Você está na página 1de 20

Aquíferos na economia: metodologias de valoração de serviços ecossistêmicos de águas

subterrâneas
Sessão Temática: Biodiversidade, serviços ecossistêmicos e valoração

César Prazeres1, Isabella Nogueira Bittar de Castilho-Barbosa2, Pablo Dadalti Borba Barroso3, Ricardo
Hirata4 e Paulo Sérgio Fracalanza5

Resumo
As águas subterrâneas representam a maior parte das águas doces e líquidas do planeta e são,
pois, fundamentais para os seres vivos. O trabalho justifica-se pela importância dos aquíferos e
dos riscos de contaminação e superexplotação a que são submetidos. O objetivo é propor
possibilidades de aplicação de metodologias de valoração ambiental aos serviços
ecossistêmicos de aquíferos, por meio do que se procura alicerçar Hidrogeologia e Ciência
Econômica no estudo do tema. Para alcançar a sua meta, percorre-se o seguinte caminho lógico:
referencia-se teoricamente no campo da Economia Ecológica, de abordagem transdisciplinar;
explicam-se os serviços ecossistêmicos de aquíferos; exploram-se as metodologias de valoração
discutidas na literatura; e, por fim, apresenta-se, na forma de quadro, um plano de aplicação das
metodologias aos serviços elencados.
Palavras-chave: águas subterrâneas, serviços ecossistêmicos, valoração ambiental, Economia
Ecológica, Hidrogeologia.

Abstract
Groundwater represents the majority of the planet's freshwater and liquid resources and is,
therefore, crucial for living organisms. This work is justified by the importance of aquifers and
the risks of contamination and overexploitation they face. The objective is to propose
possibilities for applying environmental valuation methodologies to ecosystem services
provided by aquifers, thereby aiming to integrate Hydrogeology and Economic Science in the
study of this subject. To achieve its goal, the following logical path is followed: theoretical
referencing in the field of Ecological Economics, with a transdisciplinary approach; explanation
of aquifer ecosystem services; exploration of valuation methodologies discussed in the
literature; and finally, the presentation of an application plan for these methodologies to the
listed services in the form of a table.
Key words: Groundwater, ecosystem services, environmental valuation, Ecological Economics,
Hydrogeology.

1
Filiação institucional: IE/UNICAMP. Contato: cprazeresfp@gmail.com.
2
Filiação institucional: IG/UNICAMP. Contato: bella.unicamp@gmail.com.
3
Filiação institucional: PSE-FEM/UNICAMP. Contato: pabudadalti@gmail.com.
4
Filiação institucional: CEPAS/USP. Contato: rhirata@usp.br.
5
Filiação institucional: IE/UNICAMP. Contato: fracalan@unicamp.br.

Santarém, 07 a 11 de novembro de 2023


XV Encontro Nacional da Sociedade Brasileira de Economia Ecológica
1. Introdução
A água é um recurso vital para a existência de vida e desempenha papel fundamental
nas atividades econômicas. De toda a água do planeta, 97% são salgados, presentes nos oceanos,
mares e lagos salinos. Das águas doces, pouco menos de um terço é próprio ao consumo. O
restante localiza-se em zonas remotas, geleiras e calotas polares (REBOUÇAS, 2015). As águas
subterrâneas representam, aproximadamente, 97% do volume total de águas doces e líquidas,
“o que torna os aquíferos o maior reservatório de água potável da humanidade” (HIRATA et
al., 2019a, p.17).
Aquíferos são reservatório subterrâneos de água. São formados por rochas, ou
formações geológicas, porosas e permeáveis, que possibilitam a infiltração das águas pluviais.
São classificados quanto à capacidade de armazenamento (poros) e de transmissão
(permeabilidade). Para Hirata et. al. (2019a), as águas subterrâneas “são responsáveis por uma
revolução no Brasil” (p. 28), pois seu potencial de abastecimento pode evitar futuras crises
hídricas.
O Brasil goza de privilégio por abrigar em seu território parcelas majoritárias dos dois
maiores aquíferos do planeta: o Sistema Aquífero Guarani (SAG) e o Sistema Aquífero Grande
Amazônia (SAGA). São, portanto, as águas subterrâneas o recurso mais extraído do subsolo
brasileiro, com volume suficiente para abastecer o equivalente a 217 milhões de pessoas
(HIRATA et al., 2019b). São indispensáveis a diferentes ecossistemas e utilizadas em diversas
atividades econômicas, como: uso doméstico, abastecimento público (e prestação de serviços)
urbano, abastecimento industrial, e agropecuária.
Diante da excelente qualidade das águas subterrâneas no Brasil e outras vantagens 6, o
recurso tem sido escolhido como prioritário, às vezes exclusivo, em muitas atividades,
implicando aumento da perfuração de poços em todo o país nos últimos anos. Além disso, a
importância das águas subterrâneas para as cidades brasileiras deve ser mencionada: de acordo
com dados da ANA7 (2010), “[...] 52% dos 5.570 municípios brasileiros são abastecidos total
(36%) ou parcialmente (16%) por águas subterrâneas” (HIRATA et al., 2019b, pg. 13).

6
Dentre as diversas vantagens, Hirata et al. (2019a) e Hirata et al. (2019b) apontam: i. A água subterrânea permite
seu uso direto com pouca ou nenhuma necessidade de tratamento na maioria das captações; ii. Os aquíferos têm
uma grande capacidade de armazenamento de água, o que mantém as vazões dos poços estáveis, mesmo após
longos períodos de estiagem; iii. Desde que sejam observados os cuidados e respeitada a legislação pertinente, os
poços podem ser perfurados em praticamente qualquer lugar, facilitando o abastecimento; iv. Os poços têm custos
de operação e manutenção relativamente baixos, podendo funcionar de forma autônoma, sem a necessidade de
supervisão contínua por parte de técnicos; iv. Os investimentos podem ser escalonados no tempo, já que novos
poços podem ser perfurados à medida em que surja demanda, prescindindo de grande capital inicial.
7
Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico.
2
Ao mesmo tempo em que o recurso é apontado por especialistas como alternativa para
se evitar futura crises hídricas, a falta de outorga é um dos principais problemas enfrentados
atualmente: a perfuração realizada de modo indiscriminado e sem autorização legal — poços
classificados como irregulares — permanece fora das estatísticas oficiais (CASTILHO-
BARBOSA et al., 2020). Como resultado, são inacessíveis para as autoridades públicas e órgãos
de pesquisa. Essa prática é insustentável a longo prazo e, também, preocupante, pois restam
prejudicas estimativas de reservas, cálculos do balanço hídrico e impactos ambientais.
Ademais, essa situação potencializa o risco de superexplotação, possibilitando a ocorrência de
cenário de insuficiência hídrica e poluição dos aquíferos, assim como demonstra Villar: “A
situação se agrava diante da percepção privada da água subterrânea, o que fomenta a perfuração
de poços à revelia das exigências legais, compromete os direitos outorgados e aumenta o risco
de escassez” (2016, p. 84).
Portanto, são prementes pesquisas e ações que sirvam à compreensão da importância
das águas aquíferas para os ecossistemas e para o desenvolvimento sustentável. Procura-se,
como propósito maior deste trabalho, construir pontes entre hidrogeólogos e economistas no
estudo das águas subterrâneas. O objetivo é propor possibilidades de aplicação de metodologias
de valoração ambiental aos serviços ecossistêmicos de aquíferos. É com este propósito que ora
se conjuga esforços. Trata-se de assunto ainda pouco explorado na literatura. O esforço deste
empreendimento terá sido válido se elucidar a importância desta agenda de pesquisa e instigar
outros pesquisadores no aprofundamento no tema. O sentido da abordagem valorativa constitui
o alicerce da transdisciplinaridade do estudo e serve à tomada de decisões de políticas de gestão
hídrica.
Este artigo está dividido em seis seções, a contar desta introdução. A segunda serve à
delimitação do caminho lógico definido na metodologia. A terceira se dedica à compreensão
do approach teórico adequado ao propósito de abordagem transdisciplinar no estudo de sistemas
naturais e econômicos. Na quarta seção, é definido o conceito de serviço ecossistêmico, a partir
do que se pode compreender por que meios os aquíferos provêm benefícios à humanidade. Na
quinta seção, revisa-se a literatura sobre metodologias de valoração de serviços ecossistêmicos,
com vistas à apresentação de quadro de possibilidades de aplicação de tais metodologias aos
serviços de águas subterrâneas, objeto da última seção, na qual se discutem as conclusões.

