinha forma, era consciência imanente. Sua absorção em dito estado
foi tão intensa que ele perdeu a consciência de seu corpo e do mundo. Os insetos
começaram a devorar parte de suas pernas e seu corpo em geral se foi consumindo. Só
estava consciente para comer e tanto seu cabelo como suas unhas cresceram de forma
desmedida. Depois de dois a três anos neste estado, começou um lento processo de
regresso a sua “normalidade física”, que demorou vários anos para completar-se.

A percepção de si mesmo como consciência pura não foi afetada pela transição
ao plano físico e ela continuou incessante e inalterável até o final de sua vida.

Havia “realizado o Ser”, como se denomina no Hinduísmo, ou seja, havia


realizado, mediante experiência própria, que nada existe a parte de uma consciência
indivisível universal, consciência que experimentou em sua forma não manifesta como
um estado de “Ser” ou consciência pura, e em sua forma manifesta como a aparência
do universo.

Normalmente este estado se alcança depois de um longo e árduo período de


práticas espirituais, mas, neste caso, ocorreu espontaneamente, sem esforço prévio ou
desejo algum. Venkataraman, o escolar de 16 anos, estava sozinho num quarto do
primeiro andar da casa do seu tio, em Madurai (perto do extremo sul da Índia), quando,
repentinamente, lhe veio um intenso medo de morrer.

Durante os minutos seguintes passou por uma experiência de morte simulada,


através da qual se tornou consciente pela primeira vez de que sua natureza real era
imperecível e não estava relacionada com o corpo nem com a mente ou a
personalidade. Um grande número de pessoas tem reportado experiências similares,
mas estas, invariavelmente, são temporárias. No caso de Venkataraman, a experiência
foi permanente e irreversível. Desde aquele momento sua consciência de ser uma
pessoa individual deixou de existir e nunca reapareceu nele.
Venkataraman não fez nenhum comentário sobre sua experiência e durante seis
semanas manteve a aparência de um garoto de sua idade. No entanto, sentiu-se cada
vez mais numa postura difícil de assumir. No fim deste período abandonou seu lar e se
dirigiu diretamente a Arunachala. O fato de haver escolhido Arunachala não foi uma
coincidência, dado que ele sempre havia associado o nome Arunachala com Deus e foi
uma grande revelação descobrir que não se tratava de um reino celestial, mas de uma
entidade terrena tangível: os hindus sempre reconheceram a montanha como uma
manifestação de Shiva, um Deus hindu, e muitos anos mais tarde Venkataraman
comentou várias vezes que havia sido à raiz do poder espiritual de Arunachala que ele
havia conseguido a realização do Ser. Seu amor pela montanha foi tão grande que,
desde o dia de sua subida, em 1896, até sua morte, em 1950, ninguém pôde persuadi-lo
de afastar-se mais de duas milhas da montanha.

Depois de alguns anos vivendo nos arredores, sua consciência interna começou
a manifestar-se como uma radiação espiritual externa. Este fenômeno atraiu um
pequeno grupo de seguidores e, apesar de manter um silêncio externo quase completo a
maioria do tempo, começou a dividir seu ensinamento. Um de seus principais
seguidores, obviamente impressionado pela sabedoria e pelo sagrado do jovem, decidiu
chamá-lo Bhagavan Sri Ramana Maharshi: Bhagavan como nome do Senhor ou Deus;
Sri como título honorífico hindu; Ramana como uma contração de Venkataraman e
Maharshi como “grande sábio” em sânscrito. Assim se foi difundindo entre seus
seguidores, até chegar a ser o nome com o qual o mundo o conheceria.

Durante esta parte da sua vida Sri Ramana falava muito pouco e seus
ensinamentos se transmitiram de um modo peculiar. No lugar de oferecer respostas
verbais, constantemente emanava uma força ou poder silencioso que aquietava as
mentes que estavam em harmonia com ele e, algumas vezes, lhes transmitia uma
experiência direta do estado no qual ele mesmo se encontrava. Anos depois se mostrou
mais acessível, ao dar seu ensinamento em forma verbal, mas ainda assim sua instrução
em silêncio estava disponível para aqueles que pudessem entrar em contato e aproveitá-
la. Durante toda sua vida Sri Ramana insistiu em que a corrente silenciosa de poder
continha seu ensinamento na forma mais direta e concentrada. A importância que tinha
para ele se pode comprovar através de frequentes comentários nos quais ele declarava
que seus ensinamentos verbais eram dados só para aqueles que não podiam entender
seu silêncio.

Com o passar dos anos Sri Ramana adquiriu renome e uma comunidade
começou a formar-se ao seu redor. Nos últimos vinte anos de sua vida foi reconhecido
como o homem sagrado de maior popularidade e respeito da Índia. Milhares foram
atraídos pela paz que sentiam ao seu redor, outros pela grande autoridade com a qual
guiava os buscadores espirituais e por suas interpretações de questões religiosas. Em
outros casos, vinham contar-lhe seus problemas.
Qualquer que fosse a razão da visita, quase que invariavelmente, ao entrar em
contato com ele, ficava-se impressionado pela sua simplicidade e humildade. Estava
disposto a ver os visitantes vinte e quatro horas por dia, vivendo e dormindo num salão
coletivo, aberto a todo mundo. Suas únicas posses eram uma vestimenta tradicional
leve, uma vasilha de água e um bastão. Ainda quando era adulado por milhares como a
um ser divino, recusava-se a ser tratado de maneira especial e não aceitava o que não
pudesse ser repartido com todos os membros da comunidade. Participava no trabalho
comunitário e durante muitos anos levantou-se às três da manhã para preparar a comida
dos residentes do ashram. Seu sentido de igualdade foi legendário. Quando os
visitantes chegavam, não importa se eram pessoas famosas, camponeses ou até simples
animais, todos eram tratados com o mesmo respeito e consideração. O modo de
tratamento igualitário se estendia inclusive às árvores locais, no sentido que ele se
assegurava que os devotos não lhes quitassem flores ou frutas e, nos casos que fosse
necessário, insistia que se fizesse de tal forma que as árvores sofressem a menor dor
possível.

Durante o período de 1925 a 1950 a atividade do ashram se concentrou no


pequeno salão comunitário onde Sri Ramana vivia, dormia e atendia aos visitantes.
Passava a maior parte do dia sentado, irradiando seu poder em silêncio e às vezes
respondendo às questões do sem número de visitantes que vinham de todas as partes do
mundo. Quase nunca escreveu suas idéias, fato pelo qual as respostas verbais que deu
neste período (indubitavelmente o melhor documentado) representam a fonte mais
completa de seus ensinamentos.

Os ensinamentos verbais eram emanados com autoridade, partindo de seu


conhecimento direto de que a consciência é a única realidade existente. Focava,
portanto, suas explicações e instruções para convencer seus seguidores de que esse era
seu estado natural e verdadeiro. Somente alguns desses eram capazes de assimilar esta
verdade em sua forma mais pura e elevada, de modo que freqüentemente adaptava seus
ensinamentos e os adequava à compreensão limitada das pessoas que recorriam a ele
para solicitar ajuda. Pelo mencionado, se podem distinguir diferentes níveis de
ensinamento. No nível mais elevado que é possível exprimir em palavras, disse que só
existe a consciência. Se a mensagem era recebida com ceticismo, dizia que a
consciência desta verdade está coberta pelas mesmas idéias auto limitadoras da mente e
se estas idéias eram abandonadas, a realidade da consciência seria revelada. A maioria
de seus seguidores considerava esta explicação um tanto teórica, dado que estavam tão
imersos nas idéias auto limitadoras que, quando Sri Ramana propunha que as
abandonassem, sentiam que a verdade sobre a consciência só lhes seria revelada se
passassem por um longo período de práticas espirituais. Para satisfazer a este grupo, Sri
Ramana recomendou o novo método de voltar a atenção a si mesmo e o chamou
“indagação do eu”. Recomendou dita técnica com tanta freqüência e tão vigorosamente
que muitas pessoas a consideram como a parte mais importante de seus ensinamentos.
Ainda assim muitas pessoas não se satisfaziam e formulavam perguntas sobre
outros métodos ou tratavam de canalizar a conversa para discussões filosóficas. Com
este último grupo Sri Ramana abandonava momentaneamente seu ponto de vista
absoluto e dava conselhos apropriados em qualquer nível que fosse solicitado. Se, em
algumas ocasiões, parecia aceitar ou aprovava muitos dos conceitos errôneos que os
visitantes tinham sobre si mesmos, o fazia somente para salientar algum aspecto do seu
ensinamento que pudesse ajudá-los a compreender com maior clareza as idéias
corretas.

Inevitavelmente a variedade de seus ensinamentos, para satisfazer as


necessidades de diferentes pessoas, levou a muitas contradições. Num caso, por
exemplo, dizia a uma pessoa que o ser individual não existe e para outra pessoa dava
uma descrição detalhada da forma pela qual o ser individual funciona, acumula carma e
reencarna. Para um observador é possível dizer que ambos os pontos de vista se opõem
enquanto que para outros podem ser válidos desde distintos ângulos. Mas o primeiro
pronunciamento tem claramente maior validade quando se compara com os pontos de
vista absolutos da experiência de Sri Ramana. Dito pronunciamento, que em resumo
nos diz que só existe a consciência, é a única medida com a qual podemos realmente
interpretar a verdade relativa de seus muito diversos e contraditórios comentários. Em
qualquer grau que seus outros comentários se desviem do fato de que só a consciência
existe, pode-se assumir que são um afastamento da verdade. Tendo isto em conta, o
conteúdo deste livro foi organizado de modo que seus ensinamentos mais elevados
ficassem no começo e os de menos importância no final. A única exceção é o capítulo
que fala sobre seu ensinamento no silêncio, o qual deveria estar situado no princípio,
mas foi mais conveniente, por várias razões, incluí-lo na metade do livro.

Esta estrutura foi escolhida por dois motivos fundamentais: primeiro, isto dá ao
leitor uma possibilidade de compreender a importância relativa das diversas idéias
apresentadas e, em segundo lugar, e de maior importância, esta foi a forma preferida de
Sri Ramana ensinar. Quando chegavam pessoas para visitá-lo, sempre tratava de
convencê-los da verdade de seus ensinamentos mais elevados e, somente se não
estavam dispostos a aceitá-los, adequava suas respostas e comentava desde um nível
mais simples.

Os ensinamentos se apresentavam numa série de perguntas e respostas, nas


quais Sri Ramana expõe seus pontos de vista sobre diversos temas. Cada capítulo está
dedicado a um tema diferente e cada um contém uma breve introdução ou comentários
aclaratórios. As perguntas e respostas que formam a maior parte de cada capítulo foram
tomadas de diversas fontes e estão organizados de tal maneira que aparecem como uma
conversação contínua.

Sri Ramana usualmente respondia as perguntas em uma das três línguas


vernáculas do sul da Índia, o Tamil, o Télugo ou o Malayam. Não existem gravações e
a maioria das respostas foram escritas rapidamente, em inglês, por seus intérpretes
oficiais. Dado que alguns destes não tinham fluidez em inglês, algumas das
transcrições contêm erros gramaticais ou então aparecem num estilo tal que Sri
Ramana soa como um senhor vitoriano presumido. Desviei-me dos textos originais ao
corrigir alguns casos mais evidentes, cuidando de não alterar o significado, mudando só
a forma de expressão. Também descartei algumas das perguntas e respostas com o
objetivo de eliminar material que se desvia demasiado do tema em análise.
Os textos originais se caracterizam por um sem número de maiúsculas, as quais
foram eliminadas, deixando-se só em três termos: Gurú, o Ser e o Coração. Sri Ramana
frequentemente utilizava estes termos como sinônimo de consciência, motivo pelo qual
foram utilizadas letras maiúsculas no livro onde dito significado está implícito.

Um glossário completo de palavras em sânscrito, que não foram traduzidas no


texto, pode ser encontrado ao final do livro. Também se incluem breves descrições de
personagens, locais e obras sagradas no texto. Algumas vezes Sri Ramana utilizava
termos em sânscrito de uma maneira pouco usual. Nestes casos, que aparecem ao longo
do livro, a definição usual não foi incluída no dicionário, mas foi adaptada para a
definição que reflete mais precisamente possível a intenção com que o termo foi usado.
PRIMEIRA PARTE

O SER

“Isso, no que todos estes mundos parecem existir continuamente;


Isso, do que todos estes mundos são uma possessão;
Isso, do que todos estes mundos surgem;
Isso, para o que tudo isso existe;
Isso, por meio do que todos estes mundos chegam a existir;
E isso que realmente é tudo isto;
Somente Isso é a realidade existente.
Valorizemos o Ser, que é a realidade, no Coração”
CAPITULO 1

A NATUREZA DO SER

A essência dos ensinamentos de Sri Ramana se baseia em suas frequentes


afirmações de que existe uma realidade imanente singular, que é experimentada por
todos e que é simultaneamente a fonte, substância e natureza real de tudo o que existe.
Sri Ramana lhe deu diversos nomes, cada um significando um aspecto distinto da
mesma realidade indivisível. A seguinte classificação inclui todos os sinônimos mais
comuns e explica os conteúdos dos diversos termos utilizados:

1) O Ser – Este é o termo que utilizou com maior frequência e é uma significação do
termo sânscrito Atman. O definiu dizendo que o Ser real, o “Eu” real, é uma
consciência impessoal e abarcante de tudo, contrário à experiência percebida da
individualidade. O ser individual, essencialmente, não existe, dado que é uma criação
da mente que obscurece a verdadeira experiência do Ser real. Defendia que o Ser real
sempre está presente e sempre se experimenta, mas insistiu em que só estaremos
conscientes dele quando as tendências auto-limitantes da mente tiverem cessado. A
permanente e contínua consciência do Ser é chamada realização do Ser.
2) Sat-Chit-Ananda – Este é um termo sânscrito que se traduz como existência-
consciência-felicidade. Sri Ramana expôs que o Ser é a existência absoluta, uma
consciência subjetiva do “Eu Sou”, sem relação com o sentido “Eu sou isto” ou “Eu
sou aquilo”. Não há sujeitos nem objetos no Ser, somente a consciência de existir.
Dado que tal estado é de consciência, também é denominado “consciência”. A
experiência direta desta consciência é, segundo Sri Ramana, um estado de felicidade
ininterrupto e a palavra ananda, ou felicidade absoluta, é, portanto, utilizada como uma
descrição deste estado. Estes três aspectos – existência, consciência e felicidade
absoluta – se experimentam como um todo unitário e não como atributos separados do
Ser. São inseparáveis como a liquidez, a transparência e a umidade são propriedades
inseparáveis da água.

3) Deus – Sri Ramana afirmava que o universo é mantido pelo poder do Ser. Dado que
os teístas normalmente atribuem tal poder a Deus, utilizava a palavra Deus como
sinônimo do Ser. Também utilizava o termo Brahman, o Ser Supremo do hinduísmo e
Shiva, um nome hindu para Deus, ambos com o mesmo significado. O Deus de Sri
Ramana não é pessoal, mas sim o ser sem forma que sustenta o universo. Não cria o
universo, dado que o universo é meramente uma manifestação do seu poder inerente e,
ainda que inseparável do mesmo, não lhe afeta sua aparição ou desaparição.

4) O Coração – Sri Ramana frequentemente utilizava a palavra sânscrita Bridayam ao


referir-se ao Ser. Usualmente ela é traduzida como ‘O Coração”. No entanto, uma
tradução mais literal seria “este é o centro”. Ao usar a palavra, não implicava que
existisse um lugar ou centro limitante do Ser, melhor dizendo indicava que o Ser é a
fonte de onde todas as aparições se manifestam.

5) Jnana – Em certas ocasiões a experiência do Ser é chamada Jnana ou conhecimento.


Este termo não deve ser entendido como se houvesse uma pessoa com conhecimento
do Ser, dado que no estado de conhecimento do Ser não existe um conhecedor nem
coisa alguma a parte do Ser que possa ser conhecida. O conhecimento verdadeiro, ou
seja, jnana, não é um objeto da experiência nem a compreensão de um estado diferente
do sujeito que conhece; melhor dizendo é uma consciência direta e conhecedora da
única realidade na qual tanto os sujeitos como os objetos deixaram de existir. A pessoa
estabelecida neste estado é chamada Jnani.

6) Turiya e Turiyatita – A filosofia hindu postula três estados alternantes da


consciência relativa: a vigília, o sono e o sono profundo (sono sem sonhos). Sri
Ramana declarou que o Ser é a realidade subjacente, o suporte para o surgimento dos
outros três estados temporários. Por isto, às vezes chamava o Ser de Turiya Avastha ou
quarto estado. Algumas vezes também utilizou a palavra Tutiyatita, que significa
“transcendendo o quarto estado”, o que indica que realmente não existem quatro
estados, mas sim um só estado real e transcendente.

7) Outros termos – Cabe descrever três termos utilizados em lugar do Ser. Sri Ramana
geralmente enfatizava que o Ser é o estado real e natural e, por tal razão, algumas vezes
utilizou o termo Sahaja Sthiti, que indica o “estado natural” e Swarupa que é “a forma
real” ou “a forma natural”. Também utilizava a palavra “silêncio” para indicar que o
Ser é um estado de silêncio sem pensamentos, de paz absoluta e quietude total.
Pergunta – O que é a realidade?

A realidade deve ser sempre o verdadeiro. Não tem formas nem nomes. A base
de tudo é a realidade. É o fundamento das limitações, dado que não tem limitações.
Não tem ataduras. É a base do irreal, dado que em si é real. A realidade é o que existe.
É como é. Transcende a palavra.

Está além das expressões “existência, não-existência”, etc. A realidade é


meramente a consciência que fica depois que a ignorância foi destruída; o que fica só é
o Ser (Atman). Nesse Brahma-Swarupa (forma real de Brahman), que é consciência
plena do Ser, não há a mais mínima ignorância.

A realidade resplandece plenamente, sem miséria e sem corpo, não só quando


há conhecimento do mundo, mas também quando não há; essa é sua forma real (nija-
swarupa).

O resplendor da consciência-felicidade, na forma de uma só consciência


brilhando igualmente no interior e no exterior, é a realidade suprema, primária, plena
de felicidade. Sua forma é o silêncio e os jnanis a declaram o estado final e sem
obstrução do verdadeiro conhecimento (jnana).

Conheça que só jnana é não estar atado, só jnana é pureza; jnana é alcançar a
Deus; jnana na qual não se esquece o Ser é imortalidade; só jnana é tudo.

P. O que é esta consciência e como podemos obtê-la e cultivá-la?

Você é a consciência. A consciência é outro nome para você. Dado que você é
consciência não há necessidade de chegar a ela ou cultivá-la. A única coisa que temos
que fazer é deixar de estar atentos a outras coisas, ou seja, ao não-ser. Se deixamos de
prestar atenção a estas coisas, então a consciência pura fica só e isto é o Ser.

P. Se o Ser mesmo está consciente, como é possível que agora eu não esteja
consciente d’Ele?

Não há dualidade. Seu conhecimento atual se deve ao ego e é apenas relativo. O


conhecimento relativo requer um sujeito e um objeto, enquanto que a consciência do
Ser é absoluta, não necessita de objetos.

O recordar também é relativo, necessitando de um objeto a ser recordado e um


sujeito que recorda. Quando não há dualidade, quem vai recordar o que?
O Ser está sempre presente. Todos querem conhecer o Ser. Mas, que tipo de
ajuda se necessita para conhecer-se a si mesmo? As pessoas querem ver o Ser como
algo novo. No entanto, este é eterno e permanece contínuo todo o tempo. Vocês
querem vê-Lo como uma luz esplendorosa, etc. Como pode ser assim? Não é luz, não é
escuridão. É como é. Não pode ser definido. A melhor definição é “Sou o que Sou.” Os
srutis (escrituras) falam do Ser dizendo que é do tamanho do polegar, da ponta de um
fio de cabelo, uma chispa elétrica, vasto, mais sutil do que o mais sutil, etc. De fato,
não tem fundamento. É somente a existência, porém diferente do real e irreal; é
conhecimento, porém diferente do conhecimento e ignorância. Como se pode definir?
É simplesmente a existência.

P. Quando um homem realiza o Ser, o que é que ele vê?

Não vê. Ver é só ver. O estado de realização do Ser, que é uma forma de
nomeá-Lo, não é chegar a uma meta distante ou adquirir algo novo, mas sim
simplesmente ser o que sempre se é e o que sempre se tem sido. A única coisa que se
requer é deixar a percepção de não verdadeiro como verdadeiro. Estamos todos
envolvidos em ver o irreal como real. Somente temos que deixar esta prática. Então
realizaremos o Ser. Numa certa etapa provocará riso o havermos estado tratando de
descobrir o Ser, que é evidente por si mesmo. Enfim, o que podemos dizer sobre esta
pergunta?

Há uma etapa na qual se transcende ao que vê e ao que se vê. Não há alguém


que vê ou que veja algo. O que vê agora tudo isto deixa de existir e o Ser fica só.

P. Como conhecer tudo isto por experiência direta?

Se falamos de conhecer o Ser, pressupomos que deve haver dois seres: um que
conhece e outro que é conhecido e, ademais, o próprio processo de conhecer. O estado
que nomeamos “a realização” é simplesmente sermos nós mesmos, não ser alguma
coisa ou converter-se em algo. Se alguém tem realizado, este alguém é só o que existe e
só o que sempre existiu. Não se pode descrever este estado. Só o podemos ser. Claro,
falamos comumente da realização do Ser porque não contamos com um termo melhor.
Porém, como “realizar” ou tornar real o único que é real?

P. O que é mouna (silêncio)?

Este estado que transcende o falar e o pensar é mouna. O que existe é mouna.
Como explicar mouna em palavras?

Os sábios dizem que o estado no qual o “pensamento-eu” (o ego) não surge, no


mais mínimo, este estado é o Ser (swarupa), o qual é o silêncio. Só este Ser em silêncio
é Deus, só o Ser é Jiva (alma individual), só o Ser é este antigo mundo.
Todo outro conhecimento é pequeno e trivial; a experiência do silêncio é o
único conhecimento real e perfeito. Conheça que todas as diferenças objetivas não são
reais, mais simples imposições sobre o Ser, que é a forma de conhecimento verdadeiro.

P. Dado que se observam inumeráveis seres e corpos animados por toda parte,
como é possível dizer que o Ser é uno?

Se a idéia do “eu sou o corpo” é aceita, então os seres são múltiplos. O estado
no qual tal idéia desaparece é o Ser, dado que nesse estado não há outros objetos. É por
isso que o Ser é considerado como um só.

Dado que o corpo mesmo não existe desde o ponto de vista natural do Ser real,
mas somente desde o ponto de vista da mente, confundida pelo poder da ilusão, chamar
o Ser de dehi (o que possui o corpo) é um equívoco.

O mundo não existe sem o corpo, o corpo nunca existe sem a mente, a mente
nunca existe sem a consciência e a consciência nunca existe sem a realidade. Para o
sábio que conhece o Ser adentrando a si mesmo, não há nada mais que o Ser para
conhecer. Por quê? Porque o ego, que se identifica com a forma de um corpo como
“eu”, morreu. O sábio se converte na existência-consciência sem forma.

O jnani (o que realizou o Ser) reconhece que é o Ser e que absolutamente nada,
nem seu corpo, nem coisa alguma existe, só o Ser. Para alguém neste estado, que
diferença pode ter a presença ou ausência de um corpo?

Certamente é falso falar da realização. O que se pode realizar? O real sempre


existe como é. Não estamos criando ou conseguindo algo novo, que não tínhamos
antes. A ilustração que se mostra nos textos é a seguinte: escavamos um poço e
fazemos uma grande cova. O espaço dentro da cova não foi criado por nós, o que
fizemos foi somente remover a terra que enchia aquele espaço. O espaço já estava ali e
continua estando. Da mesma forma, necessitamos simplesmente descartar os samskaras
(tendências inatas) que estão dentro de nós. Quando todas estas tiverem sido cortadas, o
Ser brilhará por si mesmo.

P. Mas como conseguir isto e alcançar a liberação?

A liberação é nossa natureza verdadeira. Somos isso. O fato de aspirarmos à


liberação mostra que a liberdade de toda escravidão é nossa natureza real. Não temos
que adquiri-la. Só é necessário deixar a falsa noção de que estamos atados. Quando
conseguirmos isto não existirão nem desejos nem pensamentos. Enquanto alguém
desejar a liberação, se pode dizer que ela está atada.

P. Se diz que para alguém que realiza o Ser não existem os estados de vigília,
sonho e sono profundo. Isto é correto?
Por que você diz que para ele não existem três estados? Ao dizer “tive um
sonho, estava em sono profundo, estou desperto”, você tem que admitir que estava ali
durante os três estados. Então é realmente muito claro que você estava presente todo o
tempo. Se se mantém como está agora ficará no estado de vigília; este mesmo se oculta
no sonho e o sonho desaparece no sono profundo. Estava ali então, está aqui agora e
está todo o tempo ali. Os três estados vão e vem, mas você está ali todo o tempo. É
como um cinema. A tela está sempre ali, mas diferentes tipos de películas aparecem
sobre a tela e depois desaparecem. Nada se adere à tela, ela segue sendo simplesmente
uma tela.

Do mesmo modo você se mantém como o Ser nos três estados. Se reconhecer
isto, os três estados não lhe molestarão, como as imagens que aparecem sobre a tela e
não se aderem. Às vezes alguém vê um grande oceano sobre a tela, com inúmeras
ondas que, de repente, desaparecem. Depois alguém vê um grande incêndio
estendendo-se por toda parte e também este desaparece. A tela está ali, em ambas as
ocasiões. Chegou ela a se molhar com a água ou a se queimar com o fogo? Nada afeta a
tela. Da mesma maneira, o ocorrido nos estados de vigília, sonho e sono profundo não
afetam você de modo algum, você permanece sendo o Ser.

P. Tudo isto quer dizer que, ainda quando passa pelos estados de vigília, sonho e
sono profundo, isto não lhe afeta?

Sim, assim é. Os estados vão e vem. O Ser não é afetado, Ele só tem um estado.

P. Você quer dizer que tal pessoa será meramente uma testemunha do mundo?

Sim, assim é, e como exemplo Vidyaranya, no décimo capítulo do


“Panchadasi”, explica sobre a luz que se utiliza para iluminar o cenário. Quando a obra
está em progresso, a luz está ali, iluminando sem discriminação a todos os todos os
atores, sejam eles reis, serventes ou bailarinos, e também ao público. Essa luz
permanece antes que comece o drama, durante o evento e depois que ele terminou. Do
mesmo modo, a luz dentro de nós, ou seja, o Ser, dá sua luz ao ego, ao intelecto, à
memória e à mente, sem que lhe afetem os processos de crescimento e decadência.
Agora, durante o estado de sono profundo e outros estados, onde não há sensação do
ego, o Ser sem atributos permanece brilhando por si mesmo.

Na verdade, a idéia de que o Ser é a testemunha está só na mente, não é a


verdade absoluta do Ser. O ser testemunha implica que existem objetos para serem
testemunhados. Tanto a testemunha quanto os objetos são criações mentais.

P. Em que grau são inferiores os três estados de consciência ao quarto (turiya)?


Que tipo de relação há entre os três estados e o quarto?
Há somente um estado, o de consciência, ou existência. Os estados de vigília,
sonho e sono profundo não podem ser reais. Eles simplesmente vão e vem. O real
sempre existirá. O “Eu” ou a existência que persiste em todos os estados é o real. Os
outros três estados não são reais e, portanto, não se pode dizer que grau de realidade
possuem. Pode-se exemplificar mais ou menos assim: a existência ou consciência é a
única realidade; a consciência mais a vigília, chamamos de vigília; a consciência mais
o sono profundo, chamamos de sono profundo. A consciência é a tela sobre a qual vão
e vêm todas as películas. A tela é real, as películas são meras sombras sobre ela. Por
causa dos hábitos arraigados chegamos a reconhecer os três estados como reais e
chamamos o estado de consciência pura como quarto estado. Contudo, não há tal
quarto estado, mas somente um.

Não há diferença alguma entre o sonho e a vigília, com a exceção de que o


sonho é curto e a vigília longa. Os dois são resultados da mente. Pelo fato da vigília ser
longa imaginamos que é nosso estado verdadeiro. Mas, de fato, nosso estado
verdadeiro é turiya, o quarto estado, que sempre é como é e não reconhece os estados
de vigília, sonho e sono profundo. Como conseqüência de que reconhecemos os três
avasthas (estados) nomeamos ao quarto turiya avastha. Contudo, não é um avastha, mas
sim o estado real e natural do Ser. Quando este último se realiza sabemos que não é
turiya ou o quarto estado (dado que um quarto estado seria meramente relativo), mas
sim turiyatita, o estado transcendente.

P. Mas por que os três estados vão e vem sobre estado real, ou a tela do Ser?

Quem formula esta pergunta? Acaso o ser afirma que os três estados vão e vem? É
o observador que diz que os três estados vão e vem. O observador e o observado,
juntos, constituem a mente. Investigue se realmente há tal coisa como a mente. Então a
mente se funde com o Ser e não permanece nem o observador nem o observado.

A resposta correta para a sua pergunta é, portanto, que eles não vão nem vem. O
Ser se mantém como sempre é. Os três estados se devem a que não há indagação do eu
e, portanto, a indagação acabará com eles. Por mais que se tente explicar, o fato não se
aclarará até que haja realização do Ser e então a pessoa se assombrará de haver estado
tão cega, por tanto tempo, ao que é evidente e é a única existência.

P. Que diferença há entre a mente e o Ser?

Não há diferença. A mente voltada para dentro é o Ser, voltada para fora, se
converte no ego e no mundo todo. O algodão utilizado em diversas prendas é
chamado por diferentes nomes. O ouro que se converte em diversos ornamentos é
chamado por diversos nomes. Mas todas as prendas são algodão e todos os ornamentos
são ouro. O Um é real, o múltiplo é meramente nomes e formas.

Contudo, a mente não existe a parte do Ser, ou seja, não tem uma existência
independente. O Ser existe sem a mente, mas nunca a mente sem o Ser.

P. Diz-se que Brahman é Sat-Chit-Ananda. O que quer dizer isto?


Sim, é assim. O que é, é somente Sat. A isso chamamos Brahman. O brilho de
Sat é Chit e sua natureza é Ananda. Estes não são distintos a Sat. Os três juntos são
conhecidos como Sat-Chit-Ananda.

P. Dado que o Ser é existência (Sat) e consciência (Chit), por que é descrito como
se fosse diferente ao existente e não existente, ao consciente e ao inconsciente?

Se bem que o Ser é real e abarca tudo, não é possível formular perguntas que
misturem a dualidade de sua realidade e irrealidade. Portanto, dizemos que é diferente
ao real e ao irreal. Da mesma forma, ainda que seja consciência, como não há algo que
conheça ou alguém que o conheça, dizemos que é diferente ao consciente e
inconsciente.

Sat-Chit-Ananda indica que o supremo não é asat (diferente da existência), não


é achit (diferente da consciência) e não é ananda (diferente da felicidade). Pelo fato de
nos encontrarmos no mundo fenomênico, designamos o Ser como Sat-Chit-Ananda.

P. Em que sentido se pode dizer que a felicidade (ananda) é nossa natureza real?

A felicidade perfeita é Brahman. A paz perfeita provém do Ser. Só isso existe e


é consciência. Chama-se felicidade unicamente à natureza do Ser. O Ser não é outra
coisa que a felicidade perfeita. Conheça isto, mantenha-se neste estado do Ser e gozará
da felicidade eterna.

Se um homem pensa que a felicidade se deve a coisas externas e as suas posses,


seria razoável deduzir que sua felicidade deverá incrementar-se com o aumento de suas
posses e diminuir em proporção à sua diminuição. Portanto, se não tivesse posses, sua
felicidade seria nula. Mas, qual é a experiência de um homem? Se adequa a este ponto
de vista?

No sono profundo, o homem não tem posses, incluindo seu próprio corpo.
Contudo, em lugar de estar infeliz, se encontra bastante feliz. Todo mundo gosta de
dormir bem. Então a conclusão é que a felicidade é inerente ao homem e não se deve às
causas externas. Devemos realizar o Ser com o propósito de abrir o tesouro da
felicidade absoluta.

P. Sri Bhagavan nos diz que o Coração é a sede da consciência e é idêntico ao Ser.
O que significa, exatamente, o termo “o Coração”?

Chame-o por qualquer nome, Deus, o Ser, o Coração ou a sede da consciência,


todos são realmente iguais. O ponto que se deve compreender é que o Coração é o
mero centro do Ser. O centro sem o qual não existe absolutamente nada.

O Coração não é físico, é espiritual. Hridayam é ‘hrit’ mais ‘ayam’ e quer dizer
“este é o centro”. É dali que surgem os pensamentos, onde subsistem e onde se
dissolvem. Os pensamentos são o conteúdo da mente e dão forma ao universo. O
Coração é o centro de tudo. Nos Upanishads, diz-se que os seres tem sua existência
proveniente de Brahman. Esse é o Coração. Brahman é o Coração.
P. Como realizar o Coração?

Não existe um só indivíduo que por um só instante não tenha a experiência do


Ser. Ninguém admite que se pode separar do Ser. Ele é o Ser. O Ser é o coração.

O Coração é o centro de onde surge tudo. A causa pela qual você vê o mundo, o
corpo, etc. Se diz que há um centro para tudo isto e este centro é denominado Coração.
Quando alguém está no Coração, reconhece que o Coração não é nem o centro nem a
circunferência. Não há nada separado dele.

A consciência, que é a existência verdadeira, não surge para conhecer tudo o


que não é o Ser; somente isso é o Coração. A verdade do Ser só é conhecida por essa
consciência, que não tem atividade e que sempre permanece atendendo ao Ser; só isso é
a iluminação do conhecimento puro.
CAPITULO 2

CONSCIÊNCIA DE SI MESMO

IGNORÂNCIA DE SI MESMO

Algumas vezes Sri Ramana indicava que existem três classes de aspirantes
espirituais. Os mais avançados realizam o Ser ao escutar sobre sua verdadeira natureza.
Os seguintes necessitam refletir um bom tempo antes que a consciência de si mesmo se
estabeleça neles firmemente. Os da terceira categoria usualmente necessitam muitos
anos de prática espiritual intensiva para alcançar a meta da realização do Ser. Às vezes
Sri Ramana usava o exemplo da combustão para descrever estes três níveis: a pólvora
se acende com uma simples chispa; o carvão necessita que lhe apliquem fogo por um
curto tempo e o carvão úmido necessita secar-se, depois acendê-lo por um longo tempo
antes que consiga manter o fogo.

Para aqueles que se encontravam nas duas primeiras categorias, Sri Ramana
ensinava que só existe o Ser e pode-se experimenta-lo direta e conscientemente ao
deixar de prestar atenção às idéias errôneas que temos de nós mesmos. As ditas idéias,
chamava o ‘não-Ser’, dado que são uma acumulação de noções equivocadas e
percepções falsas que cobrem plenamente a experiência verdadeira do Ser real. A
principal percepção errônea é a idéia de que o Ser está limitado ao corpo e a mente. Tão
logo deixemos de imaginar que somos uma pessoa individual, que habita um corpo
particular, toda a estrutura de idéias errôneas se derruba e é substituída por uma
consciência permanente do Ser real.

Chegando a este nível do ensinamento não pode haver esforço ou prática. A


única coisa que se requer é compreender que o Ser não é uma meta para ser alcançada,
mas sim a consciência que sobra quando todas as idéias limitantes sobre o não-Ser são
descartadas.
P. Como posso obter a realização do Ser?

A realização do Ser não se pode obter como algo novo. Sempre está ali. Só é
necessário descartarmos a idéia “não o realizei”.

A quietude ou paz é a realização. Não há um só momento no qual não exista o


Ser. Enquanto houver dúvidas ou a sensação de que não se há realizado, dever-se-á
fazer esforços para desfazer-se de tais pensamentos. Esses mesmos se devem à
identificação do Ser com o não-Ser.

Quando o não-Ser desaparecer, só restará o Ser. Para abrir espaço é suficiente


que se removam os objetos. O espaço não se traz de outro lugar.

P. Devido a que a realização não é possível sem vasana-kshaya (a destruição das


tendências mentais), como vou realizar este estado no qual as tendências tenham sido
efetivamente destruídas?

Você está neste estado agora mesmo.

P. Você quer dizer que, ao aferrar-se ao Ser, os vasanas (tendências mentais) serão
destruídos quando surgirem?

Serão destruídos se você permanecer como é.

P. Como alcançar o Ser?

Não se pode alcançar o Ser. Se o Ser pudesse ser alcançado significaria que não
está aqui e agora e que teria que ser obtido. O que se obtém também pode ser perdido.
Seria, portanto, não-permanente. Não vale a pena tratar de alcançar o que não é
permanente. Assim, pois, digo que o Ser não se alcança. Você é o Ser, você já é isso.

A realidade é que você é ignorante de seu estado de plena felicidade. A


ignorância se sobrepõe e cria um véu sobre o ser puro, que é a plena felicidade. Tudo o
que fizermos deve estar dirigido para a remoção do véu da ignorância, que é a falsa
identificação do Ser com o corpo e a mente. Isto deve desaparecer e então o Ser ficará
só.

A realização, portanto, é para todos e não há diferença entre os aspirantes. Os


obstáculos são precisamente a dúvida se podemos ou não realizar o Ser e a noção ‘eu
não estou realizado’. Liberte-se também destes obstáculos.

P. Quanto tempo alguém demora para chegar até mukti (liberação)?


Mukti não se consegue no futuro. Está sempre ali, aqui e agora.

P. Estou de acordo, mas não o sinto.

A experiência está aqui e agora. Não podemos negar o ser de nós mesmos.

P. Isto quer dizer existência e não felicidade.

Existência é o mesmo que felicidade e felicidade é o mesmo que ser. O termo


mukti dá uma boa chave. Por que busca-la? Alguém crê que existe a escravidão e busca
a liberação. Mas o fato é que não há tal escravidão. Não há escravidão e, portanto, não
há tampouco mukti.

P. Que tipo de realização é aquela sobre a qual alguns ocidentais tem feito relatos
nos quais dizem haver tido clarões de uma consciência cósmica?

Se vier como um clarão, assim também desaparece. O que tem um princípio


também tem final. Somente quando a sempre-presente consciência for realizada,
poderá ser permanente. A consciência, de fato, sempre está conosco. Todo mundo diz
‘eu sou’. Ninguém pode negar sua própria existência. O homem dentro do sono
profundo não está consciente, mas é a mesma pessoa. Não há mudança alguma entre o
que dormia e o que agora está desperto. No sono profundo não estava consciente de seu
corpo, não havia consciência corporal. Portanto, a diferença está em que surge a
consciência corporal e não em que haja uma mudança na consciência real.

O corpo e a consciência do corpo surgem e desaparecem juntos. Tudo isto quer


dizer que durante o sono profundo não existem limitações, enquanto que na vigília,
sim, existem. Estas limitações são as que causam a escravidão. O sentimento ‘eu sou o
corpo’ é o erro. O falso sentido de ‘eu’ deverá desaparecer. O “Eu” verdadeiro está
sempre ali. Está aqui e agora. Nunca desaparece para surgir novamente. O que é, deve
persistir para sempre. O que aparece, também se perderá. Por exemplo, compare o sono
profundo com a vigília. O corpo aparece num dos estados, mas não em outro. O corpo,
portanto, se perderá. A consciência antecede, em existência, ao corpo e, portanto,
sobreviverá ao mesmo.

A verdade absoluta é tão simples. É meramente repousar no estado original. Isto


é tudo o que se precisa dizer.

P. Estamos mais perto da consciência pura durante o sono profundo do que em


vigília?

Os estados de vigília, sonho e sono profundo são somente fenômenos que


aparecem sobre o Ser, que, em si mesmo, é estático. Também é um estado de simples
consciência. Pode alguém manter-se separado do Ser em algum momento? Esta
pergunta só poderia surgir se existisse esta possibilidade.
P. Não é certo, como geralmente se comenta, que estamos mais perto da
consciência pura durante o sono profundo do que durante a vigília?

A pergunta então poderia ser: não estou mais perto de mim mesmo no sono do
que durante a vigília? O Ser é consciência pura. Ninguém pode se separar do Ser. A
pergunta só pode ser formulada se existe a dualidade. Mas não há dualidade no estado
de consciência pura.

A mesma pessoa dorme, sonha e está desperta. O estado de vigília se considera


cheio de coisas preciosas e interessantes. A ausência de tais coisas leva a dizer que o
estado de sono profundo não é interessante. Antes de prosseguir, há que se esclarecer
este ponto. Não admite você que existe durante o sono profundo?

P. Sim, admito.

Você é a mesma pessoa que agora está desperta, não é?

P. Sim.

Existe, portanto, uma continuidade entre o sono e a vigília. Em que consiste dita
continuidade? É meramente o estado de existência absoluta.

Há uma diferença? Todos os incidentes e principalmente o corpo, o mundo e os


objetos aparecem no estado de vigília, mas desaparecem no sono.

P. Mas não estou consciente durante o sono.

Certo, não há consciência do corpo e do mundo. Mas você teve que existir
durante o sono para agora poder dizer: ‘eu não estava consciente durante o sono’.
Quem afirma isso neste momento? É a pessoa em vigília. O que dormiu não pode dizer
tal coisa. Isto quer dizer que o indivíduo que agora identifica o Ser com o corpo diz que
dita consciência não existiu durante o sono.

Dado que você se identifica com o corpo, você vê o mundo ao seu redor e
afirma que o estado de vigília está cheio de coisas preciosas e interessantes. O sono lhe
parece apagado porque você não estava como indivíduo e, portanto as coisas tampouco
existiam. Mas qual é a realidade? Há uma continuidade de sua existência durante os
três estados, mas não há continuidade do indivíduo e dos objetos.

P. Sim

O que é contínuo também perdura, ou seja, é permanente. O que é descontínuo é


transitório.
P. Sim

O estado de ser, portanto, é permanente, o sono e o mundo não o são. São


fenômenos passageiros sobre a tela da existência-consciência, que é eterna e
permanente.

P. Falando de um modo relativo, não é certo que o estado de sono profundo está
mais perto da consciência pura do que o estado de vigília?

Sim, no sentido de que quando alguém passa do sono ao estado de vigília o


‘pensamento-eu’ (o ser individual) surge e a mente começa a funcionar. Então seguem
os pensamentos e as funções do corpo começam sua operação; tudo isto junto nos leva
a dizer que estamos despertos. A ausência de toda esta evolução é o caráter do sono e,
portanto estamos mais perto da consciência pura do que a vigília.

No entanto, não se deve desejar estar sempre dormindo. Em primeiro lugar


porque é impossível, já que os estados se alternam. Em segundo lugar, não pode ser o
estado de felicidade absoluta no qual se encontra o jnani, dado que seu estado é
permanente e não tem alterações. Além disso, o estado de sono não se considera um
estado de consciência, enquanto que o sábio está sempre consciente. Portanto, o sono
difere do estado em que se encontra o sábio.

O sono está livre de pensamentos e de suas impressões sobre o indivíduo. Não


pode ser alterado pela própria vontade, já que os esforços são impossíveis neste estado.
Ainda que o sono esteja mais perto da consciência pura, não é um estado adequado
para fazer esforços até a realização do Ser.

P. Não é certo que a realização do Ser absoluto, ou seja, Brahman-jnana, é quase


inalcançável para uma pessoa comum como eu?

Brahman-jnana não é um conhecimento que se adquira, conseguindo-se assim a


felicidade. O que é necessário é deixar nosso ponto de vista da ignorância. O Ser que
você está tratando de conhecer é realmente você mesmo. Sua suposta ignorância causa
um sofrimento desnecessário, como na parábola dos dez homens ignorantes que se
compadecem pela perda do décimo homem, que nunca se perdeu.

Nesta parábola, os dez homens ignorantes cruzaram um rio. Ao chegar do outro


lado, quiseram se assegurar de que todos haviam atravessado sem perigo. Um deles
começou a contar, mas, ao acabar, não contou a si mesmo. “Só vejo nove homens,
seguramente perdemos um; quem pode ser?”, disse. “Contaste corretamente?”
perguntou outro, e contou os homens novamente. Mas também contou somente nove. E
assim, todos contaram somente nove, omitindo-se a si mesmos. “Somos só nove”,
concordaram, “mas quem pode ser o que falta?” Todo esforço que realizaram para
determinar quem era o indivíduo “desaparecido” foi inútil. “Quem quer que seja que se
tenha afogado – disse o mais sentimental dos dez – o temos perdido.” Ao dizer isto
começou a chorar e os outros seguiram seu pranto.
Ao vê-los chorando na margem do rio, um transeunte comovido inquiriu sobre o
problema. Relataram o sucedido, mencionando que cada vez que contavam chegavam
somente à cifra de nove. Ao escutar a história, mas vendo que realmente eram dez e
que todos haviam sobrevivido, lhes disse: “conte cada um em ordem: um, dois, três,
etc, e ao mesmo tempo, lhes darei um golpe para que saibam que foram incluídos na
contagem e não houve repetições. Assim encontraremos o décimo homem que está
perdido.” Ao escutar a sugestão, ficaram contentes em saber que iriam encontrar o
companheiro ‘perdido’ e aceitaram imediatamente a idéia do transeunte.

Ao mesmo tempo em que o transeunte golpeava lentamente a cada um,


contaram em voz alta. “Dez”, disse o último, ao ser golpeado. Perplexos, olharam-se
uns aos outros. “Somos dez!” disseram e agradeceram ao transeunte por havê-los
tirados do apuro.

Essa é a parábola. Mas, de onde saiu o último homem? Esteve perdido alguma
vez? Ao dar-se conta que estava ali, aprenderam realmente algo novo? A razão
fundamental de sua preocupação não foi a perda de um deles, mas sim sua própria
ignorância, ou melhor dizendo, a suposição de que um deles estava perdido.

Assim é o caso com você. Realmente não existe causa alguma para que se sinta
miserável e infeliz. Você mesmo se impõe limitações sobre sua natureza real de ser
infinito e logo se lamenta e ser meramente um ser finito. Então, se dedica a uma ou
outra prática espiritual para transcender as limitações não existentes. Se a mesma
prática espiritual assume a existência de limitações, como pode ajudar a transcendê-
las?

Portanto, lhe digo, conheça que você realmente é o Ser puro e infinito. Sempre é
o Ser e nada mais que o Ser. Em conseqüência, nunca pode ter ignorância do Ser. Sua
ignorância é meramente imaginária, como a ignorância dos dez homens tontos sobre a
perda do décimo homem. E esta ignorância lhes causou dor.

Saiba então que o conhecimento verdadeiro não cria para você um novo ser,
mas unicamente lhe remove a ignorância. A felicidade absoluta não se soma à sua
natureza, mas sim se revela como sua natureza real e natural, eterna e imperecível. A
única forma de retirar-se o sofrimento é conhecer e ser o Ser. Como é possível que seja
inalcançável?

P. Por mais que Bhagavan nos ensine, não podemos compreender.

As pessoas sempre dizem que não podem conhecer ao Ser que abarca tudo. Que
posso fazer? Até a menor criança diz “eu existo, eu faço, isto é meu.” Todo mundo
entende, enfim, que esta coisa, o ‘eu’, sempre existe. Somente quando este ‘eu’ está ali,
surge o sentimento de que você é o corpo, ele é Venkanna, este é Ramana, etc. Para
saber que o que está visível é o Ser de si mesmo, é necessário buscar com uma vela?
Dizer que não conhecemos o Atma Swarupa (a natureza do real do Ser), que não é
diferente do si mesmo da pessoa, é como dizer ‘não me conheço.’
P. Mas, como alcançar este estado?

Não há meta a alcançar. Não há nada para obter. Você é o Ser. Você sempre
Existe. Não se pode dizer nada mais do Ser, só que ele existe. Ver a Deus ou ao Ser é
somente ser o Ser, o você mesmo. Ver é a existência. Você é a existência. Você, sendo
o Ser, quer saber como alcançar o Ser. É como se um homem que se encontra em
Ramanashram perguntasse quantos caminhos há para chegar em Ramanashram e qual é
o melhor caminho. A única coisa que necessita é soltar o pensamento que você é o
corpo e todos os pensamentos sobre objetos externos, ou seja, o não-ser.

P. O que é o ego? Como está relacionado com o Ser real?

O ego aparece e desaparece, é transitório, enquanto que o Ser real é permanente.


Ainda que você realmente seja o Ser, identifica erroneamente o Ser real com o ego.

P. Como surge este erro?

Veja se realmente há tal erro.

P. É necessário sublimar o ego no Ser real?

O ego, de fato, não existe.

P. Por que ele nos dá tantos problemas?

Para quem são os problemas? Os problemas também são imaginários. Os


problemas e o prazer são somente do ego.

P. Como é que o mundo está tão preso na ignorância?

Encarregue-se de você mesmo. Deixe que o mundo se encarregue dele mesmo.


Veja o Ser. Se você é o corpo, então também haverá o mundo. Se você é o espírito,
tudo é o espírito.

P. O que você afirma só é aplicável a um indivíduo, mas o que acontecerá com os


demais?

Faça-você primeiro e veja se depois esta pergunta aparecerá.

P. Existe avidya (ignorância)?


Para quem?

P. Para o ego.

Sim, para o ego sim. Elimine o ego e avidya desaparecerá. Se o busca, o ego
desaparece e o Ser real fica só. O ego, que pensava que existia avidya, já não é visto.
Na realidade, não há avidya. Todos os sastras (escrituras) foram criados para provar a
inexistência de avidya.

P. Como é que surge o ego?

O ego não existe. Ou melhor dizendo, você crê que possui dois seres? Como
pode haver avidya sem a existência do ego? Se você começa a indagar, avidya, que de
fato não existe, não será encontrada, ou melhor, você dirá que desapareceu.

A ignorância pertence ao ego. Por que você pensa no ego e sofre? O que é a
ignorância? É o que não existe. No entanto, a vida mundana requer a hipótese de uma
avidya. Avidya é nossa própria ignorância e nada mais. É a ignorância, ou melhor,
esquecimento do Ser. Pode existir a escuridão diante da presença do sol? Do mesmo
modo, pode haver ignorância ante a presença do Ser, auto-evidente e auto-luminoso?
Se conhecemos o Ser, não haverá escuridão, nem ignorância, nem miséria.

A mente é que sente todos os problemas e a miséria. A escuridão não vai nem
vem. Veja o sol e não haverá escuridão. Do mesmo modo, veja o Ser e saberá que não
existe avidya.

P. Como surgiu o irreal? Pode surgir o irreal do real?

Veja se realmente surgiu. Sob outro ponto de vista, não existe o irreal. Só existe
o Ser. Quando se busca o ego, que é o fundamento de toda percepção do mundo e tudo
mais, se vê que ele realmente não existe e, portanto tampouco existe esta criação que
agora se vê.

P. É bastante cruel o lila (jogo de Deus), que faz tão difícil o conhecimento do
Ser.

Conhecer o Ser significa ser o Ser; ser quer dizer existir, a existência de si
mesmo. Ninguém nega sua própria existência, assim como não se nega a existência dos
olhos, ainda que não os possamos ver. O problema surge porque tratamos de objetivar
o Ser, do mesmo modo que objetivamos os olhos quando colocamos um espelho na
frente deles. Você está tão acostumado a objetivar que perdeu o conhecimento de você
mesmo, simplesmente porque o Ser não pode ser objetivado. Quem há de conhecer o
Ser? Acaso o corpo, que é insensível, pode conhecê-lo? Você menciona e pensa o
tempo todo em seu ‘eu’, mas quando lhe perguntam, você diz que não conhece o Ser.
Onde está, pois a lila de Deus e sua crueldade? Pelo fato das pessoas negarem o Ser, os
sastras mencionam à maya, lila etc.
P. Minha própria realização poderá ajudar os outros?

Sim, seguramente. É a melhor ajuda que se pode dar. Mas não existem outros a
quem ajudar. Um ser realizado só vê o Ser, como um joalheiro que avalia o ouro entre
vários objetos e somente vê o ouro. Se você se identifica com seu corpo, então só as
formas e figuras estarão presentes. Ao transcender o corpo, os ‘outros’ desaparecem,
junto com a consciência do corpo.

P. É o mesmo com as plantas, as árvores, etc?

Por acaso elas existem a parte do Ser? Investigue. Você crê que vê estas coisas.
O pensamento é projetado para fora do Ser. Busque de onde surge. Os pensamentos
deixarão de surgir e só ficará o Ser.

P. Entendo tecnicamente, mas os pensamentos continuam estando ali.

Sim, é como no cinema. Há uma luz projetada sobre a tela e as sombras que
passam sobre ela impressionam o público, ao fazerem o espetáculo. Se no cinema se
projetasse a audiência sobre a tela, como parte da obra, tanto os que vêem como o que é
visto estarão sobre a tela. Aplique isso a você mesmo. Você é a tela, o Ser criou o ego,
o ego é uma acumulação de pensamentos que se mostram como o mundo, as plantas e
as árvores, sobre as quais você perguntava. Na realidade, tudo isto é somente o Ser. Ao
ver o Ser, você saberá que é tudo, por todas as partes e sempre. Só existe o Ser.

P. Sim, compreendo só em teoria, já que as respostas são simples, belas e


convincentes.

Até o pensamento “eu não estou realizado” é um obstáculo. De fato, só existe o


Ser. Nossa natureza real é mukti. No entanto, imaginamos que estamos presos e
realizamos diversas ações para nos libertarmos, enquanto estamos continuamente
livres. Nos surpreenderá ver que temos estado fazendo esforços frenéticos para
alcançar o que somos e sempre temos sido. Um exemplo esclarecerá isto. Um homem
dorme nesta sala. Sonha que viajou por todo o mundo, através de montanhas e vales,
bosques e campos, desertos e mares, através de vários continentes e depois de muitos
anos de árduas e fatigantes viagens regressa a este país, chega a Tiruvannamalai, entra
no ashram e chega a esta sala. Neste momento desperta e percebe que não se moveu
nem um só centímetro e esteve dormindo onde se encostou. Não regressou a esta sala
com grande esforço, pois sempre esteve na sala. É exatamente como o anterior. Quando
se pergunta “por que estamos atados?” minha resposta é “por que, estando na sala, você
imaginou que andou em aventuras por todo o mundo, cruzando montanhas e vales,
desertos e mares?” Tudo é a mente, ou maya (ilusão).

P. Como, pois, surge esta lamentável ignorância da única realidade, no caso de


um ajnani (alguém que não realizou o Ser)?
O ajnani somente vê a mente, que é só um reflexo da luz da consciência pura
que surge do Coração. É ignorante do Coração. Por quê? Porque sua mente está
extrovertida e nunca busca sua fonte.

P. O que impede que a luz, infinita e indiferenciada da consciência, que brota do


Coração, não se revele ao ajnani?

Assim como a água numa jarra reflete o enorme sol dentro de seus limites, os
vasanas ou tendências latentes da mente, atuando como meio refratário, recebem a
infinita e omniabarcante luz de consciência que surge do Coração. Este fenômeno é o
reflexo chamado mente. Ao ver só este reflexo o ajnani se engana, convencido que é
um ser finito, o Jiva, o ser individual.

P. Quais são os obstáculos que impedem a realização do Ser?

São os hábitos mentais (vasanas).

P. Como alguém pode superar os vasanas?

Realizando o Ser.

P. Isso tudo é um círculo vicioso.

O ego é o que cria tais dificuldades, criando obstáculos e depois sofrendo as


perplexidades de paradoxos aparentes. Pergunte-se quem faz as perguntas e encontrará
o Ser.

P. Como é possível que a escravidão mental seja tão persistente?

A natureza da escravidão é meramente o surgimento do ruinoso pensamento


“sou diferente da realidade.” Dado que não podemos nos manter separados da
realidade, recuse este pensamento, quando ele surgir.

P. Por que nunca me recordo que sou o Ser?

As pessoas falam da lembrança e do esquecimento da plenitude do Ser. O


esquecimento e a lembrança são somente formas mentais. Seguirão alternando-se
enquanto existam pensamentos. Mas a realidade se encontra além de tudo isto. A
memória e o esquecimento dependem de algo. Este ‘algo’ deve ser também alheio ao
Ser, caso contrário não haveria esquecimento. O lembrar e esquecer dependem da idéia
de ser individual. Quando o buscamos, o ‘eu’ individual desaparece, dado que não é
real. Portanto, este ‘eu’ é sinônimo da ilusão ou ignorância (maya, avidya ou ajnana).
Saber que nunca existiu a ignorância é a meta de todos os ensinamentos espirituais. A
ignorância existe para o que vê. Estar consciente é jnana. Jnana é eterna e natural
enquanto que ajnana é irreal e não natural.
P. Havendo escutado a verdade, como pode ser que a pessoa não se mantenha
feliz?

Porque os samskaras (tendências mentais inatas) não foram destruídos.


Enquanto existam os samskaras haverá dúvidas e confusão. Todo esforço se dirige até a
destruição de dúvidas e confusões. Para o esforço ser efetivo, devem ser cortadas estas
raízes, que são os samskaras. Eles deixam de ter efeito quando se pratica o que foi
descrito pelo Gurú. O Gurú deixa que o buscador realize esta parte para que ele mesmo
se dê conta de que não há ignorância. Escutar a verdade (sravana) é a primeira etapa. Se
a compreensão não é firme, deve-se praticar a reflexão (manana) e contemplação
ininterrupta (dididhysana). Estes dois processos queimam as sementes dos samskaras,
conseguindo que fiquem sem efeito.

Umas poucas pessoas obtêm o jnana escutando só uma vez a verdade. Estes são
os buscadores avançados. Os principiantes demoram mais tempo para consegui-lo.

P. Como é que a ignorância pôde surgir?

A ignorância nunca surgiu. Não tem existência própria. O que existe é somente
vidya (conhecimento).

P. Por que não o realizo?

Devido aos samskaras. No entanto, verifique quem não realiza e o que não se
realiza. Então será evidente que não existe avidya.

P. É, portanto, equivocado começar com uma meta?

Se há uma meta para alcançar, não pode ser permanente. A meta sempre deve
estar ali. Tentamos chegar à meta com o ego, mas a meta existe antes do ego. O que a
meta é está antes do nosso nascimento, ou seja, antes do nascimento do ego. Porque
existimos, parece que o ego também existe.

Se vemos o Ser como o ego, nos convertemos no ego. Se o vemos como a


mente, nos convertemos na mente. Se o vemos como o corpo, nos convertemos no
corpo. É o pensamento quem fabrica as diversas envolturas. A sombra sobre a água
parece tremer. Quem pode parar o movimento da sombra? Se deixasse de agitar-se não
veríamos a água, mas somente a luz. Do mesmo modo, não se fixe no ego e nas suas
atividades, mas veja a luz detrás. O ego é o pensamento ‘eu’. O verdadeiro “Eu” é o
Ser.

P. Se somente se trata de descartar idéias, então há um só passo até a realização?


A realização já está ali. O estado livre de todo pensamento é o único estado
real. Não há ação que se denomine ‘a realização’. Existe acaso alguém que não está
realizando o Ser? Há alguém que negue sua própria existência? Falar da realização
implica dois seres: aquele que vai levar a cabo a realização e aquele que vai se realizar.
Está se buscando o que não se realizou com o fim de realizá-lo. Uma vez que
admitimos nossa existência, como pode nos ocorrer que não conhecemos nosso Ser?

P. Devido aos pensamentos, à mente.

Assim é. A mente é a que encobre nossa felicidade. Como sabemos que


existimos? Se você responde que é porque vê o mundo ao seu redor, então como sabe
que existiu durante o sono profundo?

P. Como podemos nos desfazer da mente?

Acaso a mente quererá matar a si mesma? A mente não se pode matar por si
mesma. O que lhe diz respeito é encontrar a natureza real da mente. Então reconhecerá
que não há uma mente. Quando se busca o Ser, a mente não aparece. Ao permanecer no
Ser, não haverá necessidade de preocupar-se pela mente.

