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Fundação Biblioteca Nacional

ISBN 978-85-7638-731-2

antroPologia cultural
Antropologia Cultural

Fundação Biblioteca Nacional


ISBN 978-85-387-3082-8
Priscila rezende

Este m aterial é parte integrante do acervo do I ESDE BRASI L S.A.,


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Priscila Rezende

Antropologia Cultural

Edição revisada

IESDE Brasil S.A.


Curitiba
2012

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© 2006-2008 – IESDE Brasil S.A. É proibida a reprodução, mesmo parcial, por qualquer processo, sem autorização por escrito dos autores e do
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SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ
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R358a

Rezende, Priscila
Antropologia cultural / Priscila Rezende. - 1.ed., rev. - Curitiba, PR : IESDE Brasil,
2012.
112p. : 28 cm

Inclui bibliograia
ISBN 978-85-387-3082-8

1. Etnologia. 2. Etnologia - Brasil. 3. Antropologia. 4. Etnocentrismo. I. Inteligência


Educacional e Sistemas de Ensino. II. Título.

12-6550. CDD: 306


CDU: 316

10.09.12 24.09.12 038986


__________________________________________________________________________________

Capa: IESDE Brasil S.A.


Imagem da capa: Shutterstock

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Sumário
Introdução aos estudos antropológicos | 7
Delimitações da Antropologia Cultural | 7
Trabalho: atividade humana | 8
Cultura: deinição | 8

Principais acepções do termo Cultura | 15


Cultura material | 15
Cultura imaterial | 16
Exemplo de cultura imaterial (crenças) | 16
Cultura real (ação e pensamento) | 19
Cultura ideal (ilosoia correta em termos teóricos) | 20
Endoculturação | 20
Aculturação | 20
Subcultura | 20
Sincretismo cultural | 20
Raça | 21
Etnia | 21
Relativismo cultural | 21
Etnocentrismo | 21

Mito: elemento da cultura | 25


Mitologia nórdica | 26
Folclore | 26
Psicologia social | 27

A questão do outro | 33
A conquista da América | 33
Colombo: o observador da natureza | 34
Colombo e os indígenas | 34
A conquista da Cidade do México | 35
A comunicação como arma do dominador | 36

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A conquista da América e as formas de dominação espanhola | 41
Os espanhóis e os signos | 41
A escravidão gerada pelo colonialismo | 42
O indígena como o “alien” (estranho) para os espanhóis | 43
Diego Durán e a cultura asteca | 43
Bernardino de Sahagún | 44
Onde estava o povo civilizado? | 45

Conquista do Brasil: historiograia e educação | 49


O conlito entre indígenas e portugueses | 49
A conquista e a proteção da “Nova Terra” | 50
A história dominante nos livros didáticos | 51
O educador e o ensino crítico | 52

O enfrentamento dos mundos | 57


A chegada do europeu na “Ilha Brasil” | 57
Fontes oiciais | 59
A Carta, de Pero Vaz de Caminha | 60

Composição étnica do Brasil | 67


Os brasilíndios | 67
Os afro-brasileiros | 68

Os neobrasileiros | 75
Que país é esse? | 75
O mito da democracia racial | 77

Cultura nacional e identidade | 83


A busca da identidade nacional na década de 1920 | 83
A coniguração da nação | 84
A história do Brasil e os livros didáticos | 85
O modernismo e a identidade brasileira | 86

A intolerância gerada pelo etnocentrismo | 93


Nazismo: um breve relato | 93
A igura de Hitler | 96

Subculturas | 101
Tribos urbanas | 101

Referências | 109

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Apresentação
“Como o ser humano um dia fez uma pergunta sobre si mesmo,
tornou-se o mais ininteligível dos seres.”
(Clarice Lispector)

Este livro de Antropologia Cultural foi organizado para que você aluno
tivesse acesso aos principais conceitos da área como cultura, processo de
humanização, inserção do indivíduo no grupo social, dominados e dominantes,
as matrizes étnicas formadoras do povo brasileiro, relativismo, intolerância e
etnocentrismo.

Elaborado para proporcionar um ensino moderno, dinâmico e atualizado,


o livro foi composto por aulas baseadas em diversos referenciais teóricos
atuantes nas Ciências Humanas, envolvendo esferas amplas das Ciências
Sociais, História e Educação.

A escolha de referenciais teóricos que atuam em diversas áreas foi proposital,


posto que não podemos entender a complexidade humana, objeto de estudo
da Antropologia, se não perscrutarmos as potencialidades, comportamentos,
mentalidades dos seres humanos. Assim sendo, todas as áreas de conhecimento
precisam se unir, cada uma dentro do seu limite de investigação, para que seja
possível compreendermos melhor este grande e enigmático “quebra cabeça”
que somos todos nós. Portanto, podemos airmar que este livro é interdisciplinar,
pois proporciona o diálogo com diversas áreas do conhecimento.

No plano didático, a principal preocupação foi a de despertar a participação


de você aluno na relexão sobre os assuntos discutidos. Nesse sentido, o livro
traz textos complementares e questões relexivas sobre os assuntos abordados

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em cada aula. Além disso, há indicações bibliográicas importantes, para que você
possa se aprofundar nos estudos e buscar outras fontes para o seu aprimoramento
intelectual.

Espero que você, por meio da relexão antropológica, amplie sua consciência de que
todos nós seres humanos estamos unidos, embora tenhamos maneiras diferentes de
viver. Aprender com o diferente é aceitá-lo e amá-lo incondicionalmente. Somente
assim poderemos vencer a intolerância que é fruto do desconhecimento.

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Introdução aos estudos
antropológicos
Priscila Rezende*

Delimitações da Antropologia Cultural


A palavra Antropologia deriva do grego άνθρωπος – anthropos, (homem / pessoa) e λόγος (lo-
gos – razão / pensamento). A Antropologia analisa as características biológicas, culturais e sociais dos
seres humanos. Por ser um estudo muito complexo iremos privilegiar, nesse curso, o aspecto cultural. A
Antropologia Cultural é o estudo do comportamento do ser humano, das crenças religiosas e dos siste-
mas simbólicos.
Podemos deinir a Antropologia Cultural como uma possibilidade de compreendermos quem
somos por intermédio da observação atenta do comportamento do outro. O outro deixa de ser vis-
to como um indivíduo ameaçador/estapafúrdio que não tem nada para acrescentar, ou seja, o “alien”.
Esse olhar diferenciado possibilita uma mudança muito relevante, posto que o outro passa a ser vis-
to como alguém que possui hábitos, costumes e valores diferentes que os nossos e justamente por
este motivo pode ensinar muitas coisas para nós, assim sendo, o outro é o “Alter” (diferente) e não o
“alien” (estranho).
A Antropologia Cultural analisa a essência humana e o que determinados grupos sociais criam
historicamente. Entendemos que o homem é onto-societário, ou seja, ele é um ser social, portanto, ele
aprende sempre com outros indivíduos. Assim, o ser humano ao utilizar suas inúmeras habilidades e
competências perscruta a sua realidade e tenta explicar a mesma.

Mestre em História Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Especialista em História, Sociedade e Cultura pela
PUC-SP. Bacharel e licenciada em História pela Universidade Cidade de São Paulo (UNICID).

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8 | Introdução aos estudos antropológicos

Quando descobrimos que somos essencialmente coletivos, percebemos que o individualismo


exacerbado que existe atualmente em nossa sociedade foi algo historicamente construído, ou seja, o
ser humano não possui uma essência solitária, mas ele precisa do outro para poder sobreviver.
Entretanto se não fôssemos inseridos em nenhum grupo social desde o nosso nascimento pode-
ríamos aprender a falar, andar e gesticular? Será que existe a possibilidade de iniciarmos o processo de
humanização de uma forma isolada de um grupo social?
Temos características e hábitos essencialmente humanos porque fomos inseridos em um gru-
po social e aprendemos a reconhecer determinados símbolos, expressar os nossos sentimentos como
chorar, rir etc.

Trabalho: atividade humana


O que distingue os homens dos animais é a nossa capacidade de pensar e utilizar a nossa inteli-
gência para sanar as nossas vicissitudes por meio do trabalho.
O conceito trabalho é, na maioria das vezes, entendido como algo penoso que fazemos para ga-
nhar um salário no im do mês e assim continuarmos sobrevivendo. No entanto, essa conceituação (cria-
da pelos economistas do século XIX) não explica a complexidade desse conceito. Trabalho é toda ação
humana sensível com valor de uso, ou seja, todo ser humano trabalha quando desempenha qualquer
ação que acontece na realidade (escola, casa, igreja) com uma inalidade. O lazer é considerado um tra-
balho, pois, quando alguém vai ao parque já está realizando uma atividade que tem um objetivo que
pode ser diversão, entretenimento ou descanso. Assim sendo, a capacidade que o homem tem de ra-
ciocinar está intrinsecamente ligada à capacidade que ele tem de trabalhar e são essas potencialidades
humanas que nos diferenciam dos outros animais.
O ser humano sempre trabalhou, ou seja, transformou a natureza para atender as suas necessida-
des. Por intermédio da sua inteligência e da capacidade que tem para criar, a espécie humana evoluiu e
continuará evoluindo.

Cultura: deinição
Outro conceito que vamos trabalhar nesse curso é o de Cultura. O que é cultu-
ra? Essa não é uma pergunta fácil, pois, ainda hoje, entre os antropólogos, há diversas
deinições para esse conceito. Será que todos possuem cultura? Você tem cultura?
Muitas vezes ouvimos falar que uma determinada pessoa tem cultura por ter
lido muito livros ou por ter conhecimento apurado na área artística. Também já ou-
vimos falar de manifestações culturais que são relacionadas ao folclore, crenças,
danças, lendas de uma determinada região. E um termo muito difundido atual-
mente é o de cultura de massa que faz referência ao cinema, televisão, rádio etc.
Observaram como é difícil deinir Cultura? Edward Burnett Tylor.

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Introdução aos estudos antropológicos | 9

O primeiro intelectual a formular um conceito de cultura foi Edward B. Tylor


(1871) em sua obra Cultura Primitiva. Para Tylor o conceito cultura engloba todas as
coisas e acontecimentos relativos ao homem. Já para Ralph

California State University.


Linton (1936), a cultura “consiste na soma total de ideias, re-
ações emocionais condicionadas a padrões de comporta-
mento habitual que seus membros adquiriram por meio da
instrução ou imitação e de que todos, em maior ou menor
grau, participam” (LINTON, 1965, p. 17-20)
Franz Boas.
Franz Boas (1938) entende cultura como “a totalidade
das reações e atividades mentais e físicas que caracterizam o
comportamento dos indivíduos que compõem um grupo social [...]” (BOAS,1964, Malinowski.
p. 166)
Malinowski (1944) deine cultura como “o todo global consistente de implementos e bens de con-
sumo, de cartas constitucionais para os vários agrupamentos sociais, de ideias e ofícios humanos, de
crenças e costumes.” ( MALINOWSKI, 1962, p. 43)
Como vimos, são várias deinições acerca da cultura, e podemos perceber que elas variam com
o passar do tempo: para Tylor, Linton, Boas e Malinowski cultura é o conjunto de ideias; para Kroeber
e Kluckhohn, Beals e Hoijer cultura é abstração do comportamento; para Keesing e Foster cultura é
comportamento aprendido. Leslie A. White apresenta uma abordagem diferenciada: cultura, segun-
do ele, deve ser vista não como comportamento, mas em si mesma, fora do organismo social. White,
Foster e outros entendem cultura como elementos materiais e não materiais. A deinição de Geertz
propõe a cultura como um “mecanismo de controle” do comportamento (MARCONI; PRESSOTTO,
1989, p. 42-43).
O elemento fundamental das preocupações com cultura foi a constatação da variedade de
modos de vida entre povos e nações. No final do século XV e início do XVI os europeus começaram
a buscar novos mercados, ou seja, lugares onde pudessem explorar as riquezas naturais e levá-las
consigo. Os portugueses conquistaram o Brasil e tiverem contato com os nativos e a mesma coisa
aconteceu com os espanhóis quando conquistaram outras áreas da América. Os povos encontra-
dos pelos europeus tinham hábitos, costumes e valores muito diferentes dos que eram aceitos na
Europa, então era necessário conhecer as especificidades dessas culturas para explorar os nativos
com mais facilidade.
Há alguns séculos atrás essa diiculdade de deinir cultura já existia e intelectuais na Alemanha no
século XVIII tentaram deinir o que seria esse conceito. Há uma explicação para isso: a Alemanha, nes-
te momento, era uma nação dividida em várias unidades políticas. Discutir cultura era relevante, por-
que poderia corroborar para a criação de um sentimento de identidade entre os alemães na ausência
de uma unidade política. Assim, os alemães poderiam identiicar um modo de vida comum para todos
que pertenciam àquela nação.
Embora existam várias deinições para o termo cultura, duas concepções são mais discutidas e
aceitas:
:: cultura são todos os aspectos de uma realidade social;
:: cultura é o conhecimento, ideias e crenças de um povo.

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10 | Introdução aos estudos antropológicos

Vamos englobar essas duas concepções para deinir qual conceito de cultura iremos utilizar
neste curso. Cultura, portanto, será entendida por nós como a variedade de modos de vida, cren-
ças, hábitos, valores e práticas de diversos povos. Assim, o termo cultura também pode ser entendi-
do como modo de produção já que ambos signiicam o jeito de ser de uma determinada sociedade
e o que ela produz.
Aprendemos que o ser humano é coletivo e que necessita do grupo para dar início ao seu pro-
cesso de humanização e que, por meio do trabalho e da sua capacidade de pensar modiica a natureza
para sanar as suas necessidades. Além disso, cria códigos de comunicação que são utilizados pelo gru-
po ao qual pertence.
A história nos mostra inúmeras culturas, ou seja, modos de vida. Ao analisarmos, por exemplo, os
rituais dos maias, civilização mesoamericana pré-colombiana com uma existência de 3 000 anos, pode-
mos perceber que essa civilização realizava alguns rituais, entre eles o sacrifício humano.
Os espanhóis criticaram a crença dos maias com base na doutrina da Igreja Cristã e disseram que
tinham por missão ensinar a religião “certa” para os “primitivos”. Para os espanhóis, esses rituais eram sel-
vagens e demoníacos:
[...] Colombo age como se entre as duas ações se estabelecesse um certo equilíbrio: os espanhóis dão a religião e to-
mam o ouro. Porém além de a troca ser bastante assimétrica, e não necessariamente interessante para a outra parte, as
implicações desses dois atos se opõem. Propagar a religião signiica que os índios são considerados como iguais (dian-
te de Deus). E se eles não quiserem entregar suas riquezas? Então será preciso subjugá-los, militar e politicamente, para
poder tomá-las à força; em outras palavras, colocá-los, agora do ponto de vista humano, numa posição de desigualda-
de (de inferioridade). (TODOROV, 1999, p. 53)

Assim, criticamos a cultura do outro partindo do pressuposto de que a nossa cultura é a corre-
ta. Por não querermos compreender o outro, que é visto como o “alien” (estranho), cometemos um pré-
-conceito, ou seja, julgamos antes de conhecermos algo ou alguém. Essa postura é muito perigosa, pois
gera intolerância.
Os maias faziam rituais em favor do grupo, ou seja, o sacrifício humano era uma entrega para o
bem-estar coletivo, segundo as suas crenças. Os espanhóis supervalorizaram a cultura europeia e rejei-
taram a cultura dos indígenas. Essa rejeição resultou em assassinatos, exploração e crueldades das mais
diversas cometidas contra os povos conquistados:
[...] Os espanhóis cometeram crueldades inauditas, cortando as mãos, os braços, as pernas, cortando os seios das mu-
lheres, jogando-as em lagos profundos, e golpeando com estoque as crianças, porque não eram tão rápidas quanto as
mães. E se os que traziam coleira em torno do pescoço icassem doentes ou não caminhassem tão rapidamente quanto
seus companheiros, cortavam-lhes a cabeça, para não terem de parar e soltá-los. (TODOROV, 1999, p. 169)

Esses exemplos mostram o quão nocivo é pensar que o seu modo de vida (valores, crenças, ideo-
logias, práticas etc.) é o único correto e que o outro sempre está errado. É o caso, por exemplo, quando
nós ocidentais julgamos a cultura oriental, especiicamente do árabe muçulmano. As mulheres ociden-
tais criticam a forma como as mulheres árabes muçulmanas se vestem, ou seja, cobertas como uma bur-
ca deixando, muitas vezes, só os olhos à vista. As mulheres árabes muçulmanas, por outro lado, criticam
a postura das mulheres ocidentais, pois, segundo elas, as mulheres do ocidente preocupam-se em de-
masia com a estética do corpo e sofrem por causa desta busca desenfreada ao corpo perfeito passando
por inúmeras cirurgias como lipoaspiração, inserção de próteses mamárias etc. Veja o choque cultural!
Não podemos julgar culturas, pois cada grupo social constrói seu jeito de viver de acordo com o que
acha certo, assim devemos apenas buscar compreender as diversidades culturais e respeitá-las acima
de tudo. Portanto, somente através da tolerância podemos construir um mundo melhor onde todos te-
rão direito de expressar suas verdades.

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Introdução aos estudos antropológicos | 11

Texto complementar
As meninas-lobo
Na Índia, onde os casos de menino-lobo foram relativamente nume-
rosos, descobriram-se, em 1920, duas crianças, Amala e Kamala, vivendo
no meio de uma família de lobos. A primeira tinha um ano e meio e veio a
morrer um ano mais tarde. Kamala, de oito anos de idade, viveu até 1929.
Não tinham nada de humano e seu comportamento era exatamente se-
melhante àquele de seus irmãos lobos.
Amala e Kamala.
Elas caminhavam de quatro patas apoiando-se sobre os joelhos e
cotovelos para os pequenos trajetos e sobre as mãos e os pés para os trajetos longos e rápidos.
Eram incapazes de permanecer de pé. Só se alimentavam de carne crua ou podre, comiam e
bebiam como os animais, lançando a cabeça para a frente e lambendo os líquidos. Na instituição
onde foram recolhidas, passavam o dia acabrunhadas e prostradas numa sombra; eram ativas e rui-
dosas durante a noite, procurando fugir e uivando como lobos. Nunca choraram ou riram.
Kamala viveu durante oito anos na instituição que a acolheu, humanizan-
do-se lentamente. Ela necessitou de seis anos para aprender a andar e pouco
antes de morrer só tinha um vocabulário de 50 palavras. Atitudes afetivas foram
aparecendo aos poucos.
Ela chorou pela primeira vez por ocasião da morte de Amala e se apegou
lentamente às pessoas que cuidaram dela e às outras crianças com as quais con-
Kamala. viveu.
A sua inteligência permitiu-lhe comunicar-se com outros por gestos, inicialmente, e depois por
palavras de um vocabulário rudimentar, aprendendo a executar ordens simples.

(B. Reymond. Le développement social de l’enfant et de l’adolescent. Bruxelas: Dessart, 1965, p.12-14)

Atividades
1. Como podemos deinir a Antropologia Cultural?

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12 | Introdução aos estudos antropológicos

2. O ser humano pode iniciar o seu processo de humanização sozinho?

3. Explique o comentário a seguir: “Uma aranha executa operações que se assemelham às mani-
pulações do tecelão, e a construção das colmeias pelas abelhas poderia envergonhar, por sua
perfeição a um mestre de obras. Mas há algo em que o pior mestre de obras é superior à me-
lhor abelha, e é o fato de que, antes de executar a construção, ele a projeta em seu cérebro.” (Karl
Marx)

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Introdução aos estudos antropológicos | 13

Gabarito
1. Podemos deinir a Antropologia Cultural como uma possibilidade de compreendermos quem so-
mos por intermédio da observação atenta do comportamento do outro.

2. Não. O texto “Meninas Lobos” nos mostra que Amala e Kamala por não terem sido inseridas num
grupo social e terem sido criadas por lobos não apresentavam características do comportamento
humano e possuíam hábitos semelhantes daqueles animais selvagens.

3. O texto ratiica que o ser humano utiliza a sua inteligência para criar e não faz como os insetos e
animais que reproduzem mecanicamente o mesmo comportamento.

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14 | Introdução aos estudos antropológicos

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Principais acepções do
termo Cultura
O conceito cultura1 varia muito na sua essência, no tempo e no espaço. Tylor, Linton, Boas e
Malinwski consideram a cultura como ideias. Para Kroeber e Kluckhohn, Beals e Hoijer cultura é abstra-
ção do comportamento. Keesing e Foster a deinem como comportamento aprendido. Leslie A. White
airma que a cultura deve ser vista em si mesma, fora do organismo humano. Leslie A. White e Foster in-
serem no conceito de cultura os elementos materiais e não materiais de cultura. Geertz propõe a cultu-
ra como um “mecanismo de controle” do comportamento. Essas deinições divergentes permitem que
aprendamos cultura por meio de seus diversos nexos constitutivos:
A cultura, portanto, pode ser analisada, ao mesmo tempo, sob vários enfoques: ideias (conhecimento e ilosoia);
crenças (religião e superstição); valores (ideologia e moral); normas (costumes e leis); atitudes (preconceito e respei-
to ao próximo); padrões de conduta (monogamia, tabu); abstração do comportamento (símbolos e compromissos);
instituições (família e sistemas econômicos); técnicas (artes e habilidades) e artefatos (machado de pedra, telefone).
(MARCONI; PRESSOTO, 1989, p. 44)

Segundo Leslie A. White cultura situa-se no tempo e no espaço e pode ser classiicada em “intra-
orgânica” (conceitos, crenças, atitudes, emoções, etc.); “interorgânica” (interação social entre os seres hu-
manos) e “extraorgânica” (objetos materiais, ou seja, localizada fora de organimos humanos).
Para os antropólogos cultura consiste em ideias (concepções mentais de coisas abstradas ou con-
cretas – crenças religiosas, míticas, cientíicas etc.); abstrações (aquilo que se encontra no campo das
ideias, da mente – acontecimentos não observáveis, não concretos, não sensível) e comportamento
(modo de viver comum de um determinado grupo humano).

Cultura material
São coisas materiais, concretas, que foram criadas pelo ser humano com uma inalidade. São, por
exemplo, vestuários, arco e lechas, vasos, talheres, alimentos, habitações etc.
1 Referenciais teóricos dessa aula: Maria de Andrade Marconi e Zélia Maria Neves Pressoto.

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16 | Principais acepções do termo Cultura

Cultura imaterial
São elementos não concretos da cultura como valores, hábitos, crenças, potencialidades, normas,
valores, signiicados etc.

Exemplo de cultura imaterial (crenças)


A morte é o lastro da maioria das crenças e superstições. Não existe incógnita maior do que a
morte. Nas crenças ela é relatada como algo sobrenatural e temido. Ela representa uma sentença eterna.
Os povos da antiguidade como, por exemplo, os egípcios; acreditavam que o indivíduo ao morrer dor-
miria até o dia do julgamento inal. Na mitologia egípcia, Anúbis, o deus mais popular e venerado qua-
renta e cinco séculos antes de Cristo, era ilho de Osíris e de Néftis, sua irmã. Anúbis instituirá, segundo a
mitologia, uma espécie de culto aos mortos, através de ritos funerários e embalsamamento, pois o cor-
po deveria estar intacto para abrigar a alma que retornaria no dia do julgamento decisivo. Anúbis estava
presente em todas as celebrações funerárias, e dirigia todos os detalhes das homenagens dirigidas ao
falecido. Todos os indivíduos, independente da riqueza que possuíam, teriam por direito sagrado uma
morada física. Ou seja, um sepulcro, fosse este, uma pirâmide real, cova simples, mastaba rica etc. Quem
fosse contra esta regra seria amaldiçoado pelas mãos de Anúbis. O bem e o mal são as forças antagôni-
cas que decidem o destino das almas. Na mitologia egípcia, o julgamento das almas era feito por Osíris,
pai de Anúbis. Osíris possuía uma balança de ouro onde se pesava as obras do réu.
Vemos a relevância da morte nas concepções de crenças. Passaram-se muitos séculos, para que,
em Roma fosse estabelecida após vários fatores, a religião cristã. Na religião cristã também existe um juiz
e guardião das almas. Reiro-me, a São Miguel Arcanjo, que como Anúbis na crença egípcia, também
guarda e, diante de Deus, apresenta as almas pesando em sua balança os atos das mesmas. Se as obras
más pesarem mais que as boas, esta alma padecerá no inferno, sofrendo eternamente os lagelos que
serão impostos pelo senhor do abismo negro, ou seja, o demônio.
Algumas crenças pregam que as almas voltam ao mundo físico, ou icam vagando, para pagarem
os males que izeram. Desta maneira, surgem várias concepções ao respeito. As superstições que englo-
bam o sobrenatural são tão inindas que seria impossível relatar todas elas “nesta vida”.
Em Mariana, cidade de Minas Gerais, por exemplo, o sobrenatural faz parte do imaginário dos mo-
radores. Dizem até, que os espectros que vivem na cidade, são mais numerosos que os moradores vivos.
As superstições se proliferam, como sinal de proteção e aviso ao seres vivos. Citarei algumas supersti-
ções dos moradores do local. Vejamos.
“Botar feijoada no fogo, à noite, é preciso antes botar sal. Pois, o sal protege o caldeirão das almas
que foram assassinadas com arma de fogo indo, desta maneira, lavar suas enfermidades no caldeirão,
azedando toda a feijoada”.
“Para o pai e a mãe não falecerem, o ilho não deve pentear os cabelos à noite”.
“Quando o espelho quebra sem nenhum motivo, uma pessoa da casa morrerá dentro de poucos dias”.
“Jamais olhe seu relexo nas águas de um rio, pois o diabo vem e lhe rouba a alma, e você morre-
rá na beira do mesmo.”

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Principais acepções do termo Cultura | 17

“O espírito comparece diante de São Miguel, e tomando este a sua balança, coloca na concha as
obras boas e na outra as obras más, e profere seu julgamento em face da superioridade do peso das
mesmas, quem for salvo vai junto a Jesus, quem passou por um pouquinho, vai para o purgatório, para
se puriicar, e quem foi ruim demais, não tem jeito, essa alma vai para junto do ‘encardido’ no inferno.”
“Se o morto icar com o corpo mole é porque a alma dele vai voltar para buscar alguém da casa
em que morava. Quando o falecido morre de olho arregalado, a primeira pessoa que itá-lo morrerá jun-
to dele”.
“A criança que morre antes de ser amamentada é um seraim.2 Entretanto, se esta tiver sido ama-
mentada e depois falecer, comparecerá ao purgatório para vomitar o leite que tomou na terra.”
“Quando entra besouro preto em casa é sinal de morte breve.”
“Quando a coruja (Matinta-Pereira) canta é sinal que morrerá alguém naquela mesma noite”.
“Deve lavar os sapatos quando chega de um cemitério, pois, se ele entrar em casa e levar a terra
do cemitério nos sapatos, uma legião de almas irá buscar o descuidado”.
“Colocar na criança o mesmo nome do pai, um dos dois morrerá logo”.
“Ouvir chamar pelo nome, fora de casa, sem saber quem foi não se deve responder; pois a mor-
te chama e leva quem responde”.
“Quando morre uma pessoa devem-se abrir todas as portas da casa para a alma sair. A casa não
deve ser fechada antes do sétimo dia, pois este é o tempo para se arrebentar as vísceras do defunto.
Depois disto, a alma dele sai de dentro da casa e vai para a morada dos mortos”.
“Quando uma procissão para em frente a uma casa é sinal que ali morrerá uma pessoa em breve”.
“Quando a pessoa sente um tremor ou um calafrio é sinal de que a morte está do lado dela e quer
levar sua alma para o além”.
“Quando uma pessoa cobrir o corpo do defunto com terra, deve pedir ao mesmo, que lhe arran-
je um bom lugar no além. Se ele for para um bom lugar, com certeza, estará bem quem pede; se for para
uma mal lugar, azarado é aquele quem pediu.”
“Quem amanhece com a boca salivosa e amarga é por ter comido mingau das almas.”
“Um clarão ou pontos luminosos vistos do nada, é aviso das almas amigas para não fazer o que o
indivíduo estiver pensando no momento.”
“O fantasma se tornará cada vez mais visível, para quem tem medo”.
“As almas de tradição antiga nunca aparecem para pessoa nua. Pois elas exigem respeito e com-
postura.”
“O espelho não relete a imagem do corpo da pessoa, porém, é a sua alma que se torna visível”.
“O diabo ica atrás do espelho, por isso, não se deve olhar no espelho nas horas abertas, ou seja,
meio dia, seis da tarde e meia noite. Se o indivíduo for descuidado poderá ter sua alma roubada. “

2 É comumente aceito como a primeira posição na hierarquia celestial dos anjos, sendo os que estão mais próximos de Deus. A palavra hebrai-
ca Saraf (‫ )ףרש‬signiica “queimar” ou “incendiar”, talvez uma alusão a tradições bíblicas onde Deus é comparado a um “fogo” ou mesmo “fogo
consumidor”. A referência bíblica para “seraim” está em Isaías 6:1-2. Extraído do site <http://pt.wikipedia.org/wiki/Seraim>.
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18 | Principais acepções do termo Cultura

Essas são algumas das inúmeras superstições que são narradas pelos moradores de Mariana.
Esses mineiros possuem um profundo respeito em relação à morte. Todos participam dos velórios que
ocorrem na cidade. Mesmo se o falecido era apenas conhecido de vista. Uma tradição muito interessan-
te na cidade, é que em todos os velórios deve ser servido às pessoas pão com salame e café. Servir refei-
ções nos velórios é uma tradição antiga que pertencia aos deveres domésticos em Roma, Grécia e Egito.
Foram os colonizadores portugueses que trouxeram este costume para o Brasil, poucas regiões pos-
suem esse costume atualmente, porém, os deveres domésticos de Mariana continuam.
Existem histórias muito interessantes que são narradas em relação à morte em Mariana. Contarei
duas fascinantes:
[ “Havia um fazendeiro muito rico, possuía muitos bens e era dono, de uma extensa boiada.
Gostava muito de cuidar de seus animais. Tudo para ele era motivo de festa, e não cansava de narrar
aos seus amigos a sua valentia em encarar o boi, e pegá-lo pelo chifre. Um dia este fazendeiro resol-
veu se consultar com uma cartomante que havia chegado na cidade. Ele queria que ela lhe previsse
seu futuro, ela porém, negava-se em falar. Ele, por sua vez, insistia. Até que a cartomante, olhou-lhe
nos olhos e disse: – ”Tu vais morrer com uma chifrada de boi”. Ele icou muito assustado e comprou
uma casa na cidade, deixando que seus empregados cuidassem do gado. Passaram-se muitos anos,
e o fazendeiro, junto com sua família, foi passar um im de semana na sua fazenda. Ele pediu a um de
seus empregados para matar um boi e trazê-lo para assar. Chamou todos os seus amigos. O boi esta-
va esticado em cima de uma mesa grande, ainda com os chifres. O fazendeiro estava correndo de um
lado para o outro para servir as bebidas aos seus convidados. Quando de repente, o pobre do fazen-
deiro escorrega no capim e cai direto sobre os chifres do boi. Os chifres ultrapassaram o seu corpo e
este, obviamente, morreu na hora” ].
Esta é uma história muito interessante, que mostra a impossibilidade de fugir da morte. Outra his-
tória muito curiosa é a da comadre morte. Vejamos: [ “ Um homem e sua mulher estavam a conversar,
lamentando profundamente a fatalidade da morte. – Se eu arranjasse um meio de ser amigo da morte,
– dizia o marido, – talvez assim eu não teria medo dela. – Isso você consegue facilmente, – replicou-lhe
a mulher, – basta para tanto, que você a convide para madrinha de nosso ilho, que deve ser batizado na
outra semana. E certamente ela não lhe recusará nenhum favor, qualquer que seja.
A Morte foi convidada e veio. Após a cerimônia e acabada a festa, já se ia retirando, quando o com-
padre aproximou-se, e assim disse: – Comadre Morte, como há muita gente no mundo para a senhora levar
embora, eu espero e desejo que a senhora nunca venha me buscar. Replicou-lhe a Morte: – Isso que vos me
pede eu não posso fazer. De Deus eu sou mandada, e quando recebo ordens de aqui buscar alguém, não
tenho remédio senão obedecer. Em todo caso, farei por ti tudo o que estiver ao meu alcance, comprome-
tendo-me lhe avisar oito dias antes de vossa morte para que possa lidar melhor com as emoções.
Vários anos se passaram, até que chegou por im, a vez de vir fazer-lhe a Morte a visita fatal.
– Boa noite compadre! – disse ela, o dia da visita chegou. Recebi ordens para vir buscá-lo daqui
oito dias, hoje aqui venho somente para lhe dar este aviso.
– Ah, comadre! – exclamou o homem, – você voltou muito depressa! Agora que eu vou indo mui-
to bem em meus negócios; acho que houve um erro lá nos documentos do além. Daqui uns poucos
anos poderei me tornar um homem muito rico. Tenha piedade, comadre! E leve um indivíduo desiludi-
do da vida em meu lugar.
– Sinto deveras, – replicou lhe a Morte; – mas, agora preciso cumprir ordens, e não posso deixá-lo
aqui neste mundo. Agora preciso ir, digo-lhe que me verás daqui oito dias, até logo!