2. Nota metodológica
Para se alcançar o objetivo proposto — apresentar possibilidades de aplicação de
metodologias de valoração aos serviços ecossistêmicos de águas subterrâneas — percorre-se
2
quatro etapas. A primeira diz respeito à breve elaboração teórico-conceitual do papel da
valoração na compreensão das relações entre natureza e sistema econômico. A partir dela, pode-
se situar seu papel analítico e o sentido das prescrições de política derivadas da valoração, com
particular atenção àquelas que possam captar a importância dos ecossistemas.
A segunda etapa passa pela delineação dos serviços ecossistêmicos de aquíferos. Este
procedimento é decisivo, na medida em que o que confere precisão aos métodos de valoração
é o conhecimento sobre os ecossistemas em análise. A proposta passa pelo uso de variáveis e
parâmetros ecológicos, econômicos e sociais que contemplem os serviços elencados. Neste
ponto, apoia-se, sobretudo, nos autores do campo da hidrogeologia. Toma-se como parâmetro
para a categorização de serviços ecossistêmicos o esquema de classificação — largamente
utilizado nos estudos relativos à temática — proposto na Avaliação Ecossistêmica do Milênio8.
A terceira etapa envolve a consulta à literatura na busca por metodologias de valoração
ambiental, observando suas possibilidades e limitações. Diante da diversidade de metodologias,
selecionam-se aquelas mais adequadas a cada tipo de serviço ecossistêmico de águas
subterrâneas descrito na etapa anterior. Este passo possibilita a execução da quarta etapa, que
consiste na apresentação de quadro de trabalho que sistematize as metodologias adequadas aos
serviços elencados.

3. Referencial teórico: Economia Ecológica e valoração


Há o entendimento de que o referencial teórico adequado ao propósito geral estabelecido
para esta agenda de pesquisa deve ser buscado no campo da Economia Ecológica. Esta decisão
é pertinente em virtude do fato de este approach teórico partir do reconhecimento da
necessidade incontornável de abordagem transdisciplinar na compreensão das relações entre
sistemas ecológicos e econômicos (COSTANZA, 1994; GONZÁLEZ, 2004). No presente
trabalho, não se pode prescindir das contribuições, sobretudo, de pesquisadores da
Hidrogeologia9.
Aquele reconhecimento é derivado do esforço de rompimento com estruturas analíticas
que dão sentido à importância de recursos naturais por constituírem matérias-primas ou bens
de consumo (AMAZONAS, 2009a; ANDRADE, 2010; COSTANZA, 1994; ROMEIRO,
2009). Tais estruturas referem-se à abordagem econômica tradicional, fundada na análise de
comportamento de agentes econômicos dotados de racionalidade na maximização de utilidades,

8
Millennium Ecosystem Assessment (MEA, 2005).
9
Salienta-se as contribuições de pesquisadores ligados ao CEPAS|USP.
2
ou de “bem-estar”. Estes são fundamentos teóricos da Economia Ambiental neoclássica10. Na
visão pré-analítica da Economia Ecológica, os sistemas econômicos e ecológicos são
entendidos como subsistemas de um ecossistema finito maior. Nesta perspectiva, toma-se
critérios não tradicionais (maximização paretiana) para pensar a alocação de recursos
(MUELLER, 2007).
As premissas fundantes da Economia Ecológica são coerentes com o objetivo de
estabelecer pontos de convergência entre pesquisadores da Ciência Econômica e da
Hidrogeologia no estudo das águas subterrâneas e do instrumento da valoração como
possibilidade de instituição de normas para sua adequada gestão. O aprofundamento nos
elementos teóricos da Economia Ecológica11, porém, demandaria esforços que estão além dos
objetivos aqui delimitados.
Um ponto importante da construção teórica, porém, merece destaque. Autores do campo
tecem muitas críticas à imputação de valores monetários a serviços ecossistêmicos, mormente
realizada desde os preceitos da microeconomia neoclássica. Há diversas limitações oriundas
destes preceitos. Metodologias fundadas na disposição a pagar não visam ao equilíbrio
ecológico, assim como é evidentemente inverossímil a hipótese de que as decisões de alocação
intertemporal de recursos considerariam direitos de gerações futuras. Igualmente, considera-se
insubstituíveis capital natural e produzido para a maior parte dos casos, dentre outros tantas
limitações apontadas na literatura.
O ponto central deste destaque diz respeito ao reconhecimento — a despeito da
quantidade de críticas — da importância da valoração para fins de gestão de recursos12
(AMAZONAS, 2009b; HERENDEEN, 1998). Até mesmo argumentos morais para
conservação de recursos trazidos pela Economia Ecológica impõem decisões econômicas,
embora levem o problema para outro campo de discurso. Assim se reconhece que as
argumentações pelas duas vias devem caminhar paralelamente (COSTANZA et al., 1997).
Portanto, a aplicação dos métodos valorativos tem relevância. A diferença em relação às
abordagens mais ortodoxas reside no fato de que o propósito deste exercício não é a otimização
da alocação de recursos, mas a busca pelo equilíbrio ecológico.

