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O VIAJAR CIENTÍFICO: A RACIONALIZAÇÃO DAS VIAGENS E

NARRATIVAS DO SÉCULO XVIII

Eduarda Mendes Cardoso1


Orientador: Adriano Comissoli 2

Resumo: Este trabalho objetiva apresentar algumas reflexões teóricas sobre as viagens científicas e
suas narrativas no período setecentista. A partir do século XVIII e durante o século XIX, em
decorrência do aprimoramento científico, as viagens tomaram novos significados. Desde as
primeiras investidas marítimas, as viagens tornaram-se meios de conectar os olhos europeus as
“exóticas” e distantes terras do Novo Mundo. Essa ligação se materializou na escrita de diários,
cartas, relatórios, relatos de viagem e dentre outros documentos que contabilizou no registro dessas
expedições. A viagem e seu produto, isto é, qualquer forma manuscrita sobre a viagem, eram
motivados pela lógica expansionista de colonização. Além disso, esses discursos reforçavam
preconceitos e discursos civilizadores sobre as populações que mantiveram contato. Com
intensificação do trânsito náutico, as atividades científicas se nutriram das ações exploratórias de
expansão e conquista territorial das nações europeias para realizarem estudos e coletas estratégicas
sobre inúmeros temas até então desconhecidos.
O presente texto é fruto de pesquisa submetida ao Programa de Pós-Graduação em História,
nível Mestrado Acadêmico, da Universidade Federal de Santa Maria, que se encontra em estágio
inicial. Desse modo, o referido trabalho apresentado como projeto de pesquisa propõe uma análise
dos relatos de viajantes franceses na fronteira franco-portuguesa do século XVIII, por meio dos
quais serão investigados a forma como os povos ameríndios locais eram descritos, assim como a
região fronteiriça amazônica era compreendida e registrada nas narrativas de viagem. Alguns desses
documentos são contidos a partir de uma perspectiva singular de análise, como narrativas de
viajantes-cientistas, por sua natureza, materialidade e conteúdo, tão característicos do tempo que
foram elaborados, consagrando um dos primeiros marcos da cientificidade nas viagens às Américas.
Dessa maneira, será utilizado como fonte de pesquisa alguns relatos de viagem contidos no
livro do antropólogo e professor da Universidade de Poitiers Francis Dupuy. A obra Les arpenteurs
des confins: explorateurs de l'intérieur de la Guyane, 1720-1860 reúne 12 textos, onde o autor
organiza os relatos de viagem, ricos em informações históricas sobre a colonização francesa nas
Guiana Francesa e na Amazônia.Com efeito, nesta obra, são apresentados os cruzamentos de
narrativas de viagem de sucessivos exploradores dos séculos XVIII e XIX. O recorte cronológico

