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I

JAMES D. WATSON com Andrew Berry

DNAA
O segredo da vida

Tradução

Carlos Afonso Malferrari


1. Os primórdios da genética: De Mendel a Hitler
Minha mãe, Bonnie Jean, acreditava em genes. Ela se orgulhava das origens escocesas de seu
pai e via nele as tradicionais virtudes escocesas de honestidade, trabalho e frugalidade. Também
ela possuía essas qualidades e sentia que haviam sido transmitidas por ele. A morte trágica e
prematura de meu avô significou que o único legado não-genético que deixou a minha mãe foi
um conjunto de pequenos kilts femininos que ele encomendara em Glasgow. Não chega a
surpreender, pois, que ela valorizasse a herança biológica de seu pai mais que seu espólio
material.

Desde que me lembro, eu tinha discussões infindáveis com minha mãe sobre os papéis relativos
da herança [nature] e do ambiente [nurture] em nossa formação. Ao defender a preponderância
dos aspectos adquiridos sobre os

Acima: A chave do triunfo de Mendel: variações genéticas em ervilhas.

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5i Eu, aos onze anos de idade, com minha | irmã Elizabeth e meu pai, James.

inatos, eu na realidade assumia a convicção de que podemos nos tornar aquilo que queremos
ser. Eu não queria aceitar que meus genes tivessem muita importância, preferindo atribuir a
obesidade da vovó Watson ao fato de ela haver comido demais. Se a constituição dela fosse um
produto de seus genes, então eu também poderia vir a ser um futuro rechonchudo. Por outro
lado, mesmo na adolescência, eu não contestava os fundamentos básicos evidentes da
hereditariedade, a saber, que semelhantes geram semelhantes. As discussões com minha mãe
eram sobre questões mais complexas, como os vários aspectos da personalidade, e não sobre
atributos simples que mesmo um jovem obstinado como eu podia ver que eram transmitidos de
geração a geração, resultando na ”semelhança entre parentes”. Meu nariz é o de minha mãe e
agora pertence também a meu filho Duncan.

Às vezes, as características surgem e desaparecem em poucas gerações; outras vezes, porém,


persistem por muito tempo. Um dos exemplos mais famosos de traços duradouros é o chamado
”lábio dos Habsburgo”. O prognatismo mandibular e a languidez do lábio inferior dessa família
foram transmitidos intactos ao longo de no mínimo 23 gerações, e tornaram os monarcas da
Casa de Habsburgo um verdadeiro pesadelo para gerações e gerações de retratistas cortesãos.

Os Habsburgo contribuíram para o seu próprio infortúnio genético casando-se entre si. Os
casamentos arranjados entre os diferentes ramos do clã dos Habsburgo — e, muitas vezes, entre
parentes próximos — podiam fazer sentido político, pois estabeleciam alianças e asseguravam a
sucessão dinástica, mas eram uma insensatez em termos genéticos. Esse tipo de endogamia pode
resultar em doenças genéticas, como os Habsburgo viriam a descobrir a duras penas.
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Carlos ii o último monarca Habsburgo na Espanha, não só ostentava um exemplo triunfal do


lábio familiar (ele não era sequer capaz de mastigar sua própria comida) como era também
totalmente inválido — e, apesar de casar-se duas vezes, foi incapaz de gerar filhos.

As doenças genéticas assolam a humanidade desde longa data. Em alguns casos, como o de
Carlos II, tiveram um impacto direto na história. Diagnósticos retrospectivos sugerem que Jorge
III, o rei inglês cuja principal façanha é o fato de haver perdido as colônias americanas na
revolução de 1776, sofria de um mal hereditário — porfiria — que provoca acessos periódicos
de loucura. Certos historiadores, em particular os britânicos, argumentam que foi a obsessão
provocada pela doença de Jorge III que permitiu aos futuros americanos um sucesso militar
contra todas as expectativas. Embora a maioria das doenças hereditárias não tenha esse tipo de
impacto geopolítico, as conseqüências são brutais e freqüentemente trágicas para as famílias
afetadas, prolongando-se muitas vezes por várias gerações. Entender a genética significa não
apenas entender por que somos parecidos
com nossos pais, mas também diz respeito a enfrentar alguns dos mais antigos inimigos da
humanidade: as falhas em nossos genes que causam doenças genéticas.

Nossos antepassados devem ter começado a se indagar sobre os mecanismos da hereditariedade


tão logo a evolução os dotou com cérebros capazes de formular o tipo certo de pergunta. Um
princípio que salta aos olhos — parentes próximos tendem a ser parecidos entre si — pode ser
extremamente instrutivo se, como nossos ancestrais, nosso interesse por genética aplicada
limitar-se a questões práticas, tais como melhorar animais domesticados (para, digamos,
aumentar a produção de leite das vacas) ou plantas (para obter frutos maiores, por exemplo).
Gerações de meticulosa seleção — de reprodução controlada para, inicialmente, domesticar as
espécies apropriadas e, em seguida, para criar apenas as vacas mais produtivas ou as árvores
com os maiores frutos — resultaram em animais e plantas feitos sob medida para propósitos
humanos. Subjacente a esse enorme esforço, do qual não temos registro algum, está uma regra
empírica elementar: as vacas mais produtivas irão gerar a prole mais produtiva e das sementes
de árvores com os maiores frutos irão germinar árvores de frutos grandes. Portanto, a despeito
dos avanços extraordinários dos últimos cento e poucos anos, os séculos xx e xxi não detêm, de
modo algum, o monopólio do
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entendimento genético. Embora somente em 1909 o biólogo britânico WiUiam Bateson tenha dado um
nome — genética — à ciência da hereditariedade e embora a revolução do Dna tenha descortinado um
novo e surpreendente panorama do progresso possível, na realidade a maior aplicação da genética ao bem
estar humano ocorreu milênios atrás e foi obra de agricultores anônimos desse passado longínquo. Quase
tudo o que comemos — cereais, frutas, carne, laticínios — é um legado dessa primeira e mais radical
aplicação de manipulações genéticas a problemas humanos.

Mas entender o mecanismo efetivo da genética revelou-se uma tarefa bem mais árdua. Gregor Mendel
(1822-1884) publicou seu famoso estudo em 1866, que permaneceu ignorado pela comunidade científica
por mais 34 anos. Por que tanto tempo? Afinal, a hereditariedade é um dos aspectos mais relevantes do
mundo natural e, talvez mais importante, é algo fácil e universalmente observável: o dono de um cão logo
vê o que acontece com o cruzamento de um cachorro marrom e um preto, e todo pai e toda mãe,
consciente ou inconscientemente, percebem o aparecimento de suas próprias características nos filhos.
Um motivo básico é que, na verdade, os mecanismos genéticos acabam se revelando complexos. A
solução de Mendel para o problema não é intuitiva nem óbvia: afinal, as crianças não são uma simples
mistura das características de seus genitores. Mais importante, no entanto, é que os primeiros biólogos
talvez não tenham conseguido distinguir dois processos fundamentalmente diferentes: hereditariedade e
desenvolvimento. Hoje sabemos que um ovo fertilizado contém informações genéticas e que essas
informações, provenientes de ambos os genitores, determinarão se alguém sofrerá ou não de porfiria, por
exemplo. Isso é hereditariedade. O processo subseqüente, o desenvolvimento de um novo indivíduo a
partir desse ponto de partida singelo — uma única célula, o ovo fertilizado -, diz respeito à
implementação dessas informações. Como disciplinas acadêmicas, dizemos que a genética está voltada
para as informações e a biologia do desenvolvimento se atem ao uso dessas informações. Os antigos
cientistas, que viam a hereditariedade e o desenvolvimento como um único fenômeno, não tinham como
fazer as perguntas que talvez os tivessem direcionado ao segredo da hereditariedade. Seja como for, essa
manipulação genética é algo que se tem empreendido de alguma forma desde a aurora da história
ocidental.