10
Destacam-se alguns trabalhos para consulta: Adar e Griffin (1976), Baumol e Oates (1995), Friedman (2005),
Grossman e Grueger (1994), Pigou (1932).
11
Destacam-se alguns trabalhos para consulta: Georgescu-Roegen (1971), Herman Daly (1968), Kenneth
Boulding (1966) e Howard Odum (1971).
12
O trabalho de Romeiro (2010) é ilustrativo deste aspecto. O autor afirma haver circularidade na atribuição de
valor a serviços ecossistêmicos justamente por um sistema de preços que é incapaz de captar diversos aspectos dos
ecossistemas. Porém, mesmo ele, capaz de apontar uma contradição lógica, defende o uso da valoração para fins
de gestão.
2
Ademais, as águas aquíferas, enquanto objeto de análise, impõem, talvez, limitações
ainda maiores à reflexão desde o prisma do pensamento econômico tradicional. As disposições
a pagar dos agentes econômicos por água seriam capazes de refletir diferenças entre mananciais
subterrâneos e mananciais superficiais? Cada aquífero, ou cada parte de um sistema aquífero,
guarda relações com ecossistemas específicos. Por que supor que as mudanças observadas em
cada ecossistema poderiam, de alguma forma, afetar as disposições a pagar? Como considerar
tais aspectos na busca por eficiência alocativa?
Análises mais relevantes poderiam surgir partindo-se de outros questionamentos,
premissas e objetivos. Qual é o papel dos aquíferos no ciclo hidrológico? Como as águas
subterrâneas atendem ao abastecimento urbano e em meio rural? De que forma os setores
econômicos exploram os recursos hídricos? Onde há perfurações de poços? Quais são os riscos
e consequências de contaminações? O que seria uma gestão adequada de recursos e
ecossistemas?
A ideia deste trabalho está na contribuição à capacidade de “olhar para o invisível”. Este
parece ser um primeiro passo fundamental. Em uma conjugação de esforços, talvez seja
possível elencar pontos relevantes na forma de abordar o problema. O instrumento da valoração
ambiental pode, de diversas formas, encaminhar possíveis alterações de critérios de comitês de
bacias e municípios que precificam suas águas. E, tão ou mais importante, auxiliar o
estabelecimento de determinações da Política Nacional de Recursos Hídricos que
compreendam com maior profundidade o papel estratégico da água em nível social, ambiental
e econômico.

4. Serviços ecossistêmicos de aquíferos


Os ecossistemas naturais são essenciais para a vida humana. Na verdade, as sociedades
humanas relacionam-se com ecossistemas de que fazem parte. Neles, estão contidos o relevo,
climas, animais, vegetais, paisagens, alimentos, fibras naturais e assim por diante. É na
interação com o meio que se realiza a humanidade: a reprodução espiritual, as religiões, a ética,
a saúde, a educação, enfim, a cultura como um todo. Inclui-se, como igual parte da cultura, a
reprodução material, pois é certo que a humanidade é dependente de processos ecológicos que
constituem fontes de absorção de energia e matérias-primas e são, portanto, imprescindíveis à
proliferação da vida.

2
Os ecossistemas podem ser definidos como um “[...] conjunto de organismos vivos de
uma certa área ou região, seu ambiente físico e suas interações recíprocas”13 (DAILY, 1997,
p.2, tradução nossa). Neste sentido, desenha-se um sistema (estrutura) cujos elementos
constitutivos estão em constante interação. De tais interações emerge uma série de fenômenos,
como: formação dos solos, tratamento de resíduos, controle da erosão e o próprio ciclo
hidrológico. Denomina-se funções ecossistêmicas o conjunto de fenômenos e processos que
derivam das relações entre os elementos estruturais dos ecossistemas. E os serviços
ecossistêmicos, por sua vez, são definidos como produtos das funções ecossistêmicas que
trazem benefício econômico ou cultural à humanidade, ou que têm “valor humano”14
(ANDRADE, 2010; DALY; FARLEY, 2004). Em outros termos, funções ecossistêmicas “[...]
referem-se de forma variada a propriedades e processos biológicos, sistêmicos e dos habitats
dos ecossistemas”. Bens e serviços ecossistêmicos (como água e purificação) “[...] representam
benefícios que as populações humanas obtêm, direta ou indiretamente, das funções
ecossistêmicas”15 (COSTANZA et al., 1997, p. 253, tradução nossa).
Portanto, serviço ecossistêmico é uma categoria que expressa o conjunto de processos
e condições através dos quais os ecossistemas naturais sustentam e preenchem a vida humana.
Reconhece-se, desta forma, a amplitude da dependência das sociedades em relação aos
ecossistemas. O tema que ora se aborda trata das relações entre sistemas econômicos e sistemas
ecológicos permeados por águas subterrâneas. A urgência das contribuições da ciência à
formulação de políticas de gestão hídrica — expressa nos contínuos riscos de superexplotação
e contaminação de aquíferos — é posta a partir da sua utilização econômica desenfreada,
desprovida de conhecimento, regulação e controle. Por tal razão, a abordagem deste trabalho
concentra-se no aspecto material dos serviços ecossistêmicos.
Para analisar serviços ecossistêmicos, utiliza-se tipologia internacionalmente adotada,
proposta na Avaliação Ecossistêmica do Milênio16 (MEA) em uma série de relatórios

13
“An ecosystem is the set of organisms living in an area, their physical environment, and the interactions between
them” (DAILY, 1997, p. 2).
14
A um olhar crítico de economistas, seria possível afirmar que os serviços ecossistêmicos foram aqui
conceituados por meio de pleonasmo. Afinal, haveria valor não humano? Haveria valor fora da cultura, um valor
natural? Já que os ecossistemas provêm às populações humanas uma série de serviços (ou benefícios) que lhes são
úteis, afirma-se que têm “valor”. A escolha da expressão manifesta, ao mesmo tempo, a polissemia do conceito e
o fato de que a comunidade científica não consegue prescindir dele. A discussão acerca do conceito de valor —
fundante da Ciência Econômica — foge largamente ao escopo deste trabalho. Toma-se a licenciosidade de utilizar-
se o termo em sentido lato, envolvendo valor cultural, valor à vida, valor aos direitos humanos ou valor econômico.
15
“Ecosystem functions refer variously to the habitat, biological or system properties or processes of ecosystems.
Ecosystem goods (such as food) and services (such as waste assimilation) represent the benefits human populations
derive, directly or indirectly, from ecosystem functions” (COSTANZA et al., 1997, p. 253).
16
A sigla corresponde à expressão em inglês: Millennium Ecosystem Assessment.
2
publicados no âmbito do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA). As
categorias de classificação de serviços ecossistêmicos, sintetizadas no Quadro 1, são: a) suporte;
b) provisão (abastecimento); c) regulação; e d) culturais (informacionais) (MEA, 2005). Tal
forma de categorização tem a utilidade de tratar isoladamente a água para consumo direto. A
água enquanto “bem” ecossistêmico é, doravante, classificada por um tipo de serviço: o de
provisão.
Quadro 1 — Serviços ecossistêmicos de aquíferos

Categoria Serviços ecossistêmicos


Controle de erosão
Manutenção da umidade em períodos de estiagem
Prevenção da subsidência dos solos
Purificação de água
Regulação
Regulação do clima
Sustentação dos fluxos de base de rios, nascentes e
áreas úmidas

Suporte Tratamento de resíduos contaminantes


Abastecimento populacional de água potável
Ciclagem de nutrientes Dessedentarização animal para pecuária
Provisão
Ciclagem da água Irrigação agrícola
Produção de energia térmica
Possibilidade de formação dos
solos Atração turística pela beleza dos ecossistemas
sustentados por água subterrânea

Culturais Cavernas subterrâneas para turismo e contemplação


Fontes de informação científica
Lazer e turismo relacionado a águas termais
Fonte: Adaptado de Aly Junior (2019, p. 47) e MEA (2003, p. 5).