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Principais acepções do termo Cultura | 19

Passaram-se os tão desesperados oito dias.


O homem, andava angustiado e certo de que desta vez não escaparia. A sua mulher, porém, tra-
çou um plano, que decidiram logo pôr em prática.
Havia na casa um velho escravo, o qual era encarregado de cuidar dos afazeres da cozinha. Então,
o casal, decidiu usar este pobre homem.
Fizeram com que o escravo vestisse as roupas do seu senhor e mandaram-no, em seguida, para
a cidade.
Por sua vez, o dono, tingindo o rosto de preto, icou muito parecido com o seu velho escravo.
A comadre Morte, conforme havia prometido, retornou na noite do oitavo dia.
– Ah, comadre! – indagou a mulher, – meu marido não esperava mais o vosso regresso hoje, em
vista disso, ele foi à cidade tratar dos negócios... Decerto, voltará muito tarde.
A Morte icou furiosa e replicou-lhe: – Eu não esperava que o compadre ia me aprontar uma des-
ta... Que desrespeito! Deus já me chamou a atenção... Agora terei que levar outra pessoa no lugar de seu
marido. Ouço ruídos, quem se encontra nos fundos da casa?
A mulher então se desesperou, pois ela pensou que a Morte iria até à cidade procurar o seu mari-
do. Dominando as suas emoções, a mulher ‘calmamente’ respondeu-lhe:
– Aqui em casa encontra-se somente um negro velho que cuida dos afazeres da cozinha. Estou
muito embaraçada com a senhora por causa desta situação, assenta-se um pouco, e tente icar mais cal-
ma, comadre!
– Não posso me demorar,– retrucou-lhe a Morte, – tenho uma lista bem grande de almas que te-
rão que me acompanhar. Levarei comigo qualquer outra pessoa. Nesse caso... Poderá ir no lugar do
compadre o negro velho!
A comadre morte se dirigiu rapidamente à cozinha, lá encontro aquele homem a ingir que cui-
dava do jantar.
Antes que a mulher proferisse alguma palavra, a Morte ergueu sua foice fatal e deu-lha na cabeça do
homem. A mulher estende seus braços e acolheu seu marido que morreu com o rosto tingido de preto” ].
Estas duas histórias fazem parte das inúmeras narrações da cidade de Mariana.
Através das superstições que foram observadas, os costumes, tradições e comportamentos con-
dicionados pelas crenças, percebemos a relevância da observação destas práticas, para se conhecer as
peculiaridades de uma determinada sociedade.

Cultura real (ação e pensamento)


A cultura real só pode ser percebida parcialmente, posto que ela representa aquilo que todos os
membros de uma sociedade praticam ou pensam nas suas tarefas cotidianas. A cultura real é subjetiva,
por este motivo, os estudiosos da cultura não podem ter uma única visão da realidade, pois a mesma é
apresentada de diversas maneiras de acordo com o ponto de vista de cada indivíduo.

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20 | Principais acepções do termo Cultura

Cultura ideal (ilosoia correta em termos teóricos)


Representa um conjunto de comportamentos que são propagados como corretos, perfeitos, no
entanto, na prática não são seguidos por todos os membros de um grupo social.

Endoculturação
É a aprendizagem e estabilidade de uma cultura, ou seja, cada indivíduo recebe as crenças, os mo-
dos de vida da sociedade a que pertence, o comportamento, hábitos e valores.
A sociedade controla os atos, comportamentos e atitudes de seus membros.

Aculturação
É a fusão duas culturas diferentes, ou seja, dois grupos que entraram em contato. Esse contato,
quando contínuo, engendra alterações nos padrões de cultura de ambos os grupos. Paulatinamente, es-
sas culturas fundem-se e formam uma sociedade e cultura nova.

Subcultura
É um meio peculiar de vida de um grupo menor dentro de uma sociedade maior.
Exemplo: a cultura do Nordeste brasileiro; a cultura do vodu na Jamaica; skinheads; punks; emo-
core etc.

Sincretismo cultural
É a fusão de dois elementos culturais análogos (práticas e crenças), de culturas diferentes ou não.
Exemplo: a cultura africana que entra em contato com a cultura cristã.

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Principais acepções do termo Cultura | 21

Raça
A palavra raça foi introduzida há aproximadamente 200 anos nos estudos cientíicos. No entanto,
pouco se sabe sobre a sua origem. Etimologicamente a palavra raça viria de “radix”, palavra latina que
quer dizer raiz ou tronco.
Em vários estudos a palavra raça tem sido empregada para fazer referência a indivíduos que são
identiicados como pertencentes a um determinado grupo. Assim sendo, são indivíduos que pertencem a
uma mesma linhagem ancestral e possuem os mesmos hábitos, ideais, crenças, costumes e tradições.
A palavra raça, entretanto, tem uma conotação muito mais ampla. Cientiicamente ela signiica o
que é único biologicamente. Assim, não existem subdivisões raciais quando falamos em seres humanos,
pois, neste caso, só existe uma raça que nos distingue dos outros animais, ou seja, a raça humana.

Etnia
É um grupo de seres humanos unidos por um fator comum (língua, religião, costumes, valores,
nacionalidade) e possuem ainidades culturais e históricas.

Relativismo cultural
Mostra as particularidades de cada modo de vida. Os indivíduos possuem modos de vida especí-
icos adquiridos pela endoculturação. Assim, possuem suas próprias ideologias e costumes:
Toda a cultura é considerada como coniguração saudável para os indivíduos que a praticam. Todos os povos formulam
juízos em relação aos modos de vida diferentes dos seus. Por isso, o relativismo cultural não concorda com a ideia de
normas e valores absolutos e defende o pressuposto de que as avaliações devem ser sempre relativas à própria cultura
onde surgem. (MARCONI; PRESSOTO, 1989, p. 51)

Exemplo: a iga é utilizada por algumas pessoas como um amuleto da sorte. No entanto, para os
antigos romanos ela signiicava uma relação sexual.

Etnocentrismo
É a supervalorização da própria cultura em detrimento das demais. O etnocentrismo gerou e ain-
da gera muita intolerância, preconceito e discriminação. Quando julgamos a cultura do outro, entende-
mos que a nossa cultura é a única correta e que o outro precisa modiicar-se e seguir os nossos “ideais

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22 | Principais acepções do termo Cultura

perfeitos”. O nazismo é um exemplo de etnocentrismo, posto que os alemães supervalorizaram a sua


cultura e airmavam pertencer a uma “raça pura”, assim, praticaram atrocidades contra todos aqueles
que não pertenciam ao mesmo modelo de perfeição que eles. Inúmeros judeus foram assassinados em
campos de concentração durante a Segunda Guerra Mundial, vítimas dessa intolerância.

Texto complementar
Religião e Cultura Popular: estudo de festas populares
e do sincretismo religioso
(FERRETE, 2008)

Sincretismo
Sincretismo é palavra para muitos considerada maldita, que provoca mal-estar em muitos am-
bientes e autores. Diversos pesquisadores evitam mencioná-la considerando seu sentido negativo,
como sinônimo de mistura confusa de elementos diferentes, ou imposição do evolucionismo e do
colonialismo. O Dicionário de Aurélio Buarque de Holanda apresenta cinco sentidos desta palavra. O
primeiro deles como “reunião dos vários Estados da Ilha de Creta contra o adversário comum”. Como
explica Canevacci (1996, p. 15): “Dizia-se que, de fato, os cretenses, sempre dispostos a uma briga
entre si, se aliavam quando um inimigo externo aparecia.”
Segundo o antropólogo holandês André Droogers (1989) o termo sincretismo possui duplo
sentido. É usado com signiicado objetivo, neutro e descritivo, de mistura de religiões, e com signii-
cado subjetivo que inclui a avaliação de tal mistura. Devido a essa avaliação muitos propõem a abo-
lição do termo. Droogers informa que o termo sincretismo sofreu mudanças de signiicado com o
tempo e que a distinção entre a deinição objetiva e subjetiva tem raízes históricas. Na Antiguidade
signiicava junção de forças opostas em face ao inimigo comum, de acordo com o primitivo senti-
do político apresentado pelo Dicionário do Aurélio. A partir do século XVII, tomou caráter negativo,
passando a referir-se à reconciliação ilegítima de pontos de vista teológicos opostos, ou heresia con-
tra a verdadeira religião. Hoje no Brasil este sentido encontra-se muito difundido.
Embora alguns não admitam, todas as religiões são sincréticas, pois representam o resultado
de grandes sínteses integrando elementos de várias procedências que formam um novo todo. No
Brasil, quando se fala em religiões afro-brasileiras pensa-se imediatamente em sincretismo, como “
‘aglomerado indigesto’ de ritos e mitos, ou como ‘bricolagem’ no sentido de mosaico as vezes inco-
erente de elementos de origens diversas.” (POLLAK-ELTZ, 1996, p. 13). Costuma-se atribuir também
o termo sincretismo em nosso país, quase que exclusivamente ao catolicismo popular e às religiões
afro-brasileiras. Mas o sincretismo está presente tanto na umbanda e em outras tradições religiosas
africanas, quanto no catolicismo primitivo ou atual, popular ou erudito, como em qualquer religião.

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Principais acepções do termo Cultura | 23

Consideramos que o sincretismo pode ser visto como característica do fenômeno religioso. Isto não
implica desmerecer nenhuma religião, mas em constatar que, como os demais elementos de uma
cultura, a religião constitui uma síntese integradora, englobando conteúdos de diversas origens. Tal
fato não diminui mas engrandece o domínio da religião, como ponto de encontro e de convergên-
cia entre tradições distintas.
No campo das religiões afro-brasileiras, diversos dirigentes e militantes, sobretudo os mais in-
telectualizados, tendem atualmente a seguir a estratégia de condenar o sincretismo. Esta atitude
defendida por alguns há tempos, difundiu-se entre nós principalmente após a realização, em 1983
na Bahia, da II Conferência Mundial da Tradição dos Orixás e Cultura. Desde então alguns líderes
bastante conhecidos das religiões afro-brasileiras passaram a condenar o sincretismo afro-católico,
airmando não ser hoje mais necessário disfarçar as crenças africanas por trás de uma máscara co-
lonial católica [...]

Atividades
1. O que é cultura para o estudioso Leslie A. White?

2. O que é subcultura? Dê exemplos.

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24 | Principais acepções do termo Cultura

3. O que é etnocentrismo?

Gabarito
1. Orientação: segundo Leslie A. White cultura encontra-se no tempo e no espaço e estão classii-
cadas em “intraorgânica” (conceitos, crenças, atitudes, emoções etc.); “interorgânica” (interação
social entre os seres humanos) e “extraorgânica” (objetos materiais, ou seja, localizada fora de or-
ganismos humanos).

2. Orientação: é um meio peculiar de vida de um grupo menor dentro de uma sociedade maior. ex-
emplos: a cultura do nordeste brasileiro; a cultura do vodu na Jamaica; skinheads; punks; emocore
etc.

3. Orientação: é a supervalorização da própria cultura em detrimento das demais.

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Mito:
elemento da cultura
A superioridade do mito sobre a explicação cientíica é que ele
lida com sentimentos opostos, representações irracionais, é o próprio
discurso da contradição.

Monique Augras

O homem desde sua origem tenta explicar situações que ocorrem ao seu redor. Eis a contumácia
da humanidade. Ou seja, saber o fundamento da sua existência, como ocorreu a criação do mundo, o
que é a vida e a morte. Questões não muito fáceis de serem respondidas. Porém, de certo modo, o ho-
mem inventa maneiras de explicar fatos abstratos, partindo do obséquio a ajudar o seu grupo social fa-
zendo com que aceitem, através destas explicações, situações ainda sem respostas. Estou me referindo
a lendas, mitos, contos que são inventados pelo homem que busca, desta maneira, uma explicação “má-
gica”, para concluir um fato real. Nas narrações de diversos mitos são encontrados: feitos heroicos, mila-
gres, castigos, amores, lutas etc.
Nos mitos encontram-se as experiências de vida de uma determinada sociedade em uma deter-
minada época. É a busca de uma intimidade interior, através da capacidade que o homem tem de criar
e cultivar o que há de comum no seio de toda humanidade. Ou seja, não explicar fatos de uma forma ra-
cionalmente analítica, contudo, entender o sentido genuíno do existir.
Há um acervo de mitologias, umas muito conhecidas, outras nem tanto; o importante, no entan-
to, é que todas elas implicam no social, criando padrões de comportamento de uma certa sociedade.
Podemos citar, como exemplo, a sociedade da antiga Grécia. A mitologia grega, uma das mais afama-
das, mostra em seus contos, deuses poderosos, porém, envoltos em imperfeições humanas.
Ora, os poetas ao escreverem os mitos gregos quiseram retratar, sem culpa alguma, que até mes-
mo os seres aparentemente perfeitos, possuem limites e desejos como o homem.
Creio que os mitos gregos até hoje são muito aceitos por descreverem essas imperfeições. O que
é imperfeito causa amor. O que quero dizer é que, a ideia de pecado, cria no homem mazelas pungen-
tes, e faz com que se sinta culpado por atender seus anseios e desejos. Descrever seres especiais, porém
imperfeitos, ressalta a ideia que falhar é próprio dos seres “racionalmente pensantes”, notar isto, faz com
que nos sintamos menos culpados de nossos “terríveis” pecados.
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26 | Mito: elemento da cultura

Mitologia nórdica
A mitologia retrata a realidade de um certo grupo. Na mitologia nórdica essa realidade é bem no-
tável. Os povos denominados bárbaros eram guerreiros por excelência, seus deuses eram fortes e os
ajudavam nas batalhas. Na mitologia nórdica, Odin é o mais poderoso de todos os deuses. Vejamos o
que essa mitologia mostra da realidade dos povos bárbaros:
O Valhala, na mitologia nórdica e escandinava era a habitação dos deuses e dos heróis mortos em combate. Estava situ-
ado no Paraíso escandinavo. Ali os heróis mortos combatiam todos os dias, mas ao meio dia ressuscitavam, cicatrizan-
do também todas as feridas dos combatentes. Ajudados pelas Valquírias, eles se lavavam em hidromel, que brotava dos
úberes da cabra Heidrum. A seguir participavam de um lauto banquete presidido por Odin, durante o qual, as Valquírias
serviam aos heróis hidromel e cerveja, dentro de crânios de inimigos mortos por ele. As Valquírias que quer dizer “que
escolhem os mortos” eram nove louras, virgens guerreiras, auxiliares de Odin, companheiras de combate. Sobrevoavam
os campos de batalhas, cavalgando em lindos corcéis, usavam elmo e portavam lança e escudo. Escolhiam e transpor-
tavam os heróis mortos para o Valhala [...]1

Observando a mitologia nórdica, percebe-se que a essência das suas narrações é a realidade em
que viviam os povos bárbaros. Estes viviam nos combates entre distintas tribos e acreditavam que numa
vida após a morte, onde, se porventura tivessem morrido honrosamente, podiam desfrutar dos regozi-
jos da recompensa de Odin. O que busco mostrar é que todo mito vem carregado de uma essência real
de um certo grupo. Entendendo a função principal do mito, podemos partir para os saberes que o invo-
cam. Ou seja, crenças, danças e tradições. Enim, o folclore de um determinado grupo social.

Folclore
A palavra folclore foi usada pela primeira vez pelo arqueólogo in-
glês William John Thoms (Londres-1846). Ele solicitou apoio à revista The
Athenaeun, no sentido de se fazerem pesquisas para se conhecer os costu-
mes, as crenças e os hábitos das diversas regiões da Inglaterra. Essa carta
foi publicada em 22 de agosto de 1846, daí esta data para se comemorar o
dia do folclore até os nossos dias. Folclore vem de Folk-Lore que quer dizer,
literalmente, “povo-conhecimento”. William John Thoms sugeriu esta deno-
minação, substituindo as expressões usadas por alguns eruditos da época William Thoms.
como “antiguidades populares” e “literatura popular”. Atualmente, considera-
-se relevante o registro das crenças, costumes, hábitos, cerimônias, músicas, superstições etc., não como
“antiguidades do povo” (expressão que veicula uma ideia de primitivismo), mas como conhecimentos
adquiridos por um grupo social: é a sabedoria do povo desagrilhoada de qualquer intenção erudita.2
O folclore é o conjunto de mitos, ritos, crenças religiosas, danças, linguagem, música, artesanato
etc. Folclore, portanto, vai muito além da ideia de tradição popular; ele está associado à vida do povo, à
sua disposição de criar e recriar algo. Não é somente as celebrações populares, mas o lastro da vida co-
1 Mitologia Nórdica: Disponível em: < www.luaecia.hpg.ig.com.br/cultura_e_curiosidades/89/_pri_index.htm >. Acesso em 8 set. 2007.
2 As inluências e o signiicado do folclore se encontram perfeitamente abordados nas obras de ALMEIDA, Renato ( Inteligência do Folclore. 2ª.
ed. Rio de Janeiro: Ed. Americana, 1974 ); BRANDÃO, Carlos Rodrigues ( O Que é Folclore. 10ª. ed. São Paulo: Ed. Brasiliense, 1982); CHRISTEN-
SEN, Erwin. O. (Arte Popular e Folclore. Rio de Janeiro: Ed. Civilização Brasileira, 1934); FERNANDES, Florestan ( O Folclore em Questão. 2ª. ed.
São Paulo: Ed.Hucitec, 1989) e MÔNICA, Laura Della (Manual do Folclore. 2ª. ed. São Paulo: Ed. Edart, 1982).

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Mito: elemento da cultura | 27

tidiana de um determinado grupo. O folclore é uma criação subjetiva; entretanto, sua reprodução tende
a ser coletivizada. Ele perdura de uma geração a outra, portanto, também é reconhecido como tradição
e não modismo. É uma identidade do modo de vida de uma determinada classe produtora de sua pró-
pria cultura.
O folclore tem sua representação nas tradições e crenças populares expressas de diversas manei-
ras. É denominado folclore algo que tenha origem anônima, algo que ninguém sabe quem criou. Além
disso não deve possuir cronologia alguma; sendo divulgado e praticado por um grande número de pes-
soas ao longo do tempo. É o caso dos provérbios, por exemplo.
O Brasil é o berço de um riquíssimo acervo folclórico, personiicado em crenças, culinária, lingua-
gem, danças regionais etc. Ele é formado por distintas etnias que foram protagonistas da nossa forma-
ção; o negro, os ameríndios e o branco europeu. Cada um destes grupos possuía diferentes crenças,
saberes, tradições, religião, costumes etc. Com esta amálgama de culturas, eis que surge o incomensu-
rável saber do povo brasileiro. O estudo das diferentes culturas é assaz relevante, pois ele possibilita co-
nhecer as práticas e costumes especíicos de uma determinada sociedade.

Psicologia social
A psicologia social é uma ramiicação da psicologia que estuda a inluência do ambiente social no
comportamento dos indivíduos. É comprovado que o ser humano sofre inluências dos estímulos so-
ciais que o rodeiam e o condicionam.
A psicologia social compartilha área de estudo com a sociologia e a antropologia cultural.
Entretanto, elas se diferem: o sociólogo estuda os grupos sociais e as instituições, o antropólogo estuda
as diversas culturas humanas e o psicólogo social analisa como os grupos sociais, as instituições e a cul-
tura afetam o comportamento do indivíduo.
Segundo os psicólogos sociais as crenças inluenciam de uma forma signiicativa, o behavioris-
mo (comportamento) humano. As pessoas de um determinado grupo conservam crenças semelhantes,
relacionando-se e agindo socialmente, trabalhando coletivamente em favor de intenções conectadas a
essas crenças.
O indivíduo, para ser aceito em um determinado grupo, tende ser acrítico. Ou seja, não analisar os
fatos racionalmente, porém dar-lhes crédito, por mais irracional que sejam. Se acaso um indivíduo não
compartilhar crenças semelhantes às do grupo social em que está inserido, os membros integrantes deste
grupo se unirão para persuadi-lo, de modo que ele mude de opinião e se ajuste à opinião coletiva. A maio-
ria das pessoas respondem do mesmo modo que o resto do grupo. São submetidas às opiniões coletivi-
zadas, desta forma, evitam ser tratadas com desprezo por serem exceção. Chegam ao ponto de praticar
persuasão subjetiva para se convencerem de ter visto o que o resto do grupo aparentemente vê.
Para a persuasão coletiva dá-se o nome de sugestão. Ou seja, a inluência exercida sobre uma
pessoa, de modo que ela aceite uma ideologia, crença e atitudes comuns. Entretanto, o indivíduo ado-
ta uma crença vigente, contribuindo pessoalmente com seus métodos carregados de emoção. Por este
motivo, ao entrevistar pessoas de um mesmo grupo, tratando de um mesmo assunto, veriica-se uma
carga subjetiva que distingue e faz com que as narrações se tornem mais vívidas.

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28 | Mito: elemento da cultura

Situações não comprovadas cientiicamente podem obter alguma credibilidade? Será que exis-
te poder de cura nas crenças? Para responder essas questões, vamos analisar a curiosa medicina dos ex-
cretos:
O negro nem sempre tinha a saúde cuidada pelo seu senhor. Daí lançar mão de tudo que se dizia então favorável aos
males do corpo. A medicina dos excretos dominava as senzalas [...] A falta de médico e farmácia era absoluta [...] De
modo que então, mais que agora, o escravo tinha de voltar-se para os remédios que a própria experiência aconselhava
como ótimos. Assim é que os doentes de olhos, quando não se serviam de cuspo, se utilizavam da própria urina para la-
vá-los de manhãzinha. As inchações eram curadas com emplastos de fezes de vaca, enquanto o sezão desaparecia com
o purgante de ‘batata, cabeça de negro e urina de menino macho’. Se eram as dores de estômago e fígado, tinham lá
sua receita: urina de dois dias, fermentada, além de um pouco de água morna para temperar [...] Quando acontecia uma
pessoa sofrer luxação a velha escrava vinha com um novelo de linha e uma agulha, colocando-os sobre o lugar descon-
juntado. Então ingia coser atravessando a agulha no novelo em diversos sentidos, benzendo-se e dizendo em voz bai-
xa: ‘o que coso eu? carne quebrada, nervos tortos, já desconjuntado, atufá’. Botava um unguento no qual entrava urina
de menino e azeite de dendê. Essa operação de carne quebrada se faz ainda com ligeiras modiicações [...]3

Observando os métodos citados, percebe-se o quanto as crenças inluenciam no psicológico das


pessoas. Todos esses procedimentos não são comprovados cientiicamente. Entretanto, era uma forma
encontrada pelos negros escravos para a cura de suas enfermidades. Ora, se a medicina dos excretos
não possui nenhuma comprovação cientíica de cura, eis que o psicológico possui um papel fundamen-
tal neste caso. Acreditar que benzeduras prosseguidas por libações de urina, ou, emplastos com fezes
de animais curam, é sanar doenças por meio desta crença, e não por tais ocorrências.
Veja o quanto as crenças podem inluenciar o psicológico das pessoas. Alterando, desta manei-
ra, comportamentos. A crença em superstições é algo que realmente inluencia ações no modo de vida
das pessoas. Fazer um gesto, usar um objeto para a realização de um desejo, ou até mesmo, para evitar
desgraças são práticas comuns para qualquer supersticioso.
Ao observar práticas supersticiosas, conclui-se que não possuem fundamento cientíico nenhum.
Pois, o uso de um objeto não trará mais ou menos sorte para alguém. Porém, esta prática pode obter um
resultado positivo. Por exemplo, pessoas inseguras ao realizarem uma entrevista de trabalho, podem i-
car muito nervosas e acabam tendo um resultado ruim. No entanto, ao acreditarem que existe algum
poder no objeto que levam consigo, por exemplo, uma iga, um dente de alho etc., elas se sentem prote-
gidas e, até mesmo, mais seguras no que fazem. Desta maneira, não é o pseudopoder do objeto que lhes
atribui coniança. Porém, essas pessoas, inconscientemente, trabalham a mente, convencendo o psicoló-
gico de que não há mais o que temer, pois a falsa coniança, conscientemente, se encontra no objeto, to-
davia, ela sempre esteve na mente desta pessoa, somente não foi subjetivamente trabalhada.
As pessoas, igualmente, que acreditam em duendes precisam praticar um ritual para que o ser
mágico lhes indique riqueza. Segundo estas pessoas, os duendes exigem que lhes deem maçãs gran-
des e vermelhas, assim sendo, a pessoa que cuidar dessa exigência sem falhar, saberá onde se encontra
um grande tesouro.
No antigo Testamento pode-se observar as atitudes do povo hebreu, em relação a sua crença.
Para obterem proteção de Deus, eram necessárias oferendas realizadas por inúmeros rituais. Vamos ob-
servar esses procedimentos realizados pelos hebreus para obterem proteção de Deus, Êxodo XXIX; 37:
[ “Eis o que sacriicarás sobre o altar: dois cordeiros de um ano cada dia perpetuamente. Oferecerás um
3 VIDAL, Ademar (2000). A estranha medicina dos excretos. Costumes e práticas do negro. In. CARNEIRO, Edison. Antologia do negro brasileiro.
Jornal Jangada Brasil [On-line]. Disponível em: <www.jangadabrasil.com.br/maio21/cd21050c#carneiro.htm >. Acesso em: 4 set. 2007.

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Mito: elemento da cultura | 29

desses cordeiros pela manhã e o outro entre as duas tardes [...] Isto é um sacrifício de agradável odor
consumido pelo fogo em honra do senhor[...]” ]
Conclui-se, então, que as crenças condicionam ações concretas que afetarão diretamente no modo
de vida dos indivíduos que se apegam às mesmas. Assim, as crenças de um determinado grupo social per-
tencem à Cultura Imaterial e revelam traços psicológicos, históricos e culturais de uma sociedade.

