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Fundação Biblioteca Nacional

ISBN 978-85-7638-815-9

TEORIAS

TEORIAS ANTROPOLÓGICAS
www.iesde.com.br
ANTROPOLÓGICAS

TEORIAS Juarez Tadeu de Paula Xavier


ANTROPOLÓGICAS
Teorias
Antropológicas

Autor

Juarez Tadeu de Paula Xavier

2009
© 2008 – IESDE Brasil S.A. É proibida a reprodução, mesmo parcial, por qualquer processo, sem autorização por escrito dos autores e do detentor dos
direitos autorais.

X003 Xavier, Juarez Tadeu de Paula. / Teorias Antropológicas.


/ Juarez Tadeu de Paula Xavier. — Curitiba : IESDE
Brasil S.A., 2009.
224 p.

ISBN: 987-85-387-2276-2

1. Antropologia. 2. Etnologia. 3. Epistemologia. 4. Etnografia.


I. Título.

CDD 301

Todos os direitos reservados.


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Al. Dr. Carlos de Carvalho, 1.482 • Batel
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www.iesde.com.br
Sumário
Vôo panorâmico da “aventura antropológica” | 9
Introdução | 9
Campos de estudo da Antropologia | 10
Pólos de estudo da Antropologia | 11
Teorias Antropológicas | 11
Antropologias | 17

A formação da literatura antropológica | 25


Expansão Marítima | 26
Diversidade humana e cultural | 27
Luzes científicas sobre o debate da diversidade humana e cultural | 32

Evolucionismo Social: o ingresso da Antropologia na Era da Ciência | 41


Homens de Ciência | 42
Evolução como paradigma – Darwin e o conceito de homem | 43
As leis antigas – Henry James Summer Maine | 44
Teoria evolucionista na sociedade – Herbert Spencer | 45
A evolução da cultura – Edward Burnett Tylor | 47
Os estágios da sociedade humana – Lewis Henry Morgan | 47
O ramo de ouro: magia, religião e ciência – James George Frazer | 50

Antropologia Difusionista: a reação à racialização das relações humanas | 59


Antropologia Difusionista | 60
Conceitos difusionistas | 61
Escola alemão-austríaca | 63
Escola inglesa | 67
Escola norte-americana: Franz Boas (1858-1942) – teórico do Relativismo Cultural | 68
Antropologia: objeto e metodologia de investigação | 77
Método científico | 78
Émile Durkheim e o método sociológico | 79
As regras do método sociológico | 82
Marcel Mauss e a dádiva | 84

Antropologia Funcionalista: a função das instituições na manutenção da sociedade | 95


Bronislaw Malinowski (1884-1942) – o trabalho de campo e a etnografia | 97
Alfred Reginald Radcliffe-Brown (1881-1955) – estudos comparativos | 100
Edward Evan Evans-Pritchard (1902-1973) –
espaços ecológicos e os conflitos como parte integrante da sociedade | 102
Raymond Willian Firth (1901-2002) – Antropologia como interface da economia | 103
Herman Max Gluckman (1911-1975) – Antropologia situacional e as relações de divisão e fusão | 105
Victor Turner (1920-1983) – Antropologia como performance dos dramas sociais | 106
Edmund Leach (1910-1989) – precariedade e fugacidade do equilíbrio social | 107

Escola antropológica do Culturalismo Norte-Americano e seus desdobramentos | 113


Ruth Fulton Benedict (1887-1948) – Antropologia e os padrões culturais dos povos | 115
Margaret Mead (1901-1978) – A Antropologia como vocação científica e política | 118
Melville Jean Herskovitz (1895-1963) – a Antropologia do endoculturalismo | 120
Ralph Linton (1893-1953) – cultura e personalidade | 122
Ruth Landes (1908-1991) – narrativas etnográficas da experiência de campo | 124
Roger Bastide (1898-1974) – interpenetrações das civilizações | 125
Fernando Fernándes Ortiz (1881-1969) – transculturação | 126

A escola antropológica do Estruturalismo francês | 133


Claude Lévi-Strauss (1908) – o Estruturalismo | 136

A Antropologia Interpretativa ou Hermenêutica | 147


Antropologia Interpretativa: o conceito | 148
Descrição densa X descrição superficial | 149
Clifford James Geertz (1926-2006) – uma nova luz sobre a Antropologia | 151
Nova luz sobre a Antropologia | 154

Antropologia Pós-Moderna ou Crítica | 163


Novos cenários | 164
Esboço das correntes pós-modernas | 165
James Clifford (1945) – interfaces da Antropologia com a Literatura | 167
Michael Taussig (1940) – Antropologia e xamanismo | 170

Antropologia Urbana – o antropólogo e a cidade | 179


Estado da arte nas cidades contemporâneas | 180
Cidade em foco | 181
A produção da globalização e as cidades | 182
Diferenças territoriais e reorganização das cidades | 183
Antropologia Visual e a descrição etnográfica | 195
Centralidade da imagem | 195
Modelos de descrição etnográfica | 196
Roland Barthes (1915-1980) – Antropologia e a mensagem fotográfica | 199

Gabarito | 207

Referências | 215
Apresentação
O antropólogo francês Claude Lévi-Strauss recorreu com freqüência à metáfora
da carta de baralho para explicar a inversão de perspectiva proposta pela
metodologia estruturalista. Para ele, o homem se assemelha a um jogador com
as cartas que não inventou, já que o jogo é um dado da história e da civilização.
A distribuição das cartas é independente da sua vontade. As regras também
já foram definidas. Cada jogador interpreta e rearranja as cartas segundo seu
propósito, criatividade e inventividade.

A metáfora é a mais adequada para se compreender as opções que foram feitas


para a elaboração deste livro.

A Antropologia é como um jogo completo de cartas de baralho. Suas diversas


correntes teóricas e escolas são os naipes que organizam em grandes blocos suas
“afinidades eletivas”. Os baralhos são as metódicas e abordagens adotadas.

Neste livro, as teorias e escolas foram divididas em quatro naipes: o primeiro,


a gênesis da disciplina (que se ocupou dos relatos etnográficos dos viajantes);
o segundo, a construção do objeto/sujeito do “pensar” e “fazer” antropológicos
(que se ocupou dos esforços metodológicos que deram feição à disciplina); o
terceiro, a consolidação da disciplina (que se ocupou da especificidade do estudo
do homem, no sentido lato da expressão e de suas relações materiais e imateriais);
e o quarto naipe, que se ocupou das reflexões e rupturas epistemológicas nos
fundamentos da Antropologia.

Cada um desses naipes conceituais exercitou suas habilidades com as cartas/


metódicas de forma singular, no tocante ao conceito de cultura e civilização, à
pesquisa de campo, à abordagem dos indivíduos investigados, ao mecanismo
de capturação das informações, à forma de organização dos dados e às suas
interpretações e compreensões. No mesmo naipe, registram-se divergências e
polaridades nas formas de distribuição das cartas e nos seus rearranjos criativos.

A opção foi, dentro desse grande jogo de cartas, identificar os arranjos que
dialogaram e dialogam – pela convergência ou divergências – entre si. Autores/
jogadores que, mesmo com distribuições diferentes, guardaram ou guardam uma
semelhança, muitas vezes tênue, com as estratégias gerais do jogo.

Este livro tem uma estratégia de jogo. E, é claro, o autor rearranjou as cartas
segundo suas próprias “afinidades eletivas”, mas com narrativas amplas e atuais
– inclusive nos textos complementares, referências e bibliografia –, para que
aqueles que são convidados para esse jogo intelectual possam, conforme sua
criatividade, reorganizar as cartas dessa extraordinária aventura – que nunca
cessa – de compreender as razões e emoções que impulsionam mulheres e homens
a rabiscarem cotidianamente as histórias de seus sonhos, desejos e realizações.

Senhoras e senhores, façam seu jogo, como convidou-nos o velho mestre francês.
Vôo panorâmico da
“aventura antropológica”
Juarez Tadeu de Paula Xavier*

Introdução
A Antropologia é a ciência que estuda o homem, no sentido lato da expressão (gênero humano).
Em sua feição científica, ela surge na segunda metade do século XIX, na esteira do desenvolvimento das
Ciências Sociais. Desde então, constituiu um amplo leque de paradigmas – metodologias de aborda-
gem, de pesquisa e de interpretação – que formam as chamadas Teorias Antropológicas Clássicas – as
pioneiras – e as Contemporâneas (ou Modernas), que estudam e interpretam as dimensões biológicas,
culturais e sociais do ser humano.
A Antropologia (anthropos, pessoa/homem; logos, razão) é a ciência centrada no ser humano e
em suas realizações tangíveis e intangíveis – material e imaterial –, no espaço histórico e no eixo do
tempo, focada no estudo do homem e nos seus feitos sociais e culturais.
O estudo do multiverso – universo material e universo imaterial – do homem atribuiu à Antropo-
logia três aspectos fundamentais para o seu campo de pesquisa e estudo: o estudo do homem na qua-
lidade de elemento integrante de grupos organizados, organizações e formas coletivas de ação social; o
estudo da totalidade do homem como um ser histórico, com suas crenças, usos e costumes, filosofia, lin-
guagem e representações; e o estudo do conhecimento psicossomático do homem e de sua evolução.
Segundo Laplantine, “só pode ser considerada como antropológica uma abordagem integrativa
que objetive levar em consideração as múltiplas dimensões do ser humano em sociedade” (1988, p. 16).
A Antropologia é o estudo do homem por inteiro, em todas as sociedades, em todas as suas dimensões
e épocas.
* Doutor e Mestre pelo Programa de Pós-Graduação e Integração da América Latina da Universidade de São Paulo (PROLAM/USP) – linha
de pesquisa Comunicação e Cultura. Líder do grupo de pesquisa “Laboratório de Observação de Mídias Radicais”, credenciado no CNPq.
Pesquisador do universo cultural afro-descendente. Jornalista e professor universitário.
10 | Teorias Antropológicas

Campos de estudo da Antropologia


Como ciência, a Antropologia tem dois braços de estudos: a Antropologia Física (Biológica) e a
Antropologia Cultural.
A Antropologia Física estuda a natureza do homem, suas origens e evolução, estrutura anatômi-
ca, processos fisiológicos e características raciais, antigas e modernas. Divide-se em:
::: Paleontologia Humana (palaios, antigo; onto, ser; logos, estudo) ou Paleoantropologia – es-
tuda a origem da evolução humana dos primatas ao homem moderno. As fases da evolução
humana são:
::: Australopithecus (austral, sul; pithecus, macaco) – das espécies Africanus, Robustus, Anamen-
sis, Afarensis, Boisel
::: Homo habilis
::: Homo erectus
::: Homo sapiens primitivo
::: Homo sapiens
::: Homo sapiens sapiens
::: Somatologia (somato, corpo humano; logos, estudo) – estuda as variedades humanas (tipos
sangüíneos, metabolismo, adaptação);
::: Raciologia (raça, etnia; logos, estudo) – estuda a história racial do homem, suas misturas e
características físicas;
::: Antropometria (anthropos, homem; metria, medida) – estuda as medidas do corpo humano
(crânio e ossos).
A Antropologia Cultural é o campo mais amplo dos estudos antropológicos. Ela estuda as culturas
humanas no tempo e no espaço, seus desdobramentos, suas formas de construções simbólicas e suas
representações. Seu campo de pesquisa se divide em:
::: Arqueologia (archaîos, antigo; logos, estudo) – ramo que estuda as culturas remotas, subdi-
vidida em Arqueologia Clássica, que estuda as antigas civilizações letradas (Egito, Grécia, Me-
sopotâmia), e Antropologia Arqueológica, que estuda os primórdios da cultura das populações
extintas (Paleolítico – de 500 000 a 10 000 anos –, Mesolítico – 12 000 a 10 000 anos – e Neolí-
tico – 10 000 anos)1.
::: Etnografia (éthnos, povos; graphein, escrever) – ramo da ciência da cultura que descreve as
sociedades humanas.
::: Etnologia (éthnos, povos; logos, estudo) – ramo da ciência da cultura em que os pesquisado-
res utilizam os dados coletados pelos etnógrafos.
::: Lingüística – ramo que estuda a diversidade da língua humana (ciência da linguagem).

1 Paleolítico (Idade da Pedra Lascada – antiga); Mesolítico (Idade da Pedra “Média” – período intermediário); Neolítico (Idade da Pedra Polida
nova).
Vôo panorâmico da “aventura antropológica” | 11

::: Folclore – ramo que estuda as manifestações espontâneas da cultura de grupos urbanos e
rurais, conjunto das tradições, conhecimentos, crenças, lendas de um povo, expressos em seus
hábitos e costumes cotidianos.
::: Antropologia Social – ramo que estuda os processos culturais e sociais de uma sociedade ou
instituição.
::: Cultura e Personalidade – ramo que estuda as inter-relações entre a cultura e as personali-
dades.

Pólos de estudo da Antropologia


Como ciência que estuda o ser humano e suas produções materiais e imateriais, nos aspectos
físicos e culturais, a Antropologia debruça-se sobre cinco pólos principais de estudos:
::: Antropologia Biológica – é o estudo das variações das características físicas e biológicas do
homem, nos eixos de espaço e tempo, as relações morfológicas e o meio (geológico, geográfi-
co e social) e a evolução dessas particularidades.
Essa parte da Antropologia, longe de consistir apenas no estudo das formas de crânios, mensurações do esqueleto,
tamanho, peso, cor da pele, anatomia comparada das raças e dos sexos, interessa-se em especial – desde os anos 1950
– pela genética das populações, que permite discernir o que diz respeito ao inato e ao adquirido. (LAPLANTINE, 1988,
p. 17)

::: Antropologia Pré-Histórica – é o estudo do homem através dos vestígios materiais enterra-
dos no solo (ossos e marcas humanas). “O especialista em pré-história recolhe, pessoalmente,
objetos do solo. Ele realiza um trabalho de campo, como o realizado na Antropologia Social na
qual se beneficia de depoimentos vivos” (LAPLANTINE, 1988, p. 18).
::: Antropologia Lingüística – é o estudo da diversidade das línguas humanas em três aspectos:
::: etnolingüísticas (como os homens pensam e vivem) – estudo dos textos escritos e orais;
::: etnociência (como os homens interpretam seu próprio saber e saber-fazer).
::: Antropologia Psicológica – é o estudo dos processos e do funcionamento do psiquismo hu-
mano; estuda a mente e os processos mentais e sociais do ser humano em sociedade.
::: Antropologia Social e Cultural (ou Etnografia) – é o estudo do modo de produção econômi-
ca, das formas de produção técnica, da organização social e da cultura, dos sistemas de conhe-
cimento de sua difusão, do sistema de parentesco, da língua, das formas de produção artística,
da psicologia social, das crenças e da religião.

Teorias Antropológicas
As Teorias Antropológicas – Clássicas e Contemporâneas (Modernas) – construíram seus legados
científicos a partir da segunda metade do século XIX. Elas sucederam-se na linha do tempo, ampliaram
12 | Teorias Antropológicas

e consolidaram paradigmas fundamentais – modelos e formas de abordagens, estudos e observações –


para a interpretação dos modos de vida – biológico, social e cultural – do homem.
Nessa faixa de tempo, as teorias convergiam e coincidiram em diversos aspectos metodológicos
e conceituais, divergiam e se afastaram em diversos outros pontos e juntaram-se em aspectos pontuais.
A consolidação da disciplina experimentou arranjos conceituais, contradições teóricas, revisões e am-
pliações de abordagens e interpretações, como as demais disciplinas das Ciências Sociais (Sociologia,
História, Filosofia e Línguas).
Os principais centros de elaboração teórica e conceitual – Inglaterra, França, Estados Unidos,
Alemanha – ampliaram as possibilidades de estudos e interpretações das produções, históricas e con-
temporâneas dos diversos grupos humanos (isolados ou em conjunto), em todos os continentes (Europa,
América, África, Ásia e Oceania), e em grupos sociais com grandes diversidades culturais e organizativas.
Em conseqüência desse processo, produziu-se um amplo painel com as várias manifestações hu-
manas, pontilhadas pela diversidade nas formas de saber, saber-fazer e ser da humanidade.
Esse processo não se deu de forma linear e reta. As várias “escolas ”retomavam, ampliavam, revisa-
vam e “reinventavam” novas formas do olhar antropológico, abordagens e interpretações. Na arquitetu-
ra geral das teorias, entretanto, elas podem ser alinhadas, de forma geral, na seguinte linha do tempo,
a partir do século XVI:
1. Literatura “etnográfica” da diversidade e alteridade cultural;
2. Evolucionismo Social;
3. Difusionismo;
4. Escola Sociológica Francesa;
5. Funcionalismo Britânico;
6. Culturalismo Norte-Americano;
7. Estruturalismo;
8. Antropologia Interpretativa;
9. Antropologia Pós-Moderna ou Crítica.
Para efeitos didáticos, essa linha é adotada como “modelo teórico” de apresentação dos para-
digmas das escolas, que formam as Teorias Antropológicas, sem, entretanto, caracterizá-la como uma
“forma congelada”, como uma linha reta.

Articulação do olhar “etnográfico”


Como ciência, a Antropologia é filha do século XIX. Porém, antes dessa fase, registram-se várias
iniciativas de crônicas “etnográficas” feitas por viajantes, guerreiros, religiosos, exploradores, desde a an-
tigüidade clássica. Na Grécia antiga, as crônicas de Heródoto (século V a.C. – 485 [?]-420) registram suas
observações sobre os costumes, comportamentos, hábitos e usos, produção material e representação
imaterial dos povos visitados pelo pensador grego. Mas a produção dos viajantes do século XVI, com as
descobertas de novos povos e “mundos”, trouxe a temática da alteridade e diversidade humanas para o
palco central das narrativas, nos primórdios e início da reflexão antropológica.
Vôo panorâmico da “aventura antropológica” | 13

As cartas, crônicas e relatos comerciais dos viajantes pintam painéis da diversidade humana em vá-
rios pontos do mundo. Missionários, militares e, acima de tudo, os administradores descrevem os povos
e suas produções, com variados graus de precisão. Registram-se as qualidades da terra, sua fauna e flora;
a topografia (descrição minuciosa de uma localidade) das costas e do interior; o sistema de parentesco e
as formas de organização política, econômica, cultural e religiosa dos “povos do novo mundo”.
A Carta de Pero Vaz de Caminha (1450-1500) – escritor português que exerceu a função de escri-
vão da armada do navegador Pedro Álvares Cabral (1467 [1468]- 1520 [1526]) –, que narra a chegada
dos portugueses ao Brasil, é um modelo típico desses rudimentos do discurso etnográfico.
Datada de 1500, do Porto Seguro da Ilha de Vera Cruz, sexta-feira, “primeiro dia de maio”, a carta
descreve o impacto que a nova paisagem humana causou aos navegadores portugueses, quando eles
fizeram o primeiro contato com os habitantes locais:
A feição deles é serem pardos, maneira de avermelhados, de bons rostos e bons narizes, bem-feitos. Andam nus, sem
nenhuma cobertura. Nem estimam de cobrir ou de mostrar suas vergonhas; e nisso têm tanta inocência como em
mostrar o rosto. Ambos traziam os beiços de baixo furados e metidos neles seus ossos brancos e verdadeiros, de com-
primento duma mão travessa, da grossura dum fuso de algodão, agudos na ponta como um furador. Metem-nos pela
parte de dentro do beiço; e a parte que lhes fica entre o beiço e os dentes é feita como roque de xadrez, ali encaixado
de tal sorte que não os molesta, nem os estorva no falar, no comer ou no beber. (CAMINHA, 1500)

Pero Vaz de Caminha descreve a topografia da costa brasileira, a fauna e as riquezas da natureza,
os modos e costumes dos habitantes locais, suas formas de organização social, cultural e religiosa e suas
relações com os navegadores. A riqueza de detalhes, a precisão das descrições, o esquadrinhamento da
localidade conferem ao relato status etnográfico que permitiu, mais tarde, a ocupação de amplas faixas
de terra no novo território.

Antropologia Evolucionista Social


No início da jornada da Antropologia como ciência, predominou a Teoria do Evolucionismo So-
cial. O declínio das explicações teológicas sobre o homem e a natureza, pressuposto do Iluminismo2,
tonificou a procura pelas explicações científicas.
A principal característica da Teoria Evolucionista é a sistematização do conhecimento das socie-
dades “primitivas”, de primeira origem, dos primeiros tempos. Eram tidas como estágios inferiores do
desenvolvimento alcançado pelas sociedades “civilizadas”, avançadas nos planos técnico, social e cientí-
fico: todas as formas de organização das condições materiais e culturais dos homens passariam, neces-
sariamente, dos estágios primitivos aos civilizados.
Os teóricos do Evolucionismo formularam o conceito de unidade psíquica do homem, em estágios
diferentes, entre os “primitivos” e os “civilizados”: os grupos étnicos das diversas áreas geográficas do
planeta faziam parte da grande família humana, mas se encontravam em fases distintas de evolução e
desenvolvimento. Segundo Laplantine,
3
o Evolucionismo encontrará sua formulação mais sistemática e mais elaborada na obra de Morgan e particularmente
em ancient society (sociedade antiga), que se tornará o documento de referência para a imensa maioria dos antropó-

2 Movimento surgido na França do século XVII que defendia o domínio da razão sobre a visão teocêntrica, religiosa, que dominava a Europa.
Segundo os filósofos iluministas, essa forma de pensamento tinha o propósito de iluminar as trevas em que se encontrava a sociedade.
3 Morgan, Lewis H. La Société Archaïque. Paris: Anthropos, 1971.
14 | Teorias Antropológicas

4
logos do final do século 19, bem como na lei de Haeckel . [...] a ontogênese reproduz a filogênese: ou seja, o indivíduo
atravessa as mesmas fases que a história das espécies. [...] Disso decorre a identificação [...] dos povos primitivos aos
vestígios da infância da humanidade. (LAPLANTINE, 1988, p. 65-66)

Morgan conceituou três estágios de evolução da humanidade:


::: selvageria;
::: barbárie;
::: civilização.
Na base dessa teoria, floreceu e etnocentrismo5 (predominância civilizatória de um grupo huma-
no em relação a outro). No caso específico, da civilização européia em relação às demais.

Antropologia Difusionista
A Teoria da Antropologia Difusionista reage ao etnocentrismo da Teoria da Antropologia Evolucio-
nista Social. Ela procura compreender a natureza das culturas de cada povo, da origem a sua extensão,
de um grupo humano para outro. A corrente explica o desenvolvimento cultural pelo processo de difu-
são de aspectos culturais, formas culturais, de uma cultura para outra.
Os diversos povos tomam de empréstimo aspectos culturais fundamentais de outros e os adap-
tam às suas particularidades, o que provoca a evolução da cultura e explica a diversidade das manifes-
tações culturais. Os grupos humanos distintos absorvem “aspectos culturais” de um outro grupo, como
uma tendência humana.
Os antropólogos difusionistas substituem o termo raça pelo cultural e se dividem em três escolas
teóricas: a inglesa, a alemão-austríaca e a norte-americana.
Na escola alemã destacaram-se os antropólogos Fritz Graebner, Friedrich Ratzel, Léo Frobénius,
Wilhelm Schmidt; na escola inglesa, Elliot Smith, J. Perry e W. R. R. Rivers. A escola inglesa ficou conhe-
cida pelo nome de hiperdifusionista pelo fato de alguns dos seus teóricos levantarem a hipótese de
que todas as invenções do homem têm origem na civilização egípcia. Na escola norte-americana o
destaque é o antropólogo Franz Boas (1848-1942)
Seus elementos básicos são a reconstituição histórica – do passado e do presente –, e o intenso
trabalho de campo, com a coleta sistemática de dados primários, de dados colhidos em primeira mão.
Um dos principais teóricos do Difusionismo foi o geógrafo e etnólogo alemão Friedrich Ratzel
(1844-1904), “pai do conceito espaço vital”.

Antropologia da Escola Sociológica Francesa


A Escola Sociológica Francesa, ainda em parte submersa do universo cultural do século XIX, apre-
senta duas características fundamentais que contribuem para a consolidação da ciência antropológica:
a definição dos fenômenos sociais como objetos de investigação socioantropológica, e o “salto quân-
4 Ernest Heinrich Philipp August Haeckel (1834-1919), naturalista alemão.
5 Conceito que considera as normas e valores – sociais e culturais – da própria sociedade ou cultura como base de avaliação e “julgamento”
de todas as demais culturas e sociedades.
Vôo panorâmico da “aventura antropológica” | 15

tico”, a grande contribuição, a definição das regras do método sociológico de investigação. As obras de
Durkheim6 e , mais tarde, as obras de Marcel Mauss7 são decisivas para a elaboração dessas característi-
cas conceituais.
No campo da Escola Sociológica Francesa, em relação ao aspecto metódico, diz Laplantine:
É preciso apreendê-lo totalmente [o fenômeno social], isto é, de fora como uma “coisa”, mas também de dentro como
uma realidade vivida. É preciso compreendê-lo alternadamente tal como o percebe o observador estrangeiro (o etnó-
logo), mas também tal como os atores sociais vivem. [...] o que caracteriza o modo de conhecimento próprio das ciên-
cias do homem é que o observador-sujeito, para compreender seu objeto, esforça-se para viver nele mesmo a experi-
ência deste, o que só é possível porque esse objeto é, tanto quanto ele, sujeito. (LAPLANTINE,1988, p. 91)

Antropologia Funcionalista
Com os dois pés fincados no século XX, a Antropologia Funcionalista inaugura uma nova fase de
observação do olhar antropológico (intenso trabalho de campo), com a adoção da observação partici-
pante, quando o pesquisador submerge no oceano cultural da população estudada; desenvolve o mo-
delo etnográfico clássico, a monografia, e estuda, de forma sistematizada e global, os conhecimentos
de uma dada cultura. Há assim uma ruptura epistemológica, uma ruptura na forma de construir o co-
nhecimento, no campo da ciência antropológica, quando o pesquisador procura conhecer as sutilezas
e particularidades da cultura que ele se propõe a compreender, a estudar.
Essa escola dá ênfase ao estudo das instituições, formas de organizações sociais e culturais e das
suas funções para a manutenção do conjunto cultural, da totalidade da cultura de um determinado
povo.
Polonês radicado na Inglaterra, Bronislaw Malinowski (1884-1942) foi um dos principais protago-
nistas da Escola Funcionalista. Malinowski encontra-se entre os precursores do trabalho de campo, fora
dos gabinetes, no fazer antropológico. Ele radicalizou no conceito de compreensão por dentro de uma
cultura observada; rompeu com a especulação distante e instaurou a observação participante – quando
o antropólogo olha de perto a cultura estudada –; ele tira seu modelo de estudo (o funcionalismo) das
ciências naturais, como a Biologia, e estuda o homem nas dimensões social, psicológica e biológica. Sua
obra Os Argonautas do Pacífico Ocidental, de 1922, é considerada o primeiro grande estudo etnográfico
de peso.

Antropologia Culturalista Norte-Americana


A Escola Antropológica Norte-Americana pesquisa, de modo especial, a identificação dos patterns
of culture (padrões culturais). Ela procura as normatizações do desenvolvimento das culturas.
Franz Boas (1858-1942) foi o principal expoente dessa escola. A exemplo de Malinowski, Boas
desenvolveu um intenso trabalho de campo. O antropólogo se detinha no detalhe dos detalhes, para
fazer uma transcrição meticulosa da realidade.

6 Émile Durkheim (1858-1917), um dos fundadores da Sociologia moderna. Durkheim, E. As Regras do Método Sociológico. São Paulo:
Martin Claret, 2001.
7 Marcel Mauss (1872-1950), sociólogo e antropólogo francês. Mauss, M. Sociologia e Antropologia. São Paulo: Edusp, 1974.
16 | Teorias Antropológicas

Essa escola defende que as culturas, de maneira geral, são diversas, mas têm características co-
muns, padrões culturais. Esses padrões são resultados do agrupamento de complexos culturais. O pa-
drão é uma norma regularizadora que estabelece os valores de aceitação e rejeição, dentro de uma
determinada cultura. Diz Ruth Benedict (1989, p. 60), uma das principais expoentes dessa escola, que:
esta elaboração da cultura num padrão coerente não se pode ignorar como se fosse um pormenor sem importância. O
conjunto, como a ciência está a afirmar insistentemente em muitos campos, não é apenas a soma de todas as suas par-
tes, mas o resultado de um único arranjo e única inter-relação das partes, de que resultou uma nova identidade [...].

O Culturalismo Norte-Americano exerceu influência no campo das Ciências Sociais do Brasil. Gil-
berto Freire (1990-1987), autor de Casa Grande e Senzala, foi discípulo de Franz Boas e parte considerável
de sua abordagem da cultura brasileira teve como inspiração as teorias desenvolvidas pelo pesquisador
alemão, radicado nos Estados Unidos.

Antropologia Estruturalista
O antropólogo francês Claude Lévi-Strauss foi um dos principais articuladores da Escola Atropo-
lógica Estruturalista. Na década de 1940, Lévi-Strauss pesquisou os princípios da organização da mente
humana. Seu objetivo foi estudar as regras estruturantes das culturas presentes na mente humana.
Nessa linha de pesquisa, o antropólogo francês percorreu os caminhos das teorias do parentesco,
da lógica do mito, das chamadas classificações primitivas e da relação natureza versus cultura.
Para Lévi-Strauss, o Estruturalismo concebe a existência de um certo número de materiais cul-
turais sempre idênticos, como as “cartas de baralho” e o “caleidoscópio” – duas de suas metáforas pre-
feridas – que podem ser classificadas como invariantes. As diferentes possibilidades de combinações
dessas invariantes são ilimitadas. Elas constituem “leis universais que regem as atividades inconscientes
do espírito” (LÉVI-STRAUSS in LAPLANTINE, 1988, p. 138).
Em um caleidoscópio, a combinação de elementos idênticos sempre dá novos resultados. Mas é porque a história
dos historiadores está presente nele – nem que seja na sucessão de chocalhadas que provocam as reorganizações da
estrutura – e as chances para que reapareça duas vezes o mesmo arranjo são praticamente nulas. (LÉVI-STRAUSS apud
LAPLANTINE, 1988, p. 138)

Antropologia Interpretativa
No meado da década de 1960, o antropólogo norte-americano Clifford Geertz (1926-2006) de-
senvolveu a Teoria da Antropologia Interpretativa. Geertz problematiza o estudo antropológico ao pro-
por uma “leitura da leitura que os ‘nativos’ fazem de suas próprias culturas”. Ele passa a discutir o papel
político e ideológico da Antropologia e de sua escrita sobre os diversos povos.
O autor passa a estudar a cultura como hierarquia de significados (rede de significados tecida
pelos antropólogos) e a busca por uma descrição densa, intensa, do universo cultural dos povos.
Em Chicago [anos 1960] – àquela altura eu começara a lecionar e agitar – teve início e começou a se difundir um mo-
vimento mais geral [...]. Alguns, lá e em outros centros, batizaram esse desenvolvimento, ao mesmo tempo teórico e
metodológico, de “antropologia simbólica”. Mas eu, encarando tudo isso como empreendimento essencialmente her-
Vôo panorâmico da “aventura antropológica” | 17

menêutico, um esclarecimento e definição, e não como uma metáfrase ou decodificação, e pouco à vontade com as
misteriosas e cabalísticas implicações de “símbolo”, preferi ”antropologia interpretativa”. (GEERTZ, 2001, p. 27)

Antropologia Pós-Moderna ou Crítica


Nos anos 1980, autores como James Clifford, Georges Marcus, Michel Fischer, Richard Price e Mi-
chel Taussig desenvolveram a Teoria da Antropologia Pós-Moderna (Crítica). A observação crítica desses
antropólogos centrava-se nos recursos retóricos presentes no modelo textual das etnografias contem-
porâneas. Eles propõem uma mudança profunda na relação do observador com o observado, pedra de
toque do estudo antropológico. Os autores propõem a relativização da autoridade do antropólogo, e de
seu discurso; eles politizam a relação do antropólogo com a população observada.
Essa escola considera a cultura como um processo polissêmico (plural, múltiplo), com diversas
possibilidades de interpretação. Dessa forma, a etnografia é uma representação polifônica – em várias
direções – da polissemia cultural, instrumento da crítica cultural: a cultura não tem compreensões úni-
cas, unilaterais, unívocas e lineares.

Antropologias
Na atualidade, as narrativas antropológicas focam suas observações em aspectos centrais das
sociedades contemporâneas, nos feitos e representações da vida moderna: Antropologia Urbana, An-
tropologia Política, Antropologia Visual, Antropologia Multirracial, entre outras abordagens possíveis.

Antropologia Urbana
A Antropologia Urbana estuda a dinâmica urbana da sociedade atual:
::: sua forma de organização, a distribuição populacional, formas de organização da ocupação
urbana, a cidade, as práticas culturais na cidade, a cidade e sua história – a vida cotidiana, mo-
radia e a vizinhança;
::: práticas de lazer – o tempo sagrado;
::: apropriação do espaço por grupos diferenciados – os cenários, os atores;
::: imagens da cidade – representações do espaço urbano.

Antropologia Política
A Antropologia Política estuda a natureza e as formas das organizações políticas, desde as socie-
dades antigas até as atuais; os processos de formação dos sistemas políticos; as formas de ritualização
18 | Teorias Antropológicas

do poder político; a história e perspectivas dos sistemas políticos (realeza, poder divino, o colonialismo);
as relações do poder com o sistema simbólico (poder, cultura, sistema de comunicação social).

Antropologia Visual
A Antropologia Visual visa ao estudo da produção de imagens e de suas implicações culturais na
sociedade contemporânea: linguagens, meios de comunicação visual (fotografia, vídeo, televisão, cine-
ma), informação visual urbana (outdoor, pichação, muralismo) e as mídias radicais urbanas.

Antropologia das Sociedades Multirraciais


A Antropologia das Sociedades Multirraciais estuda aspectos teóricos e empíricos das relações
sociais inter-raciais numa dada sociedade: a construção social multirracial, pluralidade biológica e cul-
tural; tolerância e diversidade; racismo e cidadania; conflitos e confrontos raciais; raça (etnia, cultura,
civilizações, etnocentrismo, preconceito, racismo e discriminações); multiculturalismo; integracionismo;
ações afirmativas; globalização e identidades.

Considerações finais
As Teorias Antropológicas sucederam-se na linha do tempo, desde meados do século XIX, e multi-
plicaram as possibilidades de compreensão integral do homem, e suas produções materiais e culturais.
Elas se constituíram em paradigmas – formas de abordagem metodológicas e epistemológicas
– e em um movimento contínuo formularam teses, antíteses e sínteses teóricas e conceituais para a
compreensão da natureza do ser humano.
Esse movimento global deu-se em razão da complexidade da natureza humana e permite ao an-
tropólogo contemporâneo compreender o passado, estudar o presente e imaginar o futuro.