“Os serviços de suporte são aqueles necessários à produção de todos os outros serviços
ecossistêmicos”17 (MEA, 2005, p. 40, tradução nossa, grifo nosso). Os serviços de suporte têm
frequentemente impactos indiretos e ocorrem, em geral, em escala de tempo estranha à da vida
humana. É fácil perceber que as águas doces — e, pois, as águas subterrâneas, que são sua
maioria — servem de suporte pois são indispensáveis para as mais variadas formas de vida. Por
esta razão, relacionam-se com todos os outros serviços. Os aquíferos estão inseridos no ciclo
hidrológico e participam da ciclagem da água e nutrientes. Ao mesmo tempo, participam da
formação de solos a partir da garantia da umidade e dos fragmentos de rocha separadas da rocha
mãe.

“Supporting services are those that are necessary for the production of all other ecosystem services.” (MEA,
17

2005, p. 40).
2
Os serviços culturais constituem “[...] benefícios imateriais que as pessoas obtêm dos
ecossistemas através do enriquecimento espiritual, desenvolvimento cognitivo, reflexão,
recreação e experiências estéticas”18 (MEA, 2005, p. 40, tradução nossa, grifo nosso). Salienta-
se: fontes de informação científica e formação de lagoas para visitação e contemplação.
Os serviços de provisão são os bens ou “produtos obtidos dos ecossistemas” (MEA,
2005, p. 40, tradução nossa)19. Os aquíferos, a partir de sua capacidade de prover água, são
pensados enquanto enormes reservatórios (caixas d’água). São utilizadas para abastecimento
das populações em meio urbano e rural; na indústria alimentícia e outras atividades
industriais20; na pecuária para dessedentarização animal; e são de extrema importância para a
irrigação da agricultura. As águas subterrâneas representam parcela muito expressiva (97%) do
volume total de água doce do planeta, conforme se observa na Tabela 1:

Tabela 1 — Volumes e proporções da água global por salinidade e local de proveniência

Formas e locais de Volume Águas Águas doces e


%
proveniência (km³) doces (%) líquidas (%)
Águas doces 37.718.294 2,78 100,00 -
Líquidas 8.528.100 0,63 22,61 100,00
Rios e lagos de água doce 125.045 0,01 0,33 1,47
Água vadosa¹ 66.691 0,00 0,18 0,78
Águas subterrâneas 8.336.364 0,61 22,10 97,75
Sólidas e gasosas 29.190.194 2,15 77,39 -
Calotas polares e geleiras 29.177.273 2,15 77,36 -
Atmosfera (nível do mar) 12.921 0,00 0,03 -
Águas salgadas 1.321.108.987 97,22 - -
Lagos salinos e mares interiores 104.205 0,01 - -
Oceanos 1.321.004.782 97,22 - -
Total 1.358.827.281 100,00 - -
Legenda: ¹ "Água de origem meteórica (chuva) que se infiltra no solo, migrando, por
gravidade, para níveis inferiores na zona de aeração", que corresponde à zona
subsuperficial que se encontra acima do nível freático (WINGE, 2001, on-line). Inclui-se,
neste item, a umidade do solo.
Fonte: Adaptado de Job (2010, p. 30).

O serviço de provisão dos aquíferos é absolutamente indispensável à humanidade. Em


publicação da National Groundwater Association (NGWA, 2016), estimou-se que até 40% das
águas para abastecimento humano são subterrâneas. Em relatório do World Water Assessment
Programme, foi estimado (publicação de 2012) que até 2050: o crescimento da população

18
“These are the nonmaterial benefits people obtain from ecosystems through spiritual enrichment, cognitive
development, reflection, recreation, and aesthetic experiences” (MEA, 2005, p. 40).
19
“These are the products obtained from ecosystems”.
20
Para compreender diferentes usos da água na indústria (e outros setores), consultar: NRC (1997).
2
mundial será da ordem de 9,1 bilhões; a demanda por alimentos crescerá 70%; e a demanda por
água pela agricultura aumentará 19% ao ano (WWAP, 2012). No Atlas de Segurança Hídrica
do Abastecimento Urbano da Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico, afirma-se que
40% dos municípios brasileiros têm suas sedes urbanas abastecidas exclusivamente por
mananciais subterrâneos. A proporção é de 57% para os municípios de abastecimento misto
(ANA, 2021).
Os serviços de regulação são definidos como “[...] os benefícios obtidos da regulação
dos processos ecossistêmicos”21 (MEA, 2005, p. 40, tradução nossa). Os aquíferos têm papel
de relevo na regulação da água por possibilitarem a garantia da perenidade de rios e lagos em
momentos de estiagem. Atuam na filtragem; na purificação; no tratamento de resíduos; no
controle da erosão; na retenção de solos; e na regulação do clima. Estes serviços de regulação
são relacionados ao papel do aquífero no ciclo hidrológico (capta água nas regiões de recarga,
armazena e, posteriormente, devolve-a nas regiões de descarga) e suas características
geológicas.
A Figura 1 — publicada em trabalho de pesquisadores do Centro de Pesquisa de Águas
subterrâneas (CEPAS) da Universidade de São Paulo (USP) — retrata de maneira ilustrativa a
importância das águas subterrâneas a partir dos seus serviços ecossistêmicos.
Figura 1 — Serviços desempenhados pelas águas subterrâneas e aquíferos

Fonte: Extraído de Hirata et al. (2019a, p. 19).

21
“These are the benefits obtained from the regulation of ecosystem processes” (MEA, 2005, p. 40).
2
É importante ressaltar que águas subterrâneas podem gerar “desserviços”
ecossistêmicos. Este é o caso do boçorocamento. Este fenômeno ocorre, geralmente, em locais
de baixa cobertura vegetal, que decorre, normalmente, de ação antrópica sobre a paisagem.
Locais com esta característica são sensíveis ao intemperismo provocado por ação de
escoamento superficial. À medida em que as águas escoam por superfícies descobertas, erodem
o solo desprotegido, abrindo sulcos e ravinas (buracos em linha). Este processo pode ocorrer
até que se atinja o nível freático. Neste momento, o afloramento das águas subterrâneas presta
seu “desserviço”, pois tende a solapar as paredes dos sulcos e formar boçorocas 22. Elas podem
atingir de poucos centímetros até centenas de metros de largura e profundidade. São feições
erosivas altamente destrutivas, que ameaçam campos, plantações, solos cultivados e zonas
povoadas. O rápido crescimento pode atingir áreas urbanas ou rurais.