Texto complementar

O popular e sua cultura


(MORENO DE MELO, 2008)
Para tratar da questão da cultura popular é preciso de início saber que se está lidando com um
termo esquivo, dado a muitas deinições e repleto de ambiguidades. Tentaremos, portanto, circuns-
crever essa expressão de modo a não deixá-la demasiadamente ampla e vaga.
Se fôssemos tomar como deinição o que dizem os verbetes dos dicionários, pelo menos em
suas primeiras acepções, correríamos o risco de não avançarmos muito. Isso porque tanto no Dicio-
nário Aurélio de Língua Portuguesa como no Dicionário Eletrônico Houaiss de Língua Portuguesa,
encontramos primeiramente a ideia de povo enquanto totalidade de um território ou de uma re-
gião. Somente na sexta acepção do primeiro e na oitava do segundo encontramos a ideia de que
“povo” se refere a uma determinada parte do conjunto total de participantes de uma sociedade. As-
sim conceitua o segundo dicionário mencionado: “conjunto dos cidadãos de um país, excluindo-se
os dirigentes e a elite econômica”. Há nessa perspectiva a conceituação de popular por oposição,
ou ainda, pela sua negativa. Cultura popular seria então um conjunto de práticas culturais levadas a
cabo pelos estratos inferiores, pelas camadas mais baixas de uma determinada sociedade. [...]

Atividades
1. Por que é importante o estudo dos mitos?

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30 | Mito: elemento da cultura

2. Leia o texto abaixo com atenção:


O Valhala, na mitologia nórdica e escandinava era a habitação dos deuses e dos heróis mortos
em combate. Estava situado no Paraíso escandinavo. Ali os heróis mortos combatiam todos os dias,
mas ao meio dia ressuscitavam, cicatrizando também todas as feridas dos combatentes. Ajudados pe-
las Valquírias, eles se lavavam em hidromel, que brotava dos úberes da cabra Heidrum. A seguir par-
ticipavam de um lauto banquete presidido por Odin, durante o qual, as Valquírias serviam aos heróis
hidromel e cerveja, dentro de crânios de inimigos mortos por ele. As Valquírias que quer dizer “que es-
colhem os mortos” eram nove louras, virgens guerreiras, auxiliares de Odin, companheiras de combate.
Sobrevoavam os campos de batalhas, cavalgando em lindos corcéis, usavam elmo e portavam lança e
escudo. Escolhiam e transportavam os heróis mortos para o Valhala [...]

(Mitologia Nórdica. Disponível em: <www.luaecia.hpg.ig.com.br/ cultura_e_curiosidades/89/_pri_index.htm>.


Acesso em: 8 ago. 2007.)

Segundo o texto o que revela a mitologia nórdica?

3. Explique o que é folclore.

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Mito: elemento da cultura | 31

Gabarito
1. Orientação: nos mitos encontram-se as experiências de vida de uma determinada sociedade
em uma determinada época. É a busca de uma intimidade interior, através da capacidade que o
homem tem em criar e cultivar o que há de comum no seio de toda humanidade. Ou seja, não ex-
plicar fatos de uma forma racionalmente analítica, contudo, entender o sentido genuíno do exis-
tir.

2. Orientação: observando a mitologia nórdica, percebe-se que a essência das suas narrações é
a realidade que viviam os povos bárbaros. Estes viviam nos combates entre distintas tribos. E
acreditavam que numa vida após a morte, onde, se porventura tivessem morrido honrosamente,
podiam desfrutar dos regozijos da recompensa de Odin. O que busco, é mostrar que todo mito
vem carregado de uma essência real de um certo grupo. Entendendo a função principal do mito,
podemos partir para os saberes que o invocam. Ou seja, crenças, danças e tradições. Enim, o fol-
clore de um determinado grupo social.

3. Orientação: o folclore é o conjunto de mitos, ritos, crenças religiosas, danças, linguagem, músi-
ca, artesanato etc. Folclore, atualmente, vai muito além da ideia de tradição popular; ele está as-
sociado à vida do povo, à sua disposição de criar e recriar algo. Não é somente as celebrações
populares, porém é o lastro da vida cotidiana de um determinado grupo. O folclore é uma cria-
ção subjetiva; entretanto, sua reprodução tende a ser coletivizada. Ele perdura de uma geração a
outra, portanto, ele também é reconhecido como tradição e não modismo. É uma identidade do
modo de vida de uma determinada classe produtora de sua própria cultura.

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32 | Mito: elemento da cultura

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A questão do outro
A conquista da América
Tzvetan Todorov, ilósofo e linguista búlgaro radicado na França desde 1963 em Paris, fez um es-
tudo muito interessante sobre a conquista da América por intermédio do olhar não do dominador (eu-
ropeu) e sim do dominado (indígena).
O estudo de Todorov trata da conquista da América no século XVI, ou seja, os cem anos que se-
guem a primeira viagem de Colombo. Delimita-se também um local – a região do Caribe e do México
(mesoamérica). Sua pesquisa procura mostrar o confronto de culturas entre indígenas e espanhóis.
Todorov ressalta a coragem que Colombo teve em enfrentar algo latente aos olhos dos europeus.
Muitas eram as crenças, naquela época, concernentes aos mistérios inindos do mar. No entanto, este
homem intrépido se lançou ao mar com o intento de “descobrir” novas terras e, assim, encontrar ouro
para a realeza. Ora, Colombo usa deste álibi para conseguir patrocínio para a viagem; haja vista que seu
plano seria impossível sem estes grandes investimentos.
A nobreza, no entanto, não investiria em algo que não lhe trouxesse lucro, neste caso, Colombo procu-
ra convencer aos nobres de que haveria um lugar abundante em ouro que esperava para ser descoberto.
A persuasão de Colombo soava como um canto mavioso aos ouvidos da nobreza, suscitando um
enaltecimento ambicioso geral. Desta maneira, Colombo conseguiu o investimento que esperava para
lançar-se a procura de novas terras. Durante as suas viagens, Colombo escreveu aos nobres dando a en-
tender que estava muito próximo da descoberta de riquezas. Claramente estes manuscritos de Colombo
eram dissimulados, pois não descreviam a verdadeira situação. Ou seja, quando Colombo escrevia dan-
do esperanças à nobreza, a mesma continuava investindo na sua aventura. Digo aventura, pois segundo
Todorov, para Colombo não era o ouro que importava, porém, a capacidade de conhecer situações da na-
tureza que poderiam ser instigantes. Acima deste espírito aventureiro, Colombo se intitulava enviado de
Deus. Portanto, a sua suposta missão era propagar a religião católica ao mundo todo. Vejamos:
[...] A expansão do cristianismo é muito mais importante para Colombo do que o ouro, e ele se explicou sobre isso, prin-
cipalmente numa carta destinada ao papa [...] Portanto, seu objetivo é: ‘Espero em Nosso Senhor poder propagar seu
santo nome e seu evangelho no Universo. (TODOROV, 1999, p. 11)

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34 | A questão do outro

Colombo: o observador da natureza


O objetivo religioso de Colombo era fazer uma Cruzada, para que assim pu-
desse levar o cristianismo no mundo todo e acabar com as heresias. Ora, a ideia de
implantar uma Cruzada nesta época já era obsoleta, porém, para Colombo era sua
missão. No entanto, algo mais começava a chamar a atenção de Colombo: a natu-
reza. A natureza trazia regozijo para Colombo e fazia com que este se sentisse in-
térprete de seus desígnios. A natureza pura fazia com que Colombo imaginasse
que ali existisse seres diferentes como: ciclopes, homens com cauda e focinho de
Cristovão Colombo.
cachorro etc.
Os escritos de Colombo revelam que ele era mais paciente quando observava a natureza do que
quando tentava compreender os indígenas. Seus manuscritos descrevem minuciosamente tudo o que
havia na terra “descoberta”. Mosén Jaume Ferrer, um dos correspondentes de Colombo havia escrito em
1495 que as regiões muito quentes com habitantes negros e onde se encontram muitos papagaios, era
local de riquezas inexauríveis, desta maneira, Colombo não se cansava em descrever nos seus manus-
critos estes fatores naturais da “nova terra”.
As terras que Colombo encontrava já tinham nomes naturais, no entanto, ele não se importava
com isso e fazia questão de nomeá-las novamente. Isto também era uma forma de se apossar destes lo-
cais. Até os indígenas eram renomeados por Colombo. O primeiro gesto de Colombo quando entrou
em contato com as terras “descobertas” foi a declaração segundo a qual elas passariam a fazer parte do
reino da Espanha.

Colombo e os indígenas
Colombo não aceitava a cultura dos povos que viviam nas “terras descobertas”, por este motivo,
não considerava os hábitos, costumes, crenças e língua dos indígenas. O desprezo pelos indígenas era
exacerbado, tanto que Colombo nem procurava compreendê-los.
Podemos perceber que os manuscritos de Colombo falam dos indígenas porque simplesmente
faziam parte da paisagem. Suas menções sobre eles aparecem sempre no meio de anotações sobre a
natureza. A imagem que Colombo nos dá dos indígenas era basicamente física, ou seja, descreve seus
belos corpos, rostos etc.
Os indígenas e espanhóis não se comunicavam verbalmente, porém, trocavam objetos entre si.
Colombo se divertia com esta situação dizendo que os indígenas davam tudo por nada. Isto porque os
espanhóis só lhes concediam “bugigangas” sem valor nenhum.
O sentimento de superioridade fez com que Colombo proibisse essas trocas. No entanto, o pró-
prio Colombo continuou oferecendo “presentes” para os indígenas, sem mencionar que foi ele mesmo
que ensinou os indígenas a apreciarem e exigirem tais “presentes”.
Os costumes eram distintos, os indígenas viviam em comunidade, ou seja, tudo era de todos. Os
espanhóis, por sua vez, viviam numa sociedade individualista, calcada na acumulação de riquezas; es-
tas diferenças causaram embates entre eles.

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A questão do outro | 35

A conquista da América teve para os espanhóis como justiicativa principal a referência aos cris-
tãos que vieram para o “Novo Mundo” imbuídos da religião, levando em troca, ouro e riquezas.
Colombo age como se entre as duas ações se estabelecesse um certo equilíbrio: os espanhóis dão
a religião e tomam o ouro. Se os indígenas se recusassem a entregar o ouro, seriam subjugados militar e
politicamente, numa posição de seres inferiores. Nota-se que esta relação não era nem um pouco equi-
librada e sim precursora de grande desigualdade. Encontra-se aí o germe da ideologia escravagista.
Os primeiros contatos já revelavam o interesse dos espanhóis em escravizar os nativos das “terras
descobertas”, pois julgavam serem eles inferiores. No espírito de Colombo, fé e escravidão estavam in-
trinsecamente ligadas.
A história da conquista da América foi marcada pela recusa da alteridade humana. Colombo e seus
homens não reconheceram a identidade indígena e se opuseram a tudo que não era da cultura deles.

A conquista da Cidade do México


Colombo abriu caminhos para outras conquistas por intermédio de outros conquistadores.
A conquista da cidade do México, feita por Cortez1 e sua tripulação revela ainda mais a intolerân-
cia dos espanhóis.
A expedição de Cortez em 1519 foi a terceira que chegou à costa mexicana. Ela era composta de
algumas centenas de homens. Cortez se submeteu à Coroa Espanhola e foi em nome do rei da Espanha
que decidiu explorar a Cidade do México. Após algum tempo estabelecido na cidade dos astecas (os me-
xicas), para consolidar seu poder sobre eles, Cortez prendeu o soberano asteca – Montezuma. Começou,
então, a dominação pelos meios mais torpes. Montezuma morreu provavelmente apunhalado por seus
carcereiros espanhóis. Os sucessores de Montezuma travaram uma batalha feroz contra os espanhóis.
Como os espanhóis sendo tão poucos conseguiram dominar uma população tão numerosa?
Cortez usou de todos os artifícios para conseguir a vitória. Primeiramente ele percebeu o descon-
tentamento de muitos povos conquistados pelos astecas que deveriam pagar impostos a eles. Desta
maneira, Cortez fomentou lutas internas entre facções rivais e conseguiu o apoio de muitos indígenas
que vão lutar ao lado deles contra os mexicas.
Os espanhóis dominaram os mexicas e impuseram suas normas. Queimaram os livros dos mexi-
cas para apagar a religião deles e destruíram seus monumentos.
Cortez e seus homens foram incapazes de perceber a importância e riqueza da cultura asteca. Os
mexicas foram pressionados para aceitarem a religião e os hábitos europeus tidos como “civilizados”.
Outro fator signiicativo para a dominação dos astecas foi a utilização de armas de fogo desco-
nhecidas pelos indígenas. Além disso, os espanhóis trouxeram consigo uma arma muito mais devasta-
dora que é a bacteriológica. A varíola, por exemplo, matou milhares de indígenas.
Observemos que além destes fatores que propiciaram a vitória dos espanhóis há outro muito va-
lioso e eicaz para os espanhóis: decodiicar a cultura asteca para dominá-la e destruí-la.

1 Hernán Cortés ou Fernando Cortez, como é mais conhecido em português, (1485-1547) (Hernando ou Fernando Cortés durante sua vida, que
assinava suas cartas Fernán Cortés) conquistou o território do México a favor da coroa espanhola. http://pt.wikipedia.org/wiki/Hern%C3%A1n_
Cort%C3%A9s (Acesso em: 15 jan 2008)

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36 | A questão do outro

A comunicação como arma do dominador


Os indígenas e os espanhóis não falavam a mesma língua. Cortez se preocupava em interpretar
o que eles diziam e faziam em relação aos rituais que realizavam para que assim pudesse ter domínio
maior sobre eles.
Os mexicas buscavam em todo momento interpretar as diversas mensagens para obterem res-
postas sejam elas do presente ou do futuro. As adivinhações eram praticadas pelos sacerdotes que eram
muito respeitados. Vejamos como os rituais eram relevantes para os astecas:
[...] Os astecas dispõem de um calendário religioso composto de treze meses com duração de
vinte dias, cada um desses dias possui um caráter próprio, propício ou nefasto, que é transmi-
tido aos atos realizados nesse dia e, principalmente, às pessoas que nele nasceram. Saber a
data do nascimento de alguém é conhecer o seu destino; por isso, assim que nasce uma crian-
ça, procura-se o intérprete proissional, que é, ao mesmo tempo, o sacerdote da comunidade.
(TODOROV, 1999, p. 76) Calendário asteca.
Desta maneira se entende claramente que os mexicas preservavam sua religião e ritos que pare-
ciam ser inexauríveis.
Os sacerdotes decidiam, por meio dos rituais de adivinhação, a sorte do indivíduo. Entretanto,
não era um acontecimento subjetivo em si, mas conectado com a sorte de toda coletividade que con-
vivia com o consulente.
As obrigações com o grupo eram mais importantes que a relação com os laços familiares. Desta
forma, quando alguém era entregue para ser sacriicado isto era feito para o bem-estar do grupo.
Na sociedade asteca existiam distinções hierárquicas. Montezuma I codiicou as leis de sua socie-
dade já no século XVI. Entre outras leis a mais importante era a distinção hierárquica feita pelas vestes
e adornos. Vejamos: “[...] As insígnias, as roupas, os adornos que alguém tem ou não o direito de usar, o
tipo de casa apropriado para cada camada da população [...] (TODOROV, 1999, p. 81).
Percebe-se que os símbolos eram importantes para Montezuma e, consequentemente, para to-
dos os mexicas.
Montezuma colhia toda as informações necessárias para a paz na cidade do México. Trabalhavam
para ele uma espécie de “espiões” que lhe informavam sobre os atos dos povos inimigos. No entanto,
quando os espanhóis invadiram a cidade do México, os informantes de Montezuma icaram atônitos,
pois o comportamento deles era muito imprevisível que chegou a abalar todo o sistema de comunica-
ção e os astecas não conseguiram decodiicar essas informações para Montezuma.
Você caro leitor certamente percebeu o quanto os astecas eram evoluídos em vários âmbitos
como a organização do grupo, religião e até mesmo a retórica.
Os mexicas admiravam a arte do bem falar, tanto que no Estado asteca existiam duas espécies de
escola, uma onde se preparavam para o ofício de guerreiros e a outra onde saíam os sacerdotes, os juí-
zes e os dignatários reais que ensinavam aos meninos a retórica. A associação entre o poder e o domínio
da língua é claramente marcada entre os astecas. A fala privilegiada pelos astecas é a fala ritual.
A ausência da escrita é um elemento importante que explica a importância da fala para os mexi-
cas. Os desenhos estilizados, os pictogramas usados pelos astecas, não são um grau inferior da escrita,
pois registram a experiência e não a linguagem.
Os rituais que os astecas faziam ajudaram os espanhóis a identiicar a hierarquização da socieda-
de mexicas e como esta se organizava. Os adornos e as vestes que os astecas usavam para diferenciar
as castas de cada indivíduo orientaram Cortez, que facilmente distinguiu os chefes e guerreiros astecas,
capturando e matando-os para poder dominá-los. Portanto, havia uma diferença muito signiicativa en-
tre a comunicação dos espanhóis e os astecas e isso, de certa forma, beneiciou os espanhóis.
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A questão do outro | 37

Texto complementar
A civilização mexica (asteca)
(WIKIPÉDIA, 2008)
Com o declínio da civilização tolteca ocorreu a fragmentação política no Vale do México. Neste
novo jogo político de sucessão ao trono tolteca apareceram os mexica. Tratavam-se, também eles,
de um orgulhoso povo do deserto, um de entre sete grupos que antes se autodenominavam aste-
cas, tendo mudado o seu nome após anos de migração. Uma vez que não eram originários do Vale
do México, foram inicialmente vistos como rudes e pouco reinados perante os olhos da civilização
Nahua. Através de astuciosas manobras políticas e ferozes capacidades de luta, conseguiram um
verdadeiro feito: tornaram-se governantes do México liderando a Tripla Aliança (que incluía duas
outras cidades astecas, Texcoco e Tlacopan).

Istockphoto.
Em 1400 os mexicas governavam grande parte do México central
(enquanto os yaquis, coras e apaches controlavam áreas consideráveis
dos desertos do norte), tendo subjugado a maioria dos outros estados re-
gionais na década de 1470. No seu auge, 100 000 mexica presidiam a um
rico império que contava com cerca de 10 milhões de pessoas (quase me-
tade dos 24 milhões que então habitavam o México). O nome moderno
México tem a sua origem no nome do grupo dominante da Tripla Aliança
Asteca, os Mexicas. Templo Asteca.

O termo asteca é um não nome, sendo uma invenção de um inglês (Lord Kinsborough) e de
um euro-americano de nome William Prescott. Os verdadeiros nomes utilizados pelos indígenas eram
nahua ou mexica. Nem mesmo os espanhóis lhes chamavam astecas (ainda que asteca não fosse usa-
do pelos mexicas, é derivado da sua língua, o nahuatl, referindo-se à sua terra natal no norte, Aztlan).
Entre os mexicas (um dos grupos astecas), a educação era obrigatória para os homens, inde-
pendentemente da sua classe social. Existiam dois tipos de escolas: as telpochcalli (para estudos
práticos e miltares) e as calmecac (para estudos avançados de escrita, astronomia, estadismo, te-
ologia etc.). A sua capital, Tenochtitlan, estava situada na zona da moderna Cidade do México. Em
1519 a capital dos mexicas era a maior cidade da América com uma população que rondava os
100 000 habitantes (em jeito de comparação, em 1519 Londres tinha 80 000 habitantes e Paris ti-
nha 250 000).
Os mexicas deixaram uma marca profunda e duradoura na cultura mexicana perceptível ainda hoje.
Muito do que é considerado como cultura mexicana deriva desta civilização mexica: topônimos, gastro-
nomia, arte, vestuário, simbologia e mesmo a identidade mexicana que a ela foi buscar o nome.
Durante grande parte da sua história, a maioria da população mexicana teve um modo de vida
urbano: cidades, vilas e aldeias. Apenas uma fracção da população era tribal e nômade. A maioria

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38 | A questão do outro

das pessoas vivia em povoamentos permanentes, baseados na agricultura e identiicados com uma
cultura urbana, em oposição a uma cultura tribal. O méxico é desde há muito uma terra urbana, fato
graicamente reletido nos escritos dos espanhóis que os encontraram [...]

Atividades
1. Por que podemos dizer que os espanhóis foram etnocentristas?

2. Quais foram os artifícios utilizados por Cortez para dominar os astecas? Explique cada um deles.

3. Explique, segundo as informações que você já possui sobre a sociedade asteca a airmação: “Os
mexicas admiravam a arte do bem falar”

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A questão do outro | 39

Gabarito
1. Orientação: o aluno deverá responder que os espanhóis supervalorizaram a sua cultura em detri-
mento da dos astecas.

2. Orientação: o aluno deverá elencar os artifícios e explicá-los. Os artifícios são: fomentar lutas in-
ternas entre os mexicas e outros povos, queimar os livros dos mexicas para apagar a religião de-
les e destruir seus monumentos, tinham as armas de fogo e ainda causaram várias epidemias que
mataram milhares de indígenas e decodiicaram os costumes e signos dos astecas.

3. Orientação: no Estado asteca existiam duas espécies de escola, uma onde se preparavam para o
ofício de guerreiros e a outra onde saíam os sacerdotes, os juízes e os dignatários reais que ensi-
navam aos meninos a retórica. A fala privilegiada pelos astecas é a fala ritual. A associação entre o
poder e o Colombo na época da colonização espanhola pela América domínio da língua é clara-
mente marcada entre os astecas.

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40 | A questão do outro

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A conquista da América
e as formas de
dominação espanhola
Os espanhóis e os signos
Os espanhóis ao conquistarem a cidade do México procuraram formas para dominar mais facil-
mente os astecas. Eles não se importavam em aceitar a cultura dos astecas, pois, airmavam que estes
eram selvagens e sem “cultura”. Para o colonizador Hernán Cortés ou Fernando Cortez e seus homens o
que importava era coletar a maior quantidade possível de ouro.
Cortez para conseguir mais ouro procurava entender os rituais astecas para dominá-los facilmente.
Sua expedição se iniciou na busca de informações. Para isto, consegue a ajuda de um espanhol que vivia jun-
to com os indígenas, Jerônimo de Aguilhar. Aguilhar era componente de expedições anteriores a de Cortez,
além da língua espanhola falava a língua dos maias. A segunda personagem essencial para que Cortez pu-
desse coletar o maior número de informações possível sobre os astecas foi Malinche. Malinche era uma mu-
lher asteca que tinha sido vendida para os maias. Ela falava também a língua dos astecas. Cortez falava para
Aguilhar que traduzia para Malinche que, por sua vez, se dirigia para o interlocutor asteca.
Malinche, aos poucos, aprendeu a língua espanhola e ajudou Cortez ensinando-o tudo sobre o
povo asteca, o que facilitou muito a sua conquista. Foi deinitivamente graças ao domínio dos signos
dos homens que Cortez garantiu seu controle sobre a antiga confederação asteca.
A compreensão da cultura asteca para Cortez não fez com que ele simpatizasse por ela, pelo con-
trário, suscitou nele um desejo de aniquilação da mesma.

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42 | A conquista da América e as formas de dominação espanhola

Para Cortez os indígenas não tinham direito a nada e a escravidão era vista por ele
como uma forma de obter grandes lucros. Como os indígenas eram considerados mer-
cadorias e não sujeitos, deveriam se submeter espontaneamente ou pela força.
O tomar leva a destruir. Assim milhões de indígenas foram exterminados de
formas macabras, por este motivo, podemos falar que foi um genocídio. As causas
da diminuição da população indígena executada pelos espanhóis, segundo o autor
Tzvetan Todorov, são três. Vejamos cada uma delas: Fernando Cortez.
:: Por assassinato direto, durante as guerras ou fora delas: número elevado, mas relativamente
pequeno; responsabilidade direta.
:: Devido a maus-tratos: número mais elevado; responsabilidade (ligeiramente) menos direta.
:: Por doença pelo “choque microbiano”: a maior parte da população; responsabilidade difusa e
indireta (TODOROV, 1999, p. 159).
Os espanhóis submetiam os indígenas aos mais tortuosos métodos. Cortavam-lhes as mãos, as
pernas, os braços, os seios das mulheres etc., eles eram mutilados e depois friamente assassinados. Os
espanhóis faziam isso para que os indígenas icassem com medo de tamanha crueldade e os levas-
se até o suposto esconderijo dos tesouros, ou seja, o lugar que tinha ouro e pedras preciosas. De qual-
quer modo, o desejo de enriquecer não pode explicar esse comportamento sanguinário dos espanhóis.
Vejamos o que diz Todorov acerca deste fato: “É tudo como se os espanhóis encontrassem um prazer in-
trínseco na crueldade, no fato de exercer poder sobre os outros, na demonstração de sua capacidade
de dar a morte.” (1999, p. 170).
Para os espanhóis os indígenas eram seres inferiores que estavam a meio caminho entre os homens e
os animais. Isto justiica a submissão que deveriam mostrar diante dos “civilizados” espanhóis. Se os povos in-
dígenas recusassem a conceder seus territórios aos espanhóis estariam desobedecendo a “lei” da igreja que
visava catequizar e destruir tudo o que era “pagão” e, deste modo, seriam dignos da escravidão.
Os espanhóis se intitulavam juízes dos mexicas, airma Todorov:
Os espanhóis, à diferença dos índios, não são unicamente parte, mas também juízes, já que são eles que escolhem os
critérios segundo os quais o julgamento será pronunciado; decidem, por exemplo, que o sacrifício humano diz respei-
to à tirania, mas o massacre não. (TODOROV, 1999, p. 179)

Os indígenas, para os espanhóis, eram vistos como animais selvagens, ou seja, eram seres anima-
dos, porém, não possuíam alma, assim, eram dignos de submissão. Esta foi a mesma justiicativa dada
pelos europeus quando escravizaram os negros.

A escravidão gerada pelo colonialismo


O cristianismo foi o elemento principal para rotular àqueles que o seguiam, segundo a igreja cató-
lica, como superiores e àqueles que o desconhecia como inferiores. Os espanhóis se sentiam superiores
também por serem cristãos e terem os sacramentos da igreja. Eles se autorreconheciam como instru-
mentos para a salvação dos indígenas por livrá-los da “barbárie” e das “heresias”.

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A conquista da América e as formas de dominação espanhola | 43

Frei Bartolomé de las Casas nasceu em Sevilha em 1474, foi um frade dominicano, cronista, teólogo,
bispo de Chiapas (México), considerado o primeiro sacerdote ordenado na América. Ele vai “defender” os
indígenas em nome do cristianismo. No entanto, a libertação do indígena não foi cogitada por ele.
Las Casas tinha uma teoria um tanto quanto curiosa, para ele os indígenas não precisavam ser bons
cristãos, mas deveriam agir como se fossem. Isto porque, ser cristão era sinônimo de ser “civilizado”.
Os espanhóis queriam transformar os mexicas com referência nos moldes europeus. No entanto,
nunca perguntaram aos mexicas se eles queriam seus modelos, simplesmente os impuseram, aí reside
a violência cultural.

O indígena como o “alien” (estranho)


para os espanhóis
O “descobrir” está relacionado a terras e não aos homens que nela habitam. Isto explica a razão
pela qual os espanhóis não buscavam depreender os costumes e as crenças dos nativos.
Para os espanhóis os mexicas é que tinham que compreender a cultura europeia, pois esta era su-
perior. A prova de inferioridade destes povos, segundo os espanhóis, eram os sacrifícios executados em
alguns rituais astecas. Para os espanhóis, a crença dos astecas era um culto ao demônio, ou seja, o inimi-
go de Deus na religião cristã católica. Desta maneira, eles, os espanhóis, incorporaram o papel de “guer-
reiros” em defesa da fé cristã contra as “heresias” do mundo.
Os conquistadores não viam os indígenas como eles realmente eram, porém, os viam como eles que-
riam que fossem. Ou seja, seres que estavam prontos para abraçar a religião, hábitos e costumes europeus.
Os espanhóis, sejam eles padres ou não, nunca quiseram entender o que pensavam ou o que sen-
tiam os indígenas. O mais importante para eles era encontrar riquezas e usar os nativos como mercado-
ria escrava. Assim podiam ascender socialmente na sociedade europeia. Alguns espanhóis escreveram
livros para criticar e abominar as práticas dos mexicas.
Os conquistadores espanhóis, nunca se identiicaram completamente com seus costumes. Desta
maneira, a intolerância era a base da relação entre espanhóis e mexicas.

Diego Durán e a cultura asteca


Diego Durán nasceu na Espanha por volta de 1537, mas diferente de muitos outros personagens
marcantes dessa época, foi viver no México quando tinha de cinco para seis anos de idade.
A experiência de Diego Durán foi interessante, pois esta resultou numa compreensão interna da
cultura indígena que não foi igualada por ninguém do século XVI.

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44 | A conquista da América e as formas de dominação espanhola

Pouco antes de morrer em 1588, Durán redigiu uma Historia de las Indias de Nueva España e Isla de
La Tierra Firme. Esta obra foi redigida por ele entre 1576 a 1581.
Diego Durán era dominicano, a convivência e a intimidade com a cultura indígena foi o ponto
sine qua non para o cumprimento de seu objetivo, ou seja, propagar a religião cristã. Para conseguir
isso, Durán perscrutou minuciosamente as práticas “pagãs” dos astecas, assim poderia questioná-las
e destruí-las.
Segundo Todorov, o que mais irritava Durán era o sincretismo incorporado na religião cristã pe-
los indígenas. Vejamos:
O que mais irrita Durán é que os índios consigam inserir segmentos de sua antiga religião no seio das práticas religio-
sas cristãs. O sincretismo é um sacrilégio, e é a este combate especíico que se atém a obra de Durán [...] Durán chega a
se perguntar se os que vão à missa na catedral da Cidade do México não o fazem, na verdade, para poder adorar os an-
tigos deuses, já que suas representações na pedra foram usadas para construir o templo cristão: as colunas da catedral,
nessa época, repousam sobre serpentes emplumadas! (TODOROV, 1999, p. 248-249)

Durán abominava o sincretismo religioso, entretanto, ele próprio nas sua obra ressalta as se-
melhanças que, segundo ele, haviam entre a religião cristã e as crenças dos astecas. Hipoteticamente,
Durán aponta duas explicações para essas supostas semelhanças: os indígenas já haviam tido contato
com outros pregadores cristãos antes dele ou, e esta é a mais improvável das hipóteses, o demônio os
havia persuadido para executarem os ritos católicos em sua honra. Durán não suportava essa dúvida e
em seu livro airma que os astecas eram uma das tribos perdidas de Israel.
Ao escrever a história do povo asteca, Durán incorporou nela valores pessoais e relatou os fatos
de acordo com o que ele achava que deveria ser registrado e até inventou muitas coisas. Portanto, sua
obra precisa ser criticamente analisada, pois não representa os valores do povo asteca.

