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(ISBN: 978-972-772-636-182-4)
Resumo
O Programa das Aldeias Históricas é considerado uma das intervenções mais
importantes no património rural. As aldeias escolhidas foram consideradas “exemplos
simbólicos daquilo que são as nossas mais profundas e remotas raízes aldeãs”. Essas aldeias,
que foram vilas no passado e algumas ainda o são hoje, combinam características urbanas e
rurais de modo singular. Este texto propõe-se, muito simplesmente, contribuir para uma
reflexão sobre os processos de construção de identidade territorial através da apresentação das
narrativas e da evolução do património classificado das vilas-aldeias que fazem parte deste
Programa. Utilizou-se para o efeito um pequeno conjunto de guias publicados entre o século
XVIII e a actualidade.
1
xanalousada@fl.ul.pt. Departamento de Geografia e CEG / IGOT, Universidade de Lisboa.
1
vem do património edificado, uma estrutura urbana de matriz medieval, o todo imerso num
“ambiente” e numa paisagem envolvente rural.
A criação das AH deve ser entendida no quadro da afirmação de novas formas de
turismo rural e da sua articulação com os programas de desenvolvimento e a ideologia
urbano-ambientalista das últimas décadas do século XX. Esse contexto permite compreender
melhor a própria designação do programa, as intervenções efectuadas e as narrativas
produzidas. Registem-se por isso, as linhas gerais desse contexto.
As visitas culturais e actividades variadas de lazer (da praia aos passeios) são as
práticas mais comuns duma parte considerável das viagens de turismo, quer ao nível
internacional quer ao nível nacional, constituindo as cidades e as praias os lugares mais
procurados para essas mesmas práticas2. Mas desde as duas últimas décadas do século XX
assiste-se ao crescimento de novas formas e de novos espaços turísticos, das quais fazem parte
o turismo rural e de natureza (ecoturismo, TERN, etc.). Para tal contribuíram, por um lado, a
notável elasticidade dos conceitos de património e de bem e recurso cultural que passaram a
incorporar realidades tão distintas como monumentos, paisagens naturais, museus, festas,
pratos típicos, etc. por outro lado, o facto de o turismo ser encarado como um dos
instrumentos das estratégias e dos programas de desenvolvimento local e regional. A literatura
sobre o tema é extensa, provem de diferentes áreas disciplinares e reparte-se tanto por estudos
de carácter mais teórico e conceptual como por trabalhos de índole empírica, quer de teor
académico quer de natureza política3.
País de destino turístico “sol e praia”, com vastas áreas interiores semi-abandonadas e
com problemas de desenvolvimento em consequência das transformações da agricultura, da
sociedade rural e da emigração, Portugal é hoje um país com vastos territórios em que “a
agricultura, o espaço e a sociedade rural têm caminhos dissociados” (Baptista, 2001, 9). As
novas tendências do turismo, as políticas europeias agrícolas, ambientais e de
desenvolvimento bem como a descoberta dos prazeres da natureza e da “ruralidade” pelos
urbanos e a revalorização social e simbólica do rural, têm levado à procura destes territórios
pelos urbanos, à transformação de muitos em destinos turísticos e ao desenvolvimento de um
2
Sobre a evolução das práticas e dos lugares de turismo, incluindo as tendências actuais, veja-se
Cavaco (2006).
3
Entre as várias publicações que se debruçaram sobre as origens, as características, os problemas e os
impactos do chamado Turismo Rural, bem como a própria designação deste tipo de turismo, cf., para
Portugal, entre outros, os artigos publicados em Cavaco (1999), Portela (2003) ou Simões e Cristovão
(2003)
2
mercado de actividades rurais não agrícolas. Globalmente, são formas de aproveitamento e
utilização de território semi-abandonado e que, ao contrário de outras possíveis como a de
plantação de certas espécies não chocam com as sensibilidades dos urbanos4.
É precisamente quando o que ainda resta da aldeia “tradicional” está a desaparecer que
se assiste a um movimento de recuperação ou salvaguarda, num processo muito similar ao
ocorrido no século XIX quando teve início o declínio inexorável do mundo rural - isto é, dos
camponeses, das suas actividades, dos seus modos de vida e das suas crenças. Como é
conhecido, esse movimento coincidiu com o nascimento do folclore e a “descoberta” das
virtudes e da “doçura da vida” no campo. Hoje, com a ideologia ambientalista, e a feia e
poluída paisagem urbana e suburbana da maior parte das cidades 5, a defesa do passado rural e
de certos arcaísmos ganhou um novo fôlego. E o turismo e os turistas descobriram novos
produtos e novos destinos.
Foi neste o quadro que surgiram orientações político-económicas de protecção do
mundo rural em vias de desaparecimento e programas de desenvolvimento local em que o
turismo é uma das actividades a impulsionar e subsidiar. Entre eles, o Programa das Aldeias
Históricas de Portugal.
4
Como assinala, por exemplo, F.O. Baptista (2001, 21-22) a propósito da oposição às plantações de
eucalipto a qual não decorre apenas dos danos ecológicos mas do facto de, dada a extensão do seu
cultivo, modificar a paisagem e chocar “com a identidade territorial das populações”
5
Já em 1955 Ian Nairn e Gordon Cullen publicaram um artigo intitulado “Ultrage” no qual relatavam
os resultados do levantamento que haviam realizado da paisagem urbana inglesa: o panorama era
desanimador e ultrajante. Nos anos seguintes foram editados vários livros onde, embora o alvo
principal fosse o funcionalismo (então dominante no urbanismo e na arquitectura), se criticava de um
modo áspero e impiedoso a paisagem urbana moderna, como Peter Blake em 1964 com God’s own
junkyard. Cf. Relph (1990).
