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Análise técnica – A flor e a náusea – Carlos Drummond de Andrade

 Estrofação: o poema é composto por 9 estrofes, a saber:


 4 quintilhas ou redondilhas menores
 2 quartetos
 2 septilhas ou redondilhas maiores
 e 1 sextilha

Notamos pela estrutura das estrofes que não se pode encaixar o poema
numa forma consagrada (isto é: sonetos, rondós, vilancetes, etc).

 Métrica – versos livres, pois não seguem uma unidade regular em todo o
poema. Há grande variedade de tamanho, aparecendo desde versos de
5 sílabas (“Com/ e/le/ me/ sal/vo” – o menor verso) até versos bárbaros
(mais de 12 sílabas poéticas).
Ex: “Pa/ssem/ de/ lon/ge,/ bon/de,/ ô/ni/bus,/ rio/ de a/ço/ do/ trá/fe/go” –
15 sílabas poéticas

 Rimas – sem qualquer encadeamento predominante de rima externa.


Ocorrência de rimas toantes – aquelas que rimam pelas sílabas tônicas.
Aparecem rimas internas ocasionalmente (Ex: mercadorias-melancolias;
consola-renova; escrita-recebida; padeiros-leiteiros; longe-bonde).

 A junção de versos livres e versos brancos é uma característica


marcante da proposta modernista, movimento do qual Drummond
participava.

 Enjambement – continuação da sequência lógica de um verso no


posterior; tende a criar uma cadência de leitura.
Ex: “Uma flor ainda desbotada / ilude a polícia, rompe o asfalto”.
 Predominância de logopeia – característica do poema que cria
sensações e sentimentos compartilhados com o eu lírico.
Ex: “seguir até o enjoo”; “tempo pobre”; “tristes são as coisas”; “vomitar
esse tédio”; “meu ódio”.
 Pontuação – os versos são majoritariamente pontuados:
 35 pontos finais (pausas longas)
 1 ponto de exclamação: “Uma flor nasceu na rua!”
 3 pontos de interrogação: “Devo seguir até o enjoo?”, “Posso, sem
armas, revoltar-me?”, “Crimes da terra, como perdoá-los?”
 Uma ocorrência de dois-pontos: “Olhos sujos no relógio da torre:”

A disposição da pontuação no poema reforça a impressão de que o eu lírico


estar a caminhar pela cidade, envolto em seus pensamentos, como ele declara
já na primeira estrofe. Os pontos finais marcam o ritmo de caminhada: passo
firme e compassado. As interrogações marcam essa voz própria que dialoga
internamente consigo mesmo, e aparecem em questionamentos que se
percebem sem saída: ele apenas segue o fluxo delas. Os dois-pontos
aparecem na pausa que o eu lírico faz para olhar o relógio, como se por um
momento saísse de seus pensamentos e interagisse com o mundo exterior,
lembrando-o que ainda há uma rotina. O ponto de exclamação denota a
descoberta do acontecimento extraordinário que interrompeu a rotina: o
nascimento da flor num lugar inóspito.

 Aspectos gramaticais:
 sujeito em primeira pessoa: é o próprio eu lírico quem participa da
narrativa, é ele quem age diretamente, questiona, se indispõe
 verbos no tempo presente: situação ainda se desenrolando
 linguagem formal: demonstra que o eu lírico tem domínio da
retórica. Aparecem elementos escatológicos (“vomitar”, “fezes”,
“enjoo”), porém não são escritos com linguagem de baixo calão.

 Figuras de linguagem – no poema estão presentes de forma acentuada


as seguintes figuras:
 Aliteração – letra “m” na primeira estrofe (Melancolias,
mercadorias, espreitam-me); letra “p” na segunda estrofe (O
tempo pobre, o poeta pobre); letra “s” na terceira estrofe (O sol
consola os doentes e não os renova); letra “m” na sexta estrofe
(Porém o meu ódio é o melhor de mim); fonema “õ” na sétima
estrofe (Passem de longe, bonde, ônibus...); letra “s” na oitava
estrofe (Sua cor... suas pétalas... seu nome...)
 Paralelismo – ocorre no último verso da terceira estrofe (As
coisas. Que tristes são as coisas...); nos dois últimos versos da
quinta estrofe (Os ferozes padeiros do mal. Os ferozes leiteiros do
mal.)
 Antítese – aparece no segundo verso da primeira estrofe (vou de
branco pela rua cinzenta) como também no último verso (É feia.
Mas é uma flor.)
 Personificação – aparecem na terceira estrofe: “muros surdos”,
“pele das palavras”, “o sol consola”, “as coisas tristes”
 Metáfora – há bastantes ocorrências e imbuem grande significado
ao poema, por exemplo: “por fogo em mim” (com sentido de
purificação); “crimes da terra” (com o sentido de injustiças
sociais); “ração diária de erro” (com o sentido de notícias); “rio de
aço” (com sentido de urbanização)

 Interpretação – no poema se nota já no início uma clara referência à


filosofia marxista que estava em voga na URSS. O autor recoleta esses
princípios revolucionários para gritar contra a imobilidade, inconformado
com o seu pequeno poder de mudança frente às circunstâncias
materiais que o rodeiam: a ditadura do Estado Novo de Vargas, a
incerteza do pós-guerra, a liberdade cerceada, ideologias repressoras
(nota-se uma referência ao movimento integralista brasileiro – galinhas
em pânico).
 Fezes, sujeira, mau tempo, cinzas – a flor como elemento de beleza, de
renovação, ainda que feia – uma nova esperança surge dos detritos, do
concreto, do caos. A impossibilidade do acontecimento – furar o asfalto,
o ódio.

