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A TRANSEXUALIDADE NA MITOLOGIA: METAMORFOSES DE OVÍDIO

A homossexualidade na literatura clássica não é um tabu, pelo menos quando se trata do


polo greco-romano. A modernidade, em contrapartida, não lida bem com certos assuntos, por mais
que ainda tenha se influenciado pela Antiguidade Clássica. De qualquer forma, ainda que esse tipo de
conteúdo não me surpreendesse em Safo ou Catulo, a temática da transexualidade foi um tópico
inusitado que encontrei na leitura de Ovídio. Inusitado para falar de uma experiência pessoal, porém
previsível, observando o poema épico ovidiano como um todo.

A obra Metamorfoses, de Ovídio, é um poema épico. Isso significa que Metamorfoses possui
a métrica de hexâmetro datílico utilizada por Homero e Virgílio. Alguns interessados em literatura
clássica costumam abordar Metamorfoses como uma epopeia que se diferencia das outras por não
ter uma unidade de ação. Discordo desse ponto de vista, pois a passagem do tempo (e as
transformações que ele carrega) aparecem como unidade de ação no épico ovidiano. O autor narra a
passagem do tempo, desde o surgimento do mundo até os seus dias.

Analisa-se uma epopeia nos termos da poética aristotélica. Nesse sentido, a epopeia
descreve uma ação única que é alongada por uma série de episódios. Por exemplo, a ação de
Odisseia é Odisseu retornando para Ítaca, tudo o que ocorre nesse meio são os episódios. Já a ação
de Ilíada é a cólera de Aquiles, os resultados dessa cólera e tudo o que envolta dela ocorre são os
episódios. De forma análoga, Metamorfoses de Ovídio relata a passagem do tempo, tendo as
metamorfoses dos seres como episódios.

A primeira frase do poema pode se configurar como uma sinopse: “É meu propósito falar das
metamorfoses dos seres em novos corpos”. Em mais de onze mil versos em latim, o poeta narra a
história do mundo através das transformações. O poema apresenta narrativas sobre pessoas que se
transformaram em plantas ou animais, sobre deuses que desceram à Terra,. Eem suma, os versos
carregam a passagem do tempo mostrando que os seres se metamorfoseiam em formas diversas. Se
a temática da homossexualidade não é um tabu na Antiguidade e esse poema épico se volta para as
transformações, porque não narrativas de transexualidade?

Na minha releitura do poema encontrei três histórias de transexualidade. A primeira história


é do adivinho Tirésias que, ao machucar uma serpente, é condenado pela natureza a viver no corpo
de uma mulher. Tirésias viveu no corpo feminino por sete anos antes de conseguir retornar a sua
forma masculina e tudo o que ele tem a dizer é sobre o prazer erótico feminino. No entanto, as
outras duas histórias trabalham melhor o conflito interior de uma mudança de gênero.

A segunda história se inicia com uma mulher grávida. O pai da criança diz que só aceitaria um
bebê do sexo masculino, caso contrário mataria a criança. Aparentemente, matar ou “descartar”
bebês recém-nascidos era uma prática socialmente aceitável em algumas culturas antigas. A mãe da
criança é cai em aflição, posto o posicionamento inexorável do marido. Eis que no sono dessa
mulher, aparece-lhe a deusa Ísis e lhe orienta que a criança deve viver, mesmo que nasça como
menina. Portanto, a criança é concebida: nascida biologicamente uma moça, criada como um rapaz.

Batiza-se a criança de Ífis e, nos conta Ovídio que “a mãe ficou feliz com o nome, que era
comum aos dois sexos e, com ele, a ninguém enganaria. Sua piedosa mentira mantinha-se encoberta
pela fraude.” Posteriormente, o pai de Ífis lhe arranja um casamento com uma moça chamada Iante.
Até o momento, Ífis apresenta-se na história como uma moça que finge ser homem. Ífis era
apaixonada pela noiva: “Sendo donzela, arde de paixão por outra donzela”, o sentimento era
recíproco. Há então um longo conflito interior da personagem, lamentando nunca poder consumir a
noiva como homem, enquanto condena a própria natureza.

Ífis deseja se metamorfosear em homem para consumar o cansamento e uma divindade


realiza esse desejo. Nisso reside a peculiaridade de como essa questão é trabalhada por Ovídio: o
desejo de virar homem não reside em uma disforia corporal, mas no desejo de amar uma mulher e
cumprir o papel social de marido. Seria uma visão da Antiguidade sobre papéis de gênero? Ou talvez
a tentativa de ilustrar uma visão feminina do masculino?

A possibilidade de Ovídio tentar ilustrar uma visão feminina do masculino me parece mais
provável, considerando que o poeta se ocupa na abordagem das mulheres em Ars Amatoria, por
exemplo. Em seu tratado sobre a arte de amar, Ovídio considera o desejo e a vontade da mulher
como um fator relevante em um relacionamento, o que para a época é ousado. Há quem diga que a
polêmica envolvendo Ars Amatoria de Ovídio tenha sido a causa do seu exílio, decretado pelo
imperador Augusto.