3
Na década de 1990, no âmbito do sub Programa do Potencial de Desenvolvimento
Regional (PPDR) do II Quadro Comunitário de Apoio (QCA), e sob proposta da Comissão de
Coordenação da Região Centro, foi lançado o Programa das Aldeias Históricas de Portugal
(1994-99)6, o qual teve depois continuação durante a vigência do IIIQCA (2000-2006). A
ideia vinha de trás, pois já no Plano Nacional de Turismo para 1985-88 se afirmava serem as
“aldeias típicas” “um testemunho cultural de inegável interesse turístico” que constituíam “em
algumas regiões … o mais válido recurso turístico”. O Programa foi financeiramente
suportado pelo FEDER, pelo orçamento geral do estado, pelos orçamentos municipais e por
alguns investidores privados, num total (até 2004) de 44 milhões de euros..
4
rede de aldeias, os investimentos efectuados e os resultados obtidos consultam-se as
publicações do Ministério do Planeamento e Administração do Território e do Ministério do
Comércio e Turismo (MPTA – MCT, 1994, 1995) da Comissão de coordenação da região
centro (CCRC, 1999), a Carta do Lazer das Aldeias Históricas (Inatel (2000) e, entre outros
estudos específicos sobre as AH, Isabel Boura (2002 e 2004) ou, para experiências noutras
regiões Moreno (1999) e Alves (2002). Como tem sido amplamente sublinhado a propósito
das experiências portuguesas, a oferta de turismo em espaço rural leva “inscrita a marca
indelével da Administração Central, mais em particular da DGT” [Direcção Geral do
Turismo] de tal modo que pode afirmar-se ser a oferta deste tipo de turismo (em Portugal)
construída em grande medida “de cima para baixo”, e que “tem sido o que a DGT tem
entendido que ele deverá ser” (Ribeiro, 2003, 203)
Os critérios que presidiram à escolha destas primeiras aldeias históricas portuguesas
basearam-se na existência de património arqueológico, arquitectónico, ou ambiental
classificado, na unidade formal do tecido urbano construído e na importância histórico-
cultural. Numa primeira fase integraram este conjunto 10 aldeias, a com uma população total
de pouco mais de 8 mil habitantes, que se juntaram outras 2 em 2005.
5
entrada Turismo / Aldeias Históricas do site da câmara municipal de Idanha-a-Nova quando
não faz parte das 12 aldeias que integram o programa oficial.
Todavia, os responsáveis locais também sabem que “o programa por si só não é uma
varinha mágica que tira a aldeia do marasmo”. O executivo da Junta de Freguesia de Castelo
Mendo (outra das Aldeias Históricas) anuncia no site da junta que “uma das suas
preocupações (e consequentes esforços) é tentar vocacionar os residentes para o
aproveitamento turístico das obras realizadas ao abrigo do programa "Aldeias Históricas",
aproveitando este fenómeno de potenciação. Gostaria a Junta de Freguesia que houvesse mais
apoios, divulgação e "empurrões" para
6
suas características únicas e o seu estado de preservação, Trancoso faz parte do restrito
programa das “Aldeias Históricas de Portugal”. (site da câmara de Trancoso (www.cm-
trancoso.pt, sublinhados nossos). Sobre Almeida pode ler-se que “hoje, séculos volvidos, são
as tradições que se tentam manter que fazem desta vila um local histórico de peculiar beleza”
(Carta do Lazer do Inatel, site. Sublinhado nosso). E no site da Câmara de Figueira de
Castelo Rodrigo diz-se, a propósito da freguesia de Castelo Rodrigues que “fazendo parte do
programa das Aldeias Históricas, a sua monumentalidade está patente em toda a vila”.
É certo que as sociedades não são estáticas, que o rural e o urbano são categorias
históricas em permanente mudança. Como sublinha Baptista, a propósito das transformações
ocorridas na sociedade rural portuguesa durante a segunda metade do século XX - o futuro da
sociedade rural já não se centra na agricultura e a terra já não estrutura as relações sociais -
7
“evocar a relação urbano / rural não remete (…) para a diferença entre duas «ordens» fixas,
mas para o que separa duas realidades em modificação constante. Ou seja, o rural e o urbano
só se distinguem por referência mútua” (Baptista, 2001, 31 e 54-58) 7. O espaço rural tornou-
se multifuncional – à produção agrícola (de alimentos ou de matérias primas para a indústria)
juntaram-se “funções de equilíbrio territorial e ecológico, de conservação de patrimónios
culturais e paisagísticos e de suporte de actividades de lazer” (Caldas, 2003, 534)
Nos dicionários do século XIX o significado de aldeia é o de lugar pequeno, povoação
pequena, “sem jurisdição sobre si, nem privilégio de vila ou cidade” 8. Num vulgar dicionário
do século XX (por exemplo, da Porto Editora), mantém-se a mesma referência à dimensão e à
ausência de autonomia jurisdicional (“pequena localidade sem jurisdição própria”) e
acrescenta-se que é sinónimo de campo. No chamado Dicionário Houaiss (edição de 2005),
regra geral tão minucioso e preciso, não é feita referência alguma à natureza jurídica, apenas
(na acepção que nos interessa) à dimensão: “povoação de pequenas proporções, menor do que
a vila; povoação rural, povoado”. Na entrada “vila” esclarece-nos que é “povoação de
categoria inferior a uma cidade, mas superior a uma aldeia”, não especificando a natureza da
categoria. É provável que algumas destas vilas já no século XVIII fossem dominantemente
aglomerados rurais; mas não se pode por de lado o facto de estes núcleos, por serem sedes de
concelho, serem uma unidade administrativa e judicial de primeira instância o que se traduzia
na autonomia municipal e nos seus símbolos, a câmara e o pelourinho ou picota. As vilas
eram terras com município, possuíam geralmente carta de foral e uma designação - vila - que
se mantinha um título de prestígio na hierarquia simbólica das terras do país mesmo quando
perdera a autonomia municipal.