Os gregos, Hipócrates entre eles, refletiram sobre a hereditariedade e conceberam uma teoria de
”pangênese”, segundo a qual a atividade sexual implica-

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va a transferência de miniaturas dos órgãos do corpo: ”Pêlos, unhas, veias, artérias tendões e ossos, ainda
que invisíveis, pois suas partículas são diminutas, vão crescendo e pouco a pouco se separando umas das
outras”. Essa idéia gozou de um breve renascimento quando Charles Darwin, ansioso para dar respaldo à
sua teoria da evolução por seleção natural com alguma
hipótese viável de hereditariedade, lançou uma versão modificada de pangênese na segunda metade do
século xix. Na concepção de Darwin, cada órgão — olhos, rins, ossos — produziria ”gêmulas” que se
acumulariam nos órgãos sexuais e seriam transmitidas no curso da reprodução sexuada. Como, em tese,
essas gêmulas eram produzidas ao longo de toda a vida de um organismo, Darwin argumentou que
qualquer mudança ocorrida no indivíduo após o nascimento — como o longo pescoço da girafa, que
decorreria do fato de se esticar para alcançar as folhas mais altas — poderia ser transmitida para a geração
seguinte. É irônico que, a fim de escorar sua teoria de seleção natural, Darwin tenha

defendido aspectos da teoria da hereditariedade de caracteres adquiridos de Jean-Baptiste Lamarck—a


mesma teoria que as idéias evolucionistas tanto fizeram para desacreditar. Darwin, contudo, recorreu
unicamente à teoria da hereditariedade de ”Ihry Lamarck; ele continuou acreditando que a seleção
natural era a força motriz da evolução, mas supôs que a seleção natural agisse sobre variações
produzidas por pangênese. Se Darwin tivesse conhecido o trabalho de Mendel (embora Mendel tenha
publicado seus resultados pouco depois do lançamento de A origem das espécies, Darwin não chegou a
tomar ciência deles), poderia ter se poupado o embaraço de, no final de sua carreira, haver endossado
algumas das idéias de Lamarck. Enquanto a pangênese supõe que os embriões são formados a partir de
um conjunto de componentes microscópicos, uma outra abordagem, o ”pré-formismo”, evita por
completo essa etapa de montagem do indivíduo e postula que o óvulo ou o espermatozóide (não se sabe
exatamente qual; a questão permaneceu sempre polêmica) contém um indivíduo completo pré-formado
chamado homúnculo. O desenvolvimento seria então apenas o crescimento do homúnculo até se tornar

A genética antes de Mendel: um homúnculo, um ser pré-formado em miniatura que se acreditava existir na cabeça do
espermatozóde.

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oença genética era

um ser totalmente formado. O que hoje conhecemos como doença genética era interpretado de
diversas maneiras na época do pré-formismo: ora como manifestação da ira de Deus ou de
artimanhas de demônios e diabos, ora como resultado de algum excesso ou escassez na
”semente” paterna, ora como resultado dos ”maus pensamentos” da mãe durante a gravidez.
Com base na premissa de que frustrar os desejos de uma grávida, deixando-a estressada e
frustrada, pode levar à malformação do feto, Napoleão promulgou um decreto inocentando
gestantes que efetuassem pequenos furtos em
lojas. Nenhuma dessas noções, desnecessário dizer, contribuiu para promover nosso
entendimento das doenças genéticas.

No início do século xix, o surgimento de microscópios mais aperfeiçoados desbancou o pré-


formismo. Por mais que olhemos, jamais veremos um minúsculo homúnculo retorcido dentro do
espermatozóide ou do óvulo. A pangênese, embora mais antiga, foi um equívoco que perdurou,
pois persistiu a argumentação de que as gêmulas eram simplesmente pequenas demais para ser
visualizadas. Mas, é claro, foi enfim descartada por August Weismann, que afirmou que a
hereditariedade dependia da continuidade do germoplasma de geração a geração e, portanto, que
as mudanças em um corpo ao longo da vida de um indivíduo não poderiam ser transmitidas a
gerações subseqüentes. Seu experimento, bastante simples, consistiu em cortar o rabo de
algumas gerações de ratos. De acordo com a pangênese darwiniana, os ratos sem cauda
deveriam produzir gêmulas que sinalizassem ”ausência de rabo”, de tal modo que sua prole
desenvolveria um coto bastante atrofiado ou mesmo nenhum apêndice. Quandd Weismann
demonstrou que o rabo continuava reaparecendo após várias gerações de ratos mutilados, a
pangênese ruiu por terra.

O mecanismo só seria compreendido por Gregor Mendel — que, sob qualquer critério, era um
candidato improvável ao estrelato científico. Mendel nasceu numa família de fazendeiros, na
atual República Tcheca, e sobressaiu-se nos estudos na escola do seu vilarejo. Aos 21 anos,
entrou para o mosteiro agostiniano de Brünn. Depois de revelar-se um desastre como pároco —
sua reação ao sacerdócio foi um colapso nervoso —, tentou lecionar. Segundo todos os relatos,
foi um bom professor, mas, a fim de qualificar-se para ensinar um currículo completo, precisava
prestar um exame, no qual não foi aprovado. Seu
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superior, o abade Napp, despachou-o então para a Universidade de Viena, onde deveria se
preparar em tempo integral para prestar novamente o exame. Apesar de aparentemente ter se
saído bem em física, Mendel foi mais uma vez reprovado e desse modo, nunca ascendeu acima
do posto de professor substituto.

Por volta de 1856, seguindo uma sugestão do abade Napp, realizou alguns experimentos
científicos sobre hereditariedade. Ele decidira estudar certas características das ervilhas que
cultivava em seu próprio
canteiro no jardim do mosteiro. Em 1865, proferiu duas palestras na sociedade de história
natural local, quando apresentou seus resultados, e, um ano depois, publicou suas conclusões no
periódico da sociedade. Seu trabalho foi um verdadeiro tour de force, com experimentos
concebidos de maneira brilhante e executados com esmero, e uma análise sagaz e profunda dos
resultados. Talvez seu conhecimento de física tenha contribuído para suas descobertas, pois, ao
contrário de outros biólogos de seu tempo, Mendel abordou o problema sob uma ótica
quantitativa. Em vez de simplesmente constatar que o cruzamento de flores vermelhas e brancas
resulta em alguns descendentes brancos e outros vermelhos, Mendel efetuou uma contagem
rigorosa, intuindo que a proporção entre flores vermelhas e brancas talvez fosse importante —
como de fato é. Apesar de ter enviado cópias de seu trabalho para diversos cientistas eminentes,
permaneceu totalmente ignorado pela comunidade científica. Uma das tentativas de atrair
atenção para seus resultados saiu pela culatra. Escreveu para o único contato que tinha entre os
principais cientistas da época, o botânico Karl Nágeli, de Munique, pedindolhe que reproduzisse
os experimentos. Para tanto, enviou 140 envelopes cuidadosamente etiquetados de sementes.
Mas não precisaria ter se dado ao trabalho. Nageli acreditava que esse monge obscuro deveria
estar a seu serviço, não o contrário, e enviou a Mendel sementes de sua planta favorita,
Hiemcium, uma variedade de chicória, desafiando o monge a reproduzir seus resultados com
uma espécie diferente. Lamentavelmente, por uma série de motivos, essa não é uma planta
apropriada para o tipo de cruzamento que Mendel realizara com ervilhas. A tentativa foi um
total desperdício de tempo.

A discreta existência de Mendel como monge-professor-pesquisador chegou subitamente ao fim


em 1868, com a morte de Napp e sua eleição para abade do mosteiro. Embora continuasse suas
pesquisas — com abelhas e meteorologia, em especial —, as responsabilidades administrativas
eram um fardo pesado, ainda mais que o mosteiro se envolveu num imbróglio acerca de impôs-
tos em aberto. Mas outros fatores também o prejudicaram como cientista. Sua corpulência
acabou por impedi-lo de realizar trabalhos de campo: como escreveu, subir e descer morros
tornara-se ”dificílimo para mim num mundo regido pela gravitação universal”. Seus médicos
receitaram tabaco para controlar o peso e ele os atendeu fumando vinte charutos por dia, tantos
quanto Wínston Churchill. Mas não foram os pulmões que falharam: em 1884, aos 61 anos,
Mendel sucumbiu a uma combinação de doença renal e cardíaca.

Não só os resultados de suas pesquisas permaneceram enterrados num periódico obscuro como
teriam sido ininteligíveis para a maioria dos cientistas da época. Mendel estava muito à frente
do seu tempo com sua combinação de experimentação meticulosa e análise quantitativa
sofisticada. Não é de admirar, portanto, que somente em 1900 a comunidade científica o tenha
alcançado. A redescoberta do trabalho de Mendel por três geneticistas botânicos interessados
em problemas similares provocou uma revolução na biologia. O mundo científico estava enfim
pronto para as ervilhas do monge.