Texto complementar
Relaxe. Somos todos mestiços
E isso só traz vantagens, afirma o cientista que é o maior estudioso das diásporas humanas

(DORIA, 2007)
Vôo panorâmico da “aventura antropológica” | 19

O antropólogo Darcy Ribeiro não viveu para saber, mas a premiada ginasta Daiane dos Santos
parece personagem saída de seus livros: mestiça, uma brasileira ideal daquelas definidas antes de
Darcy por Gilberto Freyre, por Sérgio Buarque de Holanda, é caso de estudo. Nos números coletados
de seu DNA pelo professor mineiro Sérgio Danilo Pena a pedido da BBC Brasil, deu que Daiane é
40,8% européia, 39,7% africana, 19,6% ameríndia.
A antropologia brasileira estudou por muitos anos esta mistura de povos até chegar à famosa
conclusão de Darcy – “ser mestiço é que é bom” – mas é só de pouco tempo para cá que as ciências
biológicas vêm dizer em detalhes exatamente como ela se dá. O estudo da origem genética dos
povos começou nos anos 1950, na Europa, realizado por um jovem médico italiano criado nos anos
do fascismo. Luigi Luca Cavalli-Sforza, entrevistado pelo Aliás, não apenas inventou uma disciplina
científica. Aos 85 anos, ele é um dos mais importantes e prolíficos cientistas vivos.
Um estudioso nos moldes renascentistas, no sentido de que busca informação aproximando
áreas de conhecimento que não costumam se encontrar. Por exemplo: antropologia, genética e
matemática. Com amplo domínio das três disciplinas, após um estudo coletando amostras genéti-
cas de povos em todo o mundo, Cavalli-Sforza pôde traçar a história daquilo que batizou “a grande
diáspora humana”.
Nascemos, o Homo sapiens, na África Oriental. Por mais de metade da existência humana, per-
manecemos lá – e aí nos aventuramos para longe. Do Oriente Médio fomos para a Rússia; de lá,
uma parte foi para a Ásia e outro grupo, mais tarde, para a Europa. Da Ásia, outro ramo seguiu para
a América. Assim, em algumas dezenas de milhares de anos, fomos lentamente ganhando novos
traços. Olhos puxados aqui, pele esbranquiçada ali, pernas mais longas, torsos mais fortes. O próprio
europeu já é mestiço – dois terços asiático, um terço africano.
As técnicas do professor Cavalli-Sforza, aplicadas no Brasil, revelam aquilo que ainda nos causa
surpresa: mestiço não tem cara. Se parecemos brancos ou negros ou mulatos, índios ou não, esta
aparência não diz o que somos. “O Brasil teve a boa sorte de não ver o racismo”, diz o velho cientista
genovês. “Esta é uma herança dos portugueses”, completa, ecoando Darcy. Sim, ser mestiço é bom.
A mistura melhora o povo – dá aquilo que os geneticistas chamam de “vigor híbrido”.
1. Ser mestiço é que é bom, como dizia Darcy Ribeiro? Talvez seja surpreendente para algu-
mas pessoas que a aparência física, como cor da pele, não sejam bons indícios da herança genética.
Os brasileiros estão certamente entre os povos mais misturados do planeta, embora não sejam os
únicos. A diferença é que nenhum dos outros grupos mestiços forma um povo tão vasto. O Brasil
teve a boa sorte de não ver o racismo prosperando, como costuma acontecer noutros cantos. Isso
provavelmente vem de uma herança portuguesa, povo que já demonstrava predisposição pela mistu-
ra racial desde os tempos de suas primeiras colônias, na África. O estudo de nossas origens genéticas
apenas confirma o que já estava claro para bons observadores: a mistura entre povos e a produção
daquilo que nós geneticistas chamamos de híbridos não traz qualquer desvantagem do ponto de
vista genético. Até melhora, traz uma vantagem naquilo que chamamos de “vigor híbrido”.
2. Ainda é possível dizer que existem raças humanas? As diferenças entre povos de locais
geográficos distintos são claramente visíveis, caso de cor da pele e tamanho e formato das partes do
corpo. Estas características refletem adaptações ao clima local que surgiram após a espécie humana
se originar na África Oriental, há relativamente pouco tempo (não mais que 100 ou 150 mil anos, pe-
ríodo bastante curto na escala evolutiva) e, naturalmente, após deixar a África, há coisa de 50 ou 60
20 | Teorias Antropológicas

mil anos. De qualquer forma, essas diferenças são triviais em todos os aspectos essenciais. A grande
maioria das diferenças genéticas se encontram entre um indivíduo e outro, jamais entre um povo e
outro. Falando em números, mais de 90% das diferenças genéticas se dão entre duas pessoas de um
mesmo povo. Apenas 10% da variação se dá entre, digamos, europeus e asiáticos, entre africanos
e americanos nativos. Isso acontece porque a nossa é uma espécie muito jovem e ainda não houve
tempo evolutivo para nos diferenciarmos. Quer dizer: não existem raças distintas entre os homens.
3. A idéia de etnia ainda serve para explicar algo a nosso respeito? A utilidade do conceito
de “etnia” depende de sua definição. Para mim, diferenças étnicas são as diferenças entre os po-
vos, tanto genéticas quanto culturais. As distinções culturais são compostas pelo que aprendemos
na sociedade em que somos criados. É natural que tenhamos dificuldades na hora de entender se
um comportamento particular é determinado genética ou culturalmente. Por exemplo: o compor-
tamento criminoso é determinado pelos nossos genes ou pela nossa cultura? Está claro que em
grande parte o que determina é a cultura. Mas é difícil excluir de todo a tendência inata em alguns
casos raros. É aí que o conceito de “etnia” nos ajuda. Ele nos permite deixar para lá a questão de se
algo é cultural ou genético, principalmente nos casos em que a ciência não tem ainda a capacidade
de definir.
4. Que outras pistas a genética pode oferecer a respeito de nossa história humana? Em
geral, os lingüistas têm uma profunda dificuldade de alcançar um consenso em uma das questões
mais importantes de sua disciplina, que é a de se a linguagem surgiu uma única vez, ou se teve
múltiplas origens. Isso acontece porque a maioria desses especialistas não tem interesse em estudar
línguas de forma comparada. Como geneticista, estou convencido de que houve uma única origem
para todas as línguas faladas atualmente. Todos os humanos vivos descendem daquele grupo rela-
tivamente pequeno que viveu na África Oriental há 100 mil anos. Esta tribo cresceu numericamente
e se expandiu pelo resto do mundo, da África para o Oriente Médio, então para a Ásia e Europa.
Por definição, tribos falam a mesma língua, e a linguagem, por conta de seu gigantesco potencial
de comunicação, há de ter sido uma força importante sem a qual a grande migração que levou o
homem a todos os cantos do planeta não teria sido possível. Todos temos a mesma capacidade
intelectual de adquirir esta técnica de comunicação que é a língua. Ela, junto com nossa capacidade
de inventar novas máquinas, são as características que nos diferenciam dos outros animais. Embora,
sempre é bom lembrar, esta é uma questão de graus. Animais também se comunicam e inventam
ferramentas. A diferença na habilidade é que é tremenda.
5. O estudo das origens dos povos pode auxiliar na resolução de conflitos políticos? Nas
questões de terra, como os embates entre judeus e palestinos, não adianta saber quem estava lá pri-
meiro. A propriedade de terras tem origem histórica, a maior parte das propriedades foi adquirida
de forma violenta em guerras e, mesmo em tempos de paz, não é raro que propriedades sejam con-
quistadas por meios desonestos. No caso dos bascos, o problema sequer é de quem chegou primei-
ro. Eles são um povo muito, muito antigo. Sua língua pertence à família de línguas que se espalhou
por todo o mundo antes das ondas migratórias que trouxeram as línguas faladas atualmente na
Europa. Ainda há idiomas “primos” do basco que sobrevivem em muitos lugares, como no Cáucaso,
na China e até mesmo entre grupos de índios americanos. Em geral, as sociedades humanas tentam
desenvolver meios para minimizar os conflitos, mas ainda temos muito a caminhar até chegarmos a
um acordo que leve à paz e à justiça social que desejamos.
Vôo panorâmico da “aventura antropológica” | 21

Atividades
1. Na Antropologia, o treinamento do olhar é um dos exercícios mais importantes da observação
participante – trabalho de campo. Saber olhar e discernir a anatomia, as formas e as cores dos
objetos e sujeitos é a ante-sala da etnografia. Desenvolva uma pesquisa bibliográfica tendo como
foco principal o conceito de etnografia e de observação participante. Após a pesquisa procure
identificar os principais elementos culturais da sua cidade. Faça um pequeno relatório com as
seguintes observações:
a) Os pioneiros da cidade.

b) A principal atividade econômica.


22 | Teorias Antropológicas

c) Os principais recursos naturais da região.

2. A Antropologia é o estudo das manifestações materiais e imateriais de um povo. As manifestações


culturais permitem conhecer melhor os costumes, hábitos, crenças e valores de um povo. Na sua
região, procure identificar:
a) Qual é a principal manifestação cultural da região?
Vôo panorâmico da “aventura antropológica” | 23

b) Quais são as principais características?

c) Como você define a participação da comunidade nessa manifestação?


24 | Teorias Antropológicas

3. Que teoria inaugura a Antropologia como ciência, em que época isso ocorre, qual sua principal
característica e que conceito de homem foi formulado por ela?
A formação da literatura
antropológica
No século XVI, os povos europeus deram início a uma das maiores aventuras humanas de todos
os tempos: a Expansão Marítima. O crescimento das economias européias e de seu comércio empurrou
navegadores, comerciantes, aventureiros, administradores, religiosos e militares para além dos horizon-
tes culturais e humanos do velho continente.
Ao tropeçarem em novas terras, os aventureiros entraram em contato com novos povos, novas
paisagens, novas ecologias e novas culturas. Primeiro, o espanto; depois, a tentativa de desvendá-los.
O encontro da alteridade cultural e humana está nos primórdios da construção do discurso antro-
pológico, do estudo da complexidade da criação humana e de suas produções materiais e imateriais.
Foram artífices dessa carpintaria antropológica, em momentos distintos, Pero Vaz de Caminha1
– escrivão da armada de Pedro Álvares Cabral – autor da Carta do Descobrimento do Brasil, século XVI;
Hans Staden2, autor de Duas Viagens ao Brasil, século XVI; Jean de Léry3, autor de Viagem à Terra do Brasil,
século XVI; Jean Baptiste Debret4, autor de Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil, século XIX.
Cada um, a seu modo e tempo, descreveu a fauna, a flora e a topografia do “Novo Mundo”. Essa
imagem construída correu o imaginário coletivo europeu e ajudou a desenhar a arquitetura de uma
nova ciência social, séculos depois, chamada Antropologia.
1 Pero Vaz de Caminha (1450-1500), escritor português nomeado escrivão da armada de Pedro Álvares Cabral. Autor da carta considerada a
certidão de nascimento do Brasil.
2 Hans Staden (1525-1579), aventureiro alemão, participou de combates na Capitania de Pernambuco e na Capitania de São Vicente contra
corsários franceses e seus aliados indígenas. Foi capturado pelos Tupinambás, quase executado e devorado por eles. Resgatado retornou à
Europa, onde relatou suas aventuras pelo Novo Mundo no livro conhecido como Duas Viagens ao Brasil publicado em 1557 em Marburgo, na
Alemanha.
3 Jean de Léry (1534-1611) missionário, pastor e escritor europeu, aderiu à Reforma e tornou-se membro da Igreja Reformada de Genebra
durante a fase inicial da Reforma Calvinista. Foi integrante de um grupo de ministros e artesãos protestantes em uma viagem ao Forte Coligny,
núcleo inicial da França Antártica, que tentaria ser estabelecida no Rio de Janeiro. Junto com seu grupo foi expulso e acusado de heresia.
Escapando de ser preso e da conseqüente execução, conseguiu regressar à Europa e começou a escrever suas experiências brasileiras, que
seriam publicadas em Histoire d’un voyage fait en la terre du Brésil, autrement dite Amérique (1578), cuja versão para o português, de Alencar
Araripe e Sérgio Milliet, teve o nome de “Viagem à terra do Brasil”.
4 Jean Baptiste Debret (1768-1848), pintor e desenhista francês, membro da missão de artistas franceses solicitada por D. João VI, que chegou
ao Brasil em 1816 e ficou até 1831 dedicando-se à pintura e ao magistério artístico. Regressou à França e publica em Paris no período de 1834
a 1839 Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil, uma série de gravuras sobre aspectos, paisagens e costumes do Brasil.
26 | Teorias Antropológicas

Expansão Marítima
A Revolução Comercial dos séculos XV e XVI, ante-sala da Revolução Industrial que caracterizaria
o século XVIII, impulsionou a expansão ultramarina européia. A acumulação de capitais, recursos ma-
teriais e desenvolvimento técnico e científico legaram aos europeus as condições favorecedoras dessa
expansão.
Os diversos fatores históricos do período, como a centralização do poder nas mãos de um go-
vernante (no caso, o rei) e a canalização dos recursos da classe emergente (a burguesia) permitiram o
direcionamento de recursos materiais, econômicos e humanos para a empreitada da navegação trans-
continental. Atrás de matéria-prima, compradores e novos produtos, as naus européias cruzaram os
mares, para muito além de suas costas e paisagens.
No alicerce dessa empreitada, encontra-se a capacidade de concentração e mobilização dos re-
cursos sociais disponíveis à época, a revolução tecnocientífica do Renascimento europeu5, a retomada
da iniciativa do comércio após o período de dominação árabe6, a busca de novos recursos materiais
(ouro, prata, especiarias) e, acima de muitos dos fatores anteriores, a expansão da fé católica, depois da
expulsão dos mulçumanos dos territórios europeus, no final do século XV.
Os portugueses foram os pioneiros entre os pioneiros. A centralização do poder político em Portu-
gal, o domínio de técnicas avançadas de navegação, sua forte presença nas rotas comerciais e de trocas,
a liquidez de recursos financeiros auferidos no comércio e a posição geográfica estratégica deram aos
portugueses grande vantagem, em relação aos demais povos europeus, em especial, os espanhóis.
A principal base científica da expansão ultramarina portuguesa foi a Escola de Sagres7. Num curto
espaço de tempo, a Escola de Estudos Náuticos, fundada pelo Infante Dom Henrique, transformou-se no
mais importante centro de estudos e pesquisas das ciências marítimas.
Na Escola de Sagres desenvolveram-se instrumentos e recursos técnicos imprescindíveis para a
aventura náutica lusitana. Além de sua famosa Junta de Cartógrafos – responsáveis pelo esquadrinha-
mento dos mares nos mapas náuticos portugueses, planos de navegação com extraordinária precisão
para a época –, os portugueses aprimoraram a bússola, o astrolábio – instrumento legado aos portugue-
ses pelos sábios árabes que ocuparam o território durante séculos, a ampulheta – relógio de areia –, os
portulatos – livros com descrições precisas das regiões conhecidas – o Quadrante e as técnicas de cons-
trução naval, com o desenvolvimento da caravela. Sem os domínios e conhecimentos técnicos desses
instrumentos, a aventura portuguesa de além-mar seria uma empreitada passível de fracasso.
O desenvolvimento das caravelas foi um grande salto à frente dado pelos mestres carpinteiros
portugueses. Essa navegação era capaz de transportar de 20 a 100 homens, com áreas específicas para
o depósito de alimentos e de armas, e para os alojamentos dos marinheiros e dos capitães. A grande
inovação técnica da caravela foi a utilização de velas triangulares em mar aberto. A técnica permitiu à
navegação deslizar em ziguezague, independentemente da força e da direção do vento.
5 Renascimento europeu foi o movimento cultural que ocorreu no século XVI no norte da Europa e marcou o final da Idade Média e o início da
Idade Moderna. Fez parte das transformações culturais, sociais, econômicas, políticas e religiosas que caracterizaram a transição do Feudalismo
para o Capitalismo.
6 A dominação árabe teve início em 756 com a tomada da Península Ibérica, constituindo-se inicialmente num emirado politicamente
independente, ainda que reconhecendo a supremacia do Califado de Bagdá. Período considerado símbolo da proposta de diálogo
intercultural e inter-religioso, estendeu-se durante oito séculos até a reconquista cristã do reino de Granada em 1492 resultando na expulsão
dos muçulmanos seguida da expulsão dos judeus.
7 A Escola de Sagres foi fundada em 1417 pelo Infante Dom Henrique, que pretendia tornar mais eficiente o empreendimento marítimo-
mercantil. Representa a mudança radical e definitiva do rumo da expansão ultramarina.
A formação da literatura antropológica | 27

A Escola de Sagres deu aos portugueses uma vantagem que só depois seria alcançada pelos es-
panhóis na corrida ultramarina.
Após a expulsão moura – final do século XV – os reis católicos Fernando e Isabel8 deram início às
grandes navegações espanholas. Os monarcas forneceram suportes econômicos, logísticos, técnicos e
humanos para que o navegador Cristóvão Colombo9 desse início à viagem que o levaria, supostamente,
às Índias.
Colombo navegou em direção ao oeste até encontrar as Antilhas. Mais tarde, o navegador che-
gou às ilhas de Cuba, El Salvador e Santo Domingo.
Com o ingresso dos espanhóis à empresa da navegação, acirraram-se os conflitos europeus para
além-mar. Os governos português e espanhol disputavam palmo a palmo cada pedaço de terra e recur-
sos encontrados no “Novo Mundo”. Sob a autoridade da Igreja Católica Apostólica Romana, a intensifica-
ção dos conflitos levou os países a assinarem um acordo que passou para a história como o “Tratado de
Tordesilhas10”, que procurou disciplinar as disputas advindas dos encontros de novas terras e riquezas.
As duas nações ibéricas lançaram mão sobre as terras e riquezas nas Américas, África e Ásia.
Mais tarde, Inglaterra, França e Holanda lançaram-se à aventura ultramarina e provocaram a rup-
tura do antigo domínio dos dois povos pioneiros das empreitadas no além-mar.

Diversidade humana e cultural


A expansão dos quadrantes conhecidos do mundo provocou uma profunda ruptura nas identi-
dades dos povos europeus. As diversas culturas européias deram um padrão de comportamento e ati-
tude ante o mundo, que comportavam algumas semelhanças. Os povos encontrados no “Novo Mundo”
tinham peles diferentes, costumes distintos, comportamentos sociais desconhecidos, formas de orga-
nização religiosa “estranha” para os olhares dos recém-chegados. Para os europeus, os novos povos não
tinham organização do estado, da economia, da cultura, do poder político e militar e, acima de tudo, de
religião, se comparado às instituições européias.
A grade mental do europeu passa a ser ocupada por uma nova visão de homem e das formas de
organização das suas atividades tangíveis e intangíveis.
O encontro de novos povos e cultura provocou um profundo estranhamento na mentalidade dos
povos europeus.
O antropólogo Darcy Ribeiro (1995, p. 48) descreve da seguinte maneira o contraste provocado
no encontro entre índios11 e europeus:
O contraste não podia ser maior, nem mais infranqueável, em incompreensão recíproca. Nada do que os índios tinham
ou faziam foi visto com qualquer apreço, senão eles próprios, como objeto diverso de gozo e como fazedores do que

8 O título de reis católicos é o nome pelo qual ficou conhecido o casal composto pela rainha Isabel I de Castela e o rei Fernando II de Aragão,
que unificaram os reinos ibéricos no país que se tornou Espanha.
9 Cristóvão Colombo (1451-1506) foi um navegante genovês que descobriu a América a serviço da Espanha.
10 Tratado de Tordesilhas: tratado assinado em 1494 por Portugal e Espanha que dividia o “Novo Mundo” em duas partes: as terras a leste
pertenciam a Portugal e as terras a oeste pertenciam à Espanha.
11 Ao chegarem às Américas, os europeus imaginavam que tinham alcançado a Índia, por essa razão deram aos povos encontrados no “Novo
Mundo” o nome de índios.
28 | Teorias Antropológicas

não entendiam, produtores do que não consumiam. O invasor, ao contrário, vinha com as mãos cheias e as suas naus
abarrotadas de machados, facas, facões, canivetes, tesouras, espelhos e, também, miçangas cristalizadas em cores opa-
linas. Quanto índio se desembestou, enlouquecido, contra outros índios e até contra seu próprio povo, por amor dessas
preciosidades! Não podendo produzi-las, tiveram que encontrar e sofrer todos os modos de pagar seus preços, na me-
dida em que elas se tornaram indispensáveis. Elas eram, em essência, a mercadoria que integrava o mundo índio com
o mercado, com a potência prodigiosa de tudo subverter. Assim se desfaz, uniformizado, o recém-descoberto Paraíso
Perdido.

Em tudo eram diferentes os costumes dos europeus e o dos habitantes das novas terras, os índios
americanos.
Nesse período, a Antropologia Espontânea – narrativa e relato (cartas, diários, relatórios) – eram
feitos pelos missionários, viajantes, comerciantes, exploradores, militares e administradores das novas
terras.
Descreviam-se as riquezas da terra, a diversidade e exuberância da fauna e flora, a multiplicidade
de formas da topografia, as anatomias, formas, gostos, modelos, jeitos e traços dos povos “descobertos”
e as suas crenças e valores éticos e morais. Esses foram os primeiros relatos “etnográficos” com os regis-
tros das diversidades e alteridades humanas e culturais.
A carta do escrivão Pero Vaz de Caminha dá uma visão de como se articulavam as primeiras litera-
turas antropológicas, inauguradas com a descrição de formas e costumes de outros povos. O confronto
de costumes e crenças merece a atenção escrupulosa dos narradores de então.
Caminha descreve-lhes as formas...
os cabelos seus são corredios. E andavam tosquiados, de tosquia alta, mais que de sobrepente, de boa grandura e
rapados até por cima das orelhas. E um deles trazia por baixo da solapa, de fonte a fonte para detrás, uma espécie de
cabeleira de penas de ave amarelas, que seria do comprimento de um coto, mui basta e mui cerrada, que lhe cobria
o toutiço e as orelhas. E andava pegada aos cabelos, pena e pena, com uma confeição branda como cera (mas não o
era), de maneira que a cabeleira ficava mui redonda e mui basta, e mui igual, e não fazia míngua mais lavagem para a
levantar.

os costumes e modos...
então estiraram-se de costas na alcatifa, a dormir, sem buscarem maneira de cobrirem suas vergonhas, as quais não
eram fanadas; e as cabeleiras delas estavam bem rapadas e feitas. O Capitão lhes mandou pôr por baixo das cabeças
seus coxins; e o da cabeleira esforçava-se por não a quebrar. E lançaram-lhes um manto por cima; e eles consentiram,
quedaram-se e dormiram.

e, principalmente, práticas e costumes religiosos...


enquanto estivemos à missa e à pregação, seria na praia outra tanta gente, pouco mais ou menos como a de ontem,
com seus arcos e setas, a qual andava folgando. E olhando-nos, sentaram-se. E, depois de acabada a missa, assentados
nós à pregação, levantaram-se muitos deles, tangeram corno ou buzina, e começaram a saltar e dançar um pedaço. E
alguns deles se metiam em almadias – duas ou três que aí tinham – as quais não são feitas como as que eu já vi; somen-
te são três traves, atadas entre si. E ali se metiam quatro ou cinco, ou esses que queriam não se afastando quase nada
da terra, senão enquanto podiam tomar pé. (CAMINHA, 1500)

Na mesma linha descritiva avança o navegador Américo Vespúcio12. Ele registra com precisão
etnográfica seu percurso até as novas terras, suas fauna e flora, seus povos e seus costumes.
Vespúcio narra as formas e feições dos nativos...

12 Américo Vespúcio (1454-1512), italiano, navegador e mercador. Foi o primeiro a constatar que as recém-descobertas terras do Novo Mundo,
que receberam o nome de América em sua homenagem, constituíam um continente e não parte da Ásia.
A formação da literatura antropológica | 29

Têm os cabelos negros e crescidos; são ágeis e fáceis no andar e nos jogos, e de mui belas feições, as quais contudo a si
próprios desfiguram, furando as faces, os lábios, as ventas e as orelhas. E não se creia que os buracos sejam pequenos
ou tenham apenas um, pois vi muitos com sete, cada um dos quais tão grandes como um abrunho. Tapam estes bura-
cos com bonitas pedras azuis de mármore, cristalinas ou de alabastro, e com ossos alvíssimos e outros objetos elabora-
dos segundo seu uso, que é insólito e monstruoso. Homens há que levam nas faces e lábios sete pedras, cada uma de
metade da palma da mão de comprido. Não sem admiração, muitas vezes achei pesarem essas sete pedras dezesseis
onças, além das que trazem pendentes de três buracos nas orelhas. (VESPÚCIO, 2007)

Dos hábitos culturais...


não se dão à caça; penso que porque havendo aí muitas sortes de animais, maxime leões e ursos e muitas cobras e ou-
tros bichos hórridos e disformes, e porque os bosques são extensos e as árvores muito grandes, não ousam arriscarem-
se nus e sem comprimento a tantos perigos. (VESPÚCIO, 2007)

das terras...
a terra daquelas regiões é fértil e amena, de muitos montes e morros, e infinitos vales, e regada de grandes rios e fontes,
coberta de extensos bosques, densos e apenas penetráveis, e povoada copiosamente de feras de todas as castas. Nela
nascem, sem cultura, grandes árvores, as quais produzem frutos deleitosos, e de proveito ao corpo e nada nocivos, e
nenhuns frutos são parecidos com os nossos. Produzem-se inumeráveis gêneros de árvores e raízes, de que fabricam
pão e ótimos mingaus, além de muitos grãos ou sementes não semelhantes aos nossos.

e das riquezas naturais...


as pérolas abundam nesta região, como em outro lugar escrevi. Seria demasiado prolixo e descomedido se quisesse
dar conta uma por uma de todas as coisas dignas de notícia e das numerosas espécies e multidão de animais. E verda-
deiramente creio que o nosso Plínio não conseguiu tratar da milésima parte dos animais, nem dos papagaios e outros
pássaros, os quais, naqueles países, são de formas e cores tão variadas, que o artista Policleto não conseguiria pintá-los.
Todas as árvores tão odoríferas, e produzem gomas ou óleos, ou algum outro licor, cujas propriedades todas, se fossem
conhecidas, não duvido que andaríamos todos sãos. E por certo que se o paraíso terreal existe em alguma parte da
terra, creio que não deve ser longe destes países, ficando situado ao meio dia, com ares tão temperados, que nem no
inverno gela, nem no verão faz calor. (VESPÚCIO, 2007)

São esses relatos e narrativas que foram o chassi das narrativas antropológicas primordiais, pré-
científicas; da antropologia “espontânea”. Se ela é uma constante desde os tempos antigos, nos relatos e
histórias dos viajantes da Antigüidade, essas narrativas do século XVI tomam novas formas e contornos,
com o advento da aventura ultramarina. O contato com povos diferentes, com costumes, hábitos e for-
mas de organização da vida material e imaterial distintas das dos europeus, em escala até então pouco
experimentada, impulsionou a reflexão sobre o homem e seus feitos.
Estavam dadas assim, com o encontro de dois mundos distintos, as bases para a reflexão da natu-
reza humana dos novos povos e novos mundos encontrados.
Para o antropólogo Laplantine (1987, p. 37), esse encontro é a gênese da “reflexão antropológi-
ca”. Ele destaca uma questão central do contato com a alteridade, do confronto visual com a diferença:
os novos povos descobertos pelos navegadores pertencem à humanidade? A reposta a essa questão
fundamenta-se, à época, nas escritas religiosas. A questão é colocada dentro dos seguintes parâmetros:
O selvagem tem alma? O pecado original também lhes diz respeito? (LAPLANTINE, 1987, p. 37-38).
Na busca de resposta a essa questão, na metade do século XVI, a arena da polêmica é ocupada
por dois dos maiores polemistas do período. Em defesa da natureza humana dos índios encontra-se o
30 | Teorias Antropológicas

missionário dominicano Bartolomeu de Las Casas13; no lado oposto, na defesa da negação da natureza
humana dos indígenas encontra-se o jurista Juan Ginés de Sepúlveda14.
Las Casas acentua as realizações humanas desses povos. O missionário compara, para fortalecer
seu argumento, as realizações dos povos encontrados com os povos europeus, e conclui, em alguns
aspectos, com a superioridade dos primeiros em relação aos segundos:
Àqueles que pretendem que os índios são bárbaros, respondemos que essas pessoas têm aldeias, vilas, cidades, reis,
senhores e uma ordem política que, em alguns reinos, é melhor que a nossa [...]. Nós mesmos fomos piores, no tempo
de nossos ancestrais e sobre toda a extensão de nossa Espanha, pela barbárie de nosso modo de vida e pela deprava-
ção de nossos costumes. (LAS CASAS apud LAPLANTINE, 1987, p. 38-39)

O missionário dominicano15 terá, mais tarde, papel decisivo na escravização dos africanos, negan-
do-lhes a mesma natureza humana atribuída aos nativos americanos.
Na outra linha da contenda, posiciona-se o jurista Sepúlveda. Sua argüição tem caminho oposto
ao de Las Casas. De forma enfática, nega aos nativos qualquer possibilidade de natureza humana e de-
fende, sem cerimônia, a submissão dos indígenas aos europeus:
Aqueles que superam os outros em prudência e razão, mesmo que não sejam superiores em força física, aqueles são,
por natureza, os senhores; ao contrário, porém, os preguiçosos, os espíritos lentos, mesmo que tenham as forças físi-
cas para cumprir todas as tarefas necessárias, são por natureza servos. [...] E se eles recusarem esse império, pode-se
impô-lo pelo meio das armas e essa guerra será justa, bem como o declara o direito natural que os homens honrados,
inteligentes, virtuosos e humanos dominem aqueles que não têm essas virtudes. (SEPÚLVEDA apud LAPLANTINE, 1987,
p. 39)

Não se furta a esse debate da época uma figura importante na colonização do Brasil, o padre Ma-
noel da Nóbrega16. Segundo Darcy Ribeiro (1995), Nóbrega, em 1558, defende um plano de colonização
que implica a eliminação dos nativos, ou escravização dos que não forem eliminados. Ribeiro dá ênfase
à “eloqüência espantosa” de Nóbrega para pôr fim à antropofagia17: era necessário dar fim “a boca infer-
nal de comer a tantos cristãos”.
“Se S. A. [Sua Alteza] os quer ver todos convertidos, mande-os sujeitar e deve fazer estender aos cristãos por a terra
dentro e repartir-lhes os serviços dos índios àqueles que os ajudarem a conquistar e senhoriar como se faz em outras
terras novas [...]. Sujeitando-se o gentio, cessarão muitas maneiras de haver escravos mal havidos e muitos escrúpulos,
porque terão os homens escravos legítimos, tomados em guerra justa e terão serviços de avassalagem dos índios e a
terra se povoará e Nosso Senhor ganhará muitas almas e S. A. terá muita renda nesta terra porque haverá muitas cria-
ções e muitos engenhos, já que não haja muito ouro e prata [...] (NÓBREGA in RIBEIRO, 1995, p. 50-51)

Segundo Darcy Ribeiro (1995), essa polarização sobre a natureza humana do indígena no Brasil
vai perdurar durante um longo tempo, no início da ocupação territorial. Ela se expressará em conflitos
pontuais entre os projetos de ocupação e a política dos jesuítas.
Apesar de o projeto jesuítico de colonização do Brasil nascente ter sido formulado sem qualquer escrúpulo humanitá-
rio, tal foi a ferocidade da colonização leiga, que estalou, algumas décadas depois, um sério conflito entre os padres da

13 Bartolomeu de Las Casas (1472-1566) era espanhol e frei dominicano que converteu-se à causa da evangelização pacífica dos índios,
denunciando os abusos cometidos e dedicando-se à defesa da vida, da liberdade e dignidade do índio.
14 Juan Ginés de Sepúlveda (1490-1573), jurista espanhol, baseava em Aristóteles a fundamentação teórica para sua tese de escravidão
natural dos índios.
15 Las Casas, é certo, tendo aconselhado primeiramente a introdução de negros nas Índias, caiu depois em si, vendo a injustiça com que
os tomavam os portugueses. Porque, diz “la misma razón es de ellos que de los índios”. Contudo, a História de las Índias, onde figura essa
retratação, apesar de ter circulado logo em manuscritos, só encontraria seu primeiro impressor três séculos após a morte de Las Casas. De
qualquer modo, sua denúncia do tráfico e escravidão dos negros não encontrou a larga ressonância que tivera a campanha pela liberdade dos
índios” (HOLANDA, 2000, p. 375).
16 Padre Manuel da Nóbrega (1517-1570) foi um sacerdote jesuíta português, chefe da primeira missão jesuítica à América.
17 Antropofagia é o ato de consumir uma parte, várias partes ou a totalidade de um ser humano.
A formação da literatura antropológica | 31

18
Companhia [de Jesus] e os povoadores dos núcleos agrário-mercantis. Para os primeiros, os índios, então em declí-
nio e ameaçados de extinção, passaram a ser criaturas de Deus e donos originais da terra, com direito a sobreviver se
abandonassem suas heresias para incorporarem ao rebanho da Igreja, na qualidade de operários da empresa colonial
19
recolhidos às missões [jesuíticas] . Para os colonos, os índios eram um gado humano, cuja natureza, mais próxima de
bicho do que de gente, só os recomendava à escravidão. (RIBEIRO, 1995, p. 53)

Dessa forma, no início do debate da natureza humana emanada da alteridade e diversidade cul-
tural e humana, o núcleo central da discussão é de ordem religiosa, entre os que praticam a religião
cristã e os outros, destituídos da prerrogativa humana delegada pela religião.
A esse respeito, Holanda (2000) dirá:
Não parece excessivo, pois, dizer que muitos dos antigos missionários do Brasil que, agindo embora à maneira de Frei
Bartolomeu de Las Casas, deveriam parecer-se um pouco, no seu pensar, com Ginés de Sepúlveda, o acre opositor
do Apóstolo das Índias [Las Casas] e partidário do Campelle intrare até o extremo da violência intolerante contra os
bárbaros americanos. Assim é de crer que veriam no gentio muito mais o “perro cochino” do que o “bom selvagem”.
(HOLANDA, 2000, p. 378)

Tangencial à discussão da natureza humana dos indígenas, outro debate aflora dos textos e nar-
rativas do período dessa Antropologia “espontânea”: a natureza da terra (flora, fauna, riquezas natu-
rais, clima e condições humanas). Algumas narrativas apontam a natureza degradante das novas terras,
impróprias para o desenvolvimento das potencialidades humanas. Outras, pelo contrário, destacam a
natureza generosa da terra e de suas condições, comparadas ao paraíso terrestre.
Dentro do universo dessas duas visões, a natureza humana era pendular: ora uma natureza boa
com pessoas de segunda qualidade, ora uma natureza má com pessoas de primeira qualidade.
O historiador Sérgio Buarque de Holanda (2000) registrará as diversas visões do paraíso que circu-
laram entre as narrativas dos primeiros períodos da colonização das Américas.
Uma visão nostálgica do paraíso...
de uma parte, a polêmica dirigida contra a miséria do tempo presente, amparada no louvor e nostalgia de um passado
venturoso e idílico, iria aparentemente favorecê-la. Essa polêmica sabe-se que é de todos os tempos, mas quando se
torna singularidade viva é nos tempos medievais, dando causa até as fórmulas estereotípicas com a do ubi sunt, de que
a balada mais célebre de François Villon é exemplo ilustre, mas não o único. (HOLANDA, 2000, p. 229)

...e outra visão corrompida...


por outro lado, a idéia da corrupção desse nosso mundo e da natureza, em conseqüência do Pecado e da Queda, acha-
se implantada em todo o sentimento e pensamento cristão, e deita claramente raízes nas Sagradas Escrituras. Não cus-
taria distingui-las já no Gênesis, quando alude à maldição divina lançada sobre a própria terra, que passaria agora a dar
cardos e abrolhos. E ainda, para também recorrer ao Novo Testamento, naquele passo da Epístola dos Romanos (8:22),
onde está dito que toda a criação, e não somente a espécie humana, “geme e padece até hoje”, por culpa do primeiro
homem. (HOLANDA, 2000, p. 229)

Essas visões distintas da natureza e do homem é a grade de fundo que permeia todo o debate da
diversidade humana e cultural, antes do Iluminismo20. O debate estava preso à concepção religiosa de
mundo. Navegantes, militares, administradores e, acima dos demais, os religiosos sacavam dos textos

18 A Companhia de Jesus foi criada em 1534 pelo espanhol Inácio de Loyola com o objetivo de combater o Protestantismo e através de seus
missionários espalhar a fé cristã.
19 As missões jesuíticas funcionavam como pequenas colônias independentes subordinadas diretamente à Igreja Católica. Seus missionários,
os padres jesuítas, eram os responsáveis pela evangelização e catequização dos povos colonizados.
20 Iluminismo é o nome do movimento surgido na França do século XVII e que defendia o domínio da razão sobre a visão teocêntrica que
dominava a Europa desde a Idade Média. Segundo os filósofos iluministas, essa forma de pensamento tinha o propósito de iluminar as trevas
em que se encontrava a sociedade. Os pensadores que defendiam esses ideais acreditavam que o pensamento racional deveria ser levado
adiante substituindo as crenças religiosas e o misticismo, que, segundo eles, bloqueavam a evolução do homem.
32 | Teorias Antropológicas

sagrados às bases de suas argüições para explicar as diferenças da natureza humana, explicitada pelo
encontro entre os povos e culturas do velho mundo com os povos e cultura dos novos mundos.
Ora, sucede que o paraíso terrestre é, pela sua própria essência, inatingível aos homens, ou, na melhor hipótese, só
pode, talvez, ser alcançado à custa de ingentes e sobre-humanos esforços. De fato, só com o declinar do mundo me-
dieval é que a idéia da corrupção e da degenerescência da natureza poderá afetar mais vivamente aqueles para quem
a salvação eterna se torna, cada vez mais, um ideal longínquo e póstumo. Ao mesmo tempo irá esbater-se pouco a
pouco, embora teoricamente ainda válida, a crença de que o Céu, um Céu sempre mais distante, cuida de interferir a
todo o momento nos negócios profanos. (HOLANDA, 2000, p. 230)

A Antropologia aguardará ainda a emancipação do debate sobre o homem e suas realizações da


esfera religiosa para a esfera científica das explicações teológicas para as compreensões da razão hu-
mana. Os séculos seguintes – XVII e XVIII – serão atravessados por essa polêmica, intensificada desde o
período em que os europeus aportaram numa nova paisagem humana e ecológica.