5. Metodologias de valoração
A valoração dos benefícios fornecidos à humanidade através dos serviços
ecossistêmicos tem como um de seus principais objetivos auxiliar a formulação de políticas
públicas e contribuir com as tomadas de decisão relativas aos danos ambientais geradas pela
exploração da natureza (PUGA et al., 2014). Desde a perspectiva da economia ecológica, os
benefícios ecossistêmicos podem ser valorados nas dimensões econômica, ecológica e
socioambiental, com exigências metodológicas específicas (ROMEIRO; MAIA, 2011). O
objeto desta seção é explicitar as técnicas de valoração que podem ser aplicadas a serviços
ecossistêmicos de aquíferos e apresentar alguns frameworks para a valoração encontrados na
literatura atinentes a este objeto.
A valoração econômica de um recurso natural é composta por valor de uso e valor de
não uso. Os valores de não uso, ou valores de existência, são subjetivos, não associados ao
consumo, derivados de questões morais, culturais, éticas ou altruístas em termos da existência
dos bens e serviços dos ecossistemas. O valor de uso, por sua vez, pode ser dividido em três
categorias, detalhadas na Figura 2: valor de uso direto, valor de uso indireto e valor de
opção. (GARCIA, 2013; ROMEIRO; MAIA, 2011; PUGA et al., 2014).

22
“Ravina geralmente muito funda, desenvolvida por rápida e acentuada erosão que atinge o lençol freático,
podendo ter mais de 10 m de profundidade.” (WINGE et al., 2001, online).
2
Figura 2 — Classificação de valores associados a ecossistemas
Valor de uso Valor de não uso

Valor de uso Valor de uso Valor de opção Valor de existência


direto indireto Intenção de Valores que não
Apropriação Benefícios consumo direto ou estão associados ao
direta de indiretos gerados indireto do consumo e que se
recursos pelos serviços recurso natural no referem a questões
ambientais ecossistêmicos futuro morais, culturais,
éticas ou altruístas
Fonte: adaptado de Garcia (2013).

As metodologias de valoração são divididas em dois grandes grupos: função de


demanda, ou diretas, e função de produção, ou indiretas. Os métodos diretos de valoração
refletem a preferência dos consumidores através da disposição dos indivíduos ao pagamento
pelos bens e serviços ambientais, ou disposição a pagar (DAP). Esta categoria é subdividida em
outras duas categorias: DAP direta e DAP indireta. Esses métodos compreendem a realização
de uma avaliação junto aos agentes econômicos através de mercados hipotéticos (disposição
direta a pagar) e de mercados reais (disposição indireta a pagar).
DAP direta: denomina-se avaliação contingente a metodologia que procura captar as
disposições a pagar dos indivíduos diretamente através de mercados abstratos. Simula-se um
mercado hipotético no qual se poderia pagar por certo serviço ecossistêmico. Este método talvez
seja o único possível para se captar valores de não uso (valores de existência), mensurados
através da disposição dos indivíduos a pagar por atributos ambientais que não têm utilidade
econômica direta, relacionados a um comportamento ético, altruísta ou cultural (MAIA et al.,
2004). Um exemplo de aplicação é encontrado em Carson et al. (1992), que procurou estimar
os impactos do derramamento de óleo pelo acidente em navio da Exxon.
DAP indireta: aqui, há duas possibilidades de metodologia, associadas à estética e
recreação. O método de preços hedônicos consiste na análise das diferenças de preços de
propriedades que têm diferentes atributos ambientais. A diferença nos preços deve captar a
disposição a pagar pelos atributos ambientais acrescidos. O método dos custos de viagem
procura estimar o valor de sítios naturais através do comportamento dos consumidores que
despendem dinheiro com deslocamento, taxas de entrada, tempo de viagem e gastos
complementares para usufruírem do ambiente (MURTY et al., 2004; MAIA; ROMEIRO,
2008).
Os métodos indiretos buscam avaliar a disposição a pagar por um recurso natural
através de alterações dos preços de produtos precificados no mercado (ou em mercados de bens

2
substitutos) como consequência de mudança ambientais. São, por sua vez, subdivididos em
duas categorias: produtividade marginal e mercado de bens substitutos.
A produtividade marginal23 atribui um valor de uso a atributos ambientais
relacionando suas quantidades, ou qualidades, à produção de outros bens precificados no
mercado. A ideia geral por trás do mercado de bens substitutos é que a perda de quantidade
ou qualidade de um bem ou serviço ecossistêmico imporá a necessidade de utilização de
substitutos na tentativa de manter o nível de bem-estar da população (MURTY et al., 2004;
ROMEIRO; MAIA, 2011; GARCIA, 2013). Estes métodos têm a limitação de não captarem
uma gama de serviços não passíveis de substituição por produção humana.
Um método utilizado para estimar valores dos serviços de purificação e filtragem de
aquíferos é o de custos evitados (MIRAGLIA et al., 2005). Diz respeito ao cálculo dos custos
de extração e tratamento de águas pluviais a partir das tecnologias empregadas pelas
companhias de saneamento que são evitados pelo serviço relativo à porosidade e
permeabilidade da estrutura dos aquíferos do subsolo. Um exemplo de exercício semelhante é
o trabalho de pesquisadores do CEPAS (BERTOLO; HIRATA; ALY JR., 2019). O Quadro 2
sintetiza diferentes métodos de valoração econômica de serviços ambientais e os tipos de
valores capados pelos métodos correspondentes. A abordagem dos custos de reposição pode
ser utilizada para estimar o valor da manutenção da vegetação nas áreas de descarga a partir
dos custos de irrigação e fertilização do solo que seriam necessários caso o provimento de água
do aquífero cessasse.

Quadro 2 — Metodologias de valoração


Valor de uso direto,
DAP direta Avaliação contingente indireto, de opção e de
existência
Métodos de valoração

Métodos
diretos Valor de uso direto,
Preços hedônicos
indireto e de opção
ambiental

DAP indireta
Valor de uso direto e
Custo de viagem
indireto
Produtividade
Produtividade marginal
Marginal
Métodos Custos evitados Valor de uso direto e
indiretos Mercados de Custos de controle indireto
bens substitutos Custos de reposição
Custos de oportunidade
Fonte: adaptado de Garcia (2013).

