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Faculdade Cascavel

Eduard Henry Lui


Turma: 1 C

História Antiga e Medieval

HISTÓRIA ANTIGA E LIVRO DIDÁTICO: CASO EGÍPCIO

Curitiba
2015

1
Faculdade Cascavel
Eduard Henry Lui
Turma: 1C

Artigo apresentado para obtenção de grau de pós-graduado


no curso de História Antiga e Medieval, orientado pela
professora Doutora Liliane Cristina Coelho.

Curitiba
2015

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AGRADECIMENTOS

Sempre, ao meu Deus que é responsavel por tudo que sou e o que vier a ser.
Aos meus pais, Dirceu e Lourdes que foram o canal condutor das bênçãos divinas. À
minha esposa Camila que tem me sustentado com seu amor, carinho e
compreensão. Aos meus filhos Júlia, Davi e ao Lucas que está por chegar.

Aos amigos e companheiros do curso que bravamente foram até o fim. Ao


Júlio César Klein em especial que se tornou um grande companheiro nas lutas do
dia-a-dia no campo editorial e que me forneceu as fontes estudadas. À minha
revisora Martha, my dear, que pacientemente recebia, revisava e depois
pacientemente recebia novamente os originais para revisar tudo denovo. À minha
orientadora, Doutora Liliane Cristina Coelho que em meio à sua tese teve a
paciência de rever os meus originais. A todos os meus amigos e colegas, do
trabalho, da editora, do mestrado, da música que mesmo sem perceber me
ajudavam com a amizade, carinho e paciência.

HISTÓRIA ANTIGA E LIVRO DIDÁTICO: CASO EGÍPCIO

Eduard Henry Lui 1


1
O autor é aluno da Pós graduação em História Antiga e Medieval pelas faculdades Itecne; mestrando na
Universidade Federal do Paraná, na área de História e historiografia da Educação. Graduado pela Universidade
Federal do Paraná em História. Atuou no mercado editorial por vários anos e atualmente é professor de ensino
3
eduardhenry@hotmail.com
RESUMO:
O Egito Antigo fascina as pessoas, especialmente por sua religiosidade exótica e
pela manifestação artística presente e duradoura. Este artigo tem por finalidade
apresentar breve panorama de obras didáticas destinadas ao Ensino Médio,
disponibilizadas pelo Governo do Estado do Paraná aos professores da Rede
Pública de Ensino para seleção dos livros a serem utilizados pelas escolas
estaduais. Observa-se: amplo panorama do ensino de História no Brasil; perspectiva
do livro didático e sua utilização pela escola brasileira; presença do assunto
relacionado ao Egito Antigo; análise das coleções selecionadas. Objetiva-se
explanar a maneira que os autores abordaram o conteúdo Antiguidade, em especial
o caso egípcio e seus temas relacionados à religiosidade – deuses, mumificação,
crenças, obras funerárias etc. Verificou-se, ainda, as indicações cinematográficas e
respectivas formas de abordagem a respeito da temática do Egito na Antiguidade.
Foram analisadas oito coleções editadas em 2013 e disponibilizadas para uso em
2014.

Palavras-chave: Egito Antigo; livros didáticos; religiosidade egípcia.

ABSTRACT:
The Ancient Egypt fascinates people, especially for its exotic religious and artistic
manifestation present and lasting. This article aims to present brief overview of
textbooks aimed at high school, made available by the Government of the State of
Paraná to the Public Network of teacher education for selecting books to be used by
state schools. Observed: broad panorama of history teaching in Brazil; perspective of
the textbook and its use by the Brazilian school; presence of matter related to
Ancient Egypt; analysis of selected collections. The objective is to explain the way
that the authors addressed the Antiquity content, especially the Egyptian case and its
issues related to religion - gods, mummification, beliefs, funeral works etc. There was
also cinematographic information and their ways of approach on the theme of Egypt

Médio Integrado no Instituto Federal do Paraná.


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in ancient times. Eight collections were analyzed published in 2013 and available for
use in 2014.

Keywords: Ancient Egypt; textbooks; Egyptian religion.

INTRODUÇÃO

Entende-se que escrever um livro do gênero didático não é tarefa das mais
fáceis. Mais dificultoso ainda se torna quando há uma infinidade de temas a serem
abordados e quando se pretende abordar toda a História da Humanidade em
páginas limitadas por espirais, margens, leis e orçamentos. Por um lado, critica-se o
sistema; por outro, compreende-se a necessidade de delimitação e ordenamento.
Da mesma maneira, entende-se que cada especialista acredita piamente que seu
objeto de estudo é injustiçado pelo pouco espaço a ele destinado.
De acordo com Garcia (2011, p. 359), é possível afirmar que

Os livros didáticos são, reconhecidamente, materiais que, de


alguma forma, afetam a vida cotidiana das escolas. No Brasil, em
especial, a existência de programas nacionais de avaliação e
distribuição de livros didáticos a todos os alunos de ensino
fundamental e médio, para a maior parte das disciplinas
curriculares, coloca o debate sobre os livros didáticos como uma
questão política e educativa da maior relevância. Nesse contexto,
diferentemente do que se afirmava há uma década, o livro didático
ganhou importância como objeto de investigação.