Os problemas metodológicos na definição dos lugares urbanos são conhecidos e não
existe consenso entre os estudiosos, questão que se complica ainda mais quando se trabalha
no tempo longo. Álvaro Ferreira da Silva sintetizou esses problemas em três tópicos: “a
definição do limiar da realidade urbana, a determinação da população aglomerada e o controle
dos factores de sobrevalorização do crescimento urbano” (Silva, 1997, 781). Mas tal como
sucede com a definição de aldeia, se a dimensão demográfica é um critério a ter em conta, o
que faz a cidade – ou a aldeia – não é o número dos seus habitantes mas a sua “qualidade” isto
7
Sobre as transformações da agricultura e do mundo rural português na primeira metade do século XX
leiam-se os estudos e as observações de Leite de Vasconcelos (1933) e Orlando Ribeiro reunidas em
Ribeiro (1991)
8
É esta a definição num dicionário de meados do século XIX (Faria, 1855) semelhante à incluída
noutros, como o de Morais.
8
é, as suas ocupações, modo de vida, formas de sociabilidade, etc. que, por seu turno,
determinam a morfologia do aglomerado e do edificado. Ora, o que ainda hoje podemos
verificar, a partir do património existente, é que as AH tiveram pelourinho e Casa da Câmara,
têm uma estrutura morfológica e habitacional mais urbana que rural e, como se verá adiante,
ainda hoje têm orgulho no título de vila, expressando algumas desgosto por terem passado a
aldeias, ainda que históricas e ainda que, funcional, institucional e sociologicamente sejam (e
até se reconheçam como) aldeias. Acresce que todas têm origem pelo menos medieval e que
foram muralhadas (e os vestígios ainda lá estão) sendo que na Idade Média “fazer vila” ou
“erigir vila” era sinónimo de fortificar uma povoação e ainda em meados do século XX havia
quem distinguisse a vila da aldeia “pela linha onde outrora passavam as muralhas (Matos,
1971).
De qualquer modo, como advertia Orlando Ribeiro a propósito do Mediterrâneo (onde
existem grandes aldeias) e Leite de Vasconcelos (1933) a propósito de Portugal, “a distinção
entre cidade e aldeia nem sempre é fácil” e “o sentido corrente de aldeia é impreciso”.Ribeiro,
ao estudar a significação e os tipos das aldeias portuguesas, estabelece duas categorias: a da
“aldeia rural autêntica” na qual se podem distinguir três tipos - o transmontano, o alentejano,
o estremenho – e a das “aldeias históricas”9., precisamente “as dezenas de antigas vilas
alcandoradas” que se estendem ao longo da raia seca beirã e alentejana. São “vilas
acasteladas” que podem ser “incrivelmente pequenas”; umas, transformadas em “sonolentas
vilórias de acesso difícil” guardam ainda a função administrativa (por inércia) e o “prestígio
do aspecto”, como é o caso de Óbidos; outras, perderam a autonomia jurisdicional,
“arruinaram-se os seus palácios e igrejas, desapareceram fidalgos e cavaleiros que lhes davam
prestígio, as guarnições que asseguravam a sua defesa, ficando apenas as famílias de
camponeses, cada vez menos numerosas”, tendo algumas dado lugar a novas povoações na
planura como sucedeu a, por exemplo, Castelo Rodrigo e Figueira de Castelo Rodrigo. Foi a
estas vilas velhas, “decaídas e degradadas” ao nível de povoações rurais, quase todas
ostentando orgulhosas, embora “arruinadas”, um passado ilustre na defesa do reino
(reconquista, guerras com Castela, guerra da Restauração, invasões francesas) que Orlando
Ribeiro chamou Aldeias Históricas, designação adoptada pelo Programa do Potencial de
Desenvolvimento Regional (PPDR) do II Quadro Comunitário de Apoio (QCA).
As aldeias de que aqui nos ocupamos foram alvo de programas (europeus, estatais e
regionais) que as transformaram em produto turístico. Ora, o turismo deve muito à divisão
9
A designação e o itálico são do próprio Orlando Ribeiro no texto da entrada “aldeia” do Dicionário
de História de Portugal, também publicado em Ribeiro (1991, 359).
9
binária entre o vulgar, o quotidiano, e o extraordinário, o fora do comum (Urry, 1994, 11). A
diferença entre estas AH e as outras está na própria “marca”, isto é, no facto de terem sido
classificadas e nomeadas como aldeias históricas, um sinal distintivo indicando que
constituem um “objecto extraordinário”. E são-no, de facto, pois combinam características
urbanas e rurais de um modo singular. Esta mistura constitui uma espécie de paradoxo que se
reflecte no facto de serem apresentadas como núcleos urbanos muito antigos e,
simultaneamente, designadas de aldeias. Voltaremos a esta questão, mas para já atente-se no
modo como são anunciadas num site de divulgação turística, que segue de perto, aliás, o texto
da tão consultada Wikipédia10.