Mendel percebeu que existem fatores específicos — mais tarde denominados ”genes” — que
são transmitidos pelos pais à prole. Constatou que esses fatores ocorrem em pares e que os
descendentes recebem um de cada genitor. Como existem ervilhas de duas cores distintas —
verdes e amarelas —, ele deduziu que também existem dois fatores, ou duas versões, do gene
responsável pela cor da vagem. Uma ervilha precisa ter duas cópias da versão ”v” para tornar-se
verde; nesse caso, dizemos que o gene que condiciona sua cor é ”w” e, portanto, deve ter
recebido um gene ”v” de cada um dos genitores. As ervilhas amarelas, por sua vez, resultam
tanto de combinações ”aa” como de ”av”. Basta apenas uma cópia da versão ”a” para produzir
ervilhas amarelas, ”a” prevalece sobre ”v”. Como na situação ”av” o sinal ”a” predomina
sobre o sinal ”v”, dizemos que ”a” é dominante. A versão subordinada do gene de cor ”v” é
dita recessiva.

Cada planta genitora possui duas cópias do gene que condiciona a cor da ervilha, mas só
contribuirá com uma cópia para cada descendente — a outra será fornecida pela outra planta
genitora. Nas plantas, os grânulos de pólen contêm células espermáticas — a contribuição
masculina à geração seguinte — e cada célula espermática contém apenas uma cópia do gene
condicionante da

O cromossomo X humano,

visto por um microscópio eletrônico.

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cor. Uma planta-mãe de ervilha com uma combinação ”av” produzirá sementes que contêm uma
versão ”a” ou uma versão ”v”. Mendel descobriu que esse processo é aleatório: 50% das
sementes produzidas por essa planta terão o fator ”a” e 50% terão o fator ”v”.

Da noite para o dia, muitos mistérios da hereditariedade passaram a fazer sentido.


Características transmitidas de geração a geração com um alto grau de probabilidade (50%, para
ser mais exato) são dominantes, como acontecia
com o ”lábio dos Habsburgo”. Outras características que surgem mais esporadicamente numa
árvore genealógica, muitas vezes pulando uma ou mais gerações, podem ser recessivas. Se um
gene é recessivo, o indivíduo precisa ter duas cópias para que o traço correspondente seja
manifesto. Aqueles que tiverem apenas uma cópia do gene serão portadores, isto é, eles próprios
não apresentarão a característica mas serão capaz de transmitir o gene adiante. O albinismo (a
condição em que o corpo não consegue produzir pigmento, de tal modo que a pele e o cabelo
são drasticamente brancos) é um exemplo de característica recessiva transmitida dessa maneira.
Ou seja, para alguém ser albino, precisa portar duas cópias do gene, uma de cada genitor. (Foi o
caso do reverendo Wüliam Archibald Spooner — o qual, talvez por mera coincidência, também
era propenso a uma forma peculiar de confusão lingüística, batizada de spoonerismo em sua
homenagem, e que consiste em trocar as sílabas de duas ou mais palavras, como ”bola de gude”
por ”gula de bode”.) Mas nossos pais não precisam ter manifestado nenhum sinal desse gene. Se
cada um possui apenas uma cópia, como costuma acontecer, então, embora ambos sejam
portadores, o traço pulou no mínimo essa geração.

Os resultados de Mendel indicavam que coisas — objetos materiais — eram transmitidas de


geração a geração. Qual seria a natureza dessas coisas?

Por volta da época da morte de Mendel, em 1884, os cientistas, usando recursos ópticos cada
vez melhores para estudar a arquitetura diminuta das célu-
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Ias, cunharam o termo ”cromossomo” para descrever os corpos finos e compridos existentes no
núcleo celular. Mas somente em 1902 alguém associaria Mendel aos cromossomos.

Um estudante de medicina da Universidade Columbia, Walter Sutton, percebeu que os


cromossomos tinham muito em comum com os misteriosos ”fatores” de Mendel. Ao estudar os
cromossomos de gafanhotos, percebeu que quase todos eram duplos — como os fatores
emparelhados de Mendel. Mas Sutton também identificou um tipo de célula em que os
cromossomos não apareciam aos pares: as células sexuais. O espermatozóide do gafanhoto
possui apenas um conjunto de cromossomos, não dois. Isso era idêntico ao que Mendel
observara nas células espermáticas das ervilhas, que também só portavam uma cópia de cada
um dos fatores. Estava claro que os fatores de Mendel, agora denominados genes, tinham de
estar nos cromossomos.

Na Alemanha, por vias independentes, Theodor Boveri chegou às mesmas conclusões que
Sutton, e a revolução biológica que o trabalho de ambos precipitou veio a ser conhecida como
teoria cromossômica da hereditariedade de Sutton-Boveri. De repente, os genes se tornaram
algo muito real: estavam nos cromossomos, que podiam ser vistos ao microscópio.

Nem todos aceitaram a teoria de Sutton-Boveri. Um dos que manifestaram ceticismo foi
Thomas Hunt Morgan, também da Columbia. Ao examinar no microscópio os delgados
cromossomos, não viu como poderiam explicar todas as mudanças que ocorrem de uma geração
para outra. Se todos os genes se organizam em torno dos cromossomos e se todos os
cromossomos são transmitidos intactos de uma geração à seguinte, então certamente muitas
características seriam herdadas juntas. Todavia, os dados empíricos mostravam que isso não
ocorria, de modo que a teoria cromossômica parecia insuficiente para explicar a variação
observada na natureza. Sendo um experimentalista sagaz, Morgan teve uma idéia de como
resolver tais discrepâncias. Ele se voltou para a mosca-das-frutas, Drosophila melanogaster, um
insetozinho prosaico que, desde Morgan, tem sido a menina-dos-olhos dos geneticistas.

Na realidade, Morgan não foi o primeiro a usar a mosca-das-frutas para estudar cruzamentos;
essa distinção pertence ao laboratório da Harvard, que pôs a mosquinha para trabalhar em 1901,
embora tenha sido Morgan que a
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Célebre por evitar câmeras, T. H. Morgan foi

secretamente fotografado enquanto

trabalhava na ”sala das moscas”.

trouxe para o tablado da ciência. As drosófilas são uma boa escolha para experimentos
genéticos. São fáceis de achar (é só olhar para um cacho de bananas maduras durante o verão),
fáceis de criar (elas se alimentam de banana) e centenas delas podem ser acomodadas numa
garrafa de vidro. (Os alunos de Morgan não tinham dificuldade para achar garrafas, pois saíam
de madrugada para surrupiar garrafas de leite deixadas na soleira das portas da sua vizinhança
em Manhattan.) Além disso, elas se reproduzem e se reproduzem e se reproduzem (uma geração
completa leva cerca de dez dias, sendo que cada fêmea põe várias centenas de ovos). Em 1907,
num laboratório sórdido, infestado de baratas e fedendo a banana que viria a ser conhecido
como ”sala das moscas”, Morgan e seus alunos (os ”garotos de Morgan”, como eram chamados)
puseram-se a trabalhar com as moscas-das-frutas.

Ao contrário de Mendel, que pôde contar com linhagens variantes isoladas ao longo dos anos
por agricultores e jardineiros — ervilhas amarelas em oposição a verdes, cascas enrugadas em
oposição a cascas lisas —, Morgan não dispunha de um menu das diferenças genéticas
estabelecidas nas moscas-das-frutas. E não é possível trabalhar em genética enquanto não se
isolarem algumas características distintas que possam ser acompanhadas de geração a geração.
Portanto, a primeira meta de Morgan foi encontrar ”mutantes”, o equivalente entre as moscas-
das-frutas às ervilhas amarelas ou rugosas. Ou seja, ele buscou alguma novidade genética,
alguma variação aleatória que, de algum modo, houvesse simplesmente surgido numa
população.

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Um dos primeiros mutantes observados por Morgan revelou-se um dos mais instrutivos.
Conquanto as moscas-das-frutas normais tenham olhos vermelhos, esses mutantes tinham olhos
brancos. Além disso, essas moscas de olhos brancos eram, via de regra, machos. Já se sabia que
os cromossomos determinam o sexo das moscas-das-frutas (e, é claro, também dos seres
humanos): as fêmeas têm duas cópias do cro X HjHI» mossomo x, ao passo que os machos têm
uma cópia do x e

/ B”*”” uma cópia do cromossomo y, cujo comprimento é bem s*f V Bt menor. Â luz de
tais informações, os olhos brancos subita-
mente fizeram sentido: o gene da cor do olho está localiza-

do no cromossomo x e a mutação do olho branco, B, é recessiva. Como os machos só têm um


cromossomo x, até mesmo os genes recessivos manifestam-se automaticamente na ausência de
um gene equivalente dominante que os suprima. Fêmeas de olho branco eram relativamente
raras porque, normalmente, tendo apenas uma cópia de b [branco], elas manifestam a cor de
olho dominante: vermelho. Assim, a despeito de suas reservas iniciais, ao correlacionar um
gene (o responsável pela cor dos olhos) a um cromossomo N./8HH» (o x), Morgan comprovou
para todos os efeitos a teoria de Sutton-Boveri. E também encontrou um exemplo de vinculação
ao sexo [sex-linkage, ou herança ligada ao sexo], pela qual uma determinada característica está
desproporcionalmente * representada num dos sexos.