23
Utiliza-se como exemplo frequente o caso de contaminação de águas na atividade de pesca. A contaminação da
água afetará a reprodutibilidade da fauna e da flora do ambiente marinho ou fluvial que terá impactos nos preços
e quantidades do referido mercado (COSTANZA et al., 1997).
2
Considerando-se a diversidade de metodologias de valoração explicitadas no Quadro 2,
a seleção das mais adequadas é singular e específica ao contexto e região analisados e deve
buscar incluir seus diversos pontos de vista, exigindo conhecimentos das mais diversas áreas:
economia, hidrogeologia, ecologia, sociologia, antropologia etc. Maia et al. (2004) destacam
que métodos indiretos costumam ter maior facilidade de aplicação e ser menos onerosos.
Contudo, não se adaptam a todos os casos.
Encontra-se na literatura diferentes “frameworks” (estrutura de trabalho aplicado) para
avaliação de benefícios gerados que possibilitam a valoração dos serviços ecossistêmicos de
aquíferos. No trabalho de Raucher (1983), estabeleceu-se um framework conceitual para a
estimativa dos benefícios da proteção de água subterrânea de contaminações. A premissa básica
considerada pelo autor é a necessidade de o valor para evitar um incidente de contaminação do
aquífero (i.e. benefícios de revestimentos e outras melhorias operacionais) ser, pelo menos, tão
grande quanto os custos esperados em caso da ocorrência de um incidente. A abordagem é
baseada na expectativa líquida de benefícios devido a atividades que podem melhorar a
proteção do aquífero. Essa expectativa líquida é igual aos benefícios sociais esperados da
estratégia de proteção subtraídos dos custos associados à implementação da estratégia de
proteção. O trabalho evidencia a dificuldade na identificação dos benefícios sociais da proteção
do aquífero. E destaca duas limitações conceituais do framework: i) a omissão do valor de não
uso nos cálculos propostos; e ii) o framework considera cada local de análise separadamente,
mesmo que sejam relativos ao mesmo aquífero — o que pode conduzir a uma sobrevaloração
do serviço em questão.
Bergstrom et. al (1996) apresentaram framework que interconecta mudanças nas
características físicas da água subterrânea, os serviços ecossistêmicos providos pelo aquífero e
os efeitos econômicos da mudança desses serviços. Nesta metodologia, os serviços suportados
por águas subterrâneas são determinados antes e depois da aplicação de políticas de quantidade
e qualidade. O valor econômico é, então, estimado como função da mudança no fluxo de serviço
prestado, considerando as condições específicas da água e os fluxos de serviços substitutos e
complementares. O trabalho utiliza duas funções de água subterrânea (função de
armazenamento e de descarga para a superfície) para um melhor entendimento do framework e
das interconexões entre mudanças biofísicas na quantidade/qualidade da água, nos serviços
prestados e na valoração econômica. Os autores destacaram como problema fundamental na
valoração de qualquer recurso ambiental a relação entre a mudança da condição de um recurso

2
e a consequente mudança nos serviços por ele prestados. Neste sentido, torna-se de grande
importância o completo entendimento dos serviços e benefícios do recurso.
Fenichel et. al (2015) apresentaram um framework quantitativo orientado que permite a
avaliação do capital natural, que leva em consideração os feedbacks biofísicos e econômicos.
O método proposto conecta modelos de dinâmica biofísica e de comportamento adaptativo
humano (moldado por políticas e outras restrições institucionais) à valoração econômica dos
fluxos ecossistêmicos para avaliar a quantidade de estoques naturais, entendidos como
capitais24. Além de valorar o capital natural, esse método objetiva guiar esforços
interdisciplinares na imputação de preços ao capital natural como medida e monitoramento da
sustentabilidade.
Essa seção deixa claro o quão desafiador é a valoração dos benefícios gerados por
serviços ecossistêmicos, em especial aqueles relacionados a aquíferos, que têm diversas funções
no ciclo hidrológico, na perenidade de rios, na manutenção de ecossistemas úmidos, na
preservação da biota em regiões de descarga de água e tantas outras. A literatura que discute
formas integrais de avaliação dos benefícios de proteção das águas subterrâneas — que leve em
consideração as diversas perspectivas, utilizando diferentes métodos e considerando diversas
circunstâncias — é ainda incipiente, sobretudo em língua portuguesa. Este fato reflete a
premência de maior envolvimento do meio acadêmico com o tema. Um aprofundamento nos
frameworks explicitados nessa seção — incluindo análise comparativa entre eles — e sua
utilização em estudos de caso para o Brasil têm a capacidade de gerar significativas
contribuições ao estabelecimento de método efetivo de análise para a criação de políticas
públicas ambientais que atendam às demandas e especificidades nacionais (GÖRLACH;
INTERWIES, 2003).
No Quadro 3, procurou-se sintetizar as possibilidades de aplicação de metodologias de
valoração aos serviços ecossistêmicos elencados na seção anterior.

Quadro 3 — Aplicação de metodologias aos serviços ecossistêmicos de águas subterrâneas


Serviços Efeitos Técnica de valoração
Fornecimento de Mudança no bem-estar devido Função Preço de Mercado/Demanda Função de
água potável ao aumento ou diminuição na Suprimento ou Custo
disponibilidade de Água Economia de custo do produtor/consumidor
potável Avaliação contingente
Preço Hedônico/Valor da Propriedade
Transferência de Benefícios

24
As estimativas de valor de estoque natural como capital durável de longo prazo (i.e. capital natural) dependem
do valor dos serviços ecossistêmicos e de outras variáveis sociais, econômicas e biofísicas (FENICHEL et. al.,
2015).
2
Mudança na Saúde Humana ou Função Preço de Mercado/Demanda Função de
Riscos à Saúde Suprimento ou Custo
Economia de custos do consumidor/produtor
Avaliação contingente
Preço/Salário Hedônico
Evitando Comportamento
Transferência de Benefícios
Fornecimento de Mudança no Valor das Função Preço de Mercado/Demanda Função de
Água para Irrigação Culturas ou Custos de Suprimento ou Custo
de Culturas Produção Economia de custos do consumidor/produtor
Avaliação contingente
Preço Hedônico/Valor da Propriedade
Transferência de Benefícios
Mudança na Saúde Humana ou Função Preço de Mercado/Demanda Função de
Riscos à Saúde Suprimento ou Custo
Economia de custos do consumidor/produtor
Avaliação contingente
Preço/Salário Hedônico
Evitando Comportamento
Transferência de Benefícios
Fornecimento de Mudança no valor dos Função Preço de Mercado/Demanda Função de
Água para o Gado produtos pecuários ou custos Suprimento ou Custo
de produção Economia de custos do consumidor/produtor
Avaliação contingente
Preço Hedônico/Valor da Propriedade
Transferência de Benefícios
Mudança na Saúde Humana ou Função Preço de Mercado/Demanda Função de
Riscos à Saúde Suprimento ou Custo
Economia de custos do consumidor/produtor
Avaliação contingente
Preço/Salário Hedônico
Evitando Comportamento
Transferência de Benefícios
Fornecimento de Mudança no valor dos Função Preço de Mercado/Demanda Função de
Água para produtos alimentícios ou Suprimento ou Custo
Processamento de custos de produção Economia de custos do consumidor/produtor
Alimentos Avaliação contingente
Preço Hedônico/Valor da Propriedade
Transferência de benefícios
Mudança na Saúde Humana ou Função Preço de Mercado/Demanda Função de
Riscos à Saúde Suprimento ou Custo
Economia de custos do consumidor/produtor
Avaliação contingente
Preço/Salário Hedônico
Evitando Comportamento
Transferência de benefícios
Fornecimento de Mudança no valor de bens Função Preço de Mercado/Demanda Função de
Água para Outros manufaturados ou custos de Suprimento ou Custo
produção Economia de custos do consumidor/produtor