Este artigo tem por objetivo analisar a produção didática destinada ao Ensino
Médio no que concerne à apresentação de conteúdos voltados aos temas da
Antiguidade, especificamente do Egito Antigo. As possibilidades são inúmeras

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devido à grande demanda de produções dessa natureza. Sendo assim, utilizou-se
como critério de seleção livros aprovados no Plano Nacional do Livro Didático
(PNLD), com autores que estão há vários anos no mercado e cujas produções
foram elaboradas nos últimos cinco anos. Optou-se, então, por selecionar oito livros
que se encaixam nessa natureza.
A produção de livros didáticos atua de maneira muitas vezes imprecisa,
conduzindo o usuário a erros conceituais, criando mitos sobre o Egito Antigo. Muito
se fala e escreve sobre o Egito, especialmente em relação ao que chama muito a
atenção: a religiosidade. Observa-se os disparates e as contradições do que se
produz e se ensina sobre a vida cotidiana e a religião no Egito Antigo aos alunos de
1º ano do Ensino Médio. Pretende-se verificar a presença do senso comum na
análise do tema e fazer um levantamento de problemas conceituais.
Muita curiosidade se forma em torno de temas relacionados ao Egito Antigo.
No entanto, os meios de comunicação de massa, em especial o cinema e a
televisão, promovem um desserviço ao conhecimento, transmitindo inverdades ao
público. Jovens e adolescentes são prejudicados por isso, pois vão à sala de aula
sedentos em saber mais sobre uma fantasiosa civilização egípcia, e acabam se
deparando com outros equívocos de autores de material didático que, não sendo
especialistas, reproduzem erros e proliferam crendices sobre o assunto.
Diante de tal verificação, propõe-se responder às questões: De que maneira
é apresentada a Antiguidade e especificamente o Antigo Egito nos livros didáticos?
Qual o espaço destinado a esse período? Quais recortes temáticos são
privilegiados? Existem erros conceituais? Quais abordagens reforçam clichês e
informações que são desconexas com as recentes pesquisas em História Antiga?
Ainda, pretende-se buscar nas produções cinematográficas – geralmente
indicadas nesses livros – clichês, equívocos e informações incoerentes com os
fatos pesquisados e profundamente analisados por arqueólogos e historiadores dos
temas relacionados ao Egito Antigo.

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ENSINO DA HISTÓRIA

Como disciplina autônoma, a História se tornou parte dos currículos


escolares no Ocidente a partir de meados do século XIX. A formação do Estado
Nacional foi, sem dúvida, o eixo norteador da temática de ensino dessa disciplina.
Ao longo do tempo, o ensino de História sofreu variação de acordo com as funções
ideológicas e da cultura das sociedades que a definem e a organiza.
Observa-se que a História propicia o único meio racional de investigar o
passado, com base no conceito de evidência histórica em que “a preocupação
quanto à liberdade em afirmar o que a evidência nos leva a crer (para nós mesmos e
para os outros); e também uma concepção de homem como ser racional (como
oposto a irracional)” (LEE, 2011. p. 26).
É perceptível que a maior parte do Ocidente adota o modelo cronológico, em
que a visão europeia de mundo apresenta destaque. Geralmente a estrutura desse
ensino parte da História Antiga (Mesopotâmia ou Egito) e segue o decurso até os
dias atuais. De acordo com esse modelo, a história dos povos asiáticos, africanos e
ameríndios só aparecem quando, de uma certa forma, suas histórias se
entrecruzaram com a história europeia. Prioritariamente a civilização Ocidental e
seu modelo político e econômico atual são o “modelo ideal” para onde desemboca
a História da Humanidade.
Entre os países socialistas, especialmente na extinta URSS, adotou-se como
modelo de ensino a vertente marxista. Esses países utilizaram manuais de História
que também apresentavam visão evolucionista, que ia do escravismo, passando por
vários estágios (feudalismo, capitalismo, socialismo), ao comunismo. Existe uma
concepção determinista nas obras que transmitiam a História dessa maneira. Era
como se todas as sociedades inevitavelmente passassem por essas etapas e

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chegassem a uma era dourada, o comunismo. Ainda hoje, com certas variações,
esse modelo ainda é adotado em países como China e Cuba.
Um novo modelo de história, que procurava justapor a História Ocidental à
História Africana, Ameríndia e Asiática, surgiu na década de 1960, seguindo a onda
de abertura cultural do período. De qualquer forma, a visão eurocêntrica
permanecia, mesmo incluindo a história de outros povos. Ao mesmo tempo, na
França e na Bélgica, junto de uma história temática houve iniciativa de um ensino
de história que levava em consideração o status de quem recebia o ensino:

[...] Ao lado da História temática, os pedagogos, êmulos distantes de


Piaget e das escolas americanas, tentaram aprontar uma abordagem
dos problemas históricos que levaria em conta o status daquele ao
qual tal ensino é destinado: as crianças e os adolescentes, mediante
o conhecimento do meio, do passado cultural e social desses
discípulos, passado que serviria de ponto de partida para uma prática
retroativa em direção ao não conhecido. Esse método contribuiu para
tornar inteligíveis os problemas do presente, sua relação com a vida
de cada um, mas ainda é mais sociológico do que histórico. (FERRO,
1993, p. 296).