Assim como as moscas-das-frutas de Morgan, a rainha Vitória é outro exemplo famoso de


vinculação ao sexo. Em um de seus cromossomos x, ela possuía um gene mutante de hemofilia,
que provoca problemas na coagulação do sangue e, portanto, o grave risco de sangramento.
Como o gene da hemofilia é recessivo e a sua outra cópia era normal, ela mesma não padecia do
mal. Mas era portadora. Suas filhas também não contraíram a doença; evidentemente, cada uma
também possuía pelo menos uma cópia da versão normal do gene. Mas seus filhos não tiveram a
mesma sorte. Como todos os machos (incluindo os das moscas-das-frutas), eles tinham apenas
um cromossomo x, necessariamente proveniente da mãe (o cromossomo y só poderia provir do
príncipe Albert, marido de Vitória). Como a rainha Vitória tinha uma cópia mutante e uma
cópia normal, cada filho tinha 50% de chance de ter a doença. O príncipe
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noldo foi o premiado; ele sofria de hemofilia e faleceu aos 31 anos de idade,

ando ate a morte após uma pequena queda. Duas filhas de Vitória, as prin-

Alice e Beatriz, também foram portadoras, tendo herdado o gene mutan-

da mãe, e ambas geraram filhas portadoras e filhos hemofílicos. Alexis, neto

d Alice herdeiro do trono russo, era hemofílico e certamente teria morrido

iovem se os bolcheviques não houvessem feito o serviço primeiro.


As moscas de Morgan tinham outros segredos a revelar. Ao estudarem os genes localizados
num mesmo cromossomo, ele e seus alunos verificaram que, na verdade, os cromossomos se
rompem e voltam a se juntar durante a produção do espermatozóide e do óvulo. Isso significava
que as objeções originais de Morgan à teoria de Sutton-Boveri eram injustificadas: o
rompimento e o reajuntamento — ”recombinação”, no jargão genético moderno — embaralham
cópias do gene entre os dois cromossomos de um par. Isso significa que, por exemplo, a cópia
do cromossomo 12 que recebi de minha mãe (a outra, é claro, veio de meu pai) é, na realidade,
uma mistura das duas cópias de seu cromossomo 12, uma das quais ela recebeu de minha avó
materna e a outra de meu avô materno. Seus dois cromossomos 12 recombinaram-se — isto é,
intercambiaram material entre si — durante a produção do óvulo que se transformaria em mim.
Assim, o cromossomo 12 que recebi de minha mãe pode ser visto como um mosaico dos
cromossomos 12 de meus avós maternos. E, é claro, o cromossomo 12 que minha mãe recebeu
de minha avó era também um mosaico dos cromossomos 12 de meus bisavós, e assim por
diante.

A recombinação permitiu que Morgan e seus alunos mapeassem as posições de genes


específicos em um dado cromossomo. Recombinação implica o rompimento (e o
reajuntamento) de cromossomos; como os genes estão dispostos como contas ao longo de um
colar cromossômico, é estatisticamente muito mais provável que o rompimento ocorra entre
dois genes distantes um do outro (ou seja, com mais pontos possíveis de ruptura entre si) do que
entre dois genes próximos. Portanto, se constatarmos um alto grau de reordenação ou
”reembaralhamento” [reshuffling] de dois genes quaisquer num cromossomo, podemos concluir
que estão longe um do outro: quanto mais rara for essa reordenação, maior a probabilidade de os
genes estarem próximos. Esse princípio básico, mas extremamente poderoso, subjaz a todo
mapeamento genético, e, portanto, um dos instrumentos primordiais dos cientistas envolvidos
no Projeto Genoma Humano e dos pesquisadores na vanguarda da batalha contra as doenças
gené-

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ticas foi desenvolvido muitos e muitos anos atrás na imunda e atulhada ”sala das moscas” da
Universidade Columbia. Cada nova manchete na seção de ciências dos jornais anunciando que
”Gene de Algo Foi Localizado” é um tributo ao trabalho pioneiro de Morgan e seus garotos.

A redescoberta do trabalho de Mendel e os avanços científicos decorrentes provocaram um


surto de interesse nas implicações sociais da genética. Enquanto os cientistas se engalfinhavam
com os mecanismos precisos da hereditariedade durante os séculos xvm e xix, aumentava a
preocupação pública com o fardo sobre a sociedade representado pelas ”classes degeneradas”,
como viriam a ser chamadas: os moradores de abrigos, asílos e hospícios. O que fazer com essa
gente? Esta permaneceu uma questão controvertida. Será que deveriam ser tratados de maneira
caridosa? (Não, respondiam aqueles de índole menos caridosa, pois isso só serviria para
assegurar que tal gente nunca iria agir por conta própria e, por conseguinte, permaneceria para
sempre dependente das benesses do Estado ou de instituições privadas.) Ou será que deveriam
simplesmente ser ignorados? (Não, respondiam aqueles de índole caridosa, pois isso apenas
perpetuaria a incapacidade desses infelizes de se libertar das circunstâncias desventuradas em
que se encontravam.)

A publicação, em 1859, de A origem das espécies, de Darwin, tornou essas questões mais
prementes. Embora Darwin houvesse cuidadosamente omitido qualquer menção à evolução
humana, temendo que isso só inflamaria uma controvérsia já acalorada, não era preciso nenhum
grande salto da imaginação para aplicar sua idéia de seleção natural aos seres humanos. A
seleção natural é a força que determina o destino de todas as variações genéticas na natureza:
mutações como a que Morgan constatou no gene da cor dos olhos da moscadas-frutas, mas
também — talvez — diferenças na capacidade dos indivíduos de prover sua própria
subsistência.

As populações naturais têm um enorme potencial reprodutivo. É o caso, por exemplo, das
moscas-das-frutas, cujo ciclo de geração é de apenas dez dias e cujas fêmeas produzem cerca de
trezentos óvulos (metade dos quais será de fêmeas): se começarmos com um único casal de
mosca-das-frutas, após um mês (i.e., três gerações depois) teremos 150 x 150 x 150 moscas-das-
frutas em nossas mãos — ou seja, mais de 3 milhões de moscas, todas elas provenientes de ape-
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par e em apenas um mês. Darwin esclareceu a questão referindo-se a a espécie que está no
extremo oposto do espectro reprodutivo:

De todos os animais conhecidos, o elefante, assim se julga, é o que se reproduz mais


lentamente. Fiz alguns cálculos para avaliar qual seria provavelmente o valor mínimo do seu
aumento em número. Pode-se, sem temor de errar, admitir que começa a reproduzir-se na idade
de trinta anos, e que continua até os noventa; nesse intervalo, produz seis filhos, e vive por si
mesmo até a idade de cem anos. Ora, admitindo esses números, em 740 ou 750 anos haveria 19
milhões de elefantes vivos, todos descendentes do primeiro casal*

Esses cálculos pressupõem que todas as mosquinhas-das-frutas e todos os elefantinhos chegarão


à idade adulta. Em teoria, portanto, precisaria haver um suprimento infinitamente grande de
água e comida para sustentar esse gênero de furor reprodutivo. Na realidade, é claro, tais
recursos são limitados e nem todas as mosquinhas e elefantinhos chegam lá. Existe competição
entre os indivíduos de uma mesma espécie por tais recursos. Quem vencerá a luta para obter
acesso a água e alimentos? Darwin insiste que a variação genética implica que alguns indivíduos
gozam de vantagens no que chamou de ”luta pela existência”. Tomando o seu famoso exemplo
dos tentilhões das ilhas Galápagos, indivíduos com vantagens genéticas — tais como o tamanho
certo de bico para comer as sementes mais abundantes — terão mais chances de sobreviver e se
reproduzir. Assim, essa variante genética vantajosa — bico do tamanho certo — tenderá a ser
transmitida para a geração seguinte. Como resultado, a seleção natural enriquece a geração
seguinte com a mutação benéfica, até que, por fim, ao longo de um número suficiente de
gerações, todos os membros da espécie acabam

possuindo essa característica.