Bernardino de Sahagún
Bernadino de Sahagún nasceu na Espanha em 1499. Quando adolescen-
te estudou na Universidade de Salamanca e, posteriormente, ingressou na or-
dem dos franciscanos. Em 1529 chegou ao México onde permaneceu até sua
morte em 1590. Sahagún aprendeu a língua nahuatl e tornou-se professor de
gramática latina no Colégio de Tlatelolco desde a sua fundação em 1536.
Para facilitar a expansão do cristianismo, Sahagún se propôs a descrever
em detalhes a antiga religião dos mexicanos. Ao escrever sua obra, Sahagún
desejava preservar a cultura nahuatl. Ele opta pela idelidade integral, já que
reproduz os discursos que ouviu, e acrescenta sua tradução em vez de substi-
tuí-los por ela. Entretanto, Sahagún intervinha com seus valores nos textos de
seu livro. Desta forma, “corrigia” os costumes astecas dizendo ser eles “pagãos”
Bernardino de Sahagún.
e condenáveis aos olhos de Deus.
Sobre a obra de Bernadino de Sahagún diz o autor Tzvetan Todorov:
[...] Pode-se dizer que, a partir dos discursos dos astecas, Sahagún produziu um livro; ora, o livro é, nesse contexto, uma
categoria europeia. E, no entanto, o objetivo inicial é invertido: Sahagún tinha partido da ideia de utilizar o saber dos
índios para contribuir na propagação da cultura dos europeus; e acabou por colocar seu próprio saber a serviço da pre-
servação da cultura indígena [...] (TODOROV, 1999, p. 288)

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A conquista da América e as formas de dominação espanhola | 45

Onde estava o povo civilizado?


O que mais chama a atenção na obra do autor Tzvetan Todorov é a clareza com que expõe tanto
os prismas europeus quanto as concepções indígenas no processo de conquista espanhola do território
americano. O autor nos demonstra como o etnocentrismo (supervalorização de uma cultura em detri-
mento da outra) foi regra por parte dos europeus e resultou na destruição de muitas culturas locais.
De que maneira os colonizadores espanhóis poderiam reivindicar para si o título de civilizados?
Será que era civilizado queimar pessoas inocentes na fogueira da “santa” inquisição? Será que era civi-
lizado mutilar um outro ser humano cortando-lhe orelhas, braços, dedos, seios das mulheres e, muitas
vezes, cortando com a espada o ventre de uma indígena grávida? Não seriam estes atos exemplos cla-
ros da mais pura “barbárie” e “selvageria”?
Por que é tão difícil aceitar e compreender o diferente? Que tipo de igualdade e amor mútuo
os colonizadores europeus queriam passar por meio do cristianismo aos indígenas? Este pseudoa-
mor ao próximo dos espanhóis violentou mulheres, mutilou adultos e crianças e assassinou milhares
de indígenas.
Os indígenas estavam satisfeitos com seus modos, crenças e costumes, assim, não precisavam so-
frer tamanha violência cultural e física para serem considerados “seres civilizados”. Infelizmente os euro-
centristas ainda não são capazes de perceber a cultura do resto do mundo, onde se constituíram povos
distintos com suas especiicidades.
Salve a América Latina e seus povos que tanto sofreram e sofrem por causa da ganância alheia!

Texto complementar
A sociedade asteca
(FIGUEIREDO, 2008)
A sociedade asteca estava dividida de uma maneira curiosa e um pouco diferente da das socieda-
des europeias que lhe foram contemporâneas. Se desenhássemos uma pirâmide dela, teríamos sete
divisões: no topo estariam os governantes, compostos pelo Tlatocan, pelos três maiores sacerdotes e
pelos dois governantes; depois viriam os grandes dignatários e os altos sacerdotes; abaixo estariam as
elites dos Calpulli (bairros, formados por membros do mesmo clã); abaixo destes estariam, num mes-
mo patamar, as duas castas (imóveis) da sociedade asteca: os Pochtecas (comerciantes) e os Toltecas
(artesãos); abaixo destes estavam os moradores livres e proprietários de terras dos Calpulli, ou seja, o
povo; abaixo do povo, havia um número cada vez maior de servos, ou seja, cidadãos que haviam per-
dido suas terras por dívidas, tendo se convertido em servos de outros, mas ainda assim livres, os servos
trabalhavam por dinheiro, se assemelhando a trabalhadores assalariados; abaixo dos servos estava o
estamento (por ter pouca mobilidade social) dos escravos, estes, apesar de serem utilizados como for-
ça de trabalho, não tinham nesta a sua principal função, pois eram destinados ao sacrifício, havia duas

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maneiras de alguém se converter em escravo: a primeira era também a mais comum, ou seja, os ven-
cidos nas guerras, mas a segunda, apesar de pouco usual, também existia, e eram as dívidas, ou seja,
quando alguém que já havia perdido suas terras e se convertido num servo se endividava, tinha que
vender a própria liberdade para pagar a dívida, se convertendo num escravo.
Quando cito classes, castas e estamentos, pressuponho que o leitor esteja compreendendo o que
digo, mas para aqueles que não estiverem familiarizados com os termos, aqui vão suas deinições: uma
sociedade de classes é como a sociedade brasileira, ou seja, onde todos os cidadãos, independente-
mente de condição social, classe, ou qualquer outra coisa, são iguais perante a lei, sendo assim, é to-
talmente possível a ascensão (ou o declínio) social, dependendo unicamente das oportunidades e do
esforço do indivíduo para que isso aconteça; já numa sociedade de estamentos, os homens não são
iguais perante a lei, apenas perante os deuses, sendo, portanto passíveis de salvação, no entanto sua
condição (geralmente determinada pelo nascimento, o que não é o caso no único estamento asteca) só
pode ser mudada (ou seja, ocorrer elevação ou declínio social) devido a um fato muito inusitado, como
o casamento com alguém de outra casta, ou um ato de extrema bravura, um exemplo de sociedade de
estamentos (ou estamental) era a sociedade da Europa Medieval; numa sociedade de castas, as pesso-
as são diferentes em tudo, tanto perante a lei, quanto perante os deuses, sendo assim, não há nenhu-
ma mobilidade social, o nascimento determina a posição do indivíduo na sociedade e não há nada que
possa mudar isso, nem para melhor, nem para pior, um exemplo de sociedade de castas é a Índia.
Agora que compreendemos os conceitos utilizados, podemos continuar com a análise da so-
ciedade asteca. Tratava-se de uma sociedade de classes, pois exceto pelas duas castas e pelo único
estamento, a mobilidade social só dependia do esforço de cada um. Mas espere, você deve estar se
perguntando, todos nós sabemos que para ascender socialmente, a única maneira é estudando, fre-
quentando a escola e assim, tendo a possibilidade de crescer na vida, certo? Certo. Então, como os
astecas faziam para ascenderem socialmente?
Da mesma maneira que nós. Deixe-me explicar. Em cada Calpulli, e existiam quatro, havia uma
escola denominada Telpochcalli, para ela, as crianças (tanto homens quanto mulheres) iam ao com-
pletarem oito anos. Lá, tanto meninos quanto meninas aprendiam o básico da escrita asteca e as
tradições de seus clãs, porém, a outra metade do ensino era dividida, pois as meninas aprendiam a
tecer, a costurar, a cozinhar e a cuidar de crianças, enquanto os meninos aprendiam a guerrear.
Aos 21 anos, tanto meninos quanto meninas abandonavam a escola e estavam formados, os
meninos tornavam-se guerreiros (sendo assim, todos os homens livres de Tenochtitlán eram guer-
reiros), e as meninas iam se casar. Geralmente o homem se casava mais tarde, por volta dos 25 anos.
A poligamia masculina era permitida, mas não muito difundida, ao que parece apenas alguns pou-
cos homens muito ricos tinham mais que uma esposa [...]

(Disponível em: <www.klepsidra.net/klepsidra6/astecas.html>. Acesso em: 25 jan. 2008.)


Danilo José Figueiredo é professor de ensino fundamental e médio. Bacharel em História e Mestrando em História Social
(com pesquisa na área de História Antiga) pela USP.

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Atividades
1. Cortez para conseguir mais ouro procurava entender os rituais astecas para dominá-los facilmen-
te. Sua expedição se iniciou na busca de informações. Explique como ele conseguiu essas infor-
mações.

2. Explique a expressão “o tomar leva a destruir” em relação a colonização asteca.

3. Por que podemos airmar que os colonizadores Diego Durán e Bernardino de Sahagún não escre-
veram obras que expressavam a cultura asteca?

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48 | A conquista da América e as formas de dominação espanhola

Gabarito
1. Orientação: o aluno deverá explicar como Cortez conseguiu decodiicar a cultura asteca para
dominá-la, ou seja, as informações que ele conseguiu, por intermédio da Malinche e também por
intermédio da sua observação atenta, sobre a hierarquização da sociedade asteca que podia ser
identiicada por meio dos símbolos, vestes e rituais dos astecas.

2. Orientação: milhões de indígenas foram exterminados por meio de formas macabras, por este
motivo, podemos falar que foi um genocídio.

3. Orientação: porque elas são exacerbadamente tendenciosas e eurocêntricas. As obras servem


para criticar a cultura asteca e não têm a intenção de compreendê-la.

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Conquista do Brasil:
historiografia e educação
O conlito entre indígenas e portugueses
O povo tupi não teve tempo para criar uma espécie de confederação como os astecas e nem um
Império como os incas, por exemplo. Isso porque houve a conquista da “Ilha Brasil” pelos europeus. Os
portugueses chegaram em 1500 e esse fato mudou exacerbadamente a realidade dessas várias tribos
indígenas que ali viviam.
O conlito entre indígenas e portugueses se deu em vários campos. Os principais são: biótico, eco-
lógico e econômico-social.
No campo biótico os portugueses trouxeram consigo várias patologias que eram desconhecidas
pelos indígenas como o sarampo, escorbuto, gripe, varíola etc. Essas doenças causaram grandes epide-
mias e chegaram a devastar tribos inteiras.
Os portugueses quando notaram a facilidade que os indígenas tinham para contrair essas doen-
ças, começaram a provocá-las de propósito deixando uma peça de roupa de alguém que estava com
sarampo, por exemplo, próxima à aldeia e, desta forma, algum indígena a encontrava e vestia a peça, as-
sim, logo ele se contaminava e contaminava também o resto de sua tribo.
No campo ecológico os portugueses devastaram lorestas inteiras para extrair o pau-brasil (ma-
deira de coloração avermelhada que era utilizada para tingir roupas na Europa e para construir naus).
Quando os europeus chegaram no Brasil eles não encontraram o Eldorado esperado. Na menta-
lidade europeia dessa época havia a crença do Eldorado, ou seja, uma terra exótica feita de ouro guar-
dada por lindas mulheres amazonas. Pelo contrário, eles encontraram uma terra coberta de vegetação
e os nativos (verdadeiros donos da terra).
No campo econômico e social, pela mercantilização das relações de produção, que articulou os
novos mundos ao velho mundo europeu como provedores de gêneros exóticos, cativos e ouro e pela
exploração e escravização do índio (RIBEIRO, 2000).

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50 | Conquista do Brasil: historiograia e educação

A conquista e a proteção da “Nova Terra”


A Coroa Portuguesa nem preocupou-se com essa conquista no primeiro momento, posto que
essa nova terra não oferecia o que os portugueses mais queriam que era ouro e prata. No entanto, ou-
tras nações estavam interessadas nessa nova terra e os portugueses para não perdê-la deveriam povoá-
-la o mais rápido possível.
Considerando a necessidade da historiograia resgatar a dinâmica processual que gesta determi-
nadas características nas formações históricas, se faz necessária a análise da tentativa de proteção da
“nova terra”.
Os primeiros “soldados” chegaram ao Brasil com o governador-geral Tomé de
Souza em 1548 com o intuito de controlar os domínios da Coroa Portuguesa.
A preocupação em salvaguardar a terra conquistada por Portugal da ambição
de outras nações europeias fez com que o governador-geral estabelecesse um regi-
mento que visava suprir a escassez de homens para a proteção da “nova terra”. Desta
forma, o regimento de 1548 estipulava o recrutamento entre os moradores que au-
Tomé de Souza.
xiliariam os soldados.
Outra iniciativa tomada pela Coroa Portuguesa foi armar a população das colônias. O “alvará das
armas” de 1569 tornava obrigatória a posse de armas pelos homens livres. Na tentativa de organizar
esses homens que auxiliavam os soldados, foi criado pela Coroa o Regimento Geral das Ordenanças de
1570. O serviço das ordenanças organizava a população segundo o corte social existente.
A nobreza era contra o recrutamento e não queria participar das ordenanças, mesmo em seus es-
calões mais elevados:
No Brasil, com uma hierarquia social que se forjava na presença determinante do escravismo,
o corte social proposto pelas ordenanças era uma oportunidade justamente de airmação social e de
construção dessas diferenças entre os homens livres (PUNTONI, 2004, p. 45).
As ordenanças abarcavam muitos indígenas, pois estes eram exímios conhecedores da terra e já
tinham familiaridade com a arte da guerra. Como a presença do indígena era sine qua non na força au-
xiliar de defesa da terra, em 1611 uma lei criou as chamadas Companhias para o recrutamento dos indí-
genas. O posto de dirigente das Companhias era ocupado por pessoas abastadas indicadas pelo
governador-geral, que deviam fazer o juramento de idelidade à Coroa Portuguesa, o que possibilitou
maior dominação da população indígena.
Ao longo de todo este período, o critério para o preenchimento de cargos
superiores nas ordenanças não era calcado nos conhecimentos especializados
ou técnicos. Somente no reinado de Dom Pedro II é que ocorre uma paulatina
formação do exército proissional que sofreu inluências de estrangeiros como o
Conde D’Eu, francês. Este momento representou a proissionalização e um gran-
de aumento do contingente do exército brasileiro. Cond D’Eu.
No entanto, os primórdios da formação do exército brasileiro têm sido indicados pelos autores na
época em que Dom João organizou o seu novo gabinete1 em terra brasileira, no qual, para a pasta dos
Negócios estrangeiros e da Guerra foi designado D. Rodrigo de Souza Coutinho, Conde de Linhares, que
se tornou praticamente o primeiro ministro da Guerra no Brasil. Esta pasta abrangia também as atribui-
ções referentes aos negócios estrangeiros do Reino. No entanto, até a chegada da Corte Portuguesa no
Brasil, a administração do exército icava centrada na metrópole.

1 Negócios do Reino – D. Fernando José de Portugal e Castro (depois marquês de Aguiar). – Negócios estrangeiros e da Guerra – D. Rodrigo de Souza
Coutinho (Conde de Linhares). – Negócios da Marinha e Ultramar – D. João Rodrigues de Sá e Menezes (Visconde, depois Conde de Anadia)
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Conquista do Brasil: historiograia e educação | 51

A citação de Oliveira Lima deixa explícita a precariedade das tropas no Brasil: os soldados faziam
exercício somente uma vez por mês e, além de andar sempre em atraso o pagamento dos soldados,
eram tão mal remunerados que precisavam, para se poderem manter e às famílias, trabalhar noutros
misteres, dividindo os seus lucros com os oiciais, os quais, a troco da espórtula, fechavam os olhos à
vil irregularidade de serem, os soldados do Rei ao mesmo tempo sapateiros, pescadores etc. (LOPES;
TORRES; 1947, p. 33)
Essa situação era realmente preocupante para D. João que contava com a possibilidade de uma
efetiva defesa por parte das forças armadas em caso de perigo e risco de invasão, particularmente em
decorrência da conjuntura europeia às voltas com o “des-equilíbrio” entre aquelas nações, cuja solução
só será encetada no Congresso de Viena em 1815.

A história dominante nos livros didáticos


Acredito que você já estudou em História a chamada “Descoberta do Brasil”.
No entanto, os livros didáticos traziam informações reduzidas e ocultavam muita
coisa. Atualmente com a chamada “História Renovada” temos acesso às informa-
ções que passaram a ser veiculadas nas escolas e livros didáticos após a ditadura
militar no Brasil, que durou vinte e um anos (1964-1985) que calou muitos inte-
lectuais e obrigou as escolas a passarem um conteúdo patriótico e positivista que
narrava os feitos dos chamados “heróis” (Pedro Álvares Cabral; Princesa Isabel; D.
Pedro II etc.), como se o povo nunca tivesse participado da História do Brasil. Essas
concepções integram um tipo de historiograia que perpassa desde os primeiros
autores que resgatam a história do Brasil, até por volta da década de 1950, cons-
tituindo-se assim nossa “história oicial”. Tal historiograia é muito difundida in- Pedro Álvares Cabral.
luenciando uma dada leitura de nossa realidade que se popularizou por meio
dos livros didáticos. Na obra “O saber histórico em sala de aula” Circe Bittencourt discute as concepções
e caracterização do livro didático, instrumento que muito corroborou para a ratiicação da presença
dos “heróis” na história brasileira. Bittencourt airma que o livro didático propaga um “sistema de valo-
res”, “de uma ideologia”, “de uma cultura”.2 Foi comprovado por intermédio de pesquisas que por muito
tempo os livros didáticos transmitiram: “estereótipos e valores dos grupos dominantes” (BITTENCOURT,
2002). A história factual é herança deste “nacionalismo oicial” em que o Estado executa, desde o início,
uma política consciente de proteção dos seus interesses. Desta maneira, os líderes nacionalistas, muitas
vezes, são os que projetam sistemas civis, militares, culturais e educacionais em nome da nação.
Há vários sentidos para a palavra ideologia. Em sentido amplo ideologia é uma ciência da forma-
ção das ideias; tratado das ideias em abstrato; sistema de ideias. Um conjunto articulado de ideias, valores,
opiniões, crenças etc., que expressam e reforçam as relações que conferem unidade a determinado gru-
po social (classe, partido político, seita religiosa etc.) seja qual for o grau de consciência que disso tenham
seus portadores. Sistema de ideias dogmaticamente organizado como um instrumento de luta política.
Conjunto de ideias próprias de um grupo, de uma época, e que traduzem uma situação histórica.
Etimologicamente ideologia vem do grego [idéa] que quer dizer aparência, princípio, ideia, ideograma.
Segundo Marilena Chaui, a ideologia tem como função camular as diferenças entre as classes so-
ciais e proporcionar aos integrantes da sociedade o sentimento da identidade social que propõe uma
unidade, por padronizar interesses particulares que são anunciados como objetivos comuns da nação:

2 “Assim, o papel do livro didático na vida escolar pode ser o de instrumento de reprodução de ideologias e do saber oicial imposto por deter-
minados setores do poder e pelo Estado [...]” (BITTENCOURT, 2002, p. 73)

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52 | Conquista do Brasil: historiograia e educação

A ideologia é um conjunto lógico, sistemático e coerente de representações (ideias e valores) e de normas ou regras
(de conduta) que indicam e prescrevem aos membros da sociedade o que devem pensar e como devem pensar, o que
devem valorizar e como devem valorizar, o que devem sentir e como devem sentir, o que devem fazer e como devem
fazer. Ela é, portanto, um corpo explicativo (representações) e prático (normas, regras, preceitos) de caráter prescriti-
vo, normativo, regulador, cuja função é dar aos membros de uma sociedade dividida em classes uma explicação racio-
nal para as diferenças sociais, políticas e culturais, sem jamais atribuir tais diferenças à divisão da sociedade em classes,
a partir das divisões na esfera da produção [...] encontrando certos referenciais identiicadores de todos e para todos,
como por exemplo, a Humanidade, a Liberdade, a Igualdade, a Nação, ou o Estado. (CHAUI, 1980, p. 113)

O educador e o ensino crítico


Atualmente fala-se muito sobre a educação calcada na crítica, no ensino não propedêutico3 e tra-
dicional, mas no ensino humanista e voltado para o lúdico, a motivação, construção e criatividade. O
educador busca conhecer a proposta pedagógica que a escola onde leciona segue, no entanto, ele mes-
mo [educador] não sabe bem ao certo quais são os objetivos da disciplina que ministra e qual tipo de
formação é melhor para os seus alunos.
O educador luta para não reproduzir o discurso excludente e preconceituoso que a cultura de massa
veicula e se frustra ao perceber que muitas vezes os meios de comunicação são muito mais atraentes que suas
aulas, ele sabe que toda essa criação da mídia serve para iludir e não alimentar a sabedoria do seu aluno.
O educador da área de História, por exemplo, sofre com o conteúdo extenso e com os rótulos dados
por algumas pessoas que pensam que a disciplina de História serve apenas para ensinar datas comemora-
tivas e ressaltar nomes de militares, estrategistas, políticos etc., ou seja, a história feita por heróis. Legado
de uma historiograia que privilegiou os grupos dominantes e minoritários de uma determinada época e
excluiu os agentes transformadores (camponeses, indígenas, escravos, mulheres etc.). O papel do educa-
dor em sala de aula é, portanto, desmistiicar a ideia de que existem heróis que lutam sempre pela maio-
ria e que os ditos indivíduos comuns não têm capacidade de transformação por possuírem uma natureza
passiva e condicionada. Portanto, o historiador precisa esclarecer aos seus alunos que eles também são
agentes da história e que eles podem transformar a realidade em que vivem. Entretanto, houve uma inver-
são de valores na educação quando o Brasil na década de 1960 adotou os padrões mecanicistas dos EUA,
ou seja, a fragmentação do conhecimento, a análise hermeneuta e supericial do mundo e a negação da
análise imanente das fontes utilizadas pelos educadores em sala de aula.
A educação fracassara por ser culpada de um estupendo erro categórico, segundo John Dewey4:
ela confundia os produtos inais prontos e reinados da investigação com o tema bruto e não polido da
mesma e tentava fazer com que os alunos aprendessem as soluções ao invés de investigarem os proble-
mas e envolverem-se nos questionamentos por si mesmos. Do mesmo modo que os cientistas empre-
gam o método cientíico para a exploração de situações problemáticas, assim deveriam fazer os alunos,

3 Ensino fragmentado voltado apenas para o vestibular.


4 John Dewey graduou-se pela Universidade do Vermont em 1879 e exerceu as funções de professor do secundário durante dois anos, tem-
po em que desenvolveu um profundo intersse por Filosoia. Em Setembro de 1882 deixou o ensino e retornou à universidade para estudar
Filosoia, na Universidade Johns Hopkins, onde obteve o doutoramento. Dewey exerceu a função de professor de Filosoia na Universidade de
Michigan, onde ensinou a partir de Setembro de 1884. Três anos mais tarde (1887), publicava o seu primeiro livro, Psychology, onde propunha
um sistema ilosóico que conjugava a estudo cientíico da psicologia com a ilosoia idealista alemã. Para ele o indivíduo somente passa a ser
um conceito signiicante quando considerado parte inerente de sua sociedade – enquanto esta nenhum signiicado possui, se for considerada
à parte, longe da participação de seus membros individuais. Retirado de: http://pt.wikipedia.org/wiki/John_Dewey. Acesso em: 30 jan 2008.

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caso quisessem aprender a pensar sozinhos. Ao contrário disso, pedimos a eles que estudassem os re-
sultados inais daquilo que os cientistas descobriram; desprezamos o processo e ixamos nossa atenção
sobre o produto. Quando os problemas não são explorados em primeiro lugar, nenhum interesse ou
motivação é criado, e aquilo que continuamos chamando de educação é uma charada e um simulacro.
Dewey não tinha a menor dúvida de que o que deveria acontecer dentro da sala de aula é que se pen-
sasse – um pensamento independente, imaginativo e rico. O caminho por ele proposto – e nesse ponto
alguns de seus seguidores o abandonaram – é o que processo educativo na sala de aula deveria tomar
como modelo o processo da investigação cientíica.
Portanto, é necessário que ocorra a construção de conhecimento e não a reprodução do mesmo.
O educador que quer formar pessoas críticas precisa fazer a análise ontológica dos conceitos com os
seus educandos e trabalhar com atividades lúdicas que propiciam o educando a criar e saber lidar com
a sua sensibilidade. Estas atividades são: dramatizações, música, literatura, viagens imaginárias, danças,
jogos etc. Além disso, o educador precisa trabalhar com a pesquisa em sala de aula para que o educan-
do possa construir o seu próprio conhecimento. A ausência da pesquisa em sala de aula é muito grave,
pois não possibilita ao educando fazer a sua própria análise de um determinado objeto de estudo e, as-
sim sendo, somente reproduz aquilo que o educador disse em sala de aula. O educando, desta forma,
não é formado para ser um indivíduo crítico. É a ideia de Louis Alhusser que infelizmente ainda impera
na mente de muitos educadores, ou seja, a impossibilidade de transformação por intermédio dos con-
ceitos trabalhados em sala de aula já que os educadores são “obrigados” a propagar o discurso de uma
classe minoritária e dominante. O preocupante é que muitos educadores tornam os seus educandos em
indivíduos passivos e negam que eles são agentes transformadores.

Texto complementar
A verdadeira dívida externa. Fala do cacique Guaicaipuro Cautémoc numa
reunião com chefes de Estado da Comunidade Europeia
(MÍDIA INDEPENDENTE, 2008)
Eu, Guaicaipuro Cautémoc, descendente dos que povoaram a américa há 40 mil anos, vim aqui
encontrar os que nos encontraram há apenas 500 anos.
O irmão advogado europeu me explica que aqui toda dívida deve ser paga, ainda que para isso
se tenha que vender seres humanos ou países inteiros.
Pois bem! Eu também tenho dívidas a cobrar. Consta no arquivo das Índias Ocidentais que en-
tre os anos de 1503 e 1660, chegaram à Europa 185 mil quilos de ouro e 16 milhões de quilos de pra-
ta vindos da minha terra!...
Espoliação?... Seria o mesmo que dizer que o capitalismo deslanchou graças à inundação da
Europa pelos metais preciosos arrancados de minha terra!

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54 | Conquista do Brasil: historiograia e educação

Vamos considerar que esse ouro e essa prata foram o primeiro de muitos empréstimos amigá-
veis que izemos à Europa.
Preiro crer que nós, índios, izemos um empréstimo a vocês, europeus.
Ao comemorar o quinto centenário desse empréstimo, nos perguntamos se vocês usaram ra-
cional e responsavelmente os fundos que lhes adiantamos.
Lamentamos dizer que não.
Vocês dilapidaram esse dinheiro em armadas invencíveis, terceiros reichs e outras formas de ex-
termínio mútuo. E acabaram ocupados pelas tropas da OTAN.
Vocês foram incapazes de acabar com o capital e deixar de depender das matérias primas e da
energia barata que arrancam do terceiro mundo.
Por isso, meus senhores da Europa, eu, Guaicaipuro Cautémoc, me sinto obrigado a cobrar o
empréstimo que tão generosamente lhes concedemos há 500 anos. E os juros.
Queremos apenas a devolução dos metais preciosos, mais 10 por cento sobre 500 anos. Lamen-
to dizer, mas a dívida europeia para conosco, índios, pesa mais que o planeta terra!... E vejam que cal-
culamos isso em ouro e prata. Não consideramos o sangue derramado de nossos ancestrais!
Sei que vocês não têm esse dinheiro, porque não souberam gerar riquezas com nosso genero-
so empréstimo!
Mas há sempre uma saída: entreguem-nos a Europa inteira, como primeira prestação de sua
dívida histórica!

(Disponível em: <www.midiaindependente.org/pt/blue/2005/03/311319.shtml> Acesso em: 6 dez. 2008.)

Atividades
1. O conlito entre indígenas e portugueses se deu em vários campos. Os principais são: biótico, eco-
lógico e econômico social. Explique cada um deles.

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Conquista do Brasil: historiograia e educação | 55

2. Quais foram as medida tomadas pela Coroa Portuguesa para a proteção da “nova terra”?

3. Na sua opinião o livro didático pode distorcer muitos fatos da História do Brasil, principalmente
do Brasil Colônia?

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56 | Conquista do Brasil: historiograia e educação

Gabarito
1. Orientação: no campo biótico os portugueses trouxeram consigo várias patologias que eram
desconhecidas pelos indígenas como o sarampo, escorbuto, gripe, varíola etc. Essas doenças
causaram grandes epidemias e chegaram a devastar tribos inteiras. A inserção do açúcar, trazi-
da pelos europeus e consumida pelos indígenas, fez com que os indígenas tivessem cárie e mor-
ressem por causa disso. No campo ecológico, os portugueses devastaram lorestas inteiras para
extrair o pau-brasil (madeira de coloração avermelhada que era utilizada para tingir roupas na
Europa e para construir naus).

2. Orientação: os primeiros “soldados” chegaram ao Brasil com o governador-geral Tomé de Souza


em 1548 com o intuito de controlar os domínios da Coroa Portuguesa. Desta forma, o regimento
de 1548 estipulava o recrutamento entre os moradores que auxiliariam os soldados. Outra inicia-
tiva tomada pela Coroa Portuguesa foi armar a população das colônias. O “alvará das armas” de
1569 tornava obrigatória a posse de armas pelos homens livres. Na tentativa de organizar esses
homens que auxiliavam os soldados, foi criado pela Coroa o Regimento Geral das Ordenanças de
1570. O serviço das ordenanças organizava a população segundo o corte social existente.