Luzes científicas sobre o debate


da diversidade humana e cultural
Nos séculos que se seguiram às grandes navegações, paulatinamente, o debate da natureza
humana e das suas realizações migrou do universo do sagrado para o universo da Ciência. Ante a nova
realidade apresentada, a Ciência tateava explicações plausíveis, racionais e reais para a diversidade hu-
mana e cultural. Esse tema será o epicentro das discussões humanísticas, inaugurada pelo Iluminismo.
Aos poucos, saem da arena da polêmica os teólogos, que são substituídos pelos filósofos dos séculos
XVII e XVIII.
Essa migração prepara a estrada pela qual desfilaram, no século seguinte, as primeiras teorias
científicas dos descolamentos humanos nos eixos do espaço e do tempo, e a mensuração de suas reali-
zações materiais e imateriais, que receberá o nome de Antropologia.
Lilia Moritz Schwarcz (1993) considera o debate da diversidade como sendo central nesse período.
A antropóloga destaca o papel desempenhado pelo Iluminismo nesse período.
Segundo Schwarcz:
Herdeira de uma tradição humanista, a reflexão sobre a diversidade se torna, portanto, central quando, no século XVIII,
a partir dos legados políticos da Revolução Francesa e dos ensinamentos do Iluminismo, estabelecem-se às bases filo-
sóficas para se pensar a humanidade enquanto totalidade. Pressupor a igualdade e a liberdade como naturais levava
à determinação da unidade do gênero humano e a certa universalização da igualdade, entendida como um modelo
imposto pela natureza. A igualdade de princípios era inscrita na constituição das nações modernas, delegando-se às
“diferenças” um espaço “moralmente neutro” (DUMONT, 1966, p. 322). Afinal, os homens nascem iguais, apenas sem
uma definição completa da natureza. (SCHWARCZ, 1993, p. 44-45)

Dá-se um salto extraordinário, em relação ao período anterior. O Iluminismo lança luzes diferen-
tes no debate sobre a diferença humana e cultural. Procuram-se, não mais nos textos sagrados, mas nas
reflexões teóricas e conceituais, as respostas para tamanha diversidade e alteridade.
A formação da literatura antropológica | 33

No campo científico, desdobram-se várias teorias que procuram dar conta da complexidade
humana: surge o conceito de raça, as explicações da origem humana pelo monogenismo21 ou poligenis-
mo22 até se chegar à evolução como paradigma, modelo do desenvolvimento humano.
No novo debate inaugurado pelo Iluminismo tomam assento duas das principais figuras de proa
da filosofia ocidental: o genebrino Jean-Jacques Rousseau (1712-1778) e o alemão Georg Wilhelm Frie-
drich Hegel (1770-1831).
No itinerário desse debate, Rousseau elabora o conceito-chave de sua teoria: a perfectibilidade
humana. Segundo o filósofo, em liberdade, os homens seriam capazes de resistirem aos ditames da na-
tureza, uma especificidade humana, estatuto da condição humana, em contato direto com a natureza
ou com a civilização.
Nessa linha, Rousseau desenvolve o conceito do bom selvagem. Ao erigir essa figura, o genebrino
não exaltou a animalidade do selvagem, mas a sua humanidade ante o civilizado. Para ele, a civilização
é a responsável pela degeneração das relações morais. As regras morais e a etiqueta podem esconder as
formas mais vis e egoístas da natureza humana. Diferente seria a vida do homem primitivo.
O primitivo seria feliz por viver em conformidade com suas necessidades inatas: seria auto-sufi-
ciente em sua existência isolado na floresta. O homem natural é dotado de livre-arbítrio e do sentido de
perfeição. Nessa fase de sua existência, o homem primitivo vive sua idade do ouro, “a meio caminho da
brutalidade das etapas anteriores e a corrupção das sociedades civilizadas” (ROUSSEAU, 1987, p. XIII).
Pergunto qual das duas – a vida civil ou a natural – é mais suscetível de tornar-se insuportável. À nossa volta vemos
quase somente pessoas que se lamentam de sua existência, inúmeras até que dela se privam assim que podem... Per-
gunto se algum dia se ouviu dizer que um selvagem em liberdade pensa em lamentar-se da vida e querer morrer.
Que se julgue, pois com menos orgulho, de que lado está à verdadeira miséria. (ROUSSEAU, 1775/1978, p. 251 apud
SCHWARCZ, 1993, p. 45)

Em Introdução à História da Filosofia (1816), Hegel mostra como a Filosofia está ligada à história,
ao desenvolvimento do acontecer histórico. Hegel pinta, com cores carregadas, uma imagem negativa
da América do Sul em relação à América Norte. Aos continentes africano e asiático, o pensador alemão
reserva uma imagem ainda mais degradante: imagem paralisada em sua natureza hostil, e incapaz de
participar da História Universal da Humanidade.
[...] A diferença entre os povos africanos e asiáticos, por um lado, e os gregos e romanos e modernos, por outro, reside
precisamente no fato de que estes são livres e o são por si; ao passo que aqueles o são sem saberem que o são, isto
é, sem existirem como livres. Nisso consiste a imensa diferença das suas condições. Todo o conhecimento e cultura, a
ciência e a própria ação não visam a outro escopo senão a exprimir de si o que é em si, e desse modo a se converter em
objeto de si mesmo. (HEGEL, 1980, p. 335).

Numa única penada, Hegel divide as realizações dos africanos e asiáticos (Novo Mundo) de um
lado e dos gregos e romanos (Velho Mundo), de outro. Ele saca do universo do conhecimento, da cultura
e da ciência, os povos incorporados à sinfonia da humanidade, com o advento das grandes navegações.
Abre-se a brecha no campo da Ciência para se questionar a natureza humana desenvolvida ou
atrasada, com fortes conotações pré-concebidas.
Laplantine (1987, p. 45) observa essa carga preconceituosa:

21 Monogenismo é a teoria que considera todas as raças humanas provenientes de um tipo único primitivo.
22 Poligenismo é a teoria que considera que as diferentes raças humanas derivariam de diferentes espécies primitivas.
34 | Teorias Antropológicas

Tudo, na África, é nitidamente visto sob o signo da falta absoluta: os “negros” não respeitam nada, nem mesmo eles pró-
prios, já que comem carne humana e fazem comércio da “carne” de seus próximos. Vivendo em uma ferocidade bestial
inconsciente de si mesma, em uma selvageria em estado bruto, eles não têm moral, nem instituições sociais, religião ou
estado. Petrificados em uma desordem inexorável, nada nem mesmo as forças da colonização, poderá nunca preencher
o fosso que os separa da história universal da humanidade.

As reflexões dos dois pensadores atualizam, no século XVIII, os debates dos séculos anteriores.
Estes, com a marca da racionalidade e dos pressupostos científicos; aqueles com a marca da explicação
teológica sobre a diversidade e alteridade humana e cultural.
Rousseau, na sua argumentação, lança mão de uma unidade humana, distorcida depois com a
cultural e o advento da propriedade privada. O bom selvagem é aquele que possui o livre arbítrio e,
longe das amarras da civilização, constrói seu universo de representações, pois está sob a égide da
“perfectibilidade humana”.
Hegel, na linha da Fenomenologia do Espírito (1807), divide a humanidade entre os possuidores
de cultura e aqueles que se encontram à margem dessa civilização. Os primeiros seriam os herdeiros dos
legados dos gregos e dos romanos; os segundos, dos africanos e asiáticos, povos recém-incorporados
ao universo das civilizações européias. Dessa forma, segundo o autor, eles estariam fora do pensamen-
to, da ciência e da cultura.
A grande diferença da polêmica tratada por esses dois pensadores do século XVIII em relação à
polêmica dos séculos anteriores é a reivindicação dos estatutos científicos do debate.
Aos poucos, a concepção de homem e das suas ações históricas deixou as fronteiras da Teologia
e ingressa no campo das Ciências.
Essa transição das compreensões da natureza e diversidade humanas do universo teológico para
o científico é a pedra angular da nova ruptura provocada no campo da Antropologia, que passa de es-
pontânea para a arena das Ciências Sociais, com o advento do século XIX.

Considerações finais
O período da pré-história da Antropologia percorreu um longo trajeto, do século XVI aos séculos
XVII e XVIII. Na primeira fase, a Antropologia Espontânea era um exercício de aventureiros e viajan-
tes. Seus registros minuciosos descreveram com precisão etnográfica os costumes, hábitos, crenças,
produção, forma de circulação e consumo dos novos povos encontrados com o advento das grandes
navegações.
Nos seus primórdios, as construções teóricas para explicar a diversidade e alteridade humana e
cultural baseavam-se nos textos sagrados, nas Escrituras Sagradas. Nessa fase, colocou-se uma questão
essencial: a natureza divina dos novos povos. A resposta a essa pergunta foi crucial para o desdobra-
mento cultural e humano desses povos, na África, América e Ásia.
Com o Iluminismo, procuram-se nas concepções científicas as explicações sobre a natureza hu-
mana e suas implicações históricas. A existência dos homens e de suas realizações deve justificativas
não mais à fé teológica, mas à razão científica.
Essa é a ante-sala da experiência que permitirá, nos séculos seguintes, à Antropologia firmar-se
como ciência social e definir seus campos de pesquisa, suas metódicas e seus paradigmas científicos.
A formação da literatura antropológica | 35

Texto complementar
Américo Vespúcio (em italiano Amerigo Vespucci) (1454-1512). Mercador, navegador, cosmógra-
fo e explorador. Viajou pelo Novo Mundo escrevendo sobre essas terras a Ocidente da Europa. Vespúcio
encarregou-se em Sevilha do aprovisionamento de navios para a segunda e a terceira viagens de Cris-
tóvão Colombo.

Mundus Novus
(VARNHAGEN, 2007)
Há dias lhe escrevi extensamente acerca do meu regresso das terras novas, que, na frota a ex-
pensas deste Sereníssimo rei de Portugal, corremos e descobrimos; as quaes terras nos deve ser per-
mitido chamar Novo Mundo, porque, entre os nossos maiores, não houve o menor conhecimento
de que fossem habitadas, e, para todos que ouvirem, será uma novidade. E, entretanto, esta opinião
vai além da dos antigos, pois, deles, a maior parte dizia que, além da equinocial, para a banda do
meio-dia, não existia terra continental, mas somente o mar Atlântico, e os que afirmaram haver aí
terra negaram que fosse habitada de racionais. Mas, o ser esta opinião falsa e a contrária verdadeira,
se provaram nesta minha última viagem, pois naqueles meridianos encontrei terra continental ha-
bitada de mais povos e animais que a nossa Europa e a Ásia ou África, e os ares mais temperados e
amenos que em qualquer outra região conhecida, conforme direi, tratando do que vi ou ouvi digno
de notar neste Novo Mundo e segundo se verá mais abaixo.
Aos 14 de maio de 1501 partimos de Lisboa por ordem do dito rei, com três navios, em busca
das novas terras austrais. Com viagem feliz, navegamos, de contínuo, dez meses para as bandas do
sul, pela forma seguinte. Fizemos caminho pelas ilhas, antes ditas Fortunadas, e que hoje se dizem
Grã-Canárias, que ficam no terceiro clima e confins do ocidente povoado. Depois corremos, pelo
oceano, todo o litoral africano e parte do etíope, até o promontório chamado de Etíope por Ptolo-
meu; o qual agora, pelos nossos, se diz Cabo Verde e pelos etíopes Bezeguiche, e a região Mandinga,
em 14.º ao norte da equinocial, habitada por pretos. [...]
[...] No dia 17 de agosto de 1501 surgimos na costa daquela terra, agradecendo a Deus, com
solemnes preces, e celebrando uma missa cantada, a qual terra reconhecemos não ser ilha, mas sim
um continente, pois corremos ao longo do seu litoral, sem a rodear, e era povoada de inúmeros ha-
bitantes e de muitas sortes de animais silvestres, que não se encontram nos nossos países, e muitas
outras coisas nunca de nós vistas, que seria longo de referir. Muito devemos à clemência de Deus,
que nos fez aportar naquela região, porque já nos faltava água e lenha, e poucos dias mais podería-
mos aturar no mar. Por isso a ele honra e glória em ação de graças.
[...] Andaríamos vagos e errantes, se não nos valêssemos dos nossos instrumentos de tomar a
altura – o quadrante e o astrolábio, bem conhecidos. E assim, desde então, todos nos fizeram muita
honra, e lhes provei que, sem conhecimento da carta de navegar, não há disciplina que valha para a
navegação, a não ser pelos mares já pelos mesmos indivíduos muito navegados.
36 | Teorias Antropológicas

[...] Uma parte deste continente jaz na zona tórrida, ao sul da equinocial desde o oitavo grau.
Tanto ao longo dele navegamos que, passado o trópico de Capricórnio, chegamos à altura de cin-
qüenta graus, na distância de dezessete e meio do circulo antártico. E do que vi e investiguei da
natureza daquelas gentes, dos seus costumes e trato, da fertilidade da terra, da salubridade dos
ares, da disposição do céu e dos corpos celestes, e, especialmente das estrelas fixas da oitava esfera,
nunca aos nossos maiores vistas ou tratadas, passarei a dar conta.
Começarei pela gente. Foi tanta a multidão dela, mansa e tratável, que encontramos naquelas
regiões, que, como diz o Apocalipse, não se pôde contar. Os de um e outro sexo andam nus, sem
cobrir nenhuma parte do corpo, como saem dos corpos das mães, e assim vão até a morte. Têm os
corpos grandes e robustos, bem dispostos e proporcionados, de cor tirante a vermelha, o que, se-
gundo creio, lhes procede de serem tintos pelo sol, andando nus.
Têm os cabelos negros e crescidos; são ágeis e fáceis no andar e nos jogos, e de mui belas fei-
ções, as quais contudo a si próprios desfiguram, furando as faces, os lábios, as ventas e as orelhas. E
não se creia que os buracos sejam pequenos ou tenham apenas um, pois vi muitos com sete, cada
um dos quais tão grandes como um abrunho. Tapam estes buracos com bonitas pedras azuis de
mármore, cristalinas ou de alabastro, e com ossos alvíssimos e outros objetos elaborados segundo
seu uso, que é insólito e monstruoso. Homens há que levam nas faces e lábios sete pedras, cada uma
de metade da palma da mão de comprido. Não sem admiração, muitas vezes achei pesarem essas
sete pedras dezesseis onças, além das que trazem pendentes de três buracos nas orelhas.
Mas este uso é somente dos homens. As mulheres não furam as faces, mas somente as orelhas.
Outro costume têm extravagante, e que parece incrível: que as mulheres, sendo libidinosas,
fazem inchar o membro de seus maridos tanto, que parecem brutos, e isto por meio de certo arti-
fício e mordedura de uns bichos venenosos, por cujo motivo muitos deles o perdem e ficam como
eunucos.
Não possuem panos de lã nem de linho, nem mesmo de algodão; porque os não necessitam,
nem têm bens de propriedade; porém tudo lhes é comum. E vivem juntos, sem rei nem império, e
cada qual é senhor de si.
Tomam tantas mulheres quantas querem, e o filho se junta com a mãe, e o irmão com a irmã, e
o primo com a prima, e o caminhante com a que encontra. Basta à vontade para matrimoniarem, no
que não observam ordem alguma. Além disso, não possuem templos nem leis, nem são idólatras.
Que mais direi? Vivem secundum naturam, e se pode conceituar de epicureos mais que de estóicos.
Não há entre eles comerciantes nem comércio. Guerreiam-se entre si, sem arte nem ordem. Os mais
velhos, com alguma parcialidade obrigam a quanto querem os jovens, e os levam à guerra, na qual
se matam cruamente; e aos que cativam não poupam as vidas senão para que os sirvam toda a vida,
ainda que a outros comem, sendo certo que é entre eles a carne humana manjar comum; e se há
visto haver o pai comido mulher e os filhos. E um conheci eu, a quem falei, que se gabava de haver
saboreado trezentos corpos humanos, e até estive vinte e sete dias em certa povoação, onde vi
dependurada pelas habitações carne humana salgada, como entre nós se usa com o toucinho e a
chacina de porco.
Digo mais: até se admiram de como nós não comamos os nossos inimigos, nem façamos uso
de sua carne, que dizem saborosíssima. Suas armas são arcos e flechas; e, quando se afrontam em
ação não cobrem nenhuma parte do corpo para defender-se, e nisto são semelhantes aos animais.
A formação da literatura antropológica | 37

Procuramos dissuadi-los quanto nos foi possível destes bárbaros costumes, e eles nos prometeram
deixá-los.
As mulheres vão nuas, e conquanto libidinosas, como disse, são assaz belas e bem formadas; e
pasmoso nos pareceu que, entre as que vimos, nenhuma se notava que tivesse os peitos caídos;
e as que já haviam parido, pela forma do ventre e sua contração, não se diferençavam das virgens, e
se lhes semelhavam nas outras partes do corpo, do que por decênencia deixo de ocupar-me; mas
quando podiam tratar com os nossos cristãos, impelidas pelo desejo, não tinham o menor pudor.
Vivem cento e cinqüenta anos e raras vezes adoecem. E se adoecem, a si próprios se curam
com certas raízes de plantas. Eis quanto de mais notável entre eles observei. Os ares aí são tempera-
dos e bons; e, pelo que pude deduzir de suas narrações, não há pestes nem doenças provenientes
da corrupção do ar, e, se não morrem de morte violenta, vivem larga vida; segundo creio, porque
sempre aí predominam os ventos austrais, e principalmente o que denominamos euro ou aquilão.
Deleitam-se na pesca, e o mar é aí mui próprio para ela, porque é copioso em toda sorte de
peixes.
Não se dão à caça; penso que porque havendo aí muitas sortes de animais, maxime leões e
ursos e muitas cobras e outros bichos hórridos e disformes, e porque os bosques são extensos e as
árvores muito grandes, não ousam arriscar-se nus e sem comprimento a tantos perigos.
A terra daquelas regiões é fértil e amena, de muitos montes e morros, e infinitos vales, e regada
de grandes rios e fontes, coberta de extensos bosques, densos e apenas penetráveis, e povoada
copiosamente de feras de todas as castas. Nela nascem, sem cultura, grandes árvores, as quais pro-
duzem frutos deleitosos, e de proveito ao corpo e nada nocivos, e nenhuns frutos são parecidos
com os nossos. Produzem-se inumeráveis gêneros de árvores e raízes, de que fabricam pão e ótimos
mingaus, além de muitos grãos ou sementes não semelhantes aos nossos.
[...] As pérolas abundam nesta região, como em outro lugar escrevi. Seria demasiado prolixo e
descomedido se quisesse dar conta uma por uma de todas as coisas dignas de notícia e das numero-
sas espécies e multidão de animais. E verdadeiramente creio que o nosso Plínio não conseguiu tra-
tar da milésima parte dos animais, nem dos papagaios e outros pássaros, os quais, naqueles países,
são de formas e cores tão variadas, que o artista Policleto não conseguiria pintá-los. Todas as árvores
tão odoríferas, e produzem gomas ou óleos, ou algum outro licor, cujas propriedades todas, se fos-
sem conhecidas, não duvido que andaríamos todos sãos. E por certo que se o paraíso terreal existe
em alguma parte da terra, creio que não deve ser longe destes países, ficando situado ao meio dia,
com ares tão temperados, que nem no inverno gela, nem no verão faz calor.
[...] Após estas vêm duas, cuja semi-periferia tem doze graus e meio, e com ela se vê outro ca-
nopo claro. Seguem mais seis estrelas formosíssimas e claríssimas entre outras da oitava esfera, que,
na superfície do firmamento, têm no diâmetro da periferia trinta e dois graus, e são acompanhados
de um canopo escuro de imensa grandeza, que se vê na via láctea, e quando se acham na linha do
meio-dia apresentam esta figura:
[...] Naquele hemisfério vi coisas não de acordo com as razões dos filósofos. Perto da meia-noi-
te, foi visto o arco-íris brilhar, não só por meus olhos, como por todos os nautas. Igualmente vimos à
lua nova no dia da conjunção com o sol. Todas as noites percorrem naquele céu inúmeros vapores
38 | Teorias Antropológicas

e flamas ardentes. Disse hemisfério, ainda que, com respeito a nós, não o seja mui rigorosamente,
mas só para que nos entendamos.
[...] E o dito baste quanto a cosmographia.
Tais foram as coisas mais notáveis que vi nesta minha última viagem, que denomino Jornada
Terceira, pois as outras duas foram as viagens que para o ocidente fiz por mandado do Sereníssimo
rei de Hespanha, nas quais assentei, dia por dia, todas as coisas admiráveis e mais de notar do subli-
me Creador, nosso Deus, para, quando tenha tempo, me dedicar a coligir todas estas singularidades
e maravilhas, escrevendo, geográfica ou cosmograficamente, um livro, para que minha memória
passe à posteridade, e se conheça o imenso certifício de Deus Onipotente, em parte dos antigos
ignorado e de nós conhecido. Pelo que rogo a Deus clementíssimo que me prolongue os dias de
vida, a fim de que com saúde e a sua boa graça possa realizar este desejo e boas disposições. As
outras duas Jornadas as reservo; e restituindo-me este Sereníssimo rei a terceira, regressarei tran-
qüilamente à pátria, conferindo com os peritos, e com auxílio e animação dos amigos, espero que
poderei levar a cabo estes intentos. Peço desculpa de não lhe enviar esta derradeira Jornada, con-
forme prometi na minha última. É disso causa o não haver podido conseguir a sua restituição deste
Sereníssimo rei. Penso fazer ainda uma quarta viagem; e já dois navios estão para isso armados, e
a promessa feita para eu ir, pelo sul, rumo de África, em busca de novas regiões no oriente. E nessa
nova viagem muito penso realizar em louvor de Deus e utilidade do seu reino, e honra da minha
velhice, e nada mais espero senão a ordem do mesmo Sereníssimo rei. Deus nisso permita o que
creia melhor, e o que for resolvido constará.
“O tradutor Giocondo (Jocundus) verteu a presente epístola do italiano em latim, para que os
latinos reconheçam quantas coisas admiráveis se viram nesta viagem, e se reprima a audácia dos
que pretendam perscrutar o erro e a magestarle, e saber mais do que é lícito; quando, havendo
tanto tempo que começou o mundo, é desconhecida a vastidão da terra e quanto ela contém -Deus
louvado.”

Atividades
1. A expansão ultramarina promove o encontro do “Novo Mundo”, provocando nos europeus a
necessidade de reflexão sobre a alteridade humana e cultural. Por que isso ocorre?
A formação da literatura antropológica | 39

2. No início do século XVI surge a Antropologia Espontânea – relatos que noticiaram o “Novo Mundo”.
De que tratavam as narrativas feitas pelos navegadores, missionários e administradores das novas
terras?
40 | Teorias Antropológicas

3. Comente a visão de homem que emergiu do debate dos teólogos sobre a diversidade humana e
cultural no século XVI.

4. Como o Iluminismo influenciou o debate sobre a natureza humana e sua diversidade?


Evolucionismo Social:
o ingresso da Antropologia
na Era da Ciência
O Evolucionismo Social deu o passaporte de ingresso da Antropologia no reino das Ciências
Sociais.
No século XIX, ao dar início ao processo de sistematização das informações e conhecimentos
sobre os povos “primitivos”, essa escola lança as bases para a procura de explicações e compreensões
do homem, não mais pela teologia, pela religião, mas pela via das Ciências Sociais, dos dados colhidos,
sistematizados e racionalmente informados.
Na nova fase das relações econômicas entre países europeus e “Novo Mundo”, o colonialismo1,
estreitam-se as relações entre os povos. Compreender os povos e os “novos mundos” tornou-se uma ta-
refa imprescindível para a empreitada colonialista de ocupação e de exploração dos novos territórios.
Mudou o contexto geopolítico. A fase é a da conquista colonial, resultado da divisão do mundo
operada no final do século XIX, com a Conferência de Berlim2, em 1885, que fatia a África entre as diver-
sas potências européias.
Não se tratava mais de descrever a fauna e a flora, mas de compreendê-las: desenvolver as melho-
res formas e mecanismos de explorá-las economicamente.
Saem de cena os missionários e religiosos e entram os administradores coloniais. Os primeiros
tinham os textos sagrados como orientação; os segundos, as planilhas de custos e benefícios.

1 Colonialismo é a teoria e prática de colonização que tem como objetivo a apropriação de terras e organização do poder formal ou informal
de domínio do grupo imigrante sobre o grupo nativo usando a força ou a superioridade econômica.
2 A Conferência de Berlim foi realizada no período de novembro de 1884 a fevereiro de 1885 com o objetivo de resolver os conflitos entre as
potências européias colonizadoras, estabelecendo regras de ocupação da África, que até 1914 permaneceu dividida entre Inglaterra, França,
Espanha, Itália, Bélgica, Portugal e Alemanha.
42 | Teorias Antropológicas

Os administradores coloniais faziam o senso criterioso dos povos, dos recursos naturais e eco-
nômicos, da fauna e, fundamentalmente, das formas de relacionamento dos povos colonizados: or-
ganização do sistema de parentescos, estrutura da organização litúrgica e sacerdotal, mecanismos de
organização social e o papel da cultura no sistema de organização da sociedade.
Esses dados tornavam-se informações logísticas fundamentais para as ações desenvolvidas pelas
metrópoles nas colônias das Américas, África, Ásia e Oceania.
O processamento dessas informações nos gabinetes dos eruditos dos países colonizadores deu
a infra-estrutura conceitual para a elaboração do Evolucionismo Social. O deslocamento do homem no
espaço e no tempo e suas realizações nessas respectivas etapas projetaram o conceito de evolução, da
espécie e de suas sociedades.
Na esteira dessa reflexão, o conceito de selvagem é substituído pelo de primitivo; esboça-se a noção
de unidade psíquica do homem; determina-se a escala de evolução e desenvolvimento das sociedades
primitivas em direção às civilizadas; estudam-se as origens do homem e de suas formas de organização
social e cultural; intensificam-se os estudos comparativos do sistema de parentesco, das formas de orga-
nização religiosa e social, e, como parte fundamental dessa transição conceitual, substitui-se o conceito
de raça, numa determinada fase dessa escola, pelo de cultura.
Ao afirmar que todas as formações sociais humanas tinham origens remotas e caminhavam no mesmo sentido, na dire-
ção do progresso, os evolucionistas pensavam que os australianos haviam parado num estágio “primitivo” e os ingleses
avançados para um estágio “civilizado”. É claro que quem pensava assim eram os ingleses, que em plena época da rai-
3
nha Vitória , o século XIX, a Era Vitoriana, espalhavam militarmente seu império pelo mundo inteiro. Também podiam
pensar assim norte-americanos e outros europeus que se sentiam fazendo parte de uma civilização absoluta, para eles,
a melhor definição. (ROCHA, s/d, p. 23)

Essa transição dramática da literatura antropológica para a constituição do saber antropológico


é um ponto de inflexão e uma ruptura profunda na forma de estudar e perceber o homem e suas reali-
zações nos eixos do espaço e do tempo. Com essas mudanças, um mundo fenece e um outro nasce de
suas brumas, embalado pela Ciência.
O desenvolvimento das relações comerciais, a expansão ultramarina, a Revolução Industrial, o
Iluminismo, as Revoluções Americana e Francesa deram o impulso necessário para esse parto.

Homens de Ciência
O cenário da Antropologia como ciência é ocupado por Homens de Ciência; cientistas que se
debruçaram sobre os dados coletados em campo, por terceiros, e se dedicam a montar um painel com-
preensível no tabuleiro do quebra-cabeça antropológico.
Destacaram-se nessa tarefa Charles Robert Darwin (A Origem das Espécies, 1859), Henry Summer
Maine (Ancient Law, 1861), Herbert Spencer (Princípios de Biologia, 1864), Edward Burnett Tylor (A Cultu-
3 A rainha Vitória (1819-1901) sucedeu seu tio, o rei Guilherme IV, no trono do Reino Unido em 1837. Recebeu o título de imperatriz da Índia
com a incorporação da Índia ao Império Britânico em 1877. Seu reinado foi o mais longo da história, durou 64 anos, e ficou conhecido como
a Era Vitoriana, considerada o auge da Revolução Industrial inglesa e do Império Britânico com a conquista de territórios na África e na Ásia e
com o acontecimento de significativas mudanças econômicas, sociais, políticas e culturais.
Evolucionismo Social: o ingresso da Antropologia na Era da Ciência | 43

ra Primitiva, 1871), Lewis Henry Morgan (A Sociedade Primitiva, 1877) e James George Frazer (O Ramo de
Ouro, 1890).
Esses cientistas sociais deram liga às informações dispersas e abundantes que brotavam das colô-
nias. Sistematizaram, organizaram e construíram narrativas lógicas, nas dimensões de espaço e tempo,
reconstituindo a trajetória dos povos colonizados.
A noção de evolução é um marco fundamental para o pensamento antropológico. Vai aparecer como idéia básica para
toda uma grande fase da Teoria Antropológica e, na história dos saberes sobre os seres humanos, tem um lugar de des-
taque, quase que como uma âncora, para os trabalhos e estudos que procuravam fazer da Antropologia uma ciência.
Assim, a diferença que se travestia em espanto e perplexidade, nos séculos XV e XVI, encontra, nos séculos XVIII e XIX,
uma nova explicação: o outro é diferente porque possui diferente grau de evolução. (ROCHA, s/d., p. 21-22)

A noção de progresso tornou-se fundamental. O eixo do tempo e do espaço passa a ser funda-
mental, quando se crê na unidade básica da espécie, como se projetava na época. A direção é a de um
estágio inferior para um estágio superior; de um primitivo para um evoluído.

Evolução como paradigma –


Darwin e o conceito de homem
A evolução se instala como paradigma, como modelo de compreensão e explicação do homem e
de suas realizações. A publicação da obra de Darwin dá um grande impulso nessa direção.
As máximas de Darwin transformaram-se, aos poucos, em referência obrigatória, significando uma reorientação teórica
4
consensual. Nas palavras de Hofstadter : “se muitos descobrimentos científicos afetaram profundamente maneiras de
viver, nenhum teve tal impacto em formas de pensar e crer...O Darwinismo forneceu uma nova relação com a natureza
e, aplicado a várias disciplinas sociais – Antropologia, Sociologia, História, Teoria Política – formou uma geração social-
darwinista. (SCHWARCZ, 1993, p. 55)

O naturalista britânico inicia seus estudos em 1831, no campo da Medicina e Teologia. Durante
cinco anos, participou da expedição científica a bordo do barco Beagle. Darwin, em campo, acumula
uma enorme massa de informações sobre as espécies animais. Esse trabalho de Darwin é uma das sin-
gularidades de sua elaboração conceitual, num momento em que as reflexões sobre o homem e suas
realizações eram obra de gabinete, documental, relatorial.
Em sua obra principal A Origem das Espécies, Darwin formula a teoria da evolução das espécies, via
seleção natural: no processo, ocorrem com os indivíduos variações úteis na luta pela existência; essas
variações transmitem-se, reforçadas, aos descendentes. Com base nessas observações, elabora a teoria
evolucionista.
Segundo essa concepção, as espécies sucedem-se, umas às outras, por evolução contínua, per-
manente, com a sobrevivência dos mais aptos e fortes. Darwin exercerá forte influência na literatura
científica depois de sua obra.

4 Richard Hofstadter (1916-1970) foi historiador norte-americano e professor da Univeridade de Columbia em Nova York (EUA).
44 | Teorias Antropológicas

Segundo a antropóloga Lilia Moritz Schwarcz:


[...] não são poucas as interpretações de A Origem das Espécies que desviam do perfil originalmente esboçado por
Charles Darwin, utilizando as propostas e conceitos básicos da obra para a análise do comportamento das sociedades
humanas. Conceitos como “competição”, “seleção do mais forte”, “evolução” e “hereditariedade” passaram a ser aplica-
dos aos mais variados ramos do conhecimento: na Psicologia [...]; na Lingüística [...]; na Pedagogia [...]; na Literatura
Naturalista [...] Sociologia Evolutiva [...] história determinista [...] esfera política [...]. (SCHWARCZ, 1993, p. 56)

Darwin apimenta o debate quando apresenta sua idéia mais polêmica: a da origem do homem.
Segundo o naturalista britânico, o homem não é produto da criação divina e nem fruto de várias ori-
gens. Ele enfatiza que o homem e o macaco têm origem comum; têm o mesmo antepassado. Esse con-
ceito passou a ser fundamental no estudo do desenvolvimento humano. A Antropologia Física tem esse
conceito como pano de fundo dos seus estudos. A Paleontologia – um dos campos da Antropologia
Física – estuda o desenvolvimento humano, desde os seus primórdios até os tempos atuais.
Na época, essa teoria causou um grande desconforto para Darwin. Diversos setores da academia
e, em especial, dos segmentos religiosos combateram apaixonadamente essa visão. Na sociedade vito-
riana, submersa em valores conservadores e com os tentáculos coloniais por todos os continentes, os
conterrâneos de Darwin se levantam contra esse argumento.
Com sua teoria, Darwin põe um ponto final no debate travado entre os teóricos monogenistas
(crença numa única fonte de origem humana: os homens não são diferentes, mas desiguais) e os poli-
genistas (crença em várias fontes de origem humana: os homens são diferentes, portanto desiguais): o
naturalista britânico afirmará que todos os homens descendem de uma única espécie e têm a mesma
origem biológica.

As leis antigas – Henry James Summer Maine


Henry Maine foi um importante membro do Conselho Britânico do vice-rei da Índia, sob domínio
da Inglaterra no período. Jurista e etnólogo, estudou as semelhanças entre o sistema legal de Roma,
Índia e Irlanda, sociedades patrilineares, em sua obra principal Ancient Law (1861).
Nela, Maine argumenta que a forma de organização mais antiga de família era a forma patriarcal.
Formulou, no desenvolvimento dos seus estudos, conceitos que foram incorporados ao repertório da
ciência antropológica: agnação (reconhecimento da relação por descendência) e cognação (reconheci-
mento da relação por descendência de um mesmo pai e mesma mãe).
Segundo o etnólogo inglês, a humanidade, nos seus primórdios, em sua infância, não tinha ne-
nhum tipo de ordenamento legal. Na sua primeira fase, o homem não foi capaz de elaboração de uma
legislação que regulasse suas formas de convivência. Sua forma de relação se dava por intermédio do
status, quando as relações se limitavam à família e a supremacia era do varão mais velho. Mais tarde,
essa relação se transforma em “contrato”, estabelecido nas sociedades desenvolvidas.
Evolucionismo Social: o ingresso da Antropologia na Era da Ciência | 45

Maine utiliza-se do mesmo modelo elaborado pelos seus contemporâneos: há uma origem de
um dado fenômeno, no caso as Leis, que se desenvolve por etapas anteriores, na infância da humanida-
de, até as fases mais desenvolvidas, nas sociedades civilizadas.

Teoria evolucionista na sociedade – Herbert Spencer


Herbert Spencer procurou aplicar as leis da evolução das espécies, desenvolvidas por Charles
Darwin, a todos os níveis da atividade humana. Ele é considerado no campo das Ciências Sociais como
o mais importante teórico do Darwinismo Social, mesmo nunca tendo usado esse termo para expressar
suas idéias. Seu conceito básico se expressava na seguinte noção: “sobrevivência do mais apto”. Spencer
considerava esse o núcleo das relações sociais, onde os mais aptos, no caso os europeus, sobreviveriam
em relação aos demais povos. Para ele, esse processo seria o da “seleção natural”.
Graças a essas noções, Spencer é considerado o principal teórico do racismo “científico”, ou seja,
a noção de que se pode comprovar a superioridade racial de um grupo em relação a outro, com base
na ciência.
O teórico inglês defendia que a evolução era a lei fundamental do universo. Para ele, há uma fase
nebulosa que dá origem ao sistema planetário e este, à Terra. Gradualmente surgem os continentes,
mares, fauna e flora. Da vida rudimentar evolui-se para organismos mais complexos.
Spencer sintetiza em sua obra os principais legados da escola evolucionista: ciência como fator
de generalizações e o estabelecimento de uma teoria geral, que parte de uma origem para etapas mais
evoluídas. Suas idéias fundamentais expressam-se nas noções de uma evolução que parte do homogê-
neo (etapa incoerente e indefinida, característica das sociedades primitivas, para o heterogêneo (etapa
definida e coerente, característica das sociedades civilizadas) da evolução. Assim, um grupo humano
comum pode evoluir para direções distintas – primitiva ou civilizada – plena de estruturas diferentes e
funções distintas. Dessa forma, a integração e a heterogeneidade progressiva aumenta a coerência do
grupo social.
Sua equação da evolução implica o início de uma organização social vaga. Surgem convenções
cada vez mais precisas que se transformam em costumes e, mais tarde, em leis, mais rígidas e especí-
ficas. Spencer aponta dois fatores essenciais à evolução: o extrínseco e o intrínseco. O primeiro seria
composto pelo clima, solo, produção vegetal, fauna, entre outros; o segundo, pelos caracteres e dotes
físicos, emocionais e espirituais do ser humano. Nessa relação, a sociedade seria como um grande orga-
nismo que tende para o equilíbrio e a interdependência entre as partes, inclusive entre os indivíduos. A
cooperação passa a ser o objetivo da sociedade.
Spencer classificava as sociedades como:
::: simples – sociedade cooperativa e sem um órgão regulador;
46 | Teorias Antropológicas

::: composta – os chefes são submetidos a um dirigente supremo;


::: duplamente composta – organização complexa onde os costumes evoluíram para leis escri-
tas e codificadas, com a formação de castas e princípios religiosos;
::: triplamente composta – civilizações como as do Egito Antigo e do Império Romano.
Sua obra legou às Ciências Sociais diversos conceitos que ampliaram o repertório da Antropo-
logia: função social, controle social, instituição, estrutura social e, a exemplo de outros evolucionistas,
ampliação do espectro de ação do método comparativo.
Herbert Spencer provocou na época forte impacto sobre a intelectualidade brasileira, que procu-
rava desvendar os caminhos percorridos pela sociedade naquele momento. Duas figuras importantes
do período – Euclides da Cunha5 e Silvio Romero6 – tinham em Spencer uma referência para suas refle-
xões sobre a composição e o caráter do povo brasileiro. Seus trabalhos eram divulgados e consumidos
no centro da inteligência acadêmica nacional: as faculdades de Direito de São Paulo e do Recife e as de
Medicina de Salvador e do Rio de Janeiro. O médico legista maranhense radicado na Bahia, Raimundo
Nina Rodrigues7, lançará mão de muitos dos conceitos de Spencer, na leitura que fará da realidade so-
ciocultural do país.
A antropóloga Lilia Moritz Schwarcz (1993, p. 25) destacará o papel desempenhado pela escola
evolucionista na formação da intelectualidade nacional e de seus reflexos nas opções políticas adotadas
naquele período, em especial às relacionadas às relações raciais:
Outros estabelecimentos ajudam a compor um panorama intelectual ainda mais diversificado. É o caso das faculda-
des de Direito de São Paulo e Recife, que, preocupadas com a elaboração de um código nacional, utilizavam, porém,
interpretações diversas: enquanto em São Paulo majoritariamente adotavam-se modelos liberais de análise, no Recife
8
predominava o social-darwinismo de Haeckel e Spencer. No campo da Medicina, o Instituto Manguinhos, liderado por
9
Oswaldo Cruz , transformava-se em um importante centro de pesquisas, principalmente no que se refere ao problema
da febre amarela e da sanitarização das cidades. Destacada é também a atuação dos institutos históricos, que congre-
gando a elite intelectual e econômica de diferentes províncias e profundamente vinculados ao monarca D. Pedro II,
começavam a escrever a história oficial desse jovem país.