Os homens da era vitoriana aplicaram a mesma lógica aos seres humanos. Olharam ao seu redor
e ficaram alarmados com o que viram. A taxa de reprodução da classe média — decente, moral,
trabalhadora — estava muito aquém da reprodução desmedida da classe baixa — suja, imoral,
indolente. Os vitoria-

* Tradução de Joaquim da Mesquita Paul para Lello & Irmão Editores. No original, a citação de Watson alude a
cinco séculos e 15 milhões de elefantes, mas os números mencionados por Darwin são os reproduzidos acima. (N. T.)

29
nos supuseram que as virtudes da decência, moralidade e labor eram transmitidas em família
tanto quanto os vícios da imundície, licenciosidade e preguiça. Logo, tais características deviam
ser hereditárias. Portanto, para os vitorianos, moralidade e imoralidade eram apenas duas dentre
as variantes gênicas de Darwin. E, se a ralé se reproduzia mais do que as classes respeitáveis,
então a proporção de genes ”ruins” estaria aumentando na população humana. A espécie estava
condenada! Pouco a pouco, à medida que o gene da ”imoralidade” se disseminasse, os seres
humanos iriam se tornando mais depravados.

Francis Galton tinha bons motivos para prestar uma atenção especial ao livro de Darwin, pois o
autor era seu primo e amigo. Darwin, cerca de treze anos mais velho, fora seu conselheiro
durante a temporada um tanto tortuosa que passou na faculdade. Mas foi A origem das espécies
que inspirou Galton a iniciar a cruzada social e genética cujas conseqüências acabariam sendo
desastrosas. Em 1883, um ano após a morte do primo, Galton daria ao movimento um nome:
eugenia.

A eugenia era apenas um dos muitos interesses de Galton. Seus partidários referem-se a ele
como um polímata; seus detratores, como um diletante. Na verdade, ele deixou importantes
contribuições em geografia, antropologia, psicologia, genética, meteorologia, estatística e, por
fundamentar a análise datiloscópica em sólidas bases científicas, em criminologia. Galton
nasceu em 1822, filho de uma próspera família. Sua educação — parte em medicina, parte em
matemática — foi, no geral, uma crônica de expectativas frustradas. A morte do pai, quando ele
tinha 21 anos, simultaneamente libertou-o dos grilhões paternos e rendeu-lhe uma bela herança:
o jovem Galton tirou bom proveito de ambos os fatos. Mas, depois de seis anos inteiros como
um bon vivant fiduciário, Galton resolveu se assentar e tornar-se um membro produtivo da
sociedade vitoriana. Ficou conhecido ao chefiar em 1850-52 uma expedição até uma região
pouco conhecida no sudoeste da África. É no relato de suas explorações que encontramos a
primeira manifestação do fio que une todos os seus múltiplos interesses: sua paixão por contar e
medir tudo. Galton só se sentia feliz quando podia reduzir um fenômeno a uma série de
números.

Num posto de missionários, ele se deparou com um espécime notável de esteatopigia —


nádegas extremamente protuberantes, uma condição comum

No século XIX, uma visão exagerada de uma mulher nama.

30

entre as mulheres namas, nativas da região — e percebeu que aquela mulher era naturalmente dotada da
silhueta que estava na moda na Europa. A única diferença era que o visual cobiçado pelas européias
custava caro e exigia grande talento e engenho da parte dos costureiros.

Considero-me um homem de ciência, de modo que estava bastante ansioso para obter medidas precisas
do seu contorno. Mas havia uma dificuldade. Eu não sabia uma só palavra de hotentote [o nome holandês
para o nama] e, portanto, não tinha como explicar àquela senhora o objetivo da minha fita de medir. E não
ousaria pedir a meu ilustre anfitrião missionário que servisse de intérprete. Vi-me, pois, diante de um
dilema, ao observar sua figura, o dom de uma natureza pródiga para uma raça favorecida, que nenhum
fabricante de manteau, por mais crinolina e enchimento que usasse, poderia pretender mais do que
arremedar. O objeto de minha admiração estava em pé sob uma árvore e se voltava para todos os pontos
cardeais, como damas que querem ser admiradas costumam fazer. De repente, meu olhar pousou num
sextante e veio-me uma idéia brilhante. Pus-me a realizar uma série de observações de sua figura, em
cada direção, para cima e para baixo, na transversal, diagonalmente, e fui registrando tudo com cuidado
num esboço a fim de não cometer nenhum erro. Em seguida, atrevi-me a pegar uma trena e medir a
distância que nos

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separava. Assim, de posse tanto do vértice como dos ângulos, calculei os resultados por trigonometria e
logaritmos.

A paixão de Galton pela quantificação levou-o a desenvolver muitos dos princípios


fundamentais da estatística moderna. Foi também autor de algumas observações sagazes. Ele
testou, por exemplo, a eficácia da oração. Sua hipótese de trabalho era que, caso a oração
produzisse resultados, aqueles por quem mais se rezava estariam em posição de vantagem. Para
testá-la, estudou a longevidade dos monarcas britânicos. Todos os domingos, as congregações
da Igreja Anglicana que adotam o Livro de orações habituais [peça-chave da liturgia anglicana,
de 1549] suplicavam a Deus: ”Dotai com abundância o rei/rainha de dons celestiais; concedei-
lhe saúde e riqueza e longo viver”. Por certo, raciocinou Galton, o efeito cumulativo de todas
essas orações deveria ser benéfico. Mas logo constatou que as rezas pareciam ser ineficazes e
que, em média, os monarcas morriam até um pouco mais jovens do que outros membros da
aristocracia britânica.

Por causa da sua ligação com Darwin — o avô de ambos, Erasmus Darwin, foi também um dos
gigantes intelectuais de seu tempo —, Galton era particularmente sensível ao modo como certas
linhagens pareciam gerar um número desproporcionalmente grande de pessoas proeminentes e
bem-sucedidas. Em
1869, publicou o que se tornaria o esteio de todas as suas idéias sobre eugenia, um tratado
intitulado Hereditary genius: an inquiry into üs laws and consequences, no qual pretendeu mostrar que
o talento, à maneira de qualquer outro traço genético simples como o lábio dos Habsburgo,
também se transmite em família, mencionando algumas famílias que haviam produzido geração
após geração de juizes. No geral, suas análises não chegam a considerar o efeito do meio
ambiente: afinal, o filho de um juiz proeminente tem uma maior tendência de tornar-se juiz (se
não for por nenhum outro motivo, ao menos em virtude das ligações profissionais de seu pai) do
que o filho de um fazendeiro sem terra. Mas ele não relegou por completo o efeito do meio
ambiente e foi o primeiro a referir-se à dícotomia herança/ambiente, possivelmente numa
referência ao irredimível vilão de Shakespeare, Calibã, ”um demônio, um demônio de nascença
em cuja natureza, herdada jamais pôde atuar o ambiente” [a devil, a bom devil, on whose nature,
Nurture can never stick],

Mas, para Galton, os resultados de sua análise não deixaram dúvida:


32

“Não tenho paciência com a hipótese ocasionalmente aventada, e muitas vezes insi-
nuada particularmente em narrativas escritas para ensinar as crianças a se comportarem bem, que os
bebês, ao nascer, são basicamente iguais e que os únicos
agentes que produzem diferenças entre um menino e outro e entre um homem e
outro são a dedicação constante e o esforço moral. É de modo cabal que recuso
qualquer pretensão de igualdade natural.

Como corolário da sua


certeza de que tais traços são determinados geneticamente, Galton argumentava que seria
possível ”aprimorar” a estirpe humana mediante a procriação preferencial dos indivíduos
dotados e impedindo os menos dotados de se reproduzir.

É fácil [...] obter por cuidadosa seleção uma raça permanente de cães ou cavalos dotados de
capacidade especial para a corrida, ou para qualquer outra coisa. Seria, pois, bastante exeqüível
produzir, por meio de casamentos judiciosos ao longo de várias gerações consecutivas, uma raça
de homens extremamente dotados.

Galton introduziu o termo eugenia (literalmente, ”de boa origem”) para descrever a aplicação a
seres humanos do princípio básico da propagação agrícola. Com o tempo, eugenia passou a
denotar ”evolução humana autocontrolada”: os eugenistas acreditavam que, tomando decisões
conscientes sobre quem deve ou não ter filhos, eles seriam capazes de impedir a erupção da
”crise eugênica”, precipitada na imaginação vitoriana pela alta taxa de reprodução da ralé
inferior associada às famílias caracteristicamente menores das classes médias superiores.