Entre o Primeiro Reinado e o Período Regêncial surgiu a necessidade de se


criar uma identidade nacional brasileira – isso diante das rebeliões do Período
Regencial. As revoltas assumiam um caráter separatista e os interesses locais se
sobrepunham a um interesse nacional. O Imperial Colégio de Pedro II foi criado
nesse período e, com o mesmo intuito, foram criados o Instituto Histórico e
Geográfico e o Arquivo Público, ambos em 1838. A cadeira de História do Brasil foi
criada em 1849 e teve Gonçalves Dias como professor.
O primeiro livro didático brasileiro foi publicado em 1861. Seu autor, Joaquim
Manuel de Macedo, criou uma história baseada em fatos, relatando episódios que
ele considerou principais para a formação do brasileiro. Evidentemente, a exaltação
de grandes heróis nacionais e seus feitos estava presente na obra.
Nada muito diferente foi produzido logo após a Proclamação da República
(1889), sendo os autores apoiados em algumas adaptações e exaltando

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especialmente heróis que assumiam um caráter republicano, foram os nortes
principais das obras nesse período. Era uma história ufanista que valorizava a
nação, nos mesmos modelos do Período Imperial. Diferenciou-se apenas na
introdução de uma história regionalizada, atendendo às demandas das oligarquias
que dominavam os vários estados da União. Isso se deve, em grande parte, ao
sistema federativo implantado com a Constituição de 1891, que descentralizou o
sistema de ensino.
Mudanças significativas ocorreram após a Revolução de 1930. Com maior
autonomia, a História estabeleceu-se como disciplina. Permaneceu a divisão em
História Universal e História do Brasil. Posteriormente, o Conselho Federal de
Educação recomendava o ensino de História Geral e do Brasil e, se possível,
História da América, graças à vigência da Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional (Lei 4.024/61). Os avanços eram sentidos especialmente nas
universidades, no Ensino Fundamental pouca coisa mudou, inclusive com relação
aos autores, que permaneciam os mesmos por muitas décadas. Conforme
apresentou o professor Renato Mocelin,

Com o golpe militar de 1964 houve, de forma deliberada, um grande


esforço para eliminar aquelas disciplinas que suscitassem reflexões e
questionamentos. Em um contexto de valorização do ensino técnico
e descaso com as ciências sociais ocorreu, em 1971, a reforma do
ensino de primeiro e de segundo graus, através da Lei 5.692 que,
dentre outras coisas, propôs a fusão da História e da Geografia em
uma nova disciplina que passou a ser chamada de Estudos Sociais.
(MOCELLIN, 2009, p. 40).

Foi um contexto de valorização do ensino técnico e do descaso com as


ciências sociais. No ano de 1971, a reforma do ensino de primeiro e de segundo
graus, por meio da Lei 5.692, dentre outros fatos, propôs a fusão da História e da
Geografia em uma nova disciplina, que passou a ser chamada de Estudos Sociais.
Os militares que atuaram no governo do período tinham o objetivo ideológico
de descaracterizar o ensino de História e de Geografia, eliminando as
potencialidades de um ensino crítico.
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Conforme Mocellin (2009, p. 41), nos anos de 1980, com a redemocratização,
a História e a Geografia voltaram aos currículos como disciplinas autônomas. Um
amplo debate teve início, com objetivo de discutir o objeto da História. Tal discussão
resultou na elaboração dos Parâmetros Curriculares do Ensino Fundamental e,
posteriormente, no do Ensino Médio.
Jörn Rüsen propôs um importante questionamento: O que é aprendizagem
histórica? Para ele, “trata-se de se compreender a aprendizagem não só como um
processo organizado, em ambiente escolar, mas de uma forma mais ampla, que
abarque a orientação para a vida prática” (RÜSEN, 2012, p. 73). Rüsen coloca que
a narração histórica pode ser considerada como processo de aprendizagem,
desencadeado de duas formas: uma delas ocorre depois de superar uma carência
de orientação da vida prática, que “é formada de discrepâncias (contínuas) entre a
experiência temporal e intenções temporais a ela relacionadas” (RÜSEN, 2012, p.
76), e outra ocorre a partir das divergências temporais entre o presente e o
passado, em que a consciência histórica se constrói na vida prática, pois, surge das
necessidades de orientação no presente (de forma permanente) e satisfeitas por
intermédio do conhecimento histórico estruturado, a partir da experiência com o
presente.
Acrescentando o raciocínio, Koselleck demonstra que

A história se refere às condições de um futuro possível, que não se


deduz somente a partir da soma dos eventos isolados. Mas nos
eventos que ela investiga delineiam-se estruturas que estabelecem
ao mesmo tempo as condições e os limites da ação futura. Desse
modo, a história demarca os limites para um futuro possível e
distinto, sem que com isso possa renunciar às condições estruturais
associadas a uma possível repetição dos eventos. (KOSELLECK,
2006. p. 145).

A partir dessa ideia é possível perceber que a aprendizagem histórica ocorre


de forma a suprir carências de orientação temporal e orientação da vida prática, não
apenas em ambientes de escolarização.

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O LIVRO DIDÁTICO
A prática escolar no Brasil está extremamente vinculada ao uso dos livros
didáticos no desenvolvimento dos conteúdos. Isso pode ser confirmado por Alves2,
citado por Freitag et al. (1997, p. 111), indicando que

[...] o livro didático não funciona em sala de aula como um


instrumento auxiliar para conduzir o processo de ensino e
transmissão do conhecimento, mas como o modelo-padrão, a
autoridade absoluta, o critério último de verdade. Neste sentido, os
livros didáticos parecem estar modelando os professores.

Esse fato ocorre principalmente porque os modelos de formação de


professores não garantem formação adequada para a sala de aula. Sabe-se que,
ao escolher um determinado livro didático para utilizar, realiza-se ação
transformadora em se tratando dos conteúdos nele inseridos. O professor faz
escolhas, privilegia determinados conteúdos em detrimento de outros.
Todavia, compreende-se que o livro didático tem papel privilegiado no
processo ensino-aprendizagem no sentido de que, na medida em que o professor
seleciona conteúdos, apresenta textos e aplica atividades existentes no livro e
reforça o papel dele um processo dialógico. Assim, o livro didático torna-se um
auxiliar de extrema importância no diálogo discente/docente.
De acordo com Bittencourt (2004, p. 315), o livro didático se caracteriza por
ser relevante e de prestígio no contexto escolar porque organiza e sistematiza
conteúdos específicos e também inclui métodos de aprendizagem de cada
disciplina. E de acordo com Freiag et al. (1997, p. 128), o livro didático muitas vezes
estabelece o roteiro do conteúdo programático para o ano letivo, dosa atividades
necessárias para o trabalho em sala de aula e, também, ocupa os alunos na sala de
aula e em casa, quando realizam suas tarefas.