5 Euclides Rodrigues da Cunha (1866-1909) foi escritor, sociólogo, historiador, engenheiro e repórter jornalístico. Ficou internacionalmente
famoso com a publicação do livro “Os Sertões” em 1902 pela Laemmert & Cia. Considerada uma das obras precursoras da Sociologia e da
literatura modernista no Brasil, em que o escritor analisa os costumes e a religiosidade sertaneja, as características geológicas, botânicas,
zoológicas e hidrográficas da região em que ocorreu a campanha de Canudos (1897) no nordeste da Bahia.
6 Silvio Vasconcelos da Silveira Ramos Romero (1851-1914) foi crítico literário, poeta, filósofo e político. Participou ativamente da vida política
e intelectual brasileira. Publicou A Filosofia no Brasil em 1878, o primeiro livro de história das idéias filosóficas no Brasil. Foi um dos membros
fundadores da Academia Brasileira de Letras em 1897. Considerado um dos responsáveis pela valorização das tradições populares retratadas
em suas obras sobre folclore.
7 Raimundo Nina Rodrigues (1862-1906) foi médico legista, psiquiatra e antropólogo. Foi fundador da Antropologia Criminal brasileira,
promoveu a nacionalização da medicina legal e dedicou-se a pesquisas sobre as origens étnicas da população e a influência das condições
sociais e psicológicas sobre a conduta do indivíduo.
8 Ernest Heinrich Philipp August Haeckel (1834-1919) foi médico, naturalista alemão. Ajudou a popularizar o trabalho de Charles Darwin,
sendo que seus principais interesses estavam nos processos evolutivos de desenvolvimento e na ilustração científica.
9 Oswaldo Gonçalves Cruz (1872-1917) foi cientista, médico, bacteriologista, epidemiologista e sanitarista brasileiro. Foi pioneiro no estudo
das moléstias tropicais no Brasil. Organizou o combate ao surto de peste bubônica (1899) em Santos e em outras cidades portuárias brasileiras,
como também coordenou as campanhas de erradicação da febre amarela e da varíola (1903) no Rio de Janeiro. Fundou o Instituto Soroterápico
Nacional transformado em Instituto Oswaldo Cruz.
Evolucionismo Social: o ingresso da Antropologia na Era da Ciência | 47

A evolução da cultura – Edward Burnett Tylor


Em sua principal obra, Primitive Culture (1871), o antropólogo britânico Edward Burnett Tylor de-
senvolve o que será considerado o primeiro conceito moderno de cultura. Com seus estudos Tylor pas-
sou a ser considerado o representante por excelência do Evolucionismo Cultural, por definir o campo
científico das pesquisas antropológicas, baseadas nas teorias de Charles Darwin.
Segundo Tylor, havia uma base de funcionalidade para o desenvolvimento da sociedade e da re-
ligião. Para ele, essa base era universal e se estendia para todas as sociedades e formas de organização
religiosa. O antropólogo inglês considerava o animismo10 – alma que anima todas as coisas – o primeiro
estágio de todas as religiões.
Para ele, as forças da natureza sempre exerceram fascínio sobre os homens de todos os tempos.
Os homens primitivos, por não compreenderem esses fenômenos, consideravam essas forças como
deuses, capazes de intervir em suas vidas cotidianas e, portanto, deveriam ser adorados. Tylor via nessa
forma de adoração o princípio do animismo e, por extensão, das religiões.
A experiência do sonho, doenças e morte levam o homem primitivo à crença da alma. Por ana-
logia, essa crença se estende, mais tarde, aos animais e às plantas, que passam a ser vistos como seres
animados por uma alma, segundo Tylor.
Seus estudos consolidam conceitos e idéias que se preservam como temas importantes nos estu-
dos posteriores da Antropologia: a idéia da existência de almas imortais em homens, plantas e animais;
divindades imortais ligadas a fenômenos da natureza (ar, água, terra e fogo); presença divina em todas
as partes, graças ao animismo; visões, curandeiros, transe e feitiçaria, e a utilização de elementos da
natureza nos cultos realizados ao ar livre.
Tylor não estava preocupado com as mudanças advindas do desenvolvimento. Seu foco era na
sobrevivência de costumes e ritos antigos. A evolução da religião percorreu o seguinte caminho, com
suas sobrevivências residuais: animismo, feiticismo, idolatria, politeísmo e monoteísmo.
No seu exercício etnográfico, estudou cerca de 350 culturas, à procura de normas no matrimô-
nio e descendência nas relações de parentesco. Estudou comparativamente os sistemas de residências,
para determinar os estágios da passagem das culturas matrilineares para as patrilineares, e as sobrevi-
vências de costumes nas etapas posteriores.
A obra desse vigoroso estudioso da Antropologia influenciou o trabalho e estudos de Frazer.

Os estágios da sociedade humana – Lewis Henry Morgan


O advogado e mais tarde senador dos Estados Unidos da América (EUA), Lewis Henry Morgan,
produziu um dos mais amplos painéis da evolução social, focado nas sociedades humanas. Em 1877,
Morgan publicou Ancient Society. Apoiado na Teoria do Evolucionismo Biológico de Darwin, nessa obra,
o autor traça o desenvolvimento das sociedades e culturas humanas, em três grandes fases distintas: a
selvageria, a barbárie e a civilização. Para cada estágio, Morgan aponta um tipo especial de tecnologia

10 Animismo é a manifestação religiosa que atribui alma a todos os elementos do cosmos, da natureza, a todos os seres vivos e a todos os
fenômenos naturais, sendo todos esses passíves de possuírem sentimentos, emoções, desejos e até mesmo inteligência.
48 | Teorias Antropológicas

e seus impactos na forma de organização da sociedade. Sua obra marcou em profundidade, a exemplo
de Darwin, o seu tempo e os trabalhos de diversos outros teóricos, nas várias áreas do conhecimento
social.
Morgan desenvolveu inúmeras pesquisas de campo. Ele estudou diversos povos indígenas, em
especial os iroqueses. Dessa pesquisa, o estudioso retirou grande quantidade de material para sua re-
flexão sobre a cultura – material e imaterial – dos índios. Seu trabalho de campo se estendeu para fora
do território norte-americano, em diversas regiões. Com base nesses estudos, Morgan procura elaborar
uma classificação universal do sistema de parentesco, e estabelecer uma conexão geral entre esses vá-
rios sistemas, em escala global.
Sobre a obra de Morgan, Friedrich Engels11 disse:
O grande mérito de Morgan é o de ter descoberto e restabelecido em seus traços essenciais esse fundamento pré-
histórico de nossa história escrita e de o ter encontrado, nas uniões gentílicas dos índios norte-americanos, a chave para
decifrar importantíssimos enigmas, ainda não resolvidos, da história antiga da Grécia, Roma e Alemanha. Sua obra não
foi trabalho de um dia. Levou cerca de 40 anos elaborando seus dados, até conseguir dominar inteiramente o assunto. E
seu esforço não foi em vão, pois seu livro é um dos poucos de nossos dias que fazem época. (ENGELS, 1977, p. 8)

Em sua obra, Morgan procura ordenar o processo de desenvolvimento histórico do homem. Para
cada etapa, com exceção da civilização, ele subdivide em inferior, médio e superior. A classificação está
relacionada ao grau de desenvolvimento obtido pelo homem naquele estágio, quanto a sua capacida-
de de reprodução tecnológica de sua existência.
Para o autor, a habilidade de produção desempenha papel decisivo no grau de superioridade e
domínio do homem sobre a natureza e suas condições de existência.

Estado selvagem

Fase inferior
Essa é a fase da infância do gênero humano, segundo Morgan. Nela, os homens vivem em bos-
ques, nas áreas tropicais e subtropicais. Vivem parte do tempo em árvores e parte desafiando o perigo
entre os grandes animais selvagens. Seus alimentos são os frutos e raízes. O grande progresso registrado
nessa fase foi o desenvolvimento da linguagem articulada. Morgan atribui a esse fato uma importância
extraordinária, pois a partir dessa evolução, o homem cria e pode transmitir aos outros o fruto de sua
criação. Essa fase durou milênios.

Fase média
Essa fase desdobra-se no Período Paleolítico – Idade da Pedra. Ela tem início com o consumo do
peixe e da adoção de um dos maiores avanços registrados na história humana: o uso do fogo. Essa tec-
nologia permitiu ao homem autonomia e mobilidade no território. A partir desse advento, ele passou
a seguir o curso dos rios e das costas marítimas. Esses recursos deram ao homem a possibilidade de
se espalhar pelas diversas áreas da superfície da terra. Suas migrações deixaram marcas em todos os

11 Friedrich Engels (1820-1895), filósofo alemão que junto com Karl Marx fundou o chamado Socialismo Científico ou Marxismo.
Evolucionismo Social: o ingresso da Antropologia na Era da Ciência | 49

continentes. O domínio da tecnologia do fogo permitiu então o uso de outros tipos de alimentos: novas
raízes, tubérculos farináceos e pequenas caças. Desenvolve-se a tecnologia das armas: clava e lança, ins-
trumentos indispensáveis à sobrevivência. Segundo Morgan, em razão da escassez de alimentos, nessa
época, deve ter se iniciado a antropofagia, que perdurou durante muito tempo.

Fase superior
Essa fase tem início com a invenção do arco e da flecha, tecnologia a qual Morgan atribui grande
significado. A partir da introdução dessa tecnologia, o homem passa a se alimentar regularmente e a
estabelecer um certo grau de organização social e comunitária, já que o ofício da caça exige ação cole-
tiva e articulada. O desenvolvimento do arco, da corda, da fibra de cortiça, do cesto de cortiça ou junco,
instrumentos de pedra polida (Período Neolítico) e da seta indicam um grau de maior complexidade
nas faculdades mentais do homem selvagem. De nômade, o homem passa a se fixar em pequenas
localidades, em pequenas aldeias. O fogo e o machado de pedra dão ao homem maiores condições de
domínio da natureza.

A barbárie

Fase inferior
Seu início dá-se com a introdução da tecnologia da cerâmica. Essa é a grande tecnologia do
período, segundo Morgan. Ela permite o cozimento dos alimentos em fogo, sem as fragilidades dos
cestos traçados. Com a barbárie, começam também as distinções de condições de vida entre os diver-
sos povos dos continentes. Para Morgan, o traço singular desse período é a domesticação de animais
e plantas. O continente oriental tinha diversos animais domesticáveis e cereais para o cultivo. O conti-
nente ocidental, a América, tinha um mamífero domesticável, a lhama, em uma parte de sua região sul
e o milho, como cereal cultivável. Graças a essas características naturais, o desenvolvimento dos dois
hemisférios se dá de forma distinta.

Fase média
Segundo Morgan, no leste, essa fase começa com a domesticação de animais; no oeste, com o
cultivo de hortaliças, com a utilização da irrigação, tijolos crus e pedras de construção. Entre os índios, já
na fase anterior da barbárie, havia o cultivo do milho e, talvez, da abóbora, do melão e outros alimentos
cultiváveis. Vivia-se em casas de madeiras, com aldeias protegidas por paliçadas. Os chamados povos do
Novo México (Pueblos) e os peruanos encontravam-se, na fase média da barbárie, com casas de pedras
em formato de fortalezas; cultivavam plantações e irrigavam o milho e outros vegetais comestíveis.
Segundo o autor, a conquista espanhola cortou o desenvolvimento autônomo desses povos. No leste,
essa fase começa com a domesticação de animais para o fornecimento de leite e carne. A formação de
rebanhos levou à vida pastoril. Nessa fase, desaparece a antropofagia.
50 | Teorias Antropológicas

Fase superior
Essa fase inicia-se, segundo Morgan, com a fundição do ferro. Com a invenção da escrita alfabéti-
ca e sua utilização para registros literários, passa-se para a fase da civilização. Nessa fase encontram-se
os gregos da época clássica e heróica, as tribos ítalas anteriores à fundação de Roma, os germanos de
Tácito, os normandos. Há uma grande revolução tecnológica no campo da agricultura, a invenção do
arado de ferro, puxado por animais. Essa tecnologia permitiu o arado de grandes extensões de terra e
o aumento extraordinário da produção da subsistência dos povos que a empregavam. Os bosques são
derrubados e suas áreas ocupadas pelas pastagens e agricultura.
Essas condições aceleraram o crescimento da população, em pequenas e densas áreas; embrião
das cidades modernas. Nessa fase registram-se grandes avanços tecnológicos, aperfeiçoados pelos
gregos: foles de força, moinhos à mão, roda de olaria, preparação do azeite e do vinho, da produção
artística em metais, transporte de guerra, construção de barcos, desenvolvimento da arquitetura, surgi-
mento das cidades amuralhadas e da Mitologia. Essa fase é fronteiriça à civilização, no painel histórico
de Morgan.
Em traços gerais, segundo Engels, pode-se sintetizar os estágios definidos por Morgan da seguin-
te forma:
Estado selvagem – período em que predominam a apropriação de produtos da natureza, prontos para ser utilizados;
as produções artificiais do homem são, sobretudo, destinadas a facilitar essa apropriação. Barbárie – período em que
aparecem a criação de gado e a agricultura, e se aprende a incrementar a produção da natureza por meio do trabalho
humano. Civilização – período em que o homem continua aprendendo a elaborar os produtos naturais, período da
indústria propriamente dita e da arte. (ENGELS, 1977, p. 25)

O ramo de ouro: magia, religião e ciência –


James George Frazer
O trabalho de James George Frazer, O Ramo de Ouro, é apontado como o que melhor sintetiza as
pesquisas do século XIX, sobre as crenças e religiões. Ela é uma obra de referência no estudo dessa fase
da Antropologia. Frazer é quem melhor sintetiza também o comportamento do homem de ciência da
época. Seu contato com a realidade que estuda é epistolar, por carta, à distância. Teriam perguntado,
certa vez, a ele se já tinha tido contato com um selvagem. Frazer responde: “Livra-me Deus de seme-
lhante atrocidade”.
Baseado nos relatos elaborados por administradores coloniais espalhados pelos quatro cantos
do mundo, Frazer produziu uma obra extensa. Segundo informações da época, ele trabalhou por quase
sessenta anos, doze horas por dia, numa biblioteca de 30 mil volumes.
Frazer procurou despertar no mundo acadêmico e social do seu tempo a necessidade e a im-
portância da Antropologia como ciência. Seus doze volumes de estudos sobre a religião e a magia o
credenciavam para a tarefa. O estudo começa em 1890 e termina em 1915.
Nele, o autor elabora a teoria da magia simpática – homeopática. Segundo ele, nesse tipo de
magia, os ritos mágicos imitam o efeito que procuram produzir, por intermédio do simbolismo. Não há
Evolucionismo Social: o ingresso da Antropologia na Era da Ciência | 51

propriamente a ocorrência do fenômeno, mas sua representação. Elaborou ainda a teoria da magia por
contato, da relação direta: o vodu.
Frazer vai criticar duramente essas duas modalidades de magia que, segundo ele, são formas er-
rôneas de estruturação do pensamento e a tentativa de produção de uma ciência bastarda e incapaz de
dar explicações científicas sobre a realidade. O autor lança mão do método comparativo para estudar a
magia e seus desdobramentos históricos.
Para o estudioso britânico, a religião e o animismo são movimentos puramente intelectuais. Seus
aspectos sociais são secundários. A religião seria uma tentativa intelectual de explicar as ocorrências do
mundo para os povos em estágios anteriores ao da civilização ocidental.
Segundo Laplantine (1987, p. 68), nessa obra monumental, Frazer
[...] retraça o processo universal que conduz, por etapas sucessivas, da magia à religião, e depois, da religião à ciência. “A
magia”, escreve Frazer, “representa uma fase anterior, mais grosseira, da história do espírito humano, pela qual todas as
raças da humanidade passaram, ou estão passando, para dirigir-se para a religião e a ciência”. Essas crenças dos povos
primitivos permitem compreender a origem das “sobrevivências” (termo forjado por Tylor) que continuam existindo
nas sociedades civilizadas. Como Hegel, Frazer considera que a magia consiste num controle ilusório da natureza, que
se constitui num obstáculo à razão. Mas, enquanto para Hegel, a primeira é um impasse total, Frazer a considera como
religião em potencial, a qual dará lugar por sua vez à ciência que realizará (e está até começando a realizar) o que tinha
sido imaginado no tempo da magia.

Na mesma pegada do Evolucionismo registrado na história do homem e das sociedades, Frazer


coloca a magia na base da evolução que levará à religião – fase intermediária – e depois, à ciência, etapa
superior das formas de explicação e compreensão da realidade circundante.

Considerações finais
Com o Evolucionismo Social, a Antropologia entra no universo das Ciências Sociais. A disciplina ga-
nha “status” de ciência e passa a definir seu “objeto de estudo”, suas metodologias e técnicas de pesquisa.
Nessa caminhada, três aspectos se destacam nessa escola:
::: sua experiência deu-se no quadro geral do colonialismo europeu nos países da África, Ásia e
Américas;
::: a escola instala o conceito de desenvolvimento como paradigma, como forma de compreen-
são do homem e de suas realizações no plano da cultura;
::: ao considerar a “unidade histórica” do homem, em desenvolvimento de estado primitivo para
o civilizado, a escola abre a porta para o que se denominará “racismo científico”.
O colonialismo europeu fincou seus tentáculos pelo mundo. Povos, nações, culturas e riquezas
nacionais foram colocadas a serviço do desenvolvimento das nações européias. Para exercer com efici-
ência seu poder, essas nações estudaram com empenho e afinco as formas de organizações dos países
ocupados. Os conhecimentos desprendidos dos estudos antropológicos serviram para as dominações
de diversos povos e culturas. Um dos grandes imperialistas da época, Cecil Rhodes, declarou certa vez:
“Hei de conquistar todos os continentes e os planetas” (Schwarcz, 1996, p. 163), numa apologia direta à
capacidade dos países ocidentais.
52 | Teorias Antropológicas

Os dados remetidos pelos administradores coloniais para os países de origem foram coletados e
sistematizados por estudos do porte de Frazer. Por essa razão, uma das características centrais da An-
tropologia dessa época era o seu trabalho de gabinete, de escritório, de biblioteca. Apesar de Morgan e
Darwin terem feito trabalho de campo, a maior parte dos estudos da época eram feitos à distância, sem
um contato direto entre o pesquisador e os povos estudados.
Ao estabelecer o desenvolvimento como paradigma, como modelo de desenvolvimento dos fe-
nômenos, a escola deu uma grande contribuição aos estudos da Antropologia. A Antropologia passou
a estudar o desenvolvimento do homem e de suas realizações materiais e imateriais nos eixos do tempo
e do espaço, da origem mais remota ao estado em que se encontrava num determinado momento de
evolução. Os trabalhos de Darwin foram importantes para a consolidação e popularização dessa idéia.
Antes do seu trabalho, como fator especial do século XIX e de suas realizações, o conceito já era deba-
tido e assimilado. Mas, sem dúvidas, a obra do naturalista britânico contribuiu para a consolidação no
imaginário social da época, dessa noção que passa a ser uma pedra fundante no edifício da ciência que
despontava.
A Antropologia Cultural se consolida no quadro das referências científicas. O centro das atenções
dos estudiosos era a cultura tomada sob o ângulo comparativo e evolucionista. Os dois conceitos cen-
trais eram civilização e progresso. Todos os povos que compunham a grande família humana passariam,
obrigatoriamente, pelos mesmos estágios de desenvolvimento e evolução, do primitivo ao civilizado.
Porém, como acentua Schwarcz (1993, p. 61), há um ponto de mudança nessa linha de raciocínio,
que altera seu conceito e desemboca no racismo científico da época:
A antiga noção de “perfectibilidade” do século XVIII continua presente no século XIX, mas ganha uma acepção diversa.
Nesse caso, implica pensar não em uma qualidade intrínseca do homem, mas em um atributo próprio das “raças civili-
zadas” que tendem à civilização. Por outro lado, o conceito ganha um sentido único e direcionado, já que parece existir
só uma “perfectibilidade” possível, e da outra parte apenas a degeneração.

Essa idéia se desenvolve e ganha força entre a intelectualidade brasileira da época. Intelectuais
como Francisco José Oliveira Viana12 (1883-1951), João Batista Lacerda13 (1846-1915), Raimundo Nina
Rodrigues (1862-1906) e Herman von Ihering14 (1850-1930) sofrem grande influência desse conceito, e
os importam para a leitura e compreensão da realidade brasileira.
O então diretor do Museu Nacional do Rio de Janeiro, João Batista Lacerda, ao participar do I
Congresso Internacional das Raças, realizado em julho de 1911, declara: “o Brasil mestiço de hoje tem no
branqueamento em um século sua perspectiva, saída e solução” (SCHWARCZ, 1993, p. 11).

12 Francisco José de Oliveira Viana (1833-1951), sociólogo, advogado e escritor. Foi consultor jurídico do Ministério do Trabalho e ministro do
Tribunal de Contas (1940). Sua obra, polêmica pela posição conservadora e por subestimar a presença do negro na formação social brasileira,
foi considerada o marco de uma nova fase de interpretação dos estudos brasileiros.
13 João Batista de Lacerda (1846-1915), médico e cientista. Realizou estudos pioneiros sobre a composição do curare e o veneno de ofídeos e
anfíbios. Conhecido pelos cientistas sociais principalmente por seu trabalho sobre o branqueamento da população brasileira apresentado em
Londres durante o I Congresso Internacional das Raças em 1911.
14 Hermann Friedrich Albrecht von Ihering (1850-1930) jurista e médico alemão. Veio para o Brasil em 1880 e estabeleceu-se, inicialmente, na
então província do Rio Grande do Sul. Dirigiu o Museu Paulista entre 1894 e 1915 onde reproduziu todos os traços de modelo de instituição
européia. Dedicou muitos estudos a fósseis moluscos, aos pássaros e à etnologia. Foi um dos principais teóricos sobre a relação entre evolução
e paleogeografia na passagem do século XIX para o XX.
Evolucionismo Social: o ingresso da Antropologia na Era da Ciência | 53

Esse conceito passa a dirigir a política de imigração que adotará o país, entre 1870 e 1930. No I
Congresso Brasileiro de Eugenia15, realizado em 1929, o antropólogo Edgar Roquete Pinto16 apresentou
o seguinte diagnóstico:
Diagrama de constituição antropológica das populações do Brasil, organizado segundo as
estatísticas oficiais de 1872 a 1890, por Edgar Roquete Pinto.

Ano Brancos Negros Índios Mestiços Total

(SCHWARCZ, 1993, p. 97)


1872 38,1% 16,5% 7% 38,4% 100

1890 44% 12% 12% 32% 100

1912 50% 9% 13% 28% 100

2012 80% 0% 17% 3% 100

Almejava-se uma sociedade cada vez mais branca. Os dados demográficos do IBGE17 não confir-
mam essa previsão. Pelo contrário.
Apesar desses aspectos, o Evolucionismo Social implicou mudanças conceituais na Antropologia
e deu à disciplina o status científico que tem desde então. Dessa forma, estava aberta a porta para que
a disciplina pudesse, sob o impacto dessas alterações, avançar para a conceituação de seu “objeto de
pesquisa” e o desenvolvimento de sua metodologia.

Texto complementar
Do holocausto nazista à nova eugenia no século XXI
(GUERRA, 2007)
Embora a produção da bomba atômica seja sempre lembrada como exemplo da ciência a ser-
viço da destruição, há outro igualmente relevante: o desenvolvimento das teorias eugênicas e seu
aproveitamento por movimentos raciais, culminando no Holocausto nazista na Segunda Guerra
Mundial.

15 Eugenia (bem nascer) foi o termo cunhado por Francis Galton (1822-1911), que influenciado pela teoria de seleção natural de Darwin, e
convencido de que era a natureza que determinava as habilidades humanas e a hereditariedade era o principal fator da geração de patologias
sociais e doenças, dedicou seus estudos científicos à melhora da espécie humana através da seleção artificial (casamentos seletivos). Atualmente
diversos cientistas sociais apontam problemas éticos na eugenia que categoriza as pessoas como aptas ou não aptas para a reprodução.
16 Edgar Roquete Pinto (1884-1954) médico, professor, antropólogo e etnólogo brasileiro. Foi assistente de antropologia no Museu Nacional
e pioneiro no registro de tomadas em close de fisionomias indígenas. Fundou em 1923 a Rádio Sociedade do Rio de Janeiro, primeira emissora
brasileira dedicada à divulgação da arte, cultura e educação. É considerado o pai da radiodifusão no Brasil.
17 IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, fundação pública federal criada em 1934 que tem atribuições ligadas às geociências
e estatísticas sociais, demográficas e econômicas. Realiza e organiza informações, obtidas através de censos, destinadas aos órgãos federais,
estaduais, municipais às instituições e público em geral.
54 | Teorias Antropológicas

A maioria dos geneticistas do século XXI, quando a genética é assunto rotineiro na mídia, pou-
co ou nada sabe sobre a história da eugenia. Conhecê-la, porém, é fundamental em face de situa-
ções concretas da atualidade, como fertilização in vitro, diagnósticos pré-natal e pré-implantação,
aborto terapêutico e clonagem reprodutiva. Em vista das preocupações sobre a emergência de uma
nova eugenia, é importante rever o passado e aprender com os erros cometidos.

O movimento eugênico
Quando em The Origin of Species, de 1859, Darwin propôs que a seleção natural fosse o pro-
cesso de sobrevivência a governar a maioria dos seres vivos, importantes pensadores passaram a
destilar suas idéias num conceito novo – o Darwinismo Social.
Esse conceito, de que na luta pela sobrevivência muitos seres humanos eram não só menos va-
liosos, mas destinados a desaparecer, culminou em uma nova ideologia de melhoria da raça huma-
na por meio da ciência. Por trás dessa ideologia estava sir Francis J. Galton, cujo nome é associado
ao surgimento da genética humana e da eugenia.
Convencido de que era a natureza, não o ambiente, quem determinava as habilidades hu-
manas, Galton dedicou sua carreira científica à melhoria da humanidade por meio de casamentos
seletivos. No livro Inquiries into Human Faculty and its Development, de 1883, criou um termo para
designar essa nova ciência: eugenia (bem nascer).
No início do século XX, quando as teorias de Darwin eram amplamente aceitas na Inglaterra,
havia grande preocupação quanto à “degeneração biológica” do país, pois o declínio na taxa de
nascimentos era muito maior nas classes alta e média do que na classe baixa. Para muitos parecia
lógico que a qualidade da população pudesse ser aprimorada por proibição de uniões indesejáveis
e promoção da união de parceiros bem-nascidos. Foi necessário, apenas, que homens como Galton
popularizassem a eugenia e justificassem suas conclusões com argumentos científicos aparente-
mente sólidos.
As propostas de Galton ficaram conhecidas como “eugenia positiva”. Nos EUA, porém, elas fo-
ram modificadas, na direção da chamada “eugenia negativa”, de eliminação das futuras gerações de
“geneticamente incapazes” – enfermos, racialmente indesejados e economicamente empobrecidos
– por meio de proibição marital, esterilização compulsória, eutanásia passiva e, em última análise,
extermínio.
Como salienta Edwin Black no livro A Guerra contra os Fracos, “os EUA estavam prontos para
a eugenia antes que a eugenia estivesse pronta para os EUA”. O aumento no número de imigran-
tes no final do século XIX levou o grupo dominante no país, os protestantes cujos ancestrais eram
oriundos do norte da Europa, a buscar motivos para exclusão. Encontraram terreno fértil na pseu-
dociência da eugenia.
Os eugenistas usaram os últimos conhecimentos científicos para “provar” que a hereditarieda-
de tinha papel-chave em gerar patologias sociais e doença. Os imigrantes tornaram-se alvos fáceis
de defensores dessa nova “ciência”, que empregaram os achados do movimento eugênico para
construir a imagem dos imigrantes como pessoas deformadas, doentes e depravadas, encontrando
eco em seus contemporâneos nas Ciências Sociais e na Biologia, entre os quais a eugenia propagou-
se como algo considerado perfeitamente lógico.
Evolucionismo Social: o ingresso da Antropologia na Era da Ciência | 55

O racismo dos primeiros eugenistas norte-americanos não era contra não-brancos, mas contra
não-nórdicos, e as doutrinas de pureza e supremacia raciais eram elaboradas por figuras públicas
cultas e respeitadas. Quando as teorias de Mendel chegaram aos EUA, esses pensadores influentes
acrescentaram um verniz científico ao ódio racial e social.
O líder do movimento eugenista dos EUA foi Charles Davenport, que dirigia o laboratório de
Biologia do Brooklin Institute of Arts and Science, em Long Island, instalado em Cold Spring Harbor.
Em 1903, obteve da Carnegie Institution o estabelecimento de uma Estação Biológica Experimental
no local, onde a eugenia seria abordada como ciência genuína. Em seguida, juntou-se aos criadores
de animais e especialistas em sementes da American Breeders Association, muitos deles convencidos
de que o conhecimento mendeliano sobre gado e plantas era aplicável a seres humanos.
O próximo passo de Davenport foi identificar os que deveriam ser impedidos de se reproduzir.
Em 1909 criou o Eugenics Record Office para registrar os antecedentes genéticos dos norte-america-
nos e pressionar por legislação que permitisse a prevenção obrigatória de linhagens indesejáveis.
Para isso, o grupo concluiu que o melhor método seria a esterilização, e o estado de Indiana foi a
primeira jurisdição do mundo a introduzir lei de esterilização coercitiva, logo seguido por vários ou-
tros estados. Desde o início, porém, o uso de câmaras de gás estava entre as estratégias discutidas
para eliminação daqueles considerados indignos de viver.
Com o tempo, a eugenia passou a ser vista como ciência prestigiosa e conceito médico legí-
timo, disseminada por meio de livros didáticos e instituições de instrução eugenista. No primeiro
Congresso Internacional de Eugenia, em 1912, líderes de delegações dos EUA e países europeus
formaram o Comitê Internacional de Eugenia, que, posteriormente, deu origem à Federação In-
ternacional de Organizações Eugenistas, cuja agenda política e científica era dominada pelos EUA,
para onde eugenistas estrangeiros viajavam para períodos de treinamento em Cold Spring Harbor.
Na Alemanha, a eugenia norte-americana inspirou nacionalistas defensores da supremacia ra-
cial, entre os quais Hitler, que nunca se afastou das doutrinas eugenistas de identificação, segrega-
ção, esterilização, eutanásia e extermínio em massa dos indesejáveis, e legitimou seu ódio fanático
pelos judeus envolvendo-o numa fachada médica e pseudocientífica.
Não houve apenas extermínio em massa de judeus e outros grupos étnicos. Em julho de 1933,
foi decretada lei de esterilização compulsória de diversas categorias de “defeituosos” e, com o iní-
cio da Segunda Guerra Mundial, os alemães considerados mentalmente deficientes passaram a ser
mortos em câmaras de gás. Médicos nazistas realizavam experimentos em prisioneiros nos campos
de concentração, e, em Auschwitz, Mengele dedicou-se ao estudo de gêmeos para investigar a con-
tribuição genética ao desenvolvimento de características normais e patológicas – de 1 500 pares de
gêmeos submetidos à suas experiências, menos de 200 sobreviveram.

A nova eugenia do século XXI


A revelação das atrocidades nazistas desacreditou a eugenia científica e eticamente, fez com
que a palavra desaparecesse abruptamente do uso. No entanto, a eugenia não desapareceu, mas
se refugiou em muitos casos sob o rótulo “genética humana”. O laboratório de Cold Spring Harbor
é dirigido hoje por um dos descobridores da estrutura de dupla hélice do DNA, o geneticista Ja-
mes Watson, que vem propagando idéias claramente eugênicas. Avanços científicos vêm sendo
56 | Teorias Antropológicas

direcionados à identificação de “indesejáveis”, como a utilização de exames que detectam doenças


genéticas por companhias de seguro e planos de saúde e o uso de bancos de DNA no controle de
imigração.
À medida que diminui o número de filhos por casal, pressiona-se para que sejam cada vez mais
perfeitos. Técnicas de diagnóstico pré-natal permitem detectar bebês com problemas genéticos, e
embora a decisão sobre aborto terapêutico seja pessoal, difunde-se o conceito de que é cruel não
levar em conta a qualidade de vida e que interrompê-la pode ser um ato de amor. Os pais também
são levados a priorizar a qualidade de suas próprias vidas. Como saber, porém, o que faz com que a
vida não mereça ser vivida ou não mereça ser cuidada?

Fertilização in vitro
Num futuro próximo, se a eugenia for além dos abortos terapêuticos para de fato projetar
bebês que se beneficiem de todos os avanços da genética, provavelmente não fará sentido que a
concepção ocorra da maneira tradicional, mas sim em clínicas de fertilização in vitro.
No final de sua vida, Galton escreveu um romance chamado Kantsaywhere, em que descrevia
uma utopia eugênica. Após o exame de suas características genéticas, os habitantes de Kantsaywhe-
re com material genético inferior eram destinados ao celibato em colônias de trabalho. Os que rece-
biam um “certificado de segunda classe” podiam se reproduzir “com reservas” e os bem qualificados
eram encorajados a casar entre si. Em 1997, o filme Gattaca esboçava uma versão moderna de um
paraíso eugênico em que a procriação ocorria por fertilização in vitro e só eram implantados embri-
ões sem defeitos genéticos. Como salienta o geneticista Nicholas Gillham, Kantsaywhere e Gattaca
são lugares semelhantes e as questões éticas levantadas são as mesmas – a diferença está em um
século de avanços tecnológicos.

Andréa Trevas Maciel Guerra, médica geneticista, é professora titular do Departamento


de Genética Médica da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp.

Atividades
1. Por que o Evolucionismo Social favoreceu o processo de colonização dos países do “Novo Mundo”
pelas nações da Europa Ocidental?
Evolucionismo Social: o ingresso da Antropologia na Era da Ciência | 57

2. Com o ingresso da Antropologia na Era da Ciência surgem os cientistas sociais. Que papel
desempenhavam esses “homens de ciência”?