2
Processos de Avaliação contingente
Fabricação Transferência de benefícios
Fornecimento de Mudança no Custo de Função Preço de Mercado/Demanda Função de
Controle de Erosão e Manutenção de Propriedade Suprimento ou Custo
Inundação Através da Pública ou Privada Economia de custos do consumidor/produtor
Absorção do
Escoamento de Água Avaliação contingente
Superficial Transferência de benefícios
Fornecimento de Mudança na saúde humana ou Função Preço de Mercado/Demanda Função de
Meio para Resíduos e riscos à saúde atribuíveis à Suprimento ou Custo
Outros Subprodutos mudança na qualidade da água
da Atividade subterrânea Economia de custos do consumidor/produtor
Econômica Humana Avaliação contingente
Preço/Salário Hedônico
Evitando Comportamento
Transferência de benefícios
Mudança na saúde animal ou Função Preço de Mercado/Demanda Função de
riscos à saúde atribuíveis à Suprimento ou Custo
mudança na qualidade da água
subterrânea Economia de custos do consumidor/produtor
Avaliação contingente
Evitando Comportamento
Transferência de benefícios
Mudança na produção Função Preço de Mercado/Demanda Função de
econômica atribuível ao uso de Suprimento ou Custo
recursos hídricos subterrâneos Economia de custos do consumidor/produtor
como "sumidouro" de resíduos
Avaliação contingente
Transferência de benefícios
Fornecimento de Mudança na saúde humana ou Função Preço de Mercado/Demanda Função de
Água Limpa Através riscos à saúde atribuíveis à Suprimento ou Custo
do Apoio de mudança na qualidade da água Economia de custos do consumidor/produtor
Organismos Vivos
Avaliação contingente
Preço/Salário Hedônico
Evitando Comportamento
Transferência de benefícios
Mudança na saúde animal ou Função Preço de Mercado/Demanda Função de
riscos à saúde atribuíveis à Suprimento ou Custo
mudança na qualidade da água Economia de custos do consumidor/produtor
Avaliação de Continente
Evitando Comportamento
Transferência de benefícios
Mudança no valor da produção Função Preço de Mercado/Demanda Função de
econômica ou custos de Suprimento ou Custo
produção atribuíveis à
mudança na qualidade da água Economia de custos do consumidor/produtor
Avaliação contingente
Transferência de benefícios

2
Prestação de Serviços Mudança na utilidade pessoal Avaliação contingente
Passivos ou de Não
Transferência de benefícios
Uso (por exemplo,
Existência ou
Motivações de
Doação)
Fonte: Adaptado de Bergstrom et al. (1996).

6. Resultados e discussões
A ideia de fundo deste trabalho foi conjugar esforços entre a Ciência Econômica e a
Hidrogeologia para realização de estudos sobre um tema fundamental e pouco explorado na
literatura. O caminho trilhado iniciou-se com a fundamentação teórica no campo da Economia
Ecológica, cuja visão pré-analítica parte do reconhecimento da transdisciplinaridade como
necessidade ao entendimento das relações entre sistemas ecológicos e econômicos. Nesta visão,
a busca pelo equilíbrio ecológico impõe-se como elemento determinante na formulação de
políticas públicas e nas possibilidades de análise, não restritas à busca por eficiência alocativa.
Os serviços ecossistêmicos enquanto categoria de análise representam o alicerce
daquela conjugação de esforços e permitem compreender de que forma as atividades
econômicas relacionam-se com águas subterrâneas e ecossistemas relacionados. Os propósitos
da aplicação de instrumentos de valoração são coerentes com os objetivos de formulação e
análise citados. A gestão de recursos hídricos subterrâneos no Brasil é carente de meios de
atuação, por não haver conhecimento da grande maioria de perfurações de poços e
investimentos necessários à superação e compreensão do problema em sentido estratégico.
As metodologias de valoração são extremamente complexas pela própria natureza de
seu objeto. Procurou-se, por revisão da literatura, as diferentes formas de captar os “valores”
que os ecossistemas “fornecem” por meio de suas dinâmicas naturais. O delineamento dos
serviços ecossistêmicos de águas subterrâneas, incluindo-se um “desserviço”, serve para pensar
as possibilidades de aplicação de cada metodologia. Como síntese desta empreitada,
condensou-se algumas possibilidades por meio do Quadro 3. Neste ponto, reuniu-se aspectos
de pesquisas análogas também engajadas na construção de ferramentas de aplicação ao caso
das águas subterrâneas. A ideia por trás do quadro é propor um caminho para futuras pesquisas
que se proponham à mesma tarefa. Não se trata de procurar as “melhores metodologias”, mas
de compreender quais são as metodologias possíveis e de quais dados se necessita para
aplicação.