“Estes centros urbanos muito antigos, cuja fundação é anterior à existência da nação
portuguesa são característicos desta região das Beiras-centro de Portugal, e muito importantes
no aspecto histórico. Estas aldeias são geralmente construídas em altura, porque serviam
como centros de defesa das povoações que aí se estabelecerem bem antes até da invasão
romana.” (www.portugalvivo.com)
Devedores e alimentadores das narrativas actuais do mundo ocidental sobre a
ruralidade e os meios rurais, os discursos turísticos representam (e apresentam) a ruralidade
“como última reserva do que se suspeita ter-se perdido, do que se perdeu, ou do que está em
vias de se perder, na cidade e nos modos de vida que ela engendrou – a estabilidade, a
continuidade, a autenticidade, a diferença, a humanização das relações, o contacto com a
Natureza, os seus ritmos, sons e cores” (Ribeiro, 2003, 201).
Pode assim dizer-se que se assiste a um processo de reconstrução da imagem desses
aglomerados, apresentando um novo produto turístico onde se fundem características urbanas
e rurais, antigas e novas. Aproveitam-se imagens há muito criadas – a das vilas fortificadas de
fronteira – e realidades relativamente recentes – a ruralização desses núcleos -, e cria-se uma
nova imagem para estes núcleos, fundindo diferentes passados. A sua promoção “recupera por
um lado a imagem antiga e dá-lhe nova roupagem” fazendo “apelo às condições ambientais
envolventes do património rural, à ambiência cultural”, desenhando e concretizando “novos
caminhos para a actividade turística que pretendem atingir as novas procuras” (Cravidão,
2006, 272-3). O “trunfo” destas AH reside na sua diferença, no resultado ambíguo e
ambivalente da conjugação de patrimónios de diferentes passados.
10
A entrada Aldeias Históricas na Wikipedia diz o seguinte:_ “Aldeias Históricas são antiquíssimos
núcleos urbanos com fundação anterior à nação portuguesa, de grande importância histórica. Erguem-
se normalmente em terras altas, pois constituíam núcleos de defesa das populações que nelas se
estabeleceram, ainda antes da denominação romana. Destacam-se pela arquitectura militar, pois a
maioria encontra-se rodeada de muralhas e desenvolve-se junto de um castelo” (sublinhados nossos)
10
Aldeias históricas – narrativas e património
Este texto não pretende analisar as origens, o processo ou os efeitos do Programa das Aldeias
Históricas nem no domínio económico nem no social e político 11. Tão pouco indagar das
consequências na identidade das populações e nas representações dos próprios habitantes e
daqueles que os visitam, física ou virtualmente. Propõe-se, muito simplesmente, contribuir
para uma reflexão sobre os processos de construção do território e da identidade territorial
através da apresentação e de um breve comentário de narrativas das aldeias que fazem parte
deste Programa transmitidas por guias (corográficos, de viagem ou de turismo) desde os finais
do século XIX e pelos sites das câmaras municipais. Utilizaram-se, para este efeito, a
Corografia Portuguesa de Carvalho da Costa (1706-12), o Portugal Antigo e Moderno de
Pinho Leal (1873-1890), o conhecido Guia de Portugal da Gulbenkian (volume Beira Baixa e
Alta, coordenado por Raul Proença e com contributos diversos, 1ª edição em 1944), um guia
turístico de finais da década de 1980 (Mobil nos caminhos de Portugal, vol. Beira Alta, 1987,
texto de Francisco Hipólito Raposo) e a Carta do Lazer das Aldeias Históricas (2000)12
realizada já no quadro do referido Programa. A informação foi organizada em 7 tópicos: uma
biografia em comum, o antigo carácter urbano, abandono e renovação, a paisagem, as
explicações da decadência oitocentista, os sinais da ruralização e o património.
11
Leiam-se, por exemplo, as reflexões de Cravidão (2006, 276) após um fim-de-semana na aldeia
histórica de Almeida em que assistiu a uma representação histórico-turística de episódios das Invasões
Francesas.
12
A recolha da informação deste guia nem sempre foi fácil por dois motivos: a existência de uma versão em
papel e outra disponível na Internet, as quais sendo muito semelhantes nem sempre coincidem no património
apresentado e comentado; o facto de, na edição impressa, as informações da parte descritiva, as da secção
percurso urbano e a legenda da planta de cada aldeia (com indicação dos locais a visitar) apresentarem também
algumas discrepâncias no que diz respeito ao património a visitar.
11
alternaram períodos de abandono com épocas de relativa prosperidade. Tomados em conjunto,
estes aglomerados conheceram três ou quatro períodos de alguma fortuna económica e
demográfica: com a ocupação romana (apenas alguns), nos séculos XII-XIII no quadro da
reconquista e das políticas militares e de povoamento, no século XVI devido certamente ao
impacto dos descobrimentos e no século XVIII. O património arquitectónico e arqueológico
reflecte precisamente estes momentos: vestígios romanos (como no caso excepcional de
Idanha-a-Velha), castelos e muralhas medievais, pelourinhos medievais e quinhentistas,
igrejas e janelas manuelinas, obras seiscentistas nas estruturas militares, palácios e igrejas
barrocas, novas construções ou melhoramentos realizados no século XVIII (cf. quadros 7 a 9).
No século XIX, o declínio populacional e a perda de importância estratégica e económica já
eram evidentes (apesar da importância de Almeida, por exemplo, durante a guerra da
independência) e foram justificação para perderem a categoria de sede de concelho nas
reformas administrativas ocorridas após 1835 situação que, por seu turno, acentuou a
decadência destas antigas vilas. Ruralizaram-se, empobreceram sendo que a migração das
elites locais para os centros urbanos do litoral (Monteiro, 2003, 229) foi ao mesmo tempo
consequência e factor dessa profunda transformação.
12
a-velha que “foi antigamente cidade fundada pelos romanos quando dominaram Espanha” ou
Trancoso “fundada por Tarracon, rei da Etiópia e Egipto, quando aportou em Espanha pelos
anos 730 antes da vinda de Cristo”. Monsanto, mandou-a povoar D. Sancho I e D. Manuel, a
“fez villa, concedendo-lhe voto em Cortes com assento no banco catorze”. Com algumas
diferenças, resultado de novas investigações arqueológicas, é o que ainda hoje se pode
continuar a ler sobre a origem destes núcleos.