3. O Evolucionismo Social, segundo a teoria de Morgan, divide em estágios o desenvolvimento das


sociedades e culturas humanas. Quais são esses estágios e o que os diferencia?
58 | Teorias Antropológicas

4. Como a escola evolucionista colabora para o desenvolvimento da teoria do “racismo científico”?


Antropologia Difusionista:
a reação à racialização das
relações humanas
A Escola Histórico-Cultural buscou estudar o desenvolvimento cultural como processo de difu-
são. Cronologicamente, essa escola surge nos círculos intelectuais da Áustria e da Alemanha, no final do
século XIX. Um dos seus principais autores é o alemão Leo Frobenius.
Nessa linha de pesquisa, surgem os trabalhos do etnólogo Fritz Graebner1, que estudou dentro
da mesma bitola conceitual o povo da Oceania. Esses estudos repercutem num dos principais centros
de elaboração teórica da Europa: Viena. Lá, coração do debate intelectual da época, o padre Wilhelm
Schmidt2 estudou a distribuição de grupos humanos em círculos culturais.
Ao lado de Berlim, Viena despontava como o centro de articulação dessa escola. A teoria do círculo
cultural considera parte de seu universo: a distribuição geográfica, a história de desenvolvimento cultural
de um determinado povo e o estudo estratificado dos elementos que compõem a cultura existente.
Esses conceitos migraram para os círculos intelectuais britânicos, sufocados pelo racismo acen-
tuado adotado pela escola do Evolucionismo Cultural, e encontraram, do outro lado do oceano, uma
forte expressão nos trabalhos pioneiros e fundamentais para a Antropologia moderna, do norte-ameri-
cano de origem alemã, Franz Boas.
Esse é o caldo de cultura que embala a Escola Difusionista, guarda-chuva conceitual dessas três
experiências intelectuais, dadas na Áustria e Alemanha, Inglaterra e Estados Unidos da América. E como
centro de unidade, a noção de um ponto original de cultura. Em diversos aspectos, há convergências e
muitas divergências, características de várias outras escolas teóricas e conceituais.
1 Fritz Graebner (1877-1934), etnólogo alemão. Freqüentou a Escola de Berlim de 1887 a 1895, especializou-se em culturas da Oceania e
Austrália. Tornou-se conhecido por sua palestra Kulturkreise und kulturrschichten in Ozeanien apresentada na reunião de Antropologia, Etnologia
e Pré-história da Sociedade de Berlim em 1905. Em seus estudos pretendiam estabelecer “círculos culturais” Kulturkreise.
2 Wilhelm Schmidt (1868-1954) foi um padre católico na Alemanha e um etnologista que estudou as religiões do mundo e escreveu
extensamente sobre a sua inter-relação aplicando a idéia de círculo de cultura à escala mundial. Fundou a revista Anthropos em 1905 e criou
sua própria versão do Kulturkriese.
60 | Teorias Antropológicas

Antropologia Difusionista
Os principais teóricos da Antropologia Difusionista objetivaram quebrar o conceito racista im-
pregnado na Antropologia do final do século XIX e início do século XX.
Esse foi um traço comum em seus três núcleos de articulação: as escolas alemã-austríacas, inglesa
e a norte-americana. Seus principais representantes foram os alemães Friedrich Ratzel e Leo Frobenius,
os ingleses Elliot Smith, W. J. Perry e W. H. R. Rivers, e o norte-americano Franz Boas.
Para essa escola, a questão fundamental era a cultura, e não a raça, como fator determinante à
diversidade cultural humana. Os fatores dessas singularidades deveriam ser procurados nos estágios
da produção cultural de cada povo, e não na sua conformação racial, linha percorrida pelos trabalhos
– no período anterior – desenvolvidos por Herbert Spencer (Princípios da Biologia, 1864), entre outros
teóricos.
O nome difusionismo está ligado à difusão, à distribuição de elementos culturais de um centro
para a periferia de uma área. Segundo seus teóricos, uma cultura teria origem num determinado ponto
humano, e de lá teria se difundido para outras áreas culturais: de um ponto de origem, essa cultura se
desdobra – difunde-se – para outras áreas humanas.
Cada grupo humano lança mão de aspectos, formas culturais que vão ao encontro dos seus in-
teresses imediatos ou de sua ecologia humana3, de suas formas de organização do mundo material e
imaterial.
Para tanto, em suas diversas modulações, a Escola da Antropologia Difusionista destaca três as-
pectos centrais da sua produção etnográfica antropológica: reconstrução sistemática da história dos
povos estudados, destaque no trabalho de campo – no trabalho etnográfico de observação e registro
de dados –, e a criteriosa coleta de dados primários.
Com a reconstrução histórica – linha do tempo – era possível refazer a trajetória do desdobra-
mento cultural de um ponto de origem aos estágios subseqüentes. Na massa de elementos culturais
disponíveis, procurava-se identificar os elementos primeiros dessa manifestação cultural e sua origem,
da qual se desdobraram as demais manifestações, ou seja, identificação do ponto central do qual se
originaram as demais formas, por difusão dos seus elementos culturais.
O trabalho de campo dava lastro a esse objetivo. Na observação direta dos fenômenos e nas suas
comparações exteriores – forma – e interiores – essência – seria possível identificar esses elementos
primários e seus fatores derivados.
A coleta de dados primários apresentaria ao antropólogo as informações culturais mais próximas
de seus estados originários, com uma melhor identificação de aspectos primários e derivados. O traba-
lho de gabinete não daria ao antropólogo essa capacidade de observação de dados.
Essa escola marcou profundamente a tradição antropológica, ao procurar se esquivar dos estig-
mas preconceituosos presentes nas noções de raça. Ela reforça a tese da existência de uma família hu-
mana, com diversidades nas formas de reprodução de suas condições materiais e imateriais de vida.
Apesar de pontos distintos de um centro intelectual para outro, formou-se uma noção comum da difu-

3 Ecologia humana é a relação do ser humano com seu ambiente natural. Para a sobrevivência e reprodução dos indivíduos é necessário um
meio ambiente humano saudável que combine tanto elementos naturais (orgânicos e inorgânicos) quanto os culturais que dão suporte à vida
humana nos diversos ambientes. O ser humano adapta-se ao meio ambiente (orgânica, física e mentalmente) possibilitando sua existência em
todos os ambientes terrestres do planeta.
Antropologia Difusionista: a reação à racialização das relações humanas | 61

são da cultura de um ponto central de origem para outros pontos geográficos e humanos, por assimila-
ção ou apropriação desses dados culturais por um ou diversos povos.

Conceitos difusionistas
A Escola Difusionista ampliou o campo lexical da Antropologia moderna. As diversas fontes de
produção de sua área conceitual legaram aos estudos antropológicos um arsenal de idéias que alargou
o repertório das Ciências Sociais, em especial nos Estudos Culturais.
A metáfora mais comum dessa escola é a da pedra no lago. Os difusionistas criaram a imagem de
que uma cultura é como uma pequena pedra lançada num lago. Suas ondas vão se propagando de um
centro pequeno que se alarga, permanentemente, até as suas margens, regionais ou globais.
Cada pequeno círculo formado significa uma cultura, com suas particularidades e especificida-
des, mas com partes da mesma onda original. Os anéis representariam experiências particulares de
formas de apropriação da mesma “pedra” cultural.
Essa teoria traz embutida duas idéias fundamentais que opuseram os difusionistas aos evolucio-
nistas: a natureza da cultura e a unidade psíquica do ser humano.
Ao advogar a natureza como fonte “inspiradora” da diversidade cultural, os difusionistas deslocam
o debate da área das relações raciais para o estudo da natureza cultural de cada povo. Esse deslocamen-
to é fundamental para a compreensão de que não há raças superiores ou inferiores, mas povos e grupos
humanos que são distintos na forma de apropriação, de retenção e utilização dos elementos culturais
comuns. Cada forma de utilização desses recursos estava ligada à especificidade desse grupo em rela-
ção aos demais, detentores das mesmas raízes culturais.
Na mesma linha navega o conceito de unidade psíquica do ser humano. Os homens, segundo
os difusionistas, têm as mesmas capacidades cognoscíveis, as mesmas competências de apreensão da
realidade circundante. Os homens seriam assim parte da mesma família humana, com as mesmas com-
petências.
No fundamental, a distinção entre a escola evolucionista e a difusionista é a de que a primeira
centra sua reflexão no conceito de que – aos poucos – os seres humanos constituíram diferenças raciais
no seu processo de evolução. Os difusionistas explicam essa diversidade cultural pela forma com que os
povos se apropriam de modos diferentes dos mesmos elementos culturais, mesmo compartilhando a
mesma base psíquica de competências intelectuais, para a interpretação do mundo.
Entre os principais conceitos consolidados por essa escola estão: traços culturais; áreas e círculos;
culturais aculturação; fusão e síntese culturais; hiperdifusionismo e relativismo cultural, culturalismo ou
particularismo histórico.
::: Traços culturais – os traços culturais são elementos que permitem identificar um fenômeno
cultural comum em diversos povos. Essas são as marcas identificadoras da origem daquela
manifestação cultural e indicam sua precedência e sua unidade original, a despeito da distân-
cia espacial entre os povos estudados.
::: Áreas culturais/círculos culturais – as áreas culturais se constituem em centros de produ-
ção tecnológica e cultural, que servem de referência para as demais estruturas humanas que
62 | Teorias Antropológicas

gravitam ao seu redor. Elas são pontos de referência para diversos povos humanos realizarem
suas experiências culturais, na produção e reprodução de suas vidas materiais e imateriais. Os
círculos culturais se ligam à metáfora da pedra jogada no lago, com sua repercussão em forma
de anéis se ampliando; do centro para suas extremidades. Esses anéis são distintos a cada mo-
mento, porém com a mesma origem de difusão.
::: Aculturação – o conceito de Aculturação explica o abandono de determinado traço cultural
por outros traços, trazidos por outros povos. A aculturação se dá quando uma determinada
cultura é substituída por outra, de fora para dentro, pela conquista ou ocupação de uma área
ou território.
::: Fusão e Síntese Culturais – a Fusão e Síntese Culturais ocorreriam graças ao contato dos di-
versos traços culturais entre os diversos povos que, ao se apropriarem desses traços, amarram-
nos com os seus traços originais, criando uma fusão ou síntese entre os novos e antigos traços.
Além de conter elementos originários da cultura anterior, passariam a conter também os tra-
ços novos, transmitidos pelos contatos diretos ou indiretos com outras culturas.
::: Hiperdifusionismo – o Hiperdifusionismo é um conceito que proclama a idéia de que a cul-
tura teve um único ponto de origem – distinto dos conceitos de círculos e áreas – e de lá se
difundiu para toda a humanidade. Muitos difusionistas ingleses advogaram a tese de que toda
cultura teria se originado no Egito Antigo.
::: Relativismo Cultural – o conceito de Relativismo Cultural quebra a noção de culturas su-
periores versus culturas primitivas. Segundo os difusionistas, as culturas são relacionadas às
especificidades apresentadas por um determinado povo, em relação a outro. A diversidade é
explicada pela forma com que um povo se apropria de um certo traço cultural, sem que isso
estabeleça uma relação de superioridade e inferioridade entre essas diversas formas de mani-
festações culturais. Essa noção ajuda a explicar os conceitos de Culturalismo – a cultura como
centro das investigações da Antropologia – e Particularismo Histórico – a aplicação particular
dada por determinado povo, num determinado período histórico, a um determinado “traço
cultural”.
Esses movimentos de transferências de traços culturais – mitos e ritos – e tecnológicos – organiza-
ção tecnológica da reprodução das condições de vida – se dão, segundo os difusionistas, pela
::: imitação – quando um povo imita o sucesso de uma certa tecnologia, como a invenção da
roda e sua difusão por diversos povos;
::: negociação – quando um povo em contato direto com o outro adota uma determinada tec-
nologia, em razão das relações culturais estabelecidas entre ambos, como a adoção de uma
técnica de produção que amplia suas as relações comerciais;
::: ocupação militar – como as conquistas dos territórios do “Novo Mundo” pelos países euro-
peus, com a imposição dos seus costumes, hábitos e usos tecnológicos, a exemplo do que
ocorreu no Brasil, com a chegada dos navegadores portugueses.
Antropologia Difusionista: a reação à racialização das relações humanas | 63

Escola alemão-austríaca

Friedrich Ratzel (1844-1904) –


teórico do determinismo geográfico e do espaço vital
O geógrafo Friedrich Ratzel foi influenciado pela teoria darwinista da seleção natural. Professor na
Universidade de Lípsia, na Alemanha, desenvolveu uma teoria baseada na concepção do determinismo
geográfico.
Por essa visão, o homem vive condicionado pelas condições geográficas que o cercam; o meio
físico – as condições físicas do solo, a vegetação, a ecologia e fauna, os aspectos climáticos: determinis-
mo geográfico.
Ratzel explicava a diversidade das culturas com base na diversidade das condições físicas nas
quais essas culturas se desenvolviam. As respostas e soluções dadas pelos homens, para cada condição
física que os cercava, produziam um tipo diferente de manifestação cultural.
Esses princípios teóricos não se restringiram à Geografia. Mais tarde, o conceito de determinismo
geográfico migrou para o campo da política. Nesse campo, a Geografia toma a feição de expansionismo
territorial alemão, travestida pelo conceito de “espaço vital” (Lebensraum). Esse conceito serviu de justi-
ficativa para a ocupação da Polônia4, que deu início aos conflitos que arrastaram a Europa e o resto do
mundo para a Segunda Guerra Mundial.
O geógrafo alemão viveu num período singular da história de seu país: tardias experiências capi-
talistas, diferentes da Inglaterra, e resquício de período feudal; poderes regionais, sem uma centraliza-
ção administrativa; luta pela hegemonia entre a Prússia e a Áustria. A Alemanha atravessava o período
de sua unificação5.
No campo da Geografia, a exemplo de outras Ciências Sociais, a disciplina experimentava sua
transição para o campo da Ciência. No final do século XIX, a Geografia tinha dois vetores centrais: “geo-
grafia política-estatística” e a “geografia pura”.
A primeira se constituía, com base em um levantamento estatístico mais abrangente que permi-
tisse a constituição de um painel amplo e sistemático, tendo como sustentação analítica sua base terri-
torial. A segunda, na qual se filia Ratzel, sustenta-se numa unidade regional e registra os limites naturais
do seu espaço físico, do qual deriva o conceito de “espaço vital”.
Num cenário de transformações políticas e sociais, a Geografia de Ratzel se destaca. Ela dá lastro
para a emergência alemã, num quesito fundamental. A Alemanha tem uma entrada tardia no mundo
4 Em 1933, o líder do Partido Nazista da Alemanha, Adolf Hitler, estava determinado a transformar seu país na maior potência do mundo.
Empenhou-se em rearmar, secretamente, o exército alemão, descumpriu as cláusulas do Tratado de Versalhes – que encerrou oficialmente
a Primeira Guerra Mundial – e iniciou o avanço ao leste europeu. Hitler aproveitou-se do medo das potências capitalistas frente à revolução
Comunista para fortalecer seu exército e, em setembro de 1939, invadiu a Polônia, que foi derrotada rapidamente e submetida a uma política
de germanização. Começava a Segunda Guerra Mundial.
5 A unificação dos Estados germânicos – Alemanha – concretizou-se em janeiro de 1871 após um longo processo iniciado com as Revoluções
em 1848, passando pela Guerra dos Ducados (1864), Guerra Austro-Prussiana (1866) e finalizado com a vitória da Prússia na Guerra Franco-
Prussiana (1870-1871) formando o Segundo Reich alemão governado pela dinastia prussiana. A divisão política da Alemanha não mais
ameaçava o projeto econômico germânico e, logo, a Alemanha se tornara uma das maiores potências européias embalada pelo antigo desejo
de unificação, pelo fato de todos falarem uma mesma língua e terem a mesma base cultural.
64 | Teorias Antropológicas

capitalista e faltam-lhe as prerrogativas essenciais para sua expansão: possuir colônias, territórios e re-
cursos naturais, diferentes da Inglaterra e da França. Sua concepção geográfica serviu como uma luva
aos projetos de unificação de Otto von Bismarck6 (1815-1898), primeiro ministro da Prússia e do Império
Alemão.
Sua principal obra, Antropogeografia, fundante da Geografia Humana, foi publicada em 1882.
Ratzel aplica fundamentos básicos da história ao universo da Geografia. O epicentro de suas reflexões
são as condições determinantes da natureza sobre as condições de produção e reprodução das condi-
ções de vida do homem.
Essas condições circundantes desempenhariam papéis fundamentais na constituição de vida da
humanidade, em seus diversos aspectos: físicos e psíquicos, na sua constituição física e nas suas repre-
sentações mentais e psicológicas. Segundo Ratzel, essas condições físicas e geográficas moldavam a
anatomia cultural de uma determinada sociedade. Uma natureza rica geraria uma sociedade rica; uma
natureza empobrecida geraria uma sociedade pobre.
Ratzel bebe na fonte teórica de Herbert Spencer. Para ele, o desenvolvimento social se asseme-
lhava a um organismo. Os homens se agrupavam em sociedades; estas se transformavam em Estados e,
por fim, estes últimos se convertiam em organismos. Esse rastro da experiência social era determinado
pelas condições geográficas dadas: solo, recursos naturais, condições de vida e reprodução das condi-
ções sociais.
A antropogeografia de Ratzel estuda as relações do homem com o meio ambiente. Para o teórico
alemão, o território era a base da reprodução das condições de vida de um povo. O progresso impunha
a necessidade de expansão territorial. Essa construção teórica dá como natural a instituição de um “es-
paço vital” para o desenvolvimento das potencialidades de um povo. Uma sociedade em desenvolvi-
mento dependerá, cada vez mais, de recursos expandidos para assegurar seu desenvolvimento pleno e
satisfatório, justificava Ratzel.
Diferente dos estudos geográficos anteriores, a Geografia de Ratzel dá destaque ao homem. Ela
abre caminho para uma série de linhas possíveis de estudos, que favorecerão o desenvolvimento da
Antropologia como ciência social relevante: aspectos históricos do desenvolvimento; espaços geográfi-
cos e desenvolvimento territorial; dispersão do homem pela terra e suas reproduções de forma de vida;
distribuições humanas e culturais; isolamentos e mestiçagem; estudos das áreas ocupadas e da cultura
desenvolvida numa localidade ou área geográfica.
No aspecto metódico, os estudos de Ratzel dão contribuições importantes ao legado antropoló-
gico. Ratzel concebe a Geografia como ciência empírica, prática, palpável. Suas técnicas de pesquisa e
análise tinham, na observação direta, seu ponto de apoio para as descrições metódicas feitas, na linha
do que preconiza a etnografia. A observação e a descrição são a base das sínteses feitas pelo geógrafo
alemão, para muitos o precursor da visão ecológica do mundo.
A antropóloga Lilia Moritz Schwarcz destaca o papel da escola inaugurada por Ratzel no campo dos
estudos sociais e sua influência em outras áreas das ciências humanas. Segundo Schwarcz (1993, p. 58):

6 Otto Von Bismarck (1815-1898), político e diplomata, já havia sido primeiro-ministro na França e embaixador na Rússia quando retornou a
Berlim em 1862 e foi nomeado primeiro-ministro da Prússia. Conservador, aristocrata e a favor de uma monarquia centralizada, defendia, com
o nacionalismo e o militarismo, a unificação dos Estados germânicos. Com o apoio da alta burguesia modernizou o exército, criou políticas de
guerras que auxiliaram na expansão do território prussiano até a efetiva unificação da Alemanha, em 1871, quando foi nomeado primeiro-
ministro do Império Alemão, o “Chanceler de Ferro” (1871-1890).
Antropologia Difusionista: a reação à racialização das relações humanas | 65

Paralelamente ao Evolucionismo Social, duas grandes escolas deterministas tornam-se influentes. Em primeiro lugar,
as escolas deterministas geográficas, cujos maiores representantes, Ratzel e Buckle, advogavam a tese de que o desen-
volvimento cultural de uma nação seria totalmente condicionado pelo meio. Para os autores dessa escola era suficiente
a análise das condições físicas de cada país – “dá-me o clima e o solo que lhe direi de que nação se fala” – para uma
avaliação objetiva de seu “potencial de civilização”.

As teorias de Ratzel apresentavam as civilizações européias como superiores às demais. Para ele,
isso justificaria a imposição da dominação desses povos pelos europeus e a exploração de seus recursos
naturais pelas potências européias. O determinismo geográfico e a necessidade de ocupação do “espa-
ço vital” para o desenvolvimento das potencialidades de um determinado povo são as bases teóricas
conceituais dos estudos desenvolvidos por Ratzel, no campo das Ciências Sociais, com forte influência
nas Teorias Antropológicas.

Leo Frobenius (1873-1939) – a Antropologia como aventura humana


O antropólogo, etnólogo e explorador alemão Leo Frobenius desenvolveu um intenso trabalho
de campo, tendo a Antropologia como forma de expressão da aventura humana. Seu foco de estudos
foi a arte pré-histórica, a qual se tornou uma grande expressão mundial.
A Antropologia deve a Frobenius a idéia dos ciclos culturais. Segundo esse conceito, a freqüência
na associação dos elementos culturais permite a formação de um ciclo – um conjunto de determinados
valores culturais, que parte de um ponto único dentro da área ocupada. A área ocupada por esses va-
lores forma os círculos culturais. Esse conceito fez com que a obra do antropólogo alemão se tornasse
uma referência para os estudos antropológicos posteriores.
Sobre o antropólogo alemão disse M. Amadou Mahtar M’Bow, diretor geral da Unesco7, no prefá-
cio do monumental História Geral da África:
Durante muito tempo, mitos e preconceitos de toda espécie ocultaram ao mundo a verdadeira história da África. As
sociedades africanas eram vistas como sociedades que não podiam ter história. Apesar dos importantes trabalhos
8
realizados desde as primeiras décadas deste século [20] por pioneiros como Leo Frobenius, Maurice Delafosse e
9
Arturo Labriola , um grande número de estudiosos não-africanos, presos a certos postulados, afirmavam que essas
sociedades não podiam ser objeto de um estudo científico, devido, sobretudo, à ausência de fontes e de documentos
escritos (M’BOW, 1982, Prefácio).

Desde cedo, o antropólogo interessou-se pelo trabalho dos primeiros exploradores alemães dos
territórios africanos. Frobenius desenvolveu intenso trabalho de campo e de organização dos seus re-
sultados, nos museus etnográficos de Bremen, Basel e Leipzig.
Sua obra Origin of African Cultures (1898) significa uma mudança de vetor nos estudos da cultura
dos povos africanos. Frobenius procurou demonstrar a lógica da organização cultural desses povos,
o que – para alguns antropólogos – parecia irregular e ilógico. Frobenius buscou o sentido, a lógica,

7 Unesco – Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura, fundada em 16 de novembro de 1945, promove a cooperação
internacional nas áreas de educação, ciências, cultura e comunicação entre as Nações Unidas (193 Estados Membros e 6 Membros Associados)
na África, nos Estados Árabes, na Ásia e Ilhas do Pacífico, na Europa, na América do Norte, na América Latina e no Caribe.
8 Maurice Delafosse (1870-1926), etnólogo francês. Administrador e estudioso colonial francês na África, trabalhou na descoberta de um fio
histórico e de estruturas originais nas sociedades africanas.
9 Arturo Labriola (1873-1959), economista italiano e socialista de tendência sindicalista revolucionária, opunha-se à doutrina fascista regida
por Benito Mussolini.
66 | Teorias Antropológicas

a razão e as motivações contidas nessas expressões culturais. Dessa forma, abre-se espaço para outra
experiência desenvolvida depois no campo da Antropologia: a etnociência10.
O antropólogo funda, na Alemanha, o Instituto de Pesquisas da África. Entre 1904 e 1935, Frobe-
nius desenvolveu inúmeras incursões no território africano. Desses estudos sobre as antigas expressões
culturais e seus contatos com diversos povos, deduziu que havia uma origem comum entre os diversos
povos africanos e povos de outras origens culturais, como os árabes.
Frobenius estudou os mitos, ritos e as pintura rupestres de diversos povos africanos. Como parte
desse trabalho efetuado em terras africanas, colheu mitos cosmológicos e lendas culturais de povos do
Zimbábue, Congo, Marrocos, Argélia, Líbia, Egito, Sudão e da África do Sul. Com esses estudos, Frobe-
nius formulou um conceito que provocou impacto no campo dos estudos antropológicos: o conceito
da continuidade das culturas. Esse conceito indicava o desdobramento de aspectos ou traços culturais
comuns a diversos povos, desde uma origem até seu desdobramento posterior, pela difusão de aspec-
tos fundamentais dessa cultura original.
Como conseqüência dessa elaboração, Frobenius conceituou os denominados círculos/áreas cul-
turais. Por esse conceito, os povos constituem áreas em que partilham elementos e traços culturais, por
difusão ou assimilação. Essas áreas comportam diversos povos, que têm um banco cultural comum,
com conexões entre seus símbolos religiosos, estrutura mitológica e os aspectos culturais de suas pro-
duções artísticas.
Para divulgar seus estudos, Frobenius fundou uma revista (Paideuma11) e, na qualidade de diretor
do Museu de Etnologia (1934, em Frankfurt, na Alemanha), apresentou aos europeus a sofisticada visão
de mundo que se projetava a partir das produções artísticas africanas.
Para Ki-Zerbo, o trabalho desempenhado por Frobenius modifica a visão metodológica dos povos
africanos:
[...] Ao mesmo tempo, pioneiros como Frobenius [...], que, sem preconceitos, haviam trabalhado na descoberta de um
fio histórico e de estruturas originais nas sociedades africanas com ou sem Estado, continuavam seus esforços, retoma-
dos e aperfeiçoados por outros pesquisadores contemporâneos. (KI-ZERBO, 1982, p. 34)

Os trabalhos pioneiros de Leo Frobenius estenderam-se também ao campo da história. Muitos


dos seus estudos deram bases à reconstrução histórica da trajetória de diversos povos africanos, estu-
dados pelo pensador alemão.
Para J. D. Fage, a contribuição de Frobenius para os estudos dos povos africanos é fundamental.
Quando redigiu para a Unesco o texto A evolução da historiografia da África, Fage disse em uma nota de
rodapé:
É impossível num artigo desta dimensão fazer justiça à grandeza da produção de Frobenius. Sua última obra síntese
foi Kulturgeschichte Afrikas (Viena, 1933) e sua obra mais notável foi, provavelmente, a coleção em 12 volumes Atlantis:
Volksmärchen und Wolksdichtungen Afrikas (Iena, 1921-1928). Mas cabe também mencionar os livros que relatam cada
uma suas expedições, por exemplo, para os Iorubas e Mosso: Und Afrika Sprach (Berlin-Charlottenburg, 1912-1913). Ver
a bibliografia completa em Freda Kretschmar, Leo Frobenius (1968). (FAGE, 1982, p. 56)

Leo Frobenius consolidou os conceitos de continuidade de cultura e áreas – círculos culturais e


deu, assim, uma grande contribuição para a ampliação do repertório antropológico e para a superação
da visão preconceituosa que ainda vigia no campo dos estudos da disciplina.
10 A etnociência é o estudo dos conhecimentos e percepções de qualquer sociedade sobre as diferentes áreas.
11 Paideuma (visualização da cultura como um ser vivo) é um conceito utilizado por Leo Frobenius inspirado em Paidéia, que reúne as idéias
de educação e de cultura em um só projeto. É também o nome dado à revista fundada por ele em 1921.
Antropologia Difusionista: a reação à racialização das relações humanas | 67

Escola inglesa
Na Inglaterra, o difusionismo assumiu uma característica peculiar. Como reação ao racismo mani-
festado por alguns teóricos do Evolucionismo Social, os difusionistas advogaram a idéia conceitual de
que todas as culturas, e suas diversidades plásticas12 e de conteúdos, tiveram uma única origem, e de lá
se difundiram para todos os quadrantes do planeta, de forma direta ou indireta. Entre seus principais
protagonistas encontram-se William Halse Rivers Rivers, Grafton Elliot Smith e William James Perry.
Com nuances em suas concepções teóricas, todos foram difusionistas, na raiz da expressão, com
a noção da necessidade de reconstrução histórica dos feitos dos povos estudados, e da magnitude (re-
gional e material) da difusão cultural: hiperdifusionismo e heliocentrismo.

William Halse Rivers Rivers (1864-1922) – as reconstruções


históricas dos povos estudados
O britânico William Halse Rivers Rivers desenvolveu atividades em três áreas: Medicina, Psicologia
e Antropologia. Teve intensa atividade docente e lecionou no Guy’s Hospital, na capital inglesa, e na con-
ceituada Universidade de Cambridge, onde desenvolveu pesquisas na área da Psicologia Experimental.
Foi membro do Royal College of Physicians, em Londres.
Seus estudos foram realizados em diversas localidades do Império Britânico: Austrália (Estreito de
Torres – 1898), Índia (1902) e Melanésia (1908 e 1914). Apesar das atividades desempenhadas no campo
da Medicina, Rivers se destacou na Antropologia.
Uma de suas contribuições na área da Antropologia foi o empenho na reconstrução histórica dos
povos estudados. Essa já era uma das atividades desempenhadas por antropólogos anteriores, mas
Rivers dá seu pedaço de contribuição a essa metódica, que passará, no futuro, a ser uma das mecânicas
científicas mais comuns aos difusionistas. Sua ruptura epistemológica deu-se em 1910, quando suas
noções difusionistas tornam-se mais evidentes.
Reconhecido e laureado em diversas instituições de Ensino Superior, Rivers morre em 1922, de-
pois de desempenhar destacado papel na Primeira Guerra Mundial. Suas principais contribuições na
área da Antropologia foram: The Todas (1906), The History of Melanesian Society (1914) e Kinship and
Social Organization (1914).

Grafton Elliot Smith (1871-1937) – teórico do Hiperdifusionismo


O australiano Grafton Elliot Smith formou-se em Medicina e se especializou em Anatomia. Sua
maior contribuição ao estudo da Antropologia foi a Teoria do Hiperdifusionismo. Por essa teoria, todas
as formas de manifestações e organizações das culturas derivariam de um mesmo local e povo, do qual
se difundiria para toda a humanidade. Dessa forma, todas as manifestações culturais e suas múltiplas
formas de organização teriam um ponto em comum, numa remota civilização, na Pré-História.

12 Diversidade plástica refere-se à variedade de imagens contruídas pelo homem utilizando-se de técnicas que manipulam materiais para dar
formas e imagens que revelem uma concepção estética e poética em um dado momento histórico.
68 | Teorias Antropológicas

Seu primeiro campo de estudo foi o cérebro humano. Ao radicar-se em Londres, ele teve à sua
disposição um dos principais centros de pesquisas “etnográficos” do seu tempo: O British Museum, onde
catalogou a coleção de cérebros do museu. Mais tarde, lecionou no Egito, na Escola de Medicina do Cai-
ro, onde adotou um método revolucionário na época para os estudos das múmias egípcias, o raio X.
Para o antropólogo britânico, ao adotar sua teoria do hiperdifusionismo, os principais fenômenos
civilizatórios do megalítico teriam sua origem no Egito, o epicentro das civilizações modernas. Dessa
região, esses fenômenos teriam se difundido para a Síria, Creta, África Oriental, sul da Arábia e para a
região da Suméria.
Apesar das controvérsias provocadas pela teoria de Smith, ela procura eliminar a polêmica de que
a diversidade cultural dos povos devesse ser medida por uma escala de superioridade e inferioridade
raciais, já que todas as culturas teriam, supostamente, a mesma origem geográfica e humana.

William James Perry (1887-1949) – o teórico do Heliocentrismo


As teorias de William James Perry caminharam na direção das propostas por Smith, de quem foi
colaborador nos estudos antropológicos da época.
Perry lecionou na University College, onde se notabilizou nos debates sobre a origem das culturas
e sua diversidade plástica.
O centro da sua argüição era a de que o Egito foi, em um passado remoto, a origem de todas as
manifestações culturais da humanidade. Suas principais obras enunciavam essa teoria e a sua contri-
buição dada aos estudos da religião: The Megalithic Culture of Indonesia (1918), The Children of the Sun:
a Study in the Early History of Civilization (1923), The Origin of Magic and Religion (1923), The Growth of
Civilization (1924), Gods and Men: The Attainment of Immortality (1927), e The Primordial Ocean: An Intro-
ductory Contribution to Social Psychology (1935).

Escola norte-americana: Franz Boas (1858-1942) –


teórico do Relativismo Cultural
O antropólogo Franz Boas formou-se em Física – com sólida formação em Geografia – em 1881,
na Universidade de Kiel. Seu doutorado intitulou-se “Contribuições para o entendimento da cor da
água”. A inflexão de Boas para a antropologia deu-se num trabalho de campo, quando ele preparava um
livro sobre psicofísica, sobre os esquimós. Esse trabalho foi como um rito de passagem da Física para a
Antropologia, com a qual a disciplina ganhou muito.
Boas formou uma legião de antropólogos, que desenvolverão, mais tarde, a chamada Antropo-
logia Cultural Norte-Americana, da qual ele é considerado o “pai intelectual”: Margaret Mead, Melville
Herkovits, Ruth Benedict. Faz parte dessa família intelectual, o sociólogo brasileiro, aluno de Boas, Gil-
berto Freire, autor de Casa Grande e Senzala.
Antropologia Difusionista: a reação à racialização das relações humanas | 69

Franz Boas emigrou com a família para os Estados Unidos da América em 1887, seis anos após se
formar. Boas introduziu uma cunha diferenciadora no campo da Antropologia, no debate sobre as di-
ferenças raciais. Opondo-se ao Evolucionismo Social, ele argumentará que os diversos povos constituí-
ram experiências culturais, tão sofisticadas quanto as experiências dos povos europeus. O antropólogo
advoga a tese da igualdade racial, infra-estrutura conceitual da Antropologia Cultural contemporânea.
Para Boas, um grupo humano deve ser estudado dentro da singularidade da sua cultura, no seu
universo cultural. Essas expressões culturais não poderiam ser consideradas inferiores, em relação às ex-
pressões culturais dos povos europeus (caucasianos). Boas propõe uma revisão na escalada civilizatória:
o homem saiu da sua condição de selvagem e iniciou sua trajetória em direção à civilização, com uma
conduta linear, obrigatória.
Para ele, a diversidade cultural se constitui na experiência própria da cada povo. Essas experiên-
cias são relativas entre os povos e não absolutas.
Segundo Boas, cada cultura é uma unidade integrada. Ela seria fruto de um desenvolvimento
histórico peculiar, singular, relativo. Numa linha distinta da inaugurada pela Escola Difusionista Alemã,
em especial, por Ratzel, Boas dá destaque à independência dos fenômenos culturais dos determinan-
tes geográficos e das condições biológicas de cada grupo e experiência cultural. Para ele, a cultura se
expressa na interação entre o indivíduo, de uma dada realidade sociocultural, com a sociedade, em sua
dinâmica de desenvolvimento singular.
Com Boas inaugura-se uma nova etapa da Antropologia. A etnografia desencadeada por Boas
não se contentava mais em acumular dados e informações de uma certa cultura. Sua etnografia buscava
o sentido geral expresso nessa massa de dados etnográficos.
Ele é certamente um daqueles que mais contribui para esta mutação. Em suas pesquisas sobre os Kwakiutl e os Chi-
nook do Canadá, ele mostra-nos que no campo tudo deve ser anotado: desde os materiais constituintes das casas até
as notas das melodias que cantam os Esquimós, e isso até ao mais infinito detalhe. Ele considera que não existe objeto
nobre nem objeto indigno da ciência e que, por exemplo, as piadas de um contador são tão dignas de interesse como a
mitologia que exprime o patrimônio metafísico do grupo. A maneira, em particular, como a sociedade tradicional, pela
voz dos mais modestos de entre eles, classificam suas atividades mentais e sociais, deve ser tomada em consideração.
Boas, anuncia assim a constituição daquilo que chamamos hoje de “etnociências”. Enfim, ele é um dos primeiros a nos
ter mostrado não apenas a importância, mas também necessidade, para o etnólogo, de ter acesso à língua da cultura
na qual ele trabalha. As tradições que ele estuda não têm como lhe ser traduzidas. Ele deve recolhê-las ele mesmo na
língua de seus interlocutores. (LAPLANTINE, 2004, p. 66)

Considerações finais
A Escola Difusionista guarda um lugar importante na linha de desenvolvimento das Teorias An-
tropológicas. Ela, em vários aspectos centrais, em especial em sua manifestação inglesa e norte-ameri-
cana, levanta-se contra o racismo intrínseco dos evolucionistas. Porém, no campo da experiência alemã,
sobretudo com os trabalhos de Ratzel, o traço da suposta superioridade racial dos povos europeus
em relação aos demais é nítido. A teoria do espaço vital, expressão de um momento da história alemã,
torna-se argumento fundamental da ação dos alemães, para desencadear a Segunda Guerra Mundial.
70 | Teorias Antropológicas

No aspecto conceitual, sua contribuição foi fundamental. A idéia de que as culturas se difundem
a partir de um ponto de origem – uma pedra jogada na água de um lago – limita a noção de supe-
rioridade de uma cultura em relação à outra, na medida em que todas elas tiveram um denominador
comum. Apesar dos excessos – todas as culturas derivam da experiência do Antigo Egito –, essa escola
apresentou como singularidade o conceito de que cada cultura deve ser compreendida dentro de suas
particularidades.
Ao se apropriarem de um determinado legado cultural – imitação, negociação, ou conquista mili-
tar –, os povos adotam esse legado de acordo com suas particularidades históricas. Essas singularidades
fazem com que esses povos superem suas possíveis limitações físicas – geográficas, topológicas, climá-
ticas e de recursos.
Por fim, as contribuições conceituais que a Escola Difusionista deu aos estudos da Antropologia
marcaram, de forma decisiva, o desenvolvimento dessa ciência, em particular, nos estudos da cultura e
de suas formas de manifestação. Nos campos específicos da etnociência, da etnografia e do trabalho de
campo, muito se deve ao Difusionismo Cultural.