1
Graduada em Licenciatura em História pela Universidade Federal do Amapá (UNIFAP). Mestranda em História pela
Universidade Federal de Santa Maria (UFSM). Email: eduardamendes5020@gmail.com
2
Professor Adjunto do Departamento de História e do Programa de Pós-graduação em História da Universidade Federal
de Santa Maria. Responsável pelas disciplinas de História Moderna e História do Rio Grande do Sul. Mestre em
História pela UFF e doutor em História Social pela UFRJ.
inicial desta investigação foi demarcado pelo ano da primeira expedição realizada pelo sargento La
Haye (1728-1729), seguindo-se pelos relatos de viagem do botânico Jean Baptiste-Patris (1766-
1767), o geógrafo Simon Mentelle (1767) e Claude Tony “mulato livre da colônia” (1768).
As narrativas de viagem compõem um acervo muito vasto para o desenvolvimento de
pesquisas que procuram analisar determinados percursos temporais do homem em espacialidades
específicas. As abordagens que as rodeiam, são direcionadas tanto ao seu trato como fonte
promissora a ser explorada, como um gênero textual complexo. Nesse meio, os trabalhos de críticos
literários, antropólogos, linguistas e historiadores nos conduzem à uma reflexão que as viagens e
seus relatos manifestam possibilidades únicas para se acessar a mentalidade do indivíduo por meio
de um procedimento analítico que se empenha em investigar, nas entrelinhas do discurso,
informações refletidas de um período particular.
De forma geral, os relatos de viagem se apresentam como documentações riquíssimos em
detalhes sobre a história da vida cotidiana no Brasil colonial. A escrita minuciosa de inúmeros
viajantes obstinados a cruzar diferentes territórios podem ser consideradas como um corpus
documental rico para pensar as lógicas e experiências de diferentes sujeitos históricos. Não
obstante, estas se materializam como uma intrincada ponte entre a Europa civilizada para o viajante
e o “desconhecido” e “exótico” Novo Mundo. Essa “vitrine das terras longínquas”, propagada pelo
discurso civilizador europeu foi, por excelência, palco de alteridades e representações, cujo ímpeto
expansionista motivou muitos deslocamentos transatlânticos, seja por motivações cientificas,
políticas, econômicas ou desejos pessoais.
Vale salientar que, entre o século XVI – período no qual ocorreu a entrada de viajantes
europeus em terras brasileiras, até meados do século XX – o Brasil foi um dos alvos mais cobiçado
das Américas e, de certa maneira, atraiu um olhar atento e curioso do europeu. Como bem
observado por Luciana Rossato, a atenção era de tamanha grandeza, que o público europeu letrado
teve um alcance extraordinário. A cada edição publicada, o número de leitores aumentava
significativamente. Nas palavras da autora:

De 5.562 títulos publicados nos séculos XVI, XVII e XVIII, relacionados com viagens, 456
foram publicados no século XVI, 1.566 no século XVII e 3.540 no século XVIII e na
primeira década do século XIX. Do total de livros elencados como relatos de viagens, 794
tinham como tema a América (ROSSATO, 2007, p. 10).