O que é relevante, para o que nos interessa, não é tanto a veracidade dos factos
relatados mas sim a narrativa das origens – e dela faz parte essencial, como sucede com todas
as cidades, o acto fundacional. É por isso mesmo também que o texto dedicado a Piódão em
todos os guias (com excepção compreensível da Carta do Lazer das Aldeias Históricas) é
curto ou quase inexistente. Sintomaticamente o Guia de Portugal da Gulbenkian nada diz
sobre esta terra13. Piódão é a única destas aldeias que, embora tendo sido concelho nunca foi
vila. De seu nome medieval Vide de Foz de Piódam, a primeira referência conhecida surge no
numeramento de 1527, como Casal do Piódão, nos limites do concelho de Avô (Inatel, 2000,
186)
13
O seu nome vem apenas referido de passagem a propósito das excursões que se podem fazer a partir
de Porto da Balsa: “para os lados de Piódão e da Estrela”. (3º vol, t. I, p. 420 da edição de 1984)
13
1957 IIP (igreja matriz)
1967 IIP (janela manuelina na casa
do judeu)
Marialva X X (8) [1179] 1933 IIP (pelourinho)
X 1512 1978 MN (castelo)
2002 IIP (igreja S.Pedro)
Monsanto x X X (3) 1174 1948 MN (castelo, muralhas)
1510 1933 IIP (pelourinho)
1982 IIP (aldeia)
Piodão 1978 IIP (povoação)
Sortelha x X (7) 1228 1910 MN (castelo)
1510 1933 IIP (pelourinho)
Trancoso X(cid x X (30) 1217 1910 MN (pelourinho)
ade) 1510 1921 MN (castelo, muralhas) Terreiro da
1944 IIP (igreja Fresta) batalha de
1953 IIP (capela Sta Luzia) Trancoso
1978 IIP (necrópole)
1997 IIP (via romana)
MN – Monumento Nacional; IIP – Imóvel de Interesse Público; IIM - Imóvel de Interesse Municipal
* segundo Carvalho da Costa
Fonte: IPPAR, Património classificado, 2008 (www.ippar.pt); Inatel - Carta do lazer, 2000
(www.cartadolazer.inatel.pt)
Abandono e renovação
“Foi muitos anos (mais de seis séculos) capital de concelho; mas por causa da aspereza
da sua posição, pela sua decadência, e porque a povoação da Figueira foi progredindo,
se mudou para aqui a cabeça do concelho” Pinho Leal (1873-1890), entrada “Castelo
Rodrigo”.
14
Todas estas Vilas conheceram desde a sua origem destruições que, em alguns casos,
conduziram ao quase abandono da povoação. Nas narrativas históricas são frequentemente
mencionadas as destruições e reconstruções ocorridas no período medieval: abandonada, em
ruínas, reedificada, de novo despovoada, reconstruída… Castelo Rodrigo, por exemplo,
“segunda vez se arruinou com contínuas guerras e a reedificou D. Manuel pelos anos de
1509” conta Carvalho da Costa. As características de vilas raianas fortificadas (ou praça-forte
como Almeida) eram a causa da sua destruição e ruína mas também da necessidade da sua
reconstrução, como ainda aconteceu no século XVII com as guerras da restauração. O último
fulgor “guerreiro” deu-se com as invasões francesas, quando globalmente já tinham perdido
muito do seu valor estratégico.
Embora se diga habitualmente que estas antigas vilas iniciaram o declínio no século
XVIII (ou mesmo antes), os dados sobre o património edificado obrigam a matizar a
afirmação. Se repararmos na informação coligida dos quadros 7 a 9 verifica-se que durante
Setecentos ocorreram construções de raiz ou obras no património existente, em particular no
religioso e no civil de carácter particular, o que é reforçado com o facto, já referido, de o
abandono das elites apenas ter ocorrido no século XIX. Na segunda metade deste século estas
antigas vilas começaram a ver a sua população diminuir e (no quadro das reformas
administrativas de oitocentos levadas a cabo pelos governos liberais) perderam a categoria de
concelho e com ela a autonomia jurisdicional de que tanto se orgulhavam. Idanha-a-Velha,
por exemplo, que fora “nobilíssima e brilhante cidade” “uma das mais vastas, nobres e
opulentas cidades da Lusitânia”, estava “reduzida a insignificante aldeia” no último quartel do
século XIX segundo Pinho Leal (1873-1890) que acrescenta “só por comiseração e em
atenção ao que foi outrora, se lhe dá o título de vila!”
15
Castelo Rodrigo 469 451 496 512
Idanha-a-Velha 79 346 321 174
Linhares 337 1.016 1.103 1.102
Marialva 217 727 728 567
Monsanto 1160 3.541 3.689 2.057
Piodão 224 1.088 1.070 803
Sortelha 579 1.458 1320 882
Trancoso (concelho) 10.889 18.224 19.674 17.205
Trancoso (cidade)* 3.106 3.014 3.186 2.759
* apenas as freguesias urbanas de Sta Maria e S. Pedro.
Fonte: INE, Recenseamento geral da população, 1960 e 2001.
A paisagem.
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pelourinhos de que tanto se orgulham, são as provas (e os símbolos) de uma história que as
distingue das “verdadeiras” aldeias; passados os períodos áureos, o abandono social e
demográfico e a estagnação económica impediram o crescimento da vila e com isso a criação
de áreas suburbanas – o resultado são “as soberbas paisagens” que envolvem estas aldeias.