2
ALVES, N. O cotidiano do livro didático: a articulação do conteúdo e do
método nos livros didáticos. Brasília/Rio de Janeiro: INEP/FLACSO, 1986, 1
e 2. Relatório final (Mimeo).
11
Com ênfase nessa análise dos livros didáticos, Batista (2002) cita o caso
particular dos livros de História do início do século XX, que eram destinados ao
ensino de jovens e que se tornaram obras de referência, o autor afirma que

Ao contrário da ideia difundida de que os saberes escolares e,


particularmente os livros didáticos, consistiriam numa adaptação
simplificada, para fins escolares, de conteúdos produzidos no campo
da cultura e da ciência, essas investigações vêm evidenciando que
a origem desses saberes e objetos é mais complexa (cf., por
exemplo, Chervel 1990 e Bittencourt 1993) e que, muitas vezes, é à
escola e a seus livros que se deve atribuir a origem de
conhecimentos e saberes posteriormente apropriados pelas esferas
do conhecimento erudito e científico. (BATISTA, 2002, p. 533).

Ainda segundo o autor,

[...] o livro didático desenvolve um importante papel no quadro mais


amplo da cultura brasileira, das práticas de letramento e do campo
da produção editorial e compreende, consequentemente, diferentes
dimensões de nossa cultura, de suas relações com a escrita e com
o letramento [...] (BATISTA, 2002, p. 534).

Para Kátia Abud (1984, p. 81) “o livro didático é um dos responsáveis pelo
conhecimento histórico que constitui o que poderia ser chamado de conhecimento
do homem comum”. Abordado dessa maneira, o livro didático é o responsável pela
formação de um conhecimento específico da história que, certamente, será
encarado como detentor da “verdade histórica”, uma vez que acompanhou toda a
trajetória escolar dos alunos.

Sob essa perspectiva, percebe-se a existência dessa relação entre a cultura


e os livros escolares como um primeiro elemento conceitual para o desenvolvimento
da investigação. A partir dele, é possível caminhar na direção de explicitar algumas
relações dos livros com a cultura escolar, especialmente quanto às formas de
ensinar, a seleção do conhecimento válido para ser transmitido às novas gerações
e às reconfigurações que ocorrem sobre o conhecimento a ser ensinado nas aulas,
pela ação dos sujeitos que utilizam os livros em suas práticas cotidianas.

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ANTIGO EGITO NOS LIVROS DIDÁTICOS
A imagem de uma civilização pode ser transmitida por vários meios:
memória, documentos escritos, pinturas, artefatos da cultura material, relatos orais
e, ultimamente, cinema, fotografia, internet. A ciência histórica chama esses meios
de estudo e interpretação de fontes históricas.

A leitura de uma fonte nem sempre é exata e precisa. Ela reflete o momento
de sua leitura. Com o passar do tempo e com o distanciamento cronológico do
acontecimento, fato, civilização etc. que está sendo estudado, não é incomum que
a interpretação dessa fonte sofra alterações.

Todavia, com o advento das novas tecnologias nos séculos XX e XXI – que
sem dúvida trouxeram benefícios para a humanidade – chegaram novas mídias
para o estudo e a apresentação da história em sala de aula. A livre expressão ou
livre interpretação, mais conhecida no meio artístico como releitura, acabou se
infiltrando no mundo histórico por meio do teatro, da música e também do cinema.

Essa ferramenta é de grande importância para ser usada em sala de aula,


pois ilustra muitas vezes de maneira dinâmica o que o professor descreve
geralmente de forma estática na fala. Mas, por muitas vezes, também se torna um
obstáculo, pois a visão do autor/diretor não é a mesma de um historiador, criando
assim uma visão completamente diferenciada daquilo que se pretende trabalhar
cientificamente a partir de uma análise histórica. Dada a força e o impacto que a
sétima arte possui, muitas visões a respeito da história acabam se tornando
lugares-comuns e/ou criam verdades estereotipadas.

Exemplo claro que pretende-se observar neste artigo são as imagens e


supostas verdades colocadas sobre o Egito Antigo. Não era incomum na década de
1980 e 1990 a crença, no senso comum, de que as pirâmides do Egito
(principalmente representadas pelas 3 mais famosas: Quéops, Quéfren e
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Miquerinos) tenham sido construídas por escravos. Tentando entender como esse
imaginário foi construído, chega-se a identificar vários filmes das décadas
anteriores que retratavam o escravo como construtor de obras no Egito. O mais
conhecido deles é Os 10 mandamentos3, do ano de 1956, que em uma de suas
cenas mostra trabalhadores que seriam escravos nas terra egípcias, construindo
uma cidade para Seth I, ou mesmo as cenas em que os hebreus são escravizados,
trabalhando nas construções monumentais para os reis egípcios.

De fato o Egito foi uma sociedade escravocrata, no entanto não condiz com
as pesquisas arqueológicas a atribuição de que tudo no Egito foi construído por
escravos. A imagem do escravo construindo as pirâmides só começou a ser banida
do senso comum após as descobertas de vilas de construtores e seus registros
contábeis. Foram tantas as informações e registros que colocou em desuso a teoria
da construção das pirâmides apenas pelo trabalho escravo.