2
Referências bibliográficas
ADAR, Z.; GRIFFIN, J. M. (1976). Uncertainty and the choice of pollution control instruments. Journal
of Environmental Economics and Management, vol. 3, pp. 178–188.
AGÊNCIA NACIONAL DE ÁGUAS E SANEAMENTO BÁSICO — ANA. (2021). Atlas águas:
segurança hídrica do abastecimento urbano. Brasília: ANA.
ALY JUNIOR, O. (2019). Segurança hídrica no semiárido, recursos hídricos na agropecuária e
adaptação às mudanças do clima: serviços ecossistêmicos das águas subterrâneas e aquíferos no
Brasil. Tese (Doutorado em Hidrogeologia) — Instituto de Geociências, Universidade de São Paulo,
São Paulo.
AMAZONAS, M. de C. (2009a). O pluralismo da Economia Ecológica e a economia política do
crescimento e da sustentabilidade. In: Boletim da Sociedade Brasileira de Economia Ecológica, n.
20, jan.-abr.
AMAZONAS, M. de C. (2009b). Valor ambiental em uma perspectiva heterodoxa institucional-
ecológica. Economia e Sociedade, vol. 18, n. 1, pp. 183–212.
ANDRADE, D. C. (2010). Modelagem e valoração de serviços ecossistêmicos: uma contribuição da
economia ecológica. Tese (Doutorado em Desenvolvimento Econômico) — Instituto de Economia,
Universidade Estadual de Campinas, Campinas.
BAUMOL, W. J.; OATES, W. E. (1995). The theory of environmental policy. Nova York: Cambridge
University Press.
BERGSTROM, J. C. et al. (1996). Assessing the economic benefits of ground water for environmental
policy decisions. Water Resources Bulletin, vol. 32, n. 2, pp. 279–291.
BERTOLO, R. A.; HIRATA, R.; ALY JR., O. (2019). A. Método de valoração da água subterrânea
impactada por atividades contaminantes no estado de São Paulo. Águas Subterrâneas, vol. 33, n. 3, pp.
303–313.
BOULDING, K. E. (1966). The economics of the coming spaceship earth. In: JARRETT, H. (ed.).
Environmental quality in a growing economy. Baltimore: John Hopkins University Press.
CARSON, R. et al. (1992). A contingent valuation study of lost passive use values resulting from
the Exxon Valdez oil spill. A Report to the Attorney General of the State of Alaska. MPRA Paper.
CASTILHO-BARBOSA, I. N. B. et al. (2020). Conhecer para conservar aquíferos: como torná-los
visíveis? Terrae Didática, n. 16, pp. 1–12.
COSTANZA, R. (1994). Economia ecológica: uma agenda de pesquisa. In: MAY, P.H.; MOTTA, R. S.
(org.). Valorando a natureza: a análise econômica para o desenvolvimento sustentável. Rio de Janeiro:
Campus.
COSTANZA, R. et al. (1997). The value of world’s ecosystem services and natural capital. Nature, vol.
387, pp. 253–260.
DAILY, G. C. (1997). Introduction: what are ecosystem services? In: DAILY, G. C. (org.). Nature’s
services: societal dependence on natural ecosystems. Washington: Island Press, pp. 1–10.
DALY, H. E. (1968). On economics as a life science. The Journal of Political Economy, vol. 76, n. 3,
pp. 392–406.
DALY, H. E.; FARLEY, J. (2004). Ecological economics: principles and applications. Washington, D.
C.: Island Press.
FENICHEL, E. P. et al. (2015). Measuring the value of groundwater and other forms of natural capital.
PNAS Proceedings of the National Academy of Sciences of the United States of America, vol. 113,
n. 9, pp. 2382–2387.
FRIEDMAN, B. (2005). The moral consequences of economic growth. New York City: Alfred A.
Knopf.
GEORGESCU-ROEGEN, N. (1971). The entropy law and the economic process. Cambridge:
Harvard University Press.
GONZÁLEZ, B. A. (2004). La valoración económico-ecológica y la presente coyuntura socioecológica
latinoamericana. In: UICN (Unión Mundial para la Naturaleza), 2004. Valoración económica,
ecológica y ambiental: análisis de casos em Iberoamérica. San Jose: EUNA.
GÖRLACH, B.; INTERWIES, B. (2003): Economic assessment of groundwater protection: A survey
of the Literature. Berlin: Ecologic.
2
HERENDEEN, R. A. (1998). Monetary-costing environmental services: nothing is lost, something is
gained. Ecological Economics, vol. 25, pp. 29–30.
HIRATA, R. et al. (2019a). A revolução silenciosa das águas subterrâneas no Brasil: uma análise da
importância do recurso e os riscos pela falta de saneamento. São Paulo: Instituto Trata Brasil.
HIRATA, R. et al. (2019b). As águas subterrâneas e sua importância ambiental e socioeconômica
para o Brasil. São Paulo: USP.
INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍTICA — IBGE. (2017). Censo
Agropecuário 2017. Disponível em: <https://censoagro2017.ibge.gov.br/>. Acesso em: 17 set. 2022.
JOB, C. A. (2010). Groundwater economics. Boca Raton: CRC Press.
MAIA, A. G. et al. (2004). Valoração de recursos ambientais – metodologias e recomendações. Texto
para Discussão, Instituto de Economia/UNICAMP, n° 116, março.
MAIA, A. G.; ROMEIRO, A. R. (2008). Validade e confiabilidade da valoração econômica: um estudo
do método de custo de viagem aplicado ao Parque Nacional da Serra Geral. Revista de Economia
Aplicada, v. 12, n. 1.
MILLENNIUM ECOSYSTEM ASSESSMENT (MEA). (2003). Ecosystems and human well-being:
a framework for assessment. Washington, Covelo, Londres: Island Press.
MILLENNIUM ECOSYSTEM ASSESSMENT (MEA). (2005). Ecosystems and human well-being:
synthesis. Washington: Island Press.
MIRAGLIA, S. G. K. et al. (2005). An evaluation of air pollution heath impacts and costs in São Paulo,
Brazil. Environmental Management, vol. 5, n. 35, pp. 667–676, 2005.
MUELLER, C. C. (2007). Os economistas e as relações entre o sistema econômico e o meio
ambiente. Brasília: Editora UnB.
MURTY, M. N. et al. (2004). Measuring benefits from reduced air pollution in the cities of Delhi
and Kolkata in India using hedonic property prices model. Institute of Economic Growth, Delhi:
University Enclave.
NATIONAL GROUND WATER ASSOCIATION — NGWA. (2016). Facts about global SM
groundwater usage. Ohio – USA: Disponível em: <http://futuredirections.org.au/wp-
content/uploads/2016/01/global-ground-water-use-fact-sheet.pdf>. Acesso em: 17 set. 2023.
NATIONAL RESEARCH COUNCIL — NRC. (1997). Valuing ground water: economic concepts
and approaches. Washington: The National Academies Press.
ODUM, H. T. (1971). Environment, Power and Society. New York: Wiley.
PIGOU, A. C. (1932). The economics of welfare. Londres: Macmillan, 4 ed.
PUGA, B. P. et al. (2014). Valoração de serviços ecossistêmicos de águas subterrâneas: notas
introdutórias. In: XVIII CONGRESSO BRASILEIRO DE ÁGUAS SUBTERRÂNEAS, Anais... Belo
Horizonte, pp. 1–14.
RAUCHER, R. L. (1983). A conceptual framework for measuring the benefits of groundwater
protection. Water Resources Research, vol. 19, n. 2, pp. 320–326.
REBOUÇAS, A. C. (2015). Água doce no mundo e no Brasil. In: BRAGA, B. et al. (orgs.). Águas
doces no Brasil: capital ecológico, uso e conservação. 4 ed. São Paulo: Escrituras, pp. 1–36.
ROMEIRO, A. R. (2009). Os fundamentos críticos da abordagem econômico-ecológica. Boletim da
Sociedade Brasileira de Economia Ecológica, n. 20, jan.-abr.
ROMEIRO, A. R. (2010). Economia ou economia política da sustentabilidade. In: MAY, P. H. (org.).
Economia do meio ambiente: teoria e prática. Rio de Janeiro: Elsevier, pp. 3-32.
ROMEIRO, A. R.; MAIA, A. G. (2011). Avaliação de custos e benefícios ambientais. Cadernos ENAP,
vol. 35. Brasília: ENAP.
WORLD WATER ASSESSMENT PROGRAMME — WWAP. (2012). Managing water under
uncertainty and risk. Paris: United Nations Educational, Scientific and Cultural Organization.
VILLAR, P. C. (2016). As águas subterrâneas e o direito à água em um contexto de crise. Ambiente &
Sociedade, 19, 85-102.
WINGE, M. et al. (2001). Glossário geológico ilustrado. Disponível em:
<http://sigep.cprm.gov.br/glossario/>. Acesso em: 17 set. 2023.

Você também pode gostar