Vejamos como evolui a percepção da paisagem.
Se Carvalho da Costa (1706-12) nada nos diz sobre a paisagem envolvente ·, já Pinho
Leal (1873-90) é sensível às qualidades estéticas e ambientais. A época é outra e a
sensibilidade mudou, é certo, Mas pode admitir-se que essa atitude é também consequência do
estado de ruína e abandono em que já se encontravam muitas das AH. Atente-se em alguns
dos comentários, nos quais se misturam ainda a apreciação estética e a avaliação agrícola: em
Almeida, “do castelo da vila desfruta-se uma linda vista”; Belmonte está “situada em
aprazível monte (que lhe deu o nome) defronte e a Este da Serra da estrela. Daqui se vê
Covilhã, Sortelha, […]. Vê-se também a fértil e aprazível veiga que lhe fica ao sopé [,,,] Esta
vila está situada na bonita e fertilíssima região denominada Cova da Beira, na Serra da
Atalaia, em sítio alegre, vistoso e que domina a planície por onde desliza o Zêzere, que nasce
aqui perto”; em Monsanto, como há muitas nascentes de água, “os arrabaldes da vila são
compostos de hortas e pomares, e bonitos”.
Raul Proença (Guia de Portugal, 1944,) tem já um olhar apenas estético sobre a
paisagem em que se inserem as AH. Repare-se como apresenta Almeida (p. 967): “a toda a
volta, a planície indefinida […]. É uma paisagem tranquila e rica de encanto, principalmente
na Primavera, quando as searas ondulam por todos os lados, à volta da fortaleza morta”.
Numa perspectiva que consideraríamos muito moderna, propõe “passeios e excursões”, a
partir de Almeida, até Malpartida, “povoação raiana de relativo interesse” onde se deu um
combate durante a 1ª invasão francesa e onde se podem ver os engenhos de rega conhecidos
por cegonhas, picanços ou burras dando “um aspecto singular à paisagem linear de hortejos e
outeiros”; e ao vale do Côa, pela estrada velha de Pinhel “só utilizável a cavalo”, onde se pode
admirar uma “paisagem pitoresca” ao longo do vale com olivais, vinhedos, amendoeiras e
penedias.
Na Carta do Lazer das AH (2000) pode afirmar-se que o texto não dá relevo algum à
paisagem natural. A Carta foi elaborada na 1ª fase do Programa e reflecte por isso a particular
atenção e os investimentos na recuperação do património edificado. No entanto, as muitas
fotografias do livro dão a ver imagens esteticizadas das AH: do património edificado, em
grande plano ou “habitando” em solitária ruína neo-romântica uma paisagem-cenário, e das
17
paisagens envolventes ora majestosas ora próximas e acolhedoras. No conjunto, as pessoas (a
população) estão ausentes, apenas um ou outro habitante quase fugidio, e o gado, quando
surge, é mais uma pintura, um elemento bucólico. Uma paisagem natural encarada não como
terra de produção agrícola mas como espaço de fruição ambiental e estética.
O património
“No século XX, quando se deu a grande vaga restauracionista no país, Marialva era
pouco mais que uma ruína. Nos anos 40 procedeu-se à reconstrução quase integral da
torre de menagem, bem como de numerosos troços de muralha que ameaçavam
desaparecer. Na actualidade, Marialva é uma das Aldeias Históricas da Beira, facto que
permitiu o restauro de grande parte da vila e um primeiro desenvolvimento turístico.”
(IPPAR)
“A Rota das Aldeias Históricas propõe um percurso pelas aldeias que representam um
testemunho vivo da nossa história colectiva. As aldeias que designamos aqui como
históricas são aldeias que, principalmente através do património edificado, são
testemunhos vivos, que nos permitem perceber como se foi vivendo na Beira Serra em
séculos passados. Não que as outras aldeias à beira da Serra da Estrela sejam menos
históricas, mas nestas, pela sua cultura e estado de conservação patrimonial, sente-se
com mais intensidade a força que o conhecimento do passado pode ter no nosso futuro.”
(sublinhados nossos)
Domínios
Valorização do património 34%
Reabilitação e recuperação urbanística 21%
Infra-estruturas de base 19%
Equipamentos de apoio directo ao turismo 12%
Iniciativas de animação e divulgação 10%
Criação de micro-empresas 4%
Fonte: Boura (2004, 120)
Nota: diz apenas respeito a 10 aldeias.
Igrejas 15
18
Castelos e panos de muralhas 8
Edifícios 24
Espaços museológicos e multifuncionais 4
Postos de turismo 9
Pousadas e estalagem 5
Turismo rural 23
Micro-empresas (gastronomia) 5
Publicações 25
Nos finais do século XIX uma boa parte do património estava em estado de abandono.
No Portugal Antigo e Moderno, Pinho Leal (1873-1890) vai informando “hoje está tudo
desmantelado” (Sortelha); “já se sabe que está tudo em ruínas. Tanto o castelo e muralhas,
como a torre de Centum Cellas” (Belmonte); “no centro da vila há um castelo antigo, de
cantaria, em ruínas” (Castelo Novo); o palácio de Cristóvão de Moura, é “obra de grande
primor, mas está em ruínas” (Castelo Rodrigo); o antigo “e desmantelado castelo, com duas
portas e duas torres” está “tudo a vir abaixo” (Linhares), etc., etc. Durante o Estado Novo foi
restaurado algum património (estruturas defensivas e pelourinhos sobretudo, sendo
classificados Monumentos Nacionais) mas o abandono ou mesmo ruína em que se encontrava
só foi contrariado com o Programa AH. O que há de novo não é esse trabalho de recuperação
ou restauro, mas sim a quantidade e a qualidade do património.