A designação “viajante”, por sua vez, é aqui considerada dentro de um grupo específico, ao
mesmo tempo diverso e seleto. Dentro desse grupo, a maioria não pertencia a mesma posição social
ou não compartilhava das mesmas posições intelectuais, o que tornava as viagens mais adversas
(ROSSATO, 2007, 61). Isso se reflete na tipologia das viagens, suas motivações, formas de
financiamento, países de origem. Um dos viajantes que foi selecionado para esta pesquisa, faz parte
de um grupo muito característico na autoria de relatos de viagens na América Portuguesa a partir da
segunda metade do século XVIII: os de cientistas viajantes.
Deste mesmo modo, como salienta o historiador Samuel Geraldino, até o século XVII, as
viagens eram estimuladas por interesses religiosos como as visitações a lugares sagrados ou
motivações políticas em que governos enviavam funcionários de confiança para a administração e
expansão de seus territórios (GERALDINO, 2015, p. 18). Estas eram viagens que se alinhavam a
interesses exclusivos de impérios coloniais europeus, que caminhavam rumo às Américas em uma
disputa desenfreada por novas terras e novos domínios. Do século XVII ao século XIX, os
parâmetros que definiam os relatos, teve mudanças significativas em suas estruturas e objetivos
(GERALDINO, 2015, p. 4). No entanto, ao contrário de muitos que acreditam em relação as
motivações serem apenas de cunho científico, estas oscilavam ainda com os antigos propósitos
exploratórios das viagens de séculos anteriores, antes atrelados apenas as questões religiosas,
políticas e econômicas de seu país.
Partindo desse pressuposto, Peter Burke revela que muito dessas mudanças estavam
atreladas a profissionalização da escrita de diários, cartas e relatos de viagens que seguiam uma
espécie de receita encontradas em livros sobre “a arte de viajar”. Instruções “sobre como viajar” 3 e
o “que se deve escrever sobre a viagem” eram muito comuns entre os viajantes e faziam parte do
gênero de literário desde o século XVII (BURKE, 2000, p. 140).
As principais mudanças referentes as viagens estão relacionadas também ao próprio perfil de
um viajante e ao ato de viajar na sociedade europeia. Samuel Geraldino elucida que durante o
Iluminismo, viajar fazia parte da formação do gentilhomme4 europeu. Isso significa que as viagens
serviam como um meio de instrução de jovens aristocratas, que garantia seu preparo para a alta
sociedade (GERALDINO, 2015, p. 15). Nesse contexto, era comum que os jovens de famílias
muito ricas passarem alguns anos viajando pela Europa, como na Itália, Alemanha ou Suíça,
conhecendo e experimentando lugares exclusivos da nobreza com a finalidade de obter uma
formação mais erudita. Estas viagens ficaram conhecidas como Grand Tour, que inicialmente
pertenciam aos hábitos de membros da nobreza inglesa, que mais tarde se tornou popular nas
famílias aristocráticas e burguesas por todo continente europeu.
Em paralelo a isso, as viagens que dedicamos a análise estão inseridas no contexto em que
as ciências estavam em processo de amadurecimento. Neste plano, temos um campo que englobou o
perfil de inúmeros viajantes que se dedicavam ao estudo, coleta e observação da natureza: a História
Natural. A esse respeito, Rossato afirma que a maioria dos viajantes cientistas eram vinculados a
academias que serviam como um sério espaço de pesquisa. A exemplo disso, na França foi fundada
no ano de 1666 pelo então monarca Luíz XIV, por sugestão de seu ministro Jean Baptiste Colbert, a
Académie Royale des Sciences, uma instituição propriamente vinculada ao Estado que promovia o
financiamento e investigação cientifica francesa (ROSSATO, 2007, p. 21).
A despeito desse olhar, a historiadora Pauliany Cardoso, certifica que no final do século
XVIII com o advento do Iluminismo, as viagens científicas e consequentemente suas descrições,
foram assumindo uma nova perspectiva que se distanciava do antigo pensamento fantasioso e
místico das Américas. Com efeito, as narrativas se tornaram um poderoso instrumento científico, e
acima de tudo, de caráter educativo e informativo. Pois, como observa a autora: “as viagens
exploratórias eram consideradas como fontes que proporcionavam tanta oportunidade para
aprendizagem – pela concepção de mundo como uma “grande escola” que caracterizaria o espírito
iluminista e enciclopédico (CARDOSO, 2020, p. 27). Portanto, as expedições científicas e a
História Natural foram responsáveis pelas transformações na mentalidade que a Europa detinha do
Novo Mundo, especialmente das representações do lugar e dos Outros que o habitavam.
3
A partir da segunda metade do século XVIII, a estrutura das narrativas de viajantes acompanhou juntamente com os
propósitos de seus empreendimentos mudanças significativas. Instituições especializadas na escrita e conteúdo dos
relatos existiram por toda Europa, principalmente na França. A profissionalização de tutores que ensinassem um roteiro
específico e objetivo foi umas das principais alterações na estruturação dos registros. Nessa lógica, o intelectual deveria
ser o mais objetivo possível em suas anotações, não deixando espaço para subjetividades que colocasse em risco a
seriedade do seu trabalho. Naquele período, ser um bom cientista significava descrever e registrar suas impressões de
maneira técnica e sistemática.
4
Esta é uma expressão francesa que provém do significado “gentil-homem” ou “cavalheiro”. Esse termo é alocado em
relação a posição social que um clássico aristocrata francês pertence. Em outras palavras, é uma designação a própria
condição de homem nobre ou pertencente a classe burguesa.
A plêiade de viajantes naturalistas era composta por cientistas enciclopédicos que buscavam
um conhecimento que compreendesse o mundo natural, a geografia, os minerais, a fauna e a flora,
os fenômenos climáticos e geológicos. Nesta lógica, esse grupo se direcionava na observação e
coleta de espécimes desconhecidas que saiam dos padrões registrados nos arquivos de
pesquisadores ou colecionadores. A função dos naturalistas se caracterizava pelo trabalho
puramente técnico, voltado para a organização, análises comparativas das espécies, experimentação
e catalogação. O maior objetivo desses pesquisadores era acumular o conhecimento do universo
(CARDOSO, 2020, p. 30).
Para Lorelai Kury, a viagem é considerada para a História Natural como uma das etapas
necessárias para transformar a natureza em ciência. Era através dela que esses cientistas buscavam
reconhecimento e uma oportunidade na academia científica (KURY, 2001, p. 865). Não raro, os
próprios resultados que suas expedições pudessem trazer, como vendas de coleções plantas ou
animais exóticos para museus ou colecionadores, eram meios que garantiam o próprio
financiamento de suas viagens.
No que se refere ao Brasil, um dos lugares da América Latina mais visitados durante o
período colonial, inúmeros viajantes naturalistas focaram em desenvolver suas pesquisas em
consonância com os interesses políticos e econômicos de seus países. Para Ana Maria Belluzo, as
primeiras imagens do Brasil podem estar relacionadas a dois impulsos. A primeira, corresponde a
projeção sobre o desconhecido, os mitos, as fábulas e contos maravilhosos que perpassam o
imaginário europeu. A segunda tem a ver ao progresso científico. A observação direta e o
desenvolvimento de cálculos que proporcionavam as descrições geográficas para a cartografia,
convertidas em cartas náuticas a roteiros de conquista, auxiliavam na expansão e domínios de terras
além-mar, e consequentemente, nas expedições científicas (BELUZZO, 1996, p. 15).
Partindo para um cenário mais regional, a Amazônia foi palco de inúmeras expedições
exploratórias. Eram médicos, botânicos, geógrafos, matemáticos ou astrônomos que buscavam
expandir seus estudos e testar novas teorias. O espaço amazônico, principalmente no século XIX,
haveria de se tornar uma espécie de “laboratório” para estes cientistas que podiam usufruir da
diversidade que ela poderia oferecer e divulgar seus trabalhos por toda Europa (CARDOSO, 2020,
p. 28). Com base nessa afirmativa, os relatos de viagens, crônicas e diários escritos no período
colonial da Amazônia e seus arredores, foram realizados por inúmeros viajantes de nacionalidades
diversas. Dentre eles, os mais recorrentes eram portugueses, espanhóis, franceses e ingleses.
Dessa forma, portanto, conclui-se que essas novas perspectivas de viagem contribuíram para
a profissionalização e instrução de diferentes viajantes, uma vez que havia regras e procedimentos
na escrita das narrativas, nos métodos de classificação, coleta e preservação do material recolhido.
No entanto, apesar da circulação das normas de elaboração dos relatos, a sensibilidade individual
transcendia esses aspectos, pois cada sujeito observava e transmitia suas percepções e sensações de
forma diferente. Assim, esses elementos tão intrínsecos eram impossíveis de serem desassociados
do discurso narrativo, visto que o encontro e comunicação com diversos grupos ameríndios
apresentavam experiências singulares aos viajantes.