Texto complementar
Pode a Geografia determinar o desenvolvimento?
(GARDINI, 2007)
As teorias do determinismo geográfico que se difundiram entre os séculos XIX e XX procura-
vam afirmar que o desenvolvimento das nações e as características genéticas das diferentes cultu-
ras eram determinados por padrões geográficos. Na época, o principal argumento utilizado para
basear as leis gerais do determinismo geográfico era a condição climática dos lugares. No entanto,
outros elementos da geografia física ganharam status científico, tais como a posição e localização
da rede hidrográfica, o desenho dos litorais, a qualidade do solo e a morfologia do relevo, sendo
usados para esboçar algumas teorias nesse período.
Na relação entre determinismo geográfico e desenvolvimento dos Estados deve-se considerar
a questão da divisão territorial do trabalho. De acordo com Antonio Carlos Robert de Moraes, profes-
sor de Geografia da Universidade de São Paulo (USP), existe uma lógica que ainda não se quebrou,
que começa com a concentração dos principais países capitalistas no Hemisfério Norte. Citando
Formação do Brasil Contemporâneo, de Caio Prado Junior, Moraes lembra que a idéia da colônia de
exploração se assenta num meio tropical que é o meio complementar ao meio europeu. Em função
disso, criam-se certos mecanismos e sociabilidades que serão determinantes de posições que até
hoje persistem. “Acontece que hoje o próprio controle das técnicas e das matrizes tecnológicas se-
gue essa divisão territorial do trabalho. Se buscarmos saber onde é a pátria de uma multinacional,
antes de tudo, é onde estão os seus laboratórios. A área de produção pode se espalhar pelo mundo,
mas os centros de inovação definem bem a nacionalidade das empresas”.
Antropologia Difusionista: a reação à racialização das relações humanas | 71

A história do desenvolvimento das civilizações mostra que não é correto afirmar que antes da
chegada dos homens “civilizados”, das latitudes mais altas, os povos dos trópicos eram “subdesen-
volvidos ou pobres”. Afinal, que argumentos sustentariam a veracidade dessa afirmação? Muitos
estudos mostram que as técnicas desenvolvidas pelas culturas dos trópicos eram bastante desen-
volvidas para a época, muitas delas superiores às dos povos de clima temperado. Os ideais europeus
tornaram-se o modelo de desenvolvimento para o mundo e subjugaram os demais. A partir disso,
difundiu-se a idéia da indolência entre os povos localizados na faixa da linha do equador, e usaram-
se argumentos pseudocientíficos como localização e incidência dos raios solares na superfície da
terra para justificar a dominação.
“Não há fatores climáticos que determinam o fato de um país ser rico ou pobre”, afirma a
professora de Climatologia da Universidade Estadual de Campinas, Luci Hidalgo Nunes. Para ela,
as relações de poder são estabelecidas no âmbito político e não climático, com base, entre ou-
tros fatores, no domínio de recursos naturais, mutáveis historicamente. “O recurso energético, de
enorme relevância, ilustra bem isso: historicamente as nações de maior poderio dominavam, tam-
bém, os recursos energéticos. O carvão, por exemplo, foi fundamental para a ascensão do Império
Britânico, cujo declínio coincide com uma série de circunstâncias, entre as quais a substituição da
matriz energética pelos combustíveis fósseis, e a conseqüente substituição do poderio britânico
pelo norte-americano”, afirma a geógrafa.
Paulo César da Costa Gomes, professor de Geografia da Universidade Federal do Rio de Janeiro
(UFRJ), defende que não há uma relação direta entre as condições geográficas e o tipo de desen-
volvimento de uma nação. “Não há um padrão, nenhuma regularidade, quanto mais uma determi-
nação”. Em seu livro Geografia e Modernidade, ele explica que o determinismo na geografia não se
define apenas como uma metodologia que conduz à verdade, mas também como um instrumento
de previsão. “Ao antecipar os resultados, o determinismo permite uma ação no mundo. Assim, sob
esta forma, a ciência deixa de ser expectadora da realidade para se tornar o meio fundamental de
intervenção”, diz ele.
O professor da UFRJ levanta uma questão complexa evolvendo a ciência e o determinismo. Em
seu livro, citando Lewthwaite, afirma que “a formulação de leis e padrões implica inevitavelmente
uma aceitação do determinismo”. Nesse sentido, é possível questionar se a geografia (e a ciência em
geral) ainda estaria vestindo a camisa do determinismo.
Gomes afirma que não. Uma coisa é criar padrões regulares, a outra é ficar esperando que esses
padrões regulares ofereçam sempre as mesmas respostas. “É verdade que a ciência procura essa
possibilidade de formalizar problemas, mas não obrigatoriamente que esses problemas sejam en-
carados na forma de causa e efeito de determinação”, explica. Segundo ele, a palavra determinismo
já está muito estigmatizada no meio cientifico. Raramente as pessoas usam o verbo determinar em
suas pesquisas, preferindo outro: influenciar. Assim, as características geográficas não “determina-
riam” o desenvolvimento de um povo, mas sim o “influenciaria”.
Mesmo assim, revela Gomes, “está se provando a determinação, pois sempre que houver uma
determinada causa esta terá um efeito. No final, somos muito mais positivistas do que gostaríamos.
Está todo mundo perseguindo um modelo com essa objetividade e com esse poder de previsibilida-
de, esperando que isso possa estabelecer uma ciência normativa, capaz de gerar leis em que a gente
possa antecipar o resultado. O sonho ainda é um sonho positivista, infelizmente”, completa.
72 | Teorias Antropológicas

Atualidades do determinismo geográfico


Atualmente, grande parte dos pesquisadores nega a validade das teses do determinismo
geográfico, seja no estudo sobre o desenvolvimento de um território, seja no comportamento das
culturas.
Para Antonio Robert de Moraes, da USP, os argumentos do determinismo geográfico não aju-
dam a explicar a complexa interação entre os elementos que formam o espaço geográfico. “Hoje
não existe mais uma corrente unicamente determinista, mas a questão da posição e da situação ain-
da permanece no pensamento geopolítico quando se fala em vantagens competitivas. De alguma
maneira, está se aceitando que há fatores, não determinantes, mas que ajudam do ponto de vista
comercial, os tipos de produção. Hoje em dia esse tipo de posição é bastante atenuada”.
Luci Nunes explica que o determinismo climático que caracterizou a escola do pensamento
geográfico no final do século XIX não foi elaborado por climatologistas, mas sim por geopolíticos,
como o geógrafo alemão Friedrich Ratzel (1844-1904). Diferentemente daquela época, “hoje, a cli-
matologia geográfica preocupa-se com o entendimento dos processos atmosféricos (tempo e clima)
e seus impactos, avaliando tendências quanto à variabilidade espaço-temporal”, explica ela. “Trata-se
de questões efetivamente científicas, aplicáveis e prementes, cujos resultados têm contribuído para
a construção de um conhecimento atrelado às verdadeiras necessidades de um mundo em profun-
da transformação e desestruturação socioambiental”, conclui a professora.
As idéias do determinismo geográfico, ainda segundo Luci Nunes, utilizavam o argumento de
que “as mudanças na pressão atmosférica – mais rápidas e comuns nos climas temperados – favore-
ceriam um raciocínio também mais rápido e claro”. Um argumento totalmente desprovido de base
científica, usado para um propósito expansionista das nações européias, como explica a professora
da Unicamp. Mesmo assim as idéias do determinismo geográfico e a influência do clima tomaram
corpo no século XX, influenciando outras áreas da ciência, como a medicina, por exemplo.
No artigo “Determinismo geográfico”, Fernando G. Sampaio, professor da Organização de Es-
tudos Científicos da Escola Superior de Geopolítica e Estratégia, ao citar o estudo intitulado “Clima-
tologia médica”, de Adalberto Serra13, mostra como se deu a disseminação das teses do determinis-
mo geográfico nas outras ciências. No artigo ele afirma que “Claro está que à maior produção de
energia na zona fria corresponderá maior cota de trabalho útil, pois a eficiência do motor humano
é mais ou menos fixa (25%). Haverá, desse modo, nas faixas temperadas maior atividade e mais alta
civilização pelo menos no aspecto de riqueza e produtividade. Segundo as pesquisas, a temperatu-
ra média deve ser inferior a 18° e superior a 3° para um bom índice de civilização”.

Expoentes do determinismo geográfico


O determinismo geográfico ganhou grande impulso com as idéias de Ratzel, que foram em-
pregadas para a reunificação alemã e também para justificar o processo neocolonialista na África.
O geógrafo alemão desenvolveu o conceito de espaço vital, utilizado pelos alemães na tentativa de
expandir seu território. “De fato, Ratzel não foi um representante típico do determinismo. Ele nunca
afirmou isso de uma forma mecânica em seus tempos de universidade”, explica Gomes da UFRJ. A

13 IBGE. Boletim Geográfico, n.° 240, maio de 1974. p. 89-107.


Antropologia Difusionista: a reação à racialização das relações humanas | 73

associação que Ratzel procurou fazer foi entre a nação e uma determinada quantidade de superfície
com recursos necessários para a manutenção ou para o desenvolvimento daquela cultura. “Ratzel
utilizava muito mais a metáfora do organismo vivo, essa idéia organicista, ou seja, o povo e seu solo
formam um todo. Então o povo não pode sobreviver sem uma determinada quantidade de solo”,
completa Gomes.
Para Moraes, Ratzel não é o cara-chave do determinismo geográfico, apesar de muito associa-
do a isso. “O cara chave se chama Carl Ritter (1779-1859). Ele sim foi um determinista por excelên-
cia”. De acordo com o professor da USP, Ritter fez uma lei das costas dos litorais onde ele relacionava
o desenvolvimento dos países com a existência de litorais recortados. “Os lugares onde tivessem
litorais muito retilíneos, não seriam pendentes ao desenvolvimento”, explica.

Para saber mais


RITTER, C. A Organização do Espaço na Superfície do Globo e sua Função na Evolução Histórica.
Disponível em: <http://ivairr.sites.uol.com.br/ritter.htm>.
GOMES, P. C. da C. Geografia e Modernidade. Rio de Janeiro: Bertrand, 2000.

Atividades
1. Comente as idéias sobre a natureza da cultura e a unidade psíquica do ser humano na Antropologia
Difusionista.
74 | Teorias Antropológicas

2. Qual o conceito de “determinismo geográfico”?

3. Quais as características da Escola Difusionista Inglesa?


Antropologia Difusionista: a reação à racialização das relações humanas | 75

4. Na Escola Difusionista Norte-Americana o teórico Franz Boas formulou o conceito de Relativismo


Cultural. Quais os fundamentos desse conceito?
76 | Teorias Antropológicas
Antropologia:
objeto e metodologia
de investigação
A Escola Sociológica Francesa desempenhou um papel importante na consolidação da Antropo-
logia como parte integrante das Ciências Sociais. Ela delimitou a anatomia, as feições e os instrumentos
que deram cientificidade ao fazer sociológico e, por extensão, antropológico.
Os principais protagonistas dessa Escola – Émile Durkheim e Marcel Mauss – procuraram definir
os fenômenos sociais como objetos de investigação científica – socioantropológica – e estabelecer as
regras e normas do método sociológico da disciplina: instrumentos teóricos e conceituais para as inves-
tigações no universo das relações sociais e de seus fenômenos.
Essa mudança nos procedimentos de pesquisas e estudos dos fenômenos sociais se dá na vira-
da do século, e a França – pelas razões históricas que atravessava, no continente, em especial, graças
às suas relações conflituosas com Inglaterra e Alemanha – é o palco dessa inflexão teórica: derrota de
Sedan1, em 1.º de setembro de 1870; capitulação diante das tropas alemãs, 28 de janeiro de 1871; a
insurreição da Comuna de Paris2, de 18 de março a 28 de maio de 1871; a proclamação da III Repúbli-
ca3, a emergência do movimento operário (criação da Confédération Générale du Travail – CGT) a 4 de

1 A Batalha de Sedan aconteceu em 1.º de setembro de 1870, durante a Guerra Franco-Prussiana (1870-1871) – oposição francesa à unificação
alemã – entre o exército do Imperador da França Napoleão III e um conjunto de estados germânicos liderados pela Prússia. Essa batalha
resultou na derrota do exército francês e na captura de Napoleão III que, desacreditado pelos franceses, deixou de ser imperador.
2 Comuna de Paris (18 de março a 28 de maio de 1871) foi um governo revolucionário da classe operária em Paris, resultado da luta da
classe operária francesa contra a dominação política da burguesia agravada pela derrota da França na Guerra Franco-Prussiana (1870-1871).
A Comuna de Paris foi a primeira revolução comunista da história e é considerada uma referência na história dos movimentos populares e
revolucionários.
3 A III República Francesa foi instituída em setembro de 1870 após a derrota do Imperador Napoleão III na Guerra Franco-Prussiana (1870-1871).
Manteve-se até 1940 com a derrota da França para a Alemanha na Segunda Guerra Mundial. A III República foi inicialmente conservadora, passou
pelo fracasso da restauração monarquista adotando leis constitucionais (1875) até a conclusão de um programa de reformas democráticas
com relações políticas exteriores como foi o “entente cordial” com a Inglaterra (1904) pelo empreendimento da expansão colonial.
78 | Teorias Antropológicas

setembro de 1871; a instituição do divórcio – debate que se estende de 1882 a 1884, e a instituição da
educação laica, desvinculada da religião.
Durkheim e seus discípulos desenvolveram pesquisas centradas nas representações coletivas da
sociedade. Eles estudaram as formas das relações sociais e suas etapas de desenvolvimento. Apontaram
as formas de solidariedade social – orgânica e mecânica. Estudaram as formas elementares das organi-
zações religiosas. Empenharam-se na compreensão da teoria do conhecimento e na busca da definição
do fato social total – articulação biológica, psicológica e sociológica – nas trocas e nas relações recípro-
cas, como base de sustentação da vida social. Seus trabalhos subsidiaram a ampliação do espectro de
estudos da Antropologia, como parte dessa área científica, determinando o método de estudo compa-
rativo, como fator singular entre as Ciências Sociais.
Graças ao empenho e à envergadura dos trabalhos científicos de Durkheim e Mauss, a Escola
Sociológica Francesa foi de fundamental contribuição à Antropologia como ciência respeitada e como
disciplina científica relevante. Esses cientistas sociais também foram responsáveis pela formação de
uma geração de antropólogos que deixou raízes profundas no desenvolvimento desse campo de co-
nhecimento das Ciências Sociais.

Método científico
As ciências levaram um bom tempo para consolidar uma métrica de organização dos seus estu-
dos. O método científico atravessou uma larga avenida conceitual até cristalizar-se como instrumento
de investigação científica. Em sua origem, método significa meta (ao longo de), e hodós (via, caminho,
estrada). Método é a ordem, a organização dada a uma investigação, para desvendar as realidades con-
tidas num determinado fenômeno. É o estudo feito pela ciência para alcançar um fim determinado, ou
verdade com validade científica – em determinadas condições – uma forma racional de agir e de ade-
quar os meios e fins, evitando tropeços característicos do acaso.
A consolidação do método científico traz uma questão nova para o debate: até então, a Filosofia
havia se preocupado com o ser. Com a evolução das ciências na Idade Moderna4, coloca-se a questão
do conhecer. Inauguram-se os debates sobre a Teoria do Conhecimento, a Epistemologia5. Passa-se a se
preocupar com o sujeito cognoscente (o sujeito que conhece), como também com o objeto cognocísvel
(a realidade externa ao sujeito).
Entre os pensadores que se envolvem na busca da métrica científica dos seus estudos, encontra-
se o francês René Descartes6, figura de proa que exercerá influência sobre Durkheim, mais tarde. Descar-

4 Idade Moderna é o período histórico que vai do século XV ao XVIII e destaca-se por ter sido um “período de transição”. Época marcada pela
substituição do modo de produção feudal pelo modo de produção capitalista e pelo advento do experimentalismo científico – o homem,
senhor do mundo, pode manipulá-lo à vontade.
5 Epistemologia, também conhecida como Teoria do Conhecimento, é a ciência que estuda a origem, a estrutura e os métodos adequados
para a aquisição e a validação do conhecimento.
6 René Descartes (1596-1650) foi um filósofo, cientista e matemático francês. É conhecido como o “pai da filosofia moderna”. Obteve
reconhecimento matemático por sugerir a fusão da álgebra com a geometria – geometria analítica. Criador do médoto cartesiano que consiste
no Ceticismo Metodológico – duvída-se de cada idéia que pode ser duvidada – , e também na realização de quatro tarefas básicas para o
estudo do fenômeno ou coisa estudada: verificar, analisar, sintetizar e enumerar todas as conclusões e princípios, a fim de manter a ordem do
pensamento.
Antropologia: objeto e metodologia de investigação | 79

tes elabora – no século XVII – como ponto de partida da sua forma de filosofar a “dúvida metódica”. Ela
é um artifício que desarticula uma idéia e se propõe a rearticular tudo de novo.
Com o tempo, formalizaram-se as áreas das ciências formais (Matemática e Lógica), as ciências da
natureza (Física, Química, Biologia, Geologia, Geografia Física) e as ciências humanas (Psicologia, Socio-
logia, Economia, História, Geografia Humana, Lingüística, Antropologia, entre outras).
O método científico experimental passa a se caracterizar pelas etapas da observação (observação
criteriosa e rigorosa, precisa, metódica e orientada para a explicação racional dos fatos), hipótese7 [hypó
– debaixo de, sob – e thésis – proposição] (organização dos fatos de acordo com uma ordem provisória);
experimentação (estudos dos fenômenos em condições determinadas pelo cientista) e a generalização
(estabelecimento das relações constantes, leis teóricas).
Nas Ciências Sociais a elaboração do método deu-se depois das demais ciências, quando elas se
desligam da Filosofia, em razão do impacto do desenvolvimento das ciências da natureza.
A primeira ciência humana a desenvolver um método foi a Economia. No século XVIII, Adam
Smith foi o primeiro a explicar como funcionava o sistema econômico, em termos matemáticos, e suas
conseqüências sociais. Mais tarde, o método se estende para as demais Ciências Sociais: na Sociologia,
Augusto Comte8 a designa como uma ciência positiva, a ciência dos fatos sociais, das instituições, dos
costumes e das crenças sociais. Émile Durkheim tenta fazer da Sociologia uma disciplina objetiva, co-
locando como meta central o método sociológico e a consideração dos fatos sociais como “coisas” que
possam ser estudas e pesquisadas. Max Weber9 enfatiza a necessidade de usar o método da compreen-
são, em oposição ao critério da explicação. Desse trio de ferro das Ciências Sociais, Émile Durkheim irá
dirigir suas energias intelectuais na direção da constituição do método sociológico e de suas implica-
ções nas Ciências Sociais. Durkheim é considerado um dos pais formadores da disciplina sociológica e
exerce uma forte influência nas gerações futuras de estudiosos e pesquisadores da realidade social.

Émile Durkheim e o método sociológico


David Émile Durkheim (1858-1917) é um dos principais protagonistas da Sociologia. Muitos o
consideram o “pai da Sociologia” moderna. Durkheim soube alinhar como poucos na história da disci-
plina o rigor da pesquisa empírica – prática – com a reflexão sociológica – teórica.
De família rica, Durkheim formou-se em Direito e Economia, apesar de todo seu trabalho estar
direcionado para a Sociologia. Seus estudos foram fundamentais para o desenvolvimento do método
na área das Ciências Sociais.
7 Há várias formas de se formular uma hipótese científica, entre elas: a indução (generalização de casos diferentes e particulares), o raciocínio
hipotético-dedutivo (formulação de uma hipótese e verificação das conseqüências que são tiradas dela) e analogia (quando estabelece relações
de semelhança entre os fenômenos). Para ter valor científico, a hipótese deve ser passível de verificação prática, empírica.
8 Isidore Auguste Marie Xavier Comte (1798-1857) foi um filósofo francês. Precursor do Positivismo, que é uma corrente sociológica conhecida
como a afirmação social das ciências experimentais, propõe à existência humana valores completamente humanos, afastando qualquer
possibilidade de interferência teológica ou metafísica. Seu método consiste na observação, levando em consideração as particularidades do
fenômeno – para cada fenômeno um modo de observação diferente.
9 Max Weber (1864-1920) foi um sociólogo alemão. A sua concepção de uma sociologia abrangente partia do conceito de conduta social,
o núcleo da análise social consistia na interdependência entre religião, economia e sociedade. Para Weber, o método deve enfatizar o papel
ativo do pesquisador em face da sociedade; as normas e regras sociais são o resultado do conjunto de ações individuais e só existe ação social,
quando o indivíduo tenta estabelecer algum tipo de comunicação, a partir de suas ações com os demais.
80 | Teorias Antropológicas

Segundo Laplantine (1987, p. 88), Durkheim demonstra preocupações distintas das da etnologia
e da etnografia, nos seus primeiros estudos. Porém, com a publicação de As Formas Elementares da Vida
Religiosa (1912), o teórico francês revê suas posições, “considerando que é não apenas importante, mas
também necessário estender o campo das investigações da Sociologia aos materiais recolhidos pelos
etnólogos nas sociedades primitivas” .
Sua preocupação maior é mostrar que existe uma especificidade do social, e que convém conseqüentemente emanci-
par a Sociologia, ciência dos fenômenos sociais, dos outros discursos sobre o homem, e , em especial, do da Psicologia.
Se não nega que a ciência possa progredir por seus confins, considera que na sua época é vantajoso para cada discipli-
na avançar separadamente e construir seu objeto. “A causa determinante de um fato social deve ser buscada nos fatos
sociais anteriores e não nos estados da consciência individual.

Para Durkheim, o social tinha predominânica sobre o individual, a irredutibilidade do social aos
indivíduos. Segundo ele, a conseqüência dessa irredutibilidade implica observar os fatos sociais como
“coisas”, que só poderão ser explicadas quando relacionadas a outros fatos sociais. Ao elaborar essa con-
cepção, Durkheim dá à Sociologia autonomia ao constituir um objeto de estudo próprio, que a emanci-
pará das explicações históricas, geográficas, psicológicas e biológicas da época.
Esse pensamento durkheimiano [...] vai através de suas novas exigências metodológicas renovar profundamente a
epistemologia das ciências humanas da primeira metade do século XX, ou mais exatamente das ciências sociais des-
tinadas a se separar destas. Vai exercer uma influência considerável sobre a pesquisa antropológica, particularmente
na Inglaterra e evidentemente na França, o país de Durkheim, onde, ainda hoje, nossa disciplina não se emancipou
realmente da Sociologia. (LAPLANTINE, 1987, p. 89)

Durkheim reivindica um comportamento ético irrestrito por parte do pesquisador. Para o pesqui-
sador francês, ao mergulhar num estudo, o estudioso deve abandonar suas idéias pré-concebidas, pre-
conceituosas. Oracy Nogueira vai “flexibilizar” essa posição de Durkheim. Para Nogueira, o pesquisador
carrega na sua mochila conceitual suas prenoções, ao fazer suas opções.
Na realidade, os passos do método científico indicados não se delimitam rigidamente. Assim, a própria formulação das
questões iniciais, mesmo que se acate ao extremo o preceito de Durkheim (1858-1917), segundo o qual o investigador
deve pôr de lado todas as suas prenoções, implica hipóteses que vão influenciar a própria seleção dos dados. (NOGUEI-
RA, 1973, p. 76)

Mais adiante:
Embora os sociólogos e antropólogos tanto tenham insistido, principalmente a partir das publicações dos trabalhos de
Durkheim, sobre a necessidade de evitar que as prenoções, as expectativas e preferências do investigador interfiram
nos resultados das investigações, no campo das diversas ciências sociais, temos de reconhecer que ninguém pode
lançar-se a um campo de estudos sem levar, desde o início, pelo menos algumas hipóteses, embora ainda obscuras, mal
delineadas, não formuladas de um modo explícito. (NOGUEIRA, 1973, p. 84)

Nas Ciências Sociais, o método histórico-comparativo equivale ao método experimental, das ci-
ências da natureza. Durkheim (apud NOGUEIRA, 1973, p. 80) previu três tipos de fatos possíveis do mé-
todo:
::: fatos pertencentes a uma só e única sociedade;
::: fatos pertencentes a diversas sociedades do mesmo tipo;
::: fatos tomados a diversos tipos sociais distintos.
O trabalho de Durkheim em erigir um método de pesquisa na área das Ciências Sociais foi funda-
mental para o desenvolvimento ulterior da Antropologia. Ele contribuiu com a formação da anatomia
Antropologia: objeto e metodologia de investigação | 81

tanto da disciplina – objeto e metódica de abordagem – como com a construção do ethos profissional
do estudioso e pesquisador das Ciências Sociais.
Em sua obra, Durkheim persegue esse caminho. Suas principais obras são: Da Divisão Social do
Trabalho (1893), As Regras do Método Sociológico (1895); O Suicídio (1897); As Formas Elementares da
Vida Religiosa (1912). Durkheim fundou uma das revistas que mais contribuíram para a consolidação das
Ciências Sociais, no mundo inteiro: L´année Sociologique (1896).
Em linhas gerais, Durkheim parte do princípio de que o homem é um animal selvagem, que se
tornou sociável. Ele foi capaz de aprender hábitos e costumes para poder conviver com o seu grupo so-
cial. Esse processo de aprendizado no grupo social Durkheim denominará como “socialização”. A consci-
ência coletiva se forma durante esse processo. Nessa relação, surgem os objetos do estudo sociológico,
os “fatos sociais”.
Para Durkheim, esses “fatos sociais” precisam atender a três características básicas: generalidade,
exterioridade e coercitividade. Os comportamentos das pessoas ocorrem independente de suas von-
tades pessoais. As métricas delineadoras desses comportamentos é algo que já estava lá antes deles
e continuará depois. O desenvolvimento do método extraído, em grande parte, das ciências naturais,
visava revelar as leis que regem o comportamento social e direcionam os “fatos sociais”.
A lógica é simples: se tudo em uma dada sociedade está interligado, cada pequena alteração
nesse conjunto afeta a sociedade, afeta suas instituições e provoca uma anomia10 em suas relações.
As instituições, segundo Durkheim, cumprem um papel de manter a organização do grupo e atender
suas necessidades. Elas operam contra as mudanças e agem para manter a ordem social, sendo assim,
na essência, instâncias conservadoras, independente de sua natureza: familiar, escolar, governamental,
religiosa ou policial.
A anomia surge quando há um problema nessas relações sociais; quando a sociedade adoece.
Para Durkheim, essa doença da sociedade provoca uma patologia social. Essa doença é considerada,
pelo autor francês, como uma inimiga mortal da sociedade. A Sociologia seria, então, a forma de diag-
nosticar e superar esses efeitos anômalos da patologia social.
Em paralelo à Biologia, Durkheim entendia que o papel do sociólogo seria o de compreender essa
realidade, diagnosticá-la para ajudar a sociedade a superar essa anomalia, essa doença social. Caberá
a cada membro da sociedade, por intermédio do sistema de direitos e deveres, zelar pela preservação
da coesão e da saúde da sociedade e de seus membros. Essa solidariedade social pode ter duas formas
diferentes: uma orgânica e outra mecânica. Na primeira, os indivíduos são solidários devido às suas
semelhanças; a educação é difusa, sem a figura do mestre; não há reciprocidade nas relações. Na segun-
da, os indivíduos estão ligados à sociedade, sem intermediários; formam um conjunto mais ou menos
organizado com valores comuns e têm formas coletivas de solidariedade.
Para Durkheim, era necessário elaborar um método para que fosse possível, sob a ótica científica,
observar, descrever e classificar a realidade social. Ele se lança a essa tarefa na sua vida acadêmica como
docente (ministra aula de Pedagogia e Ciência Social na Faculté de Lettres de Bordeaux, de 1887 a 1902),
como pesquisador e como editor de revista da área das Ciências Sociais (L´Année Sociologique, 1896).

10 Anomia é um termo cunhado por Émile Durkheim em seu livro O Suicídio (1897) para descrever um estado de desordem, ausência de leis
e normas sociais.
82 | Teorias Antropológicas

As regras do método sociológico


No livro As Regras do Método Sociológico (1895), Durkheim procura elaborar um instrumento que
permita às Ciências Sociais o rigor da pesquisa observado em outras áreas. Ele parte do pressuposto de
que a sociedade já dispõe de uma ciência que a estuda, mas que está submersa, ainda, nas fumaças do
preconceito. Logo no primeiro parágrafo, Durkheim trata dessa questão:
O tratamento científico dos fatos sociais é tão pouco habitual que algumas das proposições contidas neste livro correm
o risco de surpreender o leitor. Todavia, se existe uma ciência das sociedades, é de esperar que ela não se limite a ser
paráfrase de preconceitos tradicionais, e, sim, que mostre as coisas de maneira diferente da encarada pelo vulgo; pois
o objetivo de toda ciência é descobrir, e toda descoberta desconcerta mais ou menos as opiniões formadas. É preciso
que o sociólogo tome resolutamente o partido de não se intimidar com os resultados alcançados pelas pesquisas,
quando metodicamente conduzidas, a menos que, em Sociologia, se conceda ao senso comum uma autoridade de que
há muito tempo não goza nas outras ciências e que, aliás, não vemos de onde lhe poderia provir. Se é próprio de um
sofista buscar o paradoxo, fugir dele quando imposto pelos fatos indica um espírito sem coragem e sem fé na ciência.
(DURKHEIM, 1985, p. 15)

Logo de cara, Durkheim aponta a magnitude do projeto a que se propôs: elaborar um método
para o estudo das sociedades, com um rigor que se assemelha ao adotado pelas ciências da natureza.
Ele indica a necessidade de um método que vá além da observação ligeira e superficial. Para ele, em
ciência, “deve se desconfiar sempre das primeiras impressões”. O método permite ao cientista social
mergulhar na natureza dos fenômenos e estudá-los.
Durkheim não considerava seu método revolucionário. Num certo sentido, aponta que ele é até
conservador, “pois considera os fatos sociais como coisas cuja natureza não é passível de modificação
fácil” (DURKHEIM, 1985, p. 17). O centro da preocupação de Durkheim nessa obra era a extensão da base
racionalista de observação do mundo para a área das Ciências Sociais:
Estender à conduta humana o racionalismo científico é, realmente, nosso principal objetivo, fazendo ver que, se a anali-
sarmos no passado, chegaremos a reduzi-la a relações de causa e efeito; em seguida, uma operação não menos racional
a poderá transformar em regras de ação para o futuro [...] (DURKHEIM, 1985, p. 17)

Nessa obra, Durkheim acentua a irredutibilidade do social em relação ao individual. A explicação


do que é o fato social toma todo o primeiro capítulo. Depois de exemplificar a experiência de uma crian-
ça11 numa dada sociedade, o autor enfatiza:
É fato social toda maneira de agir fixa ou não, suscetível de exercer sobre o indivíduo uma coerção exterior; ou então
ainda, que é geral na extensão de uma sociedade dada, apresentando uma existência própria, independente das ma-
12
nifestações individuais que possa ter . (DURKHEIM, 1985, p. 11)

No capítulo II, Durkheim vai tratar das regras relativas à observação dos fatos sociais. Nele, o autor
Durkheim estipula a regra fundamental: tratar os fatos sociais como coisas; isso porque,
::: são os data imediatos da ciência, enquanto idéias, a partir das quais se acredita que eles se
desenvolvem, não são dadas diretamente;
::: apresentam todos os caracteres da coisa.

11 “[...] A pressão de todos os instantes que sofre a criança é a própria pressão do meio social tendendo a moldá-la à sua imagem, pressão de
que tanto os pais quanto os mestres não são senão representantes e intermediários”. (DURKHEIM, 1985, p. 5)
12 Nota do autor: “Este parentesco estreito entre a vida e a estrutura, entre o órgão e a função, pode ser facilmente estabelecido em Sociologia
porque, entre os dois termos extremos, existe toda uma série de intermediários imediatamente observáveis, mostrando o laço que há entre eles.
A Biologia não tem o mesmo recurso. Mas é permitido crer que as induções da primeira destas ciências, a tal respeito, são aplicáveis à outra e que,
nos organismos como nas sociedades, não existem entre as duas ordens de fatos senão diferenças de grau”. (DURKHEIM, 1985, p. 11)
Antropologia: objeto e metodologia de investigação | 83

E todavia os fenômenos sociais são coisas e devem ser tratados como coisas. Para demonstrar esta proposição não é
necessário filosofar sobre a natureza deles, discutir as analogias que apresentam como os fenômenos dos reinos infe-
riores. Basta constatar que são eles os únicos datum [dado] oferecidos aos sociólogos. Na verdade, é coisa tudo que é
dado, tudo que se oferece ou antes se impõe à observação. Tratar fenômenos como coisas é tratá-los na qualidade de
data que constituem o ponto de partida da ciência. Os fenômenos sociais apresentam incontestavelmente tal caráter.
[...] somente depois de ter subido até suas fontes, poderemos saber de onde provêm. (DURKHEIM, 1985, p. 24)

Além desse aspecto, Durkheim destacará a necessidade de se observar o fenômeno de fora, do


seu exterior e em seu conjunto:
Nunca tomar por objeto de pesquisa senão um grupo de fenômenos previamente definidos por certos caracteres
exteriores que lhe são comuns, e compreender na mesma pesquisa todos aqueles que correspondam a esta definição.
(DURKHEIM, 1985, p. 30-31)

No capítulo seguinte – regras relativas entre o normal e o patológico –, Durkheim desenha o que
é uma sociedade normal – sem anomalia – e o que é uma sociedade doente – com patologias. A analo-
gia é feita com um sistema biológico. Durkheim aponta duas ordens de fatos sociais: os que são normais
– como deveriam ser – e os que deveriam ser diferentes do que são, os fenômenos patológicos. Para ele,
os dois fenômenos têm a mesma natureza, mas têm duas variedades diferentes. Durkheim questiona se
a ciência tem instrumentos que permitam distinguir essa diferença.
Durkheim dá então três regras que cercam ainda mais o fato social:
::: um fato social é normal para um tipo social determinado, considerado numa fase determinada
de seu desenvolvimento, quando se produz na média das sociedades dessa espécie, conside-
radas na fase correspondente de sua evolução;
::: pode-se verificar os resultados do método procedente fazendo ver que a generalidade do
fenômeno se prende às condições gerais da vida coletiva no tipo social considerado;
::: essa verificação é necessária quando o fato social se liga a um aspecto social que ainda não
cumpriu sua evolução integral.
Durkheim arremata:
[...] O dever do homem de estado não é mais empurrar violentamente as sociedades para um ideal que lhe parece
sedutor, mas seu papel é o de médico: por meio de uma boa higiene, previne a eclosão das doenças, e, quando estas
13
declaram, procura saná-las . (DURKHEIM, 1985, p. 65)

Na obra, Durkheim define as regras relativas à constituição dos tipos sociais...


As sociedades serão a princípio classificadas segundo o grau de composição que apresentam, a partir da base constituí-
da pela sociedade perfeitamente simples, de segmento único no interior destas classes, distinguir-se-ão as variedades
diferentes, segundo se produza ou não uma coalescência completa dos segmentos iniciais. (DURKHEIM, 1985, p. 74-75)

...e as regras relativas à explicação dos fatos sociais...


Quando, pois, procuramos explicar um fenômeno social, é preciso buscar separadamente a causa eficiente que produz
e a função que desempenha. (DURKHEIM, 1985, p. 83)

...para, por fim, definir as regras relativas à administração da prova...