A comparação entre o património referido nos guias que aqui se têm vindo a utilizar
mostra claramente a evolução da noção de património - de mais oficial, monumental e elitista
a mais popular e ligado à vida quotidiana – num processo já classificado como de “histeria do
património”. Paulo Peixoto (2004, 7) tem chamado a atenção para o papel desempenhado
pelos meios rurais na “produção e difusão desta histeria do património, na medida em que, ao
mobilizarem-se para enfrentarem a crise agrícola ou a integração em espaços urbanos,
contribuem enormemente para um alargamento incessante do campo patrimonial”..Fez-se o
exercício para três das AH, com base no património assinalado pelos guias que cobrem o
período que vai de 1870 a 2000 (quadros 7-9)..
19
Fortaleza e XVII x x x x Militar
Muralhas da praça
Palácio da Vedoria XVII x x x Militar
6 baluartes XVII x x x X Militar
5 revelins XVII x x x x Militar
Quartel das XVIII x x X Militar
esquadras
Picadeiro d’El-Rei XVIII x Militar
rei
Quartel artilharia XVIII x x X Militar
(actual câmara
municipal)
Casamatas XVIII x X Militar
Passos da via sacra ? x Religiosa
Igreja Matriz/ XVIII - x X Religiosa
capela convento
N.Sra
Loreto/Candeias
Capela da XVII (?) x x X X Religiosa
misericórdia
Convento de Sto XVIII (?) x X Religiosa
Cristo da Barca / S.
Francisco
Torre do relógio XIX x X Religiosa
Casa da roda dos XIX x Religiosa
expostos
20
Antiga casa da XVII x Civil pública
Câmara e Cadeia
Troços calçada Romana e X Civil
romana /medieval medieval público
3 Fontes de XIII e XIV X Civil
mergulho (?) público
Chafariz d’el rei XIV (?), X Civil
XVII, e XIX público
Pelourinho XVI X X X Civil
público
Chafariz novo XIX X Civil
público
O Mendo e a X X Escultura
Menda civil
Os berrões X X Escultura
popular
Castelo XIII / XIV (?) x X x x Militar
Muralhas XIII/XIV-XV x X X x Militar
Igreja Sta Mª XIII X X X Religiosa
Castelo (ruínas)
Igreja de S. Vicente XIII e x X X x Religiosa
(Antiga XVI/XVII
misericórdia)
Igreja de S. Pedro XIV/XIX X X Religiosa
(matriz)
Capela do cemitério XVI e XIX X Religiosa
(?)
Calvário XIX ? x Religiosa
Cruzeiro junto XVII-XVIII x Religiosa
calvário (?) popular
Cruzeiros (Jt XIX x Religiosa
Alpendre da Feira) popular
Alminha junto XVIII-XIX x Religiosa
Porta da vila popular?
21
(ruínas) particular
Solar Brandão de XIX X X X Civil
Melo particular
Calçada romana/ Romana e X X Civil pública
estrada almocreves medieval
Forum e fonte de Romana e X X X x Civil pública
mergulho medieval
Pelourinho XVI X X X Civil pública
Fonte Babosa /de XVI (?) X X Civil pública
mergulho
Casa da Câmara XVIII (?) X X X x Civil pública
Fonte de S. Caetano XIX X X x Civil pública
Corredoura X Civil
público
Chafariz (outro) X Civil
público
Casa Fortaleza / XII e XVI X x Civil
hospital da religiosa
misericórdia
Castelo XIII/XIV X X X X Militar
Calvário X Religiosa
Capela de Sta X Religiosa
Eufémia
Igreja matriz (Sta XII e XVII X X X Religiosa
Maria /sra
Assunção)
Igreja misericórdia XVI e XVII X x X x Religiosa
Capela N.Sra XVI/XVII X Religiosa
Conceição /dos
Passos
22
Proença Tavares Júnior se deu a “redescoberta” do passado romano e medieval de Idanha.
Depois, as escavações dos arqueólogos Fernando de Almeida e Veiga Ferreira a partir de
1955 revelaram o importante conjunto arqueológico e arquitectónico que foi considerado
Monumento Nacional em 199714.. Mas se consultarmos a Corografia de Carvalho da Costa
(1706-12) e o Portugal Antigo e Moderno de Pinho Leal (1873-1890) podemos verificar que
os únicos monumentos dignos de registo são os “arruinados e fortes muros com seu castelo” e
a igreja matriz, antiga catedral. Pinho Leal, de passagem, refere também que naquela que
estava reduzida “a insignificante aldeia” e nos seus arredores existiam “muitos vestígios da
sua remota antiguidade, e da vastidão do seu âmbito”.
14
O Castelo, a Catedral e a envolvente haviam já sido classificados como Imóvel de Interesse Público em 1956.
23
ou as obras da Câmara Municipal e a sua aceitação, e até partilha, do que considera o “mau
gosto” popular, que algum progresso permitiu que se exprimisse:
mostra uma apropriação e uma vivência do lugar e do património protagonizada pelos “populares” e
situada nos antípodas das concepções e do gosto urbano-intelectual que são aqui simultaneamente
expressas.