Outro exemplo bastante comum, retirado do filme Cleópatra4, sobre visões


deturpadas acerca do povo egípcio da Antiguidade é a visão de uma sociedade
egípcia branca. Tendo como modelo (ou estereótipo) a atriz Elizabeth Taylor, que
não retrata fielmente o que seria uma mulher egípcia – essa certamente teria pele
mais escura devido não somente à sua genética, mas também ao clima desértico.
Seguindo esse raciocínio, não são raras as vezes que alunos ainda se espantam
quando se afirma, em sala de aula, que o Egito está na África.

3
The ten commandments (Os dez mandamentos), é um filme norte-
americano de 1956, dirigido por Cecil B. DeMille. É uma narrativa
romanceada da vida de Moisés e sua liderança para retirar o povo hebreu
do Egito.
4
Cleopatra é um filme britânico, estadunidense e suíço, de 1963, do
gênero drama biográfico histórico, dirigido por Rouben Mamoulian e
Joseph L. Mankiewicz e com roteiro baseado em obra de Carlo Mario
Franzero.
14
Questiona-se: De que maneira desconstruir inverdades, senso comum e
mitos inseridos no contexto da filmografia que se apresenta de forma tão atrativa,
mas que contém certos equívocos históricos?

Com isso em mente, resolveu-se voltar os olhos para uma das formas que se
crê conseguir combater tais tipos de equívocos: os livros didáticos. O recorte
temático escolhido foi, portanto, o Egito Antigo. Como ele é retratado nos livros
didáticos? Com o auxílio desse suporte, de que forma os professores de História
podem mostrar aos alunos que as releituras da sétima arte não são a verdade
histórica, mas o entendimento do diretor/autor/roteirista sobre ela?

A fim de ter noção de como tema é trabalhado, destacaram-se oito coleções


de livros didáticos, fornecidos aos colégios do estado do Paraná para que fossem
lidos e analisados pelos professores da rede pública de ensino e, sendo aprovados,
fizessem parte do cotidiano das salas de aula.

As coleções escolhidas para análise estão citadas a seguir.

• História em debate, de Renato Mocellin e Rosiane de Camargo, Editora do Brasil.

• Caminhos do homem, de Adhemar Marques e Flávio Berutti, Base Editorial.

• História – Ensino Médio, de Divalte Garvia Figueira, Coleção Integralis.

• História, de José Geraldo Vinci de Moraes, Editora Positivo.

• Ser protagonista, de Anderson Roberti dos Reis, Débora Yumi Motooka, Gilberto
Lopes Teixeira, Edições SM.

• Oficina de História, de Flávio de Campos e Regina Claro, Editora Leya.

• História: cultura e sociedade – Memória das origens, de Jean Moreno e Sandro


Vieira, Editora Positivo.

• História, de Ronaldo Vainfas, Sheila de Castro Faria, Jorge Ferreira, Georgina


dos Santos, Editora Saraiva.
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O presente objeto de análise foi escolhido devido a sua importância e
possível acesso aos alunos e professores, uma vez que um livro didático e um
professor em sala de aula são os instrumentos que refutarão ou confirmarão as
suspeitas dos docentes quanto às dúvidas sobre sociedades do passado que se
possam ter.

O conteúdo relacionado à História Antiga, especificamente ao Antigo Egito, é


comumente abordado no 6o ano do Ensino Fundamental e no primeiro ano do
Ensino Médio.

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ANÁLISE DAS COLEÇÕES

História em debate — História, 1º Ano — Editora do


Brasil — Renato Mocellin e Rosiane Camargo.

A organização do livro pareceu com forte caráter marxista, trabalha com a


questão da posse de terra e relações sociais na Antiguidade e se dedica ao tema
por quatro capítulos completos do livro antes de abordar a questão do trabalho no
Brasil.

A primeira menção que se faz ao Egito Antigo é uma pintura da tumba de


Menna (1390 a.C, Vale dos Nobres, Luxor), escolhida ao que parece para reforçar a
temática do livro, demonstrando a relação homem/terra, quase como se a
propriedade privada fosse uma constante por toda a história desde a Antiguidade
até o Mundo Contemporâneo. Essa temática foge da construção de conhecimento
imparcial, apresentando ideias militantes desde seu início e não se aprofundando na
civilização em si, mas naquilo que Marx chamava de luta de classes.

Embora a conscientização de um consumo desenfreado e a busca por uma


sociedade menos opressora e com justiça seja um dever humano, a busca pela
construção de um saber histórico sem ideologia é outro. O livro estuda o Egito
Antigo citando pesquisas arqueológicas no tocante ao povoamento. A interpretação
dessas fontes – sem muitas surpresas – é o modo de produção asiático
apresentado por Karl Marx e Friedrich Engels.

Nas três páginas que os autores apresentam sobre o Egito Antigo o foco
extensivo sobre os métodos de produção e organização leva a crer que o foco de
pesquisa dos autores do livro não é a sociedade egípcia antiga, mas mostrar que a
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divisão de terras e a luta de classes está presente por toda a história. Isso mais
para validar as teorias de Marx e Engels, deixando de lado a chance de apresentar
um Egito independente e com características próprias, procurando justificativa no
passado para problemas do presente, negando, assim, a identidade do povo
egípcio.