3. Orientação: sim, pois os livros didáticos por muito tempo expressaram os valores da classe domi-
nante e a função principal era destruir a ideia de que todos fazem a história e sim apenas alguns
privilegiados que pertenciam às elites de um determinado momento histórico.

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O enfrentamento
dos mundos
A chegada do europeu na “Ilha Brasil”
Para os indígenas a chegada do europeu foi algo extremamente danoso. Havia uma curiosida-
de muito grande em torno de quem eram aqueles homens que vieram do mar. Será que eram deuses?
Eram pacíicos ou ferozes? Eram amigos ou inimigos?
Na concepção mítica dos indígenas os europeus podiam ser enviados do deus Sol – Maíra. Assim
provavelmente, eram pessoas generosas. Isto porque, na cultura indígena tudo era de todos, não havia
na tribo quem mandava ou explorava seus semelhantes.
O indígena não obedecia ordens. Inclusive para o índio seria muito estranho, até mesmo engra-
çado, alguém lhe dizer o que deve fazer e como fazer.
Na tribo indígena todos desempenham uma função e todos elas são importantes. Há o respeito
mútuo e eles se reconhecem como indivíduos onto-societários, ou seja, seres coletivos que não vivem
apenas para sanarem as suas vicissitudes, e sim para atender as necessidades do grupo (ausência do in-
dividualismo exacerbado).
O indígena parece pertencer a dimensões diferentes concomitantemente, ou seja, o mundo es-
piritual e físico.
Para o indígena as coisas materiais estão concatenadas à esfera espiritual. É como se fosse uma
extensão desta última.
Sabe-se que o mito e as crenças são formas fantásticas de explicação da realidade, isto posto,
podemos entender a crença dos indígenas em espíritos da natureza. Os indígenas interagem a todo
momento com a natureza e perscrutam os seus mistérios. Por este motivo, acreditam que no mundo na-
tural há uma força mágica e invisível que rege com perfeição e harmonia tudo o que existe.
Podemos observar que a mitologia indígena é composta pelo deus Sol, espírito das águas, espí-
rito das lorestas, espírito dos animais etc. O mais interessante nisso tudo é que há uma interação dire-
ta entre o indígena e essas forças.
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58 | O enfrentamento dos mundos

O cacique, o homem mais velho da tribo, é considerado sábio e, por este motivo, representa uma
espécie de energúmeno1 que recebe os ensinamentos dos espíritos. Ele empresta o seu corpo para que
esses espíritos o utilizem para a cura, conselhos e rituais.
É relevante dizer que o cacique é bastante respeitado, no entanto, não é o líder maior da tribo que man-
da em tudo e em todos ou que explora seus semelhantes. Ele tem a sua função como sábio e conselheiro.
Quando havia alguma cizânia entre membros da tribo, o cacique tentava apaziguar a situação por
intermédio de seus conselhos e assim resolver o prélio. Entretanto, muitas vezes, os indígenas ignora-
vam as palavras do velho conselheiro e resolviam as suas querelas sozinhos.
Portanto, podemos perceber que não há alguém que manda ou que seja mais importante em uma tri-
bo indígena e sim uma verdadeira comunidade onde todos desempenham sua função em favor do grupo.
A maioria das pessoas lembra das antigas cartilhas e livros escolares que mostravam o europeu
como um herói e o indígena como selvagem. As ilustrações dos livros didáticos mostram os europeus
muito bem vestidos, bonitos e limpos descendo de suas naus e os indígenas nus, confusos como crian-
ças assustadas assistindo a cena. A história dominante omitiu por muito tempo fatos importantes e re-
ais que iremos discutir agora.
A viagem em naus de Portugal ao Brasil demorava muitos meses e os alimentos eram escassos,
desta forma, não havia comida nem água para todos. Os banhos eram raros, posto que, o costume de
tomar banho diariamente herdamos dos indígenas e não dos europeus. Dentro das naus não havia um
local especíico para a higiene pessoal e nem para as necessidades isiológicas. Assim, os portugueses
deviam jogar no mar as fezes e urina.
Por causa da alimentação precária e da falta de higiene muitos homens adoeciam antes de che-
gar na “Ilha Brasil”. A principal doença era o escorbuto que tem como primeiros sintomas hemorragias
nas gengivas, inchaço, dores nas articulações, feridas que não cicatrizam e pouca segurança na ixação
dos dentes. É provocada por carências graves de vitamina C na dieta. Essa doença, muitas vezes, obriga-
va os companheiros do enfermo cortar-lhe a língua para minorar o sofrimento que ele passava.
Você, caro leitor, pode imaginar como esses homens desceram de suas naus aqui na “Ilha Brasil”?
Será que as ilustrações mostram a verdade? Vejamos uma ilustração muito utilizada em livros didáticos:

Oscar Pereira da Silva. Desembarque de Cabral em Porto Seguro. Museu Paulista, SP.

1 Energúmeno: palavra que signiica fanático, possesso.

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O enfrentamento dos mundos | 59

Agora sabemos que essa representação não revela plenamente a realidade, pois de acordo com
as situações vividas pelos portugueses durante a longa viagem, seria impossível que eles se apresentas-
sem da forma que a ilustração mostra.
Os portugueses desceram de suas naus sujos, fétidos, pois não faziam a higiene básica pessoal;
doentes, magros, com barbas longas e, por causa do escorbuto, muitas vezes com as línguas cortadas,
a gengiva sangrando e sem dentes. Agora temos um cenário em nossa mente digno de que qualquer
ilme de terror.
Não é à toa que os indígenas temeram esse aspecto animalesco dos portugueses assim que os vi-
ram. Por outro lado, os portugueses assim que avistaram os indígenas icaram deslumbrados com a be-
leza dos corpos dos mesmos.
Agora, caro leitor, se você soubesse dessa verdade e sua professora do ensino fundamental pe-
disse para você representar a chegada dos portugueses ao Brasil quem você gostaria de ser: o indíge-
na ou o português?

Fontes oiciais
Ao estudarmos a história temos que analisar minuciosamente as fontes deixadas e perscrutarmos
o que foi dito e o que está nas entrelinhas. Quando trabalhamos com documentos oiciais a interpreta-
ção precisa ser ainda mais cuidadosa
A análise de fontes oiciais foi considerada pela historiograia, durante um longo período, prati-
camente a única fonte válida para o historiador. Criticada profundamente a partir da década de 1980
pelo papel que a análise destas fontes cumpria (o de resgatar a realidade social apenas do ponto de
vista dos protagonistas que ditavam as normas e as regras advindas do Estado/governo, não dando vi-
sibilidade aos sujeitos comuns), esta documentação passa a ser menos visitada pelos historiadores que
buscam novos temas, novas abordagens.2
Por outro lado, a historiograia que resgata a história do Brasil tem sido escrita por grupos domi-
nantes e neste sentido precisa ser lida com muita criticidade, posto que é extremamente tendenciosa.
Essas fontes são “encharcadas” de patriotismo e feitos heroicos e, obviamente, têm características extre-
mamente positivistas3 (dados, nomes, inexistência de uma narração processual – história linear etc.).

2 “Inúmeros textos tratam destas questões, possibilitando, inclusive, uma nova distinção entre a historiograia francesa e a inglesa. Enquanto
na historiograia francesa é mais comum encontrarmos abordagens cujos fundamentos se encontram na antropologia, a historiograia inglesa,
representada aqui por E.P. Thompson, resgata a experiência enquanto construção da história e, neste sentido, aproxima-se de Marx, para o qual
são as ações dos indivíduo que constroem a história.” LE GOFF, Jacques, História e Memória, São Paulo: Ed. UNICAMP, 1990
3 Pode-se qualiicar como traços do ‘espírito positivo’: o apego ao documento (‘pas de document, pas d’histoire’), o esforço obsessivo em
separar o falso do verdadeiro; o medo de se enganar sobre as fontes; a dúvida metódica, que muitas vezes se torna sistemática e impede a
interpretação; o culto do fato histórico, que é dado, ’bruto’, nos documentos. (REIS, 1996)

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60 | O enfrentamento dos mundos

A chegada do portugueses no Brasil foi analisada pelos historiadores por meio da carta de Pero
Vaz de Caminha.4 Se lermos a carta sem fazer uma análise imanente/crítica, podemos ratiicar precon-
ceitos como: os portugueses trouxeram a civilização para os indígenas; os indígenas eram ingênuos
e não sabiam apreciar as coisas boas que os portugueses deram a eles como vinho e pão etc. Assim
seria feita uma interpretação supericial e errônea que conirmaria o etnocentrismo, ou melhor, o eu-
rocentrismo (supervalorização da cultura europeia em detrimento das outras culturas, neste caso, a
cultura indígena).
Vamos analisar partes da carta de Pero Vaz de Caminha:

A Carta, de Pero Vaz de Caminha5


Senhor,
posto que o Capitão-mor desta Vossa frota, e assim os outros capitães escre-
vam a Vossa Alteza a notícia do achamento desta Vossa terra nova, que se ago-
ra nesta navegação achou, não deixarei de também dar disso minha conta a
Vossa Alteza, assim como eu melhor puder, ainda que – para o bem contar e
falar – o saiba pior que todos fazer! [...]
E assim seguimos nosso caminho, por este mar de longo, até que terça-feira
das Oitavas de Páscoa, que foram 21 dias de abril, topamos alguns sinais de
terra, estando da dita Ilha – segundo os pilotos diziam, obra de 660 ou 670
léguas – os quais eram muita quantidade de ervas compridas, a que os ma-
reantes chamam botelho, e assim mesmo outras a que dão o nome de rabo-
-de-asno. E quarta-feira seguinte, pela manhã, topamos aves a que chamam
furabuchos.
Neste mesmo dia, a horas de véspera, houvemos vista de terra! A saber, primei-
ramente de um grande monte, muito alto e redondo; e de outras serras mais
baixas ao sul dele; e de terra chã, com grandes arvoredos; ao qual monte alto o
capitão pôs o nome de O Monte Pascoal e à terra A Terra de Vera Cruz! [...] Carta de Pero Vaz de Caminha.
E dali avistamos homens que andavam pela praia, uns sete ou oito, segundo disseram os navios pequenos que chega-
ram primeiro.
Então lançamos fora os batéis e esquifes. E logo vieram todos os capitães das naus a esta nau do Capitão-mor. E ali fala-
ram. E o Capitão mandou em terra a Nicolau Coelho para ver aquele rio. E tanto que ele começou a ir-se para lá, acudi-
ram pela praia homens aos dois e aos três, de maneira que, quando o batel chegou à boca do rio, já lá estavam dezoito
ou vinte.
Pardos, nus, sem coisa alguma que lhes cobrisse suas vergonhas. Traziam arcos nas mãos, e suas setas. Vinham todos rija-
mente em direção ao batel. E Nicolau Coelho lhes fez sinal que pousassem os arcos. E eles os depuseram. Mas não pôde

4 Pouco se sabe sobre a vida de Pero Vaz de Caminha. Sabe-se ao certo que ele era ilho de Vasco Fernandes de Caminha, cavaleiro do duque
de Bragança e que provavelmente ele nasceu na cidade do Porto. Casou-se com dona Catarina e dessa união nasceu a ilha Isabel. Em 1476
substitui o pai na função de mestre da balança da Casa da Moeda. Logo depois dedicou-se ao comércio e, em seguida, é designado escrivão
da feitoria de Calicute, na Índia, de onde segue com Cabral, em 1500, a caminho do Brasil. Nessa viagem escreve a carta de nascimento do
Brasil ao rei Dom Manuel, datada de 1° de maio de 1500. Essa carta, considerada o mais importante documento relativo ao descobrimento do
Brasil, icou guardada nos arquivos da Torre do Tombo por mais de três séculos, sendo divulgada pela primeira vez em 1817, no livro Corograia
Brasileira, escrito pelo padre Aires do Casal. Ainda em 1500, Caminha segue com Cabral para a Índia e morre, no dia 15/12/1500, durante um
assalto dos mouros à feitoria de Calicute. (http://www.mundocultural.com.br/index.asp? Acesso em: 24 dez. 2007)
5 Edição de base: Carta a El Rei D. Manuel, Dominus, São Paulo, 1963.

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O enfrentamento dos mundos | 61

deles haver fala nem entendimento que aproveitasse, por o mar quebrar na costa. Somente arremessou-lhe um barrete
vermelho e uma carapuça de linho que levava na cabeça, e um sombreiro preto. E um deles lhe arremessou um sombrei-
ro de penas de ave, compridas, com uma copazinha de penas vermelhas e pardas, como de papagaio. E outro lhe deu um
ramal grande de continhas brancas, miúdas que querem parecer de aljôfar, as quais peças creio que o Capitão manda a
Vossa Alteza. E com isto se volveu às naus por ser tarde e não poder haver deles mais fala, por causa do mar. [...]
A feição deles é serem pardos, um tanto avermelhados, de bons rostos e bons narizes, bem feitos. Andam nus, sem
cobertura alguma. Nem fazem mais caso de encobrir ou deixar de encobrir suas vergonhas do que de mostrar a cara.
Acerca disso são de grande inocência. Ambos traziam o beiço de baixo furado e metido nele um osso verdadeiro, de
comprimento de uma mão travessa, e da grossura de um fuso de algodão, agudo na ponta como um furador. Metem-
-nos pela parte de dentro do beiço; e a parte que lhes ica entre o beiço e os dentes é feita a modo de roque de xadrez.
E trazem-no ali encaixado de sorte que não os magoa, nem lhes põe estorvo no falar, nem no comer e beber.
Os cabelos deles são corredios. E andavam tosquiados, de tosquia alta antes do que sobre-pente, de boa grandeza, ra-
pados todavia por cima das orelhas. E um deles trazia por baixo da solapa, de fonte a fonte, na parte detrás, uma espécie
de cabeleira, de penas de ave amarela, que seria do comprimento de um coto, mui basta e mui cerrada, que lhe cobria
o toutiço e as orelhas. E andava pegada aos cabelos, pena por pena, com uma confeição branda como, de maneira tal
que a cabeleira era mui redonda e mui basta, e mui igual, e não fazia míngua mais lavagem para a levantar.
O Capitão, quando eles vieram, estava sentado em uma cadeira, aos pés uma alcatifa por estrado; e bem vestido, com
um colar de ouro, mui grande, ao pescoço. E Sancho de Tovar, e Simão de Miranda, e Nicolau Coelho, e Aires Corrêa, e
nós outros que aqui na nau com ele íamos, sentados no chão, nessa alcatifa. Acenderam-se tochas. E eles entraram. Mas
nem sinal de cortesia izeram, nem de falar ao Capitão; nem a alguém. Todavia um deles itou o colar do Capitão, e co-
meçou a fazer acenos com a mão em direção à terra, e depois para o colar, como se quisesse dizer-nos que havia ouro
na terra. E também olhou para um castiçal de prata e assim mesmo acenava para a terra e novamente para o castiçal,
como se lá também houvesse prata!
Mostraram-lhes um papagaio pardo que o Capitão traz consigo; tomaram-no logo na mão e acenaram para a terra,
como se os houvesse ali.
Mostraram-lhes um carneiro; não izeram caso dele.
Mostraram-lhes uma galinha; quase tiveram medo dela, e não lhe queriam pôr a mão. Depois lhe pegaram, mas como
espantados.
Deram-lhes ali de comer: pão e peixe cozido, confeitos, fartéis, mel, igos passados. Não quiseram comer daquilo quase
nada; e se provavam alguma coisa, logo a lançavam fora.
Trouxeram-lhes vinho em uma taça; mal lhe puseram a boca; não gostaram dele nada, nem quiseram mais.
Trouxeram-lhes água em uma albarrada, provaram cada um o seu bochecho, mas não beberam; apenas lavaram as bo-
cas e lançaram-na fora.
Viu um deles umas contas de rosário, brancas; fez sinal que lhas dessem, e folgou muito com elas, e lançou-as ao pes-
coço; e depois tirou-as e meteu-as em volta do braço, e acenava para a terra e novamente para as contas e para o colar
do Capitão, como se dariam ouro por aquilo.
Beijo as mãos de Vossa Alteza.
Deste Porto Seguro, da Vossa Ilha de Vera Cruz, hoje, sexta-feira, primeiro dia de maio de 1500.
Pero Vaz de Caminha.

Se analisarmos criticamente esse pequeno trecho da carta de Pero Vaz de Caminha poderemos
perceber que a preocupação máxima dos portugueses era encontrar ouro na “nova terra”.
Os indígenas são retratados na carta como seres que não têm vergonha e desconhecem as nor-
mas de cortesia. É muito interessante quando Pero Vaz de Caminha diz que os indígenas mostraram-
-lhes um papagaio pardo que o Capitão trazia consigo; e tomaram-no logo na mão e acenaram para a
terra, como se os houvesse ali. Ora, se não izermos uma análise imanente desta fala não iremos com-
preender o porquê do papagaio. Segundo a crença europeia a existência de papagaios em algum lugar

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62 | O enfrentamento dos mundos

conirmava que ali tinha ouro, e é por este motivo que Caminha faz questão de falar dos papagaios em
várias partes da carta.
Outra parte intrigante da carta é que os indígenas não aceitaram os alimentos que os portugue-
ses lhes ofereceram:
Deram-lhes ali de comer: pão e peixe cozido, confeitos, fartéis, mel, igos passados. Não quiseram comer daquilo quase
nada; e se provavam alguma coisa, logo a lançavam fora.
Trouxeram-lhes vinho em uma taça; mal lhe puseram a boca; não gostaram dele nada, nem quiseram mais.
Trouxeram-lhes água em uma albarrada, provaram cada um o seu bochecho, mas não beberam; apenas lavaram as bo-
cas e lançaram-na fora. (PERO VAZ DE CAMINHA)

Muitas pessoas quando leem esta parte da carta acham realmente que os indígenas não sabiam
apreciar as coisas boas. No entanto, hoje sabe-se que os indígenas cuspiram esses alimentos, porque es-
tavam estragados, posto que, estavam muitos meses dentro das naus e não puderam ser conservados.
Nesta aula discutimos o choque cultural entre portugueses e indígenas assim que os portugueses
chegaram ao Brasil. Certamente que a chegada dos portugueses ao Brasil foi para o indígena algo ter-
rível, pois tribos inteiras foram devastadas, podemos airmar sem dúvida nenhuma que a conquista do
Brasil simboliza um verdadeiro genocídio dos povos que já viviam na “Ilha Brasil”.

Texto complementar
O preconceito secreto
(LOPES, 2008)
Faz parte das culturas humanas a existência de pré-noções que iltram o olhar das pessoas. Isto
permite chamar as coisas pelos nomes que as sociedades convencionaram como os adequados. Ver
objetos e situações suscita igualmente a formação de ideias. Estas juntam o que se vê ao que antes
havia consolidado na mente humana no que se refere ao que se está contemplando. Estes elementos
formam a consciência, no que tange às suas relações com o mundo externo.
Em algumas situações, as pré-noções transformam-se em preconceitos, no sentido do turva-
mento negativo da compreensão do que está se observando. Quando isto ocorre, a visão das pesso-
as não considera as características do que é visto como o mais signiicativo.
Ao contrário, a percepção prévia, isto é, o preconceito é o que manda, pouco importando o
que está na frente do observador. Alguns indícios presumíveis, a partir da óptica do preconceito,
são suicientes para que se teça toda uma explicação. A cor de uma pessoa, por exemplo, pode in-
dicar sua culpabilidade a priori. Os objetos e situações observadas servem, apenas, como estímu-
lo para reforçar as ideias acreditadas previamente. Nem toda a pré-noção é um preconceito, apesar
da origem similar destas expressões idiomáticas relativas ao modo como os seres humanos veem o

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O enfrentamento dos mundos | 63

mundo e a si próprios. A maior parte das primeiras são construções desenvolvidas em todas as cul-
turas, aperfeiçoadas e repassadas de geração em geração. Há quem chame isto de protótipos de
percepção, que equivaleria a um complexo mecanismo cognitivo que permite reconhecer objetos
e situações e desenvolver, a partir disto, os comportamentos que seriam mais adequados. São pre-
conceitos, quando ocorre o turvamento citado. Quando se vê um carro em corrida desabalada e se é
urbano, treinado para o perigo do trânsito, procura-se, quase instintivamente, alguma proteção. Os
protótipos de percepção indicam como agir em várias situações, bem como em inúmeras interfaces
dos indivíduos com a vida social. Desde criança, aprende-se a conviver com a vida dos homens e a
natureza, de acordo com as pré-noções adquiridas, que estão sempre em processo de mutação. Elas
podem ser ou não preconceituosas. Os preconceitos implicam a negação do real observado ou a sua
substituição por uma imagem distorcida. Por isto, eles estão no campo das ideologias que permeiam
as culturas. As culturas têm fortes elementos ideológicos, por mais que não possam ser integral-
mente confundidas com as ideologias políticas, religiosas e sociais em vigor. Os preconceitos têm,
por isso, esta dupla origem: estão vinculados às visões de mundo compartilhadas contextualmen-
te e, ao mesmo tempo, provêm do lastro histórico-cultural de cada sociedade. As culturas humanas
abrangem as pré-noções acumuladas imemorialmente sobre qualquer atividade e concepção hu-
mana, incluindo, portanto, os saberes e fazeres de todos os povos e suas interconexões civilizatórias.
Fazem parte das mesmas, os preconceitos de época. Estes são tipos de pré-noções singulares que
podem ser vivas ou letárgicas [...]

Atividades
1. Explique o choque cultural entre indígenas e europeus.

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64 | O enfrentamento dos mundos

2. Por que os livros didáticos precisam ser analisados de uma forma crítica, principalmente, quando
usam ilustrações que mostram os portugueses como heróis descendo de suas naus e os indíge-
nas como selvagens?

3. Faça uma análise crítica do trecho a seguir da carta de Pero Vaz de Caminha:

[...] Pardos, nus, sem coisa alguma que lhes cobrisse suas vergonhas. Traziam arcos nas mãos, e
suas setas. Vinham todos rijamente em direção ao batel. E Nicolau Coelho lhes fez sinal que pou-
sassem os arcos. E eles os depuseram. Mas não pôde deles haver fala nem entendimento que
aproveitasse, por o mar quebrar na costa. Somente arremessou-lhe um barrete vermelho e uma
carapuça de linho que levava na cabeça, e um sombreiro preto. E um deles lhe arremessou um
sombreiro de penas de ave, compridas, com uma copazinha de penas vermelhas e pardas, como
de papagaio. E outro lhe deu um ramal grande de continhas brancas, miúdas que querem parecer
de aljôfar, as quais peças creio que o Capitão manda a Vossa Alteza. E com isto se volveu às naus
por ser tarde e não poder haver deles mais fala, por causa do mar [...]

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O enfrentamento dos mundos | 65

Gabarito
1. Orientação: o aluno deverá explicar especiicidades, qual era a visão que os europeus tiveram dos
indígenas e vice-versa.

2. Orientação: o aluno deverá contextualizar essa representação com a realidade da conquista do


Brasil que foi discutida nesta aula.

3. Orientação: o aluno deverá interpretar esse trecho e contextualizá-lo. Mostrar o preconceito que
existe nas palavras de Caminha concernente aos indígenas.

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Composição étnica do Brasil
Os brasilíndios
Uma das características mais difundidas e evidentes do Brasil é sua pluralidade étnica. Contudo
esta particularidade que identiica o povo brasileiro não era fator de concordância no período de ocu-
pação e expansão do domínio português no território brasileiro, até porque a formação de um povo
brasileiro se deveu à fusão paulatina dos elementos culturais do branco europeu, dos povos nativos do
Brasil e dos povos africanos.
Um gênero humano muito importante na constituição do Brasil é obra dos brasilíndios ou mame-
lucos – denominação de Darcy Ribeiro para caracterizar os ilhos gerados por pais brancos, de maioria
portuguesa, com mulheres índias – que expandiram o domínio português na América.
A miscigenação se difundiu mais na região que compreende São Paulo, devido à carência de re-
cursos materiais. São Paulo se constituía de uma pequena vila alçada no planalto, e isso motivou os por-
tugueses à buscar alternativas econômicas como o apresamento de índios, que estreitou o contato com
os povos nativos.
Os portugueses buscavam no interior, adentrando nas matas a “mercadoria” que estava ao seu
alcance, os índios, para seu próprio uso e para venda, eram um enorme contingente nativo, que deve-
riam suprir as necessidades dos colonizadores, e que eram renovados em pouco tempo, pois o trabalho
forçado limitava a vida útil nas atividades que lhes eram designadas; índios que abriam roças, caçavam,
pescavam, cozinhavam, produziam todos os alimentos que necessitavam, além de carregar as peças de
carga nas incursões de captura de seus pares.
A miscigenação fez com que os ilhos desta nova relação geradora dos brasilíndios seguissem os
passos dos colonizadores, avançando para regiões mais longínquas em busca de tribos escravizáveis,
que se tornavam cada vez mais escassas nas proximidades costeiras. Para isso os portugueses contavam
com brasilíndios e índios cativos para organizar grupos imensos que se deslocavam a pé, descalços nas
bandeiras ou remando as canoas nas monções:
A expansão para oeste não encontrou resistência de outros poderes coloniais. A exploração do interior icou entregue a ban-
dos de portugueses armados, que iam para oeste capturar índios e procurar metais preciosos. Esses bandeirantes, cujas ex-
pedições partiam originalmente da região litorânea da atual cidade de São Paulo, foram os primeiros exploradores do Brasil
interior e tornaram-se heróis de muito folclore e mitiicação pela elite paulista do século XX. (SKIDMORE, 2000, p. 26)

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68 | Composição étnica do Brasil

Os bandeirantes sondavam o caminho, procurando aldeias indígenas ou missões de padres je-


suítas que utilizavam vastos suprimentos de mão de obra indígena para trabalhar nos ranchos por eles
dirigidos, os jesuítas ajudaram a subjugar os povos nativos e estabelecer a religião cristã, além de es-
tabelecerem uma forma padrão de linguagem tupi que inicialmente era mais falada do que o próprio
português.
Os brasilíndios foram chamados de mamelucos pelos jesuítas espanhóis que icavam horroriza-
dos com a brutalidade que eles – os mamelucos – investiam na captura e trato dos nativos, grupo o qual
tinham ligação, contudo negavam identiicação. Os jesuítas espanhóis izeram tal relação com a gêne-
se do termo, que se referia ao grupo de escravos que os árabes, no oriente, tomavam para que os ser-
vissem como criados obedientes:
Seriam janízaros, se prometessem fazer-se ágeis cavaleiros de guerra, ou xipaios, se covardes e servissem melhor para
policiais e espiões. Castrados, serviam como eunucos nos haréns, senão tivessem outro mérito. Mas podiam alcançar a
alta condição de mameluco se revelassem talento para o mando e a suserania islâmica sobre a gente de que foram ti-
rados. (RIBEIRO, 2000, p. 107)

Tal denominação demonstra também o ressentimento dos jesuítas espanhóis que tinham suas
missões no território espanhol assaltadas pelos bandeirantes paulistas, que utilizavam o conhecimento
milenar dos nativos associada à resistência dos brasilíndios.
Os brasilíndios ou mamelucos acabaram sofrendo duas rejeições. A dos pais com o qual queriam
se identiicar, mas eram vistos como impuros (quando do sexo masculino, aproveitavam-nos para o tra-
balho braçal, desprezado pelos europeus e, quando adultos eram integrados às bandeiras, em que mui-
tos deles conseguiam “prosperar”). Outra rejeição se dava pelo lado materno, pois pela cultura indígena
quem nasce era ilho do pai, icando a mãe incumbida de gerar a criança, deste modo o ilho era rejeita-
do, o mameluco se via numa terra de ninguém, diante deste mosaico estava se constituindo uma iden-
tidade nova e brasileira.
Utilizavam uma língua comum, o tupi, tinham sua própria visão de mundo, dominavam uma tec-
nologia apropriada a sua condição de vida rústica e adaptação à loresta tropical.
A expansão portuguesa somada às praticas econômicas que utilizavam os nativos como mão de
obra e até como “produto”, resultou em exploração e recursos e dos povos indígenas; a difusão do ban-
deirantismo associada a uma imagem heroica e desbravadora, sobrepondo-se às suas investidas preda-
tórias; contudo a construção de um elemento importante e novo para a compreensão da nossa própria
identidade, os brasilíndios.