P. Mukti é o mesmo que realização?

Mukti ou liberação é nossa natureza real. É outro de nossos nomes. Querer


obter mukti é algo muito curioso. É como se um homem que está na sombra saísse ao
sol por vontade própria e, ao sentir a severidade do calor, fizesse grandes esforços para
regressar à sombra e depois se regozijasse dizendo: “Que prazer é estar na sombra! Por
fim cheguei à sombra!” Assim fazemos todos nós. Não somos diferentes da realidade.
No entanto, imaginamos que somos diferentes, ou seja, criamos a bheda bhava (a
sensação de diferença) e então empreendemos a grande sadhana (práticas espirituais)
para livrarmos-nos da bheda bhava e realizar a unidade. Para que imaginar ou criar
bheda bhava e depois destruí-la?

P. Isto só se pode conseguir com a graça do mestre. Eu estava lendo Sri Bhagavata
e li que a felicidade absoluta somente se pode obter através do pó dos pés do mestre.
Rezo para obter a graça.

O que é a felicidade senão seu próprio ser? Você não está a parte do Ser, o qual
é igual à felicidade. Agora você pensa que é a mente e o corpo, os quais mudam e são
transitórios. Mas você não muda e é eterno. Isso é o que deve saber.

P. Há escuridão e eu sou ignorante.

A ignorância deverá desaparecer. Novamente, quem diz “sou ignorante’? Deve


ser a testemunha da ignorância. Isso é o que você é. Sócrates disse: “Só sei que não
sei.” Acaso isso pode ser a ignorância? É, na verdade, a sabedoria.
P. Então, por que me sinto triste em Vellore e sinto a paz em sua presença?

Acaso pode ser a felicidade o que sente neste lugar? Quando se vai daqui você
diz que fica triste. Esta paz, portanto, não é permanente e está misturada com a
infelicidade, a qual sente em certos lugares. Portanto, não pode encontrar a felicidade
em certos lugares ou durante certo tempo. Ela deve ser permanente para que seja
verdadeira. O que é permanente é seu próprio ser. Seja o Ser e isso é a felicidade. Você
sempre é isso.

O Ser está sempre realizado. Não é necessário buscar a realização do que já está
e que sempre esteve realizado. Você não pode negar sua própria existência. Essa
existência é a consciência, o Ser.

Se você não existisse não poderia fazer perguntas. Portanto, você tem que
admitir sua própria existência. Essa existência é o Ser. Você já está realizado. O
esforço para realizar conduz, portanto, somente a ver o erro atual de que não realizou o
Ser. Não há uma nova realização. O Ser é revelado.

P. Isso levará alguns anos.

Por que anos? A idéia do tempo só está em sua mente. Não está no Ser. Não há
tempo para o Ser. O tempo surge como uma idéia, depois que o ego surge. Mas você é
o Ser, além do tempo e do espaço. Você existe, ainda estando ausentes tanto o tempo
quanto o espaço.

Se fosse verdade que você irá realizar-se depois, isto significaria que agora
você não está realizado. A ausência da realização neste momento se pode repetir em
qualquer momento do futuro, dado que o tempo é infinito. Portanto, tal realização é
impermanente. Mas isto não é a verdade. É errôneo considerar a realização como
impermanente. É o estado verdadeiro e eterno que não se pode mudar.

P. Sim, o entenderei através do tempo.

Você já é isso. O tempo e o espaço não podem afetar o Ser. Tudo o que você vê
ao seu redor está em você. Há uma história que ilustra este ponto. Uma dama possuía
um colar de pedras preciosas e o levava ao redor do pescoço. Um dia, por estar
nervosa, esqueceu que já o havia colocado e pensou que o havia perdido. Ficou ansiosa
e o buscou em seu lar, mas não o pôde encontrar. Perguntou para seus amigos e
vizinhos se haviam visto o colar, mas lhe responderam negativamente. Por fim, um
amigo bondoso lhe disse que sentisse o colar, que estava ao redor do seu pescoço.
Entendeu que ele havia estado ali o tempo todo e ficou feliz. Quando as outras pessoas
lhe perguntaram se havia encontrado o colar perdido, respondeu: “Sim, o encontrei.”
Sentia que havia recobrado uma jóia perdida, mas, na realidade, havia ela perdido algo?
Sempre esteve ao redor do seu pescoço. No entanto, se julgamos o que ela sentiu,
vemos que se pôs tão contente como se houvesse recobrado uma jóia perdida.
Igualmente conosco, imaginamos que realizaremos o Ser num determinado momento,
mas na realidade, nunca temos sido outra coisa que o próprio Ser.
P. Deve haver algo que eu possa fazer para alcançar este estado.

Está equivocado ao pensar que há uma meta e um caminho. Somos sempre a


meta e a paz. Desfazer a noção de que não somos a paz é tudo que se requer.

P. Todos os textos nos dizem que se requer a guia de um Gurú.

O Gurú dirá o que estou dizendo agora mesmo. Não lhe dará algo que você não
tem. É impossível para qualquer um obter o que já não tem. E, se o obtém, ele
desaparecerá tal como chegou. O que chega também se vai. Só ficará o que sempre
existe. O Gurú não pode dar a você algo novo, que atualmente você não possui.
Remover a noção que não temos realizado o Ser é tudo que se requer. Sempre somos o
Ser, mas não temos nos dado conta.

Buscamos o Atma (o Ser) por todas as partes, repetindo: ‘Onde está o Atma,
onde está?’ Até que surge jnana drishti (visão do conhecimento) e então dizemos: ‘Isto
é o Atma, isto sou eu.’ Devemos adquirir esta visão. Quando alcançarmos tal visão, não
haverá ataduras ainda se nos misturarmos com o mundo e se nos deslocarmos nele.
Uma vez que se tenha posto os sapatos não se sente dor ao caminhar sobre qualquer
número de pedras ou espinhos. Do mesmo modo, tudo será natural para aqueles que
tenham obtido jnana drishti. O que pode existir a parte do Ser?

P. O estado natural pode ser conhecido somente depois que a visão mundana se
desvaneça. Mas como irá desvanecer-se?

Se a mente se aquieta, o mundo desaparecerá. A mente é a causa de tudo isto.


Ao se aquietar, o estado natural se apresenta. O Ser se proclama todo o tempo como
“Eu-Eu”. É auto-luminoso. Está aqui. Tudo isso é isso. Estamos somente nisso.
Estando nisso, por que buscá-lo? Os antigos sábios diziam: “Quando a visão se absorve
em jnana, vemos o mundo como Brahman.”
CAPITULO 3

O JNANI

Um grande número de visitantes de Sri Ramana parecia ter uma curiosidade


insaciável sobre o estado de realização do Ser e lhes interessava, em particular, saber
como era a experiência de um jnani, de si mesmo, e do mundo que o rodeia. Algumas
das perguntas sobre o tema mostravam o desconhecimento que muitas pessoas tinham
sobre este estado. Mas geralmente eram variações sobre algumas das seguintes
perguntas:

1) Como pode atuar um jnani sem a experiência da consciência individual?

2) Como pode dizer que ‘não faz nada’, o que Sri Ramana comentava frequentemente,
quando os demais o vêem ativo no mundo?

3) Como percebe o mundo? De fato, percebe o mundo nos menores detalhes?

4) Como se relaciona a experiência da consciência pura de um jnani com os estados


alternantes do corpo e da mente na vigília, sonho e sono profundo?

As premissas por trás de todas as perguntas é a crença de que há uma pessoa


(jnani) que tem a experiência de um estado que denomina o Ser. Esta premissa é falsa.
É meramente uma construção mental desenvolvida pelos que não realizaram o Ser
(ajnanis) para dar um sentido à experiência do jnani.

Mais do isso, a palavra jnani indica que há uma crença errônea, dado que
literalmente quer dizer um conhecedor de jnana, da realidade. O ajnani usa o termo
porque imagina que no mundo há buscadores da realidade e conhecedores da realidade.
A verdade do Ser é que não há nem jnanis nem ajnanis, só jnana.
Sri Ramana particularizou isto direta e indiretamente, em numerosas ocasiões,
mas muito poucos dos interlocutores podiam compreender, ainda em forma conceitual,
as implicações de tais declarações. Por isso, usualmente, adaptava suas idéias de tal
maneira que se conformassem com o pré-julgamento dos ouvintes.

Na maioria das conversas deste capítulo, aceita que os interrogantes percebem


uma distinção entre o jnani e o ajnani e, sem atacar os fundamentos de tal premissa,
resume o papel de um jnani, tratando de elucidar as implicações de estar em tal estado.

P. Qual é a diferença entre o badha e o mukta, entre o homem atado e o homem


liberado?

O homem comum vive no cérebro, sem dar-se conta de si mesmo no Coração.


O jnana siddha (jnani), vive no Coração.

Quando se desloca e se relaciona com outros homens e objetos, sabe que o que
vê não está separado da única realidade suprema, o Brahman, que realizou no Coração
como seu próprio ser: o real.

P. O que acontece com o homem comum?

Acabo de dizer que ele vê as coisas fora de si mesmo. Está separado do mundo,
de sua própria vontade mais profunda, da verdade que é o que sustenta a ele e ao que
vê. O homem que realizou a verdade suprema, a existência, sabe que a realidade
suprema é o que está por trás dele e do mundo. De fato, está consciente da unidade com
o real, consciente do Ser em todos os seres e em todas as coisas, eterno e imutável em
tudo o que é impermanente e mutável.

P. Qual é a relação entre a consciência pura que o jnani realizou e a sensação de


‘eu-sou’ que aceitamos como o elemento primário da experiência?

A consciência não diferenciada do Ser puro é o Coração ou bridayam e é o que


você é em realidade. Do Coração surge o ‘eu-sou’, como elemento primário da
experiência.

Em si mesmo, é completamente puro (suddha-sattva). Esta é sua característica


essencial. É nesta forma de pureza prístina (suddha-sattva-swarupa), sem contaminação
de rajas e tamas (atividade e inércia), que o ‘eu’ parece subsistir no jnani.

P. No jnani o ego subsiste em sua forma pura e, portanto, aparece como algo real.
Tenho razão?
A existência do ego, tanto no jnani quanto no ajnani é em si uma aparição. Mas
para o ajnani, que se confunde ao pensar que o estado de vigília e o mundo são reais, o
ego também parece ter realidade. Como vê o jnani atuando como outros indivíduos,
necessita afirmar alguma noção de individualidade com referência ao jnani.

P. Então, como funciona o Aham-vritti (o ‘pensamento-eu’, o sentido de


individualidade) no jnani?

Não funciona em nada, para ele. A natureza real do jnani é o Coração mesmo,
porque é uno e idêntico à consciência pura e não diferenciada à qual os upanishads se
referem como prajnana (consciência pura). Prajnana é realmente Brahman, o Absoluto.
Não há um Brahman que não seja prajnana.

P. Acaso um jnani tem sankalpas (desejos)?

As principais características da mente ordinária são tamas e rajas (lerdeza e


excitação); está, portanto, cheia de desejos egoístas e debilidades. Mas a mente de um
jnani é suddha-sattva (harmonia pura) e está sem forma, funcionando na sutil
vijnanamayakosha (envoltura do conhecimento) através da qual continua em contato
com o mundo. Seus desejos, portanto, também são puros.

P. Estou tratando de entender o ponto de vista de um jnani sobre o mundo. O


mundo é percebido depois da realização do Ser?

Por que você se preocupa sobre o mundo e o que vai acontecer depois da
realização do Ser? Em primeiro lugar, realize o Ser. Que importância tem se se percebe
ou não ao mundo? Acaso te serve para alguma coisa, em sua busca, a não percepção do
mundo durante o sono? Por outro lado, o que perderia agora com a percepção do
mundo? Não tem a menor importância para um jnani ou ajnani se percebem o mundo
ou não. Os dois o vêem, mas seus pontos de vista são diferentes.

P. Se o jnani e o ajnani percebem o mundo de forma similar, que diferença há


entre os dois?

Ao ver o mundo, o jnani vê o Ser, que é o substrato de tudo o que se vê, e o


ajnani, veja ou não ao mundo, é ignorante de sua existência verdadeira, o Ser.

Tome o caso das figuras em movimento sobre a tela do cinema. O que há ali
antes de começar o espetáculo? Somente a tela. Sobre esta tela você vê todo o
espetáculo e parece que as figuras são reais. Mas, trate de aproximar-se e pegá-las! O
que você pode pegar? Somente a tela sobre a qual aparecem as figuras. Depois do
espetáculo, quando desaparecerem as figuras, o que sobra? Novamente a tela.

Assim é com o Ser. Só isso existe, as figuras vão e vem. Se você se apega ao
Ser não será enganado pela aparição das figuras. Tampouco importa se as figuras
aparecem ou desaparecem. Ao ignorar o Ser, o ajnani pensa que o mundo é real, como
ao ignorar a tela vê somente as figuras como se existissem independentemente.
Se soubermos que, sem aquele que vê não há nada para ver, do mesmo modo
que sem a tela não há figuras, não nos confundiremos. O jnani sabe que a tela e as
figuras são somente o Ser. Com figuras o Ser está em forma manifesta, sem as figuras
fica em sua forma não manifesta. Para o jnani não tem a menor importância se o Ser
está numa forma ou noutra. Sempre é o Ser. Mas o ajnani se confunde ao ver o jnani
ativo.

P. É certo que Bhagavan vê ao mundo como parte integrante de si mesmo? Como


o vê?

Somente existe o Ser e nenhuma outra coisa. No entanto, é diferenciado devido


à ignorância. A diferenciação é de três classes:

1) Da mesma forma.
2) De forma distinta.
3) Como partes em si mesmo.

O mundo não é outro ser similar ao Ser. Não é distinto do Ser nem tampouco é
parte do Ser.

P. Não se reflete o mundo sobre o Ser?

Para que exista um reflexo deve haver um objeto e uma imagem. Mas o Ser não
admite tais diferenças.

P. Por acaso o jnani sonha?

Sim, sonha. Mas sabe que é um sonho, da mesma maneira que sabe que a
vigília é um sonho. Podemos chamá-los de sonho número 1 e sonho número 2. O jnani,
ao estar estabelecido no quarto estado (ou seja, turiya, a realidade suprema) é
testemunha sem apego dos outros três estados (vigília, sonho e sono profundo) como se
fossem figuras sobrepostas à turiya.

Para aqueles que experimentam vigília, sonho e sono profundo, o estado de


sono com vigília, que está além dos três estados, se denomina turiya, o quarto estado.

Porém, devido a que só existe turiya e os outros três estados não existem,
devemos reconhecer que turiya é turiyatita (isso que transcende o quarto estado).

P. Enfim, não há uma distinção, para o jnani, entre os três estados da mente?

Como pode haver distinção quando a mente mesma se dissolveu e está perdida
na luz da consciência?
Para o jnani os três estados são igualmente irreais, mas o ajnani não o pode
compreender porque para ele a medida da realidade é o estado de vigília, enquanto que
para o jnani, a medida da realidade é a realidade mesma. A realidade da consciência
pura é eterna por sua própria natureza e, portanto, subsiste sem mudança durante o que
você chama vigília, sonho e sono profundo. Para aquele que está unido à realidade, não
há mente nem seus três estados e, portanto, tampouco introversão ou extroversão.

Seu estado é estar sempre desperto, dado que o Ser eterno está desperto; sempre
está sonhando porque para ele o mundo não é mais do que um fenômeno de sonho que
se repete; seu estado é de estar sempre em sono profundo, porque em todo momento
não tem consciência de ‘eu sou este corpo.’

P. Acaso o jnani não tem dehatma buddhi (a idéia ‘eu sou o corpo’)? Por exemplo,
se um inseto pica a Bhagavan não haverá a sensação?

Há sensação e também há dehatma buddhi. Este último o compartilham o jnani


e o ajnani, com a diferença que o ajnani pensa que só é o corpo, enquanto que o jnani
sabe que tudo é o Ser, ou seja, tudo isso é Brahman. Se há dor, que assim seja. Também
isso é parte do Ser. O Ser é poorna (perfeito).

Depois de transcender dehatma buddhi, nos tornamos um jnani. Na ausência


desta idéia, não pode haver nem kartritva (sentido de fazer) nem karta (aquele que faz).
Portanto, um jnani não tem karma (um jnani não realiza nenhuma ação). Essa é sua
experiência. De outro modo não é um jnani. No entanto, o ajnani identifica o jnani com
seu corpo, o que um jnani não faz.

P. Vejo que você realiza várias ações. Como pode dizer que nunca as pratica?

O rádio canta e fala, mas, se o abrirmos, veremos que não há ninguém dentro.
Do mesmo modo, minha existência é como o espaço, ainda que o corpo fale como o
rádio, não há ninguém dentro que seja o que atua.

P. Acho isso muito difícil de entender. Poderia falar um pouco mais sobre o tema?

Vários exemplos tem sido dado em textos, para que possamos entender como o
jnani pode viver e atuar sem a mente, ainda que para viver e atuar se necessite o uso da
mente. O forno do ceramista segue dando voltas mesmo depois de que tenha sido
desligado, após se ter terminado a vasilha. Do mesmo modo o ventilador elétrico
continua girando durante alguns segundos após ser desligado. O prarabdha (o karma
predestinado) que criou o corpo, o fará passar por todas as atividades para as quais foi
criado. Mas o jnani passa por todas estas atividades sem a noção de que as está
fazendo. É difícil compreender como isso é possível. O exemplo que geralmente se
utiliza é o de que o jnani realiza ações como um menino que foi acordado para comer,
mas não se lembra que comeu, na manhã seguinte. Temos que destacar que todas estas
explicações não são para o jnani. Ele sabe e não tem dúvidas. Sabe que não é o corpo e
sabe que não está fazendo coisa alguma, ainda que seu corpo esteja realizando uma
atividade. As explicações são para que os que observam e pensam que o jnani é
idêntico ao corpo e que não podem deixar de identificá-lo com este corpo.
P. Se diz que o choque da realização é tão forte que o corpo não pode sobreviver.

Há diversas controvérsias ou correntes de pensamento sobre se um jnani pode


continuar vivendo em seu corpo físico depois da realização. Alguns pensam que, se
alguém morre, não pode haver sido um jnani, porque seu corpo desvaneceu-se no ar ou
algo similar. Propõe todo tipo de idéias curiosas. Se um homem deve deixar
imediatamente seu corpo quando realiza o Ser, me pergunto como o conhecimento do
Ser ou o estado de realização pode chegar a outros homens. E isto também quer dizer
que todos aqueles que nos deixaram os frutos de sua realização nos textos não podem
ser considerados jnanis porque continuaram vivos depois de se realizarem.

E, se se postula que um homem não pode ser considerado um jnani se realiza


alguma ação no mundo (e a ação não é possível sem a mente), então não somente os
grandes sábios que realizaram diversos trabalhos depois de conseguir jnana devem ser
considerados ajnanis, mas também os próprios deuses e até Iswara (o Deus pessoal
supremo do Hinduísmo), dado que continua ocupando-se do mundo. A verdade é que o
jnani pode realizar qualquer quantidade de ações e bem feitas, sem que ele se
identifique com as ações ou que imagine que as está fazendo. Algum poder atua através
do seu corpo e o utiliza para fazer o trabalho.

P. Pode ser ou é provável que um jnani cometa pecados?

Um ajnani vê alguém como um jnani e o identifica com aquele corpo. Como


não conhece o Ser e confunde seu corpo tomando-o como o Ser, estende o mesmo erro
ao estado de jnani. Portanto, considera o jnani como sendo a estrutura corporal.

Do mesmo modo, ainda que o ajnani não seja o que atua, imagina que o está
fazendo e considera as ações do seu corpo como pertencentes a ele e pensa que o jnani
também está atuando quando seu corpo está ativo. Mas o jnani conhece a verdade e não
se confunde. O estado de jnani não pode ser determinado pelo ajnani. Portanto, a
pergunta preocupa o ajnani e nunca surge para o jnani. Se é o ator, deve determinar a
natureza das ações. O ser não pode fazer. Encontre quem está fazendo e o Ser será
revelado.

P. Em resumo, ver um jnani é não entendê-lo. Vemos o corpo do jnani, mas não
sua jnana. Devemos ser um jnani para reconhecer a um jnani.

Um jnani não vê ninguém como um ajnani. Segundo sua visão, todos são
jnanis. No estado de ignorância, esta ignorância é sobreposta sobre o jnani, que é
confundido com o ator. No estado de jnana, o jnani não vê coisa alguma que esteja
separada do Ser. O Ser brilha em todo lugar e é jnana puro. O ajnana não é visto. Há
um exemplo sobre este tipo de ilusão ou sobre-imposição. Dois amigos dormiam, um
ao lado do outro. Um sonhava que os dois haviam feito uma longa viagem, cheia de
experiências muito estranhas. Ao despertar, contou-as ao amigo e lhe perguntou se não
havia acontecido assim. O amigo brincou com ele, dizendo que havia sido só um sonho
e que ele não havia sido afetado. Assim acontece com o ajnani, ao impor suas idéias
ilusórias sobre os outros.
P. Você disse que o jnani pode estar ativo, lidando com homens e objetos. Não
tenho dúvidas sobre isto. Mas, ao mesmo tempo, disse que ele não vê diferenças, que
para ele tudo é um e sempre está nessa consciência. Se é assim, como pode então
conduzir-se entre homens e objetos que, seguramente, são distintos?

Ele só vê as diferenças como aparências e não separadas do verdadeiro, do real,


com o qual está unido.

P. O jnani parece ser mais exato em suas expressões e aprecia as diferenças com
mais clareza que o homem comum. Se o açúcar é doce e o absinto é amargo para mim,
ele também parece reconhecê-lo. De fato, todas as formas, sons, sabores, etc, são iguais
para nós. Se é assim, como se pode dizer que são simples aparências? Acaso não
formam parte de suas experiências na vida?

Eu disse que a igualdade é a marca do verdadeiro jnana. O termo ‘igualdade’


implica a existência de diferenças. O jnani percebe uma unidade em todas as
diferenças, e é isto que eu chamo ‘igualdade’: a igualdade não implica uma ignorância
das diferenças. Quando estiverem realizados poderão ver que as diferenças são muito
superficiais, que não são substanciais ou permanentes e o que é essencial em toda
aparência é a única verdade: o real. A isso eu chamo igualdade. você se referiu a sons,
sabores, formas, odores, etc. Na verdade, o jnani aprecia as diferenças, mas sempre
percebe e tem experiência da realidade única em todas elas. Por isso não tem
preferências. Quando se move, fala ou atua, o faz dentro da única realidade, na qual
atua, se move ou fala. Não há coisa alguma a parte da única verdade suprema.

P. Se diz que o jnani se comporta com absoluta igualdade para com todas as
pessoas.

Assim é. A amizade, a bondade, a felicidade e tais bhavas (atitudes) se tornam


naturais para eles. O gosto pelo bem, a bondade para com os necessitados, a felicidade
ao fazer atos bons, o perdão aos malvados, são todas características naturais do jnani
(Patanjali, Yoga Sutra 1:37).

Você pergunta sobre os jnanis; eles são os mesmos durante qualquer estado ou
condição, conhecendo a realidade, a verdade. Em sua rotina diária de comer, mover-se,
etc, os jnanis só atuam para os outros. Não realizam nem uma só ação para eles
mesmos. Mencionei-lhes que, assim como há pessoas cuja profissão é mostrar pena, do
mesmo modo os jnanis realizam ações para outros, sem identificar-se e sem ser
afetados pelas mesmas.

O jnani chora com os que choram, ri com os que riem, joga com os que jogam,
canta com os que cantam, levando o compasso da canção. O que podem perder? O
jnani, que é somente um espelho, não se altera com suas ações. Sua presença é como a
de um espelho, puro e transparente. Reflete a imagem exatamente como é. Como
podem as diversas imagens alterar tanto o espelho quanto ao marco sobre o qual ele
está montado? Nada lhes afeta, dado que são o fundo. Por outro lado, os atores no
mundo, os que executam todas as ações, ou seja, os ajnanis, devem decidir que canção
e que ato beneficia ao mundo, que esteja de acordo com sastras e que se possa colocar
em prática.
P. Se diz que há sadeha mukta (liberados no corpo) e vidheha mukta (liberados no
momento da morte).

Não há liberação e, ademais, onde estão os muktas?

P. Por acaso não falam os sastras hindus sobre mukti?

Mukti é sinônimo de Ser. Jivan Mukti e vidheha mukti existem para o


ignorante. O jnani não está consciente de mukti ou bandha. Escravidão, liberação e
níveis de mukti se utilizam para o ajnani com o fim de que se acabe sua ignorância. Só
há mukti e nada mais.

P. Isto é correto desde o ponto de vista de Bhagavan. Mas o que acontece com a
gente?

A diferença de ‘ele’ e ‘eu’ são os obstáculos à jnana.

P. Você, uma vez, disse o seguinte: ‘O homem liberado tem liberdade de atuar
como quiser e quando deixa o corpo chega à absolvição e não renasce, o que, em
realidade, é morrer. ’ Isto dá a impressão que, se bem que o jnani não nasça neste
plano, pode continuar em outros planos, se assim o deseja. Mas, por acaso, ele tem
algum desejo que o faz escolher?

Não, essa não foi minha intenção.

P. Além disso, um filósofo indiano, num de seus livros, ao interpretar a Sankara,


disse que não existe um estado chamado vidheha mukti, pois ao morrer o mukta toma
um corpo de luz, no qual continua até que toda a humanidade chegue à liberação.

Isso não pode ser o que disse Sankara. No verso 560 de Vivekachudamani diz-
se que, depois da dissolução da envoltura física, o homem liberado se converte em
‘água despejada em água e azeite em azeite. ’ É um estado no qual não há escravidão
nem liberação. Se tomasse outro corpo, seria sobrepor um véu, ainda que mais sutil,
sobre a realidade, o qual seria uma escravidão. A liberação é absoluta e irrevogável.

P. Como alguém pode dizer que o jnani não está em dois planos? Desloca-se
conosco no mundo e vê os diversos objetos que nós vemos. Não é como se não nos
visse. Por exemplo, se está caminhando, vê o caminho que percorre. Supondo que haja
uma cadeira ou mesa no caminho, a vê, desvia para o lado e se esquiva. Não temos que
admitir, portanto, que o jnani vê o mundo e os objetos e, ao mesmo tempo, vê ao Ser?

Você disse que o jnani vê o caminho, o percorre, se encontra com obstáculos,


se desvia, etc. Quem vê tudo isto, o jnani ou você? Ele somente vê o Ser e tudo no Ser.
P. Por acaso não existem exemplos em nossos textos que expliquem claramente o
estado de sahaja (natural)?

Sim, existem. Por exemplo, você vê um reflexo no espelho e o espelho também.


Sabe que o espelho é o real e a imagem é só um reflexo. Por acaso é necessário deixar
de ver o reflexo para poder ver o espelho?

P. Quais são as provas fundamentais para reconhecer a homens de grande nível


espiritual, dado que se reporta que alguns deles se comportam como se estivessem
dementes?

O jnani é o único que conhece sua própria mente. Devemos ser um jnani para
reconhecer a outro jnani. No entanto, a paz mental que envolve a atmosfera do santo é
a única maneira pela qual o buscador compreende a magnitude do santo. Suas palavras,
ações ou sua aparência não são indicadores da sua grandeza, dado que usualmente
estão além da compreensão das pessoas comuns.

P. Por que dizem as escrituras que o sábio é como uma criança?

Uma criança e um jnani são similares em certo aspecto. Para uma criança, as
coisas têm interesse enquanto estão acontecendo. Deixa de pensar nelas depois que
passaram. Portanto, é certo que não deixam uma impressão sobre a criança e não a
afetam mentalmente. Assim também ocorre com um jnani.

P. Você é Bhagavan e deveria saber quando vou conseguir obter jnana. Diga-me,
quando vou me tornar um jnani?

Sim, sou Bhagavan; não há nada separado do Ser, ou seja, nem jnani nem
ajnani. Pelo contrário, sou igual a você e sei o mesmo que você. De qualquer modo,
não posso responder sua pergunta.

Quando vem aqui, algumas pessoas não perguntam sobre si mesmas. Fazem
estes tipos de perguntas: “Vê o jivan mukta ao mundo? É afetado pelo carma? Como é
a libertação depois de deixar o corpo? Podemos nos liberar enquanto estamos no corpo
ou somente depois de deixá-lo? Devemos nos dissolver em luz ou desaparecer?
Podemos nos liberar mesmo deixando o corpo para trás, como um cadáver?”

As perguntas são intermináveis. Por que vocês se preocupam de tantas


maneiras? Acaso a liberação consiste em saber tudo isso?

Digo-lhes, portanto: Deixem de lado a liberação. Há escravidão? Conheçam


isto. Vejam a vós mesmos primeiro e essencialmente.
SEGUNDA PARTE

INDAGAÇÃO E ENTREGA

“Eu existo” é a única experiência permanente e auto-evidente de todas as pessoas.


Nada é tão evidente quanto ‘eu sou’. O que as pessoas chamam de evidente, ou seja,
a experiência que se obtém através dos sentidos, não é de modo algum evidente. Só o
Ser se apresenta como tal. Portanto, realizar a indagação do eu e ser o “Eu Sou” é a
única coisa que devemos fazer. “Eu Sou” é a realidade. Eu sou ‘isto’ ou o ‘outro’ é
irreal. “Eu Sou” é a verdade; este é outro nome para o Ser.

A devoção é somente conhecer a si mesmo.

Ao ver cuidadosamente, constatamos que a devoção suprema e jnana são, em


essência, um e o mesmo. Dizer que um dos dois é o caminho até o outro se deve a que
não se conhece a natureza de nenhum dos dois. Saiba que o caminho de jnana e o da
devoção estão inter-relacionados. Siga estes dois inseparáveis caminhos, sem separar
um do outro.
CAPITULO 4

INDAGAÇÃO DO EU - TEORIA

No capitulo sobre consciência de si mesmo e ignorância de si mesmo Sri


Ramana afirmava que a indagação do eu podia ser conseguida simplesmente ao se
soltar a idéia de que há um ser individual que funciona através do corpo e da mente.
Alguns de seus devotos avançados conseguiram isto rapidamente e com facilidade, mas
outros acharam virtualmente impossível descartar hábitos arraigados de toda uma vida
sem realizar algum tipo de prática espiritual. Sri Ramana aceitava de bom modo suas
dificuldades e, quando era questionado sobre qual prática espiritual ele recomendava
para facilitar a consciência do Ser, aconselhava uma técnica que denominou ‘a
indagação do eu.’ Este método foi a base de sua filosofia prática e os próximos três
capítulos estarão dedicados a apresentar detalhadamente seus aspectos.

Antes de começar a descrever o método em si, será necessário explicar o ponto


de vista de Sri Ramana sobre a natureza da mente, dado que a indagação do eu tem por
objetivo descobrir pela experiência própria que a mente não existe. De acordo com Sri
Ramana, toda atividade consciente da mente ou do corpo supõe implicitamente que há
um ‘eu’ fazendo algo. O fator comum: ‘eu penso’, ‘eu me recordo’, ‘eu atuo’, é o ‘eu’
que assume a responsabilidade de todas as atividades. Sri Ramana chamava a este fator
o ‘pensamento-eu’ (aham-vritti). Aham vritti, literalmente, significa ‘modificação
mental do eu.’ O Ser ou “Eu” real nunca imagina que está fazendo ou pensando algo;
enquanto que o ‘eu’ que imagina tudo isto é uma criação mental e por isso é
denominado uma modificação mental do Ser. Dado que esta frase é um pouco longa,
aham-vritti é usualmente traduzido como o ‘pensamento-eu’.

Sri Ramana afirmava que a noção de individualidade não é nada mais que o
‘pensamento-eu’ que se manifesta em diversas formas. Em lugar de tomar as distintas
atividades da mente (o ego, o intelecto, a memória) como funções separadas, preferia
vê-las como distintas formas do ‘pensamento-eu.’ Assim, a individualidade é igual à
mente e a mente é igual ao ‘pensamento-eu’, concluindo-se que o desaparecimento do
sentido da individualidade (ou seja, a realização do Ser) implica também no
desaparecimento tanto da mente quanto do ‘pensamento-eu.’ Isto era afirmado em seus
frequentes comentários sobre o estado posterior à realização do Ser, no qual não há um
‘pensador de pensamentos’, não há um ‘ator de ações’, nem consciência de uma
existência individual.
Ao manter a noção que o Ser é a única realidade existente, considerava que o
‘pensamento-eu’ é uma suposição que não tem existência real. Explicava que seu
aparecimento dependia da identificação com um objeto. Quando surgem pensamentos,
o ‘pensamento-eu’ os reclama como próprios: ‘eu penso’, ‘eu crio’, ‘eu quero’, ‘eu
estou atuando’. Mas não há um ‘pensamento-eu’ que exista em forma independente dos
objetos com os quais se identifica. Parece existir como uma entidade real e contínua
devido ao fluxo incessante de identificações sucessivas. Quase todas as identificações
se baseiam na premissa inicial de que o ‘eu’ está limitado ao corpo, seja como dono-
ocupante ou co-existente com a forma física. Esta idéia, ‘eu sou o corpo’, é a fonte
inicial de todas as identificações equivocadas e sua dissolução é a meta principal da
indagação do eu.

Sri Ramana afirmava que a tendência até as identificações auto-limitantes


podiam diminuir ao se tratar de separar o sujeito ‘eu’ dos objetos com os quais se havia
identificado. Dado que o ‘pensamento-eu’ individual não pode existir sem um objeto,
se a atenção é focada na percepção subjetiva de ‘eu’ ou ‘eu sou’ com tal intensidade
que os pensamentos ‘eu sou isto’ ou ‘eu sou aquilo’ não apareçam, então o ‘eu’
individual não poderá conectar-se com os objetos. Se se mantém a consciência do ‘Eu’,
o ‘eu’ individual (ou seja, o ‘pensamento-eu’) desaparecerá e, em seu lugar haverá uma
experiência direta do Ser. Esta atenção constante à consciência interna do ‘Eu’ ou “Eu
sou” foi denominada por Sri Ramana a ‘indagação do eu’ (vichara) e ele a
recomendava como a via mais efetiva e direta para descobrir a irrealidade do
‘pensamento-eu’.

Na terminologia usada por Sri Ramana, o ‘pensamento-eu’ surge do Ser ou do


Coração e regressa ao Ser quando a tendência a identificar-se com objetos cessou. Por
isso adaptava frequentemente suas expressões para dar a imagem de um ‘Eu’ que surge
e retorna. Às vezes dizia: ‘Persiga o pensamento-eu até sua fonte” ou “Busque de onde
surge o ‘eu”; no entanto, as implicações eram sempre as mesmas. Qualquer que fosse o
termo utilizado, sempre estava aconselhando seus devotos a manter a consciência do
‘pensamento-eu’, até que, por fim, ela se dissolvesse na fonte da qual havia surgido.

Algumas vezes, mencionava que pensar ou repetir a palavra ‘eu’ mentalmente


também leva a pessoa à direção correta, mas é importante notar que isto é somente uma
etapa preliminar da prática. A repetição do ‘eu’, todavia, envolve a um sujeito (o
‘pensamento-eu’) que tem a percepção de um objeto (os pensamentos ‘eu-eu’), e
enquanto exista esta dualidade o ‘pensamento-eu’ continuará sobrevivendo. Só
desaparecerá finalmente quando a percepção de todos os objetos, tanto físicos como
mentais, tiver cessado. Isto não se consegue através de estar consciente de um ‘eu’ mas
somente sendo o “Eu”. Esta etapa, na qual se tem a experiência de sujeito em lugar da
consciência de um objeto, é a fase culminante da indagação do eu e será explicada com
maiores detalhes no capitulo seguinte.
Este último ponto é o elemento chave que distingue a indagação do eu de quase
todas as outras práticas espirituais e explica porque Sri Ramana afirmava
consistentemente que a maioria das demais práticas não eram efetivas. Frequentemente
sublinhava que as meditações tradicionais e práticas de Yoga requerem um sujeito que
medite sobre um objeto e usualmente acrescenta que este tipo de relação reforçava o
‘pensamento-eu’ em lugar de eliminá-lo. Desde seu ponto de vista tais práticas podem
aquietar a mente e às vezes podem produzir experiências de êxtase, mas não terminarão
na realização do ser, porque o ‘pensamento-eu’ não é isolado e desprovido de sua
identidade.

As conversações que compõe este capítulo tratam os pontos de vista de Sri


Ramana sobre os fundamentos teóricos da indagação do eu. Os aspectos práticos da
técnica se explicarão com maior detalhe no capítulo 5.

P. Qual é a natureza da mente?

A mente não é mais do que o ‘pensamento-eu’. A mente e o ego são um e o


mesmo. As outras faculdades mentais, tais como o intelecto e a memória, são só isso. A
mente (manas) e o intelecto (buddhi), a acumulação de tendências (chittam) e o ego
(ahamkara): tudo isso é a mente. É como dar distintos nomes a um homem, conforme
suas diferentes funções. A alma individual (jiva) não é outra coisa senão esta alma ou
ego.

P. Como posso descobrir a natureza da mente, ou seja, sua causa última, ou o


númeno do qual é uma manifestação?

Se você ordenar os pensamentos por importância, o ‘pensamento-eu’ será o


mais significativo. A idéia ou pensamento da personalidade é a raiz ou fonte de todos
os outros pensamentos, dado que cada idéia ou pensamento somente surge para alguém
e não podem existir independentes do ego.

O ego mostra a atividade denominada pensamento. A segunda e terceira pessoas


(você, ele, isso, etc) só aparecem para a primeira pessoa (eu). Portanto, só surgem
depois da primeira pessoa, ainda que pareça que os três surgem ao mesmo tempo.
Busque a causa última do ‘eu’ ou da personalidade.

De onde surge este ‘eu’? Busque dentro, então ele desaparecerá. Esta é a busca
da sabedoria. Quando a mente investiga incessantemente sua própria natureza, ocorre
que não há tal fenômeno chamado mente. Este é o método mais direto, para todos. A
mente é só um conjunto de pensamentos. De todos os pensamentos, o pensamento ‘eu’
é a raiz. Portanto, a mente é só o pensamento ‘eu’. O ‘pensamento-eu’ é o nascimento
de si mesmo e sua morte é a morte da pessoa. Depois de haver surgido o ‘pensamento-
eu’, se estabelece uma identidade equivocada com o corpo. Desfaça-se do
‘pensamento-eu’. Enquanto ele existe haverá sofrimento. Quando o ‘eu’ deixa de
existir , o sofrimento se acaba.

P. Sim, mas quando busco o ‘pensamento-eu’, outros pensamentos chegam e me


distraem. O que devo fazer?
Veja de quem são, assim desaparecem. Eles têm sua fonte no singular
‘pensamento-eu’. Tome-o e os outros desaparecerão.

P. Como é possível que uma indagação iniciada pelo ego revele sua própria
identidade?

A existência do ego como fenômeno se transcende quando a pessoa submerge


na fonte onde nasce o ‘pensamento-eu’.

P. Mas não é por acaso o aham-vritti somente uma das três formas em que se
manifesta o ego? No Yoga Vashita e outros textos antigos ele é descrito como se
tivesse três formas.

Assim é. Ao ego são atribuídos três corpos: o grosseiro, o sutil e o causal, mas
isto é somente para dar uma exposição analítica. Se a indagação dependesse das formas
do ego, poderia dizer-se que qualquer investigação seria quase impossível porque as
formas do ego são inumeráveis. Para realizar a indagação do eu, portanto, você tem que
proceder sobre a base que o ego tem uma forma e essa base é o aham-vritti.

P. Mas pode ser isto inadequado para realizar jnana?

A indagação do eu por meio da busca do aham-vritti é igual ao modo que um


cachorro busca seu dono. Este último pode estar a uma grande distância, num lugar
desconhecido, mas isto não impede que o cachorro o rastreie. O cheiro do dono é a
pista infalível para o animal e não outros dados tais como sua roupa, peso, estatura, etc.
O cachorro se aferra à pista, sem distração, ao buscar seu dono e ao final o encontra.

P. Persiste a pergunta de por que a busca da fonte do aham-vritti e não outros


vrittis (modificações da mente) deve ser considerada a forma mais direta até a
realização do Ser.

Se bem que o encontro do ‘eu’ ou do ‘meu’ é denominado usualmente como


aham-vritti, realmente não é um vritti (modificação) como os outros vrittis da mente.
Os outros vrittis não têm uma relação entre si, enquanto que o aham-vritti é igual e
essencialmente relacionado a cada um dos vrittis da mente. Sem o aham-vritti não pode
haver outros vrittis, mas o aham-vritti pode subsistir por si mesmo, sem depender dos
outros vrittis da mente. O aham-vritti, portanto, é fundamentalmente distinto dos outros
vrittis.

Enfim, a busca da fonte do aham-vritti não é meramente uma busca sobre a base
de uma forma do ego, mas sim da fonte mesma de onde surge o sentido do ‘eu sou’.
Em outras palavras, a busca e realização da fonte do ego na forma de aham-vritti
implica transcender o ego em todas suas possíveis formas.
P. Admito que o aham-vritti contém essencialmente todas as demais formas do
ego, mas, por que escolher a este vritti somente para realizar a indagação do eu?

Porque é o único dado irredutível de sua experiência e porque buscar sua fonte é
a única forma prática que você pode adotar para realizar o Ser. Diz-se que o ego tem
corpo causal (o estado do ‘eu’ durante o sono profundo), mas, como pode você chegar
a utilizá-lo como sujeito de sua investigação? Quando o ego toma esta forma você está
submerso na escuridão do sono.

P. Mas por acaso o ego não é demasiado intangível em suas formas sutil e causal
para que a indagação da fonte, ou o aham-vritti, realizado na vigília, seja eficaz?

Não. A indagação sobre a fonte do aham-vritti toca a existência mesma do ego.


Portanto, a sutileza da forma do ego não deve ser considerada.

P. Se a meta final é realizar o Ser, em forma pura e não condicionada, o que de


nenhuma maneira depende do ego, como pode a indagação sobre o ego na forma de
aham-vritti ser de alguma utilidade?

Desde o ponto de vista de seu funcionamento, o ego tem uma e somente uma
característica. O ego funciona como o nó entre o Ser, que é a consciência pura, e o
corpo, que é inconsciente e inerte. O ego é chamado chit-jada-ghanti (o nó entre a
consciência e o corpo inerte). Na investigação sobre a fonte do aham-vritti tomamos o
aspecto essencial de chit (consciência) do ego. Por esta razão, a indagação deve levá-lo
a realizar a consciência pura do Ser.

Você deve distinguir entre o “Eu” puro em si e o ‘pensamento-eu’. Este último


é meramente um pensamento, vê o sujeito e o objeto, dorme, desperta, come, pensa,
morre e reencarna. Mas o “Eu’ puro é a existência pura, eterna, livre de ignorância e da
ilusão do pensamento. Se você se mantém como “Eu”, ou seja, unicamente como seu
ser, sem pensamentos, o ‘pensamento-eu’ desaparecerá e a ilusão se desvanecerá para
sempre. No cinema só se pode ver o espetáculo numa luz muito fraca ou na escuridão.
Mas quando se ligam todas as luzes, as figuras desaparecem. Assim pois, na luz total e
constante do atman, desaparecem todos os objetos.

P. Esse é o estado transcendental.

Não. Quem transcende e o que é transcendido? Só você existe.

P. Se diz que o Ser está além da mente e, por sua vez, a realização é com a mente.
“A mente não o pode pensar. Não é ‘pensável’ pela mente e só a mente o pode
realizar.” Como se pode reconciliar estas contradições?

O atman se realiza com mruta manas (mente morta), ou seja, sem pensamentos
e voltada para dentro. Então a mente vê sua própria fonte e se converte nisso (o Ser).
Não é como se um sujeito visse um objeto.
Quando um quarto está escuro necessita-se uma lâmpada para iluminar e olhos
para se perceber os objetos. Mas quando o sol sai, não há necessidade de lâmpada para
ver os objetos. Para ver o sol não é necessária uma lâmpada, mas apenas voltar os olhos
para ele, que é auto-resplandecente.

O mesmo acontece com a mente. Para ver objetos, se necessita da luz refletida
da mente. Para ver o Coração, só é necessário que se volte a mente até ele. Então a
mente se perde e o Coração brilha sozinho.

A essência da mente é somente a consciência. No entanto, quando o ego a


domina, funciona como a faculdade de pensar ou sentir. A mente cósmica, que não está
limitada pelo ego, não tem algo separado de si mesma e, portanto, está só consciente.
Isto é o que a Bíblia quer dizer com “Sou o que Sou”.

Quando a mente morre na consciência suprema do Ser, todos os poderes,


começando pelo de gostar (incluindo o de fazer e saber) desaparecerão completamente,
ao descobrir que eram o resultado da imaginação que aparecia na forma da consciência
de si mesmo. A mente impura, que funciona como o pensador e o que esquece, é só
samsara, ciclos de nascimentos e mortes. O “Eu” real, no qual o pensar e o esquecer
morreram, é a liberação pura; não tem pramada (esquecimento do Ser), que é a causa
do nascimento e da morte.

P. Como se destrói o ego?

Pegue primeiro o ego e depois se pergunte como destruí-lo. Quem faz a


pergunta? É o ego. A pergunta é uma boa forma de afirmar o ego e não de matá-lo. Se
você busca o ego, descobrirá que ele não existe. Esta é a maneira de destruí-lo.

P. Como é possível realizar-se?

Existe o Ser absoluto, do qual surge uma chispa, como se fosse uma fogueira. A
chispa é o ego. No caso de um homem ignorante, se identifica com um objeto no
momento que surge. Não pode manter-se independente de tal associação com objetos.
A associação é ajnana ou a ignorância, e sua destruição é a finalidade de nossos
esforços. Se sua tendência a objetivar-se é anulada, se manterá puro e desaparecerá em
sua fonte. A identificação errônea com o corpo é dehatma buddhi (a idéia ‘eu sou o
corpo’). Esta deve desaparecer para alcançarmos resultados favoráveis.

O “Eu”, em sua forma pura, se pode experimentar no intervalo entre dois


estados ou dois pensamentos. O ego é como uma larva, que só deixa uma folha depois
de haver segurado outra. Sua natureza real se pode conhecer quando está fora de
contato com objetos e pensamentos.

Este ego fantasmagórico não tem forma, só existe ao aderir-se a uma forma,
dura enquanto tem esta forma; ao alimentar-se de novas formas, vai incrementando-se.
Ao deixar uma forma, toma outra, mas quando o buscamos, desaparece.
Somente se existe a primeira pessoa, o ego, na forma ‘eu sou o corpo’, podem
existir a segunda e a terceira pessoas (você, ele, eles,etc). Se, ao indagar sobre a
verdade da primeira pessoa, ela chega a ser destruída, também deixarão de existir a
segunda e a terceira pessoas; então nossa própria natureza brilhará, dado que estaremos
no estado de Ser.

O pensamento ‘eu sou este corpo de sangue e osso’ é o fio sobre o qual se
penduram os demais pensamentos. Se nos dirigimos para dentro perguntando: “Onde
está este eu?” todos os pensamentos (incluindo o ‘pensamento-eu’) terminarão e o
conhecimento do Ser surgirá espontaneamente.

P. Ao ler os textos de Sri Ramana vejo que a indagação é o único método para
realizar-se.

Sim, isto é vichara (indagação).

P. Como devemos fazer?

Aquele que me está interrogando deve admitir a existência de seu Ser. “Eu Sou”
é a realização. Seguir esta chave até a realização é vichara. Vichara e realização são o
mesmo.

P. Tudo isto não é claro. Sobre o que devo meditar?

Para meditar se necessita um objeto, enquanto que em vichara só está o sujeito,


sem objetos. Neste ponto a meditação e vichara diferem.

P. Por acaso dhyana (meditação) não é um processo eficaz para realizar-se?

Dhyana é a concentração sobre um objeto. Cumpre o propósito de afastar os


diversos pensamentos e aferrar a mente a um pensamento único, o qual tem que
desaparecer para que haja realização. Mas a realização não é algo novo, que possa ser
obtido. Já está aqui, mas está obstruída por uma cortina de pensamentos. Todos nossos
esforços devem ser dirigidos a levantar esta cortina, revelando a realização.

Se os buscadores são aconselhados a meditar, muitos partirão satisfeitos com o


que lhes foi dito. Mas algum entre eles dará meia volta e perguntará: “Quem sou eu
para meditar sobre um objeto?” A esta pessoa deveremos responder que encontre o Ser.
Essa é a finalidade, isso é vichara.

P. Poderá vichara lograr a realização sem a meditação?

Vichara é o processo e a meta. “Eu Sou” é a meta e a última realidade. Aferrar-


se a isso com esforço é vichara. Quando se torna espontâneo e natural, se chama
realização.
Se alguém abandona vichara, que é a sadhana mais eficaz, não haverá outra
maneira adequada de destruir a mente. Se se consegue apaziguar, usando outros
métodos, permanecerá assim um tempo, mas logo ressurgirá. A indagação do eu é o
método infalível. O único que é direto para podermos realizar o que não está
condicionado, o Ser absoluto, que é, na verdade, você.

P. Por que a indagação do eu é a única maneira de dirigir-se diretamente até jnana?

Porque toda sadhana, exceto atma-vichara (a indagação do eu), pressupõe a


retenção da mente como instrumento que realiza a sadhana, não podendo ser praticado,
portanto, sem a mente. O ego pode tomar diferentes formas e ainda mais sutis nas
diferentes etapas da prática, mas não seria destruído.

Quando Janaka disse: “Agora por fim descobri o ladrão que esteve me
arruinando todo este tempo. Lidarei com ele imediatamente”, estava se referindo ao
ego, ou a mente.

P. Mas o ladrão também pode ser apanhado por outras sadhanas.

Tratar de destruir o ego ou a mente por meio de sadhanas que não sejam atma-
vichara é como se um ladrão fingisse ser a polícia para prender a si mesmo. Só atma-
vichara pode revelar a verdade de que nem o ego nem a mente realmente existem e,
desta maneira, possibilitar a pessoa que realize a natureza não diferenciada e pura do
Ser, ou o Absoluto.

Ao realizar o Ser não resta nada para ser conhecido, pois é a felicidade perfeita,
é o todo.

P. Por que a indagação do eu é um método mais direto que os outros?

Prestar atenção ao Ser, que brilha sempre como “Eu”, a única pura realidade,
sem divisões, é o único barco com o qual o indivíduo, confundido por pensar ‘eu sou
este corpo’; pode cruzar o mar de um sem fim de nascimentos.

A realidade é simplesmente a perda do ego. Destrua o ego buscando sua


identidade. Dado que o ego realmente não é uma identidade, desaparecerá
automaticamente e a realidade surgirá por si mesma. Este é o método direto, enquanto
que os outros só se realizam retendo-se o ego. Nesses caminhos sempre há dúvidas e a
eterna pergunta:’quem sou eu?’, permanece para ser resolvida no fim. Porém, neste
método, a última pergunta é a única e é enfrentada desde o princípio. Nenhum sadhana
é necessário para empreendermos esta busca.

Não há maior mistério do que este: sendo a realidade, tratamos de alcançá-la.


Acreditamos que algo está cobrindo nossa realidade e deve ser destruído antes que a
realidade seja alcançada. Tudo isto é ridículo. Um bom dia você mesmo se rirá dos seus
esforços passados. Isto que estará neste dia já está aqui, agora.
CAPITULO 5

INDAGAÇÃO DO EU – PRÁTICA

Sri Ramana aconselhava aos principiantes na prática da indagação do eu que


pusessem sua atenção sobre a percepção interior de ‘eu’ e que a mantivessem durante o
maior tempo possível. Indicava que, se a atenção se dispersava devido a outros
pensamentos, que a voltasse sobre o ‘pensamento-eu’. Sugeria diversos apoios para
continuar o processo, tal como o perguntar-se ‘quem sou eu?’ ou então ‘de onde surge
este ‘eu’?’. Mas a meta final é estar continuamente atento ao ‘eu’, que assume a
responsabilidade de todas as atividades do corpo e da mente.

Nas primeiras etapas da prática a atenção que se dá à percepção do ‘eu’ é uma


atividade mental semelhante a um pensamento ou uma sensação. Ao desenvolver a
prática, o ‘pensamento-eu’ se converte numa sensação subjetiva da experiência do ‘eu’
e quando dita sensação deixa de conectar-se e identificar-se com pensamentos e
objetos, desaparece completamente. O que resta é uma experiência da existência na
qual o sentido de individualidade deixa de operar temporariamente. No começo a
experiência pode ser intermitente mas, com uma prática repetida, se torna mais fácil de
ser obtida e mantida. Quando a indagação do eu chega a este nível, há uma consciência
sem esforço por existir, na qual o esforço individual já não é possível, dado que o ‘eu’
que faz o esforço deixou de existir momentaneamente. Não é ainda a realização do Ser,
porque o ‘pensamento-eu’ volta a surgir periodicamente, mas é a etapa mais elevada da
prática. A experiência deste estado de existência, em repetidas ocasiões, vai debilitando
e destruindo os vasanas (tendências mentais), que causam o ‘pensamento-eu’. Quando
estes se debilitam o suficiente, o poder do Ser destrói as tendências residuais totalmente
e o ‘pensamento-eu’ nunca volta a surgir. Este é o estado final e irreversível da
realização do Ser.

O método de prestar atenção a si mesmo ou estar consciente do ‘pensamento-


eu’ é uma técnica suave, que não utiliza métodos repressivos para controlar a mente.
Não é um exercício de concentração nem trata de suprimir os pensamentos: procura
simplesmente prestar atenção à fonte de onde surge a mente. O método e meta da
indagação do eu significa manter-se na fonte da mente e estar atento ao que realmente
somos, ao tirar o interesse e a atenção do que não somos.
Durante as etapas iniciais, o esforço de transferir a atenção dos pensamentos ao
pensador é essencial. Mas, uma vez que o sentido de ‘eu’ se tenha estabelecido
firmemente, qualquer esforço adicional é contraproducente. Dali em diante se torna um
processo mais de ser e não de fazer; sem esforço e não de um esforço por ser.

Ser o que cada um já é não requer esforço, dado que o sentido de ser sempre
está presente e sempre se experimenta. Por outro lado, o pretender ser o que não se é
(ou seja, o corpo e a mente) requer esforços mentais constantes, ainda que sejam
realizados num nível subconsciente. Enfim, o Ser não se pode descobrir fazendo algo,
mas sim somente sendo. Como disse Sri Ramana uma vez:

“Não medite, seja!


Não pense que é, seja!
Não pense como ser, seja!”

A indagação do eu não deve ser qualificada como uma prática de meditação que
se realiza a certas horas e em certas posturas; deve continuar através de todo o dia
enquanto estejamos despertos, sem importar a atividade que desempenhamos. Sri
Ramana não via nenhum conflito entre o trabalho ordinário e a indagação do eu; dizia
que, com um pouco de prática, se podia realizar em todo tipo de circunstâncias. Por sua
vez, dizia que, para os principiantes, períodos regulares de prática formal eram úteis,
mas nunca foi partidário de longos períodos de meditação em silêncio e sentado.
Ademais, sempre se opôs a que algum de seus discípulos deixasse suas atividades
mundanas em favor de uma vida meditativa.

P. Podemos realizar o Ser ao buscá-lo. Em que consiste a busca?

Você é a mente ou pensa que é a mente. A mente consiste só em pensamentos.


Mas detrás de cada pensamento em particular existe um pensamento geral que é o ‘eu’,
ou seja, você mesmo. Chamemos a este ‘eu’ o primeiro pensamento. Aferre-se a este
‘pensamento-eu’ e indague sobre ele para descobrir o que você é. Quando esta pergunta
lhe tomar com intensidade, você não poderá ter outros pensamentos.

P. Quando faço isto e me aferro ao ser, ou seja, ao ‘pensamento-eu’, outros


pensamentos vão e vem, mas digo: ‘quem sou eu?’ e não há uma resposta. Estar nessa
condição é a prática, não é?

Este é um erro que as pessoas geralmente cometem. Quando fazemos um


esforço sério para chegar ao Ser, o ‘pensamento-eu’ desaparece e algo das profundezas
nos toma; isso não é o ‘eu’ que começou a busca.

P. O que é esta outra coisa?

É o Ser real, o que realmente quer dizer “Eu”. Não é o ego, mas sim o Ser
supremo mesmo.
P. Mas em várias ocasiões você disse que, ao princípio, devemos rechaçar os
outros pensamentos, mas eles não tem fim. Se um pensamento é recusado, um outro
vem e parece que nunca vão acabar.

Eu não lhe disse que você tem que seguir recusando os pensamentos. Aferre-se
a você mesmo, ou seja, ao ‘pensamento-eu’. Quando seu interesse se mantiver sobre
esta mesma idéia, os outros pensamentos serão recusados automaticamente e
desaparecerão.

P. Não é necessário, portanto, rechaçar os pensamentos?

Não. Pode ser necessário por algum tempo ou para algumas pessoas. Você
acredita que não se chega a um final ao rechaçar cada pensamento que surge. Não é
verdade; há, sim, um final. Se você vigiar cuidadosamente e fizer um esforço constante
por rechaçar cada pensamento quando este surge, verá que está entrando mais e mais
profundamente em seu próprio ser interno. Nesse nível, não é necessário fazer esforços
para rechaçar os pensamentos.

P. É possível, então, manter-se sem esforços, sem batalha?

Não somente isso, depois de certo tempo é impossível que você faça um
esforço.

P. Quero estar mais iluminado. Eu deveria não fazer nenhum esforço?

Onde você se encontra atualmente, é impossível estar sem esforço. Quando for
mais profundamente, será impossível fazer um esforço.

Se a mente se torna introvertida devido à indagação sobre a fonte do aham-


vritti, os vasanas se extinguirão. A luz do Ser vai sobre os vasanas e produz o
fenômeno da refração chamado mente. Portanto, quando os vasanas desaparecerem, a
mente também desaparecerá, ao ser absorvida na luz da realidade única, o Coração. Isto
é tudo o que o aspirante necessita saber. O que lhe é pedido essencialmente é uma
indagação honesta e unidirecional até a fonte do aham-vritti.

P. Como um principiante deve começar a prática?

A mente se aquietará somente através da indagação ‘quem sou eu?’ O


pensamento ‘quem sou eu?’ destruirá todos os outros pensamentos e mesmo esse será
destruído, como a vara que se utiliza para avivar a pira funerária. Se surgirem outros
pensamentos, devemos perguntar-nos, sem permitir que eles se estendam, “para quem
surgem os pensamentos?” O que importa quantos pensamentos apareçam? No
momento que cada um surge, se nos perguntarmos “para quem surgiu?” se saberá que
foi “para mim”. Se continuamos a perguntar ‘quem sou eu?’ a mente retornará à sua
fonte (o Ser) e os pensamentos se aquietarão. Ao praticar repetidamente desta maneira,
o poder da mente para manter-se em sua fonte vai incrementando-se.
Se bem que as tendências até os objetos dos sentidos (vishaya vasanas) venham
atuando há muito tempo e surgem em grande número, como as ondas do mar, todas
serão eliminadas quando a meditação sobre nossa própria natureza se tornar mais e
mais intensa. Sem deixar que apareça a incerteza, com o pensamento ‘é possível
destruir todas estas tendências (vasanas) e manter-se somente como o Ser?’ devemos
aderir persistentemente à atenção sobre nós mesmos.

Enquanto houver tendências na mente até os objetos sensuais, a indagação


‘quem sou eu?’ é necessária. Quando surgem os pensamentos, devemos aniquilar a
todos através da indagação, no mesmo lugar de origem. Não colocarmos a atenção no
que ‘não é’ (manya) é desapego (vairagya) ou não ter desejos (nirasa). Não abandonar
o Ser é jnana (conhecimento). Na verdade, estes dois (não ter desejos e o
conhecimento) são o mesmo. Assim como um buscador de pérolas prende uma pedra
na cintura e submerge no mar, pegando a pérola no fundo, se nos submergirmos
profundamente em nós mesmos, sem apego a coisa alguma, poderemos obter a pérola
do Ser. Dedicarmos-nos continuamente à recordação da nossa natureza real (swarupa-
amarana), é o suficiente para a realização do Ser.