13 Nota do autor: “Da teoria desenvolvida neste capítulo se deduziu algumas vezes que, segundo nossas idéias, a marcha ascendente da
criminalidade no decorrer do séc. XIX era fenômeno normal. Nada está mais longe do que realmente pensamos. Muitos fenômenos que
indicamos a propósito do suicídio (ver Le suicide, p. 420 e seguintes) tendem, ao contrário, a fazer crer que tal desenvolvimento é, em geral,
mórbido. Todavia, poderia ser que um certo acréscimo de determinadas formas de criminalidade fosse normal, pois cada estado de civilização
possui a criminalidade que lhe é própria. Mas a esse respeito não é possível formular senão hipóteses”. (DURKHEIM, 1985, p. 65)
84 | Teorias Antropológicas

Por conseguinte, não se pode explicar um fato social de alguma complexidade senão sob a condição de seguir-lhe o
desenvolvimento integral através de todas as espécies sociais. (DURKHEIM, 1985, p. 121)

Na conclusão de seu trabalho, Durkheim explicita o propósito de sua reflexão:


[...] A Sociologia não é, pois, o anexo de nenhuma outra ciência; constitui ela mesma uma ciência distinta e autônoma,
e o sentimento do que a realidade social apresenta de especial é até de tal modo necessário ao sociólogo que somente
uma cultura especialmente sociológica pode prepará-lo para compreender os fatos sociais. [...] Quando uma ciência
está nascendo somos realmente obrigados, para construí-la, a nos referir aos únicos modelos que existem, isto é, às
ciências já formadas. [...] Todavia, uma ciência não pode considerar-se como definitivamente constituída senão quando
tiver conseguido formar uma personalidade independente. Pois não tem razão de ser senão quando apresenta como
objeto uma ordem de fatos que as outras não estudam. (DURKHEIM, 1985, p. 126-127)

Durkheim perseguiu uma lógica inquebrantável para construir um método de pesquisa que pu-
desse revelar para os estudiosos da área das Ciências Sociais a complexidade dos fatos sociais e suas
implicações no conjunto da sociedade. Ao colocar Descartes na linha do seu horizonte intelectual – Um
princípio cartesiano era que, na cadeia das verdades científicas, o primeiro elo desempenha papel preponde-
rante – Durkheim aplica com rigor o método na pesquisa que fará sobre As Formas Elementares de Vida
Religiosa. Logo no início do livro, ao definir o seu objeto de pesquisa, o autor francês anuncia:
Neste livro, propomo-nos estudar a religião mais primitiva e mais simples que se conheça atualmente, analisá-la e
tentar explicá-la. Dizemos de um sistema religioso que é o mais primitivo que nos é dado observar, quando preenche
as duas condições seguintes: em primeiro lugar, é preciso que se encontre em sociedade cuja organização não seja
ultrapassada por nenhuma outra em simplicidade, além disso, é preciso que seja possível explicá-lo sem fazer intervir
nenhum elemento tomado de religião anterior. (DURKHEIM, 1989, p. 29)

Esse esforço de aprimorar uma metodologia de pesquisa na área das Ciências Sociais e de pro-
curar definir o objeto de pesquisa dessas ciências abriu uma extraordinária porta para as pesquisas
posteriores. Mais tarde, um assistente e sobrinho de Durkheim, Marcel Mauss, de posse desse arsenal
teórico e conceitual, tornar-se-á o “pai da Antropologia francesa” e formará uma excepcional geração de
antropólogos.

Marcel Mauss e a dádiva


Marcel Mauss (1872-1950) fez parte da Escola Sociológica Francesa, numa posição privilegiada.
Sobrinho de Durkheim, pôde acompanhar o desenvolvimento do método sociológico proposto pelo
tio de dentro do círculo intelectual criado pelo sociólogo francês. Mauss teve uma vida e uma participa-
ção intensas nos momentos fundamentais da vida francesa na virada do século, até o final da Segunda
Grande Guerra.
Aos 21 anos, formou-se em Filosofia pela Universidade de Bourdeaux. Nesse período, envolveu-
se com o Partido Operário Socialista Francês. Em 1895, Mauss funda a Liga Democrática das Escolas.
Colaborou com importantes publicações da área das Ciências Sociais, como O Futuro Social e Revista
Internacional de Economia e História e Filosofia. Entre os anos de 1898 e 1913, sucedeu a Durkheim na
publicação da revista L´année Sociologique. Mauss ajudou a fundar o jornal A Humanidade, ligado aos
comunistas franceses.
Intelectual de grande erudição, Mauss falava doze línguas, entre elas inglês, alemão, russo, sâns-
crito e céltico. Com a sua intensa produção, é considerado como o principal fundador da Antropologia
Antropologia: objeto e metodologia de investigação | 85

francesa. No período em que foi professor de História das Religiões dos Povos Não-Civilizados, na École
Pratique des Hautes Études, colaborou com a criação do Instituto de Etnologia da Universidade de Paris.
Lá, teve como alunos, entre outros, Marcel Griaule, Michel Leiris, Roger Bastide, Louis Dumont e Claude
Lévi-Strauss. Bastide14 e Lévi-Strauss15 terão papel decisivo na fundação das Ciências Sociais brasileiras,
mais tarde. Apesar dessa intensa produção, Mauss nunca fez trabalho de campo. Sua produção era emi-
nentemente intelectual, uma Antropologia de gabinete.
Bom leitor e de extraordinária memória, Mauss explorou diversos campos para a elaboração de
seus estudos, tais como etnologia, ciências das religiões, Filosofia, Psicologia, Direito, Economia Política,
Literatura mundial e Ciências Exatas.
Mauss parte do conceito de Durkheim – fato social como coisa, objeto de estudo – e introduz no
conceito o aspecto simbólico. Para ele, os fatos sociais totais exprimem as instituições religiosas, jurídi-
cas, morais, econômicas, os fenômenos estéticos e morfológicos.
Uma das suas mais difundidas e importantes obras é o Ensaio sobre a Dádiva (1924). Nela, Mauss
faz um estudo comparativo de diversas religiões do mundo, tendo como fio condutor a noção de alian-
ça. Segundo Mauss, a aliança é um produto da dádiva; tanto as alianças matrimoniais como as políticas,
as religiosas, as econômicas, as jurídicas e diplomáticas e as alianças pessoais.
Entre as dádivas, Mauss inclui os presentes, mas também as visitas, festas, comunhões, esmolas,
heranças e várias prestações, serviços e tributos. Dessa forma, a constituição da vida social é um eterno
dar-e-receber. Essa permanente troca tece as relações sociais, num permanente sistema de comunica-
ção física, mas também simbólica. Mesmo nas visitas, segundo Mauss, há essa troca simbólica: ao rece-
ber alguém, o dono da casa torna-se anfitrião, mas cria a possibilidade de, num futuro, vir a ser hóspede
desse que hoje é seu hóspede. Assim, a dádiva é um ato espontâneo, mas simultaneamente obrigatório,
numa dada sociedade.
Segundo Marcos Lanna (2000), as maiores contribuições dadas pelo ensaio foram:
::: mostrar que fatos das mais diferentes civilizações revelam que trocar é mesclar almas, permi-
tindo a comunicação entre os homens, a intersubjetividade e a sociabilidade;
::: essas regras manifestam-se simultaneamente na moral, na literatura, no Direito, na religião, na
Economia, na política, na organização do parentesco e na estética. A troca é, dessa forma, um
fato social total;
::: as trocas são simultaneamente voluntárias e obrigatórias;
::: Mauss propõe um método comparativo que pressupõe uma sociologia.
Nessa obra, depois de percorrer várias experiências de trocas, por diversas civilizações, Mauss
conclui que o estudo da circulação de riqueza oferece uma base para a comparação inicial entre dife-
rentes sociedades e permite uma passagem entre o estudo da sociedade ocidental e o de outras. Na
sociedade moderna, a dádiva está embutida na compra e na venda. Assim, Mauss indica que o trabalho
é sempre uma dádiva em qualquer sociedade.

14 Roger Bastide (1898-1974) foi um sociólogo francês que chegou ao Brasil em 1938 como membro da delegação de professores europeus
e ocupou a cátedra de sociologia do quadro docente do Departamento de Ciências Sociais da recém-criada Universidade de São Paulo.
Desenvolveu sua carreira acadêmica a partir dos estudos sobre os índios e os negros, principais grupos enfocados pela Antropologia brasileira.
15 Claude Lévi-Strauss nasceu em 1908 na Bélgica, é antropólogo, professor e filósofo. Foi professor de Sociologia na Universidade de São
Paulo entre 1934 e 1937. Durante sua permanência no Brasil realizou expedições entre os povos indígenas Bororo, os Kadiwéu e os Nambikwara,
tornando-se etnólogo a partir desses estudos.
86 | Teorias Antropológicas

Segundo Mauss, seguindo a pegada de Durkheim, há uma origem religiosa na noção de valor
econômico: “as diversas atividades econômicas são impregnadas de ritos e mitos e guardam um caráter
cerimonial obrigatório” (MAUSS, 1974, p. 171). Na reta final do ensaio, Mauss destaca a importância do
estudo do concreto e a necessidade de ter a etnografia como base para os estudos, pois permite des-
vendar as singularidades e particularidades contidas na realidade.
Mauss arrasta para a área da Antropologia os conceitos de noções desenhados por Durkheim. Em
especial, o conceito de fato social total. Seu trabalho procura consolidar a autonomia da Antropologia
ante a Sociologia, não mais como uma ciência anexa. Para ele, o lugar da Sociologia é na Antropologia,
e não o inverso, como pensava Durkheim. Com isso, deu uma contribuição decisiva para a consolidação
do fazer antropológico.
Um dos conceitos maiores forjados por Marcel Mauss é o do fenômeno social total, consistindo na integração dos
diferentes aspectos (biológico, econômico, jurídico, histórico, religioso, estético...) constitutivo de uma dada realidade
social que convém apreender em sua integridade. “Após ter forçosamente dividido um pouco exageradamente”, es-
creve ele, “é preciso que os sociólogos se esforcem em recompor o todo”. Ora, prossegue Mauss, os fenômenos sociais
são “antes sociais, mas também conjuntamente e ao mesmo tempo fisiológicos e psicológicos”. Ou ainda: “O simples
estudo desse fragmento de nossa vida que é nossa vida em sociedade não basta”. Não se pode, ainda, afirmar que todo
fenômeno social é também um fenômeno mental, da mesma forma que todo fenômeno mental é também um fenô-
meno social, devendo as condutas humanas ser apreendidas em todas as suas dimensões, e particularmente em suas
dimensões sociológica, histórica e psicofisiológica. (LAPLANTINE, 1987, p. 90)

Considerações finais
A Escola Sociológica Francesa desempenhou um importante papel na história das Teorias Antro-
pológicas. Os trabalhos de Émile Durkheim e de Marcel Mauss contribuíram para a definição da metódi-
ca do trabalho do antropólogo e para a definição do seu objeto e estudo de pesquisa.
A definição do fato social – total – e a adoção do método comparativo deram à Antropologia
bases teóricas e conceituais sólidas para o seu desenvolvimento posterior. Centro desses estudos é a
tentativa de definir o homem16 e suas realizações17 no espaço e no tempo, parte das atribuições da
aventura antropológica.
No exercício da construção do método, a Escola Sociológica Francesa legou o conceito de fato
social total, a importância da etnografia para a construção de grandes quadros comparativos, a utiliza-
ção do recurso comparativo para a leitura de realidades complexas, a adoção da busca da origem dos
fenômenos como forma de compreendê-los, a definição do fato social como “coisa” cognoscível e o

16 Há nele dois seres: um ser individual que tem a sua base no organismo e cujo círculo de ação encontra-se, por isso mesmo, estreitamente
limitado, e um ser social que representa em nós a mais alta realidade, na ordem intelectual e moral, que possamos conhecer pela observação,
ou seja, sociedade. Essa dualidade da nossa natureza tem como conseqüência, na ordem prática, a irredutibilidade do ideal moral ao móbil
utilitário, e, na ordem do pensamento, a irredutibilidade da razão à experiência individual. À medida que participa da sociedade o indivíduo
vai naturalmente além de si mesmo, seja quando pensa, seja quando age (DURKHEIM, 1989, p. 46).
17 A conclusão geral desse livro é que a religião é coisa eminentemente social. As representações religiosas são representações coletivas que
exprimem realidades coletivas; os ritos são maneiras de agir que surgem unicamente no seio dos grupos reunidos e que se destinam a suscitar,
a manter, ou a refazer certos estados mentais desses grupos. Mas então, se as categorias são de origem religiosa, devem participar da natureza
comum a todos os fatos religiosos: também elas seriam coisas sociais, produtos do pensamento coletivo. No mínimo – pois no estado atual
dos nossos conhecimentos nessas matérias, devemos guardar-nos de qualquer tese radical e exclusiva – é legítimo supor que elas sejam ricas
em elementos sociais (DURKHEIM, 1989, p. 38).
Antropologia: objeto e metodologia de investigação | 87

papel cognoscente do pesquisador: definição do seu comportamento moral, ético e deontológico ante
o fazer antropológico. Assim, além da definição do objeto da pesquisa e da metódica de abordagem, a
Escola Sociológica Francesa avançou para o estudo das relações epistemológicas, das formas de produ-
ção de conhecimento do real.
Sua importância foi tão expressiva que ela formou uma das mais importantes gerações de antro-
pólogos, a partir dos anos 1950, e que tiveram, em momentos diversos, papel destacado no desenvolvi-
mento das Ciências Sociais no Brasil, em especial, Roger Bastide e Claude Lévi-Strauss.

Texto complementar

Dom e reciprocidade
(REUNIÃO ANUAL DA SBPC, 2007)
O Ensaio sobre a Dádiva: forma e razão da troca em sociedades arcaicas, de 1924, do sociólogo
francês Marcel Mauss (1872-1950), foi o ponto de partida para que pesquisadores discutissem sobre
Estado, tributos, mercado, esfera econômica e direitos humanos no simpósio “Dom e reciprocidade
nas políticas públicas”, na 58.ª Reunião Anual da SBPC.
Mauss analisou sistemas de troca nas sociedades e como eles constroem as relações entre os
indivíduos. O antropólogo Marcos Lanna, da Universidade Federal de São Carlos (SP), destacou as
três obrigações interligadas na tese de Mauss: dar, receber e retribuir o dom, que pode ser material
ou imaterial. “No ato da troca, há inalienabilidade, no sentido de que as pessoas vão com as coisas
que passam, a ponto de não ficar claro quem é o sujeito, quem é o objeto da troca; se é a pessoa que
vai com a coisa ou vice-versa”, explicou Lanna.
A sociedade é circulação, para Mauss, pois demonstra que parte de tudo aquilo que passa fica.
Cada objeto pode ser mais ou menos alienável, e cada troca pode transferir mais ou menos direitos
e significar, em cada caso, maior ou menor superioridade do doador em relação ao receptor.
“No ensaio sobre a dádiva, Mauss cunha a noção de fato social total, mostrando o caráter inte-
grado dos aspectos econômicos, políticos, religiosos, lúdicos, estéticos (entre outros) da vida social,
assim como a inter-relação entre História, Sociologia e a dimensão físico-psicológica”, descreveu
Lanna.

Estado e mercado
Uma questão implícita no Ensaio sobre a dádiva é a da possibilidade de uma nova sociedade. A
proposta de Mauss é a de uma convivência entre Estado e mercado, na qual o mercado não destrua
o Estado. “Ao contrário, a convivência deve ocorrer de tal forma que o Estado englobe o mercado”,
88 | Teorias Antropológicas

disse Lanna. Mauss demonstra ainda que tanto o Estado quanto o mercado são transformações
lógicas e históricas do que ele chama de “dom”, entendido como forma elementar da vida social.
Do dom se desenvolve lógica e historicamente a mercadoria, forma fundamental não de toda a vida
social, mas da capitalista. “A mercadoria seria menos elementar ou universal que o dom, pois este
funda toda a vida social, e a mercadoria o capitalismo”, concluiu.
De acordo com Lanna, também o Estado não seria uma instituição universal; se constituiria a
partir de uma forma de dom, os tributos. “Podemos, assim, em uma perspectiva maussiana, definir
a figura do Estado pela prerrogativa de tributar. Em resumo, tributo e mercadoria são formas passí-
veis de dom, transformações lógicas e históricas da dádiva, manifestações institucionais, concretas
e particulares de um princípio abstrato universal”, afirmou.

Trocas econômicas
A socióloga Cécile Raud Mattedi, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), falou sobre
reciprocidade na esfera econômica e sua interligação com o mercado. Segundo ela, hoje as redes
sociais são vistas como estruturas fundamentais dos mercados e o lugar por excelência onde a reci-
procidade pode ser exercida.
Em seu Ensaio sobre a Dádiva, Mauss abordou a questão da reciprocidade e observou a pre-
sença constante de um sistema de reciprocidade em todas as sociedades humanas. “Portanto, o
sistema de dádivas enraíza as trocas econômicas nas relações sociais e participa da manutenção da
coesão social”, explicou Mattedi. A socióloga discutiu a tripla obrigação de dar, receber e retribuir:
“Por que se dá? Por que é preciso aceitar os presentes? Por que não se pode deixar de retribuí-los?”.
Segundo ela, há, por um lado, a interpretação formalista de que há obrigação e interesse econômi-
co. Os investimentos materiais têm em vista um proveito social, como prestígio ou poder. Por outro
lado, há a interpretação “indígena”, na qual o que obriga a retribuição é “o espírito da coisa dada”.
Para Mauss, a obrigação de retribuir é a mais intrigante das três. “Certos bens nunca deixam de per-
tencer a seus detentores iniciais, são bens inalienáveis. Por isso Mauss afirma que é preciso retribuir
ao outro aquilo que é, na realidade, parcela de sua natureza e substância”, afirmou a socióloga.
Entretanto, as idéias de Mauss não ficaram livres de críticas. O antropólogo francês Alain Tes-
tart (1945-) criticou Mauss por não separar dádiva e troca não mercantil. A categoria da troca foi
subdividida por Testart em dádiva, troca mercantil e troca não mercantil. Dádiva é cessão de um
bem que implica renúncia de qualquer direito sobre o bem, ou contrapartida. Na troca mercantil, os
parceiros não precisam manter entre si relação social além da troca, predominando a questão do va-
lor, enquanto a troca não mercantil só pode ocorrer em um quadro de relações pessoais anteriores.
Mattedi considera essa distinção útil para se pensar nas relações econômicas modernas.

Reciprocidade e mercado
A questão da dádiva foi retomada pelo filósofo húngaro Karl Polanyi (1886-1964), em A Grande
Transformação, publicada em 1944.
Antropologia: objeto e metodologia de investigação | 89

“Nessa obra, o pensador considera a reciprocidade como um dos princípios de regulação das
atividades de produção e distribuição de bens e serviços, ao lado da economia doméstica (de sub-
sistência), da redistribuição e da troca mercantil”, contou a socióloga da UFSC.
Polanyi criou o conceito de embeddedness (encaixe), segundo o qual as relações econômicas
estão encaixadas nos sistemas sociais. Para o pensador, a reciprocidade predomina nas economias
primitivas, em que bens e serviços são trocados segundo normas sociais. Já na troca mercantil, que
se tornou predominante na sociedade moderna, a produção e o consumo dependem do preço,
fixado de acordo com a lei da oferta e procura.
Nessa troca, diferentes unidades econômicas estão integradas pelo funcionamento de uma
instituição separada (disembedded) das outras relações sociais (políticas, religiosas ou de parentes-
co). Já a redistribuição caracteriza as sociedades antigas: de castas ou estratos sociais, submetidas
a um Estado que centraliza uma parte dos recursos oriundos de tributos para redistribuí-los aos
membros da sociedade.
De acordo com a socióloga, durante a maior parte da história da humanidade, os sistemas eco-
nômicos se organizaram a partir de uma combinação entre os princípios da economia doméstica,
da reciprocidade e da redistribuição. Com o fim do feudalismo na Europa ocidental, emergiu a eco-
nomia regulada pelo mercado. A busca do lucro veio substituir a busca da subsistência e se tornou
importante com a afirmação do capitalismo. “O sistema capitalista exige a presença de condições
institucionais específicas, como a propriedade privada dos meios de produção – capital, terra, tra-
balho. Só nesse quadro é que se pode falar de motivações utilitaristas da ação econômica, que não
são naturais, mas resultantes de instituições particulares”, relatou Mattedi.

Ação econômica situada socialmente


Em um texto de 1985, Economic action and social structure. The problem of embeddedness, pio-
neiro da chamada “nova sociologia econômica”, o sociólogo norte-americano Mark Granovetter
retomou a noção de embeddedness, defendendo a idéia de inserção da economia nas instituições
sociais. “Isso significa que os indivíduos não agem de modo autônomo, mas que suas ações se in-
serem em sistemas concretos, contínuos, de relações sociais, ou seja, em redes sociais”, destacou
Mattedi. Mas Granovetter rejeitou a diferenciação de Polanyi entre sociedades tradicionais, com
economia inserida, e sociedade moderna, com economia autônoma.
Um estudo de Granovetter sobre o mercado de trabalho demonstrou que as redes sociais fa-
cilitam a circulação de informações e asseguram a confiança ao limitar os comportamentos opor-
tunistas. “Desde então, análises recentes no quadro da nova sociologia econômica empenham-se
em mostrar que muitas ações econômicas modernas estão inseridas em redes de relações sociais,
ou seja, que mercado e reciprocidade continuam interligados ainda hoje”, apontou a pesquisadora
da UFSC.
Tais análises confirmam estudos sobre experiências atípicas de industrialização nas décadas de
1960 e 1970, inicialmente na Itália, que revelaram a eficiência econômica de redes de pequenas em-
90 | Teorias Antropológicas

presas localizadas no mesmo território e especializadas em um mesmo setor. Para a socióloga, essas
noções evidenciam a eficácia das relações não exclusivamente mercantis entre os atores sociais
para valorizar as riquezas disponíveis “Nesse quadro, as relações econômicas não são regidas por
uma lógica mercantil pura; estão enraizadas em redes sociais e se caracterizam ao mesmo tempo
pela cooperação e pela competição”, afirmou.

Arranjos produtivos locais


Mattedi destacou o processo de reterritorialização das atividades econômicas e o crescimento
das políticas industriais locais. Ela explicou que a passagem de uma lógica de setor a uma lógica
de território pretende suscitar ou incrementar a cooperação entre os diversos atores locais. “O ob-
jetivo dessas políticas é articular melhor as empresas com seu ambiente, com outras empresas e
centros de ensino ou administração pública”, disse. No Brasil, a instituição de um grupo de trabalho
permanente para arranjos produtivos locais, composto por 33 instituições governamentais e não-
governamentais, é um exemplo dessa lógica.
A socióloga destacou que os autores da nova sociologia econômica redescobriram no fenô-
meno do mercado o que Mauss identificou no fenômeno do dom, ou seja, que não faz sentido
distinguir entre egoísmo e altruísmo. Ela concluiu que mais do que reconhecer que o mercado seria
uma transformação lógica e histórica do dom, esses autores apontam para a interpenetração entre
reciprocidade e mercado.

Reciprocidade e direitos humanos


A socióloga Flávia de Mattos Motta, da UFSC, fez pesquisas entre os chamados “nativos” de
Florianópolis (designação que distingue os que nasceram na cidade daqueles identificados como
“pessoal de fora”). A discussão teórica dessa pesquisa se desenvolveu em dois eixos: gênero e re-
ciprocidade. “Analisando gênero, família e relações entre nativos e pessoal de fora, procuramos
demonstrar que, no contexto estudado, gênero está englobado no princípio de reciprocidade que
ordena as relações sociais.”
Motta contou que durante sua pesquisa um rapaz de 19 anos foi preso por ter estuprado vio-
lentamente uma turista que voltava da praia. Ele a atacou, espancou-a, estuprou-a, roubou seu re-
lógio e a deixou sem sentidos na areia. A socióloga disse que assim que soube do crime, enquanto
tentava assimilar a transformação do rapaz em estuprador, lhe veio à mente a história do capitão
Cook (o navegador inglês James Cook, morto em 1779 em confronto com nativos do Havaí por não
saber observar as regras de reciprocidade dos havaianos), que se tornou uma espécie de paradigma
na Antropologia, especialmente para a discussão da reciprocidade. “Será que quando os ‘nativos’
não matam o capitão Cook, eles estupram suas filhas?”, questionou Motta.
Como qualquer caso de estupro, esse é um caso de dominação masculina. Entretanto, para
Motta, o fato permite refletir sobre outras dominações além das de gênero. “Quando um nativo
excluído, pobre e negro violenta uma turista branca pertencente a uma classe que representa tudo
o que o primeiro não tem acesso, o problema extrapola as relações pessoais, autorizando-nos a
refletir sobre o que nele há de simbólico”, observou Motta. Ela ressaltou que essa linha de análise
Antropologia: objeto e metodologia de investigação | 91

não pretende obliterar análises de gênero – sobretudo as relações de poder e a violência contra a
mulher como parte das relações de dominação – mas quer demonstrar o que esse crime revela
a respeito das conseqüências da exclusão social conhecida pelas camadas pobres de Florianópolis,
incluindo “nativos”.
Motta destacou que a troca não implica necessariamente igualdade entre os que trocam. “A
troca pode ser violentamente extorquida se não é aceita de comum acordo ou se uma das partes se
sente permanentemente lesada”, completou. Ela sugeriu que o que faz com que a dádiva se trans-
mute em violência é a lógica da reciprocidade que rege as relações sociais em dado contexto. “Se
considerarmos que o homem inventou a dádiva como alternativa à guerra ou à violência, parece
lógico supor que a quebra da dádiva, da tríplice obrigação de dar, receber e retribuir, conduza à
guerra ou à violência”, afirmou.
Dádiva e violência são dois estados diferentes, mas, com base em sua pesquisa, a socióloga
considera que ambos são regidos pela lógica da reciprocidade. “Então, importa menos decidir se
violência é dádiva do que constatar que, como a dádiva, a violência – ao menos em certos contex-
tos, como o campo que pesquisamos assinala – responde à lógica da reciprocidade, ou seja, obede-
ce ao sistema dar-receber-retribuir”, disse Motta. Mas, para ela, esse caso de estupro, mesmo visto
pela lógica da reciprocidade, não encerra o “ciclo da dádiva”. Ao contrário, ele exige um contradom.
Ela chegou a tal conclusão a partir de depoimentos de conhecidos do jovem estuprador, que dis-
seram que ele devia pagar pelo crime tanto com reclusão, conforme determinou o juiz, quanto
com sujeição ao mesmo suplício de sua vítima, de acordo com o código informal dos apenados por
crimes de estupro.
Na opinião de Motta, esse caso dá visibilidade a determinada dimensão das relações entre na-
tivos e estrangeiros no cenário paradisíaco das praias de Florianópolis: a dimensão violenta dessas
relações, que envolvem aspectos de raça, cultura, classe e gênero. “A partir daí se descortinam ele-
mentos comuns a estudos que se detêm sobre a sociedade brasileira de classes: exclusão, direitos
humanos, violência, raça e educação.” A socióloga acredita que, em casos como o que apresentou,
é preciso deixar de lado aspectos mais aparentes e investir em uma análise mais arriscada (mas não
menos instigante), que leve em conta questões simbólicas.

Atividades
1. Por que a Escola Sociológica Francesa foi importante para a consolidação da Antropologia como
Ciência Social?
92 | Teorias Antropológicas

2. Comente o papel das instituições na sociedade segundo a teoria de Émile Durkheim.


Antropologia: objeto e metodologia de investigação | 93

3. Qual o conceito de “fato social total” formulado por Marcel Mauss?

4. Que fatos históricos ocorreram na França, no final do século XIX, que influenciaram a elaboração
teórica de Émile Durkheim?
94 | Teorias Antropológicas
Antropologia Funcionalista:
a função das instituições na
manutenção da sociedade
Os antropólogos Bronislaw Malinowski, Radcliffe-Brown, Evans-Pritchard, Raymond Firth, Max
Gluckman, Victor Turner e Edmund Leach são apontados como os principais protagonistas da Teoria
Antropológica denominada Funcionalismo, cujo epicentro foi a Inglaterra, por isso a denominação de
Funcionalismo Britânico como marca distintiva dessa escola.
Segundo a Teoria Funcionalista, as instituições sociais e os valores culturais devem ser compre-
endidos e explicados de acordo com as funções desempenhadas dentro do sistema social e cultural,
no seu conjunto. A presença em cada sociedade, de costumes e hábitos, instituições e crenças devem
ser explicadas por um estudo e pesquisa que estabeleçam os propósitos, individuais e coletivos, que a
determina.
Em comum, esses teóricos desenvolveram uma metódica que, de uma certa forma, deu liga às
diversas experiências realizadas sob o guarda-chuva conceitual do Funcionalismo, tais como: desenvol-
vimento da etnografia clássica (monografia); ênfase ao trabalho de campo (observação participante), e
sistematização do conhecimento cultural acumulado.
Seus trabalhos desenvolvidos no século XX versaram sobre a cultura, vista como totalidade das
relações sociais e o estudo das instituições e das suas funções para a manutenção da totalidade cultural.
A teoria do Funcionalismo Antropológico Britânico tem quatro características singulares de suas
experiências e das marcas deixadas por ela na disciplina:
::: foi uma experiência com características antievolucionistas;
::: caracterizou-se como uma teoria antidifusionista;
::: tem, como sua marca mais decisiva, o intenso trabalho de campo, de observação participante
do antropólogo na sociedade estudada (etnografia);
::: teve uma forte conotação de antropologia social, de estudo das relações sociais numa dada
sociedade.
96 | Teorias Antropológicas

Essas características foram destacadas no estudo comparativo feito pelo antropólogo francês
François Laplantine, entre as particularidades das escolas antropológicas francesa, britânica e norte-
americana.
Para Laplantine, a Antropologia Britânica caracteriza-se como antievolucionista, em contra-ponto
à escola Evolucionista, que teve como uma de suas pernas conceituais a Inglaterra. O antropólogo apon-
ta dois dos principais protagonistas do Funcionalismo como articuladores dessa visão antievolucionista,
Malinowski e Radcliffe-Brown:
[...] é uma Antropologia antievolucionista, que se constituiu desde Malinowski em oposição a uma compreensão histó-
rica social (reconstruções hipotéticas dos estágios, indo das sociedades “primitivas” às “civilizadas”, bem como a abor-
dagem da historiografia). [Ela] Dedica-se preferencialmente à investigação do presente a partir de métodos funcionais
(Malinowski), e, em seguida, estruturais (Radcliffe-Brown): uma sociedade deve ser estudada em si, independentemen-
te de seu passado, tal como se apresenta no momento no qual observamos. O modelo pode, portanto ser qualificado
1
de sincrônico , enquanto a pesquisa baseia-se no levantamento da totalidade dos aspectos que constituem uma deter-
2
minada sociedade: a monografia. (LAPLANTINE, 1987, p. 98)

Para o antropólogo francês, a escola Funcionalista, em diversos aspectos conceituais, opõe-se à


escola Evolucionista, que tem na reconstrução histórica das experiências estudadas dos povos um dos
seus pontos de apoio fundamentais.
Laplantine destaca também seu componente antidifusionista:
[...] é uma antropologia antidifusionista, o que a opõe à antropologia americana, a qual se preocupa em compreender
o processo de transmissão dos elementos de uma cultura para outra. Para a maioria dos pesquisadores ingleses, uma
sociedade não deve ser explicada nem pelo que herda de seu passado, nem pelo que empresta a seus vizinhos. (LA-
PLANTINE, 1987, p. 98)

Para Laplantine, os funcionalistas rompem com uma das características centrais dos difusionistas,
representada pela metáfora da pedra lançada no lago em que suas ondas se propagam em círculos,
como as culturas, partindo de um ponto central, e se propagando para os povos vizinhos ou conquista-
dos militarmente.
Laplantine destaca o epicentro do trabalho dos Funcionalistas que é a pesquisa de campo. Nesse
quesito, a contribuição dos funcionalistas será decisiva para a construção do imaginário social sobre
o trabalho do antropólogo. O trabalho de campo, a pesquisa de observação participante, é, provavel-
mente, a imagem mais forte no imaginário social do trabalho da Antropologia. O cinema explorou essa
imagem da disciplina antropológica3.
[...] é uma antropologia de campo, que se desenvolve muito rapidamente, a partir do início do século, com Malinowski
e, antes, com Radcliffe-Brown, o qual é, mais ainda que Malinowski, um dos pais fundadores de quem a maioria dos
antropólogos britânicos contemporâneos se considera sucessora. Esse caráter empírico (observação direta de uma
determinada sociedade, a partir de um trabalho exigindo longas estadias no campo) e indutivo da prática dos antropó-
logos ingleses apóia-se numa longa tradição britânica [...] (LAPLANTINE, 1987, p. 98-99)

1 O modelo sincrônico de análise compreende que só após entender como a cultura atua é que se pode refletir sobre suas alterações. Para
tanto é necessário um estudo minucioso da sociedade em sua contemporaneidade, de suas instituições e das relações que estas mantêm no
interior do próprio grupo.
2 Dissertação minuciosa de um assunto único. O economista francês Pierre-Guillaume Frédéric Le Play (1806-1882) foi o autor de Les Ouvriers
Européens em 1855, a primeira monografia publicada, e descrevia o gênero de vida e o orçamento de uma família-padrão da classe operária.
Le Play já utilizava o método desde 1930 e foi uma grande influência no desenvolvimento da Sociologia aplicada devido às metodologias
propostas para o estudo de fenômenos sociais.
3 Indiana Jones, personagem criado por Steven Spielberg e George Lucas para as telas de cinema, é professor e arqueólogo que viaja pelo
mundo enfrentando grandes perigos para descobrir fatos e resgatar objetos importantes da História. A Arqueologia é uma ciência pertencente
à Antropologia e estuda as manifestações materiais das sociedades utilizando técnicas e métodos comuns às Ciências Sociais.
Antropologia Funcionalista: a função das instituições na manutenção da sociedade | 97

Por fim, Laplantine destaca o caráter social da Teoria Funcionalista:


[...] é uma Antropologia social que, ao contrário da antropologia americana, privilegia o estudo da organização dos siste-
mas sociais em detrimento do estudo dos comportamentos culturais dos indivíduos. (LAPLANTINE, 1987, p. 9)

Em linhas gerais, pode-se dizer que a teoria da Antropologia Funcionalista estuda a cultura em sua
totalidade, focada no papel que as instituições desempenham e nas funções exercidas por elas para a
manutenção da sociedade.

Bronislaw Malinowski (1884-1942) –


o trabalho de campo e a etnografia
Um dos protagonistas mais importantes dessa escola foi o anglo-polonês Bronislaw Malinowski,
que dominou o cenário antropológico de 1922, quando veio à luz sua obra mais famosa (Os argonautas
do Pacífico Ocidental), até 1942, quando morreu.
A obra de Malinowski é um marco na história da Antropologia, como ciência. Ele contribuiu so-
bremaneira para a consolidação da imagem social do antropólogo, como pesquisador e estudioso de
campo, submerso no coração da realidade cultural do povo estudado.
Malinowski contribuiu em quatro dimensões decisivas para a Antropologia moderna:
::: a Antropologia como sendo o espaço privilegiado do trabalho de campo;
::: ruptura com a reconstituição especulativa da trajetória dos povos;
::: modelo de estudo tirado das Ciências Biológicas,
::: articulação dos aspectos sociais, psicológicos e biológicos dos homens.
O antropólogo levou às últimas conseqüências sua teoria da necessidade de compreensão “por
dentro” do universo dos povos estudados. Se não foi o primeiro a fazer pesquisas de campo, Malinowski
radicaliza sua experiência de observação participante, do trabalho do antropólogo, no local onde se
desdobra a aventura humana.
Malinowski compreendia como fundamental o estudo da mentalidade dos povos pesquisados
e da necessidade de ir ao encontro do universo das mulheres e homens que pertencem a uma cultura
diferente da do Ocidente, das sociedades européias. Para ele, diferente de seus antecessores, era funda-
mental pegar um único fenômeno e desvendá-lo, pedaço por pedaço, até chegar a uma compreensão
do conjunto daquela sociedade. Um objeto aparentemente simples era o portal para a compreensão do
universo cultural de uma determinada cultura. Foi o que ele fez ao estudar a canoa trobriandesa.
Segundo Malinowski, as sociedades deveriam ser estudadas em sua totalidade, tal como funcio-
nam no exato momento em que o antropólogo as observa. Com isso, ele rompe com as experiências
especulativas sobre a reconstrução histórica e as geografias especulativas, representadas, segundo ele,
pelo Difusionismo. O antropólogo se dedica ao estudo das lógicas particulares características de cada
sociedade, de cada cultura.
Malinowski tira das Ciências Biológicas seu modelo de estudo, na mesma linha anteriormente
percorrida por Émile Durkheim. Para o Funcionalismo,
98 | Teorias Antropológicas

[...] o indivíduo sente um certo número de necessidades, e cada cultura tem precisamente como função a de satisfazer
à sua maneira essas necessidades fundamentais. Cada uma realiza isso elaborando instituições (econômicas, políticas,
jurídicas, educativas...), fornecendo respostas coletivas organizadas, que constituem, cada uma a seu modo, soluções
originais que permitem atender a essas necessidades. (LAPLANTINE, 1987, p. 81)

O modelo baseado nas ciências da natureza permitiu ao Funcionalismo, para Malinowski, a coerên-
cia interna necessária para o estudo das conexões existentes entre as diversas instituições e suas respos-
tas às necessidades concretas de cada grupo humano.
O teórico abre a porta para o estudo multidisciplinar do homem. Segundo ele, a sociedade fun-
cionava como um organismo. Mais do que um fundamento para o conhecimento daquele grupo hu-
mano, o modelo permitia conhecer o próprio funcionamento da sociedade estudada. Mais do que um
recurso epistemológico, o modelo permitia observar cada instituição, e como elas funcionavam numa
determinada sociedade. Por isso, as motivações sociais, psicológicas e biológicas tornam-se fatores fun-
damentais do estudo de um grupo humano. Nessas circunstâncias, surge a técnica da observação par-
ticipante.
Malinowski procura reviver os sentimentos dos seus interlocutores, com sua intensa participação,
na qualidade de antropólogo, no universo cultural dos povos estudados, para compreender e compar-
tilhar as razões interiores e emotivas dos povos e suas culturas.
Segundo Laplantine (1987), Malinowski foi provavelmente o personagem mais controvertido da
história da Antropologia. Para o antropólogo francês, a obra de Malinowski foi controvérsia por duas ra-
zões: Malinowski opunha-se à visão dos antropólogos sobre a “civilização industrial” como sendo a mais
evoluída forma de organização da sociedade e a rigidez do seu modelo de estudo, o Funcionalismo.
Laplantine observa que os antropólogos da Era Vitoriana identificavam-se totalmente com as
chamadas “civilizações industriais”, da qual faziam parte. Para eles, as sociedades “primitivas” eram expe-
riências aberrantes. Malinowski nada na contramão dessa compreensão. Para ele, a Antropologia supõe
uma identificação com a alteridade4, com a diferença, com a pluralidade. Essas sociedades não podem
mais ser vistas como experiências anteriores à civilização, mas como formas contemporâneas, autên-
ticas e originais. As aberrações, para Malinowski, não são as chamadas sociedades primitivas, mas as
sociedades ocidentais: uma inversão completa no campo da teoria antropológica da época.
Outro aspecto dessa controvérsia, segundo Laplantine, é a rigidez do modelo Funcionalista inau-
gurado por Malinowski. Para o antropólogo francês, o modelo idealizava as sociedades tradicionais. Elas
seriam sociedades estáveis, sem conflitos, equilibradas, com instituições capazes de atender às necessi-
dades dos seus componentes. Laplantine identifica dois problemas que advêm dessa compreensão:
::: como explicar as mudanças sociais, no quadro de estabilidade na qual se encontra a sociedade
tradicional,
::: como dar conta do disfuncionamento e da patologia cultural.
Esses são os calcanhares de Aquiles da teoria de Malinowski, segundo Laplantine.
Malinowski parte para generalizações polêmicas, com as formulações das “leis científicas da so-
ciedade”, a partir da observação intensa das relações humanas feitas num pequeno arquipélago do
Pacífico. Para Laplantine, “a Antropologia Vitoriana era a justificativa do período da conquista colonial”.