Os afro-brasileiros
A verdadeira imigração ilegal
Francisco Adolfo Varnhagen (1816-1878) era amigo pessoal de D. Pedro II e escreveu a primeira
obra historiográica brasileira (1854), tormando-se, portanto, o fundador da história do Brasil com posi-
ções explícitas: sua obra História Geral do Brasil defendeu um Brasil português, pois, segundo Varnhagen,
os portugueses tiveram a missão divina de “civilizar” a nação brasileira o grande mal que ocorreu foi a

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presença negra. Além disso, exaltou a repressão das revoltas que ocorreram em território brasileiro e
idolatrou a igura de D. Pedro II.
Gilberto de Mello Freyre (1900-1987), autor de Casa Grande & Senzala, fez um reelogio à coloniza-
ção e justiicou a conquista e ocupação portuguesa do Brasil. Não lastimou a presença negra; os negros,
segundo ele, só vieram ao Brasil, pois, os indígenas eram preguiçosos e, diferente deles, os negros tra-
balhavam felizes. Para Freyre, no Brasil inexistia o racismo.1
A população de origem africana tem sua presença marcada no Brasil desde a primeira metade do
século XVI, já na década de 1530, os portugueses aperceberam que a população indígena não poderia
fornecer mão de obra suiciente para a coleta da madeira brasileira e o cultivo da cana-de-açúcar por
um período prolongado, eles se voltaram para a obtenção de escravos da África ocidental:
Os africanos que eram capturados e enviados ao Brasil colonial vinham de diversas regiões da África central e do sudo-
este. Essas regiões abrigavam amplas diferenças linguísticas e culturais, trazendo muitas diferentes tradições africanas.
Essas diferenças podem ainda ser percebidas, por exemplo, nas variações de práticas religiosas afro-brasileiras no Brasil
atual. No século XVII a fonte principal eram de Angola e o Congo; no século XVIII eram da Costa de Mina e a Enseada de
Benin. (SKIDMORE, 2000, p. 33)

Tendo em vista a diversidade linguística e cultural dos contingentes introduzidos no Brasil, os co-
lonizadores valiam-se das diferenças étnicas e em alguns casos da hostilidade originada na África, que
algumas tribos nutriam, para diicultar a formação de núcleos solidários entre os africanos, pois em um
primeiro momento as diferenças particulares os desagregavam, porém a condição de escravos e a mo-
tivação por liberdade pode identiicar e unir qualquer grupo humano, e assim foi.
Era comum a mistura entre diversos grupos africanos no momento do transporte por meio dos
navios negreiros ou tumbeiros, a im de diluir os grupos considerados “perigosos” ou mais resistentes. O
mesmo ocorria quando eram trazidos para as fazendas de cana no Brasil.
Apesar das circunstâncias tão adversas, foram logo assimilando a língua com a qual os capatazes
gritavam as ordens, utilizado esta ferramenta para comunicar-se entre si. Além de fator uniicador, acaba-
ram conseguindo difundir a língua portuguesa pelo Brasil, e como é de se esperar introduzindo elemen-
tos africanos que se somaram às incorporações indígenas de outrora. O aportuguesamento linguístico no
Brasil e a inluência cultural variada se concentraram nas áreas onde as populações africanas estavam mais
presentes, que foram o nordeste açucareiro e as zonas de mineração mais ao centro do Brasil.

Um negócio chamado escravidão


O tráico de escravos tornou-se uma indústria muito rentável, atividade que trazia imensos lucros
para a metrópole portuguesa, ao contrário do apresamento de índios que ocorria sem intermediação
de Portugal.
Os índios utilizados na área de cultivo de cana no Nordeste escasseavam-se conforme morriam de
doenças contagiosas e maus-tratos, os portugueses então capturavam novos índios para manter a pro-
dutividade, mas a captura de índios nas proximidades litorâneas tornava-se diicultosa, pois era neces-
sário que se adentrasse cada vez mais em direção ao interior em busca de novas tribos, além de terem
que entrar em contato com tribos arredias.

1 Gilberto Freyre sustentava a existência de uma democracia racial no Brasil; assim, pregava a inexistência do preconceito e das diferenças
étnicas.

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70 | Composição étnica do Brasil

Em 1580 os portugueses importavam mais de dois mil escravos africanos por ano para trabalhar
nas plantações de açúcar do Nordeste brasileiro, número crescente até 1850. Dados assustadores se pa-
rarmos para pensar que esta imigração acontecia de forma extremamente violenta desde a captura dos
integrantes de tribos africanas diversas, até sua chegada ao Brasil, condição que piorava com o trabalho
forçado somado a requintes de crueldade que eram vistos como disciplinadores. Essa era a lógica do es-
cravismo, que fora gerado por meio da violência, e que só conseguia se manter utilizando-se da vigilân-
cia intensiva e da punição ostensiva:
Apresado aos quinze anos em sua terra, como se fosse uma caça apanhada em uma armadilha, ele era arrastado pelo
pombeiro – mercador africano de escravos – para a praia onde seria resgatado em troca de tabaco, aguardente e bugi-
gangas. Dali partia em comboios, pescoço atado a pescoço com outros negros, numa corda puxada até o porto e o
tumbeiro.2 Metido no navio, era deitado no meio de cem outros para ocupar, por meios e meio, o exíguo espaço do seu
tamanho, mal comendo, mal cagando ali mesmo, no meio da fedentina mais hedionda. Escapando vivo à travessia,
caia no outro mercado, no lado de cá, onde era examinado como um cavalo magro. Avaliado pelos dentes, pela gros-
sura dos tornozelos e dos punhos era arrematado. (RIBEIRO, 2000, p. 119)

Os africanos assim como os índios resistiam à opressão

Eurípedes Júlio e Weslley Cruz.


de seus senhores de diversas maneiras. Utilizavam-se da sabo-
tagem, quebrando os equipamentos da produção, alguns in-
divíduos ao se verem longe de sua terra, sem família, em um
ambiente estranho e hostil, acabavam cometendo o suicídio,
muitas mulheres para não gerar ilhos que herdariam a escra-
vidão e indiferenças provocavam o aborto. Mesmo com toda a
vigilância os trabalhadores em regime de escravidão também
escapavam para o interior, alguns grupos formavam comuni- Quilombo – Espaço Professor Itaboraí
Velasco do Nascimento.
dades subsistentes composta por escravos fugidos, nos chama-
dos quilombos.
O quilombo mais famoso foi o assentamento fortiicado de Palmares, localizado no atual estado
de Alagoas, que sobreviveu por décadas, incomodando as autoridades que viam neste tipo de comuni-
dade uma ameaça e incentivo à fuga de novos escravos. Os quilombos se tornaram um importante ele-
mento de resistência à opressão:
Os quilombos, ou seja, estabelecimentos de negros que escapavam da escravidão pela fuga e recompunham no Brasil
formas de organização social semelhantes às africanas, existiam às centenas no Brasil colonial. Palmares – uma rede de
povoados situada em uma região situada em uma região que hoje corresponde em parte ao estado de Alagoas, com
vários milhares de habitantes... Formado no início do século XVII, resistiu aos ataques de portugueses e holandeses por
quase cem anos, vindo a sucumbir, em 1695, às tropas sob o comando de Domingos Jorge Velho. (FAUSTO, 2001, p. 52)

As formas de resistência dos africanos e afro-brasileiros não conseguiram colocar im imediato à


exploração compulsória do trabalho escravo, contudo as manifestações individuais logo resultaram em
organizações coletivas de luta que gestaram a destruição do próprio sistema que os subjugou.
A nós que recebemos várias heranças como a diversidade étnica, a pluralidade cultural, e o exem-
plo de resistência, também temos o rastro da escravidão e intolerância. Cabe a nós utilizarmos os ele-
mentos que acharmos convenientes e continuar construindo a nossa história:

2 Nome dado aos navios que transportavam os escravos. Recebiam esta denominação pelo alto índice de mortalidade entre os ocupantes que
eram trazidos em péssimas condições.

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A mais terrível de nossas heranças é esta de levar sempre conosco a cicatriz de torturador impressa na alma e pronta a
explodir na brutalidade racista e classista. Ela que incandesce, ainda hoje, em tanta autoridade brasileira predisposta a
torturar, seviciar e machucar os pobres que lhes caem às mãos. Ela, porém, provocando crescente indignação nos dará
forças, amanhã, para conter os processos e criar aqui uma sociedade solidária. (RIBEIRO, 2000, p. 120)

Texto complementar
Colônias de povoamento e exploração
(KARNAL, 1990)
Uma das mais tradicionais “verdades didáticas” [...] descreve colônias de exploração e colônias de
povoamento.
As colônias de exploração, é claro, seriam as ibéricas. Como diz o nome, as áreas colonizadas por
Portugal e Espanha existiriam apenas para enriquecer as metrópoles. Nesse tipo de colônia, as pessoas
sairiam da Europa apenas para enriquecer e voltar ao país de origem. [...]
O oposto das colônias de exploração seriam as de povoamento. Para essas, as pessoas iriam não
para enriquecer e voltar, mas para morar na nova terra. Logo, sua atitude não seria predatória, mas pre-
ocupada com o desenvolvimento local. Isso explicaria o grande desenvolvimento de áreas anglo-saxô-
nicas, como os EUA e o Canadá [...]
Vamos aos fatos. [...] A colonização ibérica foi, em quase todos os sentidos, mais organizada, plane-
jada e metódica do que a anglo-saxônica. [...] Na verdade, só podemos falar em projeto colonial nas áre-
as portuguesa e espanhola. Só nelas houve preocupação constante e sistemática quanto às questões da
América. [...]
Portugal e Espanha mandavam para a América, na época da conquista, alguns de seus membros
mais ilustres e preparados. [...] Nem de longe podemos airmar que semelhante fenômeno tenha ocorri-
do na fase da conquista da América inglesa. [...]
A solidez das cidades coloniais espanholas, seus traçados urbanos e suas pesadas cosntruções não
são harmônicas com um projeto de exploração imediata. As pessoas que falam desses “ideais” de enri-
quecimento fácil parecem imaginar que um espanhol cobiçoso embarcava num avião em Sevilha e, ho-
ras depois, desembarcava na América. [...]
A ideia tradicional de um grupo seleto de colonos ingleses altamente instruídos e com capitais
abundantes é uma generalização incorreta. [...] Nesse grande contingente, embrião do que seriam os
EUA, misturam-se inúmeros tipos de colonos: aventureiros, órfãos, membros de seitas religiosas, mulhe-
res sem posses, crianças raptadas, negros africanos, degredados, comerciantes e nobres.

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72 | Composição étnica do Brasil

Atividades
1. Faça uma síntese do que seriam os chamados brasilíndios.

2. Qual era a tese defendida por Varnhagen?

3. Explique o trecho a seguir:

“O tráico de escravos se tornou uma indústria muito rentável, atividade que trazia imensos lucros
para a metrópole portuguesa, ao contrário do apresamento de índios que ocorria sem interme-
diação de Portugal”.

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Gabarito
1. Orientação: o aluno deverá explicar que os brasilíndios eram os ilhos de portugueses com ín-
dias e, por este motivo, não eram aceitos por nenhum desses grupos, ou seja, eles não eram reco-
nhecidos como brancos europeus nem como índios. Assim, eles procuraram uma identidade – o
brasileiro.

2. Orientação: segundo Varnhagen, os portugueses tiveram a missão divina de “civilizar” a nação


brasileira e o grande mal que ocorreu foi a presença negra. Além disso, exaltou a repressão das re-
voltas que ocorreram em território brasileiro e idolatrou a igura de D. Pedro II.

3. Orientação: os índios utilizados na área de cultivo de cana no Nordeste escasseavam-se conforme


morriam de doenças contagiosas e maus-tratos, os portugueses então capturavam novos índios
para manter a produtividade, mas a captura de índios nas proximidades litorâneas tornava-se di-
icultosa, pois era necessário que se adentrasse cada vez mais em direção ao interior em busca de
novas tribos, além de terem que entrar em contato com tribos arredias.

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74 | Composição étnica do Brasil

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Os neobrasileiros
Que país é esse?
O brasilíndio como o afro-brasileiro existiam numa terra de ninguém, etnicamente falando, e é a partir dessa carência
essencial, para livrar-se da ninguendade de não índios, não europeus e não negros, que eles se veem forçados a criar a
sua própria identidade étnica: a brasileira. (RIBEIRO, 2000, p. 131)

Se fôssemos deinir o termo brasileiro com base em qualquer dicionário, teríamos uma breve refe-
rência como se tratando de uma pessoa natural ou habitante do Brasil, contudo, temos uma problemá-
tica, porque os habitantes originais do território que conhecemos como Brasil, nem sequer reconhecia
esse nome como legítimo.
Os nativos, assim como os africanos, trazidos à força, identiicavam-se com a etnia de que eram
oriundos; os ilhos de portugueses nascidos no Brasil denominavam-se luso-brasileiros, estabelecendo
relação direta com a metrópole. Portanto, a formação de um povo brasileiro seria construída inicialmen-
te a partir do contato conlituoso desses três elementos.
O primeiro brasileiro a se entender como tal foi o mameluco, esse brasilíndio, mestiço na carne e
culturalmente, não podia se identiicar com seus ancestrais nativos, que o rejeitavam, nem com sua ma-
triz portuguesa, que o desprezava. Logo suas características, a língua tupi, sua visão de mundo, o do-
mínio da tecnologia apropriada à sua condição de vida rústica e adaptação à loresta tropical, estavam
desenvolvendo um novo gênero humano: o brasileiro, elemento que receberia gradativamente contri-
buição dos africanos e afro-brasileiros.
O que daria em parte a identiicação aos novos brasileiros seria a expansão dos núcleos popula-
cionais, que liberou parte da população das atividades de subsistência, incorporando atividades espe-
cializadas e o sistema produtivo que se integraria à economia mundial.
Por um longo período, os núcleos populacionais coloniais neobrasileiros exibiam uma aparência
com predominância de traços indígenas sobrepondo-se às características negras ou europeias, além
dos costumes: modo como moravam, comiam e se comunicavam. O tupi cumpre inicialmente a função
de língua de comunicação dos portugueses com os nativos, introduzida pelos jesuítas objetivando a “ci-
vilização” deles, tornando-se posteriormente a língua materna dos mamelucos.

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76 | Os neobrasileiros

A difusão da língua portuguesa como língua predominante no Brasil só se fez evidente no decor-
rer do século XVIII, nas áreas onde a economia era mais dinâmica e o emprego de escravos africanos era
utilizado em larga escala, como na região Nordeste e mais ao centro do Brasil. O fato de a língua por-
tuguesa ter se difundido de maneira mais rápida está intrinsecamente ligado à presença do elemen-
to africano que fora obrigado a executar os trabalhos nas fazendas, minas ou em atividades de ganho
nos núcleos populacionais, sob o mando de senhores ou capatazes que utilizavam a língua portugue-
sa, esta sobrepondo-se aos diversos dialetos falados pelos escravos que eram trazidos de diferentes lo-
calidades da África.
A associação da nova língua não foi incorporada integralmente, ao passo que as inluências indí-
genas foram sendo implementadas e a contribuição africana também foi acrescentada, pois termos de
origem africana e tupi se fazem presentes até hoje.
Havia inclusive uma denominação diferenciada entre os escravos de origem africana de acordo
com sua intimidade com a língua portuguesa:
Só através de um esforço ingente e continuado, o negro escravo iria reconstruindo suas virtualidades de ser cultural
pelo convívio de africanos de diversas procedências com a gente da terra. Previamente incorporado à protoetnia bra-
sileira, que o iniciaria num corpo de novas compreensões mais amplo e mais satisfatório. O negro transita, assim, da
condição de boçal – preso ainda à cultura autóctone e só capaz de estabelecer uma comunicação primária com os de-
mais integrantes do novo contorno social – à condição de ladino – já mais integrado à nova sociedade e à nova cultura.
Esse negro boçal, que ainda não falava o português ou só falava um português muito trôpego, era entretanto perfei-
tamente capaz de desempenhar as tarefas mais pesadas e ordinárias na divisão do trabalho do engenho ou da mina.
(RIBEIRO, 2000, p. 116)

Os africanos, mesmo tendo que se adaptar ao ambiente estranho, à imposição linguística, ao


modo de produção e de tecnologia local, esforçaram-se, mesmo contrariando os colonizadores, para
preservar seus saberes milenares, suas crenças, a culinária e suas inluências rítmicas e musicais. Dessa
forma, uma nova identidade estava sendo construída, uma cultura de retalhos, e o Brasil foi se conigu-
rando, a partir de milhões de pessoas desencontradas, fundindo-as geneticamente e culturalmente:
Um persistente esforço de sua própria imagem e consciência como correspondentes a uma entidade étnico-cultural
nova, é que surge, pouco a pouco, e ganha a brasilianidade.
É bem que ela só tenha se ixado quando a sociedade local se enriqueceu, com contribuições maciças de descendentes
dos contingentes africanos, já totalmente desafricanizados pela mó aculturativa da escravidão. Esses mulatos ou eram
brasileiros ou não eram nada, já que a identiicação com o índio, com o africano ou com o brasilíndio era impossível. Além
de propagar o português como língua corrente, esses mulatos somados aos mamelucos, formaram logo a maioria da po-
pulação que passaria, mesmo contra sua vontade, a ser vista e tida como a gente brasileira. (RIBEIRO, 2000, p. 128)

O reconhecimento como brasileiros parte mais pela estranheza relacionada ao povo português
do que com sua identiicação como membro de uma nova comunidade sociocultural. De um novo
povo, feito de grupos milenares e somado às diferenças, surge a originalidade brasileira.
Com tanta diversidade, grupos subjugados e repressão, não é fácil compreender como um país
extenso e com tantos conlitos manteve-se uniicado e não se fragmentou, como a América colonial
espanhola, que originou diversos países que, em sua maioria, se formou por meio de revoltas locais.
Será que o nosso país é realmente harmonioso? Podemos perceber que os movimentos de resistência
marcaram a história do Brasil, mas a repressão e o comando político e administrativo, regado a mui-
ta violência, foram elementos importantes para a concentração do Brasil e exclusividade da explora-
ção de Portugal.

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Os neobrasileiros | 77

O mito da democracia racial


A historiograia brasileira expressou a necessidade de se buscar uma identidade para o Brasil, no
entanto, essa identidade foi delineada, na maioria das vezes, pela óptica eurocêntrica. Tais concepções
integram um tipo de historiograia que perpassa, desde os primeiros autores que resgatam a história
do Brasil, até por volta da década de 1950, constituindo-se assim nossa “história oicial”. Tal historiogra-
ia é muito difundida ainda hoje.
O alemão Karl Phillip Von Martius, cuja monograia foi publicada em 1845, airmou que a história
do Brasil deveria se resumir em: exaltação da história de Portugal1; patriotismo, história do Brasil isenta
de revoltas e resistências;2 indígenas deveriam ser retratados como perdedores e os negros como não
pertencentes à formação étnica da nação brasileira e o Brasil deveria continuar como império portu-
guês.3 Enim, o Brasil monárquico, católico e branco, que não queria ser republicano.
Por causa da relação entre as três matrizes étnicas: indígena, europeia e africana, criou-se um si-
mulacro de que tal fusão tivesse gerado uma identidade nova, supostamente harmoniosa. Nasceu as-
sim o “mito da democracia racial”.
Segundo Gilberto Freyre (1947), o colonizador português tinha experiências anteriores à colo-
nização do Brasil com povos mercadores, aproximando assim seus laços culturais e étnicos, “Os portu-
gueses seriam menos preconceituosos que outros povos europeus concernente aos africanos, em parte
por longa exposição de Portugal aos mouros de peles escuras que eram representantes de alta cultura”
(SKIDMORE, 2000, p. 32).
A teoria sobre a suposta democracia racial de Freyre sustenta que a desigualdade social no Brasil
não se relaciona à discriminação racial, mas é resultado das diferenças de classe. Vejamos alguns pontos
da tese defendida por Gilberto Freyre: ”[...] Como os negros brasileiros desfrutaram mobilidade social e
oportunidades de expressão cultural, não desenvolveram uma consciência de serem negros da mesma
forma que seus congêneres norte-americanos” (FREYRE, 1947, p. 154).
Segundo Freyre, não havia uma deinição clara do que era ser negro, já que a pessoa que não fos-
se aparentemente negra era considerada branca.
Assim sendo, no Brasil, os negros estavam desaparecendo, sendo incorporados aos brancos.
Portanto, como airmou Freyre, a miscigenação era a possível solução contra o racismo.
A teoria de Freyre foi questionada, anos depois, por um grupo de cientistas sociais. Estes demons-
traram que no Brasil sempre houve discriminação em relação aos negros, mesmo que esse preconceito
não tenha sido declarado abertamente, os negros de uma forma ou de outra acabam sendo segrega-
dos.
Esses cientistas sociais demonstraram, através de dados precisos, que a grande maioria dos ne-
gros não ascendeu na escala social por causa da discriminação.
1 Conceito de predestinação; os portugueses são vistos, segundo essa concepção, como aqueles que vieram pregar a salvação para os povos
pagãos e, dessa forma, trazer seus hábitos e costumes “civilizados”.
2 Descreveu um Brasil harmônico, livre de qualquer revolta ou resistência; uma espécie de “Éden” no mundo.
3 Ideia contrária das outras nações latino-americanas. A monarquia, para elas, era o sinal de atraso e exploração. O Brasil, em contrapartida,
acreditava que só alcançaria seu desenvolvimento se continuasse monárquico.

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78 | Os neobrasileiros

A discriminação do negro tornou-se evidente e constatada cientiicamente, assim sendo, a de-


mocracia racial tornou-se um mito no Brasil. Ora, muitos não aceitaram essa nomenclatura – mito da
democracia racial – e acusaram os cientistas de inventarem um problema racial que era inexistente na
sociedade brasileira. Essa postura é explicável: a elite branca brasileira temia a conscientização e a for-
mação de um movimento negro no Brasil.
Os dados do censo oicial desde 1950, já demonstravam o mito da democracia racial no Brasil:
[...] Estas estatísticas, por exemplo, classiicam cerca de 25% como mulato e 11% como negra. Mas as estatísticas refe-
rentes ao atendimento escolar de nível primário revelaram uma distribuição dramaticamente adversa. Apenas 10% dos
alunos eram mulatos e somente 4% negros. E nos estabelecimentos de nível secundário e superior o número de mula-
tos e negros era ainda menor, somente 4% dos estudantes das escolas secundárias eram mulatos e menos de 1% eram
negros. Nas universidades, apenas 2% eram mulatos, e somente cerca de um quarto de 1% eram negros [...]. (COSTA,
1999, p. 369)

Assim posto, a discriminação racial sempre existiu na sociedade brasileira e o “mito da democracia
racial” serviu para camular os problemas sociais reais existentes em nossa nação. Ora, tal realidade in-
tegra a estrutura do governo, e dadas as características ainda agrárias de nossa sociedade, conigura-se
a organização de um poder que adquire cada vez mais visibilidade no cenário político nacional. Assim,
desde o momento em que se consolidava a aliança entre a burguesia agrária e o poder monárquico, até
a ruptura, com a república, observa-se o movimento conservador de nosso desenvolvimento. Pois, des-
de o momento da Proclamação da República, consolida-se a dinâmica que vai se perpetuar nesse país:
a aliança da burguesia com os militares para proceder às reformas “pelo alto”, isto é, isolando e contro-
lando as forças sociais que, no caso brasileiro, advinham de um sistema escravocrata dos mais excluden-
tes e em uma condição conjuntural de alterações drásticas em termos de sua mobilidade social, dada a
recém extinção desse regime.

Texto complementar
Miscigenação não leva à democracia racial, diz sociólogo
Ronaldo Sales diz que mistura criou hierarquias de cor e que harmonia racial é aparente

(GLYCERIO, 2007)
De São Paulo – A miscigenação no Brasil não leva à democracia racial porque, na prática, não
cria uma categoria homogênea de mestiços, mas, sim, uma hierarquia de subcategorias pela qual
quanto mais perto um indivíduo estiver da “matriz branca”, maiores são suas chances de inclusão so-
cial, airma o sociólogo Ronaldo Sales, da Fundação Joaquim Nabuco, de Recife.
“A miscigenação não é construtora de homogeneidade, ao contrário do que alguns acredita-
ram durante décadas e uns ainda acreditam. Na verdade, você cria uma espécie de graduação de
cor e de características físicas, e a partir disso você diferencia os grupos”, disse Sales, autor da polê-

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Os neobrasileiros | 79

mica tese de doutorado “Raça e Justiça – O mito da democracia racial e o racismo institucional no
luxo de justiça”.
Por outro lado, argumenta, o conceito de miscigenação no Brasil é usado para validar o mito da
democracia racial, tirando dos movimentos negros os argumentos para denunciar o racismo. Mais
do que isso: em uma sociedade em que, em tese, não existe raça, racistas são aqueles que falam do
racismo.
“É como se o movimento negro fosse racista porque traz o debate para a esfera pública”, disse
o sociólogo à BBC Brasil [...].

Atividades
1. Por que o chamado mameluco foi o primeiro brasileiro a se entender como tal?

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2. Explique a airmação: “O reconhecimento como brasileiros parte mais pela estranheza relaciona-
da ao povo português do que com sua identiicação como membro de uma nova comunidade
sociocultural. De um novo povo, feito de grupos milenares e somado às diferenças, surge a origi-
nalidade brasileira”.

3. Por que não podemos airmar que o Brasil é um país harmonioso, ou seja, isento de conlitos?

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Os neobrasileiros | 81

Gabarito
1. Orientação: o mameluco não podia se identiicar com seus ancestrais nativos, que o rejeitavam,
nem com sua matriz portuguesa, que o desprezava. Logo suas características, a língua tupi, sua
visão de mundo, o domínio da tecnologia apropriada a sua condição de vida rústica e adaptação
à loresta tropical, estavam desenvolvendo um novo gênero humano: o brasileiro, elemento que
receberia gradativamente contribuição dos africanos e afro-brasileiros.

2. Orientação: o aluno deverá perceber que as matrizes étnicas que formam o povo brasileiro ten-
taram manter sua cultura. Essas especiicidades culturais são dos portugueses, indígenas e africa-
nos que formaram a cultura brasileira.

3. Orientação: seria interessante viver em harmonia, contudo esse termo signiica ausência de con-
litos e como podemos perceber, conlitos eram e são abundantes até hoje no Brasil. Os mo-
vimentos de resistência marcaram a história do Brasil, mas a repressão e o comando político e
administrativo, regado a muita violência, foram elementos importantes para a concentração do
Brasil e exclusividade de exploração de Portugal.

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82 | Os neobrasileiros

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Cultura nacional
e identidade
A busca da identidade nacional na década de 1920
Nós temos que dar ao Brasil o que ele não tem e que por isso até
agora não viveu, nós temos que dar uma alma ao Brasil e para isso todo
sacrifício é grandioso, é sublime. E nos dá felicidade.

Mário de Andrade

Esta aula pretende compreender o debate sobre a busca de uma suposta identidade cultural bra-
sileira na década de 1920. O campo da cultura é ressaltado pois está intrinsecamente ligado às trans-
formações políticas e sociais da época. Assim, muitas vezes, o discurso nacionalista utilizou-se, e ainda
utiliza-se, de uma falsa unissonância cultural com o intuito de fazer com que os interesses de um grupo
minoritário se tornem interesses de toda a nação.
Os grupos de intelectuais modernistas propagaram, principalmente de 1920 a 1930, o ideário na-
cionalista que pretendia criar ou “redescobrir” as raízes e tradições brasileiras. Estes intelectuais, por-
tanto, se “vestiram” da missão de dar uma identidade ao Brasil e o nacionalismo passou a ser o foco das
discussões e das obras criadas pelos mesmos.
Algumas pesquisas analisaram propostas especíicas do movimento modernista. Entre essas pes-
quisas está a de Alexandre Ventura que, em sua dissertação de mestrado, discutiu o projeto do Brasil
moderno que foi pensado pelos modernistas paulistas por meio de viagens por eles realizadas a Minas
Gerais: “Meu trabalho sobre a viagem a Minas procura compreender o que era o ‘viver o moderno’ e o
‘ser moderno’ para aqueles intelectuais modernistas” (VENTURA, 2000, p. 14).
Outro trabalho recente que traz a abordagem de um Brasil moderno é a dissertação de mestra-
do de Glaucia Ribeiro que fez uma análise da modernidade brasileira proposta pelo intelectual Antônio
de Alcântara Machado, com enfoque na cidade de São Paulo, a partir das obras e viagens realizadas por
este intelectual. O trabalho citado analisa principalmente a obra deste autor: Pathé-Baby. A análise desta
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84 | Cultura nacional e identidade

obra literária explicou o projeto que o autor buscava: “Para expor seu projeto de modernidade, o autor
fez algumas opções. Essas escolhas não foram aleatórias e expressavam, antes de tudo, a maneira como
Alcântara Machado via a cidade” (LIMA, 2001, p. 19).
Os trabalhos citados trazem importantes informações sobre o movimento modernista no Brasil.
Esta aula apresenta a proposta do modernismo: o debate sobre uma suposta identidade cultural
brasileira. Iremos discutir essa proposta por intermédio das correspondências de Carlos Drummond de
Andrade e Mário de Andrade, dois intelectuais modernistas. Assim, a peculiaridade deste estudo é utili-
zar-se de cartas pessoais que trazem informações complexas sobre os interesses dos grupos de intelec-
tuais modernistas, para analisar o projeto de nacionalismo, no âmbito cultural, pensado por eles. Esta
aula será relevante ao mostrar, por intermédio das cartas que serão analisadas em suas especiicidades,
que no processo histórico o ideário de uma suposta identidade nacional, quase sempre, foi traçado por
grupos minoritários que se utilizaram do saber, na maioria das vezes, como instrumento de poder e do-
minação, como é notado nas palavras de Drummond na carta do dia 22 de novembro de 1924:
E por outro lado, estou quase a airmar que uma certa classe de espíritos, de formação e educação nitidamente univer-
salistas, tem solene direito de sobrepor as suas conveniências mentais às dessa mesma confusa e anônima cambada
de bestas. Monstruoso? Será antes humano. Espero que não veja nessas palavras a intenção de criar uma oligarquia in-
telectual, ou qualquer coisa parecida com um clã ou um mandarinato das letras. Não. Estamos, se não me engano, em
dias largamente democráticos, em que nenhuma aristocracia é possível, mesmo a da inteligência. Quis apenas justii-
car a posição em que se encontram muitas criaturas honestas, inteligentes e cultas, em face de apertado dilema: nacio-
nalismo ou universalismo. O nacionalismo convém às massas, o universalismo convém às elites (repito: não se trata de
clã). E se muitos dos que constituem as elites são inadaptáveis, por um vício de conformação íntima, à primeira solução,
que podemos fazer senão aceitar esse vício, que em nada os desabona? (DRUMMOND DE ANDRADE, 2003, p. 60)

Ora, Carlos Drummond de Andrade deixa explícito que o debate sobre o nacionalismo e univer-
salismo existia dentro dos grupos intelectuais e estes intelectuais eram, segundo Drummond: “Criaturas
honestas, inteligentes e cultas” que discutiam as decisões que, segundo ele, o Brasil deveria tomar para
fazer parte do “movimento universal”. Mesmo diante da negação de Drummond, tratava-se, indiscuti-
velmente, de um “mandarinato das letras”.