O indagar ‘quem é o eu que está escravizado?’ e chegar a conhecer nossa


natureza real (swarupa), só isto é liberação. O manter a mente sempre fixa sobre o Ser
se chama ‘indagação do eu’ enquanto que a meditação (dhyana) é pensar que somos o
Absoluto (Brahman), ou seja, a existência-consciência-felicidade (sat-chit-ananda).

P. Para encontrar a verdade os yoguis dizem que temos que deixar o mundo e nos
recolhermos em florestas remotas.

A vida ativa não tem que ser abandonada. Se a pessoa medita uma ou duas
horas todos os dias, pode continuar desempenhando seus deveres. Se meditar na forma
apropriada, a corrente mental induzida continuará fluindo ainda em meio ao trabalho. É
como se fossem dois modos de expressar a mesma idéia; a mesma linha que você tomar
na meditação será expressa em sua atividades.

P. Qual será o resultado de fazer isso?

Se continuar, verá que sua atitude para com as pessoas, eventos e objetos
mudará gradualmente. Suas ações seguirão suas meditações por conta própria.

P. Então você não está de acordo com os yoguis?

O homem deve deixar seu egoísmo pessoal, que o prende a esse mundo. Deixar
de ser falso é a verdadeira renúncia.

P. Como é possível não ser egoísta enquanto vivemos esta vida, com atividades
mundanas?

Não há conflito entre trabalho e sabedoria.


P. Você quer dizer que alguém pode continuar com as atividades habituais de sua
profissão, por exemplo, e ao mesmo tempo chegar a iluminar-se?

Por que não? Mas neste caso a pessoa não pensará que é a velha personalidade
que está fazendo o trabalho, porque a sua consciência será transferida gradualmente até
que esteja centrada nisso, que está além do pequeno ser.

P. Se uma pessoa trabalha não tem muito tempo livre para meditar.

A necessidade de separar um tempo para meditar só se aplica aos noviços


espirituais. Um homem que esteja avançado começará a sentir a beatitude mais
profunda, esteja trabalhando ou não. Enquanto põe as mãos na obra, sua mente está
fresca na solidão.

P. Então você não ensina o caminho do Yoga?

O yogui trata de levar sua mente até a meta, como o vaqueiro que toca o boi
com um cajado, mas neste caminho o buscador seduz o touro com um punhado de
grama fresca.

P. E como se faz isto?

Você tem que fazer a pergunta: “Quem sou eu?” Esta indagação o levará
finalmente ao descobrimento de algo dentro de você, que está atrás da mente. Ao
solucionar este problema você solucionará todos os outros.

P. Ao buscar o ‘eu’ não se vê nada.

Dado que você está acostumado a identificar-se com o corpo, que a sua visão
seja com os olhos, então diz que não vê nada. O que se pode ver? Quem é o que vai
ver? Como ver? Só há uma consciência, a qual, ao manifestar-se como o ‘pensamento-
eu’, se identifica com o corpo, se projeta através dos olhos e vê os objetos ao seu redor.
O indivíduo está limitado à vigília e espera ver algo diferente. A evidência de seus
sentidos será o selo de autoridade. Mas não admite que o que vê, o que se vê e o ato de
ver são manifestações da mesma consciência, ou seja, do “Eu-Eu”. A contemplação o
ajuda a sobrepor-se à ilusão que o Ser deve ser visual. Na realidade, não há nada visual.
Como você vê agora o ‘eu’? É necessário colocar um espelho na frente para conhecer
sua própria existência? A consciência é o ‘Eu’. Realize isto e isso é a verdade.

P. Ao indagar sobre a origem dos pensamentos há uma percepção de ‘eu’. Mas não
me satisfaz.

Sim, exatamente. A percepção do’eu’ está associada com uma forma, quem
sabe do corpo. Nada deve estar associado com o Ser puro. O Ser não está associado e é
a realidade pura, em cuja luz brilham o corpo e o ego. Ao parar os pensamentos, o que
permanece é a consciência pura.
Ao despertar-se, logo antes de estar consciente do mundo, ali está o “Eu-Eu”
puro. Aferre-se a este , sem voltar a dormir e sem deixar que os pensamentos o
possuam. Ao se manter com firmeza, não importará se se vê o mundo. Ao que vê, não
lhe afetam os diversos fenômenos.

O que é o ego? Investigue. O corpo é inconsciente e não pode dizer ‘eu’. O Ser
é consciência pura e não-dual. Tampouco pode dizer ‘eu’. Ninguém diz ‘eu’ ao dormir.
Então, o que é o ego? É algo intermediário entre o corpo inerte e o Ser. Não tem locus
standi. Se alguém o busca, desaparece como um fantasma. Na escuridão um homem
imagina que há um fantasma ao seu lado, devido ao jogo das sombras. Ao observar
com cuidado descobre que o fantasma não está ali realmente e o que imaginava que era
um fantasma era só um poste ou uma árvore. Se não olha com cuidado, o fantasma o
pode assustar fortemente. A única coisa que se requer é que se observe com cuidado e o
fantasma desaparecerá. Na verdade, nunca esteve ali. Assim se passa com o ego. É a
ligação intangível entre o corpo e a consciência pura, mas não é real. Enquanto não o
observarmos com cuidado, continua nos dando problemas. Mas quando o buscamos,
descobrimos que ele não existe.

Há outra história que ilustra este ponto. Nos casamentos hindus os festejos
duram cinco ou seis dias. Numas destas ocasiões, um desconhecido foi confundido pela
família da noiva, pensando que era o padrinho. Devido a isso, foi tratado com o maior
esmero. Ao ver isto, a família do noivo achou que ele devia ser uma pessoa importante
e também lhe tratou com o maior respeito. O desconhecido se deleitou com tudo isto,
embora estivesse consciente da situação real. Num dado momento, a família do noivo
se referiu a ele e perguntaram para a família da noiva algum dado sobre o convidado. O
homem imediatamente viu que se avizinhava um problema e fugiu. Assim ocorre com
o ego. Se o buscamos, desaparece, se não, continua causando problemas.

P. Pego no sono ao tentar fazer a indagação do eu. Que devo fazer?

Continue a indagação todo o tempo que estiver desperto. Isso será suficiente. Se
continuar a indagação até dormir, ela continuará ainda durante o sono. Volte à
indagação assim que despertar.

P. Como posso obter a paz? Parece que não a consigo através do vichara.

A paz é seu estado natural. A mente é que obstrui este estado natural. Se não
experimenta paz, isso quer dizer que o vichara só foi feito na mente. Investigue o que é
a mente e ela desaparecerá. Não há uma entidade chamada mente, separada dos
pensamentos. No entanto, ao surgirem os pensamentos, você acredita que eles surgem a
partir de algo e a esse algo você chama mente. Quando investigar para ver o que é, verá
que, na realidade, não existe tal entidade que possa ser chamada mente. Quando ela
tiver desaparecido, você realizará a paz eterna.
P. Quando eu realizo a indagação sobre a fonte de onde surge o ‘eu’, chego a uma
etapa de silêncio mental na qual não posso continuar. Não tenho nenhum pensamento e
há um vazio, uma lacuna. Uma luz tênue me envolve e sinto que sou eu mesmo, sem o
corpo. Não tenho cognição, nem visão do corpo ou de formas. A experiência dura
quase meia hora e é agradável. Poderia concluir-se que a única coisa que se necessita
para ter felicidade eterna, liberação, salvação ou como quer que se chame, será
continuar tal prática até que a experiência possa se manter por horas, dias e meses
contínuos?

Isto não quer dizer que haverá salvação. Esta condição se denomina manolaya,
ou quietude temporária da mente. Manolaya quer dizer concentração, que é parar os
movimentos dos pensamentos temporariamente. Quando dita concentração termina, os
pensamentos, tantos os velhos quanto os novos, chegam abruptamente, como de
costume, e ainda que a quietude mental dure mil anos, nunca levará a pessoa até a
destruição total do pensamento, que é a liberação do nascimento e morte. Por isso, o
praticante deve estar alerta e indagar em seu interior quem está tendo dita experiência e
quem a está desfrutando. Sem esta indagação, cairá num longo transe ou sono profundo
(yoga nidra). Devido a não ter tido um guia adequado nesta etapa da vida espiritual,
muitas pessoas se confundem e caem presas da falsa impressão de libertação. Só uns
poucos chegam à meta sem percalços.

A seguinte história ilustra muito bem este ponto. Um yogui esteve fazendo
penitência (tapas) durante anos, nas margens do Ganges. Ao haver alcançado um alto
grau de concentração, pensou que, se continuasse neste estado por períodos
prolongados, isto seria a liberação e, portanto, continuou praticando. Um dia, antes de
entrar em concentração profunda, sentiu sêde e chamou seu discípuilo para que lhe
trouxesse um pouco de água do Ganges. Antes que pudesse regressar com a água, o
yogui entrou em yoga nidra e se manteve assim durante muitos anos. Logicamente,
muitos eventos aconteceram neste tempo. Ao despertar da experiência, imediatamente
exclamou: “Água! Água!” Mas já não estavam ali nem o discípulo nem o Ganges.

O primeiro que pediu foi água, porque antes de entrar em concentração


profunda a capa superior de seus pensamentos estava dirigida para a água. Ainda uma
concentração tão profunda e longa só havia conseguido acalmar seus pensamentos. Ao
regressar à consciência normal, o pensamento da capa superior surgiu com toda força e
velocidade de uma inundação quando rompe a represa. Se assim aconteceu com um
pensamento que teve antes de sentar para meditar, não há dúvida que outros
pensamentos que ali estavam também ficaram sem ser destruídos. Se dizem que a
destruição dos pensamentos é a liberação, como se pode considerar que este homem
tenha obtido a salvação?

Os sadhakas (buscadores) raramente entendem a diferença entre quietude


temporária da mente e a destruição permanente do pensamento (manonasa). Em
manolaya, as ondas de pensamento se acalmam temporariamente e, mesmo que este
período dure mil anos, os pensamentos que se aquietaram ressurgirão tão logo haja
cessado o manolaya. Por isso é necessário vigiarmos com detalhe o processo espiritual.
A pessoa pode se deixar envolver por estes períodos de quietude dos
pensamentos. Ao ter a experiência, devemos reviver a consciência e indagar até dentro
de nós mesmos quem é o que está tendo tal experiência.Se bem que não devemos
deixar que se introduzam outros pensamentos tampouco deve deixar-se atrapalhar por
este sono profundo (yoga nidra) ou auto-hipnose. Ainda que seja um sinal de progresso
em direção à meta, também é o ponto de divergência entre o caminho até a liberação e
o de yoga nidra. O caminho fácil, a via direta, o atalho mais curto até a salvação é o
método da indagação. Através de tal indagação a força dos pensamentos será levada
mais profundamente, até que alcance sua fonte e se funda com ela. Nesse momento terá
a resposta dentro de você e descobrirá que ali ficará, com todo pensamento destruído
para sempre.

P. Este ‘pensamento-eu’ surge de mim, mas eu não conheço o Ser.

Todos estes são realmente conceitos mentais. Atualmente você está se


identificando com um ‘eu’ equivocado, ou seja, com o ‘pensamento-eu’. Este eu surge
e afunda, enquanto que o verdadeiro significado de ‘eu’ está além deste movimento.
Sua existência não tem lapsos. O que dormiu agora está desperto. Não há infelicidade
em seu sono profundo, mas agora existe. O que aconteceu para que agora tenha esta
experiência diferente? Não havia um ‘pensamento-eu’ no sono enquanto que ele agora
está presente. O “Eu” real não se vê e o ‘eu’ falso está passando em sua frente. Este
‘eu’ falso é o obstáculo que impede um conhecimento correto. Investigue de onde
surge o ‘eu’ falso e este então desaparecerá. Finalmente você será o que é, ou seja, a
existência absoluta.

P. Como chegar nisto? Até este momento não consegui.

Busque a fonte do ‘pensamento-eu’. Isto é tudo o que você tem que fazer. O
universo existe devido ao ‘pensamento-eu’. Se este terminar, também acabará a
miséria. O ‘eu’ falso desaparecerá quando sua origem for buscada.

Novamente, as pessoas me perguntam como controlar a mente. Digo-lhes: em


realidade, a mente é só um conjunto de pensamentos. Como pode alguém destruí-la
com a idéia de fazê-lo, ou seja, com um desejo? Sua idéia e seu desejo são uma parte
integrante da mente. Ela só vai engordando com o surgimento de novos pensamentos.
Portanto, é ridículo pensar que alguém pode matar a mente por meio da mente. A única
maneira de conseguí-lo é buscar sua fonte e agarrar-se a ela ou instalar-se ali. Então a
mente se desvanecerá por conta própria. O yoga afirma chitta vritti nirodha (controle
das atividades da mente). Em troca, digo atma vichara (indagação do eu). Este é o
caminho prático. Chitta vritti nirodha se pode conseguir ao dormir, ou no desmaio, ou
jejuando. Quando a causa se retira, regressam os pensamentos. Então, para que serve?
Num estado de estupor há paz e não há miséria, mas a miséria regressa quando o
estupor se retira. Assim, pois, nirodha (controle), não é útil e não pode ter um benefício
duradouro.
Como se pode lograr um benefício duradouro? Logra-se encontrando a causa da
miséria. A miséria se deve à percepção dos objetos. Se estes não estão ali, não haverá
pensamentos contingentes e a miséria será erradicada. A pergunta seguinte é: como
desaparecerão os objetos? Os srutis (escrituras) e os sábios têm dito que os objetos são
apenas criações da mente. Não tem existência substantiva. Investigue isto e trate de
confirmar a verdade do que se diz. O resultado será que se concluirá que o mundo
objetivo está dentro da consciência subjetiva. O Ser, portanto, é a única realidade que
atravessa e também envolve o mundo. Dado que não há dualidade, não haverá
pensamentos que apareçam para perturbar a paz. Esta é a realização do Ser. O Ser é
eterno e também é a realização.

Abbyasa (práticas espirituais) consiste em retrair-se para dentro do Ser cada vez
que um pensamento nos perturbe. Não é a concentração ou destruição da mente, mas
sim a imersão no Ser.

P. Por que a concentração não é efetiva?

Pedir para a mente matar a mente é como converter um ladrão em policial. Irá
com você e pretenderá prender o ladrão mas não conseguirá nada. No fim, terá que
dirigir-se para dentro e ver de onde surge a mente e então ela deixará de existir.

P. Ao dirigir a mente para dentro não estamos também utilizando a mente?

Claro que estamos utilizando a mente. É bem sabido e admitido que só com a
ajuda da mente alguém pode matar a mente. Mas, no lugar de começar dizendo que há
uma mente e eu quero matá-la, comece por localizar sua origem e descobrirá que ela
realmente não existe. A mente voltada para fora dá como resultado os pensamentos e
objetos. Dirigida para dentro ela mesma se converte no Ser.

P. Ainda assim não entendo.Você diz que ‘eu’ é o ‘eu’ errôneo. Como posso
eliminar o ‘eu’ errôneo?

Você não necessita eliminar o ‘eu’ errôneo. Como pode o ‘eu’ eliminar a si
mesmo? O que é preciso fazer é buscar a sua origem e manter-se ali. Até este ponto se
poderá fazer esforços. Então, o que está além se encarregará do resto. Ali você não
pode fazer nada. Nenhum esforço pode alcançá-lo.

P. Se ‘eu’sou sempre, aqui e agora, por que não o sinto?

Este é o detalhe. Quem diz que não o sente? O ‘eu’ real ou o ‘eu’ falso?
Examine-o; verá que é o ‘eu’ falso. Esta é a obstrução e deve ser removida para que o
“Eu” real não esteja coberto. O sentir que não se está realizado é a obstrução da
realização. De fato você já está realizado e não há nada para realizar. De outro modo,
esta realização seria nova. Se não existiu até agora, deve tomar lugar no futuro. O que
nasce morrerá. Se a realização não é eterna, não vale a pena obtê-la.
O que buscamos, enfim, não é algo que apareça como novidade, mas é o que é
eterno mas não reconhecido na atualidade devido às obstruções. É isso que buscamos
remover, a obstrução. O que é eterno não se reconhece pela ignorância; esta é a
obstrução. Supere a ignorância e tudo estará bem. A ignorância é idêntica ao
‘pensamento-eu’. Busque sua origem e ela desaparecerá.

O ‘pensamento-eu’ é como um espírito que, ainda que não seja palpável, surge
simultaneamente ao corpo, se desenvolve e desaparece com ele. A consciência do
corpo é o ‘eu’ falso. Deixe esta consciência do corpo. Isto se consegue ao indagar sobre
a origem do ‘eu’. O corpo não diz ‘eu sou’; é você quem diz ‘eu sou o corpo’.
Investigue quem é este ‘eu’. Ao buscar sua origem, desaparecerá.

P. Quanto se pode deixar ou fazer permanecer a mente no Coração?

O período se estende com o tempo.

P. O que acontece no fim deste período?

A mente regressa ao seu estado normal. A unidade que se sente no Coração é


substituída por uma variedade de fenômenos de percepção. A isto se denomina ‘ a
mente que vai para fora’. A mente que vai até o Coração se denomina “a mente que
descansa’.

Deve-se praticar diariamente, mais e mais, desta maneira, a mente se torna


extremamente pura, devido à remoção de seus defeitos. A prática se tornará tão fácil
que a mente purificada será submersa no Coração tão logo comece a indagação.

P. É possível que uma pessoa que tenha tido a experiência de sat-chit-ananda na


meditação se identifique com o corpo quando não está meditando?

Sim, é possível, mas gradualmente a identificação se perde ao continuar a


prática. No dilúvio de luz do Ser a escuridão da ilusão se dissipa para sempre.

A experiência que se tenha sem que todos os vasanas tenham sido erradicados
não pode ser constante. Deve-se fazer esforços para erradicar os vasanas pois o
conhecimento será firme só quando todos eles tiverem sido destruídos.

Temos que batalhar contra as tendências mentais que vem de épocas passadas.
Todas desaparecerão, mas no caso daqueles que tiverem feito sadhanas no passado,
será mais rápido, enquanto que para os outros demorará mais.

P. Por acaso estas tendências desaparecem gradualmente ou repentinamente?


Pergunto isto porque, ainda que esteja aqui por um já longo período, não percebo
nenhuma mudança gradual em mim.

Quando o sol aparece, a escuridão se vai de repente ou gradualmente?


P. Como posso saber se estou progredindo em minha indagação?

O grau no qual estão ausentes os pensamentos é a medida do seu progresso até


a realização do Ser. Mas a realização do Ser, em si, não admite fases de progresso,
dado que é sempre igual. O Ser sempre está realizado. Os obstáculos são os
pensamentos. O progresso pode ser medido mediante o grau no qual os obstáculos
tenham sido removidos, a fim de compreender que o Ser está sempre realizado.
Portanto, se deve controlar os pensamentos mediante a busca ou indagação de para
quem eles estão surgindo. Então, vamos para frente, para onde eles já não surgem.

P. As dúvidas sempre surgem, por isso sempre tenho perguntas.

Uma dúvida surge e é respondida. Outra surge e também se responde, o que dá


lugar ao aparecimento de outra e assim continua. Não há possibilidade de se acabar
com todas as dúvidas. Veja para quem elas surgem. Vá à sua fonte e se estabeleça ali.
Então elas deixam de surgir. Assim se pode lidar com todas as dúvidas.

P. Devo perguntar-me “Quem sou eu?”, sem contestar-me? Quem pergunta a


quem? Que atitude (bhavana) deve alguém ter na mente durante a indagação? O que é o
‘eu’, o Ser ou o ego?

Na indagação “Quem sou eu?”, o eu é o ego. A pergunta quer dizer, realmente,


“Qual é a origem ou a fonte do ego?” Não necessitamos ter bhavana alguma na mente.
Só o que se requer é que se deixe a bhavana de que você é o corpo, com tal ou qual
descrição, com tal nome, etc. Você não necessita ter uma bhavana sobre sua natureza
real. Você sempre existe como é. Você é real e não uma bhavana.

P. Mas não é curioso que o ‘eu’ esteja buscando o “Eu”? A indagação ‘quem sou
eu?’ não acaba sendo, no fim das contas, uma fórmula vazia? Ou seja, devo fazer-me
esta pergunta o tempo todo, repetindo-a como se fosse um mantra?

A indagação do eu não é uma fórmula vazia e é mais do que a repetição de um


mantra. Se a indagação ‘quem sou eu’ fosse meramente um questionamento mental,
não teria muita utilidade. O propósito específico da indagação do eu é enfocar a mente,
em sua totalidade, sobre sua própria origem. Não é, pois, o caso de um ‘eu’ que está
buscando a outro ‘eu’. E a indagação do eu é menos ainda uma fórmula vazia pois
requer uma atividade intensa de toda a mente para mantê-la equilibrada continuamente
na pura consciência do Ser.

P. É suficiente dedicar um tempo pela manhã e pela noite para o atma-vichara? Ou


devo praticar o tempo todo, mesmo quando estou escrevendo?

Qual é sua natureza real? É o escrever, o caminhar ou o existir? A única


realidade inalterável é existir. Até que se realize este estado de existência pura,
devemos continuar com a indagação. Uma vez que estejamos estabelecidos nisso, não
haverá maior dificuldade.
Ninguém indagará sobre a fonte dos pensamentos se não surgem pensamentos.
Enquanto você continuar pensando ‘eu estou caminhando’ ou ‘eu estou escrevendo’,
pergunte quem está fazendo isto tudo.

P. Se eu expulsar todos os pensamentos, isto pode ser considerado vichara?

Pode ser um passo intermediário. Mas vichara começa quando você se aferra ao
Ser e abandona o movimento da mente, ou seja, as ondas de pensamentos.

P. Então vichara é algo intelectual?

Não, é antara-vichara, a busca interior.Agarrar a mente e investigá-la é o que se


aconselha ao principiante. Mas, no fim das contas, o que é a mente? É uma projeção do
Ser. Vejo para quem ela aparece e de onde surge. Você verá que o ‘pensamento-eu’ é a
causa primária. Então, vá mais profundamente. O ‘pensamento-eu’ desaparecerá e
haverá uma consciência de “Eu” infinitamente expandida.

P. Perguntei para a Mãe, do ashram do Aurobindo, o seguinte: ‘mantenho minha


mente vazia, sem que surjam pensamentos, para que Deus possa me mostrar seu ser
verdadeiro. Mas não percebo nada.’ A resposta foi a seguinte: “A atitude é correta. O
poder descerá sobre você. É uma experiência direta.” Devo fazer algo adicional?

Seja o que você é. Não há nada que tenha que descer ou manifestar-se. O único
que é necessário é perder o ego. O que está ali, sempre estará ali. Ainda agora, você é
isto. Não está separado disto. Você vê o vazio. O que está esperando? O pensamento
‘não o vi’, a expectativa de ver e o desejo de obter algo, tudo isto é a atividade do ego.
Você foi enredado pelo ego. O ego diz tudo isto e não você mesmo. Seja o que é e nada
mais.

Uma vez que nasce, chega a um lugar. Se chega, então também regressa.
Portanto, deixe todo este palavrório. Seja o que é. Veja quem você é e mantenha-se
como ser, livre do nascimento, de ir , de vir e de retornar.

P. Como alguém pode conhecer o Ser?

Conhecer o Ser significa ser o Ser. Pode você dizer que não conhece o Ser?
Ainda que não veja seus próprios olhos, nem tenha um espelho para vê-los, não lhe
ocorreria negar seus olhos.

Do mesmo modo, você está consciente do Ser, ainda que este não se transforme
num objeto. Ou, por acaso, você nega sua existência por que não é um objeto? Quando
diz ‘não posso conhecer o Ser’, você quer dizer que está ausente em termos do
conhecimento relativo, com o qual você se identifica. Tal identidade errônea forjou a
dificuldade de conhecer o Ser que, ainda sendo tão óbvio, não pode objetivar-se. E
então você pergunta: ‘como pode alguém conhecer o Ser?’
P. Você fala de Ser. Ser o que?

Seu dever não é ser isto ou aquilo outro. “Eu sou o que sou” é um resumo de
toda a verdade. O método pode ser resumido com as palavras: “esteja tranqüilo”. Solte
a noção de que ‘sou tal ou qual pessoa’. Tudo o que se necessita para realizar o Ser é
estar tranquilo. Que coisa pode ser mais fácil do que isto? Portanto, atma-vidya
(conhecimento do Ser) é a coisa mais fácil de obter. A verdade de si mesmo é a única
coisa que vale a pena esquadrinhar e conhecer. Tomando-o como o alvo de nossa
atenção, devemos conhecê-lo com detalhe no Coração. Este conhecimento de si mesmo
será revelado somente para a consciência que estiver em silêncio, clara e livre da
agitada e sofrida atividade mental. Conheça que a consciência que sempre brilha no
Coração como o Ser sem forma, o “Eu” real, se conhece ao estar tranquilo, sem pensar
sobre coisa alguma, tanto existente como não existente. Só esta consciência é a perfeita
realidade.
CAPITULO 6

INDAGAÇÃO DO EU - EQUÍVOCOS

Os pronunciamentos filosóficos de Sri Ramana eram muito similares aos que


mantém os seguidores do Advaita Vedanta, uma escola filosófica da India que tem se
desenvolvido por mais de mil anos. Se bem que os advaitistas e Sri Ramana estejam de
acordo sobre questões teóricas, seus pontos de vista sobre a prática diferem
radicalmente. Enquanto Sri Ramana recomendava a indagação do eu, a maioria dos
mestres do Advaita indicava uma forma de meditação que mentalmente afirma que o
Ser é a única realidade. Estas afirmações, tais como “Eu sou Brahman” ou “Eu sou
Ele” usualmente são utilizadas como mantras. Em raras ocasiões os praticantes tratam
de meditar sobre seu significado, buscando experimentar as implicações do que é
pronunciado.

Devido a que a indagação do eu começa com a pergunta “Quem sou eu?”,


muitos seguidores tradicionais do Advaita pensavam que a resposta era: “Eu sou
Brahman” e ocupavam suas mentes com estas repetições mentais. Sri Ramana
discordava deste caminho dizendo que enquanto a mente estivesse dedicada
constantemente a encontrar ou repetir as respostas da pergunta, nunca se submergiria
em sua fonte até desaparecer nela.

Também discordava, pela mesma razão, daqueles que tratavam de utilizar


“Quem sou eu?” como um mantra, dizendo que os dois usos não chegavam ao ponto
essencial da indagação do eu. Dizia que a pergunta “Quem sou eu?” não é um convite
para analisar a mente e chegar a certas conclusões sobre sua natureza; tampouco é uma
fórmula mântrica, mas sim é simplesmente uma ferramenta que permite reorientar a
atenção desde os objetos e percepções do pensamento até o pensador e preceptor
mesmo. “Quem sou eu?” não se pode solucionar em ou com a mente, dado que a única
resposta verdadeira é a experiência da ausência da mente.
Outro conceito errôneo comum foi resultado da crença hindu de que o Ser pode
ser descoberto ao rechaçar-se mentalmente todos os objetos e percepções do
pensamento, dizendo que eles são o não-Ser. Tradicionalmente, este método chama-se
neti-neti (não é isto-não é isto). O praticante recusa verbalmente todos os objetos com
os quais se identifica o ‘eu’: ‘eu não sou a mente’, ‘eu não sou o corpo’, etc. Pretende-
se que o “Eu” real poderá ser finalmente experimentado em sua forma pura e não
contaminada. O hinduísmo chama a esta prática a ‘indagação do eu’ e, visto que o
termo é igual, se confunde com o método de Sri Ramana. A atitude de Sri Ramana para
com este sistema tradicional de auto-análise era negá-lo e tratava de cuidar que seus
devotos não o praticassem. Dizia-lhes que era uma atitude intelectual que não podia
levar para além da mente. Sua resposta clássica sobre a eficácia desta prática era que o
‘pensamento-eu’ é sustentado pelos atos de discriminação e que o ‘eu’ que elimina o
corpo e a mente como ‘não-eu’ nunca pode eliminar a si mesmo.

Os seguidores das escolas do “Eu sou Brahman” e neti-neti mantém um


conceito em comum, ou seja, que o Ser pode ser descoberto pela mente, tanto pela
negação como pela afirmação. Esta crença de que a mente pode chegar ao Ser através
de suas atividades é o fundamento de quase todas as idéias equivocadas sobre a prática
da indagação do eu. Um exemplo conhecido deste fato é a crença de que a indagação
do eu implica em concentrar-se sobre um centro particular do corpo, que se denomina
‘centro do Coração’. Este ponto de vista se propagou devido a uma má interpretação de
alguns comentários de Sri Ramana sobre o Coração. Para poder entender como
chegaram a tais crenças será necessário analisar com maior detalhe algumas de suas
idéias sobre este tema.

Ao descrever a origem do ‘pensamento-eu’, Ramana disse algumas vezes que


ele subia ao cérebro através de um canal que começava desde um ponto do lado direito
do peito. Chamou a este ponto o ‘centro do Coração’ e disse que quando o
‘pensamento-eu’ retornar ao Ser, regressará a este centro e desaparecerá. Também
comentou que quando se tem uma experiência consciente do Ser, há uma sensação
tangível de que este centro é a fonte da mente e do mundo. No entanto, todos estes
comentários não são estritamente verídicos e Sri Ramana algumas vezes os limitava ,
ao dizer que eram somente representações esquemáticas que dava para as pessoas que
insistiam em identificar-se com seus corpos. Dizia que o Coração, na realidade, não
está localizado dentro do corpo e, desde este ponto de vista mais elevado, não é
verdadeiro dizer que o ‘pensamento-eu’ sobe e se retrai a este ponto, no lado direito do
peito.

Pelo fato de que Sri Ramana muitas vezes dizia “Encontre o local onde surge o
‘eu” ou “Encontre a origem da mente”, muitas pessoas o interpretaram como se
devêssemos nos concentrar sobre um ponto particular ao realizar a indagação do eu. Sri
Ramana recusou esta interpretação um sem-número de vezes, dizendo que a fonte da
mente e do ‘eu’ só se pode descobrir ao colocarmos a atenção sobre o ‘pensamento-eu’
e não através da concentração sobre uma parte específica do corpo.

Às vezes mencionou que, como uma boa prática de concentração, era útil
colocar a atenção neste ponto, mas nunca o associou com a indagação do eu.
Ocasionalmente também disse que a meditação sobre o Coração era uma via efetiva de
se chegar ao Ser, mas novamente, não dizia para praticarmos nos concentrando sobre o
“centro do Coração”.
No lugar disto dizia que devemos meditar sobre o Coração ‘tal como é’. O
Coração ‘tal como é’ não é um ponto no espaço, mas sim o Ser imanente e só podemos
estar conscientes de sua natureza real ao chegar a sê-Lo. Não se pode alcançá-Lo
através da concentração.

Ainda que existam vários comentários que provavelmente sejam ambíguos


sobre o Coração e o ‘centro do Coração’, em todos seus escritos e conversas não há
uma só frase que apóie a premissa de que a indagação do eu se deva praticar
concentrando-se sobre este ponto. De fato, se examinarmos com cuidado todos seus
comentários sobre o tema, se poderá concluir que, se bem que a experiência do Ser
contém uma experiência do ‘centro do Coração’, a concentração sobre o centro não
dará por resultado a experiência do Ser.

P. Começo perguntando-me “Quem sou eu?”, eliminando o corpo como ‘não-eu’,


a respiração como ‘não-eu’ e daí não posso prosseguir.

Claro, até aí o intelecto pode chegar. Seu processo é meramente intelectual. De


fato, todas as escrituras mencionam o processo só para guiar o buscador até o
conhecimento da verdade. A verdade não se pode descrever em forma direta, mediante
um processo intelectual.

Como verá, o que elimina todo ‘não-eu’ não pode eliminar o ‘eu’. Para dizer
‘eu sou isto’ ou ‘eu sou aquilo’, deve haver o ‘eu’. Este ‘eu’ é somente o ego ou o
‘pensamento-eu’. Depois que surge, surgem todos os outros pensamentos. Portanto, é o
pensamento fundamental. Se arrancarmos a raiz, todos os demais também são
arrancados. Concluindo, busque a este ‘eu’ fundamental perguntando-se “Quem sou
eu?” Busque sua fonte e então todas estas outras idéias desaparecerão e só ficará o Ser
puro.

P. Como farei isto?

O “Eu’ está no sono profundo, no sonho e na vigília. O que dormiu é o mesmo


que está falando agora. Sempre está ou há a sensação de ‘eu’. Ou, por acaso, você nega
sua própria existência? Não, não o faz. você disse ‘eu sou’. Investigue quem o disse.

P. Eu medito sobre neti-neti (não é isto-não é isto).

Não, não é essa a meditação. Busque a fonte. Você tem que chegar até a fonte.
Ali desaparecerá o ‘eu’ falso e o “Eu” verdadeiro será realizado. O ‘eu’ falso não pode
existir a parte do “Eu” real.

Atualmente há uma identificação errônea do Ser com o corpo, os sentidos, etc.


Comece a descartá-los e isto é neti-neti. Isto só se pode realizar mantendo o que não
pode ser descartado. Esse é iti (o que existe).

P. Quando penso “Quem sou eu?”, a resposta que me chega é: “Não sou este
corpo mortal, mas sou chaitanya atma (a consciência, o Ser)” E, de repente, outra
pergunta surge: “Por que chegou o atma à maya (ilusão)?” ou, em outras palavras, “Por
que Deus criou o mundo?”
Indagar “Quem sou Eu?” na verdade quer dizer que alguém está tratando de
buscar a fonte do ego ou do ‘pensamento-eu’.

Não se deve pensar em tais coisas como ‘eu não sou este corpo’. Buscar a fonte
do ‘eu’ é a maneira de desfazer-se de todos os pensamentos. Não deveríamos dar
atenção a outros pensamentos, como os que você menciona, mas sim manter a atenção
sobre a busca do ‘pensamento-eu’ e perguntar, com cada pensamento que surge: “A
quem surgiu este pensamento?” Se surge a resposta ‘a mim surgiu este pensamento’,
continue a indagação perguntando: “Quem é o eu e qual é a sua origem?”

P. Devo repetir “Quem sou Eu?”, como se fosse um mantra?

Não. “Quem sou Eu?” não é um mantra. Seu significado é que você deve
averiguar de onde surge o ‘pensamento-eu’, que é a fonte de todos os outros
pensamentos.

P. Devo meditar sobre “Eu sou Brahman” (aham Brahman)?

O texto não significa pensar ‘eu sou Brahman’. Aham é conhecido por todos.
Brahman está em todos como aham. Busque o ‘eu’. O “Eu” já é Brahman. Mas não é
necessário pensá-lo, simplesmente busque o ‘eu’.

P. Acaso não se menciona nas escrituras o descartar das envolturas (neti-neti)?

Depois que surge o ‘pensamento-eu’ há uma identificação falsa do ‘eu’ com o


corpo, os sentidos, a mente, etc. O ‘eu’ se associa falsamente com eles e perde de vista
o “Eu” real. Para desassociar o “Eu” puro do ‘eu’ contaminado, menciona-se este
método de descartar o supérfluo. Mas não quer dizer exatamente que se descarte o não-
ser, mas sim que se encontre o Ser real. Este Ser real é o infinito “Eu”. O outro ‘eu’
nasce e também morre, é impermanente. Veja a quem pertencem os pensamentos
mutantes. Você verá que eles surgem depois do ‘pensamento-eu’. Agarre o
‘pensamento-eu’ e os demais se aquietarão. Ao buscar a fonte do ‘pensamento-eu’ só
restará o Ser.

P. Isto é difícil de seguir. Entendo a teoria, mas qual é a prática?

Os outros métodos são para aqueles que não podem começar a investigação do
eu. Ainda para repetir aham Brahmasmi, ou para pensá-lo, necessita-se alguém que o
faça. Quem é? É o ‘eu’. Seja este ‘eu’, é o método direto. Os outros métodos
conduzem, no final, a este método da investigação do eu.

P. Estou consciente do ‘eu’ mas meus problemas não acabam.


Este ‘pensamento-eu’, todavia, não é puro. Está contaminado com a associação
do corpo aos sentidos. Veja para quem surgem os problemas. É para o ‘pensamento-
eu’: tome-o e os outros pensamentos desaparecerão.

P. Sim, mas como fazê-lo? Aí está todo o problema.

Pense “eu, eu” e mantenha-se sobre esse pensamento, excluindo os demais.

P. Não é certo que afirmar a Deus é mais efetivo que a busca “Quem sou Eu?”
Afirmar é positivo, enquanto que o outro é a negação. Ademais, implica que há uma
separação.

Enquanto você estiver buscando como realizar-se, lhe darão este tipo de
conselhos para que você encontre o Ser. Se você busca um método, significa que existe
separação.

P. Não é melhor dizer “Eu sou o Ser Supremo” do que perguntar “Quem sou Eu?”

Quem afirma isso? Deve haver alguém para fazê-lo. Encontre-o.

P. Não é melhor a meditação do que a investigação?

A meditação imagina que há imagens mentais, enquanto que a investigação é


sobre a realidade. O primeiro é objetivo enquanto que o último é subjetivo.

P. Deve haver uma maneira de aproximar-se do tema em forma científica.

Deixar o irreal e buscar o real é científico.

P. Eu quis dizer que deve haver uma eliminação gradual; primeiro a mente, depois
o intelecto, depois o ego.

Só o Ser é real, o resto é irreal. A mente e o intelecto não estão separados de


você. A Bíblia diz: ‘esteja tranqüilo e saiba que sou Deus.’ A tranquilidade é o único
requisito para a realização do Ser como Deus.

P. É certo que soham (a afirmação que ‘eu sou ele’) é o mesmo que “Quem sou
Eu?”

Aham (‘eu’) é o mesmo em ambos os casos. Um é soham o outro é koham


(“Quem sou Eu?”). São diferentes, mas por que continuar dizendo soham? Devemos
encontrar o “Eu” real. Na pergunta “Quem sou Eu?” o ‘eu’ se refere ao ego. Ao buscá-
lo e encontrar sua fonte, veremos que não tem uma existência à parte e se funde no
“Eu” real.
Você vê a dificuldade. Vichara é diferente, em metodologia, da meditação
sivoham ou soham (‘eu sou Shiva’ ou ‘eu sou Ele’). Dou ênfase ao autoconhecimento,
dado que é mais imediato conhecer a si mesmo do que investigar o que é o mundo ou
seu Senhor. As meditações soham ou ‘eu sou Brahman’ são mais ou menos um
pensamento.

Mas a busca da qual falo é um método direto, superior, de fato, às outras


meditações. No momento em que se começa a buscar seu ser e se vai mais e mais
profundamente, o Ser real estará ali para tomar a pessoa. Então, o que acontece é
realizado por outra entidade e você não tem nada a ver com isso. Neste processo, todas
as dúvidas e discussões se dissolvem automaticamente, assim como a alguém que
dorme e se esquece de todas as suas preocupações por um tempo.

P. Como posso saber, com certeza, que algo está esperando para receber-me?

Quando a pessoa for uma alma suficientemente desenvolvida (pakvi), se


convencerá naturalmente.

P. Como é possível tal desenvolvimento?

Diversas respostas foram dadas, mas qualquer que seja o desenvolvimento


prévio, o vichara o acelera.

P. Isso é um circulo vicioso. Estou desenvolvido e portanto apto para a busca,


mas a busca mesma me desenvolve.

A mente sempre tem este tipo de dificuldades. Você quer uma teoria para
satisfazer-se. Mas, na verdade, não se necessita de uma teoria para o homem que queira
seriamente aproximar-se de Deus ou realizar sua existência verdadeira.

P. Não duvido que o método que Bhagavan ensina é direto, mas é muito difícil.
Não sabemos como começar. Se continuamos perguntando “Quem sou Eu?”, “Quem
sou Eu?”, como um mantra, isso se torna aborrecido. Em outros métodos há algo
preliminar e positivo com o qual podemos começar e continuar passo a passo. Mas no
método de Bhagavan não há tais passos e de repente se deve buscar o Ser. Ainda que
seja direto, é difícil.

Você mesmo diz que é o método direto. É, de fato, o método direto e fácil. Se
nos dedicamos a ir até as coisas desconhecidas e dizemos que é fácil, como pode ser
difícil ir até o ser de si mesmo? Você diz: “Por onde devo começar?” Não há um
princípio nem um final. Você é o que é no princípio e no final. Se você está aqui e o
Ser em outro lugar e você tem que alcançar o Ser, podemos então dizer como começar,
como viajar e como alcançá-lo. Suponha que agora, estando no Ramanasraman, você
pergunte: “Quero ir ao Ramanasraman. Como posso começar e como posso chegar lá?”
O que poderíamos lhe responder? A busca do Ser é assim. Somos o Ser e nada mais.
Você diz que a pergunta “Quem sou Eu?” se converte em japa. Não lhe foi dito
que siga perguntando “Quem sou Eu?” Nesse caso, os pensamentos não morrerão tão
facilmente. No método direto, como você o nomeia, ao perguntar-se “Quem sou Eu?”,
lhe dizemos para que se concentre em si mesmo, no ponto onde surgem os
pensamentos.

Dado que o Ser não está fora, mas dentro de você, lhe dizemos que busque
dentro, em lugar de projetar-se ao exterior. O que pode ser mais fácil do que ir até o seu
próprio ser? O fato é que, para alguns, este método parecerá difícil e não os interessará.
Por isso tantos métodos tem se propagado. Cada um interessará a um indivíduo como o
melhor e mais fácil. Isto depende de sua pakva, ou preparação. Mas, para alguns, só o
vichara marga (caminho da indagação) terá atração. Estes perguntarão “Você quer que
eu veja isto ou aquilo, mas quem é o que conhece, quem é o que vê?” Em qualquer
método que adote, sempre haverá um ‘eu’ para realizá-lo, a isto não se pode escapar.
Temos que encontrar quem está atuando. Até este ponto, o sadhana não pode terminar.
No final, todos têm que verificar “Quem sou Eu?”

Você se queixa de que não há algo preliminar ou positivo com o qual começar.
Você tem o ‘eu’ para começar. Sabe que sempre existe, enquanto que o corpo não
existe sempre, tal como no sono, por exemplo. O sono revela que você existe ainda sem
um corpo. Identificamos o ‘eu’ com um corpo; tomamos o Ser como se este tivesse
corpo, com limites. E por isso há tantos problemas. Só o que temos que fazer é deixar
de identificar o Ser com o corpo, com formas e figuras. Então saberemos que somos o
Ser, o que sempre tem sido.

P. Devo pensar “Quem sou Eu?”

Você sabe que o ‘pensamento-eu’ surgiu. Aferre-se ao ‘pensamento-eu’ e


busque sua fonte.

P. Posso conhecer o caminho?

Faça o que lhe disse e veja o que acontece.

P. Não entendo o que é que devo fazer.

Se fosse algo objetivo, o caminho poderia ser mostrado em forma objetiva. Ele
é, porém, subjetivo.

P. Mas eu não entendo.

Como? Não entende que você existe?

P. Por favor, mostre-me o caminho.

Acaso é necessário mostrar-lhe o caminho para você entrar em sua própria


casa? O caminho está dentro de você.
P. Você disse que o Coração é o centro do Ser.

Sim, é o centro supremo do Ser, disto não tenho dúvida. O Ser real está ali, no
Coração, atrás do Jiva ou ego.

P. Agora, por favor, diga-me em que parte do corpo ele se encontra.

Você não pode saber com sua mente. Não o pode visualizar com a imaginação,
mesmo se eu lhe disser que está aqui o centro (toca o lado direito do peito). A única
maneira de realizá-lo diretamente é deixar de fantasiar e tratar de ser o que você mesmo
é. Quando se realizar, sentirá automaticamente que o centro está ali. Este é o centro, o
Coração, o que as escrituras mencionam como britguha (a cavidade do Coração), arull
(Graça), ullam (o Coração).

P. Não o encontrei mencionado em nenhum texto.

Depois de haver estado aqui um bom tempo, vi um verso na versão malayalam


de Ashtangahidayam, que é o texto básico do Ayurveda (a medicina hindu) onde se
menciona que as ojas sthana (a fonte da vitalidade do corpo, ou ‘lugar de luz’) se
localiza no lado direito do peito e se chama trono da consciência (samvit). Mas não
conheço nenhum outro texto que faça referência a que o centro se localize neste local.

P. Posso estar seguro de que os sábios antepassados queriam referir-se a este


centro ao utilizar o termo “Coração”?

Sim, assim é. Mas você deveria tratar de ter a experiência e não apenas
localizá-la. Um homem não necessita saber onde estarão seus olhos quando quer
enxergar. O Coração está ali, sempre aberto se você quiser entrar; apóia todos os seus
movimentos, ainda quando você não se dá conta. Talvez fosse mais correto dizer que o
Ser é o Coração mesmo do que dizer que ele está no Coração. Na realidade, o Ser é o
centro mesmo. Está em todas as partes, consciente de si mesmo como “Coração”, ou
seja, a consciência de si mesmo.

P. Neste caso, como pode se localizar numa parte do corpo? O fixar um local para
o Coração implicaria assinalar limitações fisiológicas ao que está além do tempo e do
espaço.

Sim, é verdade. Mas a pessoa que fez esta pergunta sobre a posição do Coração
considera que existe com ou no corpo. Ao fazer você mesmo a pergunta que fez, diria
que só seu corpo está aqui e que você está falando de outro lugar? Não, você aceita que
tem uma existência corporal. É desde este ponto de vista que se faz referência ao corpo
físico.

Na realidade, a consciência pura é indivisível, não tem partes, não tem forma
nem figura, não tem ‘dentro’ nem ‘fora’, nem direita ou esquerda. A consciência pura,
que é o Coração, inclui a tudo e nada está fora ou a parte dela. Esta é a máxima
verdade.
Desde o ponto de vista absoluto, o Coração, o Ser ou a consciência não podem
ter um lugar assinalado no corpo físico. Qual é a razão? É que o próprio corpo é uma
projeção da mente e a mente é um pobre reflexo do radiante Coração. Como é possível
que isso, no qual tudo está contido, possa, por sua vez, estar numa pequena parte dentro
do corpo físico, que não passa de uma manifestação infinitesimal e temporária da única
realidade?

As pessoas, porém, não entendem isso. Não podem deixar de pensar em relação
ao corpo físico e ao mundo. Você diz, por exemplo: “Vim a este ashram de um país que
está além dos Himalaias”. Mas isso não é verdade. Onde está o ir ou o vir, ou qualquer
movimento para o espírito único e omniabarcante que você realmente é? Você está
onde sempre esteve. Só seu corpo se moveu ou foi levado de um local para outro, até
chegar a este ashram. Esta é a verdade sem complicações, mas para uma pessoa que se
considera vivendo no mundo objetivo, esta visão parece totalmente extraordinária. Só
ao baixar a um nível ordinário de compreensão é que se pode assinalar um lugar para o
Coração dentro do corpo físico.

P. Como posso então entender a frase de Sri Bhagavan de que a experiência do


‘centro do coração’ está num lugar particular, no peito?

Uma vez que aceite o ponto de vista real e absoluto que o Coração é a
consciência pura, além do tempo e do espaço, lhe será mais fácil entender o resto numa
perspectiva correta.

P. Dizem que o Coração está à direita, à esquerda ou no centro. Com tais


diferenças de opinião, como é possível meditar sobre ele?

Você é e isso é certo. Dhyana (a meditação) é realizada por você, desde você e
em você. Deve continuar onde você está. Não pode estar fora de você. Portanto, você é
o centro de dhyana e isso é o Coração.

As dúvidas surgem só quando você o identifica com algo tangível e físico. O


Coração não é um conceito ou um objeto sobre o qual se medita. É o centro da
meditação. O Ser está sempre em solidão. Você vê o corpo no Coração, e o mundo
também está nele. Não há nada que esteja a parte dele. Portanto, todo esforço se realiza
aqui.

P. Você diz que o ‘pensamento-eu’ surge do ‘centro do Coração.’ Devemos buscar


sua fonte ali?

Eu lhe disse que veja de onde surge o ‘eu’ no corpo, mas, na realidade, não é
correto dizer que o ‘eu’ surge e se submerge no Coração, do lado direito do peito. O
Coração é outro nome para a Realidade e não está nem dentro nem fora do corpo. Não
pode haver nem dentro nem fora para ele, dado que só ele existe.
P. Devo meditar no lado direito do peito, para meditar sobre o Coração?

O Coração não é físico. A meditação não deve ser feita nem à direita nem à
esquerda. A meditação deve ser praticada sobre o Ser. Todo mundo sabe o ‘eu sou’.
Quem é o ‘eu’? Não está dentro nem fora, nem à direita nem à esquerda. “Eu sou”, isso
é tudo. Deixe em paz a idéia de direita ou esquerda, pois pertence ao corpo. O Coração
é o Ser. Realize-o e então o verá por si mesmo. Não há necessidade de saber onde e o
que é o Coração. Você fará o seu trabalho ao se dedicar à busca do Ser.

P. O que quer dizer com “o Coração”, o verso de Upadesa Saram, que diz: “O
manter-se no Coração é o melhor karma, yoga, bhakti ou jnana”?

Isso que é a fonte de tudo, no qual tudo vive e no qual tudo se funde, é o
Coração ao qual se refere.

P. Como se pode conceber um Coração assim?

Por que se haveria de conceber alguma coisa? Só o que você tem que fazer é
ver de onde surge o ‘eu’. O lugar de onde surgem todos os pensamentos dos seres
corporais se chama “o Coração”. Qualquer descrição é somente um conceito mental.

P. Dizem que há seis órgãos de diversas cores no peito, dos quais o Coração está a
dois dedos (de largura) para a direita da linha que divide o centro. Mas o Coração
tampouco tem forma. Deveríamos imaginar que tem forma e meditar sobre ele?

Não, só a busca “Quem sou Eu?” é necessária. O que sempre está, durante o
sono profundo e a vigília é o mesmo. Mas ao despertar há sofrimento e esforço por
removê-lo. Quando você é questionado sobre quem despertou, responde ‘eu’. Agora se
lhe diz, aferre-se a este ‘eu’. Se você o faz, o Ser eterno se lhe revelará. Você deve
investigar o ‘eu’ e não meditar sobre o ‘centro do Coração’. Não há algo dentro ou
fora. As duas coisas querem dizer o mesmo ou não querem dizer nada. Claro, também
está a prática da meditação sobre o ‘centro do Coração’. É só uma prática e não a
investigação. Somente aquele que medita sobre o Coração pode manter-se consciente
quando a mente não está ativa e se aquieta; enquanto os que meditam sobre outros
centros não podem estar conscientes e concluem que a mente se aquietou só depois que
novamente se torna ativa.

Dependendo do lugar no qual se pense que reside o Ser, só por causa deste
pensamento parecerá, ao que pensa, que o Ser reside lá. No entanto, o querido
“Coração” é o único refúgio para o ‘eu’, que surge e se submerge. Saiba que, ainda que
se diga que o Coração existe tanto dentro quanto fora, a verdade absoluta é que não
existe nem dentro nem fora. Isto se deve a que ‘dentro e fora’ só se referem ao corpo,
que é a base destas diferenças e da imaginação da mente pensante. O Coração, a fonte,
é o princípio, o meio e o final de tudo. O Coração, a paz suprema, nunca tem forma. É
a luz da verdade.
CAPITULO 7

ENTREGA

Várias das tradições religiosas do mundo aconselham a entrega a Deus como


um meio para transcender o ser individual. Sri Ramana aceitava a validade desta via e
muitas vezes dizia que era tão eficaz quanto a indagação do eu. Tradicionalmente, a via
da entrega se associa com as práticas devocionais dualistas, mas estas atividades eram
secundárias em importância, para Sri Ramana. Em seu lugar, insistia em que a entrega
verdadeira transcende a adoração a Deus numa relação de objeto-sujeito, dado que só
pode conduzir a um resultado exitoso quando aquele que imagina estar separado de
Deus tenha deixado de existir. Para alcançar esta meta recomendava duas práticas
específicas:

1) Manter-se aferrado ao ‘pensamento-eu’ até que o que imagina que está separado de
Deus desapareça.

2) Entregar completamente toda responsabilidade pela própria vida a Deus ou ao Ser.


Para que esta entrega seja efetiva não deverá manter-se nem a vontade nem os desejos
próprios; além disso, há a necessidade de desfazer-se completamente da idéia de que há
um indivíduo capaz de atuar independentemente de Deus.

A primeira destas práticas é claramente a indagação do eu sob outro nome. Sri


Ramana frequentemente comparava a prática da entrega com a indagação ao dizer que
eram diferentes nomes para o mesmo processo ou que eram as únicas duas formas
efetivas para chegar à realização do Ser. Isto é coerente com o ponto de vista de que
qualquer prática que se dedica a estar consciente do ‘pensamento-eu’ é uma via válida
e direta até o Ser, enquanto que as outras práticas não o são.
A insistência em manter uma consciência subjetiva do ‘eu’ como a única
maneira de se chegar ao Ser era acompanhada por sua atitude sobre as práticas
devocionais (bhakti) e a oração, as quais se associam com a entrega a Deus. Nunca
separou seus devotos de tais práticas, mas insistia em que qualquer relação com Deus
(de devoto, daquele que reza, de servidor) era ilusória, dado que somente Deus existe.
Dizia que a devoção verdadeira é manter-se como realmente se é, no estado de ‘ser’,
onde as idéias sobre uma relação com Deus tenham deixado de existir.

O segundo método, ou seja, o de entregar a Deus toda responsabilidade sobre


nossa vida, se relaciona com a indagação do eu, dado que se trata de eliminar o
‘pensamento-eu’, separando-o dos objetos e ações com os quais ele constantemente se
identifica. Ao seguir esta prática, deve-se manter uma consciência constante de que não
há um ‘eu’ individual que atua ou deseja, que só existe o Ser e que não há nada a parte
do Ser que seja capaz de atuar por conta própria. Ao seguir esta prática e dar-se conta
de que se está assumindo a responsabilidade pelos pensamentos e ações como, por
exemplo, ‘eu quero’, ou ‘eu estou fazendo isto’, deve-se afastar a mente de seus
contatos externos e fixá-la no Ser. Isto é análogo a transferência de atenção que tem
lugar durante a indagação do eu, quando o praticante se dá conta que a atenção sobre si
mesmo foi perdida. Em ambos os casos, a meta é isolar o ‘pensamento-eu’ e fazê-lo
desaparecer em sua fonte.

Sri Ramana admitia que uma entrega espontânea e total do ‘eu’, mediante este
método, era quase impossível para a maioria das pessoas e por isso aconselhava a seus
seguidores a realizarem exercícios preliminares, que desenvolviam a devoção e o
controle mental. Em geral, estas práticas consistiam em pensar ou meditar sobre Deus
ou o Gurú, seja através de uma repetição constante do seu nome (japa) ou através de
uma visualização de sua forma. Dizia a seus devotos que se o anteriormente exposto
fosse feito com regularidade, amor e devoção, a mente seria absorvida sem esforço no
objeto da adoração.

Uma vez que este último tenha ocorrido, a entrega total é muito mais fácil. A
consciência constante de Deus previne que a mente se identifique com outros objetos e
aumenta a convicção de que só Deus existe. Também produz um fluxo recíproco de
poder ou graça do Ser que debilita o ‘pensamento-eu’ e destrói os vasanas que tem
estado perpetuando e reforçando sua existência. Finalmente, o ‘pensamento-eu’ se
reduz a um tamanho mais manejável e com um pouco de atenção até o Ser se pode
conseguir que ele seja absorvido no Coração.

Tal como a indagação do eu, a realização final se efetua espontaneamente,


através do poder do Ser. Quando todas as tendências da mente para o externo tenham
sido dissolvidas na experiência repetida do Ser, o Ser destrói o ‘eu’ remanescente em
sua totalidade e este nunca volta a surgir. Esta destruição total do ‘eu’ tem lugar
somente se a entrega tiver sido completa e sem interesses. Se foi realizada buscando-se
a graça ou a realização do Ser, não será mais do que uma entrega parcial, tal como
numa transação comercial, na qual o ‘pensamento-eu’ faz um esforço esperando obter
uma recompensa.
P. O que é a entrega incondicional?

Se a pessoa se entrega, não haverá quem faça perguntas ou quem tenha que
pensar. Ou bem se eliminam os pensamentos aferrando-se ao pensamento básico ‘eu’
ou bem o praticante se entrega, sem condições, ao poder superior. Estes são os únicos
dois caminhos para a realização.

P. Não é verdade que a entrega total ou completa requer que não se tenha desejo
de liberar-se ou de unir-se a Deus?

A entrega total requer que não haja nenhum desejo próprio. Deve-se estar
satisfeito com o que Deus dá e isso quer dizer que não se pode ter desejos próprios.

P. Agora que você me aclarou este ponto eu gostaria de saber quais são os passos
para se chegar à entrega.

Há duas maneiras. Uma delas é buscar a fonte e fundir-se com ela. A outra é
sentir o seguinte: ‘estando só não me posso ajudar e só Deus é todo-poderoso. Se não
me entrego totalmente a Ele não haverá outra maneira de me salvar.’ Com este método
se desenvolve gradualmente a convicção de que só Deus existe e que o ego não conta.
Ambos os métodos o levarão à mesma meta. A entrega total é outro nome para jnana
ou a liberação.

P. Acho que a entrega é mais fácil; quero adotar este caminho.

Por qualquer caminho que você for, terá que desaparecer na unidade. A entrega
será completa quando chegar à etapa em que “Ele é tudo” e “Faça-se Sua vontade”.

Este estado não é diferente de jnana. Em Soham (a afirmação de ‘eu sou Ele’)
há dvaitta (dualismo). Na entrega há advaitta (não dualismo). Na realidade, não há nem
dvaitta nem advaitta, mas só o que se é. A entrega parece fácil porque as pessoas crêem
que, uma vez que hajam dito ‘eu me entrego’, descarregando assim seus problemas
sobre o Senhor, podem estar livres e fazer o que quiserem. Mas a verdade é que não se
pode ter gostos nem aversões depois que se tenha entregado; sua vontade tem que
deixar de existir completamente e em seu lugar estará à vontade do Senhor. A morte do
ego nesta forma traz um estado que não é diferente ao jnana. Enfim, qualquer caminho
que tome, tem que chegar a jnana ou à unidade.

P. Qual é a melhor maneira de matar o ego?

Para cada indivíduo, a melhor maneira parece ser a mais fácil ou que mais lhe
atrai. Todos os caminhos são igualmente bons, dado que vão para a mesma meta, a qual
é fundir o ego no Ser. O que o bhakta chama entrega, aquele que faz vichara chama de
jnana. Os dois só estão tratando de levar o ego até a fonte de onde surgiu para fazê-lo
desaparecer nela.
P. A Graça pode ajudar a acelerar a competência do buscador?

Deixe isto para Deus. Entregue-se sem reservas. Uma das duas coisas se tem
que fazer: ou se entrega, porque vê que é incapaz sem a ajuda de um poder superior ou
então investiga a causa da miséria, indo até a fonte e fundindo-se ao Ser. De ambas as
maneiras se chega a estar livre de toda miséria. Deus nunca abandona a quem se
entregou.

P. O que acontece com a mente depois de se haver entregado?

É acaso a mente que se entregou que está formulando esta pergunta?

P. Ao desejar entregar-me constantemente, espero experimentar um maior fluxo


de Graça.

Entregue-se de uma vez por todas e deixe o desejo. Enquanto você mantiver o
sentido de que está atuando, haverá desejos. Isso também é a personalidade; ao
desaparecer, o Ser surgirá, brilhante, em toda sua pureza. O sentido de atuar é o que
nos aprisiona e não os atos em si.