Referências:

ALVES, Izandra. O lirismo de Drummond em “A flor e a náusea”. Nau Literária:


Porto Alegre – Vol. 03 N. 02 – jul/dez 2007.

RIBEIRO NETO, Amador. A linguagem da poesia. João Pessoa: Ed. da UFPB,


2014.

TAVARES, Bráulio. Contando histórias em versos: poesia e romanceiro popular


no Brasil. São Paulo: Ed. 34, 2005.

 Escansão:

Pre/so /à /mi/nha /cla/sse e /a al/gu/mas/ rou/pas,

Vou/ de /bran/co /pe/la /rua /cin/zen/ta.

Me/lan/co/lias,/ mer/ca/do/rias /es/prei/tam/-me.

De/vo /se/guir/ até/ o /em/jo/o?

Po/sso,/ sem/ ar/mas,/ re/vol/tar-/me?

O/lhos /su/jos/ no /re/ló/gio /da /to/rre:

Não/, o /tem/po /não /che/gou/ de /com/ple/ta /jus/tiça.

O/ tem/po é/ ain/da /de /fe/zes, /ma/us/ poe/mas, /a/lu/ci/na/ções/ e es/pe/ra.

O/ tem/po /po/bre, o /poe/ta /po/bre

Fun/dem/-se /no /mês/mo im/pa/sse.


Em/ vão /me/ tem/to /ex/pli/car, /os /um/ros /são/ sur/dos.

Sob a/ pe/le /das/ pa/la/vras/ há /ci/fras/ e /có/di/gos.

O/ sol /com/so/la /os /do/em/tes /e /não os/ re/no/va.

As /coi/sas. Que/ tris/tes/ são /as/ coi/sas, /com/si/de/ra/das /sem/ ên/fa/se.

Vo/mi/tar/ e/sse /té/dio/ so/bre a/ ci/da/de.

Qua/ren/ta a/nos /e /nen/hum /pro/ble/ma

Re/sol/vi/do/, se/quer/ co/lo/ca/do.

Ne/nhu/ma/ car/ta es/cri/ta/ nem /re/ce/bi/da.

To/dos/ os/ ho/mens/ vol/tam/ pa/ra /ca/sa.

Es/tão /me/nos/ li/vres/ mas /le/vam/ jor/nais

e/ so/le/tram/ o /mun/do,/ as/bem/do /que o /per/dem.

Cri/mês/ da /te/rra, /co/mo /per/do/á-/los?

To/mei/ par/te em/ mui/tos, /ou/tros /es/com/di.

Al/guns/ a/chei/ be/los,/ fo/ram/ pu/bli/ca/dos.

Cri/mês/ su/a/ves, /que a/ju/dam/ a/ vi/ver.

Ra/ção/ di/á/ria/ de e/rro, /dis/tri/buí/da em/ ca/sa.

Os/ fe/ro/zes /pa/dei/ros/ do/ mal.

Os/ fe/ro/zes/ lei/tei/ros/ do /mal.

Pôr/ fo/go em/ tu/do, /in/clu/si/ve em/ mim.

Ao/ me/ni/no/ de/ 1918 /cha/ma/vam/ a/nar/quis/ta.


Po/rém /meu/ ó/dio/ é o /me/lhor/ de /mim.

Com/ e/le /me/ sal/vo

e/ dou a/ pou/cos/ uma es/pe/ran/ça /mí/ni/ma.

Uma/ flor/ nas/ceu/ na /rua!

Pa/ssem/ de/ lon/ge,/ bom/des, /ô/ni/bus, /rio /de a/ço /do /trá/fe/go.

Uma/ flor/ ain/da /des/bo/ta/da

Ilu/de a/ po/lí/cia,/ rom/pe o/ as/fal/to.

Fa/çam/ com/ple/to/ si/lên/cio, /pa/ra/li/sem/ os /ne/gó/cios,

Ga/ran/to/ que/ uma/ flor/ nas/ceu.

Sua/ cor/ não/ se/ per/ce/be.

Su/as/ pé/ta/las/ não/ se a/brem.

Seu/ no/me/ não/ es/tá/ nos/ li/vros.

É /fe/ia./ Mas/ é /re/al/men/te u/ma/ flor.

Sem/to/-me/ no/ chão/ da/ ca/pi/tal/ do/ pa/ís/ às/ cin/co/ ho/ras/ da/ tar/de

e/ len/ta/men/te/ pa/sso a/ mão/ ne/ssa/ for/ma/ in/se/gu/ra.

Do/ la/do/ das/ mon/ta/nhas,/ nu/vens/ ma/ci/ças/ avo/lu/mam/-se.

Pe/que/nos/ pon/tos/ bran/cos/ mo/vem/-se/ no/ mar/, ga/li/nhas/ em/ pâ/ni/co.

É/ fe/ia./ Mas/ é /uma/ flor/. Fu/rou o/ as/fal/to, o/ té/dio, o/ no/jo e o/ ó/dio.

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