Hoje em dia, eugenia é uma palavra malvista, associada a racistas e nazistas, e traz à mente uma
fase da história da genética que talvez fosse melhor esquecer. Contudo, é importante reconhecer
que, nos últimos anos do século xix e no início do século xx, ela não era tida como infame; pelo
contrário, muitos viam a eugenia como uma possibilidade genuína para melhorar não apenas a
sociedade como um todo mas também a sorte dos indivíduos dentro da sociedade. A eugenia foi
aclamada com entusiasmo especial por aqueles que hoje designaríamos como ”esquerda
liberal”. Os socialistas fabianistas, que incluíam alguns dos pensadores mais progressistas da
época, acorreram a defender a causa — entre eles,

33
A eugenia, tal como concebida na primeira metade do século XX: uma oportunidade para os seres humanos controlarem seu
próprio destino evolutivo.

George Bernard Shaw, que escreveu: ”Não há mais nenhuma desculpa razoável para nos
recusarmos a enfrentar o fato de que nada, senão uma religião eugênica, pode salvar nossa
civilização”. A eugenia parecia oferecer uma solução para um dos males mais persistentes da
sociedade: aquele segmento da população que é incapaz de subsistir fora, ou sem auxílio, de
alguma instituição.

Se Galton pregava o que veio a ser conhecido como ”eugenia positiva”, incentivando pessoas
com genes superiores a ter filhos, o movimento eugênico americano preferiu voltar-se para a
”eugenia negativa”, ou seja, impedir as pessoas geneticamente inferiores de procriar. O objetivo
de ambos os programas era basicamente o mesmo — melhorar a linhagem genética humana —,
mas as duas abordagens não poderiam ser mais diferentes.

O enfoque americano de eliminar os genes ruins, em oposição a aumentar a freqüência dos


genes bons, decorreu de alguns estudos influentes de ”degeneração” [degeneration] e ”mente
fraca” feeUemindedness) — dois termos característicos da obsessão do país com a deterioração
genética. Em 1875, Richard Dugdale publicou um relato sobre o clã dos Juke, do norte do
estado de Nova York, que, segundo ele, incluía várias gerações de legítimos canalhas —
assassinos, alcoólatras, estupradores. Ao que parece, o próprio nome ”Juke” significava
”vergonha” na região.

Outro estudo bastante influente foi publicado em 1912 por Henry Goddard, o psicólogo que nos
legou a palavra moron [idiota], sobre o que chamou de ”A Família Kallikak”, a história de duas
linhagens familiares originárias de um único ancestral que, além de gerar uma família legítima,
tivera um filho fora do

34

casamento
enquanto servia no exército durante a revolução americana). O lado ilegítimo
,da linhagem Kallikak, segundo Goddard, era de arrepiar os cabelos, ”uma
estropiada de degenerados”, ao passo que o lado legítimo era composto de
membros respeitáveis e íntegros da comunidade. Para Goddard, esse ”experi-
mento natural em hereditariedade” era um caso exemplar de genes bons versus
genes ruins um ponto de vista refletido até no nome fictício que escolheu
a a família: ”Kallikak” é um híbrido de duas palavras gregas, kalos (belo, de
boa reputação) e kakos (ruim).
Novos e ”rigorosos” métodos para testar o desempenho mental — os primeiros testes de qi,
levados da Europa para os Estados Unidos pelo mesmo Henry Goddard — pareciam confirmar
a impressão geral de que a espécie humana estava deslizando rapidamente ladeira genética
abaixo. Naqueles primeiros momentos dos testes de
inteligência, acreditava-se que inteligência aguçada e mente alerta inevitavelmente implicavam
uma capacidade de absorver grandes quantidades de informações. Desse modo, o tanto de
informação acumulada por uma pessoa se tornava uma espécie de índice do seu qi. Seguindo
essa linha de raciocínio, os primeiros testes de Qi incluíam muitas perguntas de conhecimentos
gerais. Eis algumas de um teste-padrão aplicado a recrutas do exército americano durante a
Primeira Guerra:

Escolha uma das quatro:

Wyandotte é um tipo de:

1) cavalo 2) ave 3) gado 4) granito

O ampere é usado para medir:

1) força do vento 2) eletricidade 3) força da água 4) chuva

O número de pernas de um zulu é:


1) duas 2) quatro 3) seis 4) oito

[Respostas: 2, 2, 1]

Cerca de metade dos recrutas do exército americano era reprovada no teste e, portanto,
considerada ”de mente fraca”. Esses resultados inflamaram o movi-

35
mento eugênico nos Estados Unidos: para americanos preocupados, parecia realmente que o
pool gênico [conjunto de genes] estava cada vez mais transbordante de genes de baixa
inteligência.

Os cientistas perceberam que uma política eugênica exigia certo entendimento da ciência
genética subjacente a características como ”mente fraca”. Com a redescoberta do trabalho de
Mendel, tudo indicava que isso seria possível, e esse empreendimento começou em Long Island,
por iniciativa de meus predecessores na direção do laboratório Cold Spring Harbor. Seu nome
era Charles Davenport.

Em 1910, financiado por uma herdeira dos magnatas das ferrovias, Davenport fundou o
Eugenics Record Office [Agência de Registros Eugênicos] em Cold Spring Harbor, cuja missão
era coletar informações genéticas básicas — genealogias — sobre diversos traços, desde
epilepsia até criminalidade. Tornouse o centro nervoso do movimento eugênico dos Estados
Unidos. A missão do laboratório Cold Spring Harbor continua basicamente a mesma: hoje nos
esforçamos para estar na vanguarda da pesquisa genética e Davenport não tinha aspirações
menos altivas — só que no seu tempo a vanguarda era a eugenia. Por outro lado, não resta
dúvida de que o programa de pesquisa lançado por ele tinha falhas graves desde o início e as
suas conseqüências, embora não pretendidas, acabaram sendo horrendas.

Idéias eugênícas permeavam tudo o que Davenport fazia. Por exemplo, ele

A equipe do Eugenics Record Office, fotografada ao lado de membros do laboratório Cold Spring Harbor. Davenport, sentado bem
ao centro, contratava funcionários com base na sua crença de que as mulheres eram geneticamente adequadas à tarefa de coletar
informações genealógicas.

Genética fundamentada: árvore genealógica desenhada por Davenport mostrando como o albinismo é herdado.

não poupou esforços em contratar mulheres como pesquisadoras de campo, pois acreditava que
elas tinham melhor capacidade de observação, além de serem mais jeitosas no
trato social do que os homens. Mas, em conformidade com a meta central da eugenia, a saber,
reduzir o número de genes ruins e aumentar o de genes bons, essas mulheres eram contratadas
por no máximo três anos. Sendo inteligentes e instruídas e, portanto, por definição, possuidoras
de genes bons, não seria apropriado que o Eugenics Record Office as retivesse por muito tempo,
impedindo-as assim de cumprir o seu destino legítimo de formar uma família e transmitir o seu
tesouro gênico.

Davenport aplicou a análise mendeliana às suas genealogias de características humanas. De


início, restringiu a atenção a alguns traços simples — como o albinismo (recessivo) e a doença
de Huntington (dominante) —, cujos modos de transmissão ele identificou corretamente. Após
esses sucessos iniciais, mergulhou no estudo da genética do comportamento humano. Aí foi um
vale-tudo: bastava obter uma genealogia e algumas informações sobre o histórico familiar

36

37
£T~5=5
Genética sem fundamento: árvore genealógica desenhada por Davenport mostrando como a habilidade de construir barcos é
herdada. Ele relegou os efeitos socioambientais: o filho de um construtor de barcos tende a seguir o oficio do pai porque foi criado
nesse ambiente.

(ou seja, qual pessoa na linhagem manifestara a característica em questão) para tirar conclusões
sobre a genética subjacente. Quem folhear seu livro de 1911, Hereâity in relation to eugenics,
verá como era amplo e abrangente seu projeto. Ele apresenta as genealogias de famílias com
dons musicais e literários, e também o de uma ”família com habilidades mecânicas e para a
invenção, particularmente no que se refere à construção de barcos”. (Davenport talvez estivesse
rastreando a transmissão do gene da construção naval.) Ele chega a afirmar a possibilidade de
associar tipos familiares distintos a diferentes sobrenomes. Por exemplo, pessoas com o
sobrenome Twinings teriam as seguintes características: ”ombros largos, cabelos castanhos,
nariz proeminente, temperamento nervoso, írritadiças, não-vingativas, sobrancelhas grossas,
veia humorística, senso do ridículo, amantes da música e de cavalos”.