“Esteja tranqüilo e saiba que é Deus”. Nesta frase, a tranquilidade é a entrega


total, sem um vestígio de individualidade. A tranquilidade prevalecerá e não haverá
agitação da mente, a qual é a causa do desejo, da sensação de atuar e da personalidade.
Se chega a parar, haverá quietude. Neste estado, ‘saber’ quer dizer ‘ser’. Não é o
conhecimento relativo, no qual existe a tríade de conhecimento, conhecedor e
conhecido.

P. Por acaso o pensamento ‘Eu sou Deus’ ou ‘Eu sou o Ser Supremo’ pode ser de
alguma ajuda?

“Eu Sou o que Sou.” “Eu Sou” é Deus e não pensar ‘eu sou Deus’. Realize “Eu
Sou” e não pense ‘eu sou’. Diz-se “Conheça que Eu Sou Deus” e não ‘pense que eu sou
Deus’.

Todo palavrório sobre a entrega é como tirar um pouquinho de açúcar de uma


imagem do Senhor Ganesha que está feita com açúcar e depois oferecê-la como
naivedya (um oferecimento de comida) ao mesmo Senhor Ganesha. Você diz que
oferece seu corpo, sua alma e todos seus pertences a Deus. Por acaso eles eram seus
para que você os pudesse oferecer? O mais correto seria dizer “Imaginei erroneamente,
até agora, que tudo que é Seu fosse meu. Agora me dou conta que são Seus. Não
atuarei, de hoje em diante, como se fossem minhas posses.”

O conhecimento de que só Deus ou o Ser existem, que ‘eu’ e ‘meu’ não


existem, é jnana. Portanto, não há diferença entre bhakti e jnana. Bhakti é “jnana maia”
ou a mãe da jnana.
P. Somos homens mundanos e temos um e outro sofrimento. Não sabemos como
superá-los. Rezamos a Deus e ainda não estamos satisfeitos. O que podemos fazer?

Tenham fé em Deus.

P. Nos entregamos mas mesmo assim a ajuda não chega.

Sim, ainda que você já tenha se entregado, deve manter-se segundo a vontade
de Deus e não queixar-se do que não lhe apraz. As coisas podem ocorrer em forma
diferente do que aparentam. Às vezes a tragédia leva o homem até a fé em Deus.

P. Mas somos homens do mundo. Temos esposa, filhos, amigos, parentes. Não
podemos ignorar a existência deles e nos abandonarmos à vontade divina sem reter um
pouco da nossa personalidade.

Isso quer dizer que não se há entregado a Deus, como você declarou. Você só
deve ter fé em Deus.

Entregue-se a Ele e faça Sua vontade, ainda se aparece ou desaparece. Aguarde


e faça o que a Ele agrada. Se você lhe pede que lhe faça o que agrada a você, não é
entrega mas sim uma exigência sua para com Ele. Não pode ser que Ele lhe obedeça e
você chame a isto entrega. Ele sabe o que é melhor para você, quando e como realizá-
lo. Deixe tudo à Sua disposição. Ele levará todo o peso e você já não terá
preocupações. Assim é a entrega. Isso é bhakti.

Por outro lado, indague quem tem todas estas perguntas. Mergulhe no Coração
e mantenha-se no Ser. Um destes caminhos está disponível para o aspirante.

P. A entrega é impossível.

Sim; a entrega total é impossível, no princípio. Mas a entrega parcial é possível


para todos. Depois de um tempo, ela o levará até a entrega total. Bom, se a entrega não
é possível, o que se pode fazer? Não há paz mental. Você não a pode obter. Só se pode
chegar através da entrega.

P. A entrega, por si mesma, é suficiente para chegar ao Ser?

É suficiente se a pessoa se entrega. Entrega significa oferecer-se à causa


original do Ser. Não se confunda imaginando que essa fonte é um deus que está fora de
você. Sua fonte está dentro de você. Entregue-se a esta fonte; isto quer dizer: busque a
fonte e se funda nela.
P. Dizem que podemos obter o que quer que seja se nos refugiamos em Deus,
íntegra e unicamente, sem pensar em nenhuma outra coisa.Quer dizer que devemos nos
sentar num lugar solitário e contemplar a Deus todo o tempo, recusando todo
pensamento, inclusive aquele sobre o alimento, o qual é essencial para manter o corpo?
Quer dizer que se alguém adoece não deve pensar no remédio e no tratamento, mas sim
encarregar à Providência nossa saúde ou enfermidade? No Bhagavad Gita se diz: “O
homem que recusa todo desejo e se move sem preocupações, livre do sentido de ‘eu’ e
‘meu’, chega à paz.” Quer dizer que temos que descartar todos nossos desejos? Temos ,
portanto, que nos dedicar exclusivamente à contemplação de Deus e aceitar comida e
água só se chegam através da Graça de Deus, sem pedí-las por nossa conta? Ou melhor,
quer dizer que necessitamos fazer um pequeno esforço? Bhagavan, por favor, explique-
nos o segredo deste saranagati (entrega).

Anaya saranagati (a entrega total) quer dizer que, sem dúvida, o devoto não está
atado a pensamentos mas, quer dizer que se descartem até os pensamentos sobre
comida e água, que são essenciais para manter o corpo físico? Pergunta: ‘devo comer
só o que me chega por obra de Deus, sem que eu peça? Ou devo fazer um pouco de
esforço?” Bem, vejamos. Suponhamos que o que temos que comer chega por sua
própria conta. Ainda assim, porém, quem vai comer? Suponhamos que alguém nos põe
a comida na boca, não é necessário, pelo menos, engolir o alimento? E isso não é
esforço? Pergunta ‘se adoeço, devo tomar remédio ou ficar em silêncio, deixando a
saúde ou a enfermidade nas mãos de Deus?’ No texto Sadhana Pancham, escrito por
Sankara, se declara que para curar a enfermidade chamada fome, devemos comer
alimento que tenhamos recebido como esmola. Mas então deveremos pelo menos sair e
pedir esmola. Se todo mundo fecha os olhos e fica sentado em quietude, dizendo: ‘se
nos chega a comida, comeremos’, então como irá continuar a existência do mundo?
Teremos, portanto, que tomar as coisas de acordo com os costumes da tradição de cada
um, mas devemos estar livres do sentimento de que nós o estamos fazendo. O sentir
que somos nós que estamos fazendo é o que escraviza. É necessário pensar e encontrar
o método mediante o qual podemos nos livrar desta sensação, no lugar de estar
pensando se devemos tomar remédios ao estarmos doentes ou comer se tivermos fome.
Este tipo de dúvidas continuará surgindo e nunca acabará. Ainda dúvidas como ‘posso
queixar-me se houver dor?’, ‘posso inalar depois de exalar?’, surgirão também. Como
você quiser chamá-lo, seja Iswara (Deus), karma (destino) ou alguma karta (poder
superior) realizará todas as atividades do mundo segundo o desenvolvimento da mente
de cada indivíduo. Se você deixar a responsabilidade ao poder superior, as coisas
ocorrerão por conta própria. Ao caminhar na terra, acaso consideramos a cada passo
que será necessário levantar uma perna e depois a outra e em algum momento parar?
Não caminhamos automaticamente? É o mesmo com a inalação e a exalação. Não
requer um esforço especial para se inalar ou exalar. É o mesmo caso com o resto da
vida. Podemos realmente deixar o que não queremos ou fazer o que nos agrada? Um
grande número de coisas ocorrem automaticamente, sem que estejamos conscientes
delas. A entrega total a Deus é deixar todos os pensamentos e concentrar a mente sobre
Ele. Se podemos nos concentrar sobre Ele, os demais pensamentos desaparecerão. Se
os atos da mente, da fala e do corpo se fundem em Deus, toda a carga de nossa vida
quedará sobre Ele.

P. Mas, na realidade, Deus estará atuando em tudo que eu fizer?


A dificuldade atual se deve a que o homem pensa que ele é o que atua. Mas isto
é um erro; é o poder superior que está atuando e o homem é somente uma ferramenta.
Se aceitar esta postura, estará livre de todo problema. Caso contrário, os buscará. Como
exemplo, tome a figura que foi esculpida na base de um gopuram (a torre de um
templo), que parece estar carregando todo o peso da torre sobre seus ombros. A torre
está sobre a terra e sobre os cimentos. A figura é parte da torre, mas foi construída para
que pareça estar suportando o peso da torre. Não é curioso? Assim acontece com o
homem que se adjudica o sentido de ser o ator.

P. Swami, é bom amar a Deus, não é assim? Então, por que não seguir a via do
amor?

Quem disse que não a pode seguir? Pode fazê-lo. Mas quando fala de amor há
dualidade, não é mesmo? Entre o que ama e a entidade chamada Deus, a qual se ama.
O indivíduo não está separado de Deus. Portanto, o amor quer dizer que amamos a
nosso próprio ser.

P. Por isso estou perguntando se posso adorar a Deus através do caminho do amor.

Isso é exatamente o que eu estava dizendo. O amor é precisamente a forma de


Deus. Se você dissesse: “Não amo isto, não amo aquilo”, rechaçaria todas as coisas e
ficaria Swarupa, ou seja, a forma real do Ser. Essa é a felicidade absoluta. Chame-a
como quiser, felicidade absoluta, Deus, atma; essa é a realização, isso é tudo.

Se você rechaçar tudo, o que sobra é somente o Ser. Esse é o amor verdadeiro.
Aquele que encontra o segredo deste amor encontra que o mundo todo está cheio de
amor universal.

A experiência de estar sempre consciente de si mesmo é o estado de bhakti


(devoção) que é, por sua vez, uma relação de amor que não diminui; porque o
conhecimento real do Ser, que brilha como a felicidade absoluta sem divisões, surge
como a natureza do amor.

Só se o devoto conhece a verdade sobre o amor, que é a natureza real do Ser,


poderá desfazer o nó complicado da vida. Só ao alcançarmos o amor poderemos
conseguir a liberação. Assim se diz em todas as religiões. Somente a experiência do Ser
é o amor, é ver amor, ouvir amor, sentir amor, cheirar amor, o qual é a felicidade
absoluta.

P. Desejo ter bhakti. Quero intensificar o desejo, nem a realização me importa.


Espero que se intensifique em mim o anelo.

Se a aspiração esta ali, a realização ocorrerá ainda que você não queira. Deseje
com intensidade para que a mente se derreta em devoção. Quando a cânfora se queima,
não deixa resíduos. A mente é a cânfora. Quando se funde no Ser sem deixar marca
alguma, então se há realizado o Ser.
P. Tenho fé em murti dhyana (rezar para alguma forma de Deus). Isto não me
ajudará a obter jnana?

Claro que sim. Upasana (a meditação) ajuda a concentração da mente. Então a


mente se liberta de outros pensamentos e se enche da forma sobre a qual meditou.
Então a mente se une com esta forma e isso a torna muito pura. Pense então sobre
quem está rezando, a resposta é “Eu”, ou seja, o Ser. Dessa maneira você chegará, por
fim, ao Ser.

Adorar sem pensamentos a realidade sem forma é a melhor adoração. Mas


quando não se está preparado para este tipo de adoração sem forma, a adoração com
forma é adequada. A adoração sem forma só é possível para aqueles que não tem a
forma do ego. Compreenda que toda adoração feita por pessoas que possuem a forma
do ego é meramente adoração da forma.

O estado puro de estar unido à Graça (Ser), sem atadura alguma, somente esse é
o estado próprio de silêncio, livre de todas as coisas. Saiba que conseguir manter
continuamente este silêncio, tendo a experiência como realmente é, é a única e
verdadeira adoração mental (manasika-puja). Saiba que a adoração verdadeira e natural
é aquela na qual a mente está submissamente estabelecida como o Ser único, colocando
o Senhor no trono do Coração: isso é silêncio, a melhor adoração. O silêncio livre do
ego, só isso é a liberação. Ao esquecer-se do Ser, o que ocasiona a saída do silêncio, só
isto é a não-devoção (vibhakti). Saiba que o manter-se nesse silêncio, com a mente
apaziguada, num estado não diferente do Ser, é a verdade de Shiva bhakti (devoção a
Deus).

A natureza suprema da devoção é quando se há rendido totalmente aos pés de


Shiva, tornando-se da natureza do Ser. Da abundante paz que resulta, não existe o
menor espaço no Coração para queixar-se dos próprios defeitos e deficiências. Ao
converter-se em escravo do Senhor, ficando em quietude e silêncio, livre também do
pensamento egoísta “Eu sou Seu escravo”, isso é a permanência no Ser e este é o
conhecimento supremo.

P. Podem os seguidores espirituais chegar à meta na vida se andam pelo mundo


absortos em cantos que glorificam a Deus? Ou deverão ficar num só lugar?

É conveniente que a mente se concentre sobre uma só coisa quando a pessoa


está vagando. De que serve manter o corpo num só lugar se a mente está divagando?

P. É possível a ahetuka bhakti (a devoção sem motivo)?

Sim, é possível. O adorar a Deus buscando um objeto que se deseja é estar


adorando somente a esse objetivo. A parada total do pensamento sobre um objeto
desejado é o primeiro requisito para uma mente que quer obter o estado de Shiva.
P. O Sri Bhagavatam fala de uma forma de encontrar a Krishna no coração ao
prostrar-se ante todos e vê-los como se fossem o próprio Senhor. É este o caminho
correto até a realização do Ser? Não é mais fácil adorar a Bhagavan em qualquer coisa
que se encontre a mente em lugar de buscar o supra-mental através da indagação
“Quem sou Eu?”

Sim, quando vê a Deus em todas as coisas, você pensa nele ou não?


Forçosamente tem que pensar em Deus se o quer ver em todo lugar. Manter sua mente
desta maneira se torna dhyana e dhyana é a etapa antes da realização. A realização só
pode ocorrer no Ser e é do Ser. Não pode estar à parte do Ser. Dhyana deve preceder à
realização, mas se se faz dhyana sobre Deus ou o Ser, isto não será relevante, dado que
é a meta mesma. Não se pode, de modo algum, escapar do Ser. Você quer ver a Deus
em todas as coisas, mas não em você mesmo. Dado que você é Deus, o que há de
estranho em que tudo seja Deus? Este é o método que propõe Sri Bhagavatam e outros
textos. Mas mesmo para realizar esta prática deve haver alguém que vê ou pensa.
Quem é?

P. Como ver a Deus que está em tudo?

Ver a Deus é ser Deus. Não há coisa alguma a parte d’Ele. Só existe Ele.

P. O bhakta requer a Deus para poder fazer bhakti. Deve-se ensiná-lo que só existe
o Ser e não o que adora e o adorado?

Claro, precisa-se de Deus para efetuar sadhana. Mas a finalidade do sadhana,


ainda em bhakti marga (o caminho da devoção) se consegue depois da entrega total.
Isto não significa que o desaparecimento do ego resulta em que o Ser se mantém como
sempre tem sido? Qualquer caminho que você escolha, não se pode duvidar do ‘eu’; o
‘eu’ que faz nishkama karma (atos sem motivo); o ‘eu’ que chora porque não se pode
unir ao Senhor, do qual se sente separado; o ‘eu’ que sente que não está em sua
natureza real; etc. Deve-se saber onde está a fonte deste ‘eu’. Assim se resolverão todas
as dúvidas.

P. Se o ‘eu’ é uma ilusão, quem acaba com a ilusão?

O ‘eu’ acaba com a ilusão e, ao mesmo tempo, se mantém como “eu”. Este é o
paradoxo da realização do Ser. Os que se realizaram não vêem nenhuma contradição
nisto. Tome o caso do bhakti. Aproximo-me de Iswara e rezo para que me absorva
n’Ele. Entrego-me com fé e me concentro n’Ele. O que sobra depois? No lugar do’eu’
original, a entrega perfeita deixa um resíduo de Deus no qual o ‘eu’ está perdido. Esta é
a forma mais elevada de devoção (parabhakti) e de entrega; é a cúspide de vairagya (o
não apego).
Você deixa isto e aquilo das ‘minhas’ posses. Se deixa o ‘eu’ e o ‘meu’, deixa
tudo de uma só vez. Perde-se a semente da posse. Corta-se, portanto, o mal pela raiz,
ou o gérmen do mesmo. O desapego (vairagya) deve ser muito forte para se conseguir
isto. O anelo deve ser tão grande como o de um homem debaixo da água, tratando de
subir à superfície para salvar sua vida.
TERCEIRA PARTE

O GURÚ

“Deus e o Gurú, na verdade, não são diferentes. Tal como a presa


apanhada na mandíbula de um tigre não pode escapar, aqueles que caíram sob a
mira da Graça do Gurú seguramente estarão a salvo e não serão abandonados;
mas é necessário seguir, sem deslizes, o caminho que o Gurú mostra.

Desde o ponto de vista de Bhagavan, não há discípulos. Mas desde o ponto


de vista do discípulo, a graça do Gurú é como um oceano. Se você chega com uma
taça, receberá só o conteúdo de uma taça. Não podemos nos queixar de que o
oceano seja tacanho; quanto maior nossa vasilha mais poderemos levar.

Um método para assegurar que cessem temporariamente as atividades


mentais é a associação com os sábios. O samadhi se torna fácil, natural e
permanente para eles. Os que se movem ao seu redor e em contato harmonioso,
gradualmente absorverão deles o hábito do samadhi.”
CAPITULO 8

O GURÚ

O termo Gurú é às vezes usado em forma imprecisa, para descrever a qualquer


um que dê conselhos espirituais, mas no vocabulário de Sri Ramana a palavra tinha
uma definição muito mais restrita. Para ele, o Gurú verdadeiro é alguém que realizou o
Ser e pode usar seu poder para ajudar a outros na realização do Ser.

Sri Ramana mencionou frequentemente que Deus, o Gurú e o Ser são idênticos;
o Gurú é Deus na forma humana e simultaneamente também é o Ser no Coração de
cada devoto. Dado que se encontra tanto fora quanto dentro, seu poder trabalha em
duas formas diferentes. O Gurú externo dá instruções e, através do seu poder, consegue
que o devoto mantenha sua atenção sobre o Ser; o Gurú interno atrai a mente do devoto
até sua fonte; a absorve no Ser e finalmente a destrói.

É uma premissa fundamental nos ensinamentos de Sri Ramana que um Gurú é


necessário para quase todos os que estão buscando a realização do Ser. O papel
catalítico do Gurú no desenvolvimento espiritual é, portanto, crucial. Salvo em raros
casos, porque a ignorância do Ser costuma estar tão fortemente arraigada que os
buscadores individuais não podem escapar por seus próprios esforços.

Ainda que Sri Ramana ensinasse que um Gurú é indispensável para aqueles que
buscam a realização do Ser, também salientava que o Gurú não tem o poder de
conseguir a realização naqueles que não a buscam com grande energia. Se o buscador
faz um sério esforço para tratar de descobrir o Ser, então, tanto a Graça como o poder
do Gurú, começarão automaticamente a fluir. Se não realiza esta busca, o Gurú não
pode ser de ajuda alguma.

As conversações deste capítulo resumem os pontos de vista de Sri Ramana


sobre a natureza do Gurú e o papel que joga na realização do Ser. A forma particular na
qual Sri Ramana usava seu próprio poder será explorada com maiores detalhes no
capítulo 9.
P. O que é a Graça do Gurú? Como ele leva a pessoa até a realização do Ser?

O Gurú é o Ser. Algumas vezes o homem se torna insatisfeito com sua vida e ao
não estar contente com o que tem, busca a satisfação de seus desejos através de rezar a
Deus. Sua mente vai se purificando até que anseie conhecer a Deus e obter Sua Graça,
mais do que satisfazer seus desejos mundanos. Então a Graça de Deus começa a se
manifestar. Deus toma a forma de um Gurú e aparece ao devoto, o ensina a verdade e
além disso purifica sua mente por associação. A mente do devoto vai se fortalecendo e
pode introverter-se. Através da meditação vai se purificando ainda mais e se torna
totalmente quieta, sem um só movimento. Esta expansão de calma é o Ser.

O Gurú está no externo e no interno. Do exterior, empurra a mente para que se


introverta e desde o interior, atrai a mente até o Ser, ajudando a aquietá-la. Essa é a
Graça do Gurú. Não há diferença alguma entre Deus, o Gurú e o Ser.

P. Dentro da sociedade teosófica meditam para buscar mestres que os possam


guiar.

O mestre está dentro, a meditação trata de remover a idéia ignorante de que está
só de fora. Se é um estranho que está esperando, num dado momento também
desaparecerá. De que lhe pode servir um transeunte como esse? Mas enquanto pensar
que está separado ou que é o corpo, um mestre externo é necessário e aparecerá com
um corpo. Quando a identificação errônea com o corpo tiver desaparecido, se
descobrirá que o mestre não é outro além do Ser.

P. Nos ajudará o Gurú a conhecer o Ser através de uma iniciação?

Por acaso o Gurú o toma pela mão e lhe diz algo suavemente ao ouvido? Você
pode imaginar que é o que você mesmo é. Dado que pensa que está com um corpo,
pensa que ele também tem um corpo e lhe fará algo tangível. Seu trabalho está dentro,
no mundo espiritual.

P. Como se encontra o Gurú?

Deus, que é imanente, por causa de sua Graça, é misericordioso com seu devoto
e se manifesta de acordo com o grau de desenvolvimento do mesmo. O devoto pensa
que ele é um homem e espera uma relação entre dois corpos físicos. Mas o Gurú, que é
Deus ou o Ser encarnado, trabalha dentro, ajuda o homem a se dar conta de seus erros e
o guia no caminho correto até que realize o Ser em seu interior.

P. Quais são os sinais de um mestre verdadeiro (sadgurú)?

Manter-se no Ser continuamente; olhar a todos com fraternidade, ter um valor


inalterável em todos os momentos, em todos os lugares ou circunstâncias.
P. Há um sem número de mestres espirituais, ensinando diversos caminhos. A
quem se deve eleger como nosso Gurú?

Escolha o que lhe dê paz (shanti).

P. Não deveríamos avaliar também seu ensinamento?

Aquele que instrui o buscador ardente a fazer isto ou aquilo, não é um


verdadeiro mestre. O buscador já tem aflições devido às suas atividades; quer paz e
descanso. Em outras palavras, quer o cessar de suas atividades. Se um mestre lhe diz
para fazer algo adicional ou no lugar de suas outras atividades, isto pode ser de ajuda
para o buscador?

A atividade é a criação. A atividade é a destruição da felicidade inerente da


pessoa. Se o conselheiro sugere atividade, não é um mestre mas sim um assassino.
Nestas circunstâncias, pode-se dizer que, seja o criador (Brahman) ou a morte (Yama)
chegaram com o disfarce de um mestre. Esta pessoa não pode liberar o aspirante, mas,
ao contrário, reforçar suas ataduras.

P. Como posso encontrar meu próprio Gurú?

Através da meditação intensa.

P. Se é verdade que o Gurú é o Ser da própria pessoa, qual é o princípio sob o qual
existe a doutrina que diz que ainda que o discípulo tenha grandes conhecimentos ou
possua qualquer poder mágico, não pode obter a realização do Ser sem a Graça do
Gurú?

Ainda que a verdade absoluta seja que o estado do Gurú é igual ao da própria
pessoa (o Ser), é muito difícil para o Ser que se tenha convertido no indivíduo (Jiva)
devido à ignorância, realizar seu estado ou natureza verdadeira sem a graça do Gurú.

P. Como é a Graça do Gurú?

Está além dos pensamentos ou palavras.

P. Se isto é assim, como é que se diz que o discípulo realiza seu verdadeiro estado
através da Graça do Gurú?

É como se um elefante despertasse ao ver um leão em seus sonhos. Assim como


o elefante se desperta ao ver o leão, assim também é certo que o discípulo despertará do
sono da ignorância até a vigília do conhecimento verdadeiro através do olhar benévolo
e cheio de Graça do Gurú.
P. Que significado tem a frase de que a natureza do Gurú verdadeiro é a mesma
que a do Senhor Supremo (sarvesvara)?

Numa primeira instância, a alma individual que quer chegar a obter o estado da
divindade ou do conhecimento verdadeiro, pratica a devoção incessantemente. Quando
a devoção do indivíduo chega a uma etapa madura, o Senhor, que é a testemunha dessa
alma individual e idêntico a ela, se manifesta. Aparece em forma humana com a ajuda
de Sat-chit-ananda, que são seus três aspectos naturais, com forma e nome, as quais
adota por sua Graça. Parecendo que está abençoando o discípulo, o absorve n’Ele
mesmo. De acordo com esta doutrina se pode dizer que o Gurú é realmente o Senhor.

P. Como é que alguns seres avançados obtiveram conhecimento sem um Gurú?

A algumas pessoas maduras, o Senhor brilha como a luz sem forma do


conhecimento e lhes distribui a consciência da verdade.

P. Como se pode decidir quem é um Gurú adequado? Qual é o swarupa (natureza


ou forma real) do Gurú?

O Gurú apropriado para você é aquele ao qual sua mente se acopla. Se você
pergunta: “Como decidir quem é o Gurú e qual é sua swarupa?”, verá que deverá ter
tranquilidade, paciência, perdão e outras virtudes, deve ser capaz de atrair os outros
meramente com seus olhos, como o imã atrai o ferro; deverá ter um sentido de
igualdade para com todos. O que possui estas virtudes realmente é um Gurú, mas se
você quer conhecer o swarupa do Gurú, terá que conhecer o swarupa de si mesmo.
Como é possível conhecer a verdadeira natureza do Gurú se não conhecer a verdadeira
natureza de si mesmo? Se quiser conhecer a forma ou natureza real do Gurú, deve
começar por aprender a ver todo o universo como Gurú Rupam (a forma do Gurú).
Devemos ver o Gurú em todos os seres viventes. É o mesmo com Deus. Deve-se ver a
todos os objetos como a rupa (forma) de Deus. Como é possível que o que não conhece
a seu próprio ser conhecer a forma real de Deus ou do Gurú? Como pode determiná-
los? Em primeiro lugar, portanto, conheça sua própria natureza e forma real.

P. Não é necessário um Gurú para saber isso?

É verdade. O mundo contém muitos grandes homens. Considere seu Gurú a


aquele com o qual sua mente se harmoniza. Em quem você tiver fé, esse será seu Gurú.

P. Que significado tem a Graça do Gurú em relação a se conseguir a libertação?

A liberação não está em nenhum lugar fora de você. Só está dentro. Se um


homem está ansioso para liberar-se, o Gurú interno o atrai e o Gurú externo o empurra
até o Ser. Esta é a Graça do Gurú.
P. Algumas pessoas comentam que você disse que não há necessidade de um
Gurú. Outros comentam o oposto. O que diz o Maharshi?

Eu nunca disse que não há necessidade de um Gurú.

P. Sri Aurobindo e outros se referem a você dizendo que não teve um Gurú.

Tudo depende do que você chama de Gurú. Não deve ter necessariamente uma
forma humana. Dattatreya teve 24 gurús, incluindo os cinco elementos, como a terra, a
água, etc. Todo objeto neste mundo era seu Gurú.

O Gurú é absolutamente necessário. Os Upanishads mencionam que só um


Gurú pode tirar o homem da selva do intelecto e das percepções sensoriais. Portanto,
deve haver um Gurú.

P. Eu quis dizer um Gurú humano. Maharshi não teve um.

Quiçá eu tive um, em uma ou outra ocasião. Mas, por acaso, não cantei hinos a
Arunachala? O que é um Gurú? O Gurú é Deus ou o Ser. Primeiro um homem reza
para que se satisfaçam seus desejos. Chega um momento que já não rezará para
satisfazer seus desejos materiais, mas sim para obter a Deus mesmo. Então Deus
aparecerá em uma ou outra forma, humana ou não humana, para guiá-lo até Ele
mesmo, em resposta a sua oração e de acordo com suas necessidades.

P. Se o devoto é leal a um mestre poderá respeitar a outros?

O Gurú só é um. Não é um ser físico. Enquanto houver debilidade será preciso
apoio da fortaleza.

P. J. Krishnamurti disse: “Não se necessita um Gurú.”

Como chegou a saber disto? Só podemos dizê-lo depois da realização, nunca


antes.

P. É possível que Sri Bhagavan nos ajude a realizar a verdade?

A ajuda sempre está ali.

P. Então não há necessidade de se formular perguntas. Não sinto que a ajuda está
sempre presente.

Entregue-se e a encontrará.
P. Estou sempre a seus pés. Pode nos dar Bhagavan algum upadesa (ensinamento)
que possamos seguir? De outro modo, como posso obter ajuda se vivo a 600 milhas
daqui?

O sadgurú (o Gurú que é um com o Ser) está dentro.

P. Quero um Gurú visível.

Esse Gurú visível diz que está dentro.

P. O êxito não depende da Graça do Gurú?

Claro que sim. Por acaso sua prática se deve a esta Graça? Os frutos são
resultado da prática e a seguem automaticamente. Há uma estrofe no Kaivalya que diz:
“Oh Gurú! Tens estado comigo sempre, observando-me durante várias encarnações e
ordenando meu caminho até que fui liberado.” O Ser se manifesta externamente como
o Gurú quando surge a ocasião; de outra maneira, está sempre dentro, fazendo o que for
necessário.

P. Alguns discípulos de Shirdi Sai Baba adoram a uma foto dele e dizem que é seu
Gurú. Como pode ser assim? Podem adorá-lo como Deus, mas que benefício pode
derivar de adorá-lo como Gurú?

Desta maneira eles obtêm a concentração.

P. Com isto estou de acordo. Pode ser, de alguma maneira, um exercício de


concentração. Mas não se precisa de um Gurú para obter essa concentração?

Claro que sim. Mas, no fim das contas, Gurú só quer dizer guri, a concentração.

P. Como é possível que uma foto sem vida ajude a desenvolver a concentração
profunda? Necessita-se de um Gurú em vida para que demonstre a prática. Pode ser
possível para Bhagavan, que chegou à perfeição sem um Gurú, mas é possível para
pessoas como eu?

Isso é verdade. Ainda assim, ao adorar uma foto sem vida, a mente chega a se
concentrar até certo ponto. A concentração não será constante até que se conheça o Ser
verdadeiro, através da indagação. Para essa indagação se necessita a ajuda de um Gurú.

P. Se diz que o Gurú pode fazer com que o discípulo realize o Ser ao transmitir
algo se seu próprio poder. É verdade?

Sim, o Gurú não faz com que chegue a realização do Ser. Ele simplesmente
remove os obstáculos. O Ser está sempre realizado.
P. É absolutamente necessário ter um Gurú quando estamos buscando a realização
do Ser?

Enquanto se estiver buscando a realização do Ser, o Gurú é necessário. O Gurú


é o Ser. Tome o Gurú como o Ser real e a você como o ser individual. O
desaparecimento deste sentido de dualidade é a remoção da ignorância. Enquanto dure
a dualidade, O Gurú é necessário. Dado que se identifica com o corpo, você acredita
que o Gurú também é um corpo. Você não é o corpo, nem tampouco o Gurú o é. Você
é o Ser e o Gurú também é. Esse conhecimento se obtém com o que você chama
realização do Ser.

P. Como podemos saber se um indivíduo em particular é um Gurú competente?

Pela paz mental que encontra em sua presença e pelo respeito que sente por ele.

P. Se o Gurú se mostra incompetente, qual será o destino do discípulo que tenha


uma fé implícita nele?

Cada um obterá o que corresponde a seus méritos.

P. Posso obter a Graça do Gurú?

A Graça está sempre ali.

P. Mas eu não a sinto.

A entrega fará que se entenda a Graça.

P. Me entreguei com coração e alma. Eu sou o que melhor pode julgar meu
coração. Ainda assim não sinto a Graça.

Se se houvesse entregado, as perguntas não surgiriam.

P. Me entreguei. De qualquer modo, continuam surgindo as perguntas.

A Graça é constante. Seu juízo é o que varia. Onde mais pode estar a falta?

P. Pode-se ter mais de um mestre espiritual?

Quem é o mestre? Depois de tudo, é o Ser. De acordo com a etapa de


desenvolvimento da mente, o Ser se manifesta como mestre em forma externa. O
famoso e antigo santo Dattatreya disse que havia tido mais de 24 mestres. O mestre é
qualquer um do qual aprendemos algo. O Gurú às vezes é inanimado, como no caso de
Dattatreya. Deus, o Gurú e o Ser são idênticos.
Um homem espiritual pensa que Deus abarca tudo e toma a Deus como seu
Gurú. Depois, Deus o põe em contato com um Gurú pessoal e o homem reconhece nele
o todo no tudo. Finalmente esse homem, através da Graça do Gurú, chega a sentir que
seu ser é a realidade única. No fim, descobre que o Ser é o mestre.

P. No Srimad Bhagavad Gita se diz: “Realize o Ser com um intelecto puro, através
do serviço ao Gurú e pela indagação”. Como é possível conciliar isto?

“Iswaro Gururatmeti”; Iswara, o Gurú e o Ser são idênticos. Enquanto existir o


sentido de dualidade em você, terá que buscar um Gurú, pensando que ele é diferente
de você. No entanto, lhe ensina a verdade e você logra obter essa revelação.

Aquele que outorga à sua alma o conhecimento supremo do Ser, atraindo-a até
o Ser, é o único Gurú supremo que é louvado pelos sábios como a forma de Deus e que
é o Ser. Aferre-se a ele. Aproximando-se dele e servindo-o com fé, deve-se aprender,
através de sua Graça, a causa do nascimento e sofrimento de cada um. Ao conhecer o
que é que leva a pessoa a separar-se do Ser, o melhor será manter-se firme como o Ser.

Se bem que aqueles que tomaram e estão seguindo com esmero o caminho da
salvação, às vezes podem se desviar do caminho védico, seja devido ao esquecimento
ou alguma outra razão, saibam que em nenhum momento devem ir contra as palavras
do Gurú. As palavras dos sábios asseguram que, se alguém comete um mal ante Deus,
pode ser retificado pelo Gurú, mas um mal contra o Gurú não pode ser retificado nem
ainda por Deus.

Para aquele que, devido a um abundante e intenso amor, tem fé constante na


Graça outorgada pelo Gurú, não haverá sofrimento e viverá neste mundo como
puruhuta (um nome de Indra, rei dos deuses).

A paz, que todo mundo deseja, não se pode alcançar de nenhuma maneira, em
nenhum momento ou lugar, a menos que a quietude mental se obtenha através da Graça
do sadgurú. Portanto, busque sempre essa Graça, com uma mente unidirecional.

P. Há discípulos de Bhagavan que obtiveram sua Graça e se realizaram sem


grande dificuldade. Sendo mulher e vivendo à grande distância, não posso estar na
sagrada presença do Maharshi todo o tempo e tão seguidamente como gostaria. Pode
ser que eu não possa voltar. Solicito a Graça de Bhagavan. Quando regressar para onde
vivo, quero recordar-me de Bhagavan. Espero que Bhagavan possa me outorgar o que
peço em minha oração.

Aonde você vai? Não vai a lugar algum. Mesmo supondo que você é seu corpo,
seu corpo veio de Lucknow a Tiruvannamalai? Simplesmente sentou-se no carro e um
ou outro veículo se moveu. Finalmente você disse que chegou aqui. A verdade é que
você não é este corpo. O Ser não se move, o mundo é que se move n’Ele. Você é só o
que é. Não há mudanças em você. No fim, parece que você se foi, mas você estará
aqui, ali, em todos os lugares. Só se movem as paisagens. Quanto a Graça, está dentro
de você. Se for externa, não serve. A Graça é o Ser. Nunca está separada de seu
movimento. A Graça está sempre ali.
P. Quero dizer que quando me recordar de sua forma, que minha mente se
fortaleça e que haja uma resposta de sua parte também. Você não pode me deixar com
meus esforços individuais que, além de tudo, são débeis.

A Graça é o Ser. Já disse que se você se recorda de Bhagavan, o faz devido ao


Ser. Não está ali a Graça? Por acaso há algum instante em que a Graça não opera em
você? Sua recordação é o indício da Graça. Essa é a resposta, é o estímulo, é o Ser e é a
Graça. Não há motivo para que você esteja ansiosa.

P. Posso prescindir da ajuda externa e, através dos meus próprios esforços, chegar
à verdade profunda sobre mim mesmo?

O próprio fato de que você esteja tomado pela busca do Ser já é uma
manifestação da Graça Divina. Está efervescente no Coração, no ser interno o Ser real
lhe atrai, desde dentro. Você tem que tratar de introverter-se, a partir do exterior. Seu
intento é a busca sincera e o profundo movimento interno é a Graça. Por isso eu digo
que, na realidade, não pode haver uma busca verdadeira sem a Graça, nem há Graça
ativa para aquele que não busca o Ser. Os dois são necessários.

P. Quanto tempo é necessário ter um Gurú para se obter a realização do Ser?

O Gurú é necessário enquanto houver ignorância. A ignorância se deve às


limitações auto-impostas mas errôneas, sobre o Ser. Ao adorar a Deus, é outorgada à
pessoa a estabilidade na devoção, que o leva à entrega. Quando o devoto se entrega,
Deus mostra sua misericórdia ao manifestar-se como o Gurú. O Gurú, ou seja, Deus,
guia o devoto, dizendo-lhe que Deus está dentro e que não é diferente do Ser. Isso o
leva à introversão da mente e, finalmente, à realização.

P. Se a Graça é tão importante, que papel tem o esforço individual?

O esforço é necessário até chegar à realização. Ali o Ser deve ser evidente
espontaneamente, de outra forma a felicidade não será total. Até este ponto de
espontaneidade total, deve haver algum tipo de esforço numa ou noutra forma.

Há um estado além dos nossos esforços. Até que se realize, o esforço é


necessário. Depois de sentir tal felicidade, ainda que só uma vez, a pessoa tratará
repetidamente a voltar a obtê-la. Uma vez que o gozo da paz tenha sido experimentado,
ninguém quer sair deste estado ou começar outro tipo de atividade.

P. A Graça Divina é necessária para chegar à realização ou o indivíduo pode,


através de esforços honestos, chegar ao estado do qual não se retorna à vida e morte?

A Graça Divina é necessária para se chegar à realização. Ela nos leva à


realização de Deus. Mas esta Graça só é assegurada para aquele que é um devoto
verdadeiro ou um yogue. É dada só para aqueles que lutaram forte e constantemente no
caminho até a liberdade.
P. A distância tem algum efeito sobre a Graça?

O tempo e o espaço estão dentro de nós. Você é sempre o Ser. Como lhe podem
afetar o tempo e o espaço?

P. No rádio, aqueles que estão mais perto escutam mais rápidamente. Você é hindu
e nós americanos. Há alguma diferença?

Não.

P. Até os pensamentos podem ser lidos por outros.

Isto demonstra que todos são Um.

P. Bhagavan sente algo por nós e por isso mostra sua Graça?

Você está rodeado de água até o pescoço e ainda pede água. É como dizer que
alguém que tem água até o pescoço sente sêde ou que um peixe na água sente sêde, ou
até que a própria água sente sêde.

A Graça está sempre ali. “A não-paixão, a realização da verdade, a inerência no


Ser, tudo isto não se pode obter se a Graça do Gurú está ausente”.

Mas a prática também é necessária. Ficar no Ser por nossos esforços é como
treinar um touro selvagem para que fique no estábulo tentando-o com uma boa
pastagem para que não saia.

P. Recentemente encontrei uma canção tamil na qual o autor se lamenta de não ser
tão tenaz quanto o filhote de macaco, que se segura fortemente em sua mãe, mas sim é
como um gatinho que tem que ser carregado na boca pela sua mãe. O autor, portanto,
reza para que Deus o cuide. Meu caso é assim. Você, Bhagavan, deve ter pena de mim.
Agarre-me pelo pescoço e não me deixe cair e me machucar.

Isto é impossível. É necessário que você faça esforços e que o Gurú o ajude.

P. Quanto tempo demorará para que eu receba a Graça do Gurú?

Para que você quer saber?

P. Para ter esperança.

Mesmo este desejo é um obstáculo. O Ser sempre está ali, não há nada sem Ele.
Seja o Ser, os desejos e dúvidas desaparecerão.
A Graça é o princípio, o meio e o final. A Graça é o Ser. Dado que há uma falsa
identificação do Ser com o corpo, se considera que o Gurú é um corpo. Mas, desde o
ponto de vista do Gurú, o Gurú é só o Ser. O Ser é um e o Gurú diz a você que só existe
o Ser. Então, não é certo que o Ser é o Gurú? De o que outro lugar pode vir a Graça?
Somente pode vir do Ser. A manifestação do Ser é uma manifestação de Graça e vice-
versa. Todas as dúvidas surgem por uma visão errônea e a consequente expectativa por
coisas externas a você. Nada é externo para o Ser.
CAPITULO 9

SILÊNCIO E SAT-SANGA

Ainda que Sri Ramana estivesse disposto a dar seu ensinamento oral a qualquer
um que o pedisse, frequentemente assinalava que seu ‘ensinamento em silêncio’ era o
mais direto e poderoso. Este ‘ensinamento em silêncio’ consistia numa força espiritual
que parecia emanar de sua forma, uma força tão poderosa que ele a considerava o
aspecto mais direto e importante de seus ensinamentos. No lugar de dar instruções orais
sobre como controlar a mente, emitia, sem esforço, um poder silencioso que
automaticamente aquietava a mente das pessoas que o rodeavam.

Aqueles que entravam em contato com esta força diziam experimentar um


estado de paz e bem estar interior; em casos de devotos avançados, chegava até a dar-
lhes uma experiência direta do Ser.

Este método de ensinamento tem uma longa tradição na India e seu mais
famoso expoente foi Dakshinamurti, uma manifestação de Shiva que levou a quatro
sábios a experiência do Ser através do silêncio. Sri Ramana mencionava a
Dakshinamurti frequentemente com grande aprovação e seu nome surge numerosas
vezes nas conversações deste capitulo.
Este fluxo do poder do Gurú pode ser recebido por qualquer um que põe a
atenção sobre o Ser ou sobre a forma do Gurú; a distância não é um impedimento à sua
eficácia. Esta atenção se denomina geralmente sat-sanga, que, literalmente, quer dizer
“associação com a existência”. Sri Ramana apoiava esta prática de todo coração e
frequentemente dizia que era a forma mais eficaz de conseguir uma experiência direta
do Ser. Tradicionalmente, significa que se deve estar na presença física do que realizou
o Ser. Mas Sri Ramana lhe dava uma definição mais ampla. Dizia que o elemento mais
importante do sat-sanga era a conexão mental com o Gurú. O sat-sanga tomava lugar
não só em sua presença física, mas também cada vez que se pense nele, onde quer que
se encontre.

A seguinte citação dá uma indicação do poder do sat-sanga. São cinco versos


em sânscrito que Sri Ramana encontrou em diferentes ocasiões. Impressionaram-lhe
tanto que os traduziu ao tamil e os incorporou a Ulladu Narpadu Anubandham, uma de
suas obras escritas, que trata da natureza da realidade. Nestes versos o nome ‘sadhú’
indica alguém que realizou o Ser.

1) Através do sat-sanga a associação com os objetos mundanos se removerá. Quando


esta associação mundana é removida, as ataduras ou tendências mentais serão
destruídas. Aqueles que estão sem ataduras mentais morrerão nisto que é imortal.
Assim chegam a Jivan Mukta (a liberação).

2) O estado supremo que é louvado e que se obtêm aqui nesta vida através de um
vichara claro, que brota no coração quando se consegue a associação com os sadhús,
não se poderia conseguir só escutando aos oradores, estudando e aprendendo o
significado das escrituras, por atos virtuosos ou qualquer outra atividade.

3) Se o buscador consegue a associação com os sadhús, de que utilidade seriam todas


as observâncias religiosas (nyamas)? Quando a excelente e refrescante brisa que vem
do sul está soprando, de que adianta ter um abanador?

4) A lua fresca remove o calor, a árvore celestial que concede desejos remove a
pobreza e o Ganges remove os pecados. Mas saiba que tudo isto, começando com o
calor, serão removidos ao obter o darshan dos incomparáveis sadhús.

5) Os balneários sagrados, que contém água e as imagens de divindades que estão feitas
de terra e pedra, não podem ser comparadas a essas grandes almas (mahatmas). Oh, que
maravilha! Os balneários sagrados e as deidades proporcionam a purificação mental
depois de vários dias, enquanto que esta pureza é concedida instantaneamente para as
pessoas tão logo são abençoadas pelos olhos de um sadhú.
P. Por que Bhagavan não sai pregando a verdade para todas as pessoas, em
diversos lugares?

Como você sabe que não estou fazendo isto? Por acaso pregar consiste em subir
numa plataforma e arengar as pessoas? Pregação é simplesmente a comunicação do
conhecimento, coisa que realmente só se pode realizar no silêncio. O que você pensa de
um homem que escuta um sermão durante uma hora e meia sem que fique
impressionado o suficiente para mudar a própria vida? Compare-o com outro, que se
senta frente a uma presença sagrada e se retira depois de um tempo, com todos os seus
pontos de vista sobre a vida completamente mudados. O que é melhor, pregar
ruidosamente, sem efeito, ou estar sentado em silêncio emanando força interior?

Novamente, como surge a fala? Primeiro, há conhecimento abstrato. Depois


surge o ego, depois o pensamento e deste a palavra falada. Em consequência, a palavra
é o bisneto da fonte original. Se a palavra pode produzir um efeito, avalie você quanto
mais poderoso é o pregar através do silêncio.

P. Como é possível que o silêncio seja tão poderoso?

De um ser realizado emanam ondas de influência espiritual que atraem muita


gente até ele que, por sua vez, pode estar sentado numa cova e manter-se em silêncio
absoluto. Podemos escutar conferências ou exposições sobre a verdade e nos retirarmos
sem a menor compreensão do tema, mas quando se entra em contato com alguém
realizado, ainda que este ser não fale, nos dará um melhor entendimento. Ele não tem
porque sair em público pois, se for necessário, pode usar outros seres como seus
instrumentos.

O Gurú não é o que concede este silêncio, que revela a luz do


autoconhecimento, que brilha como a realidade residual. As palavras faladas não
servem para nada se os olhos do Gurú encontram os olhos do discípulo.

P. É certo que Bhagavan dá diksha (iniciação)?

Mouna (o silêncio) é a melhor e mais potente forma de diksha. Foi praticado por
Sri Dakshinamurti . A iniciação através do tato, da vista, etc é de uma ordem inferior.
A iniciação silenciosa muda o coração de todo mundo.

Dakshinamurti observou silêncio quando os discípulos o cercaram. Esta é a


forma mais elevada de iniciação. Inclui a todas as outras formas. Nas outras, diksha
deve estabelecer a relação sujeito-objeto. A menos que estes dois estejam presentes,
como é possível que um olhe o outro ou toque o outro? O mais perfeito é mouna diksh;
inclui o ver, o tocar e o ensinar. Purificará o indivíduo totalmente e o estabelecerá na
realidade.

P. Swami Vivekananda disse que um Gurú espiritual pode transferir a


espiritualidade substancialmente para o indivíduo.
Há uma substância que deva ser transferida? A transferência quer dizer que se
erradique o sentido de ser um discípulo. O mestre o realiza. Mesmo assim isto não
significa dizer que aquele homem foi uma coisa no passado e depois se metamorfoseou
em outra.

P. Não é verdade que a Graça é um presente do Gurú?

Deus, a Graça e o Gurú são sinônimos, eternos e imanentes. Por acaso o Ser já
não está no seu interior? Por acaso ele tem que ser dado para alguém com o olhar? Se
um Gurú pensa isso, não merece este nome.

Os textos mencionam diferentes tipos de diksha; a iniciação com a mão, pelo


tato, pelo olho, etc. Também dizem que o Gurú realiza ritos com fogo, água, japa ou
mantras e chama a todos estes espetáculos fantásticos dikshas, como se o discípulo só
chegasse a estar maduro depois que o Gurú realizasse todos estes processos.

Se alguém busca o indivíduo, não o pode encontrar. Assim é o Gurú. Assim é


Dakshnamurti. O que foi que ele fez? Manteve-se em silêncio quando os discípulos
chegaram e ficaram diante dele. Manteve silêncio e as dúvidas dos discípulos se
dissiparam, o que quer dizer que perderam suas identidades individuais. Isso é jnana e
não todo este palavrório que se associa usualmente com esse tema.

O silêncio é a forma mais potente de trabalho. Não importa quão grandiosos e


enfáticos sejam os sastras, não chegam a ter efeito. O Gurú está quieto e a paz
prevalece em todos. Seu silêncio é mais vasto e mais enfático que todos os sastras
juntos. Estas perguntas surgem pela sensação de que ainda havendo estado aqui tanto
tempo, escutando tanto, esforçando-se muito, todavia não se conseguiu algo. O trabalho
que tem lugar no interior não é aparente. De fato, o Gurú sempre está com a pessoa.

P. É verdade que o silêncio do Gurú pode trazer estados avançados de consciência


espiritual?

Há uma história que demonstra o poder do silêncio do Gurú. Tattvaraya compôs


um bharani, espécie de poema em tamil, em honra a seu Gurú Swarupananda e
convocou toda uma assembléia de eruditos para que escutassem o trabalho e
avaliassem seu valor. Os eruditos responderam que um bharani só se escreveria em
honra a grandes heróis, capazes de matar mil elefantes durante uma batalha e que ,
portanto, não era próprio nem adequado escrever este tipo de obra em honra a um
asceta. Então o autor retrucou: “Vamos todos até meu Gurú e assim o problema será
solucionado.” Ao chegar junto ao Gurú e sentar-se ao seu lado, o autor comentou o
propósito de sua visita. O Gurú permaneceu em silêncio enquanto o resto dos presentes
mantiveram mouna. Passou todo o dia, chegou a noite; todos permaneciam sentados em
silêncio, sem que nenhum pensamento surgisse e sem que ninguém pensasse ou
perguntasse por que havia vindo. Depois de três ou quatro dias desta maneira, o Gurú
moveu um pouco sua mente e os demais regressaram imediatamente à sua atividade
mental. Declararam então: “Conquistar mil elefantes não é nada comparado com o
poder deste Gurú, que conquistou os elefantes no céu que são nossos egos, todos em
conjunto. Certamente ele merece o bharani em seu louvor!”
P. Como trabalhar este poder silencioso?

A linguagem é só um meio para comunicar a outros nosso pensamento. Só


chega depois que há pensamentos. Todos os outros pensamentos surgem depois do
‘pensamento-eu’ que, portanto, é a raiz de todas as conversas. Quando permanecemos
sem pensamentos, entendemos o outro através da linguagem universal do silêncio.

O silêncio sempre é eloquente. É um fluxo perene de linguagem, que é


interrompido pela fala. Estas palavras que se pronunciam obstruem esta linguagem
calada. Por exemplo, se há eletricidade fluindo por um fio, quando há resistência à sua
passagem, brilha uma lâmpada ou gira um ventilador. O fio se mantém como um fluxo
de energia elétrica. Do mesmo modo, o silêncio é o fluxo eterno da linguagem, o qual
se obstrui por meio das palavras.

O que podemos chegar a saber através da conversação que se estende por vários
anos é possível conhecer instantaneamente no silêncio. Dakshinamurti e seus quatro
discípulos são um bom exemplo disto. Essa é a linguagem mais elevada e mais
eficiente.

P. Bhagavan disse: “A influência do Jnani chega ao devoto no silêncio.” Também


disse: “O contato com grandes homens ou mahatmas, é uma forma eficaz de realizar
nosso Ser real.”

Sim, qual é a contradição? Jnani, grandes homens, mahatmas, por acaso você
encontra diferenças entre eles?

P. Não.

O contato com eles é bom. Trabalharão através do silêncio. O falar reduz seu
poder. O silêncio é o mais poderoso. O falar sempre é menos poderoso do que o
silêncio, ou seja, o contato mental é o melhor.

P. Por acaso isto é verdade ainda quando se haja dissolvido o corpo físico do jnani
ou só continua enquanto ele esteja com o corpo físico?

O Gurú não é a forma física. Assim, o contato se manterá mesmo após


desaparecer a forma física do Gurú. Você pode ir até outro Gurú quando o seu próprio
houver morrido, mas todos os Gurús são um e nenhum deles é a forma que você vê. O
contato mental sempre é o melhor.

P. Ao operar a Graça, é certo que a mente do Gurú atua sobre a mente do discípulo
ou o processo é outro?

A forma mais elevada de Graça é o silêncio. Também é a upadesa


(ensinamento) mais elevado.
P. Vivekananda também disse que o silêncio é a oração mais forte.

Assim é, para o silêncio do buscador. O silêncio do Gurú é o ensinamento mais


forte. Também é a Graça em sua forma mais elevada. Todos os outros dikshas derivam
de mouna e, portanto, são secundários. Mouna é a forma primária. Se o Gurú está em
silêncio, a mente do buscador se purificará por si mesma.

P. O silêncio de Sri Bhagavan é uma força muito poderosa. Traz-nos quietude


mental.

O silêncio é a fala que nunca cessa. A palavra vocalizada obstrui a fala do


silêncio. No silêncio a pessoa está em contato íntimo com o que o rodeia. O silêncio de
Dakshnamurti removeu todas as dúvidas dos quatro sábios. Mouna vyakhya prakatita
tattvam quer dizer que a verdade se expõe no silêncio. Diz-se que o silêncio é o
discurso; o silêncio é muito potente.

Para que haja expressão oral, se requerem os órgãos da palavra e então opera a
linguagem. Mas outro tipo de expressão precede inclusive o pensamento. Em outras
palavras, é a expressão transcendental ou seja, palavras não faladas (para vak).

P. É possível que todo mundo se beneficie com o silêncio?

O silêncio é upadesa real. É a upadesa perfeita. Só será útil ao buscador


avançado. Os outros não podem obter inspiração plena disto. Consequentemente,
precisam de palavras para que lhes expliquem a verdade. Mas a verdade está além das
palavras. Não admite explicações. Só o que se pode fazer é assinalá-la.

P. Dizem que só um olhar de um mahatma é suficiente e que os ídolos,


peregrinações, etc, não são tão efetivos. Estou aqui há três meses mas não me
beneficiei da mirada do Maharshi.

A mirada tem um efeito purificador. A purificação não se pode visualizar.


Assim como um pedaço de carvão de pedra precisa de um tempo considerável para
acender-se, um pedaço de carvão vegetal toma menos tempo e um monte de pólvora se
acende imediatamente. Acontece do mesmo modo com a diversidade de homens que
entram em contato com mahatmas. O fogo da sabedoria consome toda ação. A
sabedoria se adquire ao associar-se com sábios (satsanga) ou melhor, com sua
atmosfera mental.

P. É possível que o silêncio do Gurú sirva para chegar à realização se o discípulo


não faz esforços?
Na proximidade de um grande mestre os vasanas deixam de estar ativos; a
mente se aquieta e entra em samadhi. Assim o discípulo adquire conhecimento
verdadeiro e uma experiência correta ao estar na presença do mestre. Para manter-se
assim são necessários esforços adicionais. Finalmente o discípulo saberá o que é sua
existência real e será liberado em vida.

P. Se a busca é interna, por acaso é necessário estar fisicamente perto do mestre?

É necessário até que todas as dúvidas tenham terminado.

P. Não sou capaz de concentrar-me quando estou só. Estou buscando uma força
que me ajude.

Sim, isso se chama a Graça. Individualmente não somos capazes, porque a


mente é débil. A Graça é necessária. Sadhú Seva (servir a um sadhú) o conseguirá. No
entanto, não há nada novo a adquirir. Assim como um homem débil cai sob controle de
alguém mais forte, assim a mente débil de um indivíduo cai facilmente sob controle na
presença de sadhús com mente forte. Isso que é, realmente, a Graça. Não há nada mais.

P. É necessário servir fisicamente a um Gurú?

Os sastras mencionam que é necessário servir a um Gurú durante doze anos


para obter a realização do Ser. O que faz o Gurú? Por acaso entrega a realização ao
discípulo? Não é certo que o Ser está sempre realizado? O que quer dizer esta crença
popular? O homem é sempre o Ser, mas não o reconhece. No lugar disso, o confunde
com o não-ser, com o corpo, etc. Tal confusão se deve à ignorância. Ao se acabar a
ignorância, a confusão deixará de existir e o conhecimento verdadeiro se revelará. Ao
manter-se em contato com sábios realizados, o indivíduo vai perdendo a ignorância até
que remove-la totalmente. Assim o Ser eterno se revela.

P. Você disse que a associação com os sábios (sat-sanga) e o serviço a eles é um


requisito para o discípulo.

Sim; o primeiro quer dizer realmente associação com o Sat não manifesto, ou
seja, com a existência absoluta. E como poucos podem conseguir isto, tem que tomar a
segunda opção, que é a associação com o Sat manifesto, ou seja, o Gurú. A associação
com sábios deve realizar-se porque os pensamentos são persistentes. O sábio conseguiu
conquistar a mente e está em paz. Estar a seu lado ajuda-nos a adquirir esta condição,
de outra forma não há sentido buscar sua companhia.

O Gurú dá para a pessoa a força necessária para tudo isto, sem que os outros
percebam. Servi-lo, em princípio, quer dizer residir no Ser, mas também inclui ajudar
para que o corpo do Gurú esteja confortável e que sua morada esteja cuidada. O contato
com o Gurú também é necessário mas quer dizer, na realidade, o contato espiritual. Se
o discípulo encontra o Gurú em seu interior, então não importa aonde viaje. Ficar num
ou noutro lugar será o mesmo e terá o mesmo efeito.
P. Por causa da minha profissão, necessito residir perto do local do meu trabalho.
Não posso permanecer no local onde os sadhús habitam. É possível que eu me realize
mesmo sem ter sat-sanga?

Sat é aham prattaya saram, o Ser de todos os seres. O sadhú é o Ser dos seres.
Está imanente em tudo. Por acaso é possível permanecer sem o Ser? Não, portanto
ninguém pode permanecer separado de sat-sanga.

P. Estar perto do Gurú nos ajuda?

Você se refere à proximidade física? De que serve? Só o que importa é a mente.


A mente deve ser contatada. Sat sanga fará com que a mente mergulhe no Ser.

Este tipo de associação é tanto material quanto física. O ser extremamente


visível do Gurú empurra a mente até o interior. Também está no Coração do buscador e
introjeta a mente até o Coração.

P. A única coisa que eu quero saber é se sat-sanga é necessário e se me ajuda vir


até aqui ou não.

Primeiro você deve decidir o que é sat-sanga. Quer dizer associação com Sat ou
a realidade. Aquele que realizou ou conhece Sat é considerado como o próprio Sat. A
associação com Sat, ou com alguém que conhece Sat é absolutamente necessária para
todo mundo. Sankara disse que nos três mundos não há um barco como o sat-sanga
para levar-nos a cruzar o oceano de nascimentos e mortes.

Sat-sanga quer dizer sanga (associação) com Sat. Sat é só o Ser. Dado que agora
não se reconhece o Ser como Sat, se busca a companhia do sábio, que compreende isto.
Isso é sat-sanga. O resultado é a introversão. Então Sat se revela.
QUARTA PARTE

MEDITAÇÃO E YOGA

“A melhor meditação é aquela que continua durante os três estados. Deve ser
tão intensa que não deixe espaço nem para o pensamento ‘eu estou meditando’.

O verdadeiro poder do yoga (yoga-shakti) se conseguirá quando se apagar ou


extinguir o desejo de ver através dos sentidos traidores, havendo cessado deste modo
o conhecimento objetivo da mente e o inquieto ego; assim se conhecerá, no Coração,
a luz sem luz e o som sem som.”
CAPITULO 10

MEDITAÇÃO E CONCENTRAÇÃO

A insistência de Sri Ramana em que a consciência do ‘pensamento-eu’ é um


requisito prévio para a realização do Ser o levou a concluir que qualquer prática
espiritual que não incorpora este elemento era indireta e ineficiente:

“Este caminho (a ‘atenção ao eu’) é o caminho direto, todos os demais são


métodos indiretos. O primeiro leva ao Ser, os outros a lugar nenhum. E mesmo
quando os outros caminhos conseguem levar ao Ser é porque, ao final, eles
levam ou conduzem ao primeiro caminho que, em última instância, nos leva à
meta. Portanto, no fim das contas, o aspirante tem que adotar o primeiro
caminho. Porque não fazê-lo agora? Por que perder tempo?”

