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Introdução
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Bacharel em Direito. Psicólogo. Mestre em Teoria do Direito pela PUC-Minas. Bolsista BAT-1 da FAPEMIG, no
projeto de pesquisa “Odisseias do perdão na obra de Paul Ricoeur”, coordenado pelo Prof. Dr. Mateus H. F. Pereira,
do Depto. de História da UFOP.
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Para tanto, recorro a um estudo de Michael Pollak, intitulado Memória, esquecimento, silêncio, e a dois textos de
Freud que Ricoeur preferiu não levar em conta: Além do princípio do prazer e O mal estar na civilização.
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Fernando Nicolazzi, Helena Mollo & Valdei Araujo (org.). Caderno de resumos & Anais
do 4º. Seminário Nacional de História da Historiografia: tempo presente & usos do
passado. Ouro Preto: EdUFOP, 2010. (ISBN: 978-85-288-0264-1)
esquecimento cometidos pelas sociedades às voltas com seu passado. O livro de Ricoeur
traz, em sua primeira parte, uma fenomenologia da memória que engaja, entre outros
aspectos, o estudo dos abusos da memória. O autor delimita três formas de abuso da
memória: a memória impedida, a memória manipulada e a memória obrigada.
Ao tratar da memória obrigada, Ricoeur tem em vista os abusos políticos que
corrompem o vínculo entre justiça e memória, transformando em obsessão
comemorativa o dever de memória de uma sociedade com relação aos eventos
traumáticos de sua história3. Já a discussão sobre a memória manipulada envolve as
relações entre memória e identidade, tanto coletiva quanto pessoal, e diz respeito,
sobretudo, às distorções do passado operadas pela ideologia, aqui compreendida como
discurso de justificação do poder. Por fim, a memória impedida, que nos interessa mais
diretamente, abrange fenômenos patológicos da memória coletiva, especialmente o
recalcamento de lembranças e a compulsão à repetição que dele decorre. É nessa
abordagem da memória impedida que se dá a retomada, por Ricoeur, de Recordar,
repetir, perlaborar (FREUD: 1914/1978a) e de Luto e melancolia (FREUD:
1915/1978b), retomada cujos termos tratarei de expor em suas linhas principais
(RICOEUR: 2008, pp. 83-93).
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As principais referências de Ricoeur para essa crítica dos abusos que corrompem o dever de memória,
transformando-o em obsessão comemorativa, são Henry Rousso (Vichy, um passé qui ne passe pas, Paris, Fayard,
1994) e Pierre Nora (Les lieux de mémoire, Paris, Gallimard, 1984-1986).
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Fernando Nicolazzi, Helena Mollo & Valdei Araujo (org.). Caderno de resumos & Anais
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simbólicas que pedem uma cura. Daí ser proveitoso relacionar os excessos e
insuficiências da memória coletiva, conforme o caso, aos processos de recalque,
resistência, compulsão à repetição e passagem ao ato. É com base nesse paralelo que
Ricoeur proporá o trabalho coletivo de rememoração e luto como remédio para os
impasses da memória que afligem uma sociedade.
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2. OS LIMITES DA REMEMORAÇÃO
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Maurice Halbwachs, psicólogo social do Collège de France, morto pelos nazistas no campo de Büchenwald. Autor
do livro A memória coletiva, postumamente publicado em 1950 (HALBWACHS: 1990).
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Ricoeur parece reconhecer que os traumas da história não são integralmente simbolizáveis, ao afirmar que eventos
como o Holocausto impõem “limites à representação, tanto no que diz respeito à exposição dos acontecimentos pela
linguagem ou outro meio, quanto em relação ao alcance ‘realista’ da representação’” (RICOEUR: 2008, p. 340).