A utilização de fontes é rica, no entanto, reforça a tese de que estão ali para
corroborar com a ideologia expressa ao longo das páginas. A presença do homem
comum e de cenas cotidianas são constantes e bem amarradas. A diagramação é
muito bem feita e transmite uma leveza na sua distribuição textual e imagética.

Interessante infográfico sobre a sociedade egípcia contendo


glossário.

O texto não traz problemas conceituais, ao mesmo tempo, ao apresentar na


sequencia e não de forma integrada o Egito e as demais nações africanas, transmite
a falsa ideia de que são povos distantes e que pouco possuíam de similitudes.

Caminhos do homem — História, 1º Ano —


Coleção Integralis — Base editorial — Adhemar
Marques e Flávio Berutti..
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A Coleção Caminhos do homem se faz sentir predominantemente
evolucionista. Não apresentando conceitos marxistas tão evidentes como a coleção
citada anteriormente. A coleção Caminhos do homem opta por iniciar a
apresentação do material do aluno desde o Período Neolítico (Idade da Pedra
Polida), ao invés de iniciar com discussão sobre posse e propriedade. O livro
recorre a uma gama de nomes e métodos científicos de datação – tal qual o
carbono radioativo, ou como se costuma chamar Carbono 14 –, que a primeira vista
pode parecer uma tentativa de aumentar o vocábulo do leitor com palavras que não
são do seu cotidiano, mas que também confirmam seu caráter extremamente
científico (evolucionista).

O livro não se aprofunda na civilização egípcia, mas a apresentam como


uma das primeiras civilizações a se estabelecerem em núcleos urbanos, a
praticarem a escravidão e a agricultura, mostra como parte das civilizações do
Crescente Fértil.

A maior referência que faz ao Egito consiste em meia página, em que os


autores se propõem a apresentar outras fontes aos estudantes, sendo que o que
apresentam é uma passagem do Livro dos mortos, “O tribunal de Osíris”, na qual
analisam a pintura como outra possibilidade de fonte histórica. Fora isso, os autores
recolhem sete pontos comuns a todas as civilizações do Ocidente e do Oriente
Antigo, como excedentes agrícolas, presença de religião politeísta, e fecham a
unidade abruptamente. Passa repentinamente para a Antiguidade Clássica.

O problema da massificação ou pasteurização do conteúdo podem trazer a


falsa ideia de que todas as civilizações eram iguais e não haviam períodos de
exceção às tais características.

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A apresentação gráfica é, sem dúvida, um dos pontos fortes da
coleção. Página 29.

A coleção possui uma diagramação muito bem feita e atrativa, porém, peca
pela falta de dados específicos às civilizações da Antiguidade Oriental, que além de
certamente serem tão ricas quanto as da Antiguidade Clássica, tiveram
características próprias e diversas. Portanto, pouco contribui para reconstruir um
aprendizado consistente, capaz de derrubar mitos e inverdades propagados pelo
senso comum.

História, 1º Ano — Coleção Integralis — Editora IBEP


— Divalte Garcia Figueira.

A coleção Integralis opta por iniciar a leitura da história apresentando a


evolução do homem e a importância da tecnologia para seu desenvolvimento.
Embora tenha cunho evolucionista e que o principal ponto de apoio seja a pesquisa
científica, não se sente como um ataque às interpretações religiosas.

Ela apresenta de forma mais lúdica à profissão do arqueólogo, para que o


aluno possa entender melhor do que se trata esse ofício. A coleção define muito
bem não somente onde se localiza geograficamente o Egito, como também passa
ao aluno uma localização visual muito satisfatória do Oriente Próximo.

20
São 14 páginas, um capítulo inteiro dedicado ao estudo do Antigo Egito. O
trabalho com fontes históricas é constante e distribuído de maneira satisfatória. A
análise da sociedade apresenta praticamente todos os segmentos. A diagramação é
leve e bem distribuída, não se perde em trechos em branco e todas as imagens
possuem um bom tamanho, adequado para leitura e interpretação.

Imagens amplas e bem distribuídas permitem um trabalho adequado


com esse tipo de fonte. Página 41.

Desenvolve muito bem a temática sobre o Egito. Apresenta o


desenvolvimento da escrita, a divisão territorial (Nomos), a divisão cronológica
política da história egípcia em períodos – Antigo, Médio e Novo Império), os grupos
sociais, a religião e a arte com um conjunto de perguntas próprias, o que até então
nenhuma coleção citada havia apresentado. A coleção Integralis apresenta não
somente dados resumidos ou uma visão econômica do Egito, mas mostra o
cotidiano desse povo e suas várias faces, com um capítulo inteiro dedicado a ele,
além de mostrar a interação entre Egito e outros reinos da África, tal como Kush.

O livro ajuda o leitor em uma construção do saber bem mais consistente


sobre o Egito Antigo, fornecendo dados preciosos para a elaboração de um
raciocínio coerente. O texto não apresenta apenas deuses e faraós, apresenta o
homem comum em atividades cotidianas.

A religião egípcia é apresentada como uma sequencia da vida privada, uma


parte integrante, importante da vida e do coidiano do egípcio, não é tratada como
algo apenas exótico e chamativo.
21
História: 1º Ano — Editora Positivo — José Geraldo
Vinci de Moraes.

Coleção de cunho evolucionista e científico, deixa a impressão de que o


aluno já sabe sobre o que está se falando e tem uma opinião formada sobre tema.
Não abre espaço para discussão e diálogo.