Em outras palavras, isto quer dizer que, se bem que outras técnicas possam
levar a um estado interior de quietude, a atenção a si mesmo acontece acidentalmente,
porque, na realidade, são rotas indiretas para chegar ao Ser. Sri Ramana insistia em que
outras técnicas só podem levar ao lugar onde começa a indagação do eu e, portanto,
nunca as recomendou, a menos que sentisse que os interlocutores não pudessem ou não
quisessem adotar a indagação do eu. Isto é ilustrado numa conversa no Sri Ramana
Gita (uma coleção de suas primeiras perguntas e respostas) no qual Sri Ramana explica
em detalhes porque a indagação do eu é a única maneira de realizar o Ser. Depois de
escutar a explicação de Sri Ramana com toda a atenção, o interlocutor não estava
preparado para aceitar que a indagação do eu era o único caminho e então perguntou se
havia outros métodos. A resposta de Sri Ramana foi a seguinte:
“A meta é a mesma para todos, para o que medita (sobre um objeto) e para o
que pratica a indagação do eu. Um chega à quietude através da meditação e o
outro chega através do conhecimento. Um trata de alcançar algo. O primeiro
demora mais tempo mas, ao final, chega ao Ser.”

Por não querer perturbar a fé de um homem que tinha predisposição à


meditação sujeito-objeto e que, por sua vez, não queria realizar a indagação do eu, Sri
Ramana o alentou para que seguisse com o método escolhido, dizendo-lhe que o
levaria ao Ser. Desde o ponto de vista de Sri Ramana, qualquer método era melhor do
que não realizar prática alguma, dado que sempre existe a possibilidade de chegar à
indagação do eu.

Sri Ramana deu respostas similares a outras pessoas pelas mesmas razões. As
respostas que indicam outros métodos que não a indagação do eu ou a entrega como
meio para a realização do Ser não devem der tomadas em separado, pois foram
respostas dadas somente para pessoas que não estavam atraídas pela indagação do eu e
queriam seguir seus próprios métodos. Quando falava com devotos que não estavam
seguindo o que ele chamava ‘métodos indiretos’, usualmente reafirmava que a atenção
ao Ser era indispensável.

Mesmo que Sri Ramana defendesse com vigor sua postura sobre a indagação do
eu, nunca insistiu em que uma pessoa mudasse suas crenças ou práticas e se não
pudesse convencer seus seguidores a adotar a indagação do eu, então dava conselhos,
com bom humor, sobre outros métodos. Nas conversas deste capítulo Sri Ramana está,
geralmente, respondendo perguntas de devotos que queriam conselhos sobre formas
convencionais de meditação. Ao dar estes conselhos, definia a meditação como a
concentração sobre um só pensamento, excluindo a todos os demais. Mas algumas
vezes deu uma definição mais elevada, no sentido de que, ao fixar a mente sobre o Ser,
se chega à meditação verdadeira. Esta última prática é, na verdade, a indagação do eu
pois, como explicou numa de suas primeiras obras, “manter a mente sempre fixa sobre
o Ser, só isso pode ser chamado a indagação do eu, enquanto que a meditação é pensar
que a pessoa mesma é Brahman.”

P. Qual é a diferença entre a meditação (dhyana) e a investigação (vichara)?

As duas são, na verdade, o mesmo. Aqueles que não estão prontos para a
investigação devem praticar a meditação. Na meditação, o aspirante se esquece de si
mesmo e medita ‘eu sou Brahman’ ou ‘eu sou Shiva’ e desta maneira se fixa em
Brahman ou em Shiva. Isto, ao final, terminará com a consciência residual, de que
Brahman ou Shiva é o Ser. Assim compreenderá que isto é a existência pura, ou seja, o
Ser.

Aquele que investiga começa aferrando-se a si mesmo e, por meio da pergunta


‘quem sou eu?’, o Ser se lhe revela claramente.

A meditação é o imaginar-se mentalmente que se é a realidade suprema, que


brilha como existência-consciência-felicidade. A indagação é fixar a mente no Ser para
que a semente irreal da ilusão desapareça.
Aquele que meditar sobre o Ser sobre qualquer bhava (imagem mental)
consegue apenas esta imagem. Aqueles que estão em paz, mantendo-se na quietude,
sem ter um bhava, chegam ao nobre e incondicional estado de kaivalya, o estado sem
forma do Ser.

P. A meditação é mais direta do que a investigação porque a primeira se aferra a


verdade enquanto que a segunda separa a irrealidade da realidade.

Para um principiante, a meditação com forma é mais fácil e agradável. A prática


o leva à indagação do eu, que consiste em separar a realidade da irrealidade. De que
serve aferrar-se à realidade quando você está repleto de fatores antagônicos? A
indagação do eu o leva diretamente à realização ao remover os obstáculos que o fazem
pensar que o Ser ainda não está realizado.

A meditação difere de acordo com o grau de avanço do buscador. Se ele está


pronto, pode aferrar-se diretamente ao pensador e então este mesmo mergulhará
automaticamente em sua fonte, que é a consciência pura. Se não puder se aferrar
diretamente ao pensador, deve meditar sobre Deus e ao longo do tempo o mesmo
indivíduo se tornará suficientemente puro para aferrar-se ao pensador e submergir na
existência absoluta.

A meditação só é possível ao se manter o ego. Existe o ego e o objeto sobre o


qual se está meditando. Este método é, portanto, indireto, dado que o Ser é um. Ao
buscar o ego, ou melhor, sua fonte, o ego desaparece. O que sobra é o Ser. Este é o
método direto.

P. Não parece haver forma de nos introduzirmos em nós mesmos através da


meditação.

Onde mais podemos estar, agora mesmo? Nosso próprio Ser é isso.

P. Ainda que seja assim, somos ignorantes disso.

Ignorantes do quê? De quem é a ignorância? Se formos ignorantes do Ser, por


acaso há dois seres?

P. Não há dois seres. O sentido de limitação não se pode negar. Devido às


limitações…

As limitações só existem na mente. Por acaso você as sentiu durante o sono?


Você existe no sono, ali não nega sua existência. O mesmo ser está aqui e agora,
durante a vigília. Agora diz que há limitações. O que acontece é que há estas diferenças
entre os dois estados e estas se devem à mente. Não esteve a mente durante o sono,
enquanto que agora está ativa. O Ser existe ainda na ausência da mente.
P. Mesmo que eu compreenda, não o realizo.

Isso logo virá, passo a passo, com a meditação.

P. A meditação se realiza com a mente. Como ela pode matar a mente para o Ser
se revele?

A meditação consiste em aferrar-se a um só pensamento. Esse pensamento


previne que venham outros pensamentos. Se a mente se distrai, significa que é débil.
Ao meditar constantemente, ela vai se fortalecendo, ou seja, a debilidade dos
pensamentos fora de controle é substituída por um fundo que se mantém livre de
pensamentos. Esta extensão livre de pensamento é o Ser. A mente pura é o Ser.

P. O que é a meditação?

É manter-se como o Ser, atento sobre a natureza real de si mesmo e, ao mesmo


tempo, sem a sensação de estar meditando.

P. Qual é a diferença entre dhyana e samadhi?

Consegue-se dhyana com um esforço mental deliberado. No samadhi não há tal


esforço.

P. Que fatores devemos ter em conta durante dhyana?

É importante que quando se está estabelecido em seu ser (atmanishta) vigiar


para que não saia nem um pouco de tal absorção. Ao se separar da natureza real, pode-
se ver luzes brilhantes ou escutar sons estranhos ou crer que são reais as visões de
deuses que aparecem dentro ou fora de si. Não se deve deixar confundir e esquecer-se
de si mesmo.

P. Como devo praticar a meditação?

A meditação é realmente atmanishta (estar fixo no Ser). Mas quando os


pensamentos chegam à mente e se faz um esforço para eliminá-los, esse esforço se
chama meditação. Atmanishta é sua natureza real. Mantenha-se como é. Este é o
objetivo.

P. Mas os pensamentos continuam surgindo. Por acaso o esforço consiste só em


eliminá-los?

Sim, a meditação é sobre um só pensamento e os outros pensamentos são


mantidos afastados. A meditação só tem um efeito negativo no sentido de que mantém
afastados os outros pensamentos.
P. Se menciona “atma samsham manah krtva” (fixar a mente no Ser). Porém, não
se pode pensar no Ser.

Por que você quer meditar? Devido a que você quer fazê-lo, lhe é dito ‘atma
samham manah krtva’. Por que você não se mantém como é, sem meditar? O que é
manah (mente)? Quando todos os pensamentos houverem sido eliminados, ela se
converte em ‘atma samshtham’ (fixada no Ser).

P. Quando me dão uma forma, posso meditar sobre ela e assim se eliminam os
outros pensamentos. Mas o Ser está sem forma…

A meditação sobre formas e objetos concretos se chama dhyana, enquanto que a


indagação sobre o eu é vichara ou nididhyasana (consciência do Ser sem interrupção).

P. Há maior prazer em dhyana do que nos prazeres sensuais. No entanto, a mente


vai em direção do segundo e não busca o primeiro. A que se deve? Por que é assim?

O prazer e a dor são só aspectos da mente. Nossa natureza essencial é a


felicidade. Mas esquecemos o Ser e imaginamos que o corpo ou a mente são o Ser.
Essa identidade errônea faz com que a miséria apareça. O que se pode fazer? Esta
tendência mental é muito antiga e tem continuado durante inumeráveis vidas passadas.
Assim, tem crescido com força. Isso tem que desaparecer para que a natureza essencial,
a felicidade, se revele.

P. Como praticar dhyana, com os olhos abertos ou fechados?

Pode-se fazer de ambos os modos. O essencial é que a mente se introverta e se


mantenha ativa no que busca. Às vezes acontece que, quando se fecham os olhos, os
pensamentos latentes surgem com grande vigor. Também pode ser difícil introverter a
mente com os olhos. Para isto se requer uma certa força mental. A mente se contamina
quando capta objetos externos, de outra maneira, é pura. O mais importante em dhyana
é manter a mente ativa na busca, sem deixar as impressões externas entrarem e sem
ficar pensando em outros temas.

P. Bhagavan, quando medito sinto um calor muito forte na cabeça e, se continuo,


todo o corpo se esquenta demais. Que remédio há para isto?

Se a concentração é feita com o cérebro, a sensação de calor ou até de dor de


cabeça aparecem. A concentração deve ser feita no Coração, que é fresco e refrescante.
Relaxe e sua meditação será facilitada. Mantenha sua mente fixa, afastando levemente
os pensamentos que aparecem, com firmeza mas sem violência. Assim, em pouco
tempo, chegará o êxito.
P. Como posso evitar dormir quando estou meditando?

Ao tratar de prevenir o sono, estaremos pensando durante a meditação, o que


deve ser evitado. No entanto, se dormimos enquanto meditamos, a meditação
continuará mesmo durante e depois do sono. Por sua vez, dado que é um pensamento, o
sono deve ser descartado. O estado natural final deverá ser conscientemente
conseguido, na vigília, sem que haja pensamentos intrusos. A vigília e o sono são
meramente as figuras sobre a tela do estado natural, livre de pensamentos. Deixe que
estes continuem, sem dar-lhes atenção.

P. Sobre o que devemos meditar?

Sobre o que você preferir.

P. Tanto Shiva, Vishnu e Gayatri são citados como de igual eficácia. Sobre qual
destes devo meditar?

Qualquer um, o que você goste mais. Os três têm o mesmo efeito. Mas deve
manter-se sobre só um deles.

P. Como devo meditar?

Concentre-se sobre aquele que mais o atrai. Mantenha um só pensamento e


assim todos os outros desaparecerão e finalmente serão destruídos. Enquanto houver
diversidade haverá pensamentos ruins. Quando o objeto que você ama é o único que se
mantém, só bons pensamentos estarão presentes. Aferre-se, portanto, a um só
pensamento. Dhyana é a prática principal.

Dhyana significa luta. No momento em que se começa a meditar, uma multidão


de pensamentos aparecem, se fortalecem e tentam sobrepor-se ao pensamento único, ao
qual você está tratando de se segurar. O bom pensamento deverá fortalecer-se
gradualmente , mediante a prática contínua. Quando ele já estiver suficientemente
forte, os outros pensamentos serão dissipados. Esta é a grande batalha que sempre tem
lugar durante a meditação.

Queremos nos desfazer da miséria. Isto requer a paz mental, o que implica na
ausência de perturbações que vem de todos os pensamentos. A paz mental só se alcança
através de dhyana.

P. Dado que Sri Bhagavan diz que o Ser pode funcionar em qualquer centro ou
chakra, mesmo estando centrado no Coração, não é possível que, através de uma
intensa prática de concentração no espaço entre as sobrancelhas, este centro se converta
na base do Ser?
Qualquer consideração sobre a base do Ser é teórica se você fixar sua atenção
sobre uma parte do corpo. Você se considera o sujeito, o que vê e o lugar onde
concentra sua atenção se converte no objeto visto. Isto é simplesmente bhavana
(imagens mentais). Mas quando você vê o que está vendo, se funde no Ser e se torna
parte dele. Esse é o coração.

P. É recomendável a prática de se concentrar entre as sobrancelhas?

O resultado final de qualquer dhyana é que o objeto sobre o qual o buscador


fixa sua mente deixe de existir como algo distinto e separado do sujeito. Aqueles dois,
o sujeito e o objeto, se convertem no Ser único. Esse é o Coração.

P. Por que Sri Bhagavan não nos induz a praticar a concentração sobre um centro
ou chakra?

O Yoga Sastra diz que o sahasrara (chakra localizado no topo da cabeça) ou o


cérebro mesmo, é a base do Ser. O Purusha Sukta declara que o Coração é a base. Para
que o sadhaka não tenha dúvidas, lhe digo que busque o fio ou a chave do “eu” ou do
“eu sou” e que a siga até sua fonte. Digo isto porque, em primeiro lugar, é impossível
que alguém tenha dúvidas sobre a noção de ‘eu’. Em segundo ligar, em qualquer
método que se adote, a meta final é a realização da fonte do “Eu Sou” que é o dado
essencial de nossa experiência. Se, portanto, você pratica a indagação do eu, chegará ao
Coração, que é o Ser.

P. Pratico hatha yoga e também medito “Eu Sou Brahman”. Depois de alguns
momentos desta meditação, chega um vazio, o cérebro se esquenta e surge o temor da
morte. O que devo fazer?

“Eu Sou Brahman” é só um pensamento. Quem o diz? Brahman não o diz. Terá
Ele alguma necessidade de dizê-lo? O “Eu” real tampouco o diz. Este “Eu” sempre
existe como Brahman. Estar repetindo-o já é um pensamento. A quem pertencem os
pensamentos? Todo pensamento é do ‘eu’ falso, do “pensamento-eu”. Mantenha-se
sem pensar. Enquanto houver pensamentos haverá temor.

P. Ao pensar sobre isto começo a me esquecer, o cérebro se esquenta e surge o


temor.

Sim, já que a mente está concentrada no cérebro, lhe surge uma sensação de
calor ali. Isto se deve ao ‘pensamento-eu’. Quando surge o ‘pensamento-eu’, surge
simultaneamente o medo da morte. Quanto ao seu esquecimento, enquanto houver
pensamentos haverá esquecimento. Primeiro está o pensamento “eu sou Brahman” e
logo vem o esquecimento. O pensamento e o esquecimento se referem ao ‘pensamento-
eu’. Agarre-o e ele desaparecerá como um fantasma. O que resta é o “Eu” e esse é o
Ser.
“Eu sou Brahman” é uma ajuda para concentrar-se, mantendo longe os outros
pensamentos. Quando só este pensamento persistir, veja a quem ele pertence. Você
verá que ele vem do ‘eu’. De onde vem o ‘pensamento-eu’? Busque-o e o ‘pensamento-
eu’ desaparecerá. Então o Ser supremo surgirá brilhando por si mesmo. Aí não haverá
mais necessidade de maiores esforços.

Quando sobrar só o “Eu” real, Ele não estará repetindo ‘eu sou Brahman’. Por
acaso um homem anda repetindo ‘eu sou um homem’? A menos que se tenha dúvidas,
por que haveria de declarar que é um homem? Por acaso há alguém, equivocadamente,
acredita que é um animal e que tenha que dizer ‘não, não sou um animal, mas sim um
homem’? Do mesmo modo, Brahman, o “Eu”, é a única realidade existente e, ao não
haver alguém que duvide de tal realidade, não haverá necessidade de repetir ‘eu sou
Brahman’.

P. De que serve esta auto-hipnose de estar pensando sobre um ponto que não é
‘pensável’? Por que não adotar outros métodos tais como fixar a vista sobre uma luz,
manter fixa a respiração, escutar música, escutar sons internos, repetir sílabas sagradas
como Om ou outros mantras?

Ver continuamente uma luz só entorpece a mente e produz catalepsia da


vontade por algum tempo, mas não há um benefício permanente. Controlar a respiração
só pacifica a vontade, mas não é permanente. É o mesmo que acontece ao escutar sons,
a menos que o mantra seja sagrado e tenha a ajuda de um poder superior para purificar
e elevar o pensamento.

P. Nos dizem que devemos nos concentrar num local na testa, entre as
sobrancelhas. Isto é correto?

Todo mundo está consciente do ‘eu sou’. Deixando essa consciência, todos
andam buscando a Deus. De que servem fixar a atenção entre as sobrancelhas? É uma
insensatez dizer que Deus está entre as sobrancelhas. A razão pela qual se dá esse
exercício é para que a mente se possa concentrar. É uma das maneiras em que se utiliza
a força para aferrar a mente e não deixar que se dissipe. Ela é dirigida forçadamente até
um só canal. É uma ajuda para a concentração. Mas a melhor forma de se realizar é a
indagação “quem sou eu?”. O problema atual se deve à mente e deve ser removido
sempre pela mente.

P. Nem sempre me concentro sobre o mesmo centro do corpo. Às vezes acho mais
fácil concentrar-me sobre um centro e outras vezes noutro. Às vezes, quando me
concentro num ponto, minha mente, por vontade própria, se fixa em outro. Por que
acontece isto?

Pode ser porque você já praticou assim no passado. Mas, de qualquer maneira,
não tem importância sobre qual centro você se concentra pois o Coração real está em
todos os centros e também fora do corpo. Não importa sobre qual parte do corpo se
concentre ou sobre qual objeto externo, ali está o Coração.
P. Podemos nos concentrar às vezes sobre um centro e às vezes sobre outro ou
devemos escolher sempre o mesmo?

Como acabo de dizer, não há nenhum problema sobre o lugar onde se


concentrar pois a concentração é só uma ajuda para abandonar os pensamentos. Não
importa o centro ou objeto sobre o qual se concentra, pois seja o que for aquilo em que
se concentra, o que se está concentrando sempre é o mesmo.

P. Alguns dizem que a meditação só deve ser feita sobre objetos comuns. Dizem
que pode ser desastroso se a pessoa trata todo o tempo de matar a mente.

Para quem seria o desastre? Pode haver um desastre que esteja a parte do Ser?

O “Eu-Eu” sem interrupções é o oceano infinito. O ego, o ‘pensamento-eu’ é só


uma bolha sobre ele e se chama Jiva ou alma individual. A bolha, quando se rompe, se
mistura ao oceano. Mesmo quando existe como bolha, ainda assim é parte do oceano.
Por ignorância desta verdade tão simples, inumeráveis métodos estão sendo ensinados,
sob diversos nomes, tais como yoga, bhakti, carma, cada um, por sua vez, com
modificações, ensinados com grandes detalhes, só para que os buscadores se
aproximem. Assim confundem suas mentes. Assim são as religiões, as seitas, os
dogmas. Para que servem? Só para se conhecer o Ser. São ajudas e práticas para se
conhecer o Ser.

Os objetos que são percebidos pelos sentidos são conhecidos como


conhecimento direto (pratyakasha), mas o que pode ser mais imediato do que o Ser,
que sempre é experimentado, mesmo sem os sentidos? A percepção sensorial só pode
ser um conhecimento direto e não algo indireto. Só a consciência própria é
conhecimento direto e essa é a experiência de todo mundo. Não se necessitam apoios
para se conhecer o ser de si mesmo.
CAPITULO 11

MANTRAS E JAPA

Um mantra é uma palavra ou frase que um gurú dá a um discípulo, usualmente


como parte de um rito de iniciação. Se o Gurú acumulou poder espiritual através da
realização ou meditação, parte deste poder se transmite ao mantra. Se o discípulo repete
a palavra continuamente, o poder do Gurú é invocado de tal maneira que ajuda o
discípulo a progredir até a meta da realização do Ser. Sri Ramana aceitava a validade
deste método, mas muito raramente deu mantras e nunca os utilizou numa cerimônia de
iniciação. Por sua vez, aprovava a prática chamada nama-japa (repetição contínua do
nome de Deus) e frequentemente a aconselhava como um apoio útil para aqueles que
estavam seguindo o caminho da entrega.

No capitulo 7 se menciona que a entrega a Deus ou ao Ser pode ser praticada de


modo eficaz ao se estar consciente todo o tempo de que não há um ‘eu’ individual que
atua e pensa; só há um ‘poder superior’ que é responsável por todas as atividades do
mundo. Sri Ramana recomendava japa como forma efetiva de cultivar esta atitude, pois
ela substitui a consciência do indivíduo e do mundo pela consciência do poder superior.

As primeiras etapas da repetição do nome de Deus são meramente um exercício


de concentração e meditação, mas ao avançar na prática se chega a uma etapa na qual a
repetição acontece sem esforço, automática e continuamente. Dita etapa não se alcança
só com a concentração, mas ao entregar-se completamente à deidade cujo nome se está
repetindo: “Ao utilizar o nome de Deus a pessoa deve chamá-lo com anelo e render-se
a Ele sem reservas. Só depois de tal entrega é que o nome de Deus estará sempre com
este homem.”
Quando Sri Ramana falava sobre esta avançada etapa de japa, havia uma
dimensão mística em suas idéias. Mencionava a identidade do nome de Deus com o Ser
e às vezes dizia que, quando se realiza o Ser, o nome de Deus se repete sem esforço e
continuamente no Coração.

Esta última etapa só se alcança depois que a prática do japa se uniu à prática da
atenção sobre o Ser. Sri Ramana usualmente ilustrava a necessidade desta transição ao
citar as palavras de Namdev, um santo que viveu no estado de Maharashtra no sec.
XIV: “A natureza do todo-abarcante Nome só se pode entender quando se reconhece
seu próprio ‘eu’. Se não se reconhece o nome de Si mesmo, é impossível obter o nome
que tudo abarca.” Esta citação vem de uma pequena obra de Namdev que tem o nome
de “A Filosofia do Nome Divino” e o texto completo foi incluído numa das respostas
de Sri Ramana neste capítulo. Sri Ramana só a conheceu em 1937 e nos últimos treze
anos de sua vida manteve uma cópia na estante, ao lado do seu sofá. Frequentemente a
lia, quando alguns visitantes perguntavam sobre a natureza e a utilidade do japa e a
insistência com que a mencionava dá a entender que ele aprovava amplamente o
conteúdo.

P. Minha prática consiste na repetição de Japa com nomes de Deus, quando inalo,
e com o nome de Sai Baba quando exalo. Simultaneamente, sempre vejo a forma de
Baba. Ainda com Bhagavan, vejo a forma de Baba. Devo continuar com isto ou mudar
de método? Algo em meu interior diz que se continuo com nome e forma nunca os
transcenderei. Mas não entendo o que mais eu posso fazer depois de deixar o nome e
forma. Bhagavan poderia me iluminar sobre este ponto?

Você pode continuar com o método atual. Quando japa se tornar contínuo,
todos os demais pensamentos acabarão e só sobrará a natureza real, que é japa ou
dhyana. Ao deixar que a mente saia ao exterior, sobre os objetos do mundo, não
estamos conscientes de que nossa natureza real é japa. Com o esforço consciente de
japa ou dhyana, que é como o nomeamos, prevenimos a mente de pensar sobre outras
coisas e o que sobra é nossa natureza real, que é japa.

Enquanto você pensar que é nome e forma, não pode deixar de fazer japa com
nome e forma. Quando realizar que não é nome nem forma, então estes dois
desaparecerão por conta própria. Nenhum outro esforço é necessário. Japa ou dhyana o
levarão a isto naturalmente. O que agora se pensa que é o método, ou seja, japa, se verá
que também é a meta. Nome e Deus não são diferentes. Isto se mostra claramente nos
ensinamentos de Namdev:

1) O nome impregna densamente tanto o céu como as regiões mais baixas e a todo o
universo. Quem poderá dizer a que profundidade se estende, nas regiões inferiores e a
que alturas alcança nos céus? As pessoas ignorantes passam por 84 lakhs (8,4 milhões)
de espécies em seus nascimentos, sem conhecer a essência das coisas. Namdev diz que
o nome é imortal. As formas são inumeráveis, mas o nome é tudo isso.

2) O nome em si é forma. Não há distinção entre Nome e Forma. Assim é o nome


estabelecido pelos Vedas. Estejam atentos, pois não há um mantra superior ao nome.
Os que dizem o contrário são ignorantes. Namdev diz que o nome é Keshava (Deus)
mesmo. Isto só conhecem os adorados devotos do Senhor.
3) A natureza total do Nome só se pode compreender quando reconhecemos nosso
próprio ‘eu’. Quando não conhecemos nosso próprio nome, é impossível obter o nome
completo. Quando conhecemos a nós mesmos então encontramos o nome em todo
lugar. Ver o nome como algo diferente do nomeado cria ilusão. Namdev diz :
“Pergunte-o aos Santos.”

4) Ninguém pode realizar o nome através da prática do conhecimento, da meditação ou


da austeridade. Entregue-se, primeiro, aos pés do Guru, e aprenda a reconhecer que o
‘eu’ mesmo é esse Nome. Depois de encontrar a fonte desse ‘eu’, afunde sua
individualidade nessa unidade que existe por si mesma e que não tem dualidade. Isso
que impregna mais além de dvaita (dualidade) e de dvaitatiya (o que está além da
dualidade), esse nome chegou aos três mundos. O Nome é Parabrahman mesmo, onde
não há ações que surgem da dualidade.

A mesma idéia se encontra na Bíblia: “No princípio estava a palavra e a palavra


com Deus e em Deus.”

P. É certo que o verdadeiro nome de Deus será revelado através da indagação do


eu?

Sendo você mesmo a forma do japa, se chegar a reconhecer sua própria


natureza ao indagar quem você é, que maravilha será! O japa, que anteriormente se
fazia com esforço, continuará sem descanso e sem esforço no Coração.

P. Quanto tempo devo fazer japa? Devo também concentrar-me, ao mesmo tempo,
sobre uma imagem de Deus?

Japa é mais importante que a forma externa. Deve realizar-se até que se torne
natural. Começa com esforço e se continua até que ela aconteça por si mesma. Quando
já se tornou natural, é chamada realização.

Japa se pode fazer ainda quando realizamos outro tipo de trabalho. Aquilo que
é, é a única realidade. Pode ser representado por meio de uma forma, por japa, mantra,
vichara ou qualquer esforço que se faça para tratar de chegar à realidade. Tudo isto, ao
final, se resolve naquela única realidade. Bhakti, vichara e japa são somente diferentes
formas de nossos esforços para separar o irreal. A irrealidade atualmente é uma
obsessão, mas nossa natureza real é a realidade. Estamos equivocadamente insistindo
no irreal, ou seja, no apego, nos pensamentos e atividades mundanas. Quando
cessarem, a verdade será revelada. Nossos esforços consistem em separar tudo isto,
pensando somente na realidade. Ainda que seja nossa natureza real, parece que estamos
pensando sobre ela enquanto fazemos as práticas. O que realmente estamos fazendo é
removendo os obstáculos para que se revele nosso ser real.

P. É garantido que nossos esforços chegarão a um bom resultado?


A realização é nossa natureza real. Não é nada de novo, que se pode adquirir. O
que é novo não é eterno, portanto, não há necessidade de duvidar sobre se alguém pode
perder ou encontrar o Ser.

P. Tem alguma utilidade fazer japa se sabemos que a indagação do eu é o único


meio que é real?

Todos os métodos são bons já que, eventualmente, levarão à indagação. Japa é


nossa natureza real. Quando realizarmos o Ser, japa se fará sem esforços. O que é o
meio numa etapa se converte na meta em outra etapa. A realização se dará quando japa
se realizar continuamente e sem esforço.

P. Não estudei as escrituras e percebo que o método da indagação do eu é muito


difícil para mim. Sou uma mulher com sete filhos e muitas atividades do lar, o que me
deixa pouco tempo para a meditação. Peço a Bhagavan que me dê um método mais
simples e fácil.

Não é preciso estudar as escrituras para conhecer o Ser, assim como um homem
não necessita um espelho para se conhecer. Todo conhecimento deve ser deixado, no
fim, como não-ser. As tarefas do lar ou o cuidado com as crianças não são
necessariamente um obstáculo. Se não pode fazer outra coisa, pelo menos continue
dizendo ‘eu-eu’ a si mesma, mentalmente, como se recomenda em “Quem sou eu?
“…se alguém pensa incessantemente ‘eu, eu’ esse pensamento o levará até esse estado
(o Ser)”. Continue repetindo-o, não importa que tarefa esteja realizando, se está
sentada, de pé ou caminhando. “Eu” é o nome de Deus. É o primeiro e o melhor
mantra. Até Om está em segundo lugar.

P. Para controlar a mente, qual dos dois é melhor, dizer japa do ajapa (o que não
se fala) como um mantra ou o omkar (o som Om) é melhor?

Qual é a sua idéia acerca do japa não falado e involuntário (ajapa)? Será ajapa
se continua repetindo com a boca “soham, soham” (Eu sou Ele”)? Ajapa, na verdade,
quer dizer que se conhece o japa que se realiza involuntariamente, sem que ele siga
com a voz. Sem saber qual é o significado real, as pessoas crêem que se trata de repetir
vocalmente as palavras ‘soham, soham’ centenas de milhares de vezes, contando-as
com dedos num rosário.

Antes de começar japa, recomenda-se o controle da respiração. Isso quer dizer


que primeiro se faz pranayama e depois se começa a repetir o mantra. Pranayama quer
dizer que primeiro se fecha a boca, não é assim? Se, ao parar a respiração, os cinco
elementos do corpo são fixados e controlados, o que resta é o Ser real. Esse estará
repetindo por si mesmo, todo o tempo, “aham, aham” (Eu, Eu). Isso é ajapa.
Conhecendo isto, como é possível que se diga que o que se repete verbalmente é ajapa?
A visão do Ser real, que realiza japa por conta própria, involuntariamente e numa
corrente sem fim, como o correr contínuo de um fluxo de azeite, isto é japa, Gayatri e
tudo mais.
Se você sabe quem é que está fazendo japa, saberá o que é japa. Busca-se e trata
de encontrar ao que está fazendo japa, então japa se converte no Ser.

P. Não há nenhum benefício em se fazer japa em voz alta?

Quem disse que não há benefício? Este tipo de japa será à maneira de chitta
suddhi (purificar a mente). Ao realizar japa repetidamente, o esforço irá amadurecendo
e, cedo ou tarde, o levará ao caminho correto. Bom ou mal, o que se faz nunca se perde.
Só se pode mencionar as diferenças, os méritos e deméritos de cada um, levando em
conta o desenvolvimento da pessoa em questão.

P. Não é melhor japa mental do que oral?

Japa oral consiste em sons. Os sons surgem de pensamentos, pois temos que
pensar antes que o pensamento possa se expressar em palavras. Os pensamentos
formam a mente. Portanto, japa mental é melhor que japa oral.

P. Não deveríamos contemplar o japa e repeti-lo oralmente também?

Quando o japa se torna mental, que utilidade pode ter os sons? Ao se tornar
mental, o japa se converte em contemplação. Dhyana, a contemplação e japa mental,
são o mesmo. Quando os pensamentos já não são promíscuos e um só pensamento
prevalece, excluindo todos os demais, a isto se denomina contemplação. O objetivo de
japa ou dhyana é o de excluir os pensamentos diversos e restringir a atividade mental a
um só pensamento. Ao final, esse pensamento único também desaparece em sua fonte,
a consciência absoluta, ou seja, o Ser. A mente se dedica ao japa e logo submerge em
sua própria fonte.

P. Dizem que a mente está no cérebro.

Onde está o cérebro? Está no corpo. Eu digo que o próprio corpo é uma
projeção da mente. Você fala do cérebro quando pensa no corpo. A mente é quem cria
o corpo e o cérebro dentro dele e também assegura que o cérebro seja o centro do
corpo.

P. Sri Bhagavan disse que japa deve ser seguido até sua fonte. Com isto quer dizer
a mente?

Tudo isto é só a atividade da mente. Japa ajuda a fixar a mente num só


pensamento. Todos os demais pensamentos são subordinados até desaparecerem.
Quando isto se torna mental, é denominado dhyana. Dhyana é sua natureza real. No
entanto, a chamam dhyana porque tem que ser feita com esforço. Esforços são
necessários enquanto houver pensamentos promíscuos. Devido ao fato de que sempre
existem muitos pensamentos, você chama dhyana ou meditação à continuidade de um
só pensamento. Se essa dhyana se torna algo sem esforço, se chegará a saber o que é
sua natureza real.
P. As pessoas dão nome a Deus e dizem que o nome é sagrado e que sua repetição
concederá mérito ao indivíduo. Isto pode ser certo?

Por que não? Você tem um nome ao qual responde. Mas seu corpo não nasceu
com este nome escrito nele, nem disse a ninguém que tinha este nome. Então lhe deram
um nome e você responde a esse nome porque se identifica com ele. O nome, portanto,
significa algo e não é mera ficção. Do mesmo modo, o nome de Deus tem efeito. Sua
repetição é uma recordação do que quer dizer, portanto tem mérito.

P. Quando faço japa por uma hora ou mais, caio num estado como o sono. Ao
despertar, me lembro que o japa foi interrompido e começo de novo.

“Estado como o sono”, foi bem falado. É o estado natural. Como agora você se
associa com o ego, considera que o estado natural é algo que interrompe seu trabalho.
Tem que repetir, portanto, a experiência, até que se dê conta de que é seu estado
natural. Então descobrirá que japa é externo, mas continuará automaticamente. Sua
dúvida atual provém de uma identidade falsa, a qual se identifica com sua mente, que
está fazendo japa. Japa quer dizer que se aferra a um só pensamento e exclui todos os
demais. Esse é seu propósito. Leva até dhyana, que termina na realização do eu ou japa.

P. Como posso continuar japa?

Não devemos utilizar o nome de Deus mecânica e superficialmente, sem o


sentimento de devoção.

P. A repetição mecânica, então, não dá resultado?

As enfermidades agudas não se curam só pela repetição do nome do remédio,


mas sim se tomando o remédio. Do mesmo modo, as ataduras do nascimento e da
morte não deixarão de existir só com a repetição dos mahavakyas tais como ‘eu sou o
Supremo’. Mantenha-se como o Supremo você mesmo. A miséria do nascimento e da
morte não cessarão pela contínua repetição em voz alta do ‘eu sou Isso’, mas somente
ao manter-se como Isso.

P. É possível que qualquer pessoa obtenha benefícios ao repetir sílabas sagradas


(mantras) que aprendeu casualmente?

Não. Deve-se estar preparado e iniciado nestes mantras. Isto se ilustra com uma
história do rei e seu discípulo. O rei visitou seu primeiro ministro em sua residência.
Informaram-lhe que o ministro estava ocupado repetindo sílabas sagradas. O rei
esperou e, ao vê-lo, lhe perguntou qual era o mantra. O ministro lhe disse que era o
mais sagrado, o Gayatri. O rei comentou que queria ser iniciado pelo ministro, mas este
lhe disse que era impossível iniciá-lo.
O rei procurou então outra pessoa para receber o mantra e depois foi ver o
ministro novamente e lhe perguntou se estava correto. O ministro lhe disse que estava
correto, mas que ele não deveria repeti-lo. Quando o rei perguntou por que, o ministro
disse a um guarda que estava ao lado que prendesse o rei. O guarda não obedeceu a
ordem. Repetiu de novo a ordem, sem ser obedecido. O rei então se zangou e mandou o
guarda prender o ministro e imediatamente o guarda o prendeu. O ministro riu e disse
que o incidente era a explicação que o rei havia pedido. “Por quê?”, perguntou o rei. O
ministro respondeu: “A ordem foi a mesma e o executor também, mas a autoridade foi
diferente. Quando eu ordenei, não houve efeito, enquanto que quando você deu a
ordem, houve um efeito imediato. Assim acontece com os mantras.”

P. Me ensinaram que mantra japa é uma forma muito potente de prática.

O Ser é o mantra mais elevado, continuando automática e eternamente. Se você


não está consciente deste mantra interno, então comece-lo conscientemente na forma
de japa, o que implica fazer um esforço e assim afastar os outros pensamentos. Ao
prestar atenção constante, eventualmente se dará conta do mantra interno, que é o
estado de realização, no qual não há esforço. Manter-se nesta consciência o levará a
que continuamente e sem esforço você estará nesta corrente, sem importar que atenda a
outras atividades.

Ao se repetir os mantras, controlamos a mente. Posteriormente o mantra se une


com a mente e com o prâna (energia que mantém o corpo). Quando as sílabas do
mantra se unem ao prâna, ele é denominado “dhyana” e quando dhyana se torna
profundo e firme, conduz a sahasa sthiti (o estado natural).

P. Recebi um mantra. Algumas pessoas me assustaram ao dizer que, se o repito,


pode haver resultados imprevistos. É só o pranava (Om). Por isso busco sua ajuda.
Posso repeti-lo? Tenho bastante fé nele.

Claro que sim. Deve ser repetido com fé.

P. Será suficiente por si mesmo ou você pode me dar instruções adicionais?

O objetivo do mantra japa é dar-se conta de que o próprio japa já se está


realizando dentro da própria pessoa, sem esforço. O japa vocal se converte em japa
mental e, por sua vez, o japa mental se revela como algo eterno. Esse mantra é a
natureza verdadeira da pessoa. Isso também é o estado de realização.

P. Pode-se, desta forma, obter o samadhi?

O japa se torna mental e finalmente se revela como o Ser. Isto é samadhi.


CAPITULO 12

A VIDA NO MUNDO

Dentro do hinduísmo há uma tradição estabelecida que prescreve quatro etapas


da vida (ashramas) para os buscadores espirituais competentes, que são:

1) Brahmacharya (o estudo em celibato) – Este é um longo período de estudo das


escrituras, antes de casar-se, usualmente dentro de uma instituição que se especializa
no estudo dos Vedas.

2) Grihastha (a vida de casado e com família) - Ao concluir seus estudos, é usual que
o aspirante se case e desempenhe seu trabalho e seus deveres familiares
conscienciosamente, sem estar, porém, identificado com tudo isto.

3) Vanaprashta (ermitão no bosque) – Quando foram cumpridos todos os deveres


familiares, o que quer dizer que se casaram os filhos, o aspirante pode se retirar a um
lugar solitário, usualmente num bosque, e dedicar-se à meditação em tempo integral.
Um vanaprashta pode continuar estando em contato com sua família e receber apoio
econômico.

4) Sannyasa (monge errante) – Nesta última etapa, o buscador deixa o mundo


completamente e se converte em monge mendigo errante. Ao não ter ligaduras
materiais, sociais ou financeiras, o sannyasi teoricamente remove todas as ataduras que
previamente impediam seu progresso até a realização do Ser.
Esta estrutura, tão respeitada através dos tempos, sustentou a crença comum dos
hindus, no sentido de que era necessário abandonar a família e levar uma vida
meditativa, de asceta celibatário, se a pessoa estivesse mesmo interessada na realização
do Ser. Sri Ramana foi questionado inúmeras vezes sobre esta crença, mas ele nunca
esteve disposto a sancioná-la. Recusou-se firmemente a dar permissão a seus devotos
para que deixassem suas responsabilidades mundanas e se dedicassem a uma vida
meditativa. Insistiu sempre no fato de que a realização era igualmente acessível a todo
mundo, sem importar as circunstâncias da vida. Em lugar de aconselhar seus devotos a
renunciar o material, lhes dizia que seria espiritualmente de maior benefício continuar
com suas obrigações normais conscientes de que não existe um ‘eu’ individual que atua
ou aceita responsabilidades pelos atos que o corpo desempenha. Tinha convicção de
que atitude mental teria maior efeito sobre o progresso espiritual do que as
circunstâncias físicas e persistiu em sua desaprovação aos buscadores que sentiam que
uma manipulação de suas circunstâncias, tão leves quanto fossem, poderiam ser de
benefício espiritual.

A única mudança física que chegou a aprovar foi na questão da dieta. Aceitava
a teoria hindu predominante sobre a dieta, a qual assume que o tipo de alimento que a
pessoa consome afeta a quantidade e qualidade dos pensamentos, pelo que
recomendava que se tomassem porções moderadas de comida vegetariana como o
melhor apoio para a prática espiritual.

A teoria hindu que Sri Ramana apoiava classifica aos distintos alimentos de
acordo com os estados mentais que induzem:

1) Sattva (pureza ou harmonia) – Consideram-se alimentos sattvicos aos lácteos, as


frutas, as verduras e os cereais. Uma dieta que consista principalmente nestes produtos
ajuda o aspirante espiritual a manter uma mente quieta e calada.

2) Rajas (atividade) – Os alimentos rajásicos incluem a carne, o peixe e a comida


altamente condimentada, incluindo alho, cebola e a pimenta. A ingestão destes
produtos dá como resultado uma mente sobre-ativa.

3) Tamas (lentidão, preguiça) – Os alimentos decompostos, em mal estado ou produtos


de fermentação (como o álcool, por exemplo) se classificam como tamásicos. Seu
consumo leva a estados mentais apáticos e torpes, o que impede o pensamento claro e
decisivo.

P. Sinto que posso abandonar meu serviço e vir ficar constantemente com
Bhagavan.

Bhagavan sempre está com você, em você e você mesmo é Bhagavan. Para
chegar a esta realização não é necessário deixar o trabalho ou abandonar seu lar. A
renúncia não implica um aparente abandono de costumes, laços familiares, lar, etc, mas
sim a renuncia dos desejos, afetos e apegos. Não há necessidade de deixar o trabalho,
mas sim de colocar-se nas mãos de Deus. Ele leva a carga de tudo.
Aquele que renuncia, de fato, a seus desejos se funde com o mundo e seu amor
se amplia para todo o universo. A expansão de amor e afeto é a melhor medida do
verdadeiro devoto de Deus, mais do que a renúncia, pois o que renuncia aos laços
imediatos estende seu afeto e amor a um mundo mais amplo, além dos limites de casta,
religiões e raças. Um sannyasi que aparentemente deixa sua indumentária e abandona o
lar não o faz para fugir de suas relações imediatas, mas porque seu amor se expandiu a
todos que o rodeiam. Quando tal expansão chega, a pessoa não sente que está
escapando do seu lar mas sim que cai como fruto maduro de uma árvore. Até este
ponto seria bobagem abandonar o trabalho ou o lar.

P. O que acontece com um grihashta familiar com respeito à moksha (libertação)?


Não seria necessário que se fizesse mendigo para alcançar a liberação?

Por que você pensa que é um grihashta? O mesmo tipo de pensamento de que é
um sannyasi lhe aparecerá também se você andar como um sannyasi. Mesmo que
continue no lar ou renuncie a tudo e vá para um bosque, sua mente o seguirá. O ego é a
fonte de todos os pensamentos. Cria o corpo e o mundo e o faz pensar que você é um
grihashta. Se você renuncia, só substitui o pensamento de sannyasa pelo de grihashta e
o bosque pelo lar. Mas os obstáculos mentais sempre estão com você. E, no novo
ambiente, vão se incrementar ainda mais. O único obstáculo é a mente, a qual se deve
vencer, seja no lar ou no bosque. Se ela pode ser vencida no bosque, por que não no
lar? Portanto, para que mudar de lugar? Agora mesmo você pode fazer esforços, seja
qual for a sua circunstância.

P. É possível gozar de samadhi enquanto se está ocupado com o trabalho


mundano?

O sentir que “eu estou trabalhando” é o impedimento. Pergunte-se “quem está


trabalhando?” Recorde quem é você. Então o trabalho não o atará e continuará
automaticamente. Não faça esforços para trabalhar ou renunciar, seu esforço é a
atadura. O que está destinado a ocorrer, ocorrerá. Se você está destinado a não
trabalhar, não poderá conseguir trabalho, por mais que se esforce. Se está destinado a
trabalhar, não poderá deixá-lo e estará forçado a desempenhá-lo. Assim pois, deixe
tudo ao poder superior; você não pode renunciar ou reter por sua própria decisão.

P. Bhagavan disse ontem que, enquanto estivermos buscando Deus “dentro”, o


trabalho “fora” continuará automaticamente. Na vida de Sri Chaitanya se menciona
que, durante as exposições a seus estudantes, ele realmente estava buscando a Krishna
em seu interior, então se esquecia do seu corpo e falava só de Krishna. Sobre isto me
surge a dúvida se eu posso deixar com tranquilidade que meu trabalho prossiga por
conta própria. Devemos colocar parte da atenção sobre o trabalho físico?
O Ser é tudo. Está você a parte do Ser? Ou pode continuar o trabalho sem o
Ser? O Ser é universal, assim, todas as ações se realizarão tanto se se esforça por
atendê-las ou não. O trabalho continuará por conta própria. Por isto Krishna disse à
Arjuna que não se incomodasse em matar os Kauravas, pois já haviam sido aniquilados
por Deus. Não correspondia a ele resolver o trabalho e preocupar-se com isso, mas sim
deixar a natureza desenvolver a vontade do poder superior.

P. Mas o trabalho pode falhar se não lhe coloco a atenção.

Atender o Ser quer dizer que se atende o trabalho. Dado que se está identificado
com o corpo, você acredita que está realizando o trabalho. Mas o corpo e suas
atividades, incluindo o trabalho, não estão separados do Ser. O que importa se você põe
atenção no trabalho ou não? Quando você caminha de um lugar para outro não põe
atenção em cada passo, mas, no final, vê que chegou a seu destino. Veja como o
trabalho de caminhar se atende sozinho, sem que você lhe preste atenção. Da mesma
maneira acontecerá com o outro tipo de trabalho.

P. Pode-se dizer que todas nossas ações são corretas quando mantemos a
lembrança do Ser?

Deveriam ser. No entanto, uma pessoa assim não se preocupa se seus atos são
corretos ou não. Seus atos são de Deus e portanto são corretos.

P. Como posso manter minha mente quieta se tenho que usa-la mais do que as
outras pessoas? Quero ir a um lugar solitário e renunciar a meu trabalho de diretor de
escola.

Não. Você pode ficar onde está e continuar com seu trabalho. Qual é a corrente
que vivifica a mente, que lhe dá a capacidade para fazer todo este trabalho? É o Ser.
Essa é a fonte real de sua atividade. Simplesmente tome consciência dela durante o
trabalho e não a esqueça. Contemple no fundo de sua mente enquanto trabalha. Não se
apresse para fazer isto. Mantenha viva a recordação de sua verdadeira natureza, ainda
quando trabalha e não se apresse, pois isto faz que se esqueça de si mesmo. Atue
deliberadamente. Pratique a meditação para aquietar a mente e assim poderá estar
consciente de sua relação com o Ser, que é seu ponto de apoio. Não imagine que você
está realizando o trabalho. Pense que é a corrente subjacente que o está realizando.
Identifique-se com esta corrente. Se trabalha sem apressar-se, recolhendo-se sobre si
mesmo, seu trabalho ou serviço não será um obstáculo.

P. Não seria uma ajuda, durante as primeiras etapas, se o homem vivesse em


solidão e deixasse os deveres da vida?

A renúncia está na mente, não em ir a um bosque, a lugares solitários ou em


deixar suas obrigações. O essencial é não deixar a mente se extroverter.
Na verdade, não compete ao homem decidir se vai a um lugar ou outro ou se
abandona seus deveres ou não. Todos estes eventos acontecem de acordo com o
destino. Todas as atividades pelas quais o corpo tem que passar já foram determinadas
quando ele começa sua existência. Não corresponde a você aceitá-las ou rechaçá-las. A
única liberdade que você tem é a de voltar sua mente para dentro.

P. Mas não é possível alguma ajuda, especialmente para um principiante, como


uma cerca em volta de um pequeno arbusto? Não é certo, por exemplo, que nossas
escrituras mencionam que é de utilidade sair em peregrinação a lugares sagrados ou ter
sat-sanga?

Quem disse que não é útil? Só que tudo isto não acontece por sua vontade,
enquanto que dirigir a mente para dentro sim, lhe compete. Muita gente deseja sair em
peregrinação ou obter sat-sanga mas, por acaso, todos o conseguem?

P. Por que só nos resta a possibilidade de introverter-nos e não a de tomar outras


decisões?

Se você quer ver o fundamental, deve indagar quem você é e ver quem é que
tem liberdade ou destino. Quem é você e como obteve este corpo que tem estas
limitações?

P. É necessário estar em solidão para fazer a indagação?

Há solidão em todos os lugares. O indivíduo sempre está em solidão. Sua tarefa


é buscá-la em seu interior, não estar buscando-a no exterior.

A solidão existe na mente de um homem. Pode-se estar no meio de um sem


número de atividades e ainda se manter a serenidade mental. Este homem realmente
está em solidão. Outro homem vai ao bosque mas pode não conseguir controlar sua
mente. Este outro realmente não está em solidão. A solidão é uma função da mente.
Um homem que está apegado a seus desejos não pode estar em solidão, não importa
aonde vai, enquanto que um homem com desapego está sempre em solidão.

P. Então podemos estar ocupados trabalhando e, ao mesmo tempo, estar livres de


desejos e em solidão. É certo isso?

Sim. O trabalho que se realiza com apego é um entrave enquanto que o trabalho
que se faz com desapego não afeta ao ator. O que trabalhou desta maneira, ainda em
meio ao trabalho, está em solidão.

P. Nossa vida ordinária não é compatível com este tipo de esforço.


Por que você pensa que está ativo? Tome como um exemplo grosseiro a
maneira como chegou a este lugar. Saiu de sua casa num veículo, tomou um trem,
desceu na estação deste povoado, tomou outro veículo e chegou ao ashram. Quando lhe
perguntam, diz que veio de muito longe, de seu povoado. Mas isto é verdade? De fato,
não é certo que você permaneceu como era e houve um movimento dos veículos
através do trajeto? Tal como você confunde estes movimentos como se fossem seus,
assim também confunde todas as outras atividades. Não lhe pertencem, são, na
verdade, atividades de Deus.

P. Como é possível que se consiga o cessar das atividades (nivritti) e a paz mental
em meio aos deveres caseiros, que estão constituídos por uma atividade constante?

As atividades de um homem sábio só existem ante os olhos de outros e não para


ele mesmo. Ainda que esteja realizando imensas tarefas, realmente não faz nada. Sua
atividade, portanto, não se opõe a não-ação e a paz mental. Sabe que, na verdade, todas
as atividades acontecem só com sua presença e que ele mesmo não faz nada. Por isso,
ficará como a testemunha silenciosa de todas as atividades que estão se desenvolvendo.

P. Para os ocidentais é mais difícil introverter-se?

Sim, porque são rajásicos (mentalmente superativos) e sua energia está voltada
para fora. Deve-se permanecer quieto, no interior de si mesmo, sem se esquecer do Ser.
Então se pode continuar externamente com a atividade. Por acaso um homem que
representa o papel de uma mulher numa obra de teatro se esquece que é um homem?
Da mesma maneira, nós devemos representar nosso papel no cenário da vida, mas sem
nos identificarmos com ele.

P. Como é possível remover a preguiça mental de outras pessoas?

Por acaso você se livrou da sua? Mantenha sua indagação sobre o eu. A força
que aparecerá em você crescerá sobre os outros também.

P. Mas eu posso ajudar os outros com seus problemas, com suas dificuldades?

Para que falar dos outros se só existe um? Trate de realizar que não há um ‘eu’,
um ‘você’, um ‘ele’, mas somente o Ser, que é tudo. Se você acredita nos problemas
dos outros, está acreditando em algo que existe a parte do Ser. Você será mais útil ao
realizar a unidade de tudo, em lugar de realizar ações externas.

P. Você aprova a continência sexual?

Um verdadeiro brahmachari é alguém que vive em Brahman. Isso significa que


já não surge pergunta alguma sobre desejos.
P. No ashram de Aurobindo há uma regra rígida: para que as pessoas casadas
possam viver ali é exigido que não tenham relações sexuais.

Para que serve isso? Se existe na mente, que utilidade pode ter forçar as pessoas
a abstenção?

P. É verdade que a vida de casado é uma barreira para o progresso espiritual?

A vida de casado não é um impedimento, mas deve se praticar o controle de si


mesmo em grau máximo. Se um homem tem forte desejo pela vida superior, então a
tendência sexual irá se extinguindo. Quando se destruir a mente, todos os desejos
também serão destruídos.

P. Eu cometi pecados do tipo sexual.

Mesmo que os tenha feito, não importa, desde que não pense depois que os fez.
O Ser não está consciente de nenhum pecado e a renúncia ao sexo é algo interno, não
somente do corpo.

P. Me descontrola ver os seios de uma jovem vizinha e tenho frequentes tentações


de cometer adultério com ela. O que devo fazer?

Você é sempre puro. São seus sentidos e o corpo que o tentam e você confunde
com o Ser verdadeiro. Em primeiro lugar, conheça quem é que sofre a tentação e quem
está ali para que a tentação o afete. Mas, ainda que cometa adultério, não pense nisso
depois, porque você mesmo é puro sempre. Você não é o pecador.

P. Como podemos afastar a idéia de sexo?

Isto se consegue ao descartar a idéia falsa de que o corpo é o Ser. Não há sexo
no Ser. Seja o Ser e então não terá problemas sexuais.

P. Podemos nos curar do apetite sexual através do jejum?

Sim , mas será temporário. O jejum mental é a ajuda principal. O jejum não é a
meta em si. Tem de haver desenvolvimento espiritual simultaneamente. O jejum total
leva a uma mente demasiado débil. A busca espiritual deve manter-se através do jejum,
se é que se pode lograr algum benefício espiritual.

P. Pode-se progredir espiritualmente através do jejum?


O jejum deve ser fundamentalmente mental (a abstenção de pensamentos). A
mera abstenção do alimento não terá maior benefício e até desequilibrará a mente. A
abertura espiritual se dará se a pessoa come regularmente. Mas, se durante um jejum de
um mês, o ponto de vista espiritual se mantém, então, depois de dez dias de haver
terminado o jejum (se for encerrado corretamente e se volta a comer sensatamente) a
mente se tornará pura e sem movimento e assim ficará.

Durante os primeiros dias depois de chegar aqui, eu tinha os olhos fechados e


estava meditando numa absorção tão profunda que quase não sabia se era de dia ou de
noite. Não comia e não dormia. Quando o corpo se move, precisa de alimentos.
Quando se come, é necessário dormir. Com muito pouco alimento se pode manter a
vida. Essa foi minha experiência. Alguém me oferecia um copo de algum alimento
líquido, quando eu abria os olhos. Isso era tudo o que comia. Lembrem-se, porém, de
uma coisa: a menos que se esteja absorto num estado no qual a mente não se move, não
será possível deixar de dormir ou comer por completo. Quando o corpo e a mente estão
envoltos nas atividades cotidianas da vida, o corpo se rebelará se abandonarmos o sono
e a comida.

Há diferentes teorias sobre o tempo que um sadhaka deve dormir e quanto deve
comer. Uns dizem que é benéfico deitar-se as 22:00 e levantar-se às 02:00. Isso quer
dizer que quatro horas de sono deveriam ser suficientes. Outros dizem que quatro horas
não são suficientes, mas que devem ser seis horas de sono. Tudo isto quer dizer que
tanto o dormir como o comer não devem ser feitos em excesso. Se quiser evitar algum
dos dois completamente, sua mente estará dirigida a isto. Portanto, o sadhaka deve
fazer tudo com moderação.

Não há problema em se comer três ou quatro vezes por dia. Mas não diga
“quero este tipo de alimento e não este outro.” Por outro lado, você come durante o
tempo que está desperto e não come durante as horas em que dorme. Acaso o sono leva
você a mukti? É errado pensar que o simples fato de deixar a atividade o levará a
mukti.

P. Que dieta devo seguir?

O alimento afeta a mente. Para praticar qualquer tipo de yoga, o vegetarianismo


é absolutamente necessário, pois ajuda a mente a atingir a maior sattva (harmonia).

P. É possível que se chegue à iluminação espiritual mesmo comendo carne?

Sim, mas trate de abandonar a carne gradualmente e acostume-se aos alimentos


sattivicos. No entanto, quando a iluminação chegar, não importará o que você come,
como no caso de uma grande fogueira, onde não importa que tipo de material se vai
acrescentando.

P. Nós europeus estamos acostumados a certo tipo de dieta e uma mudança nos
afeta a saúde e debilita a mente. Não é necessário que nos mantenhamos sãos?
Claro que sim. Quanto mais débil se torna o corpo mais desatada se torna a
mente.

P. Quando não seguimos nossa dieta costumeira, a saúde se deteriora e a mente


perde força.

O que você quer dizer com ‘força’ da mente?

P. O poder de deixar as ataduras do mundo.

A qualidade do alimento afeta a mente. A mente se alimenta dos produtos


consumidos.

P. É isso mesmo! Então, é possível que nós, europeus, nos acostumemos com
alimentos sattivicos?

Os hábitos são só um ajuste ao meio em que vivemos. O que conta é a mente. O


que acontece é que a mente foi treinada para pensar que certos alimentos são
prazerosos e bons. A substância alimentícia pode ser obtida tanto do vegetal como do
não vegetal, numa dieta particular. Mas a mente deseja a comida à qual está
acostumada e considera de bom valor.

P. Há restrições quanto à dieta de um homem que já está realizado?

Não. Ele estará estabilizado e não sofrerá influência do alimento que vier a
tomar.

P. Comer carne não é quase o mesmo que matar?

Ahimsa (não-violência) é o ponto de maior importância no código de disciplina


dos yogues.

P. Mas as plantas também tem vida.

O banco onde você está sentado também tem!

P. É possível acostumar-se gradualmente à comida vegetariana?

Sim, assim se deve tentar.

P. Há algum dano se continuo fumando?


Sim, porque o tabaco é um veneno. É melhor deixá-lo. É bom se já deixou de
fumar. Os homens se escravizam com o tabaco e não o podem deixar. Mas o tabaco é
só um estimulante temporário e deve haver ansiedade para consumir mais. Tampouco
ajuda a prática da meditação.

P. Você recomenda que se deixe de comer carne e de tomar bebidas alcoólicas?

Recomenda-se deixá-los porque esta abstenção é útil para os principiantes. A


dificuldade em deixá-los não é porque realmente sejam imprescindíveis mas sim
porque nos acostumamos a eles.

P. Que regras de conduta, em geral, devem seguir os aspirantes?

A moderação nos alimentos, no dormir e no falar.


CAPITULO 13

YOGA

Os praticantes de yoga tratam de unir-se ao Ser (o termo yoga, em sânscrito,


quer dizer união) realizando exercícios específicos, tanto físicos quanto mentais. A
maioria destes se baseia nos Yoga-Sutras de Patanjali, que foram escritos há
aproximadamente 2000 anos. O sistema de Patanjali, que se conhece como Raja Yoga,
tem oito níveis e práticas específicas:

1) YAMA: a conduta na vida em relação aos outros. Não mentir, não roubar, não
ocasionar danos físicos a outros, evitar a sensualidade e a avareza.

2) NIYAMA: a conduta até si mesmo. Higiene, tranqüilidade, austeridade, estudo e


devoção.