A coniguração da nação
Grupos minoritários, a partir da coniguração do Estado moderno, criaram as tradições que de-
veriam identiicar toda a nação. Assim, Benedict Anderson defende que as nações nada mais são que
comunidades imaginadas, ou seja, dentro de um determinado território há criações culturais que pro-
curam delinear uma “identidade própria” de uma determinada comunidade nacional. O argumento que
Anderson utiliza para defender que as nações são comunidades imaginadas, é que: “Nem mesmo os
membros das menores nações jamais conhecerão a maioria de seus compatriotas, nem os encontrarão,
nem sequer ouvirão falar de sua comunhão” (ANDERSON, 1989, p. 14)1.
Anderson mostra alguns dos processos que criaram as comunidades imaginadas da nacionalida-
de como: o capitalismo editorial que possibilitou o surgimento de línguas vernáculas em detrimento do
1 O campo da cultura, como parte integrante da ilosoia nacionalista, permeia a obra de Anderson e ele airma que o sentimento de nacionalida-
de – essa sensação pessoal e cultural de pertencer a uma nação – acaba como aspecto secundário nas discussões sobre o nacionalismo. A questão
principal levantada por Anderson é: o que faz as pessoas amarem e morrerem pela nação, bem como odiarem e matarem em seu nome?

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Cultura nacional e identidade | 85

latim; o nacionalismo oicial – crescimento do Estado-nação – como meio de sustentar um ideário di-
nástico para submeter as revoltas populares; a fatalidade de fazer parte de uma nação e a imagem de
unissonância contida nos símbolos nacionais. O “nacionalismo oicial”, portanto:
[...] foi, desde o início, uma política consciente, de autoproteção, intimamente ligada à preservação dos interesses di-
nástico-imperiais [...] O único traço característico desse estilo de nacionalismo era, e é, ser ele oicial – isto é, algo que
emana do Estado e que, antes e acima de tudo, serve aos interesses do Estado. (ANDERSON, 1989, p. 174)

A história factual é herança deste “nacionalismo oicial” em que o Estado executa, desde o início,
uma política consciente de proteção aos seus interesses. Desta maneira, os líderes nacionalistas, muitas
vezes, são os que projetam sistemas civis, militares, culturais e educacionais em nome da nação.
Estudar o debate sobre o processo de construção de uma possível identidade cultural nacional
brasileira é relevante, porque permite a observação do que ainda está latente na nossa história, ou seja,
negar uma história oicial tida como “verdade absoluta”; uma história executada por “heróis”, sem ne-
nhuma participação popular, isenta de quaisquer resistências, que exalta a cultura europeia e subesti-
ma as culturas indígena e africana.
No caso do Brasil foi só após a independência em 1822 que a classe intelectual, ligada a Dom
Pedro I, começou estudar as possibilidades para a construção de um caráter nacional na ânsia de deinir
quais seriam nossas tradições e heróis. A intenção era dar uma “alma” ao Brasil para tornar a população
coesa e o território centralizado na igura do imperador:
Procuraram “a alma brasileira” nos primórdios da nossa história, no índio ainda não “contaminado” pelos europeus e ide-
alizado como “o bom selvagem”, e, como não era possível ignorar o colonizador nem reconhecer a qualidade humana
do negro, ainda escravizado, constituíram o mito da essência cabocla de nossa brasilidade. (ALVES, 1997, p. 97)

A história do Brasil e os livros didáticos


A história do Brasil, narrada pelos livros didáticos, quase sempre, ratiicou o ideário europeu: os por-
tugueses eram os desbravadores; os “predestinados”, aqueles que vieram pregar a salvação aos povos, os
“civilizados’’; o indígena foi representado como um selvagem, omisso e “incivilizado” e o negro2 não pas-
sava de uma “mercadoria”, assim, não possuía sentimentos e não resistia à escravidão, pelo contrário, o es-
cravo foi visto desde o início como um ser estoico.3 Ora, ninguém se identiica com o mais fraco, ninguém
quer ser “incivilizado” ou omisso, esses arquétipos, construídos ao longo de nossa história, fazem com que
a nação exclua da sua formação os indígenas e os negros e adote os modelos europeus:
O livro didático é um importante veículo portador de um sistema de valores, de uma ideologia, de uma cultura. Várias
pesquisas demonstraram como textos e ilustrações de obras didáticas transmitem estereótipos e valores dos grupos
dominantes, generalizando temas, como família, criança, etnia, de acordo com os preceitos da sociedade branca bur-
guesa. (BITTENCOURT, 2002, p. 72)

2 Somente após a abolição da escravidão no Brasil em 1888, é que o negro passou a ser visto como elemento componente na formação étnica
brasileira. Entretanto, a ideologia racista airmou que a miscigenação com os negros fez do Brasil um país omisso e estagnado em relação ao
progresso.
3 Piratininga Jr., 1991. Esta obra analisa as justiicativas preconceituosas para a escravidão do negro. Uma dessas justiicativas ratiica a des-
cendência dos negros com Cam, ilho de Noé, que denunciou aos irmãos que o pai, depois de ter se embriagado com vinho, aparecera nu.
Noé, ciente do comentário, amaldiçoou-o, desejando que ele se tornasse “escravo dos escravos de seus irmãos”. O termo estoico aparece para
lembrar destas explicações para a escravidão, ou seja, o negro, segundo estas justiicativas, deveria aceitar a exploração como destino.

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86 | Cultura nacional e identidade

Os livros didáticos serviram como base deste nacionalismo oicial, pois eles vêm sendo utilizados
na aprendizagem como principal instrumento de trabalho dos educadores e dos educandos desde o sé-
culo XIX. E a história narrada e ilustrada por eles sustenta o caráter heroico e missionário dos europeus:
As ilustrações mais comuns sobre o passado da nação foram reproduzidas, por desenhistas ou por fotógrafos, de qua-
dros históricos produzidos no inal do século XIX. Dessa galeria de arte que os livros didáticos foram os principais di-
vulgadores, dois quadros têm sido os mais reproduzidos desde o início do século: o 7 de setembro de 1822, de Pedro
Américo, e A Primeira Missa no Brasil, de Vitor Meirelles de Lima. (BITTENCOURT, 2002, p. 77)

O modernismo e a identidade brasileira


A historiograia brasileira, desde os seus primórdios tentou construir uma identidade nacional bra-
sileira delineada pelos moldes europeus trazidos pelos portugueses, desta forma, a comunidade brasilei-
ra imaginada deveria ser um relexo de Portugal.
A preocupação ao estudar o debate sobre a identidade nacional brasileira na década de 1920, de-
bate este proferido pela intelligentsia brasileira nesta época, é procurar entender o sentimento de nacio-
nalidade pensado por um grupo de jovens intelectuais que, “deslumbrado” com o progresso capitalista
na Europa e descontente com a posição em que o Brasil se encontrava ainda como um país predomi-
nantemente agrário, propôs um movimento modernista que reivindicava a ruptura com os modelos
antigos, a autonomia nas artes e na literatura e o “redescobrimento” das raízes brasileiras. Não se tra-
ta de um estudo sobre xenofobia4, xenoilia5 ou antropofagia6; porém, é um estudo que visa entender
como os intelectuais modernistas desta época discutiram o caráter nacional brasileiro: que nação ide-
alizavam? Qual era a importância da língua na formação nacional brasileira, segundo eles? Quais eram
os objetivos do projeto nacional de descoberta do Brasil7 pensado por esses intelectuais acerca das ca-
ravanas modernistas8?
O modernismo, o próprio nome já denota rupturas e alterações na ordem estabelecida, foi ge-
rado no seio de uma sociedade em transformação. Em 1922 ocorreu no Teatro Municipal a chamada
Semana de Arte Moderna nos dias 13, 15 e 17 de fevereiro que representou o descontentamento dos
intelectuais e artistas modernistas com qualquer tipo de passadismo: “Do quadro emergem ideologias
em conlito o tradicionalismo agrário ajusta-se mal à mente dos centros urbanos”. (BOSI, 1991, p. 340).
Logo, o modernismo foi fomentado pelas transformações ocorridas na década de 1920:
Nos países de extração colonial, as elites, na ânsia de superar o subdesenvolvimento que as sufoca, dão às vezes passos
largos no sentido de atualização literária: o que, ainal, deixa ver um hiato ainda maior entre as bases materiais da na-
ção e as manifestações culturais de alguns grupos. É verdade que esse hiato, coberto quase sempre de arrancos pesso-
ais, modas e palavras, não logra ferir senão na epiderme aquelas condições, que icam como estavam, a reclamar uma
cultura mais enraizada e participante. E o sentimento do contraste leva a um espinhoso vaivém de universalismo e na-
cionalismo, com toda a sua sequela de dogmas e anátemas. (BOSI, 1991, p. 342)

4 Negação dos estrangeiros.


5 Admiração aos estrangeirismos.
6 Devorar as inluências estrangeiras para não ser por elas devorado.
7 Viagem de descoberta do Brasil; termo utilizado por Oswald de Andrade na viagem a Minas Gerais no decorrer de 1924.
8 Viagens que os intelectuais paulistas como Oswald de Andrade, Mário de Andrade, René Thiollier etc. izeram pelos estados do Rio de Janei-
ro, Minas Gerais e interior de São Paulo.

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Cultura nacional e identidade | 87

Assim, os modernistas exaltaram a velocidade, a máquina e a vida urbana como fatores de ruptu-
ra com o atraso agrário e buscaram um caráter “totalmente nacional” que possibilitasse ao Brasil a sua
deinitiva independência como nação.
Na década de 1920 ocorreu uma busca eloquente para formar uma identidade nacional. O mo-
mento era propício, pois a Primeira Guerra Mundial tornou explícita a condição de desigualdade que se-
gregava o Brasil dos países industrializados:
Os efeitos das aceleradas transformações técnicas da Segunda Revolução Industrial se faziam sentir, nas sociedades pe-
riféricas, como uma intensiicação do sentimento da distância em face do mundo desenvolvido, mas também no inte-
resse pelas nossas especiicidades. A crise do pós-guerra afetava de maneira distinta as partes avançadas e atrasadas do
mundo, mas, em ambos os casos, colocava-se em questão o papel do Estado no interior das economias nacionais como
elemento chave de onde se esperava a reorganização da economia e da sociedade [...] (LORENZO; COSTA, 1997, p. 8)

O sentimento nacional se tornou, desta forma, um instrumento de defesa utilizado pela elite inte-
lectual modernista adepta das inovações industriais e culturais do período contra a república que tinha
se instituído no Brasil desde 15 de novembro de 1889. Esta não atendia seus objetivos “modernizantes”;
o Brasil deveria deixar de ser dependente dos outros países, para isso era necessário uma república for-
te, entretanto, a chamada Primeira República no Brasil foi marcada pela incapacidade administrativa.
Certamente a frase: “Essa não é a República dos meus sonhos”,9 foi conirmada pelo grupo intelectual
modernista da década de 1920:
Esterilizados pela sua acomodação, os políticos e os partidos que se assenhoravam da situação tornaram-se alvos de
violentas críticas por parte dos grupos intelectuais. Censurava-se-lhes a inocuidade política, o vazio ideológico, a cor-
rupção e sobretudo pela incapacidade técnica e administrativa que os caracterizava. Não há, praticamente, partidos
políticos no sentido clássico do conceito e esse foi um dos traços mais notáveis da Primeira República, porque não se
mantinham interesses rigorosamente conlitantes nos meios políticos entre os grupos que sobrenadavam à sociedade.
Não que não houvesse oposição, os próprios intelectuais a representavam com a máxima substância, mas ela foi sim-
plesmente varrida da vida pública e dos meios oiciais para a margem e a miséria, sob o estigma de antissocial e perni-
ciosa. (SEVCENKO, 1995, p. 87)

Esta indignação contra a organização política brasileira da época pode ser notada nas palavras de
Carlos Drummond de Andrade em carta enviada a Mário de Andrade no dia 22 de novembro de 1924:
Acho o Brasil infecto. Perdoe o desabafo, que a você, inteligência clara, não causará es-
cândalo. O Brasil não tem atmosfera mental; não tem literatura; não tem arte, tem apenas
uns políticos muito vagabundos e razoavelmente imbecis ou velhacos [...] O que nós todos
queremos (o que, pelo menos, imagino que todos queiram) é obrigar este velho e imora-
líssimo Brasil dos nossos dias a incorporar-se ao movimento universal das ideias. Ou, como
diz Manuel Bandeira, “enquadrar”, situar a vida nacional no ambiente universal, procuran-
do o equilíbrio evidentemente difícil, dada a evidência da desproporção. (DRUMMOND DE
ANDRADE, 2003, p. 56)

Drummond expressou todo o seu descaso ao Brasil, porém, é importan-


te observar que este descrédito se encontrou, sobretudo, na atmosfera cultural.
É como se o Brasil não tivesse história ou produção cultural autônoma. Carlos Carlos Drummond de
Drummond, nesta mesma carta do dia 22 de novembro de 1924, negou o nacio- Andrade.
nalismo e airmou que a única saída para o Brasil seria inserir-se no ambiente universal:

9 “Já precocemente, na época do Governo Provisório, Lopes Trovão, um dos próceres da campanha republicana, proclamava a sua desilusão:
‘Essa não é a República dos meus sonhos’. Conspurcado pelas adesões maciças e disputas canhestras pelo poder e cargos rendosos, o novo
regime esvaziara rapidamente os sonhos que os seus arautos acumularam ao longo de três décadas [...]” (SEVCENKO, 1995, p. 85).

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88 | Cultura nacional e identidade

Eu tenho que convencer-me a mim mesmo antes de convencer aos outros que devemos repudiar a experiência euro-
peia. Bem pesadas as coisas, duvido se haverá vantagem em sacriicar-se espiritualmente a uma cambada de bestas
como é a quase totalidade dos nossos irmãos brasileiros [...] (DRUMMOND DE ANDRADE, 2003, p. 59)

O descrédito à organização política do país fez com que o nacionalismo começasse vir à tona, eis
as questões principais levantadas na época: o Brasil não é verdadeiramente uma nação e assim não re-
sistirá às potências europeias, o Brasil ainda é uma criança em formação que deve ser sustentada com
altas doses de nacionalismo.
Desta forma, o Brasil se apresentava como um país totalmente dependente das nações já indus-
trializadas. Deveu-se a isto a deiciência política administrativa na Primeira República e a economia bra-
sileira predominantemente agrária.
O descontentamento diante da dependência do Brasil fez com que grupos intelectuais moder-
nistas discutissem a existência de tradições tipicamente nacionais que permitiriam aos brasileiros se
apossarem verdadeiramente do país. Além do grupo modernista de São Paulo surgem os grupos mo-
dernistas regionais. Deles faziam parte: Carlos Drummond de Andrade, João Alphonsus, Pedro Nava,
Martins de Almeida, Augusto Meyer, Raul Bopp e Luís da Câmara Cascudo, para citar apenas alguns no-
mes. Todos estes intelectuais traziam consigo uma ideologia política diferente, no entanto, todos parti-
ciparam do debate sobre a construção de uma identidade nacional para o Brasil:
[...] a elite intelectual apresentou-se, em diferentes momentos, investida da missão de revelar a verdadeira face da na-
ção e de traçar as suas linhas de força para o futuro. O credenciamento para a tarefa proviria de uma suposta qualiica-
ção para desvendar as regras de funcionamento do social e desse modo formular, a partir de dados e critérios objetivos,
políticas de ação. Tal direito sempre lhe apareceu algo evidente, que dispensava qualquer tentativa de justiicação.
(LUCA, 1999, p. 19)

Tanto as cartas de Mário de Andrade quanto as de Carlos Drummond, trazem um debate impor-
tante: o nacional versus o universalismo.
Mário de Andrade tentou convencer a Carlos Drummond que se sacriicar para dar uma identida-
de ao Brasil era fundamental; Drummond exaltou, explicitamente nas suas primeiras cartas, o universa-
lismo e, diferente de Mário de Andrade, desconiava de um caráter nacional brasileiro. Mário de Andrade
fez um apelo a Drummond na carta do dia 10 de novembro de 1924:
[...] Você é uma sólida inteligência e já muito bem mobiliada... à francesa. Com toda a abundância do meu coração eu
lhe digo que isso é uma pena. Eu sofro com isso. Carlos, devote-se ao Brasil, junto comigo. Apesar de todo ceticismo,
apesar de todo pessimismo e apesar de todo o século 19, seja ingênuo, seja bobo, mas acredite que um sacrifício é lin-
do. O natural da mocidade é crer e muitos moços não creem. Que horror! Veja os moços modernos da Alemanha, da
Inglaterra, da França, dos Estados Unidos, de toda a parte: eles creem, Carlos, e talvez sem que o façam conscientemen-
te, se sacriicam. Nós temos que dar ao Brasil o que ele não tem e que por isso até agora não viveu, nós temos que dar
uma alma ao Brasil e para isso todo sacrifício é grandioso, é sublime [...] (ANDRADE, 2003, p. 50)

Em 1925, Carlos Drummond airmou a Mário de Andrade que aceitava se sacriicar pelo Brasil, no
entanto, não deixou totalmente suas concepções anteriores. Carlos Drummond defendia o universalis-
mo e tinha uma concepção pessimista diante de uma suposta identidade nacional brasileira. Mário de
Andrade, em contrapartida, alimentou um nacionalismo que chegou a ser exacerbado. O que deve ser
destacado é que, mais uma vez, um grupo minoritário discutiu um caráter que identiicasse toda a co-
munidade imaginada, pois embora os modernistas discordassem em alguns pontos, o objetivo era co-
mum: dar uma “alma” ao Brasil.

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Cultura nacional e identidade | 89

Texto complementar
Belo Horizonte, 22 novembro 1924.
Querido Mário de Andrade
Obrigadíssimo pela sua carta, que me encheu de alegria, sim, de viva ale-
gria, embora não concorde com muitas coisas que você aí deixou. Mas o prazer
é o mesmo, com ou sem discussão. É absolutamente raro, no Brasil, uma pessoa
ser tão gentil e atenciosa como você foi comigo. Assim, não me arrependo de lhe
haver mandado o meu artigo sobre o inado Anatole France. Ele promoveu uma
aproximação intelectual que me é muito preciosa. Agradeço-lhe ainda uma vez,
prezado Mário. Mas, ainal, você foi injusto comigo, supondo-me livresco. Você
não gostou do meu artigo. Apoiado. Entretanto, o meu artigo vale pela coragem
com que foi escrito, e que não é pequena em um meio, como este em que vivo, Carlos Drummond de
cretiníssimo. Estas coisas lhe são estranhas, porque você vive bem longe desse Andrade.
lugarejo chamado Belo Horizonte. Você preferia que eu “dissesse asneiras, injustiças, maldades, mas
asneiras moças, injustiças moças, maldades moças que nunca izeram mal a quem sofre delas”. Ora,
eu creio que não iz outra coisa, e nisto fui terrivelmente sincero. Como todos os rapazes da minha
geração, devo imenso a Anatole France, que me ensinou a duvidar, a sorrir e a não ser exigente com
a vida. Atacando-o, cometi sobretudo uma injustiça, e, em grau menor, uma asneira e uma perversi-
dade. Fiz o que se chama uma “tolice da juventude”. Ainda bem!
Reconheço alguns defeitos que aponta no meu espírito. Não sou ainda suicientemente brasi-
leiro. Mas, às vezes, me pergunto se vale a pena sê-lo. Pessoalmente, acho lastimável essa história de
nascer entre paisagens incultas e sob céus pouco civilizados. Tenho uma estima bem medíocre pelo
panorama brasileiro. Sou um mau cidadão, confesso. É que nasci em Minas, quando devera nascer
(não veja cabotinismo nesta conissão, peço-lhe!) em Paris. O meio em que vivo me é estranho: sou
um exilado. E isto não acontece comigo, apenas: “Eu sou um exilado, tu és um exilado, ele é um exi-
lado” Sabe de uma coisa? Acho o Brasil infecto. Perdoe o desabafo, que a você, inteligência clara, não
causará escândalo.

Carta escrita por Carlos Drummond de Andrade.


(SANTIAGO, Silviano, FROTA, Lélia Coelho. Carlos e Mário. Rio de Janeiro: Bem-Te-Vi. 2003.)

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90 | Cultura nacional e identidade

Atividades
1. Explique o trecho abaixo:

“Os grupos de intelectuais modernistas propagaram, principalmente de 1920 a 1930, o ideário


nacionalista que pretendia criar ou“redescobrir” as raízes e tradições brasileiras. Estes intelectuais,
portanto, se “vestiram” da missão de dar uma identidade ao Brasil e o nacionalismo passou a ser o
foco das discussões e das obras criadas pelos mesmos”.

2. Explique o trecho abaixo:

“[...] no processo histórico o ideário de uma suposta identidade nacional, quase sempre, foi traça-
do por grupos minoritários que se utilizaram do saber, na maioria das vezes, como instrumento
de poder e dominação”.

3. O autor Benedict Anderson defendeu a tese de que as nações nada mais são que comunidades
imaginadas, explique essa airmação.

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Cultura nacional e identidade | 91

Gabarito
1. Orientação: o aluno deverá responder que os grupos intelectuais buscaram uma identidade na-
cional para o Brasil e mais uma vez a população icou fora desse processo.

2. Orientação: o aluno deverá responder que o saber é um grande instrumento de dominação. A


elite brasileira sempre utilizou-se do saber para persuadir a população por intermédio da propa-
gação de interesses individuais como se fossem coletivos.

3. Orientação: grupos minoritários, a partir da coniguração do Estado moderno, criaram as tradições


que deveriam identiicar toda a nação. Assim, Benedict Anderson defende que dentro de um
determinado território há criações culturais que procuram delinear uma “identidade própria” de
uma determinada comunidade nacional. O argumento que Anderson utiliza para defender que
as nações são comunidades imaginadas, é que: “Nem mesmo os membros das menores nações
jamais conhecerão a maioria de seus compatriotas, nem os encontrarão, nem sequer ouvirão falar
de sua comunhão” (ANDERSON, 1989, p. 14).

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92 | Cultura nacional e identidade

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A intolerância gerada pelo
etnocentrismo
Nazismo: um breve relato
Observando a trajetória humana é perceptível que uma das maiores diiculdades dos seres huma-
nos é de se relacionar socialmente, sabemos que é necessário o convívio em grupo para a manutenção
e desenvolvimento do mesmo, porém antagonicamente, sentimos a necessidade de nos isolar, abdicar
de tudo aquilo que nos é imposto, criar algo que se adeque perfeitamente aos nossos anseios. Esse an-
tagonismo deve-se ao fato de não nos identiicarmos, ou não tentar compreender um outro indivíduo,
mesmo que este pertença ao grupo étnico comum, e seja integrante da mesma unidade, a humana, as
diferenças devem ser vistas como diversidade cultural e não como um determinado estágio de uma su-
posta evolução.
Se dentro do mesmo grupo étnico encontramos diiculdades de convivência, temos a crer que a
aversão se eleve, quando tratamos de culturas totalmente distintas, em que a organização social, dogmas
religiosos e aspectos físicos, são totalmente diferentes. Um exemplo de aversão enlouquecida ao dife-
rente foi o racismo nazista que massacrou milhares de pessoas no período da Segunda Guerra Mundial.
O nazismo tentou justiicar as diiculdades econômicas, políticas e sociais da Alemanha relacionando-as
à presença indesejada do outro (judeus, ciganos, homossexuais etc.).
Durante o período de 1888 a 1918, em que o reinado estava sob o comando de Imperador Guilherme
II, a Alemanha passava por um grande crescimento econômico, acompanhado de notáveis produções ar-
tísticas e cientíicas que contribuíram para o sentimento de superioridade nacional.
O sentimento nacionalista foi construído devido à herança de ideais prussianos de obediência,
que colocava o indivíduo como uma marionete do Estado. Tais ideais eram reletidos tanto na educa-
ção formal, nas escolas, quanto na educação informal, no núcleo familiar. No princípio essa disciplina
era característica das famílias de classe média, porém estes conceitos acabaram sendo incorporados pe-
los proletários.

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94 | A intolerância gerada pelo etnocentrismo

A inluência sobre a população era camulada pelo patriotismo, e gradualmente uma boa parte
da população abdicava de participação política formal, o que colaborou para que os planos expansio-
nistas e excludentes tomassem força na Alemanha.
Em novembro de 1918, após o im da monarquia na Alemanha, entrava em vigor o novo regime
republicano encabeçado pelo Partido Social Democrata. Friedrich Ebert é eleito presidente da repúbli-
ca em eleições indiretas pela Assembleia Nacional, e Philipp Sheidemann nomeado chanceler: este era
o cenário político da Alemanha no inal da Primeira Guerra Mundial. Os dirigentes alemães assinaram
com o bloco formando pelos aliados (França, Rússia e Inglaterra) o Armistício de Compíegne.
Dessa forma conirmava-se a derrota alemã na Primeira Guerra Mundial, porém o acordo não teve
preocupação de poupar a população das agressões causadas pela guerra, mas sim poupar o exército
alemão. Pouco depois assinava-se o Tratado de Versalhes em 28/05/1919, que impunha a Alemanha
cláusulas que reduziam sua área territorial e arrasou com sua economia, seria então nesse contexto que
se desenvolveria o nazismo:
O tratado de Versalhes, que tinha 200 páginas e 440 artigos fez com que a Alemanha perdesse cerca de 13,5% de seu
território potencial econômico e quase 10% de sua população; estabeleceu que o exército não poderia ter mais de
100 000 homens entre oiciais e soldados e a marinha icaria com 15 000. Não haveria Escola de Guerra, icando tam-
bém proibida a conscrição militar. (RIBEIRO,1991, p. 18)

Nessas condições, em 1919 foi fundado o Partido dos Trabalhadores Alemães, que tinha como obje-
tivo uma política antissemita, anticomunista e o não cumprimento do tratado de Versalhes. Em 1919, Adolf
Hitler se iliou ao partido, alcançando a liderança em 1920, com sua inluência alicerçada Hitler lançou as ba-
ses que transformou Partido dos Trabalhadores Alemães no Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores
Alemães (Nationalsozialistische Deutsche Arbeiterpartei) originando NAZI da primeira palavra.
Em meio a queda da produção, ao desemprego, a inlação e alto custo de vida, os nazistas tenta-
ram tomar o poder por meio de golpe de Estado em 1923.
A ocupação pela França da região do Ruhr elevou a crise, o número de desempregados chegou a
cinco milhões de pessoas e a inlação desvalorizou assustadoramente a moeda corrente alemã.
Em novembro de 1923 Hitler liderou o Putsch de Munique (golpe), a tentativa fracassou, assim
Hitler e outros líderes do levante foram presos e condenados à cinco anos de prisão, porém Hitler cum-
priu apenas oito meses de pena. Durante o período de reclusão ele iniciou a composição de Mein Kampf,
cujo conteúdo da obra se resume em raça e terra e era considerada como um livro sagrado para os na-
zistas.
Após a tentativa de golpe a popularidade do partido icou abalada, porém, com a agudização da
crise econômica, tornavam-se cada vez mais oportuno os discursos de Hitler, em que exortava a união
do povo em uma “Grande Alemanha”, incentivando o nacionalismo por meio de discursos inlamados,
mesclando conservadorismo com “revolução”, habilidade oportunista essencial para que o partido na-
zista ascendesse em meio a crise política, econômica e social.
No ano de 1925 a direita tentava somar suas forças, e uniu-se em torno da candidatura do mare-
chal Haidenburg, que foi eleito. A união dos grupos da direita deveu-se à crescente popularidade do co-
munismo na Europa, que a pouco tempo havia presenciado uma revolução na Rússia em 1917. A crise

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A intolerância gerada pelo etnocentrismo | 95

econômica só fazia por aumentar a luta de classes e a aproximação do povo aos ideais comunistas, des-
ta forma o partido nazista se camulava em torno de um socialismo hitlerista.
Em cima dos palanques Hitler pregava a igualdade entre os alemães, mas por trás das cortinas de-
monstrava que os homens são iguais, só que uns mais iguais que outros. Hitler acreditava que aqueles
que conhecem a “verdade” deveriam liderar, e aqueles que não têm capacidade para assimilar as ideias
em sua complexidade devem apenas obedecer e serem leais ao seu senhor. A seguir percebemos esta
ideia claramente:
Sou socialista, mas de um gênero de socialismo diferente [...] Eu fui um trabalhador dos mais comuns. Não toleraria que
meu motorista comesse pior do que eu. Mas a vossa variedade de socialismo é apenas marxismo. A massa dos traba-
lhadores quer apenas pão e divertimento. Jamais compreenderão o sentido de um ideal e não podemos ter a esperan-
ça de conquistá-los para uma causa. ( BURON; GAUCHGOU, 1980, p. 105-106)

Até a quebra da bolsa de Nova York em outubro de 1929, a Alemanha estava conseguindo se res-
tabelecer graças ao incentivo econômico internacional, que foi interrompido pela crise mundial, pro-
vocando um novo colapso na economia alemã e favoreceu a ascensão do partido nazista. O governo
mostrava-se incapaz de solucionar a crise, fato que contribuiu para a polarização das forças políticas e
o fortalecimento dos partidos comunista e nazista, este último inanciado por industriais e banqueiros
que temiam o crescimento do comunismo.
Nas eleições de 1930, os nazistas tiveram um crescimento considerável no parlamento, que au-
mentava a inluência nazista no poder. Além de seduzir a população, os nazistas contavam com grupos
paramilitares inanciados por industriais, que reprimiam toda manifestação política contraria às suas
ideias.
A SA – Tropas de Choque – e a SS – Tropas de Assalto – chegaram a somar cerca de 400 mil ho-
mens. Com gradual ascensão política do nazismo, Hitler em período de grande inluência exigiu o cargo
de chanceler. Consumava-se então a ascensão do nazismo ao poder formal na Alemanha.
Ao conquistar o poder o nazismo começa a mostrar suas garras mais despóticas. O primeiro pas-
so foi dissolver o parlamento, mas para isso seria preciso uma justiicativa. Os nazistas então incendia-
ram o Reichstag (parlamento) atribuindo a culpa aos comunistas. Conseguiram então um pretexto para
implantar a ditadura nacional-socialista, dissolver sindicatos, cassar o direito de greve, fechar jornais de
oposição, estabelecer censura à imprensa e implantar um terror por intermédio das tropas paramilita-
res SA, SS e Gestapo (Polícia Política) que perseguiam a oposição, judeus e diversos grupos considera-
dos inferiores.
Com a morte do presidente Hindenburg, Hitler assumiu o título de führer (guia), acumulando
as funções de presidente e chanceler. Nessas condições anunciou ao mundo a fundação do III Reich
(Terceiro Império) alemão. Posteriormente, com uma guinada na economia, Hitler via no Lebensraun
(Espaço Vital – necessidade de expansão territorial) um fator necessário e legítimo para o crescimento
da Alemanha. Esse foi um dos primeiros passos para a eclosão da Primeira Guerra Mundial.
Até o momento esta aula procurou abordar, mesmo que brevemente, o contexto político, econô-
mico e social que a Alemanha estava inserida na primeira metade do século XX. A seguir se discute as
manobras utilizadas por Hitler para inluenciar boa parte do povo alemão.