O ponto positivo da obra é a apresentação do Egito Antigo entre os reinos


africanos. No entanto, as informações são muito breves e pontuais, novamente
como se o aluno já soubesse do que se trata. Enquanto a coleção Integralis utiliza
oito páginas para tratar do Egito, José Geraldo utiliza apenas duas. Assim como as
coleções História em debate e a Caminhos do homem, a de José Geraldo
apresenta informações e dados, mas não traz nenhuma informação nova sobre o
Egito, apenas lugares comuns.

Ser protagonista: História, 1º Ano — Editora SM —


Obra coletiva.

Uma coleção que acaba se ajustando ao processo dinâmico, sacrificando


informação em nome da velocidade, não deixa claro seu alinhamento. Ela apresenta
o Egito também dentro das sociedades africanas, mas, como o restante das
coleções, não colabora para que o aluno amplie informações críticas a respeito da
civilização egípcia.

22
São utilizadas seis páginas para uma civilização de mais de 3 mil anos, com
informações que são bastante superficiais, pouco ajudando na construção de
conhecimento e na compreensão da sociedade egípcia.

Destaque para seções ao longo do capítulo que realizam um marco histórico


comparativo entre o Egito do passado e o Egito da atualidade, bem como um
contraponto com cidades americanas no mesmo período estudado.

A diagramação é pesada, textos prensados em colunas menores e colunas


falsas em branco, uma oportunidade de enriquecer o material. Uma página destina-
se aos faraós e à religiosidade, sem problemas conceituais, no entanto, com poucas
informações relevantes.

A coluna falsa foi mal aproveitada, a imagen da pirâmide poderia ter sido
melhor aproveitada se expandida e preenchido a página. Página 53.

O trabalho com documentos não está presente no corpo do texto e sim, após
o termino do capítulo, o que empobrece e distancia a importancia do uso do
documento histórico.

23
Oficina de História — Editora Leya — Flavio de
Campos e Regina Claro.

A coleção Oficina de História, embora graficamente bem trabalhada, não traz


nenhuma informação diferenciada a respeito do Antigo Egito.

São cerca de 6 páginas e meia que tratam do tema. Diferencia-se pois situa o
Egito como um reino da África. Apresenta gráficos cronológicos bastante didáticos e
possuem uma distribuição de diagramação bastante harmoniosa. A abordagem, no
entanto é bastante tradicional, com ênfase na distribuição política e econômica
egípcia.

Como trabalho de documento apresenta uma única análise de fonte, no


entanto é bem feito e bastante didático. A questão religiosa, como não poderia ser
diferente, é bastante destacada e apresentam-se outros elementos da sociedade
para além de reis e sacerdotes.

A análise da imagem é bem direcionada e ajuda os alunos na


interpretação do documento histórico. Página 52.

Suas informações beiram ao lugar comum, semelhante a coleçóes


anteriormente citadas. A divisão de conteúdo é feita a partir da divisão cronológica
política. Também analisa a história egípcia entre os reinos africanos e apresenta a
relação comercial e cultural do Egito com o reino de Kush. Apresenta na temática

24
religiosa a proposta reformista de Amenófis IV e a implantação do culto ao Disco
Solar.

Para as atividades extras destacam-se a seção de conexão com outras


disciplinas, atendendo à demanda da interdisciplinariedade, no caso uma conexão
com a matemática relacionando a geometria da arquitetura egípcia com a
mencionada disciplina. No final do capítulo há algumas provocações intelectuais
masnão se trabalham mais documentos históricos.

Em termos críticos ao conteúdo destaca-se a ênfase na reforma religiosa de


Akhenaton que, em senso comum se atribui a implantação e arbitrária imposição do
monoteísmo, o que não corresponde com as análises de importantes egiptólogos
como Rosalie David, que nos esclarece em Religião e Magia no Antigo Egito:

Nos primeiros anos do seu reinado, Akhenaton tinha escolhido Aton como
deus supremo, mas ainda retinha outras deidades solares — Rá, Harakhte e
Shu — junto com o seu deus. [...] Hornung argumentou que, como
tradicionalmente os egípcios não podiam conceber uma unidade exclusiva ou
a unidade de deus, o monoteísmo era um avanço impossível para eles.
(DAVID : 2011: 303,304)

É portanto, uma coleção que peca em alguns aspectos conceituais e que


pouca contribuição traz para uma abordagem crítica sobre o Egito.

História: cultura e sociedade: Memória das


origens — Editora Positivo — Jean Moreno e Sandro
Vieira.
A coleção parte de uma análise referente aos temas cultura e sociedade. São
14 páginas destinadas exclusivamente ao Egito. Uma divisão de assuntos bem
elaborada e de fácil localização cronológica. A coleção surpreende, na quantidade
de dados novos apoiados em pesquisas recentes – a partir do ano de 2010 até o
presente. Preza por uma divisão não apenas sociocultural, como também por
explicar questões historiográficas como a aquisição da Pedra da Rosetta pelos
25
franceses e o início da egiptologia, explicando ao leitor que há uma ciência que
cuida especificamente do estudo do Egito, explicação inédita entre as obras
analisadas.

O primeiro aspecto que torna a obra muito interessante em sua abordagem é


que inclui o Egito na esfera dos demais reinos africanos e menciona sua relevância
dentro de tais reinos. Faz relação entre o Egito e a Grécia de Alexandre Magno,
dando compreensão da longa duração desse Império – outro ponto não trabalhado
em nenhuma das coleções analisadas.

As imagens utilizadas na apresentação do conteúdo são muito bem


exploradas e com indicações para análise realmente significantes.

No que tange ao uso de documentos históricos, também é bastante


interessante ver sua abordagem com documentos escritos e visuais. Há uma seção
específica para o trabalho com documentos. Surpreende também no que se refere a
relação do Egito Contemporâneo com o Islã. É uma coleção que faz as devidas
ligações que se espera para os leitores e foge do senso comum presente em outras
obras.