A segunda revela os sentimentos ambivalentes dos autarcas em relação aos critérios de
recuperação e manutenção do património exigidos pelo programa das AH e, de modo subliminar, a
difícil aceitação pelos habitantes dos padrões estéticos impostos:
“pequenas casas de pedra, com alpendre e janelas aprumadas revelam uma arquitectura
tradicional atribuída às gentes com menos posses. E se a reconstrução lhes retirou a tinta
e o reboco, também lhes deu outra vida e outra postura” (site carta do lazer. Inatel,
apresentação de Castelo Mendo)
“É muito difícil ser-se presidente de Junta de uma Aldeia Histórica, a todos os pontos de
vista”, desabafa o edil [de Castelo Rodrigo]. “A Aldeia Histórica depende de tudo do
IPPAR, é ele o dono absoluto, é quem manda” assegurou. Ainda assim, tem noção que a
Aldeia mudou como do ‘dia para a noite’. […] “vieram as equipas do IPPAR que
iniciaram trabalhos prolongados aplicando técnicas para que não fossem destruídos os
edifícios”. Um trabalho que agora é bem visível aos olhos de todos […]. A classificação
trouxe benefícios que de outra forma a localidade nunca iria conseguir” (Jornal Nova
Guarda, 2005)
24
Dado que não se pode patrimonializar tudo, a questão centra-se na escolha. Ora, aquilo
que se selecciona com o fim de preservar e dar a ver, a história que é recordada é a que faz
sentido no momento da sua convocação (Hobsbawm, 1988; Connerton, 1989), ou, como
Halbawchs (1925) já sublinhara a memórria social (i.é. colectiva) é uma reconstrução e uma
representação do passado elaborada no presente. Escolhem-se eventos, memórias,
monumentos, etc., de acordo com a ideologia dominante. Na esteira da análise de Bourdieu
(1989, 120) sobre a identidade regional, a selecção do património das AH é o resultado “de
representações mentais, quer dizer, de actos de percepção e de apreciação, de conhecimento e
de reconhecimento em que os agentes investem os seus interesses e os seus pressupostos, e de
representações objectais, em coisas (emblemas, bandeiras, insígnias, etc.) ou em actos,
estratégias interessadas de manipulação simbólica que têm em vista determinar a
representação mental que os outros podem ter destas propriedades e dos seus portadores”.
Sendo o turismo uma indústria que age através de um sistema de signos, os”códigos e mitos
identificados nos slogans turísticos comunicam imagens que se combinam para criar lugares
de mito de uma paisagem simbólica” (Abrahamsson, 1999, 52).
25
A situação das AH é interessante quando olhada quer do lado da construção das
identidades colectivas e das memórias sociais A descrição anterior procurou mostrar que
a) as narrativas históricas e o património protegido e recuperado reenviam para a
memória distante dum passado urbano15;
b) que as populações tinham orgulho no facto de viveram em aglomerados que, se
funcional e socialmente eram aldeias, tinham tido no passado o título de vilas e como tal eram
designadas (com excepção do Piódão)
c) que estão mais ou menos conformadas com a sua nova situação de aldeias históricas
na medida em que isso contribui para o desenvolvimento e, por aí, para uma melhoria das
suas condições de vida;
d) que os programas de desenvolvimento local e o turismo levaram a cabo uma
reconstituição histórica e patrimonial que reinterpretou a imagem destas terras .
Coloca-se assim a questão de saber que imagens estas comunidades têm de si próprias.
Sendo que uma identidade coerente é aquela em que existe um equilíbrio entre a realidade
paisagem e a sua representação (Harner, 2001). Isto é, a paisagem representa a materialização
de diferentes interesses sociais, “mostra os valores através dos quais a sociedade é
organizada”, expressa ideologias sociais, que são depois perpetuadas e suportadas através da
paisagem.(Crang, 1998)
15
Sobre o lugar das memórias distantes e das memórias recentes na memória colectiva veja-se
Halbwachs (1925) e a crítica de Connerton (1991, 45-48)
26
A situação paradoxal no caso da maior parte da AH é que elas foram vilas num
passado remoto, muitas perderam esse estatuto no século XIX, todas se tornaram de facto
aldeias (excepto Trancoso que até é cidade desde 2004) pela evolução demográfica e
económica e pela estrutura social (aglomerações de baixa densidade, actividade agrícola de
cariz tradicional e baixos rendimentos, etc.) mesmo se mantém a categoria de vila, e agora são
“aldeias históricas” graças ao seu passado urbano (com excepção de Piódão). Um urbano mais
medieval ou mais seiscentista conforme os casos.
Construiu-se uma nova imagem para antigos lugares, através de ícones e marcas onde
se fundem de modo ambivalente e algo paradoxal patrimónios urbanos e rurais. As antigas
vilas são transformadas em aldeias históricas, lugares turísticos que, como Deprest (1997,
apud Cavaco, 2006, 273) sublinha, são uma produção social. Foi provavelmente uma boa
estratégia para a promoção destes lugares: por um lado, a possibilidade de candidatura a
fundos europeus destinados ao desenvolvimento em áreas rurais; por outro, na lógica da sua
articulação com o turismo, a criação um produto diferente. Como, apesar de serem antigos
núcleos urbanos, a relativa exiguidade e pobreza do património monumental não permitia a
concorrência com o turismo cultural-urbano, criou-se um produto novo, as Aldeias
Históricas”, tirando partido do valor do “rural” 16 nas práticas turísticas actuais e da existência
da paisagem envolvente agora vista como património ambiental. Não há aqui “nem
perversidade nem mentira sistemática” nem mesmo autenticidade encenada. Pode dizer-se que
proporciona de facto, como se pode ler num site turístico, “uma forma de turismo diferente”,
um “cenário ideal” para “a descoberta do Portugal profundo”. Se representa um imaginário
“Portugal profundo” é outra questão. Resta a da identidade das populações das Aldeias
Históricas. Mas esse é um problema de difícil equação.
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16
O “rural” transformou-se simultaneamente “num signo mercantilizado e num espaço simbólico
consumível” (Hopkins (1998, 78), apud Abrahamsson (1999, 52)).
27
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Aldeias Históricas bem como alguns sites de propaganda turística.
29