3) ASANA: exercícios de estiramento, torção, equilíbrio e para sentar-se. Estes


exercícios são conhecidos na atualidade como Hatha-Yoga.

4) PRANAYAMA: exercícios respiratórios cujo fim é controlar a mente.

5) PRATYAHARA: separar a atenção do corpo e dos sentidos.

6) DHARANA: concentração da mente.

7) DHYANA: meditação.

8) SAMADHI: contemplação ininterrupta da realidade.


A maioria destas práticas podem ser encontradas em outros sistemas espirituais.
As únicas exceções são hatha yoga e pranayama; estas práticas são as que dão para a
Raja Yoga seu caráter particular. Quando os visitantes perguntavam a Sri Ramana
sobre estas práticas, usualmente ele criticava a hatha yoga por sua obsessão com o
corpo. É uma premissa fundamental de seu ensinamento que os problemas espirituais
só podem ser solucionados controlando a mente e, por isso, nunca recomendou a
prática de disciplinas espirituais que se dedicam, em princípio, a conservar o corpo em
bom estado. Tinha uma opinião melhor sobre pranayama (o controle da respiração);
dizia que era útil para aqueles que não podiam controlar sua mente de outra maneira,
mas em geral considerava como uma prática para principiantes. Seus pontos de vista
sobre outros aspectos do Raja Yoga (tais como moralidade, meditação e o samadhi) são
tratados em outros capitulos.

À parte do Raja Yoga, existe outro sistema popular chamado Kundalini Yoga.
Os praticantes deste sistema se concentram sobre centros psíquicos (chakras) do corpo
para gerar um poder espiritual que eles chamam Kundalini. A meta da prática é forçar a
Kundalini para que suba por um canal psíquico (o sushumna), que corre da base da
coluna vertebral ao cérebro. O yogue kundalini acredita que quando este poder chega
ao Sahasrara (o chakra mais elevado, localizado no cérebro), dará como resultado a
realização do Ser.

Sri Ramana nunca aconselhou seus devotos para que praticassem Kundalini
Yoga, pois considerava que era potencialmente perigoso e desnecessário. Por sua vez,
aceitava que existem os chakras e um poder chamado kundalini, mas dizia que, ainda
que kundalini alcançasse o Sahasrara, não por isso se conseguiria a realização do Ser.
Ele dizia que, para alcançar a realização final, Kundalini teria que ir além do Sahasrara,
descendo por outro nadi (espécie de nervo psíquico) que chamava amritanadi (também
chamado paranadi ou jivanadi), até o centro do Coração, no lado direito do peito.
Sustentava que a indagação do eu orientaria automaticamente a kundalini ao centro do
Coração, motivo pelo qual não eram necessários outros exercícios de yoga.

“O Coração se alcança ao introverter-se, buscando a origem do ego.


Este é o método direto para a realização do Ser. Aquele que o adota
não tem porque preocupar-se com nadis, sushumna, shahasrara, paranadi,
kundalini, pranayama ou os seis centros restantes.”

Além das práticas acima mencionadas, o Hinduísmo define outro yoga


denominado carma yoga, ou yoga da ação. Os praticantes deste sistema tratam de
evoluir espiritualmente ao servir sem egoísmo e ajudar os outros. Apesar do que o
Bhagavad Gita destaca, Sri Ramana, em geral, dissuadia seus devotos de que seguissem
este caminho, dado que supõe a existência de um ‘eu’ que vai realizar bons atos e
‘outras pessoas’ que necessitam de ajuda. Só o recomendava quando percebia que um
devoto em particular era incapaz de seguir os caminhos de jnana, bhakti ou raja yoga.

“Se um aspirante não está capacitado por seu temperamento, para os dois
primeiros métodos (jnana e bhakti) ou por sua idade, para o terceiro método (raja)
então deve tentar o carma marga (o caminho do carma yoga). Seus instintos mais
elevados se tornam mais evidentes e começa a sentir um prazer impessoal. Desta
maneira o homem vai se preparando para um dos outros três caminhos.”
Sri Ramana salientava que, para ter êxito, o carma yogui deve estar livre da
noção de que ele mesmo está ajudando a outros, deve não ter apego e ser indiferente às
consequências de suas ações.

P. Yoga quer dizer união. Gostaria de saber, união de quê com o quê?

Exatamente. Yoga implica na existência de uma divisão prévia e que se fará


uma união de uma coisa com outra. Mas quem vai se unir com o quê? Você é o
buscador, buscando união com algo. Se trabalhar sob esta premissa, então se admitiria
que existe algo separado de você. Mas seu Ser é intimo a você mesmo e sempre está
consciente dele. Busque-o e seja isto. Então haverá uma expansão como o infinito e
não haverá perguntas sobre yoga. A quem corresponde a separação (viyoga)?

P. Não sei. Existe realmente a separação?

Descubra para quem é o viyoga. Isso é yoga. Yoga é comum a todos os


caminhos. O yoga é só o cessar de pensar que você é algo diferente do Ser ou realidade.
Todos os yogas, tais como carma, jnana, bhakti e raja são somente diferentes caminhos
para que estejam ao alcance das diferentes inclinações pessoais, com diferentes graus
de evolução. Todos têm como meta tirar as pessoas de sua muita antiga e aferrada
noção de que são algo diferente do Ser. Não há uma questão de união ou yoga no
sentido de ir unir-se a algo que está fora de nós ou é distinto de nós, pois você nunca
esteve nem pode haver estado separado do Ser.

P. Que diferença há entre yoga e vichara?

Yoga diz às pessoas chitta-vritti-nirodha (controle dos pensamentos), enquanto


que eu prescrevo atmanveshana (busca de si mesmo). Este último método é mais
prático. A mente chega a suspender-se no desmaio ou como consequência do jejum,
mas tão logo remove a causa, a mente revive, ou seja, começam de novo a fluir os
pensamentos como anteriormente. Só há duas formas de controlar a mente. Ou se busca
sua fonte ou o devoto se entrega para que o poder supremo a destrua. A entrega é o
reconhecer que existe um poder superior que está regendo tudo. Se a mente se recusa a
buscar sua fonte, deixe-a ir e espere que retorne, então a mande para dentro. Ninguém
tem êxito sem uma paciente perseverança.

P. Não é necessário controlar a respiração?

O controle da respiração é só uma ajuda para introverter-se profundamente em


si mesmo. Quando se controla a mente, a respiração estará automaticamente
controlada. Não é preciso controlar a respiração, já que o controle mental é suficiente.
O controle da respiração só é recomendado para aqueles que não podem controlar sua
mente diretamente.
P. Quando devemos fazer pranayama e por que é efetivo?

Quando não há indagação ou devoção, então se pode utilizar o sedativo natural


do pranayama. Isto se conhece como yoga marga (caminho do yoga). Se há perigo para
a vida o interesse se concentra num só ponto, ou seja, salvar a vida. Ao se reter a
respiração, a mente não pode nem quer, dedicar-se às suas formas prediletas, ou seja,
aos objetos externos. Por isto, há descanso para a mente pelo lapso que se mantenha
fixa a respiração. Ao colocar toda a atenção sobre a respiração ou seu controle, se perde
o interesse em outros assuntos.

A fonte da respiração é a mesma da mente. Portanto, a pacificação de uma leva,


sem esforço, à pacificação da outra.

P. É certo que a concentração sobre os chacras aquieta a mente?

Ao se fixar a mente sobre os centros psíquicos, tais como sahasrara (o chacra do


lótus de mil pétalas) o yogui permanece por um longo tempo sem consciência do corpo.
Enquanto dure este estado, parecerá que ele está imerso em algum tipo de gozo. Mas
quando a mente aquietada volta à atividade, começa de novo sua vida mundana. É
necessário, portanto, treiná-la com a ajuda de práticas como dhyana, no momento em
que se externaliza. Ao final, se obterá um estado no qual ela não surge nem se pacifica.

P. É verdade que o controle mental induzido pelo pranayama também é


temporário?

A quietude só dura enquanto se controla a respiração, portanto é transitória. A


meta, claramente, não está no pranayama. Continua até pratyahara, dharana, dhyana e
samadhi.

Estas etapas têm a ver com controle mental. Dito controle é mais fácil para
alguém que anteriormente tenha praticado pranayama. Portanto, o pranayama o leva às
etapas posteriores. E, já que estas etapas implicam no controle mental, pode-se dizer
que o controle mental é a meta final do yoga.

Um praticante mais avançado, se dirigirá diretamente ao controle mental, sem


perder tempo com a prática do controle da respiração.

P. O pranayama tem três fases: a exalação, a inalação e a retenção. Como devem


ser reguladas?

O deixar de se identificar com o corpo é realmente a exalação (rechaka); o


fundir-se no interior através da indagação “Quem sou eu?” é a inalação (puraka); ser a
única realidade como “Eu Sou Isso” é realmente a retenção (khumbaka). Isto é
pranayama.
P. Em “Maha Yoga” se diz que, ao começar a meditação, pode-se colocar a
atenção sobre a respiração, ou seja, a inspiração e a expiração. Depois de algum tempo
se chega à quietude mental; então se pode penetrar no Coração, buscando a fonte da
mente. Estive buscando uma ajuda prática, como a mencionada. Posso seguir este
método? É correto?

O que temos que fazer é matar a mente de uma forma ou outra. Aos que não
tem a capacidade para seguir o método da indagação, recomenda-se que adotem o
pranayama como ajuda para controlar a mente. Este pranayama é de dois tipos: o
controlar a respiração ou simplesmente observar a respiração.

P. Para controlar a respiração, não é melhor a fórmula 1-4-2 para inspirar, reter e
expirar?

Todas estas proporções, que às vezes vem acompanhadas de mantras, são


somente ajudas para controlar a mente. Para isto servem. O observar a respiração é uma
forma de pranayama. O inspirar, reter e expirar é mais violento e pode causar danos em
alguns casos, quando, por exemplo, não há um Gurú apropriado, que guie o buscador
durante cada passo e cada etapa. Mas só observar a respiração é fácil e não implica
risco algum.

P. A manifestação da kundalini shakti (o poder da kundalini) é alcançável só por


aqueles que estão seguindo o caminho yóguico de adquirir shakti ou também é possível
para aqueles que estão seguindo o caminho da devoção (bhakti) ou do amor (prema)?

Por acaso há alguém que não tenha kundalini shakti? Conhecer a verdadeira
natureza desse shakti se chama akhandakara vritti (consciência sem interrupção) ou
seja, aham sphurana (o fluir do “Eu”). O kundalini shakti está ali para todo mundo, seja
qual for seu caminho. Só há uma diferença nos termos.

P. Dizem que o shakti se manifesta em cinco fases, em dez fases, em cem fases e
até em mil fases. O que é correto?

O shakti só tem uma fase. Manifesta-se em diversas fases, mas isto é só uma
maneira de expressar-se. O shakti é único.

P. O jnani só pode ajudar os que seguem seu caminho ou também podem ajudar
aos que seguem caminhos diferentes, como o do yoga?
Sem dúvida pode ajudar. Pode ajudar a todos, não importa o caminho que
estejam seguindo. É algo similar a este exemplo: suponhamos que há uma colina.
Haverá diversos caminhos para subi-la. Se alguém dissesse a todos que subissem pelo
caminho que ele utilizou, poderia haver alguém que não gostasse. Se a estas pessoas
fosse dito que se pode usar este caminho e que só existe este caminho, pode ser que não
lhes fosse possível chegar. Um jnani, portanto, ajuda as pessoas no caminho que estão
seguindo, não importa que caminho seja. As pessoas que estão na metade de um
caminho não podem ver os méritos ou deméritos dos outros caminhos. Mas o que
chegou ao cume e está sentado observando aos que estão subindo, pode ver todos os
caminhos. Poderá, portanto, dizer para as pessoas que estão subindo que devem ir um
pouco para a esquerda ou para a direita, para que não caiam num buraco. A meta é a
mesma para todos.

P. Como é possível dirigir o prâna, ou força vital, ao sushumna nadi, para que o
cit-jada-granthi (a identificação da consciência com o corpo) seja cortada, na forma que
se menciona no Sri Ramana Gita?

Por meio da indagação “Quem sou eu?” o yogui talvez tenha o objetivo definido
de levantar o kundalini e mandá-lo para o sushumna. O jnani talvez não tenha esta meta
específica. Mas ambos chegam aos mesmos resultados, ou seja, o de mandar a força
vital pelo sushumna e cortar o cit-jada-granthi. Kundalini é só outro nome para o atma
ou o Ser, ou o shakti. Dizemos que está dentro do corpo porque pensamos que estamos
limitados a este corpo. Mas, em realidade, está dentro e está fora, não sendo diferente
do Ser ou do shakti do Ser.

P. Como é possível agitar os nadis para que a kundalini suba pelo sushumna?

Enquanto o yogui tem seu método de controle da respiração para alcançar essa
meta, o jnani só tem o método da indagação. Quando, deste último modo, a mente
submerge no Ser, o shakti, ou kundalini, que não está a parte do Ser, sobe
automaticamente.

Os yoguis dão muita importância ao poder mandar o kundalini até o sahasrara, o


centro do cérebro, ou lótus de mil pétalas. Dizem eles que as escrituras assinalam que a
corrente vital entra no corpo pela fontanela, argumentando que o viyoga (a separação)
chegou desta maneira; por isto yoga (a união) deverá realizar-se no sentido inverso.
Dizem, portanto, que através desta prática de yoga devemos juntar os prânas e entrar na
fontanela, para que haja a consumação do yoga. Por outro lado, os jnanis dizem que o
yogui crê na existência do corpo e da sua separação do Ser. Só ao se manter este ponto
de vista é possível ao yogui aconselhar um esforço para realizar uma reunificação
através da prática do yoga.

De fato, o corpo está na mente que, por sua vez, tem seu centro no cérebro. Os
mesmos yoguis admitem que o cérebro funciona com a luz que foi tomada de outra
fonte, segundo a teoria da fontanela. O jnani diria que, se a luz vem de algum outro
lugar, tem que ser a fonte. Vá diretamente a essa fonte e não dependa de outras coisas
externas. A fonte é o Coração, o Ser.
O Ser não vem de um local a parte para entrar no corpo pela cabeça. É como é,
sempre reluzente, sempre estável, sem movimento, sem mudança. O indivíduo se limita
aos limites do corpo mutante ou da mente, que deriva sua existência do Ser imutável.
Só o que se requer é que se solte esta identidade errônea e, quando isto ocorrer, o Ser,
sempre luminoso, será visto como a realidade que é, única e não dual.

Se a pessoa se concentra no sahasrara, não resta dúvida de que o êxtase do


samadhi poderá ser experimentado. No entanto, os vásanas, ou tendências mentais
latentes não serão destruídos. O yogui, portanto, terá que despertar do samadhi, porque
não pode livrar-se completamente da sua escravidão. Tem que continuar tratando de
erradicar os vásanas inerentes nele, com o objetivo de que não voltem a molestar a paz
do seu samadhi. Por isso, tem que passar do sahasrara ao Coração, por meio do que é
chamado jivanadi, que é, na verdade, uma continuação do sushumna. O sushumna é,
portanto, uma curva. Começa no chacra mais baixo, sobe pela coluna vertebral até o
cérebro e dali retorna e acaba no Coração. Quando o yogui alcança o Coração, o
samadhi se torna permanente. Por isso, podemos ver que o Coração é o centro final.

P. Dizem que as práticas do hatha yoga são efetivas para acabar com as
enfermidades, pelo que são prescritas como passos preliminares ao jnana yoga.

Deixe que aqueles que o recomendam também o utilizem. Eu não tive esta
experiência. Todas as enfermidades desaparecerão através da indagação contínua do
Ser. Se você acreditar que a saúde do corpo é necessária para ter saúde mental, nunca
acabará de cuidar do corpo.

P. Não é necessário o hatha yoga para realizar a indagação do eu?

Cada um encontra o método que mais lhe agrada, tendo em conta as tendências
latentes.

P. Posso fazer hatha yoga com minha idade?

Para que você pensa que é tudo isto? Sendo que você pensa que o Ser lhe é
externo, você o deseja e o busca. Mas, por acaso, você não existe todo o tempo? Por
que você abandona a si mesmo e anda buscando algo externo?

P. Se diz em Aparoksha Anubhuti que o hatha yoga é uma ajuda necessária para
realizar a indagação do eu.

Os hatha yoguis insistem em que é necessário manter-se em boa saúde para que
a indagação se possa efetuar sem obstáculos. Também dizem que temos que prolongar
a vida para que a indagação se realize até a sua conclusão final. Além disso, há alguns
que utilizam remédios (kayakalpa) para estes fins.
Seu exemplo favorito é que a tela tem que estar perfeita antes de começar o
quadro. Sim, mas qual é o quadro e qual é a tela? Segundo eles, o corpo é a tela e a
indagação deveria ser o quadro. Mas, por acaso, o corpo não é parte da tela, ou seja, o
Ser?

P. Mas se fala tanto de hatha yoga como uma ajuda…

Sim, mesmo os grandes eruditos do Vedanta continuam sua prática. De outro


modo suas mentes não se aquietariam. Pode-se dizer, portanto, que o hatha yoga é útil
para aqueles que não podem aquietar suas mentes de outra maneira.

P. O que são os asanas (posturas)? São necessárias?

Os diversos asanas, com seus efeitos, estão mencionados nos yogas sastras.
Senta-se sobre peles de tigre, etc. As posturas são a do ‘lótus’, a ‘fácil’, etc. Para que
necessitamos tudo isto se só queremos conhecer a nós mesmos? A verdade é que o ego
surge do Ser, se confunde com o corpo, acredita que o mundo é real e depois, coberto
de uma presunção egoísta, pensa desmedidamente e procura os asanas. Uma pessoa
assim não entende que ele mesmo é o centro de tudo e forma a base de tudo.

Os asanas só se utilizam para sentar-se firmemente. Como é possível sentar-se


firmemente exceto em seu estado verdadeiro? Este é o asana verdadeiro.

O asana firme, sem movimento, e a postura que permite um excelente samadhi é


conseguir a continuidade, sem vacilações, do conhecimento de que a base (asana) sobre
a qual todo o universo se mantém é o Ser. Esse é o espaço do verdadeiro conhecimento,
o terreno ilustre.

P. Em qual asana Bhagavan se senta usualmente?

Em que asana? No asana do Coração. Isto se chama sukhasana, ou o asana da


felicidade. Este asana do Coração tem a paz e outorga felicidade. Não há necessidade
de outro asana para os que estejam sentados neste.

P. O Gita parece dar ênfase ao carma yoga, pois persuade a Arjuna para que
guerreie. Sri Krishna deu como exemplo sua própria vida, cheia de atividades e grandes
conquistas.

O Gita começa dizendo que você não é o corpo e que, portanto, você não é o
ator (karta).

P. O que significa tudo isto?


Quer dizer que podemos atuar sem pensar que somos os atores. As ações
continuarão mesmo no estado sem ego. Cada indivíduo chegou à manifestação para um
certo propósito e esse propósito se cumprirá, tanto se pensarmos que somos os atores
quanto se não.

P. O que é carma yoga? É o desapego ao carma (a ação) ou é seu resultado?

Carma yoga é o yoga no qual a pessoa não se atribui a função de ser o que atua.
Todas as ações acontecem automaticamente.

P. Por acaso é o desapego aos frutos das ações?

A pergunta só surge se houver um ator. Todas as escrituras dizem que não


devemos nos considerar o ator.

P. Carma yoga é, portanto, “kartritva buddhi rahita carma”, a ação sem o sentido
de ser o ator.

Sim, assim o é.

P. O Gita nos ensina que devemos ter uma vida ativa desde o princípio até o fim.

Sim, a ação sem o ator.

P. Se nos mantivermos quietos, como a ação pode se realizar? Onde há lugar para
o carma yoga?

Primeiro temos que entender o que é carma, de quem é o carma e quem está
realizando as ações. Ao analisar e indagar para ver a verdade, temos que nos manter no
Ser. No entanto, ainda neste estado, as ações continuarão.

P. Como é possível que as ações continuem sem que eu atue?

Quem faz a pergunta? O Ser ou outra entidade? Concerne ao Ser alguma ação?

P. Não, não ao Ser. É a outro, alguém distinto do Ser.

Por isto, é claro que ao Ser não concernem as ações e, portanto, não surge a
pergunta.

P. Quero fazer carma yoga. Como posso ajudar os outros?


Quem existe que você possa ajudar? Quem é o ‘eu’ que vai ajudar os outros?
Primeiro aclare este ponto e tudo mais estará em ordem.

P. Isso quer dizer ‘realize o Ser’. Por acaso minha realização ajudará os outros?

Sim, é a melhor ajuda que você pode dar. Mas, na realidade, não existem
‘outros’ que você possa ajudar. O que está realizando só vê o Ser, assim como o
joalheiro vê ouro quando avalia os diferentes objetos elaborados com ouro. Quando se
identifica com o corpo, aparece o nome e a forma. Mas ao desaparecer a consciência do
corpo, o demais desaparece. O realizado não vê que o mundo seja distinto dele mesmo.

P. Não seria melhor se os santos se misturassem com as pessoas, para poder ajudá-
las?

Não há com quem se possa misturar. O Ser é a única realidade.

O sábio ajuda o mundo sendo o Ser. A melhor maneira de servir o mundo é


chegar ao estado sem ego. Se você tem certa ansiedade por ajudar o mundo, mas pensa
que não o pode fazer realizando o estado sem ego, então entregue-se a Deus com todos
os problemas do mundo, além dos seus próprios.

P. Não devo tratar de ajudar o mundo que está sofrendo?

O poder que o criou, criou também o mundo. Se ele pode cuidar de você,
também pode cuidar do mundo. Se Deus criou o mundo, é responsabilidade d’Ele ver o
que está ocorrendo e não sua.

P. É apropriado o desejo por swaraj (independência)?

Este desejo começa, não há dúvida, com um interesse individual. No entanto, o


trabalho prático até a meta gradualmente vai ampliando o ponto de vista e o individuo
se funde em seu país. O fundir à individualidade é o que se busca e o carma
relacionado com isto é nikskama (não egoísta).

P. Quando se conhece swaraj, depois de uma luta prolongada e de enormes


sacrifícios, não se justifica que a pessoa esteja contente com o resultado e exaltado por
isto?

Durante o trabalho a pessoa deve haver se rendido ante o poder superior, cuja
potência deve manter-se presente na mente e não deixar que se perca de vista. Estará
então exaltado? Não deve importar-lhe o resultado de suas ações. Só assim se torna não
egoísta.
QUINTA PARTE

EXPERIÊNCIA

“Não existe graus de realidade. Só há graus na experiência do indivíduo,


mas não na realidade. Qualquer que seja a experiência, o que experimenta é único
e o mesmo.

O Ser certamente está perto da experiência direta de todo o mundo, mas


não como o imaginam. Ele só é como é.”
CAPITULO 14

SAMADHI

A palavra Samadhi é usada frequentemente nos textos espirituais do Oriente e


denota um estado avançado de meditação, no qual há uma experiência consciente do
Ser ou bem uma absorção intensa e ininterrupta no objeto de meditação. Existem
muitas graduações e subdivisões de samadhi, segundo tem sido descritas. Cada escola e
religião tende a definir suas próprias categorias e terminologia.

A classificação que Sri Ramana usualmente utilizava divide os diversos


samadhis da seguinte maneira, constando de três categorias:

1) Sahaja Nirvikalpa Samadhi – Este é o estado de um jnani que definitiva e


irrevogavelmente eliminou seu ego. Sahaja quer dizer ‘natural’ e nirvikalpa quer dizer
‘sem diferença’. Um jnani, neste estado, pode funcionar no mundo com naturalidade,
tal como uma pessoa comum. Sabendo que é o Ser, o Sahaja Jnani não vê diferença
alguma entre ele e os outros, nem entre ele e o mundo. Para esse indivíduo, tudo é
manifestação do Ser indivisível.

2) Kevala Nirvikalpa Samadhi – Esta é uma etapa prévia à realização do Ser. Neste
estado há uma consciência temporária do Ser sem esforço, mas o ego não foi eliminado
por completo. Caracteriza-se pela ausência de consciência do corpo. Se bem que haja
uma consciência temporária do Ser neste estado, não se pode receber informação
sensorial ou se operar no mundo. Quando aparece novamente a consciência do corpo, o
ego volta a funcionar.

3) Savikalpa Samadhi – Este estado de consciência do Ser se mantém com esforço


constante. A continuidade do samadhi depende totalmente do esforço que se faz para
manter-se nele. Quando a atenção sobre o Ser se perde, a consciência do Ser
desaparece.
As breves definições dadas a seguir foram elaboradas por Sri Ramana e tratam
de esclarecer algumas dúvidas dos não iniciados através da complicada terminologia
que se usa quanto ao samadhi.

1) Aferrar-se à realidade é samadhi.


2) O aferrar-se à realidade com esforço é savikalpa samadhi.
3) O fundir-se na realidade e estar sem consciência do mundo é nirvikalpa samadhi.
4) O submergir-se na ignorância e ficar sem consciência do mundo é sono.
5) Estar no estado primário, puro e natural, sem esforço algum, é sahaja nirvikalpa
samadhi.

P. O que é samadhi?

É o estado no qual há uma experiência ininterrupta da existência –consciência,


que se consegue com uma mente aquietada ou serena; só isso é samadhi. Essa mente
quieta, que se adorna com o logro do Ser, sem limite e supremo, só isso é a realidade de
Deus.

Quando a mente comunga com o Ser na escuridão, chamamos a isto nidra


(sono), ou seja, a mente está submersa na ignorância. Quando a mente está submersa no
Ser, num estado consciente ou de vigília, denomina-se a este estado samadhi. Samadhi
é a contínua imersão no Ser durante a vigília. Nidra, ou seja, o sono, também é a
inerência no Ser, mas num estado de inconsciência. Durante o sahaja samadhi, a
comunhão se torna contínua.

P. O que são kevala nirvikalpa samadhi e sahaja nirvikalpa samadhi?

Quando a mente está imersa no Ser, mas ainda não foi destruída, a isto se chama
kevala nirvikalpa samadhi. Neste estado ainda não se está livre dos vásanas e, portanto,
não se pode alcançar mukti. A liberação só se pode obter depois que os vásanas tenham
sido destruídos.

P. Quando alguém pode praticar o sahaja samadhi?

Desde o princípio. Mesmo que se pratique kevala nirvikalpa samadhi durante


anos, se os vásanas não foram destruídos, não se pode chegar à liberação.

P. Você pode esclarecer a diferença entre savikalpa e nirvikalpa?

Aferrar-se ao estado supremo é samadhi. Quando se tem que fazer com esforço,
devido às distrações mentais, chamamos savikapa. Quando as distrações estão ausentes,
chamamos nirvikalpa. O estado permanentemente no estado primário, sem esforço, isso
é sahaja.
P. Por acaso é absolutamente necessário ter nirvikalpa samadhi antes de se
conseguir sahaja?

O estar permanentemente em qualquer dos samadhis, tanto nirvikalpa como


savikalpa, é sahaja (estado natural). O que é consciência do corpo? É o corpo
inconsciente mais a consciência. Ambos devem estar dentro de outra consciência, que é
absoluta e não afetada, permanecendo sempre como é, com ou sem a consciência do
corpo. Que importa, portanto, se tem ou não consciência física, desde que se tenha essa
consciência pura? A ausência total de consciência física tem a vantagem de que o
samadhi é mais intenso, ainda que não afete em nada o conhecimento supremo.

P. É correto dizer que o samadhi é o mesmo que turya, o quarto estado?

Tanto samadhi quanto turya e nirvikalpa indicam que há consciência do Ser.


Turya, literalmente, quer dizer o quarto estado, a consciência suprema, distinta dos
outros três estados (vigília, sonho e sono sem sonhos). O quarto estado é eterno,
enquanto que os outros três estados vão e vem, dentro do quarto estado. Em turya há
consciência de que a mente se fundiu com a fonte, o Coração, e está quieta ali, ainda
que seja possível que alguns pensamentos surjam e os sentidos estejam um tanto ativos.
Durante o nirvikalpa os sentidos estão inativos e não há um só pensamento. A
experiência da consciência pura, neste estado, é intensa e plena de gozo. Turya se pode
conseguir em savikalpa samadhi.

P. Que diferença há entre um prazer que se experimenta durante o sono e o prazer


de turya?

Não há prazeres distintos. Há um só gozo, que inclui o gozo do estado de


vigília, o gozo de todos os seres, desde o animal mais elementar até o Brahman mais
elevado. Este gozo é o gozo do Ser. Esse gozo que se tem inconscientemente durante o
sono, se experimenta conscientemente em turya, essa é a única diferença. O gozo em
vigília é de segunda mão, é um adjunto do gozo verdadeiro (upadhi ananda).

P. Por acaso o samadhi do oitavo passo do raja yoga é o mesmo do que você fala?

No yoga o termo samadhi se refere a algum tipo de transe e há diversos tipos de


samadhi. Mas o samadhi ao qual eu me refiro é diferente. É sahaja samadhi. Dali se
tem samadhana (estabilidade), se permanece calmo e sossegado, mesmo se estando
ativo. Dá-se conta de que o que se move é o Ser, que é o mais profundo. Não tem
preocupações nem ansiedades, pois se deu conta que nada lhe pertence. Sabe que tudo
é feito por outra entidade, com a qual está em união consciente.

P. Se o sahaja samadhi é a condição mais favorável, então não há necessidade de


nirvikalpa samadhi?
O nirvikalpa samadhi do raja yoga pode ter sua utilidade. Mas em jnana yoga o
sahaja sthiti (estado natural) ou sahaja nishta (manter-se no estado natural) é o estado
de nirvikalpa. Neste estado natural, a mente não tem dúvidas. Não tem que ir de um
lado para outro entre as possíveis alternativas e probabilidades. Não vê vikalpas
(diferenças) de nenhum tipo. Está seguro da verdade pela presença do Real. Ainda
quando está ativa, sabe que está ativa na realidade do Ser, na existência suprema.

P. Que diferença há entre o sono profundo, laya (um estado como de transe, no
qual a mente está temporariamente quieta) e o samadhi?

No sono profundo a mente se funde mas não foi destruída. Também pode
acontecer durante a meditação. Mas a mente que foi destruída não pode reaparecer. A
meta do yogui deve ser destruí-la e submergir em laya. Durante a paz da meditação, às
vezes laya chega a acontecer, mas isto não é suficiente. Deve ser complementado com
outras práticas para que se consiga destruir a mente. Algumas pessoas tem entrado em
samadhi yóguico com um pequeno pensamento e depois de despertar de um longo
período, ali está este pensamento. Podem haver passado gerações pelo mundo. Esse
yogui não destruiu a mente. A destruição verdadeira da mente é quando não se
reconhece que se está a parte do Ser. Agora mesmo, não existe a mente. Dê-se conta
disso. Como fazê-lo, senão em meio das atividades que estão acontecendo
automaticamente? Conheça que a mente que está promovendo estas ações não é real,
mas sim só um fantasma que surge do Ser. Assim se destrói a mente.

P. É possível que se prejudique o físico de quem está meditando enquanto se está


em nirvikalpa samadhi? Meu amigo e eu não estamos de acordo sobre este ponto.

Os dois têm razão. Um se refere a kevala e o outro a sahaja samadhi. Em ambos


os casos a mente está submersa no gozo do Ser. No primeiro caso, os movimentos
físicos podem causar dano ao meditador, dado que a mente ainda não está totalmente
morta. Está viva ainda e pode, como depois de despertar do sono profundo, tornar-se
ativa de novo. É como um balde que, ainda que esteja submerso debaixo da água, pode
ser tirado por meio de uma corda, à qual está atado. Em sahaja a mente se submergiu
completamente no Ser, como o balde que se perdeu na profundidade do poço, junto
com a corda. No sahaja não fica algo que possa ser molestado ou que possa regressar
ao mundo. As atividades da pessoa, neste caso, se parece com as da criança que está
mamando o leite da sua mãe enquanto dorme e quase não se dá conta de que se está
alimentando.

P. Como se pode funcionar no mundo neste estado?

O que se acostuma naturalmente com a meditação não perderá seu estado de


samadhi ainda se realizar algum trabalho externo, não importando que pensamentos lhe
surgem. Isso é sahaja nirvikalpa. O sahaja nirvikalpa é nasa (destruição total da mente)
enquanto que kevala nirvikalpa é laya (apaziguamento temporário da mente). Os que se
encontram em laya samadhi terão que retomar a mente sob controle de vez em quando.
Se a mente já foi destruída, como em sahaja samadhi, nunca volta a surgir. O que esta
pessoa realiza será um ato acidental e ela não decairá de seu estado elevado.
Aqueles que estão no estado de kevala nirvikalpa, não se realizaram e ainda são
buscadores. Os que estão em sahaja nirvikalpa são como uma luz num lugar sem vento
ou como o mar sem ondas, ou seja, não há movimento dentro deles. Não podem
encontrar algo que seja diferente deles mesmos. Para os que não alcançaram este
estado, tudo parece diferente deles mesmos.

P. É verdade que a experiência de kevala nirvikalpa é a mesma que a de sahaja, só


que numa delas se desce ao mundo do relativo?

Não existe o subir e descer; o que sobe e abaixa não é real. Durante kevala
nirvikalpa o balde mental está sob a água e pode ser retirado a qualquer momento.
Sahaja é como quando o rio já se fundiu no mar, do qual não se volta. Por que você faz
todas estas perguntas? Continue praticando até que você mesmo tenha esta experiência.

P. Para que serve o samadhi? Por acaso neste estado haverá pensamentos?

O samadhi é a única coisa que pode revelar a verdade. Os pensamentos cobrem


a realidade como um véu e, portanto, não nos realizamos em outro estado que não seja
o samadhi. No samadhi só há uma sensação de “Eu Sou” e não há pensamentos. A
experiência de “Eu Sou” é o “estar quieto”.

P. Como posso repetir a experiência de samadhi ou a quietude que experimento


aqui em sua presença?

Sua experiência deste momento se deve à influência da atmosfera na qual se


encontra. Pode tê-la fora desta atmosfera? A experiência é espasmódica. Até que se
torne permanente, é necessário praticar.

P. Pode-se dizer que samadhi é a calma ou a paz?

A claridade tranquila, que não tem agitação mental, só isto é o samadhi, que é a
base da liberação. Ao tentar honestamente destruir a agitação mental que agonia, a
experiência de samadhi, como uma consciência de paz, que é a claridade interior, se
experimentará.

P. Que diferença há entre samadhi interno e o externo?

O samadhi externo é o aferrar-se à realidade enquanto se vê o mundo, sem


reagir contra este, desde dentro. Existe a quietude de um mar sem ondas, o samadhi
interno implica a perda da consciência do corpo.

P. A mente não se submerge nesse estado nem por um segundo.

Necessita-se uma forte convicção de ‘eu sou o Ser’, que transcende a mente e os
fenômenos.
P. A mente, no entanto, é um obstáculo que não cede e que impede todo o esforço
por submergir-se no Ser.

O que importa se a mente está ativa? Isto só acontece no substrato do Ser.


Aferre-se ao Ser mesmo durante as atividades mentais.

P. Eu li um livro de Romain Rolland sobre Ramakrishna no qual ele diz que


nirvikalpa samadhi é uma experiência terrível e aterradora. O nirvikalpa é, realmente,
tão terrivel? Por acaso estamos nos submetendo a estes tediosos processos de
meditação, purificação e disciplina só para terminar num estado de terror? Vamos nos
converter em cadáveres viventes?

As pessoas têm todo tipo de noções sobre o nirvikalpa. Por que você fala de
Romain Rolland? Se aqueles que têm a sua disposição toda a tradição dos Upanishads e
a tradição vedântica têm idéias fantásticas sobre nirvikalpa, quem pode criticar a um
ocidental por ter idéias similares? Alguns yoguis, através de exercícios de respiração,
caem num estado cataléptico mais intenso que o sono profundo, no qual não se tem
consciência de coisa alguma, de absolutamente nada e o glorificam como nirvikalpa.
Outros pensam que, uma vez que entram em nirvikalpa, convertem-se em outro ser.
Outros ainda, pensam que nirvikalpa só se pode lograr ao se entrar num transe no qual
a consciência do mundo se acaba por completo, como num desmaio. Tudo isto
acontece pelo fato de se examinar a questão pelo ponto de vista intelectual.

Nirvikalpa é chit, a consciência sem esforço, sem forma. Onde está o terror,
onde está o mistério, se só se busca a si mesmo? Para alguns indivíduos cujas mentes se
tornaram maduras depois de longas práticas no passado, nirvikalpa chega de repente,
como uma inundação, mas para outros vem durante sua prática espiritual, a qual está
acabando lentamente com os pensamentos que causam obstrução e revela a tela de
consciência pura, “Eu-Eu”. Ao continuar a prática, a tela se revela permanentemente.
Isto é a realização do Ser, mukti ou sahaja samadhi, o estado natural sem esforço. A
mera não percepção das diferenças externas (vikalpas) não é a natureza verdadeira de
nirvikalpa. Saiba que o verdadeiro nirvikalpa é o não surgimento de diferenças na
mente morta.

P. Quando a mente começa a apaziguar-se no Ser, muitas vezes há uma sensação


de medo.

O medo e o tremor do corpo enquanto se entra em samadhi se deve ao pouco


que sobra de consciência do ego. Mas quando este se acaba por completo, sem deixar
rastro algum, permanece-se num vasto espaço de consciência pura, onde só há gozo e
tudo deixa de tremer.

P. Acaso o samadhi é um estado de gozo ou êxtase?

Em samadhi só existe a paz perfeita. O êxtase chega quando a mente revive, ao


final do samadhi, com a recordação da paz do samadhi.
Na devoção o êxtase vem inicialmente. Manifesta-se com lágrimas de
felicidade, o cabelo se arrepia e a voz se perde. Quando o ego finalmente morre e se
alcança o sahaja, todos os sintomas e o êxtase se acabam.

P. Ao realizar o samadhi, por acaso a pessoa também obtém siddhis (poderes


sobrenaturais)?

Para poder mostrar os siddhis, deve haver alguém para quem mostrá-los. Isso
quer dizer que não há jnana naquele que os mostra. Por isso, não vale a pena dedicar
aos siddhis nem um só pensamento. Só se deve buscar e alcançar jnana.

P. Menciona-se no Mandukyopanishad que, a menos que o samadhi, a oitava e


última etapa do yoga, seja experimentado, não pode haver libertação, não importa o
quanto se medite ou quantas austeridades se realize. Tudo isto é correto?

Se entendermos corretamente, é a mesma coisa. Não importa se chamamos


meditação, austeridade, absorção ou qualquer outra coisa. O que está sem movimento
contínuo, como o fluxo de azeite, isso é austeridade, meditação, absorção. Ser o Ser de
si mesmo é samadhi.

P. Mas no Mandukyopanishad se diz que, necessariamente, deve se experimentar


samadhi antes de obter liberação.

E quem falou que não é assim? Isto é mencionado em todos os textos antigos.
Mas será o verdadeiro samadhi só quando se conhece o próprio ser. O que adianta estar
sentado imóvel, como um objeto sem vida? Suponhamos que lhe saia um tumor na mão
e você seja operado, tomando anestesia. Não sente dor por um tempo. Mas isto quer
dizer que você esteve em samadhi? É o mesmo com o outro caso. Devemos saber o que
é o samadhi. E como podemos saber sem conhecer o Ser? E se conhecemos o Ser,
conheceremos automaticamente o samadhi.

Samadhi é o estado natural de nós mesmos. É a corrente subjacente durante os


estados de vigília, sonho e sono sem sonhos. O Ser não está nestes três estados mas sim
os estados é que estão no Ser. Se obtivermos samadhi na vigília, continuam também em
sono profundo. A distinção entre a consciência e a inconsciência só pertence à mente, a
qual é transcendida no estado do Ser verdadeiro.

P. Devemos portanto tentar sempre alcançar o samadhi?

Os sábios dizem que o estado de equilíbrio, no qual não há ego, é mouna –


samadhi (samadhi do silêncio); o cume do conhecimento. Até alcançar mouna-
samadhi, o estado no qual se é a realidade sem ego, mantenha a aniquilação do ‘eu’
como sua meta principal.
CAPITULO 15

VISÕES E PODERES PSÍQUICOS

Em certos casos a meditação dá como resultado efeitos secundários


espetaculares. Podem aparecer visões dos deuses e , algumas vezes, se desenvolvem
poderes sobrenaturais, como a clarividência e a telepatia. Ambos os poderes podem ser
produzidos deliberadamente. A concentração sobre uma imagem mental às vezes
produz visões, sobretudo quando a concentração se realiza com devoção ou se existe
um forte desejo por obter-se visões. Os poderes psíquicos (siddhis) também podem ser
obtidos através de exercícios yóguicos especiais. No Yoga Sutra de Patanjali, o texto
clássico do yoga, se enumeram diversos exercícios que aceleram o desenvolvimento de
oito siddhis, que vão desde a invisibilidade até o caminhar sobre a água.

Sri Ramana dissuadia seus devotos de buscar deliberadamente as visões ou


siddhis, dizendo que eram produto da mente e podiam impedir mais do que ajudar no
caminho para a realização do Ser. Se as visões aconteciam espontaneamente, ele
admitia, algumas vezes, que eram um sinal de progresso, mas acrescentava que eram
apenas experiências temporárias da mente e estavam ‘abaixo do plano da realização do
Ser’.

Se os siddhis apareciam espontaneamente, salientava o perigo de apegar-se a


eles, explicando que estes poderes usualmente inchavam o ego em lugar de eliminá-lo.
Enfatizava também que o desejo de obter siddhis e o desejo de realização do Ser eram
mutuamente excludentes.

O Ser é o mais íntimo e é eterno, enquanto que os siddhis são alheios. Os


siddhis são adquiridos com esforço enquanto que não é assim com o Ser. Os poderes
são buscados com a mente que está alerta, enquanto que o Ser é realizado quando a
mente é destruída ou aniquilada. Os poderes se manifestam só quando existe o ego. O
Ser está além do ego e só se realiza quando o ego foi eliminado.
P. Uma vez eu disse a Bhagavan que tive uma visão de Shiva no momento em que
me converti ao hinduísmo. Uma visão similar me ocorreu em Courtallam. Estas visões
são momentâneas, porém cheias de gozo. Quero saber como podem se tornar
permanentes e contínuas. Sem Shiva, não vejo vida em meu redor. Fico muito feliz ao
pensar n’Ele. Diga-me, por favor, como posso conseguir que esta visão seja duradoura
para mim.

Você menciona uma visão de Shiva. As visões são sempre de um objeto. Isto
implica que existe um sujeito. O valor da visão é o mesmo de quem a vê. Isso quer
dizer que a natureza da visão está no mesmo plano que a do vidente. A aparição
implica no desaparecimento. Uma visão nunca pode ser eterna. Mas Shiva é eterno.

A visão implica em alguém que a vê. O que a vê não pode negar a existência do
Ser. Não há um só momento em que o Ser, como consciência, deixe de existir. Aquele
que vê tudo isto não pode permanecer separado da consciência. Esta consciência é o
Ser eterno e o único que existe. O que vê não pode ver-se a si mesmo. Por acaso você
duvida da sua existência porque não se pode ver com os olhos, como faz durante uma
visão? Não; assim, pois, pratyaksha (experiência direta) não quer dizer ver mas sim ser.

Ser é realizar-se. Portanto “Eu Sou o Que Sou”. “Eu Sou” é Shiva. Nada pode
existir sem Ele. Tudo tem sua existência devido a Shiva e por causa de Shiva.

Indague portanto, “Quem sou Eu?”. Aprofunde-se em seu interior e mantenha-


se como o Ser. Isso é Shiva como a existência. Não espere ter visões d’Ele em diversas
ocasiões. Que diferença há entre objetos que você vê e Shiva? Ele é tanto o objeto
quanto o sujeito. Você não pode permanecer sem Shiva porque Shiva está sempre
realizado, aqui e agora. Se você pensa que não o realizou, está equivocado. Este é o
obstáculo que o impede de realizar Shiva. Deixe este pensamento e a realização estará
ali.

P. Sim, mas como posso realizar isto o mais rápido possível?

Este é o obstáculo para a realização. Pode existir um indivíduo sem Shiva?


Mesmo agora ele é você. O tempo não tem nada a ver com isto. Se houvesse um
instante sem a realização, teria cabimento a pergunta sobre a realização. Mas você não
pode estar à parte d’Ele. Ele está sempre realizado, absolutamente realizado e nunca
não-realizado.

P. Gostaria de ter sakshatkara (realização direta) de Sri Krishna. O que posso fazer
para conseguir?

Qual é a sua idéia sobre Sri Krishna e o que você quer dizer com o termo
sakshatkara?
P. Quero dizer com Sri Krishna, o personagem que viveu em Brindavan e quero
vê-lo como o viam suas gopis (mulheres devotas).

Bom, você crê que Ele é um humano, ou alguém em forma humana, filho de tal
e tal, enquanto que Ele disse: “Eu estou no Coração de todos os seres. Eu sou o
princípio, o meio e o fim de todas as formas de vida.” Deve estar no seu interior, como
está no interior de todos. Ele é o seu ser, ou seja, o Ser do seu ser. Portanto, se você vê
a esta entidade (o Ser) ou recebe sakshatkara dela, obterá sakshatkara de Krishna. A
realização direta do Ser e a realização direta de Krishna não podem ser diferentes.
Enfim, para poder seguir o caminho que você quer, se entregue completamente a
Krishna e deixe que Ele lhe dê a saksahtkara que você quer.

P. É possível falar com Iswara (Deus) assim como fez Ramakrishna?

Se podemos falar uns com os outros, por que não falar com Iswara da mesma
maneira?

P. Então, por que isto não nos acontece da mesma maneira?

Isto requer força mental e prática de meditação.

P. Por acaso Deus se tornará evidente, se existirem estas condições que você
mencionou?

Estas manifestações são tão certas como sua própria realidade. Em outras
palavras, se você se identifica com seu corpo, no estado de vigília, vê objetos
grosseiros. Quando está no corpo sutil ou no plano mental durante o sonho, vê objetos
igualmente sutis. Com a ausência de identificações durante o sono profundo, você não
vê nada. Os objetos que se vê tem relação com o estado do que as vê. O mesmo se
aplica às visões de Deus.

Se você pratica o suficiente sobre a imagem de Deus durante a meditação, ela


aparecerá em sonhos e depois talvez apareça também durante a vigília.

P. Muitos dos visitantes aqui me dizem que tem visões ou correntes de


pensamentos de sua pessoa. Estou aqui há um mês e meio e ainda não tive a menor
experiência. Isto se deve a que não sou merecedor de sua Graça?

As visões e correntes de pensamentos se obtêm de acordo com o estado mental.


Depende dos indivíduos e não da presença universal. De todos os modos, não tem
materialidade. O que importa é a paz mental.

O que é a realização? Por acaso é ver Deus com quatro mãos, sustentando uma
concha, uma roda e um garrote? Ainda assim, se Deus aparece desta forma, como vai
dissipar a ignorância de seu discípulo? A verdade deve ser a realização eterna. A
percepção direta é a experiência sempre presente.
Deus é conhecido mesmo quando é percebido diretamente. Não quer dizer que
aparece ao devoto numa forma particular. Só a realização eterna será útil. Por acaso a
aparição de Deus com quatro mãos pode ser a realização eterna? É fenomênica e
ilusória. Deve haver alguém que a veja. Somente o que vê é real e eterno.

Deixe que Deus apareça como a luz de um milhão de sóis. Por acaso isso é
pratyakasha (experiência direta)? Para ter uma visão de Deus são precisos os olhos e a
mente. É um conhecimento indireto, enquanto que quem realmente vê tem uma
experiência direta. Só o que vê é pratyakasha.

P. As pessoas falam de Vaikuntha, Kailash, Indraloka, Chandraloka (regiões


celestiais do hinduísmo). Esses locais realmente existem?

Claro que sim. Pode estar seguro que existem. Ali também você encontrará um
swami como eu, sentado num sofá, com discípulos ao seu redor. Perguntarão algo e ele
lhes responderá. Tudo será mais ou menos igual aqui. Para que tudo isto? Se alguém vê
Chandraloka pedirá para ver Indraloka e depois de Indraloka a Vaikuntha e assim a
mente segue vagando. Onde está shanti (a paz)? Se você quer shanti, a única forma
adequada de conseguí-la é através da indagação do eu. Através desta indagação pode-se
chegar à realização do Ser. Realizando o Ser podemos ver todos estes mundos dentro
do nosso próprio ser. A fonte de tudo isso é o Ser de si mesmo e se a pessoa realiza este
Ser não poderá encontrar coisa alguma que seja diferente do Ser. Então, todas estas
perguntas não surgirão. Pode ser que exista ou não um Vaikuntha ou Kailash mas é
certo que você está aqui, ou não é assim? Como está aqui? Onde está você? Depois de
conhecer isto, poderá pensar sobre outros mundos.

P. Os siddhis que se mencionam nos Sutras de Patanjali são verdadeiros ou são


meramente um sonho?

O que Brahman ou o Ser é não valoriza estes siddhis. Patanjali mesmo diz que
são um exercício mental e que impedem a realização do Ser.

P. E o que você pode dizer dos poderes dos chamados super-homens?

Se os poderes são elevados ou superiores, de uma mente comum ou superior,


tudo existe com referência ao que tem os poderes. Busque quem é esse ser.

P. Pode-se adquirir siddhis no caminho espiritual ou eles são contrários à


liberação?

O siddhi mais elevado é a realização do Ser, pois uma vez que você tenha
realizado a verdade, deixa de ser atraído pelo caminho da ignorância.

P. Então, de que utilidade são os siddhis?


Há dois tipos de siddhis e um deles pode ser um entrave à realização do Ser.
Diz-se que, por meio de um mantra, de uma droga que possui poderes ocultos ou
através de austeridades severas ou por meio de um tipo de samadhi, pode-se adquirir
certos poderes. Mas estes mesmos não são o caminho para o autoconhecimento, pois
mesmo que os siddhis sejam adquiridos, a pessoa continua na ignorância.

P. Que outros métodos existem?

São manifestações de poder e conhecimento, totalmente naturais quando se


realiza o Ser. Estes siddhis são resultado de tapas (práticas espirituais) normais e
naturais de um homem que alcançou o Ser. Chegam por conta própria, concedidos por
Deus. Chegam de acordo com o destino de cada um mas, se vem ou não, o jnani, que
está fixo na paz suprema, não será molestado. Ele conhece o Ser e este é o siddhi
irremovível. Mas estes siddhis não aparecem se são buscados. Quando se está no estado
de realização, se pode saber o que são estes poderes.

P. Pode-se dizer que o sábio utiliza poderes ocultos para ajudar os outros a
realizarem o Ser?

A força de sua realização é muito mais poderosa do que todos os outros


poderes.

Ainda que se diga que os siddhis são diversos e diferentes, só o jnana é o siddhi
mais elevado, porque os que alcançaram os outros siddhis desejam obter jnana. Os que
alcançaram jnana não querem os outros siddhis. Aspire, portanto, somente a obter
jnana.

Mesmo que a aqueles que não os possuem, lhes pareça que todos os poderes são
maravilhosos, na verdade são apenas transitórios. É inútil buscar o que é transitório.
Todas estas maravilhas estão contidas no Ser que nunca muda.

Mendigar, com cobiça, a Deus, que é tudo, pelos diversos poderes ocultos,
quando Ele nos oferece a si mesmo plenamente, é como andar mendigando por um
prato de aveia rançosa a um filantropo generoso, que nos dá de tudo.

No coração que se prende com a chama resplandecente da devoção suprema,


todos os poderes ocultos se unirão. No entanto, um coração devoto, que se entregou
totalmente aos pés do Senhor, não terá desejo nenhum por estes siddhis. Saiba que, se
os aspirantes que estão se esforçando no caminho à liberação, colocam sua atenção nos
poderes ocultos, sua densa escravidão será reforçada mais e mais e o lustre do seu ego
se incrementará mais e mais.

Alcançar o Ser, que é perfeição completa e o brilho da liberação, só isso é


alcançar conhecimento verdadeiro, enquanto que os outros siddhis, começando por
anima (o poder de se transformar em algo do tamanho do átomo), pertencem ao poder
da ilusão da imaginação de uma mente ignorante.
As pessoas vêem coisas muito mais milagrosas que isso que chamam siddhis,
mas não se surpreendem simplesmente porque acontecem todos os dias. Quando nasce
um homem, é do mesmo tamanho que esta lâmpada, quando cresce e se torna um
grande lutador, um ator mundialmente famoso, orador, político ou sábio, as pessoas
não vêem isso como um milagre, mas ficarão consternadas e maravilhadas se se faz um
cadáver falar.

P. Estive interessado pela metafísica por mais de vinte anos, mas não tive
nenhuma experiência interessante, como muita gente afirma ter experimentado. Não
tenho poderes de clarividência, clariaudiência, etc. A única coisa que eu sinto é que
estou preso dentro deste corpo.

Assim é. A realidade é única e é o Ser. Tudo mais são fenômenos dentro do Ser,
que existem por causa do Ser. Aquele que vê, os objetos vistos e a capacidade de ver,
são todos do Ser. Pode alguém ver ou escutar deixando o Ser de lado? Que diferença há
entre poder ver ou escutar alguém de perto ou de um grau de distância? Em ambos os
casos precisamos dos órgãos da vista, do ouvido e também se requer a mente. Não se
pode prescindir deles, há uma dependência deles. Portanto, que atração pode ter a
clarividência e a clariaudiência? Além disso, em última instância, o que se adquire se
perderá. Nunca poderão ser permanentes.

P. Não tem utilidade alguma adquirir poderes tais como a telepatia?

A telepatia ou o rádio ajudam a ver ou a escutar à grande distância. Tudo é


igual, o ver e o escutar. Se escutamos de perto ou de longe, não importa para o que está
escutando. O fator fundamental é que ele escuta. Sem o que escuta ou o que vê, não
existe o ver e o escutar. Estas são funções da mente. Os poderes ocultos estão só na
mente. Não correspondem ao Ser. O que não é natural, mas sim agregado, não pode ser
permanente e não vale a pena tratar de obtê-lo.

Estes siddhis implicam em poderes estendidos. Um homem com poderes


limitados já é miserável. Devido a isto quer incrementar seus poderes para ser feliz.
Mas, pense como seria se assim acontecesse. Se, com uma percepção limitada já é
miserável, ao ter maiores poderes a miséria se incrementará proporcionalmente. Os
poderes ocultos não trazem felicidade a ninguém, mas sim os farão mais miseráveis.

Além do mais, para que servem estes poderes? O que pretende converter-se em
ocultista mostrará seus siddhis para que os outros os apreciem. Busca a admiração e, se
não a consegue, não estará contente. Deve haver outros para admirá-lo. Também pode
ser que se encontre alguém que tenha poderes maiores que os seus. Isto causará inveja
e maior infelicidade.

Qual é o poder real? Acaso é incrementar a prosperidade ou alcançar a paz?


Aquilo que dá como resultado a paz é a maior perfeição.
CAPITULO 16

PROBLEMAS E EXPERIÊNCIAS

A dor física e os mal-estares, a confusão mental, as flutuações emocionais e os


interlúdios ocasionais de uma paz com gozo, são as experiências mais frequentes que
surgem como resultado das práticas espirituais. Ditas manifestações não tem que ser
tão dramáticas como as que são mencionadas nos capítulos prévios, mas são de grande
interesse para aqueles que as tem. Usualmente são interpretadas como um marco ou
então como um obstáculo até o Ser, dependendo de qual interpretação se prefira e se
realizam grandes esforços para tratar de prolongá-las ou eliminá-las.

Sri Ramana tratava de não dar muita importância à maioria das experiências
espirituais e se usualmente as comentava, insistia em que era mais importante estar
consciente de que se está tendo a experiência do que envolver-se nelas ou analisá-las.
Às vezes dava explicações e em outras as avaliava, assinalando se eram de algum
benefício ou se eram prejudiciais à consciência do Ser. No entanto, em geral, dissuadia
qualquer interesse que se mostrasse nelas.

Quando lhe apresentavam problemas que ocorriam na meditação, dava


explicações maiores. Sempre escutava com paciência as queixas, oferecia soluções
úteis aos problemas e, se sentia que era apropriado, enfatizava que, desde o ponto de
vista do Ser, não existe nenhum problema.
P. Às vezes se tem vislumbres vívidos de uma consciência que está fora de nosso
ser normal e que parece total. Sem entrar em conceitos filosóficos, que ajuda Bhagavan
pode me oferecer para que trabalhe por obter, reter e estender ditos vislumbres? É certo
que o abhyasa (práticas espirituais) necessário para tais experiências implica que
devemos nos retirar do mundo?

Você menciona ‘do lado de fora’ para quem está fora ou para quem está dentro?
Isso só pode existir enquanto exista o sujeito e o objeto. A quem aparecem estes dois?
Ao indagar, verá que tudo isto se resolve só no sujeito. Veja quem é o sujeito e esta
indagação o levará à consciência pura, além do sujeito.

Você disse ‘ser normal’; o ser normal é a mente. A mente tem limitações. Mas a
consciência pura está além das limitações e é alcançada pela indagação do ‘eu’.

Você disse ‘obter’; o Ser está sempre ali. Você só tem que remover o véu que
obstrui a revelação do Ser.

Você disse ‘reter’; uma vez que tenha realizado o Ser, isto se torna sua
experiência direta e imediata. Nunca se perde.

Você disse ‘estender’. Não se pode estender o Ser, pois é como sempre é, sem
contração nem expansão.

Você disse ‘retiro’. O manter-se no Ser é a solidão, porque não existe coisa
alguma que esteja separada do Ser. O retiro deve ocorrer de um local para outro. Não
há um nem outro a parte do Ser. Como tudo é o Ser, o retiro é impossível e
inconcebível.

Você disse abhyasa; abhyasa é somente a prevenção das distrações da paz


inerente. Você sempre está em seu estado natural, faça ou não abhyasa. Ficar como
você é, sem perguntas ou dúvidas, é seu estado natural.

P. Há momentos nos quais as pessoas e os objetos tomam uma forma vaga, quase
transparente, como se fosse um sonho. As deixamos de observá-las de fora, ainda
estando passivamente conscientes de sua existência e, ao mesmo tempo, sem estarmos
conscientes da existência corporal. Há uma grande quietude da mente. A mente está
pronta, nestas ocasiões, para submergir-se no Ser? Ou é uma condição doentia, como
resultado da auto-hipnose? Esta condição deve ser buscada para se obter uma paz
temporária?

Existe consciência junto com a quietude mental. Isto é exatamente o que se


deve aspirar. Se você está formulando uma pergunta sobre o fato, sem se dar conta de
que é o Ser, isto quer dizer que o estado é temporário e não contínuo.

A palavra submergir só se pode utilizar se há necessidade de girar a mente para


dentro, para não ser distraído pelas tendências que dirigem a mente para fora. Nestas
ocasiões tem-se que submergir para debaixo da superfície dos pensamentos externos.
Mas, uma vez que se está na quietude profunda, que não obstrui a consciência, de que
serve ‘submergir-se’?
P. Quando medito sinto, ocasionalmente, certo gozo. Em ditas ocasiões devo
perguntar-me ‘quem é que tem a experiência do gozo’?

Se fosse realmente o gozo do Ser o que você está experimentando, ou seja, se a


mente se fundiu no Ser real, tal pergunta não deveria surgir. A própria pergunta mostra
que ainda não logrou o gozo real.Todas as dúvidas cessarão quando aquele que tem
dúvida e sua fonte tenham sido descobertos. Não tem sentido em ir removendo as
dúvidas uma por uma. Se uma se responde, surge outra e nunca haverá um fim a tudo
isto. Se, por outro lado, busca-se a fonte do que duvida, se descobrirá que o que tem
dúvida realmente não existe e todas as dúvidas desaparecerão.

P. Às vezes escuto sons internos. O que devo fazer nestas horas?

Aconteça o que acontecer, continue com a indagação do eu, perguntando


“Quem escuta estes sons?”, até que chegue à realidade.