26
História 1: Das sociedades sem estado às
monarquias absolutistas — Editora Saraiva —
Ronaldo Vainfas, Sheila de Castro Faria, Jorge
Ferreira e Georgina dos Santos.

A coleção traz abordagem de caráter evolucionista. Como as coleções


anteriormente citadas, ressalta a importância da água para o Egito e para as demais
sociedades antigas, articula-se com uma história essencialmente política e
econômica.

O Egito está presente em um subtítulo entre outras sociedades do Oriente


Próximo. O título que o acompanha é: O Egito dos faraós; uma clara indicação de
que a abordagem possui uma visão da história a partir dos governos e dominadores.
Os autores dedicam, com um certo dinamismo, todas as informações sobre o Egito
em menos de três páginas. Já na abertura propõe uma reflexão a partir da
filmografia sobre a antiguidade. Em box, fala da questão da múmia como um
elemento dos filmes de terror e problematiza a questão.

É perceptivel a ênfase dada às curiosidades relacionadas à religião: múmias,


pirâmides, escrita, deuses e faraós. A descrição é realizada de cima para baixo, ou
seja, dos deuses para as elites e pouca menção ao povo. A vida cotidiana resume-
se à legenda em fonte reduzida, de uma pequena imagem .

Trechos do livro páginas 32 e 33. A ênfase ao exótico e a temas relacionados com a realeza ou aos
deuses dominam a interpretação acerca do Egito.

27
Ainda ressalta a importância de duas mulheres — Hashepsut e Nefertiti —
ambas parecem que foram importantes apenas pelo fato de estarem próximas do
poder.

O livro não apresenta erros conceituais, no entanto, peca em apresentar


umahistória linear, elitista e com pouca ênfase no cotidiano e nas pessoas comuns.
Parece realmente que o Egito é aquele cenário de filmes históricos. Não falam de
suas descobertas, de suas constribuições para a humanidade e parece estar
desconexo de todo o restante dos povos contemporâneos seus. Falta também um
bom trabalho com documentos históricos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Após análise das obras citadas, conclui-se que não somente a falta de
especialistas ajudam na pouca elaboração do saber histórico, como também a
brevidade com que o assunto é tratado. A impressão que muitas coleções passam
é a de que o Egito se resume à pirâmides, escrita hieroglífica e uma religiosidade
fantasiosa. Não abordam aspectos significantes do cotidiano e, além disso, com
informações pífias que parecem ser retiradas todas de um mesmo livro do início do
século XX.

Destacam-se como obras melhor elaboradas as coleções Integralis e


História, cultura e sociedade. Não é de se espantar que essa reprodução de
conhecimento em detrimento de um calendário escolar apertado, a falta de
profissionais e o desinteresse histórico apresentado muitas vezes em sala de aula e
pelo Brasil afora sejam superados por informações mais dinâmicas e atrativas,
como a linguagem do cinema. Os efeitos visuais sobre os mitos afloram um parecer
fantasioso sobre o Egito, que, ao mesmo tempo que encanta, deturpa a realidade e
não aproxima o aluno de uma realidade histórica. Percebe-se uma visão da
egiptomania centrada no senso comum.

28
Observa-se, portanto, que a pouca atenção destinada aos assuntos da
Antiguidade não causa mudança no olhar dos alunos sobre o tema ou mesmo sobre
o Egito, o que facilita a permanência de ideias equivocadas sobre essa civilização
que tanto contribuiu e, de certa forma, contribui para as noções de civilização que
se tem ainda hoje. Compreende-se que todos os assuntos presentes no currículo
básico de História são de extrema importância e que precisa ser feita uma escolha,
aqueles que receberão maior atenção e os que receberão menor atenção.
Todavia, a Antiguidade Oriental vem sempre sendo colocada de lado, o que se faz
criar ideias errôneas sobre tais civilizações.

Até mesmo em se tratando de assuntos da atualidade, percebe-se a


ausência de conhecimento mais apurado sobre egípcios e seus vizinhos. Quando os
noticiários de televisão, rádio e impressos apresentam fatos e até mesmo tragédias
ocorridas na região desses povos, retomam as discussões sobre a importância de
conhecer melhor a história deles. Mas acaba sendo retomada uma história
superficial, não levando em consideração muitos aspectos dessas sociedades tão
antigas, que carregam até o presente traços e heranças da Antiguidade. Corre-se o
risco de cair novamente em explicações simplistas e, às vezes, cheias de
preconceitos.

29
Livros didáticos utilizados na análise / Fontes

BERUTTI, F.; MARQUES, A. Caminhos do homem. 2. ed. Curitiba: Base Editorial,


2013.
CAMPOS, F. de. CLARO, R. Oficina de História. São Paulo: Leya, 2013.
FIGUEIRA, D. G. História – Ensino Médio . São Paulo: IBEP, 2013.
MOCELLIN, R.; CAMARGO, R. de. História em debate – Ensino Médio, 3. ed. São
Paulo: Editora do Brasil, 2013.
MORAES, J. G. V. de, História - Ensino Médio. Curitiba: Editora Positivo, 2013.
MORENO, J. C.; VIEIRA, S. G. História, cultura e sociedade: Memória das
origens. 2. ed. Curitiba: Positivo, 2013.
REIS, A. R. dos; MOTOOKA, D. Y.; TEIXEIRA, G. L. Ser protagonista. 2. ed. São
Paulo: Edições SM, 2013.
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