Esse exercício todo não tem o menor valor. Hoje sabemos que todas as características em
questão são profundamente afetadas por fatores ambientais. Davenport, como Galton,
pressupôs, sem nenhum fundamento razoável, que a herança invariavelmente triunfa sobre o
ambiente, que os traços inatos invariavelmente superam os adquiridos. Além disso, enquanto os
traços que Davenport estudara antes, albinismo e doença de Huntington, tinham uma base
genética simples — eram causados por uma mutação específica
38
numérica > nas características comportamentais as bases genéticas
são muito complexas. Tais características podem ser determinadas ao acaso existem
um grande número de genes diferentes, cada um contribuindo com
uma pequenina parcela para o resultado final. Uma situação dessas torna
impossível interpretar dados genealógicos como os compilados por
Daven nport. E não é só isso: as causas genéticas de características mal definidas
” podem variar muito de indivíduo para indivíduo, de
modo que qualquer tentativa de achar um princípio genético geral subjacente
será inócuo.
A despeito do sucesso ou fracasso do programa científico de Davenport, o movimento eugênico
já adquirira ímpeto próprio. Sedes locais da Eugenics Society organizavam competições
públicas e ofereciam prêmios a famílias aparentemente livres da mácula dos genes ruins.
Exposições que antes só exibiam vacas, touros e ovelhas premiadas incluíam agora concursos
de ”Os Bebês Mais Primorosos” e ’As Famílias Mais Aptas” em seus programas. Para todos os
efeitos, eram tentativas de promover a eugenia positiva, incentivando as pessoas certas a ter
filhos. A eugenia também era presença obrigatória no incipiente movimento feminista. As
paladinas do controle da natalidade — Marie Stopes na Grã-Bretanha e, nos Estados Unidos,
Margaret
Sanger, fundadora da Planned Parenthood — concebiam o controle da natalidade como
”Grande família” vencedora
do concurso ”As Famílias Mais
Aptas” na Exposição Estadual
do Texas {1925).

39
uma forma de eugenia. Sanger resumiu sucintamente sua posição em 1919: ”Mais filhos dos aptos, menos
dos inaptos — esse é o cerne do controle da natalidade”.

Muito mais sinistro foi o desenvolvimento da eugenia negativa, que pretendia impedir que as pessoas
”erradas” tivessem filhos. Em relação a isso, ocorreu um fato divisor de águas em 1889. Um jovem
chamado Clawson procurou um médico penitenciário de Indiana chamado Harry Sharp (um nome mais
do que apropriado [sharp = afiado] em vista da sua predileção pelo bisturi). O problema de Clawson, tal
como foi diagnosticado pelos médicos da época, era a masturbação compulsiva. Ele explicou que se
dedicava a isso com empenho desde os doze anos. A masturbação era vista como parte de uma síndrome
geral de degeneração e Sharp partilhava a opinião convencional do seu tempo (por mais bizarra que possa
nos parecer hoje) de que as deficiências mentais de Clawson — ele não conseguia progredir na escola —
eram causadas por sua compulsão. A solução? Sharp realizou uma vasectomia, um procedimento
inventado pouco antes, e sub- ; seqüentemente afirmaria ter ”curado” Clawson. A conseqüência disso
foi que Sharp adquiriu a sua própria compulsão: realizar vasectomias.
Sharp divulgou o seu sucesso nesse tratamento (do qual, por sinal, só temos ] o relato do próprio Sharp
para confirmar) como prova da eficácia desse tipo de intervenção no tratamento de todos aqueles
identificados como pertencentes ao tipo de Clawson, ou seja, todos os ”degenerados”. A esterilização
tinha duas coisas a seu favor. Primeiro, era capaz de prevenir comportamentos degenerados — como
acontecera com Clawson, de acordo com Sharp. Só isso já faria com que a 1 sociedade poupasse
muitos recursos, pois todos os indivíduos que precisariam 1 ser encarcerados, em prisões ou em
hospícios, podiam agora ser considerados 1 ”seguros” e soltos. Segundo, impediria que tipos como
Clawson transmitissem 1 seus genes inferiores, ou degenerados, às gerações subseqüentes. Sharp
acreditava que a esterilização oferecia uma solução perfeita para a crise eugênica. 1

Sharp era um lobista eficaz e, em 1907, o estado de Indiana promulgou a primeira lei de esterilização
compulsória, autorizando o procedimento em ”cri- minosos, idiotas, estupradores e imbecis”
comprovados. Foi a primeira de muitas: com o tempo, trinta estados americanos chegaram a aprovar
legislação similar. Em 1941, cerca de 60 mil pessoas haviam sido esterilizadas nos Estados Unidos,
metade delas na Califórnia. Essas leis, que, em termos práticos, permi- I tiram que o governo estadual
decidisse quem podia e quem não podia ter filhos, i
40

testadas nos tribunais. Mas, em 1927, a Suprema Corte ratificou a lei ri da Virgínia, no caso clássico de
Carrie Buck. Oliver Wendell Holmes foi o redator da decisão:

Será melhor para o mundo inteiro que, em vez de esperar para executar uma prole d generada pelos
crimes que cometeu ou deixá-la morrer à míngua por sua imbeilidade a sociedade possa impedir os
manifestamente inaptos de perpetuarem a própria espécie [...] Três gerações de imbecis é o suficiente.
A esterilização também foi adotada com convicção fora dos Estados Unidos e não apenas na Alemanha
nazista: a Suíça e os países escandinavos promulgaram leis semelhantes.

Racismo não é algo implícito em eugenia — genes bons, aqueles que os eugenistas buscam promover,
podem, em princípio, pertencer a pessoas de qualquer raça. Porém, a começar por Galton, cujo relato de
sua expedição africana confirmara preconceitos sobre as ”raças inferiores”, os praticantes mais
proeminentes da eugenia tendiam a ser racistas que usavam a teoria eugênica para justificar
”cientificamente” seus pontos de vista racistas. Henry Goddard, que se tornara célebre com sua família
Kallikak, aplicou testes de qi aos imigrantes que desembarcavam na ilha Ellis, na baía de Nova York, em
1913, e constatou que cerca de 80% dos futuros americanos poderiam ser registrados como tendo ’ mente
fraca”. Nos testes de qi que realizou para o exército dos Estados Unidos durante a Primeira Guerra,
chegou à mesma conclusão: 45% dos recrutas de origem estrangeira tinham uma idade mental de menos
de oito anos (apenas
21% dos nascidos nos Estados Unidos se enquadravam nessa categoria). O fato de os testes serem
distorcidos — eram, afinal, aplicados em inglês — não parecia ser relevante: os racistas tinham a
munição de que precisavam e a eugenia seria arrolada a serviço de sua causa.

Embora o termo ”supremacista branco” ainda estivesse para ser cunhado, os Estados Unidos já tinham um
bom número deles no início do século xx. Os wasps [White Anglo-Saxon Protestants], tendo Theodore
Roosevelt à frente, temiam que a imigração estivesse corrompendo o paraíso branco, protestante e anglo-
saxão ao qual, no seu modo de ver, os Estados Unidos estavam predesti-

41
nados. Em 1916, Madison Grant, um nova-iorquino abastado, amigo tanto de Davenport como de
Roosevelt, publicou The passing of the great race, em que afirmava que os povos nórdicos eram
superiores a todos os outros, incluindo os europeus. A fim de preservar a bela herança genética nórdica
dos Estados Unidos, Grant lançou uma campanha defendendo restrições a todos os imigrantes
nãonórdicos e exaltando políticas eugênicas racistas:

Sob as condições existentes, o método mais prático e auspicioso de aprimorar a raça é através da
eliminação dos elementos menos desejáveis da nação, privandoos do poder de contribuir para gerações
futuras. Como os criadores de animais bem sabem, a cor de um rebanho pode ser modificada pela
destruição contínua das tonalidades inúteis. Isso, é claro, também é verdade em relação a outros
caracteres. As ovelhas negras, por exemplo, foram praticamente obliteradas eliminando-se, geração após
geração, todos os animais que apresentam essa cor.

Apesar das aparências, o livro de Grant não foi uma obra menor de um maluco marginalizado; pelo
contrário, foi um influente best-seller. Traduzido mais tarde para o alemão, agradou bastante aos nazistas
— o que não chega a surpreender. Era um Grant jubiloso que afirmava ter recebido uma carta pessoal de
Adolf Hitler dizendo-lhe que o livro era a sua Bíblia.