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ainda, em sua célebre correspondência com Einstein sobre os motivos da guerra, que a
pulsão de morte
está em atividade em toda criatura viva e procura levá-la ao aniquilamento,
reduzir a vida à condição de matéria inanimada. (...) A pulsão de morte se torna
pulsão de destruição quando (...) é dirigida para fora, para objetos. (...) Uma
parte da pulsão de morte, contudo, continua atuante dentro do organismo, e
temos procurado atribuir numerosos fenômenos normais e patológicos a essa
internalização da pulsão de destruição (FREUD: 1933/1978e, p. 254).
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Esse rechaço do conceito de pulsão de morte, com vistas a uma apropriação mais cômoda da psicanálise pelo
discurso filosófico, é caracterizado por Bento Prado Júnior como reflexo das tentativas de colonização do campo
psicanalítico pela filosofia, empreendidas, segundo ele, por autores como Marcuse, Habermas e o próprio Ricoeur
(PRADO JÚNIOR: 1985).
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Considerações finais
Não pretendemos, com isso, sugerir que a busca pela justa memória, efetuada
por meio do trabalho coletivo de luto e memória dos eventos traumáticos de uma
sociedade, seja uma busca infrutífera. Pelo contrário: a experiência histórica indica que
as sociedades que buscam acertar as contas de seu passado traumático tendem a repetir
menos intensamente as situações de abuso, injustiça e violação dos direitos humanos
(PIOVESAN: 2010, p. 105). A trilha aberta por Ricoeur ao defender a justa memória e
o trabalho de memória como meio de enfrentamento dos traumas do passado é, sem
dúvida, bastante fecunda. Mas poderemos percorrê-la mais lucidamente se soubermos
que, além dos limites já apontados pelo autor ao abordar os problemas da manipulação
ideológica e dos abusos políticos do dever de memória, ela enfrenta também os limites
da compulsão de repetição comandada pela pulsão de morte, os limites de um resto que
resiste à simbolização e que retorna insistentemente.
Referências bibliográficas
BOSI, Ecléa: Memória e sociedade. São Paulo: Cia. das Letras, 2001.
FREUD: Recordar, repetir, perlaborar. ESB XII. Rio: Imago, 1978a [1914]
FREUD: Luto e melancolia. ESB XIV. Rio: Imago, 1978b [1915]
FREUD: Psicologia das massas e análise do eu. ESB XVIII. Rio: Imago, 1978c. [1921]
FREUD: O mal-estar na civilização, ESB XXI. Rio: Imago, 1978d. [1930]
FREUD: Por que a guerra? ESB XXII. Rio: Imago, 1978e. [1933]
HALBWACHS, Maurice: A memória coletiva. São Paulo: Vértice, 1990 (tradução: Laurent
Leon Schafter).
OST, François: O tempo do direito. Bauru: Edusc, 2005 (tradução: Élcio Fernandes).
PIOVESAN, Flávia: “Direito internacional dos direitos humanos e lei de anistia: o caso
brasileiro”, in: TELES, SAFATLE (orgs.): O que resta da ditadura. São Paulo: Boitempo,
2010, pp. 91-108.
PRADO JÚNIOR, Bento: Alguns ensaios: filosofia, literatura, psicanálise. São Paulo: M.
Limonad, 1985.
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Fernando Nicolazzi, Helena Mollo & Valdei Araujo (org.). Caderno de resumos & Anais
do 4º. Seminário Nacional de História da Historiografia: tempo presente & usos do
passado. Ouro Preto: EdUFOP, 2010. (ISBN: 978-85-288-0264-1)
POLLAK, Michael: “Memória, esquecimento, silêncio” in: Revista Estudos Históricos. Rio de
Janeiro, vol. 2, nº 3, 1989, pp. 3-15 (tradução: Dora Rocha Flaksman)
RICOEUR, Paul: A memória, a história, o esquecimento. Campinas: Unicamp, 2008
(tradução: Alain François et al.).
SAFATLE, Wladimir: “Auto-reflexão ou repetição: Bento Prado Jr. e a crítica ao
recurso frankfurtiano à psicanálise”. Ágora: Estudos em teoria psicanalítica, vol. 7. nº
2, Rio de Janeiro, julho-dezembro 2004.
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