P. Às vezes, durante a meditação, me sinto muito feliz e as lágrimas começam a


fluir. Outras vezes isto não acontece. Por quê?

O gozo é algo que está ali sempre e não algo que vai e vem. O que vai e vem é
uma criação da mente e não deve lhe causar preocupações.

P. O gozo causa um deleite físico mas, quando desaparece, me sinto deprimido e


desejo ter de novo esta experiência. Por que isto acontece?

Você admite que estava ali tanto quanto ocorreu o gozo como quando não.
Chega-se a realizar este “Eu” realmente, as experiências não o afetarão.

P. Para que haja gozo deve haver algo ao qual devemos nos aferrar, não é?

A dualidade tem que existir se você vai aferrar-se a outra coisa, mas o que
existe é somente o Ser e não a dualidade. Portanto, quem vai aferrar-se ao que? E, o
que é que vai se aferrar?

P. Quando chego à etapa de não ter pensamentos durante meu sadhana, tenho certo
prazer, mas às vezes sinto medo, um tanto vago, que não posso descrever.

Você pode experimentar qualquer coisa e não ficar satisfeito com isso. Se sente
prazer ou medo, pergunte-se quem está sentindo o prazer ou o medo e continue seu
sadhana até que o prazer e o medo tenham sido transcendidos, até que toda dualidade
cesse, até que só a realidade permaneça. Não há nada de mal que aconteça este tipo de
coisas ou que as experimente, mas você nunca deve se deter por aí. Por exemplo, nunca
se deve contentar com o prazer de laya (quietude temporária da mente) que se
experimenta quando os pensamentos se aquietam, mas sim se deve continuar até que
toda dualidade tenha se acabado.
P. Como podemos nos desfazer do medo?

O que é o medo? É só um pensamento. Se houvesse algo a parte do Ser, haveria


razão para termos medo. Quem é o que vê as coisas a parte do Ser? Primeiro surge o
ego e vê os objetos externos. Se não surgir o ego, só existe o Ser e não há nada externo.
Para que exista algo externo, quem experimenta deve estar dentro. Busque-o e se
eliminará tanto a dúvida quanto o medo. Não somente o medo, mas também todos os
pensamentos que se centralizam ao redor do ego desaparecerão junto com ele.

P. Como podemos vencer o terrível medo da morte?

Quando lhe vem este medo? Por acaso vem quando você não vê o seu corpo,
como no sono profundo? Ele o persegue só quando você está ‘desperto’ e percebe o
mundo, incluindo o seu corpo. Se você não vê tudo isto e se mantém como o Ser puro,
como no sono profundo, nenhum medo lhe pode tocar.

Se você vê que o medo está no objeto e sua perda é o que dá o medo, verá que o
objeto não é o corpo, mas a mente que funciona dentro dele. Muitas pessoas teriam
grande satisfação de desfazer-se de seu corpo, cheio de doenças e com todos os tipos de
problemas e inconvenientes que cria, se lhe assegurassem uma consciência contínua. É
a consciência, a presença e não o corpo, o que teme perder. Os homens amam a
existência porque é a consciência eterna, o que é o próprio Ser. Por que não manter-se
só com essa consciência desde já, enquanto estamos no corpo e desfazer-se de todo o
medo?

P. Quando trato de estar sem pensamentos, durmo. O que posso fazer?

Uma vez que tem dormido, não pode fazer nada neste estado. Mas enquanto
está desperto, trate de descartar todos os pensamentos. Por que se preocupa com o
sono? Mesmo isso é um pensamento. Se puder manter-se sem um só pensamento
enquanto estiver desperto, será suficiente. Quando dormir, o estado em que estiver
antes de dormir continuará ao despertar. Continuará da onde ficou ao chegar o sono.
Enquanto houver pensamentos sobre alguma atividade, também haverá sono. Os
pensamentos e o sono são a contraparte da mesma coisa.

Não devemos dormir demais ou prescindir do sono totalmente, mas devemos


fazê-lo com moderação. Para evitar dormir demais, tratemos de não ter pensamentos ou
chalana (movimentação da mente), comer só alimentos satvicos em quantidades
moderadas e não ter demasiada atividade física. Ao ir controlando mais e mais tanto o
pensamento quanto o alimento e a atividade física, na mesma medida poderemos
controlar o sono. Mas, como se explica no Gita, a moderação sempre deve ser o guia
primordial para aqueles que são buscadores. O sono é o primeiro obstáculo para todos
os sadhakas, como mencionam os textos. O segundo obstáculo é vikshepa, os objetos
sensoriais que desviam a atenção. O terceiro se diz que é kashaya, pensamentos sobre
experiências prévias com objetos sensoriais. O quarto, ananda, se diz que é um
obstáculo porque neste estado, existe um sentimento de separação da fonte de ananda, o
que leva ao que está experimentando a dizer: ‘eu estou gozando de ananda’. Ainda isto
tem que ser conquistado.
Na última etapa de samadhi se chega a ser um com ananda, com a realidade.
Neste estado a dualidade do que tem o gozo e o gozo em si cessa, dentro do oceano de
sat-chit-ananda, do Ser.

P. Pelo que foi dito, não devemos tratar de estender os estados de gozo ou êxtase?

O último obstáculo na meditação é o êxtase; sente-se grande felicidade e se quer


permanecer neste êxtase. Não se deixe cair nisto, mas passe para a etapa seguinte, que é
uma grande calma. A calma está além do êxtase e se funde com o samadhi. Com um
samadhi correto se chega a um estado de dormir em vigília. Neste estado se sabe que
sempre se é a consciência, pois a consciência é sua natureza. De fato, estamos sempre
em samadhi, mas não sabemos. Para reconhecê-lo, tudo o que é preciso fazer é remover
os obstáculos.

P. Através da poesia, música, japa, bhajans (cantos devocionais), a visão de uma


paisagem preciosa, a leitura de versos, de passagens espirituais, etc, às vezes se
experimenta um verdadeiro sentimento de realidade completa. Por acaso essa sensação
de um gozo profundo em quietude, na qual o ser pessoal não tem lugar, é o mesmo que
entrar no Coração, do qual fala Bhagavan? Poderia ser útil realizar estas atividades para
entrar em samadhi mais profundo e finalmente numa união completa do real?

Existe felicidade quando coisas agradáveis são apresentadas para a mente. É a


felicidade inerente do Ser e não existe outra felicidade. Não é alheia nem está distante.
Você está realmente submergindo-se no Ser nos momentos que considera prazerosos e
esse submergir dá como resultado o gozo já existente. Mas a associação de idéias é
responsável por atribuir esse gozo a outras coisas ou eventos, enquanto que, de fato,
esse gozo está dentro de você. Nestas ocasiões você está submergindo-se no Ser, mas
de maneira inconsciente. Se o faz conscientemente, com a convicção que provém da
experiência que você é idêntico à felicidade, que é realmente o Ser, a única realidade,
você se encontrará com a realização.

P. Estou fazendo sadhana há vinte anos e não vejo progresso. O que devo fazer?
Desde aproximadamente às cinco da manhã me concentro sobre o pensamento de que
só o Ser é real e que tudo o mais é irreal. Apesar de estar fazendo isso há vinte anos,
não posso concentrar-me por mais de 2 ou 3 minutos sem que a mente divague.

Não há nenhuma outra maneira de ter êxito além de subtrair a mente cada vez
que se externaliza, fixando-a novamente no Ser. Não há necessidade de meditação ou
de mantra, japa ou qualquer outra coisa, porque isto é nossa verdadeira natureza. A
única coisa necessária é deixar de pensar em objetos que não sejam o Ser. A meditação
não é tanto o pensar sobre o Ser mas sim o deixar de pensar no não-Ser. Quando se
deixa de pensar nos objetos externos e se previne a mente para não ir para fora, ao
voltá-la para dentro e fixá-la no Ser, só o Ser restará.

P. O que devo fazer para me sobrepor à atração destes pensamentos e desejos?


Como posso regular minha vida para chegar a controlar meus pensamentos?
Quanto mais firme você permanece no Ser, mais outros pensamentos
desaparecerão por conta própria. A mente é só um conjunto de pensamentos e o
“pensamento-eu” é a fonte de todos. Quando virmos quem é este ‘eu’ e de onde surge,
todos os pensamentos se fundirão no Ser.

A organização da vida ordinária, como, por exemplo, a determinação da hora de


levantar-se, de banhar-se, de fazer mantra, japa, observar rituais, tudo isto é para as
pessoas que não se sentem atraídos pela indagação do eu, ou seja, que não estão
capacitadas para isto. Mas para aqueles que podem praticar este método, todas as regras
e disciplinas são desnecessárias.

P. Por que não é possível voltar a mente para dentro, mesmo depois de tentar
repetidamente?

Isto se consegue gradualmente, com a prática e o desapego. A mente, que é


como uma vaca acostumada a pastar no campo do vizinho, não volta tão facilmente a
seu pesebre. Por mais que o camponês trate de tentá-la com uma boa pastagem e com
uma forragem fina, ela se recusa, da primeira vez. Com o tempo, experimenta um
pouco, mas sua tendência inata faz com que saia e ande vagando. Ao ser tratada
repetidamente por seu dono, se acostuma a estar na baia, até que um dia não escapa
mais, ainda que a soltem. Assim acontece com a mente. Uma vez que tenha encontrado
a felicidade interior, não sairá ao exterior.

P. Não há certas variações na contemplação, de acordo com as circunstâncias


externas?

Sim, há. Em alguns momentos há uma iluminação e a contemplação se facilita.


Em outros momentos, a contemplação é impossível, ainda que se faça esforços
repetidos. Isto se deve ao funcionamento das três gunas (satva, rajas e tamas).

P. Tem algum efeito tanto as atividades quanto as circunstâncias nas quais nos
encontramos?

Isto não tem influência. Só o sentido de atuar (kartritva buddhi) é o que forma o
impedimento.

P. Minha mente fica clara por dois ou três dias e logo se torna pesada durante os
próximos dois ou três, e assim vai se alternando. A que se deve isto?

É natural. É o jogo entre a pureza, a atividade e a inércia, que vão se alternando.


Não tenha remorsos sobre tamas, mas quando sattva vier, aferre-se a ela e faça o
melhor uso possível da mesma.

P. Algumas vezes um homem descobre que o corpo físico não lhe permite uma
meditação contínua. Deverá praticar o yoga para treinar o corpo para este propósito?
Isto depende dos samskaras de cada um. Um homem praticará hatha yoga para
curar-se dos males físicos, outra colocará sua fé em Deus para que o cure, um terceiro
usará sua força de vontade e um quarto estará totalmente indiferente a eles. Mas todos
continuarão com a meditação. A busca do Ser é o fator essencial e todo o resto é
meramente acessório.

P. Quando trato de me concentrar tenho, de repente, umas palpitações no coração,


acompanhadas de respirações entrecortadas, duras e rápidas. Então surgem
pensamentos e a mente se torna incontrolável. Sob condições de normalidade física,
tenho mais êxito e a respiração se detém ao chegar à concentração profunda. Por muito
tempo eu tenho a ansiedade de obter o benefício da proximidade de Sri Bhagavan para
lograr a culminação de minha meditação, por isto cheguei aqui depois de um esforço
considerável. Logo adoeci. Não podia meditar e me senti deprimido. Fiz um esforço
para concentrar a mente, ainda que me molestasse a respiração rápida e curta. Consegui
certo êxito, mas não me satisfazia. Já se aproxima o momento de partir. Sinto-me mais
e mais deprimido ao saber que tenho que abandonar este local. Aqui vejo algumas
pessoas que obtém a paz através da meditação no salão, enquanto que a mim, não sou
abençoado com essa paz. Isto produz em mim um efeito deprimente.

O próprio pensamento ‘eu não posso me concentrar’ é o obstáculo. Por que há


de surgir este pensamento?

P. Podemos nos manter sem que os pensamentos apareçam às 24 horas do dia?


Devo permanecer sem meditar?

O que é isso de ‘às 24 horas’? É um conceito. Toda pergunta que você faz
surgiu de um pensamento.

Quando surgir um pensamento, não deixe que ele o arraste. Você se dá conta do
corpo quando esquece do Ser. Mas, pode mesmo esquecer o Ser? Sendo você o Ser,
como pode esquecer-se? Deve haver dois seres para que um se esqueça do outro. É
absurdo. O Ser não se deprime nem é imperfeito. Sempre está feliz. O sentimento
contrário é só um pensamento. Deixe os pensamentos. Para que você quer meditar? Já
que você é o Ser, sempre está realizado. Apenas mantenha-se livre de todo pensamento.

Você pensa que sua saúde não lhe permite meditar. Deve investigar de onde
surge esta depressão. A origem é a identificação equivocada do corpo com o Ser. A
enfermidade não é do Ser mas sim do corpo. Mas o corpo vem e diz para você que está
possuído por dita enfermidade? Você é quem o diz. Por quê? Porque se identificou
erroneamente com o corpo. O próprio corpo é um pensamento. Seja o que você
realmente é. Não há razão para estar deprimido.

P. Suponhamos que há uma moléstia durante a meditação, como, por exemplo, se


um mosquito me pica. Devo persistir na meditação e suportar as picadas, ignorando a
interrupção ou afugentar os mosquitos e continuar com a meditação?
Faça o que lhe for mais conveniente. Você não deixará de chegar a mukti só
porque afugentou os mosquitos. O que se trata de fazer é chegar até a mente
unidirecional e obter mano-nasa (destruição da mente). Se você o consegue suportando
as picadas ou afugentando os mosquitos é assunto seu. Se você estivesse
completamente absorto na meditação, não perceberia que o estão picando. Até que não
chegue a esta etapa, por que não afugentar os mosquitos?

P. Dizem que a pessoa que medita tem outras doenças mas eu sinto dor nas
espáduas e no peito. Dizem que isto é uma prova de Deus. Bhagavan pode me dar uma
explicação e dizer se isto é verdade?

Não há um Bhagavan fora de você e, portanto, não há uma prova que lhe
imponham. O que você acredita que é uma prova ou uma nova doença resultante de
suas práticas espirituais é realmente o esforço de seus nervos e dos cinco sentidos. Até
agora, a mente estava operando pelos nadis na direção dos objetos externos e mantinha
uma conexão entre ela e os órgãos da percepção. Agora se requer a separação desta
conexão e esta ação de separar-se naturalmente requer um esforço, um estiramento ou
torcedura, que é acompanhado de dor. Alguns o chamam enfermidade e outros uma
prova de Deus. Todas as dores desaparecerão ao continuar com a meditação,
dedicando-se somente a compreender seu ser. Não há maior remédio do que esse yoga
contínuo ou união com Deus ou o Atman. A dor é inevitável ao ir-se descartando os
vásanas, que você teve por muito tempo.

P. Qual é a melhor maneira de lidar com desejos e vásanas para livrar-se deles?
Devemos satisfazê-los ou suprimi-los?

Podemos nos livrar de um desejo ao satisfazê-lo, não haverá dano se o fizermos.


Mas, geralmente, os desejos não são erradicados ao serem satisfeitos. Tentar acabar
com eles desta forma é como tentar acabar com o fogo usando um líquido inflamável.
Ao mesmo tempo, o remédio apropriado não é a supressão forçada, pois a repressão
causará, mais cedo ou mais tarde, uma reação na qual os desejos surgirão com maior
força e consequências indesejáveis. A maneira mais adequada de se livrar dos desejos é
averiguando ou investigando “Quem tem este desejo? Qual é a sua fonte?” Quando se
encontrar, o desejo será desalojado e nunca surgirá de novo e nem poderá desenvolver-
se. Pequenos desejos, como o de comer, beber e atender os chamados da natureza,
ainda que possamos classificá-los como desejos, podem ser satisfeitos sem nenhum
problema. Não implantarão vásanas sobre a mente, o que implicaria a necessidade de
novas encarnações. Essas atividades são necessárias para continuar vivendo e
eventualmente não se desenvolverão ou deixarão vásanas ou tendências. Como regra
geral, não há perigo em satisfazer um desejo, desde que esta satisfação não leve a ter
mais e mais desejos, criando vásanas na mente.

P. Quando se pratica a meditação, existem alguns sinais, no mundo das


experiências subjetivas, que indiquem que o aspirante está progredindo até a realização
do Ser?

O grau de ausência de pensamentos inúteis e o grau de concentração sobre um


só pensamento, são os sinais com os quais se pode avaliar o progresso.
SEXTA PARTE

TEORIA

“Toda discussão metafísica carece de importância, a menos que leve à


busca interior, até o Ser, para vermos a única realidade.

Todas as controvérsias sobre a criação, a natureza do universo, o propósito


de Deus, etc, não tem utilidade. Não nos levam à felicidade verdadeira. As pessoas
tratam de investigar coisas que estão fora deles, antes de investigar “Quem sou
Eu?” Só com este último método se pode obter a felicidade.”
CAPITULO 17

TEORIAS SOBRE A CRIAÇÃO E A


REALIDADE DO MUNDO

Sri Ramana tinha pouco ou quase nenhum interesse sobre o lado teórico da
espiritualidade. Sua meta principal era tratar de levar as pessoas a uma consciência do
Ser e, para conseguí-lo, insistia em que a prática era mais importante do que a
especulação. Dissuadia aos que faziam perguntas teóricas, seja mantendo-se em
silêncio ou induzindo o interrogador a buscar a fonte do ‘eu’ que estava formulando a
pergunta. Ocasionalmente aceitava falar e dava exposições detalhadas sobre diversos
aspectos da filosofia, mas se seus interrogadores insistissem demais com perguntas ou
se a conversa tendesse a um intelectualismo estéril, mudava de tema e dirigia a atenção
da audiência para assuntos mais práticos.

Muitas das conversas do tipo filosófico se centravam ao redor do tema da


natureza e origem do mundo físico, pois Sri Ramana era conhecido por ter pontos de
vista que eram totalmente diferentes dos conceitos comuns de conceber o mundo.
Assim como com outros temas, adequava suas respostas para adaptá-las aos distintos
níveis de compreensão de seus ouvintes, mas ainda assim quase todas as idéias eram
refutações radicais dos conceitos sobre a realidade física que a maioria das pessoas
tem.
Sri Ramana adotava três pontos de vista diferentes quando falava sobre a
natureza do mundo físico. Utilizava cada um deles em distintas ocasiões mas, é claro,
levando em conta seus comentários gerais sobre o tema, que só considerava as duas
primeiras teorias, que são descritas a seguir, como úteis ou verdadeiras:

1) Ajata Vada (teoria da não-causalidade). Esta é uma antiga doutrina hindu que
afirma que a criação do mundo nunca ocorreu. É uma negação total de toda causalidade
no mundo físico. Sri Ramana apoiava este ponto de vista ao dizer que o jnani
experimenta que nada chegou a existir ou a deixar de ser porque só existe o Ser, como
única realidade imutável. É um corolário desta teoria que o tempo, o espaço, a causa e
o efeito, todos componentes essenciais das teorias sobre a criação, só existem na mente
dos ajnanis e que a experiência do Ser revela sua inexistência.

Esta teoria não é uma negação da realidade do mundo mas meramente do processo
criativo do qual ele surgiu. Falando por experiência própria, Sri Ramana dizia que o
jnani é consciente de que o mundo é real, mas não como uma união de matéria e
energia interagindo entre si, mas sim como uma aparição sem causa no Ser. Dava
maiores detalhes dizendo que o substrato ou natureza verdadeira desta aparição é
idêntica à realidade do Ser e participa necessariamente desta realidade. Ou seja, para o
jnani o mundo não é real simplesmente porque aparece, mas sim somente porque a
natureza da aparição é inseparável do Ser.

O ajnani, por outro lado, não é consciente da natureza unitária e fonte do mundo e,
como consequência, sua mente constrói um mundo ilusório de objetos inter-
relacionados que é uma interpretação errônea das impressões sensoriais que está
recebendo. Sri Ramana salientava que este ponto de vista sobre o mundo não tem maior
realidade que um sonho, pois sobrepõe uma criação mental sobre a realidade do Ser.
Em resumo, dizia que as diferenças entre os pontos de vista de um jnani e um ajnani
são que o mundo não é real se é percebido pela mente como um conjunto de objetos
distintos e é real quando se experimenta diretamente como uma aparência sobre o Ser.

2) Drishti-Srishti Vada. Se os interrogantes achassem a idéia de ajata ou não-


causalidade impossível de assimilar, lhes ensinava que o mundo chega a existir
simultaneamente com a aparição do ‘pensamento-eu’ e deixa de existir quando o
‘pensamento-eu’ está ausente. Esta teoria é conhecida como drishti-srishti, ou seja, a
criação simultânea e diz que o mundo aparece para um ajnani como produto da mente
que o percebe e, quando a mente não está, deixa de existir. A teoria seria verdadeira no
sentido de que a mente cria um mundo imaginário para si mesma mas, desde o ponto de
vista do Ser, um ‘eu’ imaginário que cria um mundo imaginário não é realmente uma
criação e, portanto, a doutrina do ajata não chega a ser subvertida. Mesmo que Sri
Ramana tenha dito algumas vezes que drishti-srishti não era a verdade absoluta sobre a
criação, dizia para seus seguidores que a aceitassem como uma teoria manejável.
Justificava-se dizendo que se alguém pensa consistentemente que o mundo é uma
criação irreal da mente, ele perderá toda a atração e será mais fácil manter uma
consciência sem distração sobre o ‘pensamento-eu’.
3) Srishti-Drishti Vada (a criação gradual). Esta é a teoria comumente aceita, que
sustenta que o mundo é uma realidade objetiva, governada por leis de causa e efeito,
que emanam de um único ato da criação. Esta teoria inclui virtualmente todas as idéias
ocidentais sobre o tema, desde a ‘primeira explosão’ até a narração bíblica no Gênesis.
Sri Ramana referia-se a teorias deste tipo só quando estava conversando com pessoas
que não podiam aceitar as implicações das teorias de ajata e drishti-srishti. Mesmo
assim, usualmente salientava que as teorias da criação gradual não deveriam ser
levadas a sério, dado que só foram formuladas para satisfazer a curiosidade intelectual.

Literalmente drishti-srishti quer dizer que o mundo só existe quando é


percebido enquanto que srishti-drishti significa que o mundo existiu antes que alguém
tivesse uma percepção dele. Ainda que a primeira teoria soe como perversa, Sri
Ramana insistia em que os buscadores sérios podiam estar satisfeitos com ela, por um
lado porque é uma aproximação que chega perto da realidade e por outro, porque é a
atitude mais benéfica que se pode adotar quando existe um interesse sério em realizar o
Ser.

P. Como é que srishti-drishti (a criação) ocorreu? Alguns dizem que estava


predestinada. Outros que é um lila ou jogo do Senhor. Qual é a verdade?

Diversos relatos são dados nos textos. Mas, há tal criação? Só se existir será
necessário dar uma explicação de como ela aconteceu. Talvez não saibamos acerca
destas teorias, mas, se sabemos que existimos por que não conhecer primeiro o ‘eu’ e
depois ver se há tal criação?

P. No vedanta de Sri Sankaracharya se aceita um princípio de que o mundo foi


criado, para ajudar os principiantes, mas para os mais avançados é mencionado o
princípio da não-criação. O que você opina sobre isto?

“Não existe a dissolução nem a criação; não há ninguém atado nem ninguém
seguindo práticas espirituais. Não há alguém que deseje a liberação nem nenhum
liberado. Esta é a verdade absoluta.”

Este sloka aparece no segundo capitulo do Karika de Guadapada. Quem está


estabelecido no Ser verá isto através do seu conhecimento da realidade.

P. Não é certo que o Ser é a causa de tudo o que vemos?

O próprio Ser aparece como o mundo de diversas formas e nomes. No entanto,


o Ser não atua como a causa eficiente (nimitta karana), criando-o, sustentando-o e
destruindo-o. Não se pergunte “por que há uma confusão na qual o Ser parece não
conhecer que Ele mesmo surge como o mundo?” Se, em lugar disto você perguntasse:
“Para quem surge a idéia desta confusão?” veria que nunca existiu tal confusão no Ser.
P. Parece que você expõe a doutrina ajata, do Advaita Vedanta.
Eu não ensino só a doutrina do ajata. A mesma verdade deve ser expressa de
diferentes maneiras, segundo a capacidade do que escuta. A doutrina do ajata diz:
“Nada existe, exceto a Realidade Única. Não há nascimento nem morte, não há
projeção nem reabsorção, não há buscadores nem ataduras, nem liberação. Só existe a
Realidade Única.” Para aqueles que têm dificuldade em aceitar esta verdade e
perguntam “Como podemos ignorar a este mundo tão sólido que vemos ao nosso
redor?”, a estes é mostrada a experiência do sonho, dizendo-lhes “Tudo o que se vê
depende daquele que vê. A parte do que vê, não há nada para ser visto.” Isto se chama
drishti-srishti vada, ou seja, o argumento de que alguém cria o que surge da mente e
logo vê o que a própria mente criou. Algumas pessoas não podem aceitar isto e
continuam argumentando “A experiência do sonho é tão curta, enquanto que o mundo
sempre existe. O sonho se limitou a mim, mas o mundo é experimentado e visto por
muitas outras pessoas. Não podemos chamar a um mundo assim de inexistente.”
Quando as pessoas argumentam assim, podemos dar-lhes a teoria do srishti-drishti,
como, por exemplo: “Deus primeiro criou tal e tal coisa, de tal e tal elemento, e depois
criou outra coisa e assim seguiu,” Isso deixará este grupo satisfeito. Caso contrário,
continuarão perguntando: “Como é possível que a geografia, os mapas, a ciência, as
estrelas, os planetas e as leis que governam tudo isto e o conhecimento disto tudo sejam
uma ilusão?” Para estes é melhor dizer: “Sim, Deus criou tudo isto e você está vendo.”

P. Mas não pode ser tudo verdade. Só uma doutrina pode ser verdadeira.

Todas estas teorias servem para ensinar segundo a capacidade do estudante. Só


o Absoluto pode ser Uno.

O Vedanta diz que o cosmos surge simultaneamente com o observador e não há


um processo detalhado da criação. Isso é denominado yugapat-srishti (criação
instantânea). É similar às criações do sonho, quando aquele que está experimentando
surge ao mesmo tempo que os objetos da experiência. Quando se diz isto, algumas
pessoas não ficam satisfeitas porque estão firmemente imersas no conhecimento
objetivo. Argumentam que um efeito deve estar precedido por uma causa. Querem,
enfim, uma explicação da existência do mundo que estão vendo ao seu redor. É assim
que os srutis (escrituras) tratam de satisfazer sua curiosidade com teorias sobre a
criação. Este último método é denominado krama-srishti (criação gradual). Mas o
buscador verdadeiro pode contentar-se com yugapat-srishti.

P. Qual é o propósito da criação?

Investigue a resposta e ao final mantenha-se no supremo ou na fonte primordial


de tudo: o Ser. A investigação o levará a uma busca do Ser e acabará só quando todo o
não-Ser tenha sido descartado e o Ser tenha sido realizado em toda sua pureza e glória.

Pode haver diferentes teorias sobre a criação. Todas dirigidas ao exterior. Não
haverá limite para elas dado que o tempo e o espaço são ilimitados. No entanto, estão
só na mente. Ao ver a mente, transcenderá o tempo e o espaço e realizará o Ser.
A criação se explica cientificamente ou logicamente até que se esteja satisfeito.
Mas há realmente um fim para tudo isto? Estas explicações se chamam krama-srishti
(criação gradual). Por outro lado, drishti-srishti (criação simultânea) é yugapat-srishti.
Sem o que vê, não pode haver objetos. Busque ao que vê e a criação estará nele. Para
que olhar para fora e continuar explicando os fenômenos que nunca acabam?

P. Os Vedas contam relatos conflitantes sobre a cosmogonia. Um deles diz que o


éter foi criado primeiro, outro diz que foi a energia vital (prâna), em outro se diz que
foi a água e em outro, outra coisa mais e assim por diante. Como podemos reconciliar
isto tudo? Por acaso isto não afeta a credibilidade dos Vedas?

Diferentes sábios viram diferentes aspectos da verdade, em distintos momentos


e cada um enfatizou seu próprio ponto de vista. Por que se preocupar com os
pronunciamentos que causam este conflito? A meta principal dos Vedas é ensinar a
natureza do Atman imortal e mostrar que somos isso.

P. Isto me satisfaz.

Então tome todo o demais como artha vada (argumentos auxiliares) ou seja,
como exposições para pessoas ignorantes, que estão tentando chegar ao gênese das
coisas.

P. Formo parte da criação e portanto permaneço dependente. Não poderei


solucionar o mistério da criação até que me torne independente. Por isso pergunto a Sri
Bhagavan, poderia responder a esta questão?

Sim. Bhagavan mesmo disse: “Torne-se independente e você mesmo resolverá


o mistério.” Uma vez mais, onde está você agora, quando faz esta pergunta? Está no
mundo ou é o mundo que está em você? Precisa admitir que o mundo não é percebido
quando dorme, ainda que não possa você negar sua própria existência neste estado. O
mundo aparece quando se desperta. Então, onde ele estava? É claro que o mundo é seu
pensamento. Os pensamentos são projeções. Primeiro se cria o ‘eu’ e depois o mundo.
O mundo é criado pelo ‘eu’, que por sua vez surge do Ser. O mistério da criação do
mundo se resolverá se descobrirmos de onde se criou o ‘eu’. Portanto, sempre lhe digo,
encontre seu ser.

Por outro lado, por acaso é o mundo que vem até você e pergunta “Por que
existo? Como fui criado?” Você é que faz esta pergunta. O interrogador deve
estabelecer a relação entre ele e o mundo. Deve admitir que o mundo é somente sua
imaginação. Quem o está imaginando? Novamente, encontre o ‘eu’ e em seguida o Ser.
Ademais, todas as explicações teológicas e científicas não se harmonizam. Sua
diversidade mostra claramente que é inútil buscar explicações deste tipo. São
meramente mentais ou intelectuais e nada mais. Claro, são verdadeiras de acordo com o
ponto de vista do indivíduo. No estado de realização, não há criação. Quando se vê o
mundo, não se vê a si mesmo. Quando se vê o Ser não se vê o mundo. Veja, portanto, o
Ser e realize que não existiu criação.
P. “Brahman é real. O mundo é ilusão.” Esta é a mensagem básica de Sri
Sankaracharya. Mas outros dizem: “O mundo é uma realidade.” Qual dos dois está
certo?

Os dois estão certos. Referem-se a distintas etapas de desenvolvimento e são


mencionadas de distintos pontos de vista. O aspirante começa com a definição de que o
real sempre existe. Depois elimina o mundo como irreal, porque está sempre mudando.
O buscador finalmente chega ao Ser e ali descobre que só existe a unidade. Então, o
que se havia rechaçado anteriormente como algo irreal, se descobre que é parte da
unidade. Dado que o mundo está absorvido pela realidade, também é real. Só há
existência na realização do Ser e nada mais do que a existência.

P. Sri Bhagavan muitas vezes menciona que maya e realidade são a mesma coisa.
Como pode ser isto possível?

Sankara foi criticado por seus pontos de vista sobre maya, sem que fosse
realmente compreendido. Ele disse que:

1) Brahman é real.

2) O universo é irreal.

3) O universo é Brahman.

Ele não se deteve no segundo pronunciamento, dado que o terceiro explica os


outros dois. Significa que o universo é real se é percebido como Ser e irreal se é
percebido à parte do Ser. Maya e realidade, portanto, são o mesmo.

P. Então o mundo não é realmente ilusório?

No nível do buscador espiritual, temos que dizer que o mundo é uma ilusão.
Não há outro caminho. Quando um homem não se recorda que é Brahman, que é a
realidade e que é permanente e onipresente e crê que é um corpo no universo que, por
sua vez, está cheio de outros corpos que são transitórios e atua então sob esta ilusão,
tem que ser lembrado que o mundo é irreal e é uma ilusão. Por quê? Porque sua visão,
esquecida de seu próprio ser, está vivendo no externo, no mundo material. Não se
voltará para a introspecção a menos que se insista com ele que o universo externo e
material é irreal. Quando houver realizado seu próprio ser, saberá que nada existe a
parte do Ser e poderá ver a todo o universo como Brahman. Não existe o universo sem
o Ser. Enquanto um homem não enxergar o Ser, que é a origem de tudo, mas ver
apenas o mundo externo, tomando-o como real e permanente, teremos que lhe dizer
que todo o universo externo é uma ilusão. Não há outro caminho. Por exemplo, pegue
um periódico. Vemos o que está escrito e ninguém de dá conta do papel sobre o qual
está a escrita. O papel está ali, com ou sem algo escrito nele. Aos que vêem a escrita
como a realidade, temos que dizer-lhes que é uma ilusão, dado que está impressa sobre
o papel. O sábio vê o papel e a escrita como uma unidade. Assim acontece com
Brahman e o universo.
P. O mundo, enfim, é real quando é experimentado como o Ser e irreal quando
visto como algo separado, com nomes e formas, não é assim?

Tal como uma fogueira é obscurecida pela fumaça, a luz resplandecente da


consciência está obstruída pelo conjunto de nomes e formas, ou seja, o mundo. Quando
a mente se tornar clara, se reconhecerá que a natureza do mundo não é o das formas
ilusórias mas sim a realidade única.

Só aqueles cujas mentes estejam livres do poder malévolo de maya, ao haver


renunciado ao conhecimento do mundo, que permanecem sem apego a ele, poderão,
por meio do conhecimento da realidade suprema auto-luminosa, compreender o
verdadeiro significado da afirmação “O mundo é real.” Se o ponto de vista se
transformou na natureza do conhecimento real, o mundo dos cinco elementos,
começando com o éter (akasha) será real, sendo a realidade suprema, que é a natureza
do conhecimento.

O estado original deste mundo vazio, que nos aturde e está cheio de nomes e
formas, é o gozo, que é único, tal como a gema de um ovo de pavão real multicolor é
somente uma. Conheça esta verdade mantendo-se no estado do Ser.

P. Não posso dizer que tudo está claro para mim. É verdade que o mundo que é
visto, sentido e percebido de tantas formas por nós é algo assim como um sonho, uma
ilusão?

Não há outra alternativa para você além de aceitar o mundo como irreal, se é
que está buscando a verdade e só a verdade.

P. Por quê?

Pela simples razão de que, a menos que você deixe a idéia de que o mundo é
real, sua mente continuará atrás dele. Se você toma o aparente como real, nunca
encontrará o único real, mesmo que ele seja a única realidade. Isto se ilustra com a
história da serpente e da corda. Você pode ter confundido um pedaço de corda com
uma serpente. Enquanto imaginar que a corda é uma serpente não poderá ver a corda
como corda. A serpente que não existe se torna uma realidade para você, enquanto que
a verdadeira corda parece não existir.

P. É fácil aceitar que, em última instância, o mundo não é real. Mas é difícil ter a
convicção de que ele é irreal.

Assim é com o mundo dos sonhos, enquanto estamos sonhando. Enquanto durar
o sonho, tudo o que vemos e sentimos é uma realidade.

P. Então o mundo não é mais do que uma espécie de sonho?


O sentido de realidade que você tem quando está sonhando é falso? Pode estar
sonhando algo bastante impossível, por exemplo, que está tendo uma boa conversa com
alguém que já morreu. Por um momento poderá ter dúvidas no sonho, dizendo-se “Ele
não estava morto?” Mas sua mente se adapta a visão do sonho e é como se a pessoa
estivesse viva dentro dele. Em outras palavras, o sonho, como sonho, não deixa que a
pessoa duvide da sua realidade. O mesmo acontece durante a vigília, dado que você
não pode duvidar da realidade enquanto está desperto. Como é possível que a mente
que criou o mundo aceite que ele é irreal? Esse é o significado de fazer a comparação
entre o mundo de vigília e o mundo do sonho. Os dois são criações da mente e
enquanto a mente estiver envolvida neles não pode duvidar da sua realidade. Não pode
duvidar da realidade do mundo do sonho enquanto está sonhando e não pode duvidar
da realidade do mundo vigil enquanto está desperto. Se, pelo contrário, introvertemos a
mente, deixando o mundo completamente e nos mantemos ali, ou seja, se nos
mantivermos sempre alertas ao Ser, que é o substrato de todas as experiências,
descobriremos que o mundo do qual estamos conscientes atualmente é tão irreal quanto
o mundo no qual vivemos durante o sonho.

P. Vemos, sentimos e percebemos o mundo de várias maneiras. Estas sensações


são reações aos objetos que vemos e sentimos. Não são como criações de um sonho,
que diferem segundo a pessoa e até para a mesma pessoa. Por acaso isto não é
suficiente para comprovar a realidade objetiva do mundo?

Tudo o que você disse sobre as inconsistências do mundo do sonho só surgem


agora, quando você está desperto. Quando dormia, o sonho era todo perfeitamente
integrado. Ou seja, se você sentia sede durante o sonho, a água ilusória acalmava sua
sede ilusória. Tudo isto era real para você enquanto não se dava conta de que o sonho
mesmo era ilusório. Assim acontece com o mundo vigil. As sensações que você está
percebendo agora se coordenam para dar-lhe uma impressão de que o mundo é real.

Se, pelo contrário, o mundo fosse uma existência auto-evidente (que é o que
você quer dizer com ‘objetividade’), o que impede que o mundo se revele durante o
sonho? Você não diz que você mesmo não existiu em seu sonho.

P. Tampouco posso duvidar da existência do mundo enquanto estou dormindo.


Está existindo o tempo todo. Se não o vi durante meu sonho, outros, que não dormiam,
o viram.

Para poder dizer que você existiu durante o sono é necessário chamar alguém
para testemunhar? Por que você solicita esta evidência agora? Eles só podem dar
testemunho agora, quando você está desperto, sobre o mundo que viram quando você
dormia. Mas, a respeito da sua própria existência, há uma diferença. Ao despertar você
disse que dormiu muito bem, o que implica dizer que você estava consciente em seu
sono mais profundo, mas não tinha a mínima noção de que o mundo existia, neste
estado. Agora mesmo, por acaso o mundo vem e lhe diz “Eu sou real” ou é você quem
diz isso?
P. Claro que sou eu quem o diz, mas o digo a respeito do mundo.

Bom, mas o mundo, que você qualifica como real, está zombando de você, ao
tratar de comprovar sua realidade, enquanto você ignora a sua. Você quer manter, de
uma forma ou de outra, a premissa de que o mundo é real. Qual é a medida do real? O
único real é o que existe por si mesmo, que se revela por si mesmo, que é eterno e sem
mudanças.

Por acaso o mundo existe por si mesmo? Por acaso ele já foi visto sem a ajuda
da mente? Durante o sono profundo não há nem mente nem mundo. Quando a pessoa
desperta aparecem o mundo e a mente. O que significa esta concomitância invariável?
Você está familiarizado com o principio da lógica indutiva, que se considera o
fundamento da investigação científica. Por que não decide sobre esta questão da
realidade do mundo segundo os princípios que se aplicam na lógica?

De você mesmo, pode dizer ‘eu existo’. Ou seja, sua existência não é só uma
existência mas sim uma existência da qual é consciente. Na realidade, é uma existência
idêntica à consciência.

P. O mundo talvez não esteja consciente de si mesmo, mas ainda assim existe.

A consciência sempre implica ser a consciência de si mesmo. Se você está


realmente consciente de algo, você está realmente consciente de si mesmo. A
consciência de um ‘não-ser’ é uma contradição de termos. Não é a existência. É
meramente a existência segundo seus atributos, enquanto que a existência verdadeira,
ou seja, sat, não é um atributo, mas a substância mesma. É o vastu (realidade).
Portanto, a realidade se conhece como sat-chit (ser-consciência) e nunca como uma
excluindo a outra. O mundo não existe por si mesmo nem está consciente de sua
existência. Como podemos dizer que um mundo assim é real?

E qual é a natureza do mundo? É de uma perpétua mudança, um fluxo contínuo


e interminável. Um mundo que é dependente, que não está consciente de si e que está
mudando todo o tempo não pode ser real.

P. Por acaso os nomes e formas do mundo são reais?

Não os encontrará a parte do substrato (adhishtana). Quando tentar encontrar os


nomes e as formas só encontrará a realidade. Por isto, obtenha o conhecimento do que é
real para sempre.

P. Por que o estado de vigília parece tão real?

Vemos tantas coisas sobre a tela do cinema que não são reais… Nada há de real
ali, além da tela. Do mesmo modo, na vigília só está adhishtana. O conhecimento do
mundo é o conhecimento daquele que conhece o mundo. Os dois desaparecem durante
o sono.
P. Por que vemos tanta permanência e constância no mundo?

Por causa de idéias errôneas. Quando alguém diz que se banhou num mesmo rio
duas vezes, na realidade não diz algo correto, porque na segunda ocasião o rio não era
o mesmo que na vez anterior. Ao ver uma chama pela segunda vez, um homem diz que
vê a mesma chama, mas ela está mudando a cada instante. Assim é a vigília. As
aparências estáticas são um mero erro de percepção.

P. Onde está o erro?

No pramata (o conhecedor).

P. De onde veio o conhecedor e suas falhas de percepção?

Quem está fazendo a pergunta?

P. Eu.

Investigue quem é esse ‘eu’ e todas as dúvidas desaparecerão. Assim como um


conhecimento falso aparece num sonho, com conhecedor e conhecimento falsos,
durante a vigília ocorre o mesmo processo. Em ambos os casos, ao conhecer o “Eu”, se
chega a conhecer tudo e nada fica por ser conhecido. No sono profundo, o conhecedor,
o conhecido e o conhecer estão ausentes. Igualmente, ao conhecer o “Eu” real, também
desaparecerão. O que é visto durante a vigília acontece somente ao conhecedor e, dado
que este é irreal, de fato, nada está acontecendo jamais.

P. É a ignorância ou é chit (a consciência) a luz que dá ao ‘eu’ seu sentido de


identidade e conhecimento do mundo?

É só a luz refletida de chit que faz com que o ‘eu’ seja criado separado dos
outros. Esta luz refletida de chit também faz com que o ‘eu’ crie objetos; mas para que
este reflexo se produza, deve haver uma superfície sobre a qual o reflexo se projete.

P. Qual é esta superfície?

Ao realizar o Ser, você verá que o reflexo e a superfície sobre a qual se reflete
de fato não existem, mas sim que ambas são um e são a própria chit. Existe o mundo,
que requer uma localização para sua existência e luz para que esta existência seja
percebida. Os dois surgem simultaneamente. Por isso, tanto a existência física quanto a
percepção dependem da luz mental, que é um reflexo do Ser. Assim como as figuras do
cinema são visíveis através de um feixe de luz refletida, e só na escuridão, assim as
figuras do mundo só são percebidas pela luz do Ser refletida sobre a escuridão de
avidya (ignorância). O mundo não pode ser visto na escuridão total da ignorância,
como no sono profundo, nem na luz total do Ser, como na realização do Ser ou
samadhi.
CAPITULO 18

A REENCARNAÇÃO

A maioria das religiões elaboram teorias complicadas que pretendem explicar o


que acontece com a alma individual depois da morte do corpo. Alguns dizem que a
alma vai para o céu ou para o inferno, enquanto outros argumentam que ela reencarna
num corpo novo.

Sri Ramana ensinava que todas estas teorias estão baseadas na falsa premissa de
que o ser individual ou alma individual é real. Quando dita ilusão desaparece, toda a
estrutura das teorias sobre a existência depois da vida se torna inoperante. Desde o
ponto de vista do Ser, não há nascimento nem morte, não há céu nem inferno, nem há
reencarnação.

Como uma concessão a quem não podia assimilar as implicações da verdade,


Sri Ramana admitia, às vezes, a existência da reencarnação. Ao responder a estas
pessoas, dizia que se imaginarmos que o ser individua é real, então este ser imaginário
continuaria depois da morte e eventualmente se identificaria com um novo corpo e uma
nova vida. Dizia que todo este processo se mantinha pela tendência da mente de
identificar-se com um corpo. Uma vez que a ilusão limitante da mente seja
transcendida, a identificação com o corpo se desvanece e todas as teorias sobre a morte
e a reencarnação se tornam inaplicáveis.
P. Existe, na verdade, a reencarnação?

A reencarnação existe só enquanto existir a ignorância. Na realidade, não há


reencarnação, nem agora nem anteriormente, nem haverá no futuro. Esta é a verdade.

P. Por acaso um yogue pode ver suas vidas passadas?

Por acaso já conhece sua vida atual para querer conhecer suas vidas passadas?
Encontre o presente e o resto virá. Se com nosso conhecimento atual, tão limitado,
sofremos tanto, para que você quer carregar mais conhecimento? Para sofrer mais?

Quando se observa desde a visão do espaço supremo do Ser, se vê que a ilusão


de tomar um nascimento neste mundo falso e ilusório é somente a ilusão egotista de
identificar-se com um corpo dizendo ‘eu’. Para aqueles cujas mentes estão possuídas
pelo esquecimento do Ser, os que nascem morrerão e os que morrem nascerão. Mas
saiba que para aqueles cuja mente está morta, e que conheceram a gloriosa realidade
suprema, se manterão apenas neste estado elevado da realidade sem nascimento nem
morte. Esquecer-se do Ser, confundindo o corpo com o Ser, tomar inumeráveis
nascimentos e, ao final, conhecer e ser o Ser é como despertar de um sonho no qual
estivemos vagando por todo o mundo.

P. Quanto tempo demora um homem para voltar a nascer depois da morte?


Acontece imediatamente depois ou leva certo tempo?

Você não conhece o que era antes de ter nascido, mas quer saber o que vai ser
depois de morrer. Por acaso você sabe o que é agora mesmo?

O nascimento e a reencarnação só pertencem ao corpo. Você está identificando


o Ser com o corpo. Isto é uma identificação falsa. Você crê que o corpo nasceu e
morrerá e confunde o fenômeno do corpo com o Ser. Conheça seu Ser real e estas
perguntas não surgirão.

O nascimento e a reencarnação são mencionados só para que se investigue e se


reconheça que não há nem nascimentos nem reencarnações. Só tem relação com o
corpo e não com o Ser. Conheça o Ser e não se preocupe com estas dúvidas.

P. Por acaso não tem algum efeito as ações desta vida nas vidas futuras?

Por acaso você nasceu agora? Por que você pensa em outros nascimentos? A
verdade é que não existe nem o nascimento nem a morte. Deixe para o que nasce o
pensar sobre a morte e como livrar-se dela.

P. O que acontece a uma pessoa depois dela morrer?


Investigue o que está se passando no presente. O futuro se ocupará de si mesmo.
Não se preocupe pelo futuro. O estado antes da criação e o processo de criação são
explicados nas escrituras para que você possa conhecer o presente. Dado que você diz
haver nascido, então as escrituras dizem ‘sim’, agregando que Deus o criou.

Mas, por acaso, você vê a Deus ou a qualquer outra coisa no seu sono
profundo? Se Deus é real, por que não surge também durante seu sono? Você sempre
existe e é o mesmo agora do que era quando estava dormindo. Mas, por que há de ter
diferenças nos sentimentos ou experiências nos dois estados?

Por acaso você perguntou, durante o sono, sobre questões relacionadas com seu
nascimento? Por acaso perguntou nesse estado: “Onde irei após minha morte?” Por que
você pensa sobre tudo isto quando está desperto? Deixe que o que nasceu pense sobre
seu nascimento e num remédio para sua causa e suas últimas consequências.

P. O que acontece ao Jiva depois da morte?

A pergunta não é apropriada para um Jiva que atualmente está vivendo. Um


Jiva morto pode me perguntar, se desejar. Enquanto isso, deixe ao Jiva encarnado
resolver seu problema atual e indague quem é. Então todas suas dúvidas acabarão.

P. Desde o ponto de vista budista não há uma entidade permanente similar a esta
idéia de uma alma individual; isto é correto? É consistente com o ponto de vista hindu
de um ego que reencarna? Por acaso a alma é uma entidade permanente, que reencarna
uma e outra vez, segundo a doutrina hindu, ou é uma mera aglomeração de tendências
mentais, os samskaras?

O Ser real é permanente e não é afetado. O ego que reencarna pertence a um


plano inferior, ou seja, ao plano mental. É transcendido através da realização do Ser.

As reencarnações são brotos esporádicos, por isso os budistas os negam. O


estado atual de ignorância se deve a identificação da consciência com o corpo inerte.

P. Por acaso vamos para o céu (svarga) como resultado de nossas boas ações?

Essa é a realidade dentro da nossa existência atual. Mas se indagamos sobre


quem somos e descobrimos o Ser, de que servirá pensar no céu?

P. Devemos tratar de escapar das reencarnações?

Sim. Encontre quem nasceu e quem está tendo agora o problema da existência.
Quando está adormecido, você pensa sobre as reencarnações ou sobre sua existência
atual? Por isto mesmo, busque de onde surge o problema atual e nesse local encontrará
a solução. Descobrirá que não há nascimento, não há um problema atual e não há
infelicidade. O Ser é tudo e tudo é gozo. Agora mesmo, estamos livres das
reencarnações, por que sofrer pela miséria disto tudo?
P. Há reencarnações?

Por acaso você sabe o que é o nascimento?

P. Claro que sei, sei que existo agora, mas quero saber se existirei no futuro.

Passado!... Presente!... Futuro!...

P. Se sou hoje o resultado de ontem, o passado, amanhã, no futuro, serei resultado


de hoje, o presente , não é assim?

Não existe o passado nem o futuro. Só existe o presente. Ontem foi presente
para você, quando o experimentou, e amanhã também será presente, quando o
experimentar. Por isso, as experiências ocorrem só no presente e além das experiências
nada existe.

P. Então o passado e o futuro são meramente imaginação?

Sim, até o presente é uma ilusão, dado que o sentido do tempo é mental.
Também o espaço é mental. No final, tanto o nascimento e a reencarnação, que
acontecem no tempo e no espaço, não podem ser mais do que ilusão.

P. Qual é a causa de tanha, a sede de viver e a sede por reencarnar?

A reencarnação verdadeira acontece quando o ego morre e a pessoa nasce em


espírito. Este é o significado da crucificação de Jesus. Enquanto existir a identificação
com o corpo, haverá um corpo que está disponível, seja este ou outro, até que o sentido
do corpo desapareça ao submergir-se em sua fonte, que é o espírito ou Ser. Quando se
joga uma pedra para cima ela estará em movimento contínuo até que retorne a seu
ponto de partida, a terra, e ali descansará. A dor de cabeça nos molesta até retornarmos
ao estado de ‘pré dor de cabeça’.

A sede de viver é inerente à própria natureza da vida, que é a existência


absoluta, ou sat. Ainda que seja indestrutível por natureza, ao identificar-se com seu
instrumento destrutível, o corpo, a consciência assume uma apreensão falsa sobre sua
destrutibilidade. Por manter esta identificação falsa, trata de perpetuar a existência do
corpo e então acontece a cadeia de nascimentos. Mas, por mais que durem todos estes
corpos, ao final terminarão e se fundirão no Ser, que é o único que existe eternamente.

P. “Deixe a vida, se quiser viver”, diz a voz do silêncio, de H.P. Blavatsky.

Deixe a falsa identificação e recorde que o corpo não pode viver sem o Ser,
enquanto que o Ser pode viver sem o corpo. De fato, sempre está sem ele.
P. Surgiu uma dúvida na mente de um amigo meu. Acabo de escutar que um ser
humano pode tomar a forma de um animal em outra vida, o que contradiz a teosofia.

Deixe que o que toma um nascimento faça a pergunta. Primeiro investigue


quem nasceu e se realmente há nascimento e morte. Descobrirá que o nascimento
pertence ao ego, que é uma ilusão da mente.

P. É possível que um homem volte a nascer como uma espécie inferior de animal?

É possível, ainda que muito raramente aconteça. Não é certo que o nascimento
como ser humano seja necessariamente o mais elevado e que a pessoa deva alcançar a
realização sendo um humano. Mesmo um animal pode chegar à realização do Ser.

P. A Teosofia menciona que existem intervalos entre cinquenta e dez mil anos
entre a morte e a reencarnação. Por que acontece isto?

Não existe relação entre a forma de medição de um estado de consciência e


outro. Toda medida assim é hipotética. É verdade que alguns indivíduos tardam mais
tempo e outros menos. Mas deve-se compreender claramente que não há uma alma que
vai e vem mas sim a mente pensante do indivíduo que o faz aparecer desta forma.
Sobre qualquer plano que a mente atue, cria um corpo para si mesma. No mundo físico,
um corpo físico e no sonho um corpo de sonho, que se molha com a chuva do sonho e
se adoenta também com as doenças do sonho. Depois da morte do corpo físico, a mente
fica inativa algum tempo, como no sono profundo, quando não há nem corpo nem
mundo. Mas em pouco tempo volta a se ativar num novo mundo e num novo corpo, o
astral, até que tome outro corpo, no fenômeno que se chama ‘reencarnação’. Mas para
o jnani, o homem que realizou o Ser, cuja mente deixou de funcionar, não é afetado
pela morte. A mente do jnani já deixou de existir; caiu e nunca surgirá novamente para
causar nascimentos e mortes. A cadeia de ilusões, para ele, foi rompida para sempre.

Por tudo isto deve ficar claro que não há um nascimento real nem uma morte
real. A mente é que cria e mantém a ilusão da realidade neste processo, até que é
destruída com a realização do Ser.

P. Por acaso a morte não dissolve a individualidade da pessoa para poder


reencarnar, da mesma forma que um rio que se esvazia no oceano e perde sua
individualidade?

Mas quando as águas se evaporam e regressam como chuva nas colinas, uma
vez mais formam rios e voltam ao oceano. Do mesmo modo, os indivíduos, ao dormir,
perdem seu sentido de separação, mas regressam segundo seus samskaras, ou
tendências passadas. Acontece do mesmo modo ao morrer; a individualidade da pessoa,
com seus samskaras, não se perde.

P. Como isso é possível?


Veja você, quando cortam os ramos de uma árvore, eles voltam a crescer.
Enquanto a raiz da árvore estiver inteira, a árvore continuará crescendo. O mesmo
acontece com os samskaras, que só foram submersos no Coração depois da morte, mas
não foram destruídos: causarão a reencarnação num momento apropriado. É assim que
reencarnam os jivas.

P. Como é possível que os inumeráveis Jivas e o vasto universo que se produz


possam surgir dos sutis samskaras que estão imersos no Coração?

Assim como uma enorme árvore de baniano surge de uma pequena semente,
todos os Jivas e o universo de nomes e formas surgem dos samskaras sutis.

P. Como um Jiva se transfere de um corpo para outro?

Quando o indivíduo começa a morrer, respira fortemente. Isto quer dizer que já
não está consciente do corpo e que está morrendo. A mente imediatamente se aferra a
outro corpo (corpo astral). Vai e vem entre os dois até que a atadura ao novo corpo
tenha se concluído. Neste ínterim, ocasionalmente há respirações violentas, durante as
quais a mente regressa ao corpo que está morrendo. O estado transitório da mente é
algo assim como um sonho.

P. Qual é o intervalo entre a morte e a reencarnação?

Pode ser curto ou longo. Mas um jnani já não passa por tais mudanças; se funde
no Ser universal.

Alguns dizem que aqueles que depois de morrer passam ao caminho da luz não
reencarnam, enquanto que aqueles que tomam o caminho da escuridão encarnam
depois de haver gozado do fruto do seu carma, nos corpos sutis.

Uns dizem que se os méritos e deméritos são iguais, voltam a nascer aqui. Se o
mérito é maior ou mais forte que o demérito, os corpos sutis vão para o céu e ali se
renascerá. Se os deméritos são maiores, vão ao inferno e ali renascem.

De um yogabrashsta (alguém que saiu do caminho do yoga) se diz que terá o


mesmo destino. Tudo isto é descrito nos sastras. Mas a verdade é que não há
nascimento nem morte. Permanecemos sendo o que realmente somos. Esta é a única
verdade.

P. Tudo isto me parece muito confuso. É verdade que, em última instância, tanto
os nascimentos como as encarnações são irreais?

Se há um nascimento deve haver não só uma reencarnação mas sim toda uma
sucessão de nascimentos. Por que e como você obteve este nascimento? Pela mesma
razão e da mesma maneira, você obterá as reencarnações sucessivas.
Mas se você pergunta quem tem o nascimento e se o nascimento e a morte são
para você ou para alguém distinto a você, então realizará a verdade. Esta acabará com
todo o carma e liberará de todos os nascimentos. Os textos descrevem como todo o
sanchita carma (carma acumulado em encarnações anteriores), que tomaria um sem
número de nascimentos para ser destruído, pode ser queimado com uma só chispa de
jnana, tal como uma montanha de pólvora explodiria com uma só chispa. O ego é a
causa de todo este mundo e de todas as ciências cujas investigações são tão vastas que
não se podem descrever, mas, se o ego se dissolve, através da indagação, tudo mais se
derruba imediatamente e só fica a realidade do Ser.

P. Quer dizer que eu nunca nasci realmente?

Sim, agora você está pensando que é o corpo e, portanto, confunde a si mesmo
com o nascimento e a morte. Mas você não é o corpo e não há nascimento nem morte.

P. Então você não apóia a teoria da reencarnação?

Não. Por outro lado, quero quitar sua confusão de que você irá reencarnar. Você
é o que pensa que vai reencarnar. Veja para quem surge a pergunta. A menos que você
encontre o interrogador, todas estas perguntas nunca poderão ser respondidas.
CAPITULO 19

A NATUREZA DE DEUS

A primeira vista, parece que os pronunciamentos de Sri Ramana sobre Deus


estão cheios de contradições; numa ocasião dizia que Deus nunca faz nada e em outra
que nada acontece a não ser por sua vontade. Às vezes dizia que Deus é só uma idéia
na mente e em outras afirmava que Deus é a única realidade existente.

Estes pronunciamentos contraditórios refletem, em grande parte, os diferentes


níveis de compreensão de seus interrogadores. Para os que adoravam um Deus pessoal,
geralmente oferecia uma explicação antropomórfica. Dizia-lhes que Deus criou o
mundo, que o sustenta por seu poder divino, que cuida de todas as necessidades de
todos os seres e que nada ocorre contra sua vontade. Por outro lado, para os que não
tinham interesse nesta teoria, dizia que todas estas idéias sobre Deus e Seu poder eram
criações mentais que somente obscureciam a experiência verdadeira de Deus, a qual é
inerente a todas as pessoas.

No nível mais elevado de seus ensinamentos, os termos “Deus” e o “Ser” são


sinônimos da realidade imanente, que se descobre por meio da realização do Ser. Por
isto, a realização do Ser é a realização de Deus; não é uma experiência de Deus, mas
sim uma compreensão de que somos realmente Deus. Falando desde este ponto de
vista, os comentários de Sri Ramana sobre Deus podem ser resumidos da seguinte
maneira:
1) Ele é imanente e sem forma; é existência pura e consciência pura.

2) A manifestação aparece n’Ele através de Seu poder, mas Ele não cria. Deus nunca
cria, só existe. Não tem desejo nem vontade.

3) A individualidade é a ilusão de que não somos idênticos a Ele; quando a ilusão


desaparece, o que resta é somente Deus.

No nível inferior, Sri Ramana mencionava à Iswara, o nome hindu para o Deus
pessoal supremo. Dizia que Iswara existe como uma entidade real, enquanto a pessoa
imagina que é uma pessoa individual. Quando persiste a individualidade, há um Deus
que supervisiona as atividades do mundo; na ausência da individualidade, Iswara não
existe.

À parte de Iswara, o Hinduísmo tem muitas deidades que se parecem com os


deuses e demônios da mitologia nórdica e grega. Estas deidades são um aspecto central
do Hinduísmo popular e são aceitas como realidades na grande maioria dos casos. Sri
Ramana surpreendia muita gente ao dizer que tais seres eram tão reais quanto os
indivíduos que crêem neles. No entanto, admitia que, depois da realização, lhes
acontecia o mesmo que a Iswara, mas antes disso, parece que os via como se fossem
oficiais de alta patente numa hierarquia cosmológica que atende os assuntos do mundo.