Embora menos proeminente que Grant, o mais influente defensor do racismo científico na época foi o
braço direito de Davenport, Harry Laughlin. Filho de um pregador de Iowa, suas especialidades eram
pedigrees de cavalos de corrida e criação de galinhas. Ele supervisionava o trabalho do Eugenics Record
Office, mas mostrou-se mais eficaz como lobista. Em nome da eugenia, promoveu com empenho fanático
medidas de esterilização forçada e restrições à entrada de estrangeiros geneticamente ambíguos (ou seja,
de europeus não-nórdicos). Particularmente importante em termos históricos foi o seu papel como
testemunha perita em audiências do Congresso sobre imigração. Laughlin deu rédeas largas aos seus
preconceitos, disfarçou-os como ”ciência” e, se os dados se mostravam problemáticos, ele os adulterava.
Por exemplo, quando descobriu a contragosto que as crianças judias imigrantes se saíam melhor nas
escolas públicas do que as crianças nativas, Laughlin alterou as categorias com que vinha trabalhando e
passou a incluir indiscriminadamente os judeus nas nações de onde provinham, diluindo assim o seu
desempenho superior. Em 1924, a

42.

Racismo científico: inadequação social nos Estados Unidos desmembrada por grupos nacionais (19 . Para Harry LaughUn, a
expressão ”inadequação social” é um conceito-ônibus que abrange uma ampa gama de defeitos, desde mente fraca até
tuberculose. Com base naproporção de cada grupo na popu çao os eua, Laughlin calculou uma ”cota” de pessoas internadas para
cada um. O diagrama indica, em termos percentuais, o número de indivíduos internados de cada grupo dividido pela cota desse
grupo. Valores
superiores a 100% indicam que o grupo tem mais indivíduos internados do que a média.

aprovação da lei de imigração Johnson-Reed, que restringiu severamente a imigração do sul da Europa e
de outras regiões do mundo, foi saudada como um triunfo por pessoas como Madison Grant. Foi o
momento mais glorioso Harry Laughlin. Alguns anos antes, como vice-presidente, Calvin Coolidge

43
gara os americanos indígenas e desprezara a história de imigração dos Estados Unidos
declarando que ”a América tem de permanecer americana”. Agora, como presidente, ele validou
seu desejo na forma de lei.

Assim como Grant, Laughlin tinha seus fãs entre os nazistas, que moldaram algumas de suas
leis na legislação por ele elaborada. Em 1936, aceitou com grande entusiasmo um diploma
honorário da Universidade de Heidelberg, que decidira homenageá-lo como ”o representante
visionário da política racial nos Estados Unidos”. Com o passar do tempo, porém, uma forma de
epilepsia tardia acabou transformando seus últimos anos em algo particularmente irônico e
patético: durante toda a sua vida, ele defendera a esterilização de epilépticos, afirmando que
eram geneticamente degenerados.

Mein kampf, o livro de Hitler, é saturado de cantilenas racistas pseudocientíficas derivadas de


antigas pretensões alemãs de superioridade racial e de alguns dos piores aspectos do movimento
eugênico americano. Hitler escreveu que o Estado ”deve declarar impróprios para reprodução
todos aqueles que, de alguma forma, estejam visivelmente doentes ou que tenham herdado uma
doença e, portanto, possam transmiti-la e manifestá-la”. E também: ”Os que forem física e
mentalmente doentes e indignos não devem perpetuar seu sofrimento no corpo dos filhos”.
Pouco depois de assumirem o poder em 1933, os nazistas aprovaram uma abrangente lei de
esterilização — a ”lei para a prevenção de progênie com defeitos hereditários”, explicitamente
baseada no modelo americano. (Laughlin, cheio de orgulho, publicou uma tradução da lei.) Em
três anos, 225 mil pessoas foram esterilizadas.

A eugenia positiva, o incentivo para que as pessoas ”certas” tenham filhos, também prosperou
na Alemanha nazista, onde ”certo” significava ariano. Heinrich Himmler, chefe da ss (o corpo
de elite nazista), concebia sua missão em termos eugênícos: os oficiais da ss deveriam assegurar
o futuro genético da Alemanha tendo o maior número possível de filhos. Em 1936, ele instituiu
lares maternais especiais para as esposas dos ss a fim de assegurar que recebessem os melhores
cuidados durante a gravidez. Os anúncios feitos no comício de Nuremberg em 1935 incluíam
uma ”lei para proteger o sangue alemão e a honra alemã”, que proibia o casamento entre
alemães e judeus, e até mesmo ”relações sexuais extraconjugais entre judeus e cidadãos de
sangue alemão ou

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rentado”. Os nazistas eram infalivelmente meticulosos em seu esforço para evitar qualquer
estratagema reprodutivo.

Tragicamente, também não havia brecha alguma na lei de imigração Johnon-Reed dos Estados
Unidos, à qual Harry Laughlin tanto se dedicara. Para muitos judeus que fugiam da perseguição
nazista, os Estados Unidos eram a primeira opção lógica de destino, mas, devido à política
imigratória restritiva — e

racista do país, muitos deles foram mandados embora. A lei de esterilização


de Laughlin não só proporcionara a Hitler um modelo para seu programa hediondo como
também sua influência sobre a legislação imigratória significou que, para todos os efeitos, os
Estados Unidos abandonariam os judeus alemães à sua própria sorte nas mãos dos nazistas.

Em 1939, já em plena guerra, os nazistas introduziram a eutanásia. Esterilizar mostrou-se


complicado demais. E por que desperdiçar alimentos? Os internos dos hospícios foram
declarados ”comensais inúteis”. Os manicômios receberam questionários com instruções para
que comissões de especialistas indicassem com um ”x” os pacientes cujas vidas, no seu parecer,
”não valiam a pena ser vividas”. Esses questionários foram devolvidos com 75 mil ”xx” e a
tecnologia do extermínio em massa — a câmara de gás — foi então desenvolvida.
Subseqüentemente, os nazistas expandiram a definição de ”vida que não vale a pena ser vivida”
para incluir grupos étnicos inteiros — entre eles os ciganos e, em particular, os judeus. O que
viria a ser conhecido como Holocausto foi o ápice da eugenia nazista.

A eugenia acabou se revelando uma tragédia para a humanidade. Também mostrou ser um
desastre para a incipiente ciência da genética, que nao conseguiu escapar da contaminação. Na
realidade, porém, a despeito da proeminência de eugenistas como Davenport, muitos cientistas
tinham criticado o movimento e se dissociado dele. Alfred Russel Wallace, co-descobridor com
Darwin da seleção natural, condenou a eugenia em 1912 como ”uma interferência intrometida
de um sacerdócio científico arrogante”. Thomas Hunt Morgan, famoso por suas pesquisas com
moscas-das-frutas, demitiu-se por ”motivos científicos da diretoria científica do Eugenics
Record Office. Raymond Pearl, da Universidade Johns Hopkins, escreveu em 1928 que
”eugenistas ortodoxos estão indo contra os fatos mais bem-estabelecidos da ciência genética”.

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A eugenia perdera a credibilidade na comunidade científica muito antes de os nazistas se
apropriarem dela para seus fins repulsivos. A ciência que a escorava era fictícia e os programas
sociais desenvolvidos a partir dela foram absolutamente repreensíveis. Não obstante, em
meados do século xx, a genética (a genética humana, em particular), uma ciência perfeitamente
legítima, deparavase com um grave problema de relações públicas. Em 1948, quando cheguei a
Cold Spring Harbor, antiga sede do já defunto Eugenics Record Office, ninguém ousava sequer
mencionar a ”famigerada palavra que começava com ’E’” e ninguém se dispunha a falar sobre o
passado da nossa ciência, embora exemplares antigos da Revista de Higiene Racial da
Alemanha ainda pudessem ser encontrados nas estantes da biblioteca.

Percebendo que as metas da eugenia não eram cientificamente exeqüíveis, os geneticistas


tinham abandonado havia muito tempo a grandiosa busca dos padrões hereditários das
características comportamentais humanas — fosse a ”mente fraca” de Davenport ou o gênio de
Galton — e agora se concentravam no gene e na sua atuação nas células. Nas décadas de 1930 e
40, com o surgimento de tecnologias novas e mais eficazes para estudar moléculas biológicas
em maior detalhe, chegara enfim a hora de investir contra o maior mistério biológico de todos:
qual é a natureza química do gene?

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