De toda forma, uma tentativa de ilustrar uma visão feminina do masculino ainda é uma visão
da Antiguidade em relação às mulheres. Todavia, também é uma visão da própria transexualidade,
pois condiciona a personalidade da personagem ao seu “gênero anterior”. Quando Ovídio narra um
homem que se transformou em mulher, no caso de Tirésias, só é dito que ele “conhecia o prazer dos
dois sexos”, enquanto que uma mulher ao se transformar em homem torna-se um bom marido.

Essa abordagem também abre possibilidade para uma visão da transexualidade como
compulsória, considerando que Ífis foi uma menina criada como menino, antes de se tornar homem.
Ou talvez a transexualidade apareça sobre um viés de “conscertar” o amor entre duas mulheres? Os
debates que essa história evoca não são de fácil resolução. Observemos então uma terceira narrativa
de mudança de gênero, para que se observe como a questão é abordada em outro contexto.

Por fim, a terceira metamorfose de gênero é a de Cênis. Descrita por Ovídio como uma linda
mulher que não havia se casado, Cênis foi estuprada pelo deus do mar Poseidon. É interessante
observar que estupro é algo extremamente comum em histórias de mitologia. Isso me faz imaginar
que o sexo sem consentimento era algo, infelizmente, naturalizado na Antiguidade, considerando a
mitologia como uma caricatura alegórica do passado. Após abusar de Cênis, o deus do mar resolve
conceder-lhe um desejo, qualquer que seja: Ela deseja transformar-se em homem como garantia de
que nunca mais será abusada novamente. Cênis então vira Ceneu, um homem extremamente forte.
Por ser um guerreiro, é praticamente indestrutível e por ser um homem, é inviolável.

Perceba que a violência sexual foi atribuída ao fato de que Cênis estava sozinha, é muito
menos aparece associada a um modo de vestir-se ou comportar-se. Na verdade, a violência sexual é
atribuída a própria condição de mulher. Tanto que há outra história, ainda em Metamorfoses de
Ovídio, em que a jovem Dafne implora aos deuses para transformar-se em uma árvore como única
saída para escapar do estupro de Apolo. A narrativa de Dafne explica o surgimento do loureiro,
árvore associada a Apolo.

No tocante à mudança de gênero, enquanto Ífis transforma-se em “um bom marido”, Cênis
transforma-se em “um forte guerreiro”, dois papéis extremamente caricatos do masculino. Já
Tirésias, transformado em mulher é alguém que “conhece o prazer dos dois sexos”. Tem-se aí
atribuições de gênero muito específicas que ainda reverberam no pensamento moderno. De
qualquer forma, apesar de a justificativa do pedido de Cênis ser nunca mais sofrer um abuso, parece
realmente haver uma identificação da personagem com o gênero masculino.

Ceneu repudia seu passado de mulher. Em uma cena de luta, quando um adversário lhe diz
“Pra mim, tu serás sempre mulher, […] por que preço recebeste essa falsa aparência de homem?”,
Ceneu enche-se de cólera e redobra as forças, atravessando com uma lança o corpo do oponente.
Lembrar-lhe do corpo feminino instiga-lhe um ódio, abre-lhe uma ferida. Essa cena de luta é
assustadoramente parecida com dias atuais, nos quais o passado de uma pessoa transsexual é
motivo de ataque. Ao narrar essa cena, Ovídio precisou conceber Ceneu como um homem que se
identifica com a sua condição masculina, não como uma mulher que usa o corpo masculino como
armadura que a defende da violência.

De qualquer forma, a obra Metamorfoses traz uma abordagem do ser humano como
condicionado à mudança. Essa mudança, por mais que externa e agressiva, é também uma mudança
interna, essencialmente individual. Essas metamorfoses fazem o leitor questionar o que significa ser
humano, ao mesmo tempo que esse leitor tem acesso a uma alegórica imagem do humano em outra
época. Uma imagem esculpida em versos, séculos antes desse leitor que segura um livro, um celular,
um computador, um kindle. Essa reflexão atribui ainda mais beleza aos versos de Ovídio, pois a
metamorfose do tempo nos trouxe até aqui, a esse mundo que não é absolutamente nada, pois
sempre se transforma.

Se tudo muda e nada está imune ao assalto terrível do tempo, alguns padrões de comportamento e
algumas formas de pensar ainda não mudaram. Ceneu ainda escuta os ataques ao seu “passado
feminino”, Ífis ainda não consegue casar com a mulher amada e para escapar do abuso, há o desejo
de não ser mulher. Por fim, se com esse texto eu tenha conseguido despertar em alguém a
curiosidade para ler Ovídio, me dou por satisfeita. É essa a minha pequena mudança, ainda que
minúscula nas variadas transformações do universo. Encerro com os versos finais do poema e uma
sugestão de tradução.

“Concluí uma obra que nem a cólera de Júpiter, nem o fogo,

nem o ferro, nem a voracidade do tempo poderão destruir.

Que aquele dia, que só a meu corpo tem direito,

ponha fim quando quiser ao incerto decurso da minha vida.

Eu, na parte mais nobre de mim, subirei, imorredouro,

acima das altas estrelas, e o meu nome jamais morrerá.

E, por onde o poder de Roma se estende sobre a terra dominada,

andarei na boca do povo. E, se algo de verdade existe nos presságios

dos poetas, graças a essa fama, hei de viver pelos séculos.”

Ovídio, Metamorfoses. Tradução de Domingos Lucas Dias. Editora 34, 2017.

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