P. Descreve-se a Deus como manifesto e não-manifesto. Como o primeiro, dizem


que inclui o mundo como parte do seu ser. Se é assim nós, como parte desse mundo,
deveríamos conhecê-lo facilmente em sua forma manifesta.

Conheça a si mesmo antes de tentar encontrar a natureza de Deus e do mundo.

P. Conhecer a mim mesmo implica em conhecer a Deus?

Sim, Deus está dentro de você.

P. Então, o que impede que eu conheça a mim mesmo ou a Deus?

Sua mente, que anda divagando e seus atos perversos.

P. Por acaso Deus é algo pessoal?

Sim, sempre é a primeira pessoa, o “Eu” que está sempre ali, diante de você.
Pelo fato de você dar importância a assuntos mundanos, parece que Deus se retirou a
um segundo plano. Se você deixar tudo e buscar somente a Ele, Ele ficará só, como
“Eu”, o Ser.

P. Deus está a parte do Ser?


O Ser é Deus. “Eu Sou” é Deus. A pergunta surge porque agora você está se
identificando com o ego. Não surgiria se você se aferrasse ao Ser verdadeiro. O Ser real
não quer nem pode perguntar algo. Se Deus está a parte do Ser, deve ser um Deus sem
ser, o que é absurdo. Deus, que parece não existir, é o único que existe, enquanto que o
indivíduo, que parece que existe, nunca existiu. Os sábios dizem que o estado no qual
conhecemos que não existimos (sunya) é o conhecimento supremo e glorioso.

Agora você pensa que é um indivíduo, que há universo e que Deus está além do
cosmos. Portanto, há uma idéia de que existe separação. Esta idéia deve desaparecer
pois Deus não está separado nem de você nem do cosmos. O Gita diz:

“Eu sou o Ser, o Senhor dos Sonhos


Como uma relíquia no Coração de toda criatura.
O surgimento e culminação de cada forma.
Eu sou também seu destino final”
(Bhagavad Gita, X, 20)

Deus, portanto, não está somente no Coração de todo mundo, mas é também o
apoio de tudo, seu lugar de existência e sua finalidade. Tudo procede d’Ele, tem sua
existência n’Ele e se resolve n’Ele. Por isto, não está separado de coisa alguma.

P. Como podemos entender a seguinte passagem do Gita: “Todo este cosmos


forma uma partícula de mim.”

Isto não quer dizer que uma partícula se separa d’Ele e cria o universo. Seu
poder (sakti) está atuando. Como resultado de uma fase de tal atividade, o cosmos se
manifestou. Do mesmo modo a declaração no Purusha Sukta que “todos os seres
formam um de meus pés”, não quer dizer que Brahman esteja formado de diversas
partes.

P. Entendo isso, sei que Brahman é indivisível.

O fato é que Brahman é tudo e é indivisível. Mas o homem não está consciente
disso. Deve chegar a conhecê-lo. O conhecimento significa vencer os obstáculos que
impedem a revelação da verdade eterna: que o Ser é o mesmo que Brahman. Os
obstáculos em conjunto formam a idéia de separação de você como indivíduo.

P. Por acaso Deus é o mesmo que o Ser?

O Ser é conhecido por todo mundo, mas não claramente. Você existe sempre. O
existir de cada um é o Ser. “Eu Sou” é o nome de Deus. De todas as definições de
Deus, nenhuma é tão acertada quanto a que é dada no pronunciamento bíblico: “Eu sou
o que sou”, em Exodo3. Há outros pronunciamentos tais como Brahmanivathan
(Brahman Eu Sou), aham Brahmasmi (Eu Sou Brahman) e soham (eu sou Ele). Mas
nenhum é tão direto quanto o nome de Jeovah, que quer dizer “Eu Sou”. A existência
absoluta é a única coisa que existe. É o Ser, é Deus. Ao conhecer o Ser, conhecemos a
Deus. De fato, Deus não é outra coisa além do Ser.
P. Deus parece conhecer-se com diferentes nomes. Pode-se justificar algum deles?

Dos milhares de nomes que existem para Deus, nenhum realmente lhe é
apropriado, porque está no Coração, sem pensamentos, por isto, real, contundente e
belo é “Eu” ou o “Eu Sou” como o mais apropriado. De todos os nomes pelos quais
Deus é conhecido, só o nome de Deus na forma “Eu-Eu” ressoará triunfalmente quando
o ego for destruído, surgindo como a palavra suprema no silêncio (mouna-para-vak),
no espaço do Coração daqueles que colocaram sua atenção no Ser. Também se a pessoa
medita constantemente sobre o nome “Eu-Eu”, com a atenção centrada sobre a
sensação de ‘eu’, será conduzida e se fundirá na fonte de onde surgem os pensamentos,
destruindo o ego, o embrião que está unido ao corpo.

P. Que relação há entre Deus e o mundo? É Ele seu criador e quem o sustenta?

Os seres conscientes e inconscientes de todo tipo realizam ações com a mera


presença do sol, que sobe ao céu sem volição. Do mesmo modo, tudo é realizado pelo
Senhor, sem vontade ou desejo de Sua parte. Na mera presença do sol, a lente de
aumento produz fogo, o broto de lótus floresce, o lírio aquático se fecha e todas as
numerosas criaturas realizam suas ações e descansam.

A ordem da grande multidão de mundos se mantém com a mera presença de


Deus, tal como a agulha se move na presença de um imã.

Na mera presença de Deus, que não tem a menor volição, os seres viventes, que
estão realizando inumeráveis atividades, depois de passar por diversos caminhos, aos
quais foram conduzidos de acordo com o curso determinado por seus próprios carmas,
finalmente descobrem a inutilidade da ação, regressam ao Ser e conseguem a liberação.

As ações dos seres viventes certamente não afetam a Deus, que transcende a
mente, da mesma maneira que as atividades do mundo não afetam o sol; como as
qualidades dos quatro elementos essenciais (terra, água, fogo e ar) não afetam o espaço
ilimitado.

P. Por que samsara, a criação e manifestação definida, está tão cheia de miséria e
maldade?

É a vontade de Deus.

P. Por que Ele tem esta vontade?

Isto é incompreensível. Nenhum motivo pode ser atribuído a esse poder,


nenhum desejo, nenhuma finalidade pode ser atribuída a este Ser único, infinito, pleno
de sabedoria e todo-poderoso. A Deus não afetam as atividades que tem lugar em Sua
presença. Compare isto ao sol e as atividades do mundo. Não tem sentido atribuir
responsabilidade ao Uno antes que se multiplique.
P. Tudo isto acontece na presença de Deus?

Não é possível que se faça algo contrário à vontade de Deus, que tem a
capacidade para fazer tudo. Portanto, ficar quieto aos pés de Deus, tendo deixado todas
as ansiedades da mente malvada, defeituosa e enganosa, é o melhor caminho.

P. Há um ser separado, Iswara, que dá recompensas pela virtude e castigo pelos


pecados? Há um Deus?

Sim.

P. Como Ele é?

Iswara tem individualidade de mente e corpo, os quais são imortais, mas


também tem consciência transcendental e liberação interior.

Iswara, o Deus pessoal, o criador supremo do universo, existe sim. Mas isto é
verdade apenas do ponto de vista relativo, daqueles que não realizaram a verdade.,
aqueles que crêem na realidade das almas individuais. Desde o ponto de vista absoluto,
o sábio não pode aceitar a existência de outro que não seja o Ser impessoal, único e
sem forma.

Iswara tem um corpo físico, uma forma e um nome, mas não é tão grosseiro
quanto este corpo físico. Pode ser visto nas visões dos devotos, segundo a forma criada
por eles. As formas e nomes de Deus são muitas e diferem com cada religião. Sua
essência é a mesma que a nossa, já que o Ser verdadeiro é único e sem forma. Por isto,
as formas que assume são só criações ou aparências.

Iswara é imanente em cada pessoa e em cada objeto através do universo. A


totalidade de todas as coisas e todos os seres constituem a Deus. Há um poder do qual
uma pequena porção se converteu em todo este universo e o resto está em reserva.
Tanto o poder em reserva quanto o poder manifesto e o mundo material juntos
constituem a Iswara.

P. Em última instância Iswara não é real.

A existência de Iswara segue nosso conceito de Iswara. Devemos primeiro


conhecer a quem pertence este conceito. O conceito é de acordo com quem o concebe.
Encontre quem é você e os demais problemas se solucionarão por conta própria.

Iswara, Deus, o criador, o Deus pessoal, é a última das formas irreais que
desaparece. Só o Ser absoluto é real. Não somente o mundo, portanto, e nem somente o
ego, mas também o Deus pessoal são irreais. Devemos encontrar o absoluto, nada
menos que isso.
P. Você disse que mesmo o Deus mais elevado é somente uma idéia. Você quer
dizer com isto que não existe um Deus?

Não, há sim um Iswara.

P. Existe num lugar específico ou com alguma forma?

Se o indivíduo tem forma, mesmo o Ser, a fonte que é o Senhor, aparecerá com
forma. Se não se tem forma, pelo que não pode haver conhecimento de outras coisas,
será correto dizer que Deus tem forma?

Deus toma qualquer forma que o devoto imaginar, através de um pensamento


repetitivo durante a meditação prolongada. Ainda que assuma diversos nomes, só a
consciência real, sem forma, é Deus.

Quanto à sua localização, Deus não reside em lugar algum que não seja o
Coração. Deve-se à ilusão, causada pelo ego (a idéia de ‘eu sou o corpo’) que se
concebe que o reino de Deus está em outro lugar. Esteja você seguro de que o Coração
é o reino de Deus.

Saiba que você é a luz radiante e perfeita, que não só logra que exista o reino de
Deus mas que também permite que se veja como um céu maravilhoso. Saber isto é
jnana. Por isto o reino de Deus está dentro de você. O Shivaloka (reino de Deus)
verdadeiro, raras vezes alcançado, que brilha pela luz do Ser, é o espaço ilimitado de
turiyatita, que se ilumina de repente, com todo seu resplendor, dentro do Coração do
aspirante mais maduro, durante o estado de absorção completa da mente, como se fosse
uma nova e desconhecida experiência.

P. Dizem que o Jiva está sujeito aos efeitos malévolos da ilusão, tais como a visão
e conhecimentos limitados, enquanto que Iswara tem uma visão e um conhecimento
completos. Também se diz que o Jiva e Iswara se tornam um só se o indivíduo se
desfaz de sua visão e conhecimentos limitados. Iswara não deveria também descartar
suas características particulares, tais como a visão e o conhecimento completo?
Também são uma ilusão, não é mesmo?

É essa sua dúvida? Primeiro deixe você sua visão limitada e depois haverá
tempo suficiente para pensar na visão e no conhecimento completo de Iswara. Primeiro
desfaça-se de seu conhecimento limitado. Por que você se preocupa com Iswara? Ele
pode cuidar de si mesmo. Por acaso não é mais capaz do que nós? Para que preocupar-
se se ele possui visão e conhecimento total ou não? Seria uma grande coisa se
pudéssemos cuidar de nós mesmos.

P. Mas por acaso Deus sabe de tudo?

Os Vedas declaram que Deus é onisciente somente para aqueles que são pessoas
de pouco conhecimento. Mas se chegamos a conhecê-lo como Ele realmente é,
veremos que Deus não sabe nada, pois sua natureza é a de uma unidade contínua, a
parte da qual não existe algo que possa ser conhecido.
P. Por que há relatos nas religiões sobre deuses, o céu, o inferno, etc?

Só para que as pessoas descubram que eles estão na mesma altura que o mundo
está e que só o Ser é real. As religiões variam de acordo com o ponto de vista do
buscador.

P. Existe Vishnú, Shiva, etc?

As almas humanas individuais não são os únicos seres que existem.

P. E as suas regiões sagradas como Kailasa ou Vaikuntha, existem também?

São tão reais quanto você com este corpo.

P. Possuem uma existência fenomenológica, como meu corpo? Ou são uma


ficção?

Sim, existem.

P. Se é assim, devem estar em algum lugar. Onde?

As pessoas que os tem visto dizem que há um local. Por isso, temos que aceitar
esta descrição.

P. Onde existem?

Dentro de você.

P. Então são só uma idéia na qual acredito e controlo?

Assim é.

P. Mas eu posso criar uma ficção, como por exemplo o chifre de um coelho, ou
meias verdades, como uma imagem, mas há dados que não tem a ver com a
imaginação. Por acaso existem os deuses tais como Iswara ou Shiva?

Sim, existem.

P. Por acaso Deus está sujeito ao pralaya (dissolução cósmica)?

Por quê? O homem que se dá conta do Ser transcende a dissolução cósmica e se


libera. Por que não há de ser assim com Iswara, que é muito mais sábio e poderoso?
P. Existem igualmente os devas (Anjos) e os pisachas (demônios)?

Sim.

P. E estas deidades, que relação tem com o Ser?

Shiva, Ganapati e outras deidades como Brahma, existem desde o ponto de vista
humano ou seja, do ponto de vista de quem se considera um ser pessoal real, eles
também existirão. Assim como um governo tem altos oficiais executivos que
governam, assim é com o Criador. Mas desde o ponto de vista do Ser, todos os deuses
são ilusórios e também devem fundir-se na única realidade.

P. Quando rezo a Deus com nome e forma, duvido e penso que não é correto fazê-
lo assim, pois estou limitando isto que não tem limites e dando forma ao que não tem
forma. Por outro lado, sinto que não sou constante ao tratar de adorar a Deus sem
forma.

Enquanto você tiver um nome, que mal haverá em adorar um Deus com nome e
forma? Adore a Deus com nome e forma até que saiba quem realmente você é.

P. Vejo que é difícil acredita num Deus pessoal. De fato, acho isto impossível.
Mas posso crer num Deus impessoal, numa força divina que governa e cria o mundo.
Seria de grande benefício também em meu trabalho de curar aos outros, que esta fé
fosse reforçada. Posso saber como incrementar esta fé?

A fé corresponde a coisas que não conhecemos, mas o Ser é auto-evidente. Até


o maior egoísta não deixa de reconhecer sua própria existência, ou seja, não pode negar
o Ser. Você pode chamar a realidade última de qualquer nome que goste e dizer que lhe
tem fé ou amor, mas haverá alguém que não tenha fé em sua própria existência ou amor
a si mesmo? É assim porque o amor e a fé são nossa natureza real.

P. Devo abster-me de ter uma idéia sobre Deus?

Enquanto houver outros pensamentos no coração, haverá pensamentos sobre


Deus, concebidos na mente. A destruição também deste pensamento sobre Deus,
devido à destruição de todos os outros pensamentos, é o estado livre de pensamentos,
que é o verdadeiro pensamento de Deus.
CAPITULO 20

SOFRIMENTO E MORALIDADE

Os paradoxos inerentes às teorias teístas tem consternado as mentes dos


filósofos e teólogos ocidentais durante séculos. Por exemplo, se Deus é perfeito, por
que existe o mal no mundo? Por que um Deus onipotente deixa que exista o
sofrimento, se tem o poder de o abolir com apenas um ato?

Sri Ramana evitava tais enigmas, dizendo que o mundo, Deus e o indivíduo que
estão sofrendo são criações da mente.

“Todas as religiões postulam três princípios: o mundo, a alma e Deus. Dizer que
um só princípio aparece como os três princípios ou que os três princípios sempre são
três princípios, só é possível enquanto exista o ego.”

Em lugar de atribuir o sofrimento às consequências de atos malévolos ou à


vontade de Deus, Sri Ramana ensinava que o sofrimento surge apenas porque
imaginamos que somos indivíduos separados, atuando um com o outro e com o mundo.
Dizia que os atos malévolos incrementam o sofrimento e nós deveríamos nos abster dos
mesmos, mas eles não são a causa original do sofrimento. A mente é quem cria a ilusão
de separação e a mesma mente sofre as consequências de suas invenções ilusórias. O
sofrimento é o resultado e a consequência da mente discriminadora. Quando esta for
eliminada, se verá que o sofrimento não existe.
Muitos interrogantes podiam aceitar esta idéia a nível individual, mas achavam
muito difícil aceitar que todo o sofrimento do mundo só existe na mente de quem o está
percebendo. Sri Ramana era firme neste ponto e repetia que se realizarmos o Ser,
saberemos que todo o sofrimento, e não só o nosso, realmente não existe. Levando esta
idéia à sua conclusão final, Sri Ramana afirmava que a maneira mais efetiva de
eliminar o sofrimento de outras pessoas era através da realização do Ser.

Este ponto de vista não deve ser interpretado como se Sri Ramana tivesse
aconselhado a seus seguidores a ignorar o sofrimento de outras pessoas. Desde o ponto
de vista mais prático, dizia que, antes da realização do Ser, deveríamos aceitar a
realidade do sofrimento dos outros e aliviá-los quando os encontrássemos no caminho.
No entanto, enfatizava que estes remédios parciais só seriam de benefício espiritual se
fossem realizados sem o sentimento de “outras pessoas estão pior que eu e eu as estou
ajudando” e também sem a sensação de “eu estou realizando estas ações.”

Normalmente, a pergunta sobre o que a pessoa deve ou não deve fazer no


mundo era de pouco interesse para Sri Ramana. Ele mantinha o ponto de vista de que
todas as idéias convencionais sobre o bem e o mal eram juízos sobre certos valores
feitos pela mente e que quando a mente deixa de existir, as idéias sobre o bem e o mal
também deixam de existir. Por isso, raras vezes falava sobre os cânones convencionais
da moralidade e quando era forçado a oferecer uma opinião acerca deles, usualmente se
esquivava, dizendo que a única ação correta era descobrir o Ser.

P. Qual é, para você, a causa do sofrimento do mundo? E como podemos ajudar


para mudá-lo, individual ou coletivamente?

Realize o Ser. É tudo o que é necessário.

P. Nesta vida tão cheia de limitações, será possível realizar o gozo do Ser?

Esse gozo do Ser está sempre com você e você o encontrará por si mesmo, se o
buscar com esmero. A causa de sua miséria não é a vida externa, mas sim você como
ego. Você se impõe limitações e depois faz esforços sem sentido para transcendê-las.
Toda infelicidade parte do ego, com ele chegam todos os problemas. De que serve
dizer que a vida externa é a causa da miséria se ela está realmente dentro de você? Que
tipo de felicidade você pode obter de coisas externas a você mesmo? Se chega a obtê-
las, quanto tempo durarão? Se você nega o ego e o queima ao ignorá-lo, será livre. Se o
aceita, ele lhe impõe limitações e o lança numa conquista inútil, para tratar de superá-
las. Ser o Ser que você realmente é, é a única forma de realizar o gozo que sempre está
com você.

P. Se realmente não há nem escravidão nem liberação, qual é a razão pela qual
experimentamos momentos de felicidade e de sofrimento?

Eles parecem reais só quando a pessoa se separa de sua verdadeira natureza. Na


realidade, não existem.
P. O mundo foi criado para que houvesse felicidade ou miséria?

A criação não é boa nem má; é o que é. Só a mente humana sobrepõe todo tipo
de construções, vendo-as desde sua própria perspectiva e interpretando-as de acordo
com seus próprios interesses. Uma mulher é só uma mulher, mas uma mente a chama
de ‘mãe’, outra de ‘irmã’, outra de ‘tia’ e assim por diante. Os homens amam as
mulheres, odeiam as serpentes e são indiferentes à grama e às pedras ao lado do
caminho. Estes juízos sobre valores são a causa de toda a miséria do mundo. A criação
é como uma árvore: os pássaros chegam para comer seu fruto ou para abrigar-se em
seus ramos, os homens pegam sombra debaixo mas alguns chegam a suicidar-se neles.
No entanto a árvore continua sua vida tranquilamente, sem preocupar-se e inconsciente
de todos os usos que está tendo. A mente humana é a que cria dificuldades e depois
pede ajuda. Por acaso Deus é tão parcial a ponto de dar paz a uma pessoa e dor à outra?
Na criação há lugar para tudo, mas o homem se recusa a ver o bom, o saudável, o belo.
Ao contrário, segue queixando-se, como alguém com fome que pára ao lado de um
saboroso prato e, em vez de pegá-lo com as mãos e satisfazer sua fome, continua
lamentando-se: de quem é a culpa, de Deus ou do homem?

P. Se Deus é o todo, por que o indivíduo sofre à raiz dos seus atos? Não é Ele o
causador de que o indivíduo realize as ações e as obras pelas quais sofre?

Aquele que pensa que é o ator também é o que sofre.

P. Mas as ações são ordenadas por Deus e o indivíduo é só o instrumento.

Esta lógica só se aplica quando a pessoa está sofrendo, não quando está feliz. Se
a convicção está sempre presente, tampouco haverá sofrimento.

P. Quando o sofrimento acabará?

Quando se perder a individualidade. Se tanto os atos bons quanto os maus são


obra d’Ele, por que você acredita que só o prazer e o sofrimento são seus? O que faz o
bem ou o mal também goza do prazer e sofre na dor. Deixe-o assim e não sobreponha o
sofrimento sobre você mesmo.

P. Como você pode dizer que não existe o sofrimento? Eu o vejo em todas as
partes.

Nossa realidade, que brilha dentro de todo mundo como o Coração, é o oceano
de gozo singular. Por isto, como o azul do céu que é irreal, a miséria, na realidade, não
existe e é mera imaginação. Dado que a realidade de si mesmo é o sol da jnana, que
não pode ser alcançado pela obscura ilusão da ignorância, este mesmo brilha como a
felicidade; a miséria é somente uma ilusão causada pelo sentido irreal da
individualidade. Na verdade, ninguém experimentou nenhuma coisa além desta ilusão.
Se a pessoa vê com cuidado o ser de si mesma, que é gozo, não haverá miséria alguma
em nossas vidas. Sofremos pela idéia de que o corpo, que nunca é o mesmo, é o ‘eu’.
Todo sofrimento se baseia nesta ilusão.
P. Eu sofro tanto na mente quanto no corpo. Desde o dia em que nasci nunca fui
feliz. Minha mãe também sofreu desde o dia em que me concebeu, segundo me
contam. Por que sofro assim? Não pequei nesta vida. Deve-se, por acaso, aos pecados
de minhas vidas anteriores?

Você diz que sofre de corpo e mente. Mas por acaso eles fazem perguntas?
Quem é o que pergunta? Não é o que está além tanto da mente quanto do corpo? Você
diz que sofre nesta vida e pergunta se a causa está numa vida prévia. Se fosse assim,
então esta vida passada seria causada por uma vida anterior e assim sucessivamente.
Com efeito, assim como no caso da semente e do broto, não há fim na série causal.
Temos que dizer que todas as vidas têm como causa primária a ignorância. Essa mesma
ignorância está presente neste momento, formulando a pergunta. Essa ignorância deve
ser removida por jnana.

Por que e para quem veio este sofrimento? Se indagar assim, verá que o ‘Eu’
está separado da mente e do corpo, que o Ser é a única existência eterna e que é o
prazer eterno. Isso é jnana.

P. Sofro constantemente de preocupações. Não tenho paz, ainda que não necessito
de nada para ser feliz.

As preocupações lhe afetam no seu sonho?

P. Não, não o fazem.

É você o mesmo homem agora, ou é alguém diferente do que dormiu sem


preocupações?

P. Sim, sou a mesma pessoa.

Então seguramente essas preocupações não lhe pertencem. É sua culpa se a


mente assume que são suas.

P. Quando sofremos penas nos queixamos e apelamos a você, ou por carta ou


mentalmente, através da oração. Você não se comove e sente piedade de que sua
criatura esteja sofrendo desta maneira?

Se sentisse isso eu não seria um jnani.

P. Vemos dor em todo mundo. Um homem tem fome. É uma realidade física e,
portanto, é muito real para ele. Temos que dizer que é tudo um sonho e não nos
comovermos diante do fato?

Desde o ponto de vista de jnana ou da realidade, a dor da qual você fala é


claramente um sonho, tal como o mundo onde esta dor é só uma parte infinitesimal.
Durante o sonho você também sente fome. Também vê outros sofrendo de
fome. Come e, movido pela piedade, dá de comer a todos os que vê que estão sofrendo
de fome. Enquanto durar o sonho, todas as dores da fome são reais, assim como agora
vê a dor do mundo. Só quando desperta percebe que a dor durante o sonho era irreal.
Talvez tenha comido muito e dormido em seguida. Sonha que trabalha duramente
durante todo o dia, no sol forte, se casa, sente fome e quer comer o maximo que puder.
Então desperta e sente que tem o estômago cheio e que não se moveu da cama. Mas
tudo isto não quer dizer que enquanto esteve sonhando atuou como se a fome do sonho
fosse irreal. A fome do sonho tem que ser acalmada com comida de dentro do sonho.
Aos seres que encontrou no sonho, teve que dar comida de dentro do sonho. Nunca
pode misturar os dois estados, o da vigília e o sonho. Até que chegue ao estado de
jnana, pelo qual despertará deste maya, deve prestar serviço à sociedade, aliviando o
sofrimento quando o encontrar. Mas mesmo neste caso deve fazê-lo sem ahamkara, ou
seja, sem o sentido de ‘sou eu que estou fazendo’. Deve sentir: ‘eu sou o instrumento
do Senhor’. Do mesmo modo não devemos nos orgulhar e pensar ‘estou ajudando um
homem que está pior que eu. Ele necessita da minha ajuda e eu estou em posição de
ajudá-lo. Sou superior a ele, ele é inferior.’ Você deve ajudar o homem como uma
forma de adoração a Deus, que está presente nesse homem. Todo serviço é para você, o
Ser, não para outra pessoa. Não está ajudando a outros, mas somente a seu ser.

P. No caso de pessoas que não estão preparadas para uma meditação longa, será
suficiente se elas se dedicam a fazer o bem a outros?

Sim, isso estará bem. A idéia do bem estará em seus corações. Isso é suficiente.
O bem, Deus, o amor; tudo isso é o mesmo. Se a pessoa pensa nisto continuamente,
será suficiente. Toda meditação tem o propósito de manter afastados todos os outros
pensamentos.

P. Então devemos aliviar o sofrimento, mesmo que, em última instância, ele não
exista.

Nunca houve e nunca haverá momento no qual todos estejam igualmente


contentes ou igualmente ricos, sábios ou sãos. De fato, nenhum destes termos tem
sentido, exceto porque existe seu oposto. Mas isto não quer dizer que quando encontrar
a alguém que está menos feliz ou mais miserável que você, não deva ter piedade ou não
deva lhe ajudar da melhor forma possível. Ao contrário, deve amar a todos e ajudar a
todos, dado que esta é a única forma em que pode ajudar a si mesmo. Quando trata de
diminuir o sofrimento de um homem ou de outra criatura, obtendo ou não algum
benefício por sua ação, você mesmo estará progredindo espiritualmente, sempre que o
serviço se realize de maneira desinteressada, não com o sentido de “eu estou fazendo
isto” mas sim com o espírito de “Deus está me utilizando como um canal para este
serviço. Ele está fazendo e eu sou o instrumento.”

Se a pessoa assume que o que dá a outros, em realidade, dá a si mesmo, quem


não será realmente uma pessoa virtuosa, capaz de realizar atos de ajuda para os
demais? Sendo que tudo é o Ser, o que você estiver fazendo estará fazendo para si
mesmo.
P. Há um sem número de desastres que causam caos no mundo, tais como a fome
e a peste. Qual é a causa de tudo isto?

Para quem aparece tudo isto?

P. Isso não responde minha pergunta. Vejo miséria por todos os lados.

Você não estava consciente do mundo e de seus sofrimentos durante o sono,


mas agora está consciente deles na vigília. Continue no estado no qual eles não o
afetavam. Isso quer dizer: quando não está consciente do mundo, seus sofrimentos não
o afetam. Quando se mantém no Ser, como no sono, o mundo e seus sofrimentos não o
afetam. Portanto, introverta-se. Veja o Ser. Então o mundo e suas misérias terminarão.

P. Mas isto é ser egoísta.

O mundo não está no exterior. Dado que você se identifica a si mesmo


equivocadamente com seu corpo, vê o mundo no exterior e sua miséria resulta
evidente. Mas não são reais. Busque a realidade e desfaça-se desta sensação irreal.

P. Há grandes homens, trabalhadores públicos, que não puderam resolver o


problema da miséria do mundo.

Eles estão centrados no ego e por isso são incapazes. Se eles se mantivessem no
Ser, seria diferente.

P. Por que os Mahatmas não ajudam?

Como você sabe que eles não estão ajudando? Uma leitura em público ou a
atividade física e ajuda material não são tão efetivas quanto o silêncio dos mahatmas.
Eles conseguem maiores êxitos do que os outros.

P. O que poderemos fazer para aliviar as condições do mundo?

Se você consegue estar livre da dor, não haverá dor em lugar algum. O
problema atual se deve a que você vê um mundo exterior e acredita que há dor ali. Mas,
tanto o mundo quanto a dor estão dentro de você. Se você olhar para o interior não
haverá dor.

P. Deus é perfeito. Por que criou um mundo imperfeito? A obra é igual à natureza
do autor. Mas neste caso não é assim.

Quem fez a pergunta?


P. Eu, o indivíduo.

Você está, por acaso, a parte de Deus para fazer esta pergunta? Enquanto você
pensar que é o corpo, verá o mundo como externo e as imperfeições lhe aparecerão.
Deus é perfeito, sua obra também é perfeita. Mas você a vê imperfeita pela
identificação errônea que tem.

P. Por que o Ser se manifestou como um mundo miserável?

Para que você o busque. Seus olhos não podem se ver a si mesmos, ponha um
espelho à frente e poderá vê-los. O mesmo se passa com a criação. “Veja primeiro você
mesmo e depois veja o mundo como o Ser”.

P. Então podemos resumir assim: sempre olharmos para dentro.

Sim.

P. Não devo ver o mundo para nada?

Não estou lhe dizendo que feche os olhos ao mundo. Você tem que se ver
primeiro e depois ver a todo o mundo como o Ser. Se acha que é o corpo, o mundo
parecerá ser externo. Se você é o Ser, o mundo aparecerá como Brahman.

P. Qual é a melhor maneira de trabalhar pela paz mundial?

O que é o mundo? O que é a paz? Quem é o que trabalha? O mundo não existia
durante seu sono e forma uma projeção de sua mente em jaghat. É, portanto, uma idéia
e nada mais. A paz será sentida quando não houver perturbações. A perturbação se
deve ao surgimento de pensamentos no indivíduo, o que é só o ego surgindo da
consciência pura.

O alcançar a paz quer dizer que estamos livres de pensamentos e nos mantemos
como a consciência pura. Se nos mantemos em paz, em nós mesmos, haverá paz em
todas as partes.

P. Se fazemos algo que consideramos mal, mas que vai ajudar a outro para que não
cometa um mal maior, é melhor fazê-lo ou abster-se?

O que é bem e o que está mal? Não há uma medida para poder julgar se algo
está bem e outra coisa está mal. As opiniões diferem de acordo com o individuo e
segundo as circunstâncias que o rodeiam. De novo, são só idéias e nada mais. Não se
preocupe com elas. Trate de não ter pensamentos. Se você se mantiver sempre no
correto, então o bom prevalecerá no mundo.
P. A prática de boa conduta (nitya karmas) leva a pessoa à salvação?

Assim se menciona nos textos. Quem duvida que a conduta apropriada seja algo
positivo ou que eventualmente o levará à meta? A boa conduta, ou sat carma, purifica
chitta, ou a mente e lhe dá chitta suddhi (mente pura). A mente pura alcança jnana, que
é o que se quer dizer com a salvação. Então jnana deve, eventualmente, ser alcançado,
ou seja, o ego deve ser rastreado até sua fonte. Mas, para aqueles que não são atraídos
por este caminho, lhes é dito que sat carma os leva à chitta suddhi e que esta última os
leva ao conhecimento verdadeiro, ou seja, jnana e este, por sua vez, lhe dará a salvação.

P. O que você pode dizer sobre as motivações? São importantes os motivos ao


realizarmos as ações?

Tudo o que se fizer com carinho, pureza, retidão e com paz mental, será uma
boa ação. O que se fizer com a tensão do desejo e com uma mente agitada se qualifica
como uma má ação. Não realize uma boa ação por meios ruins pensando: “será bom
desde que dê bons resultados”. Se os meios são ruins, ainda uma boa ação se tornará
má. Por isto, até os meios para realizar a ação devem ser puros.

P. Sankara disse que somos todos livres, não atados e que todos regressaremos a
Deus, do qual surgimos como uma chispa que saiu do fogo. Então, por que não cometer
toda classe de pecados?

É verdade que não estamos atados e que o ser real não tem escravidão. É
verdade que eventualmente regressaremos à nossa fonte. Mas, enquanto isso, se
cometemos pecados, como você os chama, teremos que lidar com as consequências de
tais atos. Não se pode escapar das consequências. Se um homem o golpeia por acaso
você poderia dizer: “estou livre, não me afetam os golpes e eu não sinto dor. Que
continue me batendo”? Se você pode sentir-se assim, pode fazer o que quiser. Mas de
que serve dizer apenas verbalmente “estou livre”?

P. Dizem que todo o universo é o jogo da consciência de Deus e que tudo está
pleno de Brahman. Então, por que se diz que os maus hábitos e as más práticas devem
ser abandonadas?

Suponhamos que há uma ferida dentro do corpo humano. Se você a ignora,


dizendo que é só uma pequena parte do corpo, ela causará dor ao corpo inteiro. Se não
for curada com um tratamento comum, deve-se chamar o médico, tirar-lhe a parte
afetada com uma cirurgia e remover as impurezas. Se não tirar a parte afetada,
começará a apodrecer-se. Se não lhe puserem uma venda depois da operação, se
infectará e sairá pus. É o mesmo com a conduta. Os hábitos ruins e a má conduta são
como uma ferida no corpo. Cada enfermidade deve ser curada com o tratamento
adequado.
P. Então devemos adotar os códigos de conduta convencionais?

Dado que as observâncias prescritas para a autodisciplina (niyamas) ajudam


consideravelmente, devem ser aceitas e seguidas. Mas se se vê que obstruem a prática
superior da indagação até o conhecimento verdadeiro, devem ser deixadas
imediatamente, ao ver que são deficientes.
CAPITULO 21

CARMA, DESTINO E LIVRE


ARBÍTRIO

A teoria do carma é comum a muitas das religiões orientais. Em sua versão mais
popular, sustenta que há uma contabilidade universal sistematizada, na qual cada
indivíduo deverá experimentar as consequências de todos seus atos (carma, em
sânscrito, quer dizer “ação”). As boas ações dão bons resultados e as más ações
inevitavelmente trazem sofrimento a quem as realiza. A teoria também supõe que as
consequências dos atos (também conhecidas como carma) não devem ser
necessariamente experimentadas na vida atual mas podem passar para vidas futuras.
Por isso foram definidas várias subdivisões do carma.

A seguinte classificação foi utilizada por Sri Ramana e é comum em muitas das
escolas teóricas do hinduísmo:

1) Sanchita carma – a acumulação de dívidas cármicas em vidas passadas.

2) Prarabdha carma – a parte do sanchita carma que tem que ser experimentado nesta
vida. Devido a que a lei do carma implica um determinismo nas atividades mundanas,
geralmente prarabdha se traduz como destino.

3) Agami carma – carma novo que se acumula nesta vida e que passa às vidas futuras.
Sri Ramana aceitava a validade das leis do carma mas dizia que só eram
aplicáveis se a pessoa continuava imaginando que estava separada do Ser. No nível do
ajnani, dizia que os indivíduos passam através de uma séria de atividades e
experiências pré-ordenadas, as quais são consequências de atos e pensamentos prévios.
Ocasionalmente dizia que cada ato e experiência na vida de uma pessoa se determina
quando nasce e que a única liberdade que tem é realizar que não há um ator nem um
experimentador. No entanto, uma vez que realiza o Ser, não resta alguém que possa
experimentar as consequências dos atos, pelo que toda estrutura das leis cármicas se
derruba.

Sri Ramana via a lei do carma como uma manifestação da vontade de Deus.
Dizia que antes da realização do Ser há um Deus pessoal, Iswara, que controla o
destino de cada pessoa. Iswara ordena que todos devem sofrer as consequências dos
seus atos e é Iswara que seleciona as atividades que cada pessoa deverá realizar em
cada vida. A pessoa não pode escapar da jurisdição de Iswara enquanto estiver
identificado com as atividades do corpo. A única maneira de libertar-se de sua
autoridade é transcendendo o carma completamente ao realizar o Ser.

P. É possível vencer o prarabdha karma quando ainda existe o corpo ou ele existirá
até nossa morte?

Sim é possível. Se o agente do qual depende o carma, ou seja, o ego, que legou
a esta existência entre o corpo e o ser, se funde em sua fonte e perde sua forma, como
poderá sobreviver o carma que depende deste? Quando não há um ‘eu’ não há carma.

P. Se diz que o prarabdha karma é só uma pequena porção do carma acumulado


em vidas passadas. É verdade?

Um homem talvez tenha tido muitos carmas (ações) em suas vidas passadas. As
consequências de umas tantas delas serão escolhidas para a vida atual e terá que obter
os frutos dos carmas nesta vida. É algo assim como uma projeção de fotografias na
qual o fotógrafo escolhe algumas fotos para a exibição no espetáculo e o resto fica
guardado para outro evento. Todo este carma pode ser destruído ao adquirirmos o
conhecimento do Ser. Os diferentes carmas são os diapositivos, já que os carmas são o
resultado de experiências passadas e a mente é o projetor. O projetor deve ser destruído
para que não haja mais reflexos, nem nascimentos nem mortes.

P. Quem projeta? Qual é o mecanismo através do qual uma pequena porção do


sanchita karma é selecionado e depois se decide que deve ser experimentado como
prarabdha karma?

Os indivíduos têm que sofrer seus carmas, mas Iswara utiliza para seus
propósitos o melhor dos carmas. Deus manipula os frutos do carma mas não o soma
nem o subtrai. O subconsciente do homem é um depósito do carma bom e mal. Iswara
elege, deste depósito, o que acha mais conveniente para cada homem, seja o carma bom
ou doloroso. Não existe, portanto, arbitrariedade.
P. Em Upadesa Saram você disse que o carma dará seus frutos por ordem de Deus.
Isto quer dizer que nós colhemos as consequências do carma somente devido à vontade
de Deus?

Neste verso karta quer dizer Iswara. Ele é quem distribui os frutos das ações de
cada pessoa de acordo com seu carma. Quer dizer que é o Brahman manifestado. O
Brahman verdadeiro não se manifesta e não tem movimento algum.É só o Brahman
manifestado que é chamado Iswara. Dá a cada um os frutos, de acordo com suas ações.
Isto quer dizer que Iswara é somente um agente e outorga um pagamento de acordo
com o trabalho realizado. Isto é tudo o que acontece. Sem este shakti de Iswara o carma
não poderia acontecer. Por isso dizemos que o carma, por si mesmo, é inerte.

P. Dizem que as consequências atuais são o resultado do carma passado. Se


conhecêssemos os erros passados, poderíamos retificá-los.

Se se retifica um erro, sobra todo o resto do sanchita karma de nascimentos


prévios, que lhe darão inumeráveis nascimentos adicionais. Por isso, não se pode
abordar assim a situação. Quanto mais se corta uma planta, com maior vigor ela
crescerá. Se retificarmos o carma, mais ele se acumulará. Encontre a raiz do carma e
acabe com ela.

P. É verdade que a teoria do carma diz que o mundo é o resultado da ação e


reação? Se é assim, é ação e reação ao que?

Até que chegue a realização, haverá carma, ou seja, ação e reação. Depois da
realização, não haverá nem carma nem mundo.

P. Se não sou o corpo, por que sou responsável pelas consequências dos atos bons
e maus?

Se você não é o corpo e não tem a idéia “eu sou o que age”, as consequências
dos seus atos bons e maus não o afetarão. Por que diz das ações do corpo “eu fiz isto,
eu fiz aquilo”? Enquanto você se identificar assim como corpo, as consequências de
seus atos o afetarão, ou seja, enquanto você se identificar com o corpo, acumulará bom
ou mal carma.

P. Mas, dado que não sou o corpo, realmente não sou responsável pelas
consequências dos bons e dos maus atos.

Sim, é assim, por que você faz a pergunta?

P. Em alguns textos se diz que o esforço humano é a fonte de toda fortaleza e que
pode transcender o carma. Em outros, que tudo se deve à graça divina. Não é claro para
mim qual das duas explicações é correta.
Sim, em algumas escolas de filosofia dizem que não há outro Deus além do
carma do nascimento prévio, o carma que se denomina purushakara (esforço humano),
que o carma prévio e o carma atual se chocam como dois carneiros e que o mais débil
será eliminado. Por isso, esse grupo diz que devemos fortalecer o purushakara. Se lhes
perguntamos qual é a origem do carma, dirão que esta pergunta não deve ser
formulada, porque é como a eterna pergunta “o que veio primeiro, a árvore ou a
semente?”

Os debates desta natureza são meras polêmicas que não podem nos levar à
verdade. Por isso lhes digo que primeiro descubram “quem sou?”. Se você se pergunta
“Quem sou eu? Como é que cheguei a ter esta dosha (falha) que é a vida?”, o ‘eu’ se
desvanecerá e você realizará o Ser. Se o fizermos da maneira apropriada, a idéia de
dosha será eliminada e obteremos a paz.

A essência do carma é saber a verdade de si mesmo ao indagar “Quem sou eu, o


ator que realiza as ações?” A menos que o que ocasiona o carma, ou seja, o ego, seja
eliminado através da indagação, a paz perfeita do gozo supremo, que é o estado do
carma yoga, não pode ser alcançado.

P. É possível que algumas pessoas possam apagar as consequências de suas más


ações ao fazer mantras ou japas, ou elas terão que, forçosamente, experimentá-las?

Se a sensação de “eu estou fazendo japa” não se apresenta, os maus atos


cometidos pelo homem neste momento não se somarão. Se a sensação “eu estou
fazendo japa” persiste, as consequências dos maus atos continuarão.

P. Não é certo que punya (o mérito acumulado por atos virtuosos) extinguirá a
papa (o demérito acumulado, de atos pecaminosos)?

Enquanto houver a sensação de “eu estou fazendo”, a pessoa tem que


experimentar o resultado dos seus atos, sejam eles bons ou ruins. Como é possível
apagar um ato com outro? Quando se perde a sensação de “sou eu que estou fazendo”,
nenhuma coisa afetará o homem. A menos que realizemos o Ser, o sentimento “sou eu
que estou fazendo” não desaparecerá. Para quem realizou o Ser, de que serve o japa?
De que servem tapas? Devido à força de prarabdha a vida continua, mas o que realizou
o Ser já não tem desejo algum.

O prarabdha karma está composto por três categorias, ou seja, ichha, anichha e
parechha (o desejado pessoalmente, o não desejado e o desejado por todos). Para quem
realizou o Ser, não existe ichha-prarabdha, mas os outros dois, anichha e parechha
permanecem vigentes. Tudo que o jnani fizer, fará somente para os outros. Se houver
algo que tiver que fazer para os outros ele o fará, mas os resultados não o afetarão. Em
qualquer ação que estes seres realizarem, não haverá punya nem papa que se acumule.
Só atuam de acordo com o que é adequado para os costumes da região e nada mais.
Aqueles que já sabem o que é que vão experimentar nesta vida, o que é
destinado pelo seu prarabdha karma, nunca se sentirão perturbados pelo que irão
experimentar. Sabe que todas as experiências lhe serão impostas, as queira ou não.

P. O homem realizado já não tem carma, não está atado por seu carma, por que
então se mantém no corpo?

Quem é que faz esta pergunta? É por acaso o homem já realizado ou o ajnani?
Que importância tem para você o que faz um jnani ou se ele faz alguma coisa?
Dedique-se a você mesmo. Você agora está sob a impressão de que é o corpo e por isso
acredita que o jnani também tem um corpo. Por acaso o jnani disse que tem um corpo?
Pode parecer a você que ele tem um corpo e que está fazendo diversas coisas com o
corpo, como outros o fazem, mas ele mesmo sabe que está sem o corpo. Uma corda
queimada parece com uma corda, mas não servirá como corda quando se trata de
prender alguma coisa.

Um jnani é assim: parece que é como todas as outras pessoas mas é somente sua
aparência externa. Enquanto a pessoa continue identificada com o corpo, tudo isto é
difícil de entender. Por isso, geralmente se diz, em resposta a estas perguntas: “o corpo
do jnani continuará vivo até que a força do seu prarabdha se extinga e quando isto
acontecer, cairá.” Geralmente se utiliza a ilustração de uma flecha que foi lançada e
continua até chegar ao alvo. Mas a verdade é que o jnani já transcendeu todos os
carmas, incluindo o prarabdha karma, e não está preso nem pelo corpo nem por seus
carmas.

Não existe nem um pouco de prarabdha para aqueles que atendem ao espaço de
consciência, que sempre brilha como “Eu Sou”; não está confinado ao vasto espaço
físico e penetra por todos os lados, sem limites. Este é o significado do antigo dito:
“Não existe o destino para aqueles que atingem ou experimentam os céus.”

P. Se algo me atinge sem que eu planifique ou trabalhe por isso e eu o desfruto,


haverá más consequências na raiz disto?

Não, não será assim. Todo ato tem que ter consequências. Se algo atinge a raiz
de prarabdha, não o pode esquivar. Se o aceita, sem estar atado a ele em forma
específica e sem ter o desejo de que se repita ou que venha mais, não lhe fará dano, no
sentido de criar-lhe mais vidas. Por outro lado, se o desfruta com grande apego e
naturalmente deseja mais, ele definitivamente o conduzirá a mais e mais nascimentos.

P. De acordo com a astrologia, as predições sobre os eventos a acontecer levam


em conta a influência dos astros. É verdade?

Enquanto se tiver o sentimento do ego, tudo isto é verdade. Quando se destruir


este sentimento, tudo será irreal.
P. Isto quer dizer que a astrologia não será verdade quando o egoísmo tenha sido
destruído?

Quem permanecerá para dizer que não é verdade? Só se poderá ver se há


alguém que veja. Para aqueles cujo ego tenha sido destruído, ainda que pareça que
vêem, não vêem nada.

O destino é o resultado das ações passadas. São concernentes ao corpo. Deixe


que o corpo atue como deve. Por que se preocupa? Por que lhe põe atenção? Quando
algo acontece, acontece devido ao resultado das ações anteriores da pessoa, da vontade
divina e de outros fatores.

P. Se diz que o atual acontece de acordo com o carma passado. Podemos


transcender o carma passado agora, por meio do livre arbítrio?

Veja o que é o presente. Se fizer isto entenderá o que é que está afetado ou que
tem um passado e futuro; o que é o que sempre está presente e livre e que permanece
não afetado pelo passado ou pelo futuro, nem por nenhum carma passado.

P. Existe o livre arbítrio?

A quem pertence este livre arbítrio? Enquanto existir o sentimento de que


estamos fazendo, existirá o sentido do prazer e da vontade individual. Mas se isto se
perde através da prática de vichara, a vontade divina atuará guiando o curso dos
eventos. O destino se conquista com jnana, com o conhecimento do Ser, que está além
da vontade e do destino.

P. Posso entender que os principais eventos na vida de um homem, tais como seu
país natal, sua nacionalidade, sua carreira ou profissão, seu casamento, sua morte, etc,
tudo isto está pré-determinado por seu carma, mas, é certo que todos os detalhes de sua
vida, incluindo os menores, também foram pré-determinados? Por exemplo, agora
mesmo, coloco este abanador que tenho na mão aqui, sobre o piso. Será certo que já
estava decidido que tal dia, há tal hora, eu deveria mover o abanador como fiz e colocá-
lo ali onde o coloquei?

Claro que sim. O que este corpo tiver que fazer e qualquer experiência pela qual
tiver que passar, já foi decidida quando ele chegou à existência.

P. O que acontece com a liberdade e a responsabilidade de um homem quanto a


seus atos?

A única liberdade que tem um homem é a de buscar e adquirir o jnana que lhe
possibilite não identificar-se com o corpo. O corpo passará pelos atos que são
inevitáveis, de acordo com o prarabdha e um homem pode escolher entre a
identificação com o corpo e estar atado aos frutos deste ou então estar desapegado a ele
e ser meramente uma testemunha de suas atividades.

P. Então o livre arbítrio é um mito?

O livre arbítrio está em associação com o sentido da individualidade. Enquanto


durar a individualidade, haverá livre arbítrio. Todas as escrituras se baseiam neste
ponto e aconselham que este mesmo seja dirigido de maneira apropriada.

Encontre a quem concerne o livre arbítrio ou o destino. Veja de onde surge e


mantenha-se em sua fonte. Se conseguir fazer isto, transcenderá a ambos. Este é o
único propósito que há em discutir estas questões. A quem surgem estas perguntas?
Encontre-o e mantenha-se em paz.

P. Se o que está destinado a acontecer, acontecerá, de que serve rezar e fazer um


esforço? Ou devemos ficar sem fazer nada?

Só há duas formas de conquistar o destino ou ser independente dele. A primeira


é indagar para quem é o destino e desta maneira descobrir que é só para o ego, não para
o Ser e que o ego não existe. A outra forma é matar o ego entregando-se
completamente ao senhor, dando-se conta de que somos débeis e dizendo todo tempo
“Eu não Senhor, senão Tu”, também acabando com todo sentido de “eu” e “meu”,
deixando que o Senhor faça o que quiser. A entrega nunca será total enquanto o devoto
queira “isto ou aquilo” do Senhor. A verdadeira entrega se dá quando há amor por
Deus, só este amor e nada mais, nem ainda amor por obter liberação. Em outras
palavras, o acabar realmente com o ego é necessário para conquistar o destino, seja
conseguindo-o através da indagação ou através de bhakti marga.
GLOSSARIO

Advaita – Não dualidade; também uma subdivisão da filosofia vedanta.

Ahamkara – O ego; o sentido de ser um indivíduo.

Aham-vritti – O ‘pensamento-eu’.

Ajapa – Repetição mental e involuntária do nome de Deus.

Ajata – Não-causalidade.

Ajnana – A ignorância, o oposto de jnana.

Ajnani – Uma pessoa que não realizou o Ser.

Ananda – gozo, bem aventurança; felicidade absoluta.

Aparoksha Anubhuti – Um tratado sobre a realização do Ser que é atribuído a


Sankara.

Arjuna – Pessoa que recebe os ensinamentos de Krishna no Bhagavad Gita.

Arunachala – Montanha sagrada no sul da Índia onde Sri Ramana viveu


continuamente, durante 54 anos.

Asana – Postura, posição do yoga.

Atma – O Ser.

Atma-vichara – Indagação do eu; auto-indagação.

Bhagavad Gita – Uma parte do Mahabharata no qual Krishna, uma encarnação de


Vishnú, instrui a Arjuna.

Bhagavata, Sri – Também intitulado Bhagavatam, tratado purânico que descreve a


vida e os ensinamentos de Krishna.
Bhakta – Um devoto.

Bhakti – A devoção.

Blavatsky, H.P. – Uma ocultista russa que fundou a Sociedade Teosófica.

Brahma – Deus hindu que cria o universo, é um dos três deuses da trindade principal
do Hinduísmo.

Brahma-jnana – Conhecimento de Brahman.

Brahman – O absoluto impessoal do Hinduísmo.

Brindavan – Local do norte da índia onde Krishna viveu.

Chaitanya – Santo hindu do século XVI que foi conhecido por sua devoção a Krishna.

Chakras – Centros psíquicos do corpo.

Chit – A consciência.

Courtallam – Pequeno povoado no sul da índia.

Dattatreya – Sábio mencionado várias vezes nos Puranas. Existe pouca informação
sobre sua vida, mas se pensa que o tratado de advaita intitulado
Avadhuta Gita foi obra dele.

Dehatma buddhi – A idéia “eu sou o corpo”.

Dhyana – Meditação.

Diksha – Iniciação.

Ganapati – Um Deus hindu que tem a cabeça de um elefante e o corpo de um homem;


é filho de Shiva.

Ganesha – Ver Ganapati.

Gayatri – O mantra védico mais famoso: “Que esse adorável, resplandecente Deus
ilumine quem medita sobre Ele.”

Gita – Ver Bhagavad Gita.

Guadapada – O Gurú do Gurú de Shankara, que expôs a teoria de ajata: é o autor do


famoso comentário (karika) sobre o Mandukyopanishad.

Gunas – As três qualidades de toda manifestação: sattva, rajas e tamas.

Hridayam – O Coração espiritual.


Indraloka – Mundo celestial presidido por Indra.

Iswara – Deus pessoal supremo do Hinduísmo.

Janaka – Um rei hindu cuja vida e realizações são descritos no Ashtavakra Gita.

Japa – Literalmente, quer dizer “murmurar”, mas é uma forma abreviada de


nama-japa, a repetição do nome de Deus.

Jiva – O ser ou alma individual.

Jivan Mukta – Quem se liberou em vida.

Jivan Mukti – A liberação em vida.

Jnana – Conhecimento do Ser.

Jnana Drishti – Visão do conhecimento.

Jnani – Aquele que realizou o Ser.

Kailsah – Montanha sagrada no Himalaia, onde supostamente Shiva reside.

Kaivalya – Texto tamil sobre advaita, cujo título completo é Kaivalya Navaneeta.

Karika – Gurú do Gurú de Shankara, Guadapada.

Karma (carma) – Seus três significados principais são: a ação, as consequências das
ações e o destino.

Kauravas – A família que no Mahabharata era a principal inimiga dos Pandavas.


Arjuna, um dos Pandavas, conseguiu, com a ajuda de Krishna, destruir
Seus inimigos.

Kevala – A unidade.

Krishna – Uma encarnação de Vishnú.

Kundalini – Poder yóguico.

Laya – Literalmente, significa ‘dissolução’, mas Sri Ramana utilizava esta palavra
para indicar um estado similar ao transe, no qual a mente se aquieta
momentaneamente.

Leela (lila) – O jogo de Deus.

Mahatma – Grande alma ou grande santo.


Mahavakyas – Literalmente significa ‘grandes pronunciamentos’ mas,
especificamente, se refere as quatro frases que afirmam a realidade do
Ser, as quais são:

1) “Isso és Tu”
2) “Eu sou Brahman”
3) “Este Ser é Brahman”
4) “Prajnana (a consciência) é Brahman”

Maha Yoga – Um livro sobre os ensinamentos de Sri Ramana.

Malayalam – Uma das línguas vernáculas do sul da Índia.

Mandukyopanishad – Um dos principais Upanishads.

Mantras – Palavras sagradas que um guru transmite a um discípulo.

Maya – A ilusão.

Moksha – A liberação.

Mouna – Silêncio.

Muktas – Seres liberados.

Mukti – A liberação.

Nadi – Canais psíquicos.

Neti-neti – “Não isso, não isso.”

Nirvikalpa – Sem diferenças; nirvikalpa samadhi é o samadhi no qual não se percebem


diferenças.

Parabrahman – O Brahman supremo.

Panchadasi – Um tratado do século XIV sobre advaita vedanta.

Papa – Pecado, ou más consequências de atos malévolos.

Patanjali – O autor dos Yoga Sutra e o fundador do raja yoga.

Prana – A energia vital que sustenta a vida do corpo.

Pranava – O mantra Om.

Punya – O mérito acumulado pelos atos bons.

Purusha Sukta – Uma parte do Rig Veda, escrito mais antigo do Hinduísmo.
“Quem Sou Eu” – Uma das primeiras obras de Sri Ramana, considerada a mais
simples e essencial. Foi escrita em 1901, a partir de perguntas que
foram formuladas.

Rajas – Atividade.

Raja Yoga – O sistema de yoga formulado por Patanjali; raja quer dizer ‘real’.

Ramanasramam – O ashram que se desenvolveu ao redor de Sri Ramana, no povoado


de Tiruvannamalai.

Sadhaka – Buscador espiritual.

Sadhana – Literalmente, significa ‘meios’ mas em sentido mais geral quer dizer
‘práticas espirituais’.

Sadhana Panchakam – Obra atribuída a Sankara, na qual ele dá conselhos para os


Buscadores espirituais.

Sadhu – Pessoa nobre ou buscador espiritual. No entanto, Sri Ramana frequentemente


utilizava este termo como título para aquele que houvesse realizado o Ser.

Shakti (Sakti) – Poder.

Samadhi – Sri Ramana utilizava este termo para indicar um estado no qual se tem a
experiência direta do Ser.

Samskaras – Tendências inatas.

Shankara (Sankara) – Também chamado Shankaracharya. Filósofo e reformador


do hinduísmo que viveu no século VIII. Foi o primeiro a
popularizar os ensinamentos do advaita-vedanta.

Sastras – Escrituras.

Sat – Existência, ser.

Sat-chit-ananda – Existência-consciência-felicidade; ser-conhecimento-gôzo.

Sat-sanga – Associação com o Ser, ou estar na presença de alguém que realizou o Ser.

Sattvico – Puro.

Savikalpa – Literalmente significa ‘com diferenças’, ainda que Sri Ramana o utilizava
para designar o nível de samadhi no qual a pessoa se mantém através de
um esforço constante.

Shirdi Sai Baba – Mestre espiritual excêntrico e carismático, conhecido por seus
poderes sobrenaturais. Morreu em 1918.
Siddhis – Poderes sobrenaturais.

Shiva – Uma das três principais deidades da trindade hindu; o Deus da destruição.
Sri Ramana também utilizava este nome para denominar o Ser.

Sloka – Um verso da escritura em sânscrito.

Soham – A afirmação “Eu sou Ele”.

Sociedade Teosófica – Uma sociedade fundada por H. P. Blavatsky, no século XIX,


com a finalidade de investigar os poderes latentes do homem
e promover a irmandade universal.

Sri, Srimad – Prefixos honoríficos.

Sthiti – O estado natural.

Sushumna – Um canal psíquico na coluna vertebral.

Swarupa – A forma verdadeira ou natureza real.

Swarupananda – Um Gurú tamil do século XVII.

Tamas – Inércia ou preguiça.

Tamil – Uma língua do sul da índia, língua materna de Sri Ramana.

Tapas – Usualmente significa meditação junto à prática do ascetismo ou mortificação


do corpo. No entanto, tapas tem outros significados, como penitência,
austeridade religiosa e calor.

Tattvaraya – Povoado localizado a 200 km ao sudoeste de Madras, onde se encontra o


Arunachala e o ashram de Sri Ramana.

Turiya – O quarto estado.

Turyatita – O que transcende o quarto estado.

Upadesa – Ensinamentos.

Upadesa Saram – Composição em sânscrito de trinta versos, composta por Sri


Ramana.

Upanishads – Partes finais dos Vedas. Deles derivam toda a filosofia vedanta.

Vada – Teoria.

Vaikuntha – O céu de Vishnú.

Vásanas – Tendências mentais.


Vedanta – Filosofia metafísica derivada dos textos dos Upanishds.

Vedas – Coleção de quatro escrituras que datam de 2000 até 500ac e são a autoridade
máxima para a maioria dos hindus.

Vellore – Cidade distante 80 km do ashram de Sri Ramana.

Vichara – Sri Ramana utilizava este termo para referir-se à indagação do eu.

Videha Mukti – Liberado no momento da morte física.

Vidyaranya – O autor de Panchadasi, tratado do sec. XIV sobre advaita.

Vishnú – Uma das três principais deidades do Hinduísmo. Vishnú reencarna


periodicamente em forma humana, como fez em Rama e Krishna.

Vivekachudamani – Um tratado de advaita que se atribui a Shankara. Hoje, a maioria


dos estudiosos pensam que foi escrito pelo menos 200 depois da
sua morte.

Vittri – Modificação, usualmente da mente.

Yama – O Deus hindu da morte.

Yoga Vashista – Um texto de advaita atribuído a Valmiki, no qual o sábio Vashita


contesta perguntas que Rama lhe faz.

Yoga Sastra – Escrituras do yoga.

Yugapat-Srishti – A criação instantânea.

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