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A (IM)PERFEIÇÃO E AS OLD CHARGES (II)

Paulo M.

Em pleno século XIX houve diversas tentativas de se tornar menos estrita a regra
que impedia a admissão de deficientes físicos na Maçonaria, alegando-se ser esta
um legado dos tempos da maçonaria operativa. Algumas Grandes Lojas deixaram,
mesmo, cair este requisito, exigindo apenas que o candidato tivesse a capacidade
física estritamente necessária a que pudesse ser iniciado e receber os
ensinamentos da Ordem. Mas logo vozes se elevaram, recordando que o que estava
em causa era um dos landmarks da Maçonaria, que são por definição imutáveis, e
por isso a questão não careceria sequer de mais discussão. Independentemente da
origem do preceito residir na maçonaria operativa e ter, entretanto, deixado de
fazer sentido, este deveria ser cumprido, sob pena da retirada do reconhecimento
às Obediências que não o cumprissem e fizessem cumprir. Mas não se pense que,
sem mais debate, a questão se ficava por aqui, ou que os argumentos alegados
eram desprovidos de substância; pelo contrário.

Alegava-se, por exemplo, que a Bíblia descreve, repetidamente, como só um animal


perfeito e sem mancha podia ser oferecido em sacrifício. Se o bicho tivesse a
mínima imperfeição deixava de ser passível de ser oferecido em holocausto: ao
Divino não se oferecia senão o que se tinha de melhor. Ainda nesta perspetiva,
uma vez que, em Maçonaria Regular, se trabalha “À Glória do Grande Arquiteto do
Universo” – donde decorre que o trabalho que se faz é feito em Sua intenção,
sendo cada maçon a sua própria oferenda – a aplicar-se à letra o antigo
princípio da perfeição da vítima sacrificial, poder-se-ia discorrer que um
deficiente físico não seria “suficientemente bom” para ser oferecido ao Grande
Arquiteto do Universo.

Outro dos argumentos teria que ver com a capacidade de trabalhar. A Maçonaria –
mesmo a Especulativa – socorre-se do trabalho como forma e método de
aprendizagem, pelo que a incapacidade para desempenhar tarefas úteis poria em
causa todo o método maçónico. Por outro lado, é essencial que um maçon se baste
a si mesmo, pois de outro modo não teria a disponibilidade mental para se
aperfeiçoar enquanto pessoa. É uma questão de prioridades: primeiro o sustento
do corpo, depois o apuramento do espírito.

A própria simbologia maçónica era usada como argumento. Discutia-se, com a maior
seriedade, se, uma vez que a maçonaria tinha por objetivo a “construção do
Templo” a partir das pedras que cada um ia tratando de polir, não seria
contrário à mesma maçonaria aceitar pedras “tortas”? Que Templo Perfeito poderia
a Maçonaria almejar construir à Glória do Grande Arquiteto se as pedras não
fossem todas perfeitas?

Espantosamente, este debate ainda persiste; ainda há Obediências – Grandes Lojas


– cujos regulamentos proíbem a admissão de deficientes físicos. Contudo, mesmo a
maioria dessas admite que, se um Irmão ficar limitado (amputado, paralisado…)
após a sua admissão, terá todo o apoio da loja.

Na Grande Loja Legal de Portugal/GLRP a questão, tanto quanto sei, não se


coloca. As condicionantes à admissão são, de acordo com a Constituição e
Regulamento Geral da GLLP, apenas que os candidatos sejam

“homens livres e de bons costumes que se comprometem a pôr em prática um ideal


de paz” , que tenham “o respeito pelas opiniões e crenças de cada um”, e sejam
“homens de honra, maiores de idade, de boa reputação, leais e discretos, dignos
de serem bons irmãos e aptos a reconhecer os limites do domínio do homem, e o
infinito poder do Eterno”.

Pode argumentar-se que um deficiente físico não é inteiramente livre. Fosse esse
um requisito – ser inteiramente livre – e não haveria quem pudesse ser admitido
na maçonaria. Todos nós só o somos até certo ponto. Quanto à iniciação, será que
se perde alguma coisa se for feita de cadeira de rodas? Claro que sim. Mas não
se perde mais numa iniciação do que num passeio na cidade; quem está limitado
sabe que o está, e em que medida.

E um surdo? Ou um cego? Poderão ser iniciados maçons? Não vejo porque não. Desde
que aptos a comunicar, estou certo de que se providenciaria o que fosse razoável
para os acomodar. Um surdo pode, por exemplo, ler nos lábios; e poderia “falar”
por escrito, à falta de melhor. Um cego pode ouvir e falar – apesar de poder ser
curioso ouvir da sua boca algumas fórmulas rituais que se referem à Luz e às
Trevas, por exemplo, mas basta que interiorizemos que a Luz e as Trevas, em
Maçonaria, são simbólicas, não precisando nós dos olhos para as poder entender,
para que logo as suas palavras deixassem de soar estranhas.

Pode um amputado praticar natação? Ou um paraplégico jogar basquete? Sabemos que


podem. E podem competir de igual para igual com uma pessoa não deficiente? Tenho
as minhas dúvidas. Mas poderá a prática desportiva tornar a sua vida mais
completa, incrementar a sua saúde, torná-los pessoas mais felizes? Disso já
tenho a certeza. Do mesmo modo, poderá um deficiente físico tirar partido da
maçonaria tanto quanto alguém que o não seja? Bom… em muitos casos até pode, mas
admitamos que não podia. Seria essa lacuna, esse inultrapassável obstáculo,
razão para que fosse impedido de atingir todo o resto?

Paulo M.

Publicado no Blog “A partir pedra” em 25 de Dezembro de 2010

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