Palavras-chave: Relatos de viagem; Século XVIII; Viajantes.


REFERÊNCIAS

BELLUZZO, Ana Maria. A propósito d'O Brasil dos Viajantes. Revista USP, n. 30, p. 6-19, 1996.

BURKE, Peter. Variedades de história cultural. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2000.

CARDOSO, Pauliany Barreiros. Amapá à francesa: dois viajantes franceses na Amazônia


setentrional do século XIX. Brasília: Senado Federal, 2020.

DUPUY, Francis. Les arpenteurs des confins: explorateurs de l'intérieur de la Guyane,1720-1860.


CTHS EDITION; EDIÇÃO CTHS, 2012.

GERALDINO, Samuel Mateu Gerencsez. Os Relatos de viagem entre a norma e o gosto-os


viajantes franceses e a alimentação no Brasil no século XIX. 2015. Dissertação (Mestrado em
História) - Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2015.

KURY, Lorelai. Viajantes-naturalistas no Brasil oitocentista: experiência, relato e imagem.


História, Ciências, Saúde-Manguinhos, v. 8, p. 863-880, 2001.

ROSSATO, Luciana. A lupa e o diário: história natural, viagens científicas e relatos sobre a
Capitania de Santa Catarina (1763-1822). Itajaí: Universidade do Vale do Itajaí, 2007. 284p.

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