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96 | A intolerância gerada pelo etnocentrismo

A igura de Hitler
Inicialmente iremos analisar o que a imagem de Hitler representava para o povo alemão.
Hitler construiu a imagem de guia da nação, que simbolizava a ordem social e política. Em uma
hierarquia o führer era o primeiro dos cidadãos e suas decisões deveriam ser obedecidas sem nenhuma
contestação, pois ele era o representante de todo o povo, e seus desejos não eram apenas seus, mas a
vontade do povo alemão.
Desta forma Hitler passou a ser caracterizado como um salvador, o escolhido, a quem todos de-
veriam seguir e obedecer se quisessem se libertar, conquistar liberdade econômica e também afastar o
comunismo e o judaísmo da Alemanha, para isso seria necessário unir o povo germânico e realizar uma
“limpeza étnica”. Com essas atitudes Hitler conseguia um grande número de seguidores que se deixa-
vam conduzir ao “inal feliz”.
Enim, o redentor da nação, Hitler exaltava sua posição como se fosse um deus vivo (e todo deus
que se preze merece uma série de rituais) criando assim um simbolismo em torno de sua imagem. Desta
maneira Hitler airmava sua posição de guia e fortalecia os vínculos de lealdade e amor para com ele.
Dentro do misticismo nazista os gestos e símbolos tinham grande importância, pois seriam os
vínculos constantes que airmavam o nazismo. Entre estes ritos podemos citar o ato de esticar o braço
direito acima do ombro com a mão espalmada, reverenciando o führer com a saudação Heil Hitler (Salve
Hitler). Outro símbolo forte, era a suástica, considerado um símbolo mágico. Hitler justiicava a utiliza-
ção da suástica como símbolo da Alemanha nazista argumentando que ela representava a missão de lu-
tar pelo triunfo do homem ariano:
O símbolo mágico da suástica, de conhecida ancestralidade, uma espécie de cruz em movimento, sugere a energia, a
luz, o caminho da perfeição [...], a cruz gramada portava um símbolo sexual que havia tomado, historicamente, diferen-
tes signiicados; suas linhas demonstravam duas iguras enlaçadas, simulando um ato sexual – daí seu poder de excita-
ção sobre as camadas profundas e inconscientes do psiquismo. (LENHARO, 1991, p. 40)

Outro elemento para incentivar a adesão das camadas populares a suas ideias deveu-se à propa-
ganda nazista, a dirigida às massas e articulada de acordo com o sentimento das mesmas. A apelação
sentimental era a preferida dos nazistas, por comover e ser de fácil assimilação, no entanto, propagan-
das que exigissem muita relexão eram excluídas:
Hitler considerava que há pelo menos dois pontos que merecem ser ressaltados, por sua importância: o primeiro diz
respeito à própria visão de Hitler sobre o que veicular, levando em conta o que ele pensava sobre as condições mé-
dias do receptor a ser atingido. O segundo ponto diz respeito à técnica mesmo, que a níveis impressionantes de apro-
veitamento, tanto na etapa de preparação para o poder, quanto após sua conquista. A propaganda sempre deveria
ser popular, dirigida às massas, desenvolvida de modo a levar em conta um nível de compreensão aos mais baixos.
(LENHARO, 1991, p. 47)

Desta forma a propaganda interagia em um universo criado cheio de misticismo e ritos, os ingre-
dientes perfeitos para que Hitler conseguisse o aval da maioria da população e os liderasse sem contes-
tações.

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A intolerância gerada pelo etnocentrismo | 97

Texto complementar

Nazismo
(TERRA, 2008)
Regime político de caráter autoritário que se desenvolve na Alemanha durante as sucessivas
crises da República de Weimar (1919-1933). Baseia-se na doutrina do nacional-socialismo, formu-
lada por Adolf Hitler (1889-1945), que orienta o programa do Partido Nacional-Socialista dos Tra-
balhadores Alemães (NSDAP). A essência da ideologia nazista encontra-se no livro de Hitler, Minha
Luta (Mein Kampf ). Nacionalista, defende o racismo e a superioridade da raça ariana; nega as insti-
tuições da democracia liberal e a revolução socialista; apoia o campesinato e o totalitarismo; e luta
pelo expansionismo alemão.
Ao inal da Primeira Guerra Mundial, além de perder territórios para França, Polônia, Dinamar-
ca e Bélgica, os alemães são obrigados pelo Tratado de Versalhes a pagar pesadas indenizações aos
países vencedores. Essa penalidade faz crescer a dívida externa e compromete os investimentos in-
ternos, gerando falências, inlação e desemprego em massa. As tentativas frustradas de revolução
socialista (1919, 1921 e 1923) e as sucessivas quedas de gabinetes de orientação social-democrata
criam condições favoráveis ao surgimento e à expansão do nazismo no país.
Utilizando-se de espetáculos de massa (comícios e desiles) e dos meios de comunicação (jor-
nais, revistas, rádio e cinema), o partido nazista consegue mobilizar a população por meio do ape-
lo à ordem e ao revanchismo. Em 1933, Hitler chega ao poder pela via eleitoral, sendo nomeado
primeiro-ministro com o apoio de nacionalistas, católicos e setores independentes. Com a morte
do presidente Hindenburg (1934), Hitler torna-se chefe de governo (chanceler) e chefe de Estado
(presidente). Interpreta o papel de führer, o guia do povo alemão, criando o 3.º Reich (Terceiro Im-
pério).
Com poderes excepcionais, Hitler suprime todos os partidos políticos, exceto o nazista; dissol-
ve os sindicatos; cassa o direito de greve; fecha os jornais de oposição e estabelece a censura à im-
prensa ; e, apoiando-se em organizações paramilitares, SA (guarda do Exército), SS (guarda especial)
e Gestapo (polícia política), implanta o terror com a perseguição aos judeus, dos sindicatos e dos
políticos comunistas, socialistas e de outros partidos.
O intervencionismo e a planiicação econômica adotados por Hitler eliminam, no entanto, o
desemprego e provocam o rápido desenvolvimento industrial, estimulando a indústria bélica e a
ediicação de obras públicas, além de impedir a retirada do capital estrangeiro do país. Esse cres-
cimento deve-se em grande parte ao apoio dos grandes grupos alemães, como Krupp, Siemens e
Bayer, a Adolf Hitler.
Desrespeitando o Tratado de Versalhes, Hitler reinstitui o serviço militar obrigatório (1935), re-
militariza o país e envia tanques e aviões para amparar as forças conservadoras do general Franco

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na Espanha, em 1936. Nesse mesmo ano, cria o Serviço para a Solução do Problema Judeu, sob a su-
pervisão das SS, que se dedica ao extermínio sistemático dos judeus por meio da deportação para
guetos ou campos de concentração. Anexa a Áustria (operação chamada, em alemão, de Anschluss)
e a região dos Sudetos, na Tchecoslováquia (1938). Ao invadir a Polônia, em 1939, dá início à Segun-
da Guerra Mundial (1939-1945).
Terminado o conlito, instala-se na cidade alemã de Nuremberg um Tribunal Internacional para
julgar os crimes de guerra cometidos pelos nazistas. Realizam-se 13 julgamentos entre 1945 e 1947.
Juízes norte-americanos, britânicos, franceses e soviéticos, que representam as nações vitoriosas,
condenam à morte 25 alemães, 20 à prisão perpétua e 97 a penas curtas de prisão. Absolvem 35 in-
diciados. Dos 21 principais líderes nazistas capturados, dez são executados por enforcamento em
16 de outubro de 1946. O marechal Hermann Goering suicida-se com veneno em sua cela, pouco
antes do cumprimento da pena.

(Disponível em: <http://paginas.terra.com.br/arte/mundoantigo/fascismo/>. Acesso em: 11 fev. 2008.)

Atividades
1. Dê sua opinião sobre esse trecho:

Observando a trajetória humana é perceptível que uma das maiores diiculdades dos seres hu-
manos é de se relacionar socialmente, sabemos que é necessário o convívio em grupo para a ma-
nutenção e desenvolvimento do mesmo, porém antagonicamente, sentimos a necessidade de nos
isolar, abdicar tudo aquilo que nos é imposto, criar algo que se adeque perfeitamente aos nossos
anseios. Esse antagonismo deve-se ao fato de não nos identiicarmos, ou não tentar compreender
um outro indivíduo, mesmo que este pertença ao grupo étnico comum, e seja integrante da mesma
unidade, a humana, as diferenças devem ser vistas como diversidade cultural e não como um deter-
minado estágio de uma suposta evolução.

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2. Faça uma síntese sobre o nazismo.

3. O que Hitler representava para o povo alemão?

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100 | A intolerância gerada pelo etnocentrismo

Gabarito
1. Orientação: o aluno deverá responder que o ser humano, atualmente, tem diiculdade de se rela-
cionar com outro, isto porque, o capitalismo representa o ápice do individualismo.

2. Orientação: o aluno deverá contextualizar o período e o que representou o nazismo: a ascen-


são dos governos autoritários e totalitários, a intolerância com os estrangeiros – judeus – na
Alemanha, o papel de Hitler como líder carismático e a baixa autoestima da Alemanha depois de
sair derrotada da Primeira Guerra Mundial etc.

3. Orientação: Hitler construiu a imagem de guia da nação, que simbolizava a ordem social e políti-
ca. Em uma hierarquia o führer era o primeiro dos cidadãos, e suas decisões deveriam ser obede-
cidas sem nenhuma contestação, pois ele era o representante de todo o povo, e seus desejos não
eram apenas seus, mas a vontade do povo alemão. Desta forma Hitler passou a ser caracterizado
como um salvador, o escolhido a quem todos deveriam seguir e obedecer se quisessem se liber-
tar, conquistar liberdade econômica e também afastar o comunismo e o judaísmo da Alemanha,
para isso seria necessário unir o povo germânico e realizar uma “limpeza étnica”. Com essas atitu-
des Hitler conseguia um grande número de seguidores que se deixavam conduzir ao “inal feliz”.

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Subculturas
Tribos urbanas
Como exemplo de subcultura, iremos analisar um pouco do movimento punk e a gênese do mo-
vimento skinhead; para isso, precisamos nos remeter à década de 1960 e analisar as transformações que
estavam ocorrendo no âmbito conjuntural. Tais transformações abalaram conservadores e moralistas da
sociedade; essa ruptura foi marcada por diversas modiicações políticas, econômicas e sociais. Em meio a
essas alterações conjunturais, começava-se a notar e distinguir-se das demais manifestações sociais gru-
pos como skinheads e os punks, que estão intrinsecamente ligados por sua procedência operária.
Em meio a tantos acontecimentos que marcaram a década de 1960, paulatinamente esse perío-
do tornou-se frustrante para os jovens de todo o mundo, devido às derrotas nas lutas políticas às quais
muitos jovens estavam engajados, insatisfeitos com regimes ditatoriais e a política econômica adotada
em diversos países:
Nas suas andanças pelo mundo, Gabeira concluiu [...] aqui no Brasil. O objetivo direto era combater a ditadura militar e
a meta para muitos, era o socialismo. Isso se vê nas palavras de ordem das passeatas. Na França, como se vê no episó-
dio da ocupação da faculdade de Nanterre, estavam em jogo problemas ligados à ampliação das liberdades individuais,
a ideia de que as moças deveriam ter acesso ao espaço dos rapazes [...] As palavras de ordem eram anarquistas, como
“é proibido proibir” ou “a imaginação no poder” [...] Na Alemanha, onde 1968 foi forte, a característica era mais do que
cultural – vinha dos fundos da sala de aula, se falava muito em uma “universidade crítica”, mais aberta, visava-se corrigir
distorções na estrutura universitária, que vinham desde o nazismo. Nos Estados Unidos, 1968 colocava em marcha es-
tudantes lutando contra a guerra do Vietnã, contra o militarismo, contra o racismo, e havia lutas das mulheres por mais
liberdades, a questão dos hippies e outros grupos de jovens, sem falar do rock etc. (FAERMAN, 1998, p. 30)

Nesse período, a Inglaterra passava por uma crise econômica que abalou as estruturas internas
do país, levando-o a modernizar sua indústria, procurando reverter o cenário caótico que estavam atra-
vessando. Em meio a tantas modiicações, o setor mais prejudicado foi o da classe operária, principal-
mente os jovens proletários que não conseguiam inserir-se no mercado de trabalho, diicultando assim
seu meio de sobrevivência, que era essencialmente garantido pela venda de sua força de trabalho.

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102 | Subculturas

A insatisfação dos jovens empobrecidos pela crise econômica resultou em diversas manifesta-
ções culturais, que geralmente eram representadas através da música, principalmente o rock, como
o meio de protesto à situação que estavam enfrentando. Os skinheads destacaram-se pela vestimen-
ta característica de operários por serem extremamente nacionalistas, e por sua atração pela violência,
como fora notado, inicialmente, pela aproximação com os hooligans, espécie de torcida organizada que
provocaram diversas confusões nos estádios ingleses durante a Copa do Mundo de 1966, realizada na
Inglaterra. Nos anos 1970, os punks começaram a se destacar no cenário britânico utilizando vestimenta
– “visual” – agressiva; a estética punk demonstrava a quebra dos padrões, procurando incomodar a pas-
sividade dos indivíduos, subvertendo a ordem social.
Como já mencionamos, a Inglaterra atravessava uma crise econômica que, paulatinamente, se es-
tendera pela década de 1970; dessa forma, os movimentos de resistência, representados pelos jovens
proletários, tomavam força e difundiam ideias impulsionadas pela crise político-econômica, que se cen-
trava na política neoliberal, como podemos perceber a seguir:
[...] a segunda metade da década de 1970 foi marcada pela ascensão de Margareth Thatcher ao poder. Ao assumir o
cargo de primeiro ministro, Thatcher procurou pôr em prática o “liberalismo econômico”, lançando um ataque vigoro-
so contra os sindicatos e as conquistas e benefícios proporcionados pela “democracia social”, apoiando-se, assim, num
discurso conservador centrado em pontos como a defesa da autoridade, da ordem, da nação britânica e de suas tradi-
ções e valores. (COSTA, 2000, p. 32)

Os jovens, particularmente os de baixa renda, vão mostrar-se sensíveis a essa situação, enfrentando a
dura realidade do desemprego, do ócio, da falta de perspectivas, do abandono do Estado, além das necessi-
dades inerentes à condição juvenil, assim vão buscar um meio para canalizar sua revolta e desencanto.
Um dos meios encontrados para canalizar as insatisfações foi manifestado pelo movimento
punk, que demonstra sua crítica através da música, e gradualmente foi tomando força no decorrer dos
anos 1970, tendo como precursora e principal representante a banda “Sex Pistols” liderada por Malcom
McLaren. Este, também produtor da banda, percebeu a falta de perspectivas e o sentimento de descon-
tentamento, fazendo com que o “ Sex Pistols” criasse um vínculo de identiicação com os jovens através
da música por ele veiculada:
Nessa época, o empresário Malcom McLaren tirou partido desse clima social de desemprego, caos, niilismo, violên-
cia e amargura e lançou a banda “Sex Pistols”, que produziu uma verdadeira revolução no rock. A primeira apresenta-
ção ocorreu em novembro de 1975, e explosivamente, seus integrantes passaram a veicular uma crítica social violenta.
Proclamando a anarquia e a luta contra o imperialismo e a sociedade de consumo, chocando a opinião pública por se
expressarem violentamente através de palavrões, por agredirem-na com suas roupas negras, cheias de correntes e ali-
netes, e por usarem a suástica nazista como símbolo da necessidade de destruição do sistema, dos falsos valores da li-
berdade da democracia. (COSTA, 2000, p. 33)

O cenário da crise, longe de ser passageiro, era intrínseco ao próprio sistema; percepção gerado-
ra de um pessimismo sem concessões. Cabe assinalar que o signiicado punk em inglês está associado
a ideia de “coisa podre”, “abjeta”, ou ainda de “delinquente juvenil”. A intenção era trazer à tona todo lixo
e mazelas produzidas pelo sistema, suas ruínas, provocando o máximo de impacto sobre a sociedade,
demonstrando a ordem constituída através de pequenas transgressões, sobretudo no campo estético,
simbólico e comportamental. Essa concepção está bem representada pela música de Gilberto Gil, “Punk
da Periferia”. Consideremos este seguinte trecho:

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Subculturas | 103

Das feridas que a pobreza cria eu sou o pus


Sou o que de resto restaria dos urubus
Pus por isso mesmo esse blusão carniça
Fiz desse meu corpo esse make-up porcaria
Quis trazer assim nossa desgraça à luz
Sou um punk da periferia
Sou da freguesia do Ó
Ó, ó, ó, aqui prá você, sou da freguesia!
[...]
Transo lixo, curto porcaria, tenho dó
Da esperança vã da minha tia, da vovó
Esgotados os poderes da ciência
Esgotada toda nossa paciência
Eis que esta cidade é um esgoto só!

Nesse sentido, contrapondo-se ao estilo hippie, centrado na ideia de “paz e amor”, os jovens punks
vão colocar, na ordem do dia, subversão da ordem social, tanto através da transgressão às normas so-
ciais vigentes, quanto pela demonstração de uma violência simbólica, que procura incomodar a sólida
passividade dos indivíduos.
Contudo, se tal sentimento de revolta veiculado através desse novo estilo vai signiicar a possibi-
lidade de expressão e divulgação da real condição de marginalização social à qual se viam submetidos
milhares de jovens, também vai articular formas de diversão e lazer, sobretudo através da busca e vivên-
cia de novas sensações nos espaços urbanos. Portanto, podemos ressaltar que a manifestação punk não
deve ser encarada exclusivamente como pura negatividade, na medida em que tal posicionamento re-
presenta um elemento importante na construção de uma identidade coletiva própria.
O inconformismo frente ao cenário de caos e niilismo predominante vai sofrer os inluxos dos
conlitos existentes entre os diferentes grupos urbanos na Inglaterra, muitos de caráter marcadamente
reacionário, como os skinheads e os hooligans.
Diante desse fato, podemos perceber, naquele período, contradições visíveis que permeavam a
atuação da juventude inglesa, em meio ao confronto entre valores tradicionais, contudo diferencian-
do-se em boa medida daqueles agrupamentos mais reacionários. Embora possamos encontrar grupos
punks com forte inluência nacionalista – próximas ao ideário skinhead – os punks irão adotar uma pos-
tura deliberadamente anarquista, contra o sistema.

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104 | Subculturas

Essa aproximação da ideologia anarquista proporcionou uma paulatina intelectualização do gru-


po, que, por sua vez, corroborou uma crítica mais consistente com embasamento teórico, demonstran-
do compromisso não apenas de ressaltar os problemas reinantes na sociedade moderna, que tanto os
incomodava e afetava, mas também de colaborar com propostas alternativas ampliando o leque de
possibilidades de sociabilização e organização.
A tendência de aproximação da teoria anarquista é observada no trabalho da jornalista Helena
Salem:
Nesse feixe de contradições, alguns punks também se intelectualizaram lendo clássicos da ilosoia política anarquista,
como Bakunin e Malatesta, defendendo o anarcosindicalismo e o anarquismo em geral, considerando-se apóstolos da
contracultura. Eram anarcopunks, a vertente mais intelectualizada do movimento [...]. (SALEM, 1995, p. 40)

No Brasil, o movimento punk surgiu no inal dos anos 1970, nos subúrbios de São Paulo e na região
industrial do ABC, ou seja, a mesma base social proletária e marginalizada da ascendência britânica.
O cenário econômico nacional vinha sofrendo uma desaceleração após o “milagre econômico” da
ditadura militar brasileira, que caracterizou-se pelo extraordinário crescimento, e estendeu-se de 1969 a
1973, articulado com as taxas relativamente baixas da inlação. O impulso econômico deveu-se principal-
mente a empréstimos internacionais e o crescente investimento estrangeiro, principalmente da indústria
automobilística e somado a esses elementos, a exportação que, diversiicada entre produtos agrícolas e
produtos industriais, ganharam espaço graças aos incentivos dados pelo governo.
O período de grande entusiasmo econômico estava intrinsecamente articulado com o capital es-
trangeiro, proporcionando uma relação de excessiva dependência. Outro fator importante que tornou-
-se problemático, foi a necessidade, cada vez maior, de contar com produtos importados, sendo o mais
importante o petróleo, a maior fonte de energia utilizada; porém, o elemento mais preocupante e falho
da política nacional foi o descaso com o setor social que icou à margem dos investimentos, houve uma
desproporção enorme entre o avanço econômico e o incentivo a programas sociais, demonstrando a
política do “capitalismo selvagem”.
As contradições e desproporções foram chegando a limites inaceitáveis, e durante um período de
crise conjuntural a tendência seria de agravamento das condições já precárias como podemos perceber:
Durante os anos 1970, a economia capitalista passou por um sério período de retratação, agravamento pela elevação do
preço do petróleo no mercado internacional. Essa situação afetou, sobretudo, os países situados na periferia do sistema
capitalista, cuja economia subordina-se aos investimentos externos, à utilização de tecnologia estrangeira. [...] A recessão
provocou a queda das exportações brasileiras e o aumento do preço dos importados necessários à continuidade da pro-
dução industrial. As vendas da indústria automobilística nacional, incluídas as exportações, caíram 23% no início de 1981.
Várias empresas começaram a baixar a produção e demitir os empregados [...]. (RODRIGUES, 1992, p. 40-41)

Em meio à crise que se acentuava do decorrer dos anos 1980 no Brasil, a difusão do ideário punk
tornava-se propícia, tendo em vista a marginalização dos jovens proletários, características semelhantes
à dos jovens punks e skinheads ingleses. Inicialmente, as primeiras informações sobre os punks chega-
ram ao Brasil através de discos, de revistas especializadas, de jornal, enim, da mídia em geral, no inal da
década de 1970, juntamente com as primeiras informações dos skinheads. O movimento punk se con-
solidou no cenário paulistano através da gravação do LP “O começo do im do mundo” em referência ao
festival de mesmo nome ocorrido no “SESC Fábrica Pompéia” em 1982.
Dentro do movimento punk, que adentrava a década de 1980, começou a surgir rachas ideológi-
cos em que se nota um descontentamento com a postura adotada por alguns adeptos do movimento.
Entre esses rachas, surgem os skinheads brasileiros – denominando-se “carecas do subúrbio” – que pro-

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Subculturas | 105

curavam dar uma conotação mais “séria” ao movimento, inicialmente ainda seguindo algumas caracte-
rísticas punk, porém adotando uma postura nacionalista e utilizando-se de um discurso antiburguês.
Podemos perceber claramente as dissidências dentro do movimento punk:
Os núcleos iniciais de “carecas do subúrbio” vão aparecer exatamente naquelas zonas da grande São Paulo que esta-
vam envolvidas na famosa “guerra entre regiões”. Ao nível do discurso e através de ações e atitudes, começaram a cons-
truir o movimento “carecas do subúrbio” o qual se oporia àqueles que teriam “traído” a verdadeira identidade punk [...]
os futuros carecas eram jovens pobres, proletarizados, e tinham que trabalhar para sobreviver, organizavam-se em gan-
gues e autoairmavam-se através da violência, estando mais próximos a muitas das características do punk no Brasil [...].
(COSTA, 2000, p. 70-71)

Texto complementar

As tribos urbanas
(SCHIO, 2008)
Rodeadas de códigos e normas, estudadas por sociólogos e psicólogos, mal-entendidas por
muitos, crescendo e se multiplicando, mudando hábitos, costumes e práticas sociais, aí estão as tri-
bos urbanas que podem ser caracterizadas como um fenômeno juvenil dos grandes centros e que,
dia após dia, ampliam sua atuação e aumentam seus adeptos. Do que se trata?
Estamos acostumados a ver jovens “normais” em nossas comunidades e/ou cidades. O máximo
do diferente é alguém com um corte de cabelo não comum, ou com uma calça jeans toda rasgada,
ou ainda, jovens com roupa de cor exótica e cheios de correntes, pulseiras, bótons, anéis etc. Isso
não parece preocupar. No máximo, causa espanto e é motivo de gozação.
Porém, por enquanto, essa atitude é característica de nossas cidades pequenas. Nos grandes
centros urbanos (e o mundo se urbaniza cada vez mais), o diferente já se organiza, tem normas, leis,
códigos, adeptos...
Cedo ou tarde este fenômeno da juventude moderna chegará até nós. É importante que co-
nheçamos as razões de tal fenômeno para sabermos agir diante dele. Punks, skinheads, rappers, white
powers, clubbers, grunges, góticos, drag queens. Estes são apenas alguns grupamentos juvenis, cha-
mados pelos sociólogos de “tribos urbanas”, encontrados diariamente nos grandes centros. As “drag
queens”, tipo atualmente em destaque na mídia e considerado o mais exótico, são na verdade ho-
mens vestidos de mulher. Duas diferenças básicas as diferenciam dos travestis: não se prostituem
nem modelam seus corpos com silicone ou hormônios. Ser drag signiica dar vida a um persona-
gem. Eles se preocupam com a moda, possuem uma linguagem especíica e brincalhona, são irre-
verentes e apreciam os gêneros musicais contemporâneos. Podemos dizer que esse jeito, toda essa
brincadeira, essa festa, característica das drag queens, vem como uma resposta a uma série de dii-
culdades sociais importantes.

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106 | Subculturas

Os grunges, ilhos legítimos da recessão mundial, nasceram em Seatle, nos Estados Unidos, e
são caracterizados pela sua indumentária: bermudão abaixo dos joelhos, tênis sujos, barbichas, cal-
ças rasgadas etc. Eles transformaram o desleixo numa provocação aos “mauricinhos” e “patricinhas”
(ilhos de papai).
Ainda existem outros, como os rockabillies, que amam o rock dos anos 1950 e usam enormes
topetes; os góticos, que cultuam as sombras e adoram poesias românticas, além dos hippies, rasta-
faris, metaleiros etc.
Há também as tribos pós-punk que são as mais temidas devido à sua agressividade. Entre elas
estão os “carecas” (skinhead brasileiro) e os white powers (poder dos brancos). Ambas as tribos são
racistas, têm tendências nazistas e detestam homossexuais. Atualmente os punks não são encontra-
dos com facilidade, mas ainda existem alguns grupos.
A origem de todas essas manifestações parece ser a contestação. A violência, a apatia, desleixo,
a festa e a anarquia são as formas de contestação do mundo pós-moderno, dizem os sociólogos.
[...]

Atividades
1. Por que podemos airmar que a década de 1960 tornou-se frustrante para os jovens que estavam
engajados politicamente?

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2. Explique as condições que engendraram o surgimento do movimento punk na Inglaterra.

3. Explique como a letra da música a seguir mostra a insatisfação com a sociedade capitalista.

Punk da Periferia
Gilberto Gil
Das feridas que a pobreza cria eu sou o pus.
Sou o que de resto restaria dos urubus
Pus por isso mesmo esse blusão carniça
Fiz desse meu corpo esse make-up porcaria
Quis trazer assim nossa desgraça à luz
Sou punk da periferia
Sou da freguesia do Ó
Ó, ó, ó, aqui prá você, eu sou da freguesia!
[...]
Transo lixo, curto porcaria, tenho dó
Da esperança vã da minha tia, da vovó
Esgotados os poderes da ciência
Esgotada toda nossa paciência
Eis que esta cidade é um esgoto só!

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108 | Subculturas

Gabarito
1. Orientação: em meio a tantos acontecimentos que marcaram a década de 1960, paulatinamente
este período tornou-se frustrante para os jovens de todo o mundo devido às derrotas nas lutas po-
líticas às quais muitos jovens estavam engajados, insatisfeitos com regimes ditatoriais e a política
econômica adotada em diversos países.

2. Orientação: a Inglaterra atravessava uma crise econômica que paulatinamente se estendera pela
década de 1970, desta forma, os movimentos de resistência representada pelos jovens proletá-
rios tomavam força e difundiam suas ideias que foram impulsionadas pela crise político-econô-
mica, que centrava-se na política neoliberal.

3. Orientação: o aluno deverá responder que a música revela o resultado do consumo exacerbado e
a frustração de quem não consegue acompanhar as exigências do capitalismo.

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AntropologiA CulturAl Fundação Biblioteca Nacional
ISBN 978-85-7638-731-2

antroPologia cultural

Fundação Biblioteca Nacional


ISBN 978-85-387-3082-8

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