4 Alteridade (em latim, alterĭtas: ser o Outro). A percepção e aceitação dos valores do Outro, a qualidade do que é Outro. Na concepção
antropológica a existência do homem social só é possível mediante o contato com o Outro, e assim, reconhecer que somos uma cultura
possível entre outras culturas.
Antropologia Funcionalista: a função das instituições na manutenção da sociedade | 99

A experiência monográfica e histórica projetada pelo Funcionalismo “passa a ser a justificativa de uma
nova fase do colonialismo” (LAPLANTINE, 1987, p. 83-84).
Esses dois aspectos, a contramão da visão de Malinowski em relação aos seus pares na Inglaterra
e suas generalizações rígidas, tornaram sua obra controvérsia e polêmica. Mas essas controvérsias não
foram suficientes para apagar a contribuição dada pelo antropólogo anglo-polonês aos estudos da An-
tropologia e à constituição do seu status na área das Ciências Sociais.

Os Argonautas do Pacífico Ocidental (1922)


Os Argonautas do Pacífico Ocidental é uma obra fundamental na história da Antropologia. Nela, Ma-
linowski inaugura, de forma sistemática, a teoria da observação participante e a técnica da etnografia.
Em Os Argonautas, Malinowski reconstrói a organização social dos habitantes das Ilhas Trobriand,
próxima à Nova Guiné. Os povos dessas ilhas possuíam um sistema de troca intertribal, Kula, que tinha
um profundo impacto nas suas relações sociais e na forma de organização de suas vidas. Para o antropó-
logo, a troca de objetos rituais respondia a uma necessidade cultural do grupo humano Trobriand.
Malinowski dá ênfase ao aspecto científico da pesquisa. Ele advoga que o pesquisador deve
ser “imparcial e franco”, nas suas observações e registros, detalhados e precisos. Para o antropólogo,
alguns princípios científicos tornam-se imprescindíveis na pesquisa de campo: o pesquisador deve
ter objetivos científicos e conhecer os valores e critérios da etnografia moderna; o pesquisador deve se
colocar em condições de realizar sua pesquisa, de forma objetiva, e viver em meio aos povos estudados;
o pesquisador deve aplicar métodos particulares para a coleta, manipulação e estabelecimento dos
dados colhidos em campo.
Malinowski insistiu na necessidade de o pesquisador, em campo, impulsionado pela teoria, distin-
guir o pesquisador do teórico. Ele colocou como epicentro do trabalho de campo a descrição da organi-
zação social, de forma clara, precisa e nítida, com a definição das “leis” e o registro das regularidades de
todos os fenômenos culturais observados.
O pesquisador deve buscar todos os fatos e aspectos concretos dos fenômenos observados, em
todas as suas dimensões, pelo método indutivo5 e, a partir dessa metódica, formular as inferências.
Malinowski utiliza-se, na organização dos dados obtidos em campo, de diagramas6 e quadros
sinóticos7 para reduzir a informação à sua essencialidade. Para ele, era fundamental e indispensável o
registro meticuloso e detalhado das observações feitas em campo, para a reconstrução das instituições
e, a partir delas, compreender suas funções na preservação da totalidade cultural daquele povo.
Malinowski formulará um conceito capaz de encapsular os fenômenos que não podem ser cap-
turados por perguntas do pesquisador, mas que são importantes para a compreensão daquele grupo
humano: “Imponderáveis da vida real”. Na observação atenta da rotina de trabalho, cuidados com o cor-
po, maneiras de comer e preparar as refeições, os pesquisadores encontrariam esses “imponderáveis”
fundamentais para a reconstrução das relações sociais do grupo.

5 O método indutivo de investigação científica, criado pelo filósofo britânico Francis Bacon (1561-1626), consiste na observação de casos
particulares partindo de premissas menores até chegar a conclusões generalizadas que são apenas prováveis.
6 Diagramas são representações gráficas de determinado conceito, idéia muito utilizada nas áreas do conhecimento humano.
7 Quadro sinótico é uma técnica de redução de texto que consiste na organização de dados essenciais sobre um objeto de pesquisa, proposta
de visão sintética, já acrescido de notas para elaboração de um quadro.
100 | Teorias Antropológicas

Para ele, os fatos devem falar por si. A observação do comportamento do grupo ligou Malinowski
às explicações psicológicas, além das sociais e biológicas. Para o antropólogo, o pesquisador deve se
imiscuir na forma de pensar e sentir dos povos estudados. Por isso, para desvendar esse universo, o pes-
quisador deve conhecer a língua dos povos, para compreender a magnitude de seus mitos e ritos.
Segundo Malinowski, a etnografia objetiva a apreensão do ponto de vista dos povos estudados,
sua relação com a vida e suas instituições e compreender o universo cultural, a visão de mundo desses
povos. Foi essa a empreitada que ele se propôs ao mergulhar na singularidade das formas de troca dos
povos das Ilhas Trobriand.
Nessa obra, Malinowski põe em prática a observação participante. Ele rompe, dessa forma, com o
seu mestre, Frazer, que fazia suas reconstruções a partir do seu gabinete de trabalho. Para ele, era funda-
mental ao pesquisador se impregnar da mentalidade de seus interlocutores, e esforçar-se para pensar
na língua deles, para apreender sua visão de mundo. Segundo Laplantine (1987), ao propor esse exer-
cício de radicalidade em direção a alteridade, Malinowski ensinou aos antropólogos o “olhar”. Ser antro-
pólogo é mais do que entrevistar os informantes, mas penetrar no âmago do seu universo cultural.
Em “Os Argonautas”, Malinowski transcende a prática antropológica anterior como registro de
fenômenos exóticos e secundários, pois,
para alcançar o homem em todas as suas dimensões, é preciso dedicar-se à observação de fatos sociais aparentemente
minúsculos e insignificantes, cuja significação só pode ser encontrada nas suas posições respectivas no interior de uma
totalidade mais ampla. [...] Malinowski mostra que estamos frente a um processo de troca generalizado, irredutível à
dimensão econômica apenas, pois nos permite encontrar os significados políticos, mágicos, religiosos, estéticos do
grupo inteiro. (LAPLANTINE, 1987, p. 84-85)

Nessa obra, Malinowski reconstitui a existência de homens e mulheres, nas suas vidas cotidianas e
hábitos, através de suas relações e experiências pessoais. Além de exercitar com maestrias fundamentais
para o futuro da Antropologia instrumentos como a observação participante e a etnografia, Malinowski
utilizou a fotografia, abrindo caminho para o que modernamente se chama “Antropologia audiovisual”.
Malinowski com toda a controvérsia de sua produção foi um antropólogo além do seu tempo.

Alfred Reginald Radcliffe-Brown (1881-1955) –


estudos comparativos
Alfred Reginald Radcliffe-Brown foi aluno de W. H. R. Rivers, um dos grandes antropólogos britâni-
cos, no tempo em que estudou na Universidade de Cambrigde. Seus interesses nas pesquisas de campo
foram variados e múltiplos. Radcliffe-Brown desenvolveu pesquisas nas Ilhas Andaman (1906-1908) e
na Austrália Ocidental (1910-1912). Como docente da disciplina, ministrou aula na África do Sul (1920-
1925), na Austrália (1925-1931), nos Estados Unidos da América (1931-1937), na Inglaterra (1937-1946)
e no Brasil (1942-1944). Por onde passou, deixou uma legião de discípulos e sua marca de intelectual.
Para o antropólogo inglês, a função das instituições desempenha papel decisivo na preservação
da vida social, em sua totalidade. É um elemento fundamental para a manutenção das estruturas e para
a unidade funcional do sistema. Segundo Radcliffe-Brown, a soma da idéia de sistema com a soma da
idéia de estrutura resultam na idéia de processo de vida social. A vida social é um emaranhado de ações
e interações de seres humanos, que ocupam lugar na estrutura social.
Antropologia Funcionalista: a função das instituições na manutenção da sociedade | 101

Em sua obra Estrutura e Função na Sociedade Primitiva, Radcliffe-Brown define a função:


O conceito de função [...] implica, pois, a noção de uma estrutura constituída de uma série de relações entre entida-
des, sendo mantida a continuidade da estrutura por um processo vital constituído das atividades integrantes [...] pela
definição aqui dada, função é a contribuição que determinada atividade proporciona à atividade total da qual é parte
(RADCLIFFE-BROWN, 1973, p. 223-224)

O funcionamento se desenvolve por intermédio das atividades dos indivíduos, individuais ou


coletivas. A função de uma atividade, a parte que ela desempenha na vida social, contribui para a ma-
nutenção da continuidade, perenidade, da estrutura social. A função não deve ser usada no sentido de
“intenção”, “finalidade” ou “significado”. A função é o que sustenta a estrutura social, a coesão dentro de
um sistema de relações sociais. Para ele, a magia tinha a função de atuar como um mecanismo de soli-
dariedade social, numa determinada sociedade.
Ele estuda a magia do ponto de vista da sociedade e não do ponto de vista da Psicologia, como
fez Malinowski. Mas, a exemplo de Malinowski, para Radcliffe-Brown a sociedade é análoga a um orga-
nismo. Para se distinguir de Malinowski, sua concepção antropológica recebe o nome de “Estrutural-
Funcionalista”. Porém, ambos fizeram estudos sincrônicos: tentaram compreender e explicar as culturas
com base nos seus estados atuais, sem referências ao passado.
Segundo o antropólogo, há condições necessárias para a existência das sociedades humanas. A
pesquisa científica é capaz de compreender e estudar essas necessidades. Entretanto, ele descartava o
rótulo de funcionalista, pois a Antropologia escapava de todo o enquadramento de escola, como ramo
das ciências naturais.
Em muitas das suas elaborações conceituais, Radcliffe-Brown se aproxima de Durkheim, mas em
outras, suas críticas ao mestre francês são evidentes. Radcliffe-Brown critica a concepção de patologia social
de Durkheim. Para ele, a patologia social não pode ser estudada como perturbação da atividade social.
Porém, assim como Durkheim, Radcliffe-Brown entendia que os desejos individuais poderiam ser
contrários às necessidades sociais e a tendência era entrar em conflitos com a sociedade. Para o antropó-
logo inglês, a cultura subordina cada indivíduo às necessidades de uma entidade superior, a sociedade.
Ele resgata os conceitos gregos de eunomia (saúde) e dysnomia (doença) sociais. Com base nesses
conceitos, o antropólogo britânico argumenta que a patologia social não pode ser estudada de forma
científica, como advogava Durkheim, pois as estruturas sociais poderiam ser alteradas ou até mesmo
serem absorvidas como parte integral de uma organização social mais ampla e vasta.
Radcliffe-Brown argumentará que a patologia social não pode ser investigada sob a ótica da Bio-
logia, pois a sociedade se distingue dos animais, já que estes morrem, e aquela, não. Portanto, consi-
derar a sociedade como um organismo que, em caso de anomalia, deveria ser tratada, parecia para
Radcliffe-Brown uma impossibilidade científica, dada a capacidade de transformação das sociedades.
A Antropologia Social deveria se ocupar da investigação dos casos concretos, observáveis. Se-
gundo Radcliffe-Brown, a Antropologia não tinha instrumentos para estudar a cultura, que surgia para
o antropólogo inglês como uma abstração, e não como algo concreto, como realidade factual.
O antropólogo inglês dá ênfase ao estudo comparativo, como método imprescindível da Antro-
pologia. Para exemplificar sua concepção, ele adota a figura do pássaro como modelo. Ele apontava que
muitas sociedades de lugares distintos da Terra adotavam a domesticação de pássaro. Os pássaros e suas
divisões, por vezes, eram usados para explicar o mundo concreto dos seres humanos e suas relações.
Para Radcliffe-Brown, conhecer as semelhanças e diferenças estruturais existentes na sociedade, assim
como no universo dos pássaros, seria indispensável ao estudo científico das sociedades humanas.
102 | Teorias Antropológicas

O gavião-real e o corvo são aves usadas pelos nativos australianos para representar a divisão
social interna. Radcliffe-Brown aponta para o fato de que em diversas lendas contadas pelos nativos o
gavião-real e o corvo aparecem como oponentes em um conflito. Já nas regiões da América, as divisões
sociais se apresentavam como aves semelhantes e de cores distintas. O autor destaca que essas dis-
tinções não implicam conflitos entre as partes representadas. Os conflitos registrados não têm relação
direta com a divisão simbólica.
O objetivo último do estudo comparativo era a compreensão das instituições que formavam cada
sociedade particular, a avaliação das leis gerais de funcionamento de cada um desses sistemas orgâni-
cos e a comparação sistemática entre eles.
As pesquisas e estudos de Radcliffe-Brown se aclimataram perfeitamente às condições históricas
pelas quais passava a Grã-Bretanha. Seus estudos tiveram um valor prático imponderável, pois seriam
úteis para a administração colonial britânica, ao fornecer bases científicas, para o controle e a educação
dos povos colonizados pelos ingleses.

Edward Evan Evans-Pritchard (1902-1973):


espaços ecológicos e os conflitos como
parte integrante da sociedade
O antropólogo britânico Edward Evan Evans-Pritchard estudou História Moderna na London School
of Economics and Political Science. Evans-Pritchard lecionou Sociologia africana e Antropologia na uni-
versidade de Oxford, de 1948 a 1970, e formou uma geração inteira de antropólogos e estudiosos, como
Carmelo Lisón Tolosana, um dos pais da moderna Antropologia sociocultural na escola espanhola.
Entre as suas obras mais importantes encontra-se Os Nuer: uma descrição do modo de subsistência
e das instituições políticas de um povo nilota que trata dos pastores do Sudão, considerados pelo autor
como uma sociedade acéfala, sem lideranças, e de anarquia “ordenada”; Bruxaria, Oráculos e Magia entre
os Azande (1950), povo do Sudão Meridional.
Evans-Pritchard distancia-se de Malinowski e Radcliffe-Brown, por defender uma antropologia
histórica. Para ele, a linha do tempo é um fator importante no campo de estudo dos povos e das suas
manifestações.
Nesses trabalhos, o autor procurou traduzir para o mundo ocidental o universo de ritos, hábitos e
costumes dos povos africanos, estudados por ele. Na sua obra “Bruxaria, oráculo e magia entre os Azan-
de”, Evans-Pritchard define da seguinte forma sua linha de estudos:
[...] uma tentativa de tornar compreensíveis uma série de crenças. Todas elas estranhas à mentalidade de um inglês
contemporâneo, mostrando como constituem um sistema de pensamento inteligível relacionado com as atividades
sociais, a estrutura social e a vida do indivíduo. (EVANS-PRITCHARD, 1978, p. 97)

Evans-Pritchard não havia demonstrado interesse no estudo da bruxaria, mas em suas próprias
palavras, “os Azande tinham, de forma que tive que me deixar guiar por eles” (EVANS-PRITCHARD, 1978,
p. 97).
Antropologia Funcionalista: a função das instituições na manutenção da sociedade | 103

O antropólogo inglês cunhou um conceito importante dos seus estudos nas terras africanas: es-
paços ecológicos. Por esse conceito, Evans-Pritchard designava os aspectos físicos e geográficos da re-
gião. Para os Nuer o acesso à água era um critério importante para a definição dos pontos de referência,
e da posição do agrupamento humano, organização do espaço, dentro de seu território.
Para a definição dos espaços ecológicos dos Nuer, a topografia – aspectos físicos e geográficos
– era comutada no cálculo para estabelecer a distância entre os diversos espaços e localidades, e suas
relações recíprocas.
Segundo Evans-Pritchard (1974, p. 109),
a comunidade de uma aldeia que tem água permanentemente disponível em suas proximidades está numa posição
muito diferente daquela que tem que viajar durante a estação seca para obter água, pastagens e pesca. Um cinturão de
8
tsé-tsé cria uma barreira intransponível, estabelecendo grande distância ecológica entre os povos separados por [...] e a
presença ou ausência de gado entre os vizinhos dos Nuer determina, da mesma maneira, a distância ecológica entre eles
e os Nuer [...] A distância ecológica, neste sentido, é uma relação entre comunidades definidas em termos de densidade
e distribuição, e com referência à água, vegetação, vida animal e dos insetos etc.

Para o estudioso, outro aspecto importante é a compreensão de como os espaços ecológicos são
fundamentais para explicar as noções de espaço e tempo dos povos Nuer, e o seu papel para a compre-
ensão do seu sistema social:
Sua ecologia limita e de outras maneiras influencia suas relações sociais, mas o valor dado às relações ecológicas é
igualmente significante na compreensão do sistema social, que é um sistema dentro do sistema ecológico, em parte
dependente deste e em parte tendo existência própria. [...] (EVANS-PRITCHARD, 1974, p. 94)

No estudo sobre os povos Nuer, Evans-Pritchard distancia-se de Radcliffe-Brown, no que se refere


ao registro de conflitos na sociedade. Para Radcliffe-Brown, o conflito é uma forma estruturante do pen-
samento. Já para Evans-Pritchard, o conflito é algo que existe efetivamente na sociedade. Em sua obra,
ele disserta sobre as “vendetas”, que são situações em que um grupo procura ressarcimento por um
homicídio, contra um dos seus membros. Para ele, as “vendetas” são situações de conflitos intertribais e,
em muitos casos, podem levar à guerra.
A “vendeta” é uma instituição social cujo propósito é punir atos que se reconheçam como infração
a uma lei. A “vendeta” seria uma forma de preservação da coesão social: “o temor de provocar uma ven-
deta é, com efeito, a mais importante sanção legal dentro de uma tribo e a principal garantia da vida e
da propriedade do indivíduo” (EVANS-PRITCHARD, 1978, p. 162).

Raymond Willian Firth (1901-2002) –


Antropologia como interface da economia
O antropólogo neozelandês Raymond Willian Firth radicou-se na Inglaterra, a partir dos anos
1930. A exemplo de outros antropólogos da época, lecionou na London School of Economics, centro
intelectual pelo qual se doutorou. Seus objetos de pesquisa foram as chamadas economias primitivas,

8 Tse-tsé é uma mosca hematófaga, Glossina, que transmite através de sua picada a Doença do Sono – Tripanossomíase africana humana.
Doença parasitária, prevalentes na África na forma de epidemia, evolui em dois estágios – sangue e sistema nervoso central – com o avanço
gradual do distúrbio do sono até o estado de estupor permanente.
104 | Teorias Antropológicas

sobre as quais se debruçou, sob a orientação, no início de sua carreira acadêmica, de Bronislaw Malino-
wski, do qual foi discípulo. Suas principais obras são: The Primitive Economics of the New Zealand Maor
(1929); Tikopia Ritual and Belief (1930); Art and Life in New Guinea (1936); We, the Tikopia: A Sociological
Study of Kinship in Primitive Polynesia (1936); Human Types: An Introduction to Social Anthropology (1938);
Primitive Polynisean Economy (1939); Malay Fisherman: Their Peasant Economy (1946); Elements of Social
Organization (1951); Two Studies of Kinship in London (editor) (1956); Men and Culture: An Evaluation of
the Work of Bronislaw Malinowski (1957); Social Change in Tikopia: Re-study of a Polynesian Community
After a Generation (1959); History and Traditions of Tikopia (1961); Essays on Social Organization and Va-
lues (1964); Themes in Economic Anthropology (1967); Rank and Religion in Tikopia: Asyudy in Pollynesian
Paganism and Conversion to Cristianity (1970); Symbols: Public and Private (1973).
Uma das singularidades da produção intelectual de Firth é a articulação da análise econômica
com a antropologia. Para ele, a economia, centro de suas preocupações, era uma espécie de ciência de
ligação; ou seja, a economia dava a base de compreensão das relações culturais e sociais de um deter-
minado grupo humano. Ela possui, segundo o autor, “princípios de aplicação universais”, e seus aspectos
estão presentes em todas as formas de organização social.
Firth desenvolveu o conceito de organização social, com a possibilidade de o estudo antropo-
lógico ser aprofundado em uma cultura particular, para a observação do seu sistema social total, para
analisar seu funcionamento e a preservação do sistema. Para o campo da antropologia, ao ampliar o
conceito de organização social, Firth consolidou a Teoria Funcionalista e antecipou, em muitos aspec-
tos, o conceito estruturalista de estudo antropológico.
O papel desempenhado no Instituto Real de Antropologia conferiu-lhe prestígio e o título de
Cavaleiro da Coroa Britânica.
Em uma de suas obras mais destacadas, que teve o prefácio assinado pelo seu mestre Bronislaw
Malinowski, Nós, os Tikopia: um estudo sociológico do parentesco na Polinésia primitiva (1938), Raymond
Firth faz um trabalho de campo de caráter monográfico. O autor estuda o sistema de parentesco, um
dos temas mais recorrentes da Antropologia da época.
Nesse estudo, Firth observa o impacto que a instalação da Igreja Anglicana9 teve naquela comu-
nidade e em sua dinâmica de organização sociocultural. Ele destaca que, apesar desse contato com o
mundo branco, os nativos locais continuam Tikopia. Apesar do contexto adverso, o antropólogo cons-
tata que as relações de parentesco foram preservadas, e foram indispensáveis para a manutenção da
organização social tradicional.
Para ingressar nesse universo, Firth lança mão da metáfora culinária: “Como um gourmet cami-
nhando em volta de um banquete servido à mesa, saboreia antecipadamente a qualidade que irá apre-
ciar inteiramente mais tarde” (1998, p. 24). Nos três primeiros capítulos, o antropólogo descreve suas
impressões sobre esse banquete antropológico e sobre o papel de campo que o antropólogo deve
cumprir e sua metodologia de trabalho.
O autor descreve sua admiração ao povo sobre o qual vai construir sua narrativa antropológica,
com base no conceito elaborado pelo seu mestre, a observação participante. Firth destaca a neces-

9 Igreja Anglicana é a igreja cristã oficial na Inglaterra. Em 1534, durante a Reforma Protestante, o rei Henrique VIII separou-se da Igreja
Católica Romana, definitivamente, a Igreja da Inglaterra que nunca havia se conformado com a dominação Romana. Tem em sua forma de
culto litúrgico influências da Igreja Católica Romana e das Igrejas Protestantes e também uma organização hierárquica com bispos, por isso
conhecida também como Igreja Episcopal. Em diversas partes do mundo as Igrejas Anglicanas se tornaram autônomas, formando províncias
anglicanas nacionais ou regionais que juntas formam a Comunhão Anglicana Mundial.
Antropologia Funcionalista: a função das instituições na manutenção da sociedade | 105

sidade de se conviver com os habitantes, conhecer-lhes os hábitos e língua, sem abrir mão do rigor
científico.
A partir daí, Firth dá a contextualização – histórica e geográfica – do estudo, e lança as bases para
o seu exercício etnográfico, com a descrição minuciosa e precisa das relações de parentesco dos Tikopia,
para, a partir desse ponto, ater-se às questões gerais da organização social do grupo. No final da obra,
Firth destaca os mecanismos da conformação do indivíduo à sociedade, por intermédio de rituais de
iniciação e do casamento.
Para Firth, a unidade de parentesco desse povo não é a linhagem, mas a casa (paito): agrupa-
mento de várias famílias nucleares. Um conjunto de casas forma um clã10, formas de organização das
relações econômicas e sociais entre as casas. Essa organização define as relações políticas e religiosas,
baseadas no poder de um chefe e um totem11 ancestral. Essas relações definem as alianças estabeleci-
das por esse povo.
Seguindo o modelo clássico do Funcionalismo, Firth, nessa obra, parte do estudo do parentesco,
das relações de casamento, das relações entre as casas e clãs, para o estudo de suas funções na socieda-
de total e de suas atribuições na manutenção da sociedade. Isso, sem abrir mão da observação partici-
pante na comunidade e do rigor científico da Antropologia.

Herman Max Gluckman (1911-1975) –


Antropologia situacional e as relações de divisão e fusão
Herman Max Gluckman nasceu na África do Sul, Joanesburgo. Apesar disso, por se opor ao regi-
me do Apartheid12 que vigorava no país, preferiu a cidadania britânica e nesse país desenvolveu suas
atividades acadêmicas.
Ele estudou na Universidade de Oxford, por onde se doutorou. Nessa instituição, foi aluno de
Evans-Pritchard e de Radcliffe-Brown. O antropólogo fez estudos de campo no seu país natal e em Zâm-
bia, com os povos Lozi e Tonga.

10 Clã constitui-se num grupo de pessoas, consangüíneas ou não, e é definido pela descendência de um ancestral comum. Em geral, o
parentesco difere da relação biológica, visto que esta também envolve adoção, casamento e supostos laços genealógicos. Na maioria dos clãs
seus membros não podem casar-se entre si. Alguns clãs possuem um líder oficial, tal como um chefe, matriarca ou patriarca. Dependendo das
regras e normas de parentesco que regem a sociedade onde se inserem, os clãs são patrilineares, seus membros são vinculados à linhagem
masculina; matrilineares; seus membros são vinculados à linhagem feminina, e “bilaterais”, todos descendem do ancestral maior, tanto da
linhagem masculina quanto feminina.
11 Totem, palavra derivada de “dodaim”, significa aldeia ou residência de um grupo familiar. É um símbolo – objeto, animal ou planta – cultuado
como um deus e em torno dele é organizada uma sociedade.
12 Regime do Apartheid foi uma política de segregação racial definida pelos colonizadores europeus na África do Sul em 1902 após a Guerra
dos Bôeres. O decreto do “Ato de Terras Nativas” – os negros deveriam viver em reservas especiais, não poderiam comprar terras fora da
área delimitada – o que garantia mão-de-obra barata para os latifundiários brancos, e as Leis do Passe – que exigia dos negros passaporte
para poderem se locomover dentro do território para obter emprego, pretendiam manter o domínio sobre a população nativa. Em 1948, o
regime do Apartheid consolidou-se com o controle hegemônico da política do país pelos Afrikaaners (de origem holandesa). Mesmo com a
organização, mobilização e as manifestações da população durante os anos, somente em 1989 começaram as negociações para a libertação
de Nelson Mandela e para a legalização do CNA – Congresso Nacional Africano e de todos os grupo contrários ao Apartheid. Em 1990 é abolido
o regime segregacionista, mas a economia sul-africana ainda revela que a desiguladade racial persiste.
106 | Teorias Antropológicas

Com o tempo, Gluckman começa a questionar os pressupostos teóricos de seus professores e


mestres, em especial no tocante à capacidade de estudo das sociedades modernas pelo método estru-
tural-funcionalista. Para o autor, os conflitos e competição entre os indivíduos dessas sociedades não se
enquadravam no modelo teórico do Funcionalismo.
Gluckman lança mão do método de estudo centrado nas situações sociais concretas e específicas.
Ele passou a fazer estudos de casos e análise das interações entre atores sociais. Assim, para cada forma
de organização social, Gluckman apontava funções distintas: nas sociedades modernas, o direito asse-
gurava a garantia da ordem social; já nas sociedades tradicionais, essa função era exercida pelo ritual.
No seu trabalho de campo desenvolvido na África, Gluckman estudou as relações entre os afri-
canos nativos e os europeus. Observou a criação de uma única comunidade com modos específicos de
comportamentos. Para Gluckman, com a teoria da fricção, certificou-se uma realidade empírica – real,
concreta – moldada segundo uma dinâmica de conflitos regulamentares, conduzido pelos grupos ét-
nicos opostos. O conflito assume um papel de centralidade nas relações sociais. Na mesma linha, segue
a observação sobre as relações interdependentes entre os grupos e o caráter dinâmico das alianças es-
tabelecidas e as oposições existentes entre os grupos. As relações de divisão e fusão constatadas nessa
sociedade cindida pelos conflitos raciais são inerentes a todas as estruturas sociais, segundo Gluckman.
Essa dinâmica é condicionada pelas relações situacionais, na qual cada divisão e fusão se dão.
A análise situacional proposta por Gluckman permite que das ocorrências que não se repetem
sejam retirados elementos estruturais e comportamentais dos indivíduos, como atores sociais. Ou seja,
não apenas nas ocorrências freqüentes encontram-se elementos importantes para o estudo das rela-
ções sociais de divisão e fusão, registradas entre grupos étnicos distintos, que compartilham o mesmo
espaço.

Victor Turner (1920-1983) –


Antropologia como performance dos dramas sociais
Victor Turner, nascido na Escócia, radicou-se nos Estados Unidos da América, onde desenvolveu
seus principais trabalhos, nos campos do ritual e do simbolismo, a partir da década de 1960. Turner, a
exemplo de outros antropólogos da Escola Funcionalista, desenvolveu estudos de campo na África,
entre os Ndembu, na Zâmbia. Com base na abordagem processual – em desenvolvimento –, Turner
estudou os símbolos e rituais desse povo, tendo como método a etnografia de estudo de casos.
Nos aspectos conceituais, seu trabalho centrou-se em quatro eixos temáticos:
1. rituais com significados sociais codificados;
2. o efeito profundo dos códigos sociais sobre a mente dos povos;
3. o teatro como padrão repetitivo do conjunto das atividades sociais;
4. a noção de que a liminaridade seja a forma de como as pessoas vão para além de suas limita-
ções.
Antropologia Funcionalista: a função das instituições na manutenção da sociedade | 107

Esses quatro eixos temáticos atuam como pano de fundo das reflexões teóricas e conceituais dos
estudos de Turner.
Victor Turner – tendo como tela suas densas experiências etnográficas na África – põe em sus-
peição a fixidez e coerência dos sistemas sociais que brotam dos estudos antropológicos. Ele foca suas
observações nas ocorrências descontínuas, ambíguas, mescladas e indeterminadas nos aspectos pro-
cessuais cotidianos. Nessas circunstâncias, surge a noção de performance13 em rituais, gêneros artísticos,
formas culturais e microinterações da vida cotidiana.
Com o conceito de performance, Turner desloca a noção de cultura como resposta preestabeleci-
da pela estrutura social. Ele focará sua observação no construtivismo social, agenciamento, historicida-
de das práticas sociais, com suas descontinuidades, fluidez e intersubjetividade.
Os “dramas sociais”, segundo Turner, são comuns nas sociedades e representam performances que
permitem revelar os porões da estrutura social. A raiz do teatro encontra-se nos dramas sociais. Dessa
forma, as potencialidades da comunidade podem ser exploradas, com seus valores e crenças. Eles po-
dem ser dessacralizados e representados, para que se possam encontrar soluções para tais conflitos. Os
dramas sociais são os confrontos que ameaçariam a norma estabelecida, eles apresentam qualidades
teatrais e uma forma estrutural de etapas.
Para Turner, a Antropologia da Performance é uma parte fundamental da Antropologia Experi-
mental, já que toda a “performance cultural” – cerimônias, carnaval, poesia – são explicações da vida
cotidiana.
Turner defende que, em determinadas circunstâncias, há uma mudança no status dos rituais. Se-
gundo ele, o processo de separação da vida cotidiana faz com que uma sociedade fique em “estado
intermediário”, como nos “rituais de inversão de status” caracterizados pelo exercício coletivo da autori-
dade ritual dos grupos subalternos socialmente em relação aos seus “superiores” no plano da sociedade,
onde estes são insultados ou até maltratados fisicamente, o que caracteriza a ocorrência da “antiestru-
tura”: mudanças efetivas nos valores e na organização da estrutura social, com processos corretivos,
compensatórios, para retomar a ordem habitual do cotidiano.

Edmund Leach (1910-1989) –


precariedade e fugacidade do equilíbrio social
O antropólogo inglês Sir Edmund Leach foi aluno de Bronislaw Malinowski, na London School of
Economics. Optou pela Antropologia depois que realizou o trabalho de campo na Birmânia (os povos
Kachin). Leach critica um dos alicerces do Funcionalismo, o chamado “equilíbrio social estrutural”.
Para o antropólogo inglês, “o equilíbrio social” é sempre precário e fugaz, quando critica o concei-
to de Radcliffe-Brown de equilíbrio relativo. Utilizou como metódica o estudo de casos, dentro de uma
perspectiva histórica. Seus objetos de pesquisa foram os mitos e os ritos, tendo em mira as relações

13 A performance é uma linguagem artística que apresenta ligações com o teatro e, em algumas situações, com a música, poesia, o vídeo. De
acordo com Victor Turner, performance é uma forma de “expressão” que completa a experiência. A palavra deriva do francês parfournir, que
significa “completar” ou “realizar inteiramente”.
108 | Teorias Antropológicas

políticas e sociais. Leach foi presidente da Royal Anthropological Institute no início dos anos 1970 (1971-
1975), quando procurou disseminar os estudos e conceitos fundamentais da Antropologia Social.
Na sua obra mais popular – Sistemas Políticos da Alta Birmânia: um estudo da estrutura social Kachin
– Leach critica a idéia estrutural-funcionalista de sistemas sociais estáticos e homogêneos, em especial
o conceito de equilíbrio estático. Segundo ele, as sociedades reais não podem estar em equilíbrio, pois
as “unidades sociais” estudadas mostravam-se com grandes variedades de tamanho e indicavam insta-
bilidades. Leach interessou-se pelos processos de mudanças estruturais nas sociedades estudadas.
As críticas de Leach a muitas das idéias conceituais do estrutural-funcionalismo, como a questão
do equilíbrio e da homogeneidade, permitiram avançar para o mapeamento das diversas mudanças
culturais registradas pela Antropologia nos últimos anos.

Considerações finais
A Teoria Antropológica Funcionalista deu grandes contribuições à disciplina da Antropologia.
Duas contribuições foram decisivas para o desdobramento dessa área de estudos das Ciências Sociais:
a observação presente, o estudo in loco dos povos, e a elaboração da narrativa monográfica. A observa-
ção presente pôs o antropólogo em contato com os seus objetos e sujeitos de estudo. Esse contato com
a realidade colocou o pesquisador no coração das relações sociais e culturais dos povos, sem o ranço do
preconceito da visão de superioridade que caracterizou o período anterior da disciplina.
A narrativa monográfica permitiu ao pesquisador focar sua observação num tema, com a ver-
ticalização de sua observação e descrição – detalhadas, precisas, cirúrgicas, atentas – das ocorrências
registradas no campo de pesquisa.
Ao se concentrar nos estudos das funções exercidas numa dada sociedade para a preservação do
todo social, o Funcionalismo rompeu com a noção de evolução linear do primitivo para o civilizado. O
método permitiu observar os valores intrínsecos das instituições na sociedade estudada. Nessa linha,
desdobrou-se em Antropologia Social, de estudo das relações sociais numa sociedade determinada.
Apesar do seu modelo rígido, no início de sua construção conceitual, suas contribuições alarga-
ram o espectro da ciência, em diversas direções: o trabalho de campo etnográfico, o estudo monográ-
fico, a pesquisa da sociedade no estágio no qual ela se encontrava no momento do estudo, os estudos
comparativos das funções observadas, a identificação de espaços ecológicos e suas influências no siste-
ma social, a observação das dinâmicas de conflito no coração da sociedade, a interface da Antropologia
com a Economia, os aspectos situacionais das relações de divisão e fusão, as performances dos dramas
sociais, a consolidação do estudo de caso e a fugacidade e precariedade do equilíbrio das relações so-
ciais.
Além desses aspectos teóricos, o Funcionalismo teve na figura de Bronislaw Malinowski, por mais
de 20 anos, uma personagem emblemática. Sua atuação em campo contribuiu para a consolidação no
imaginário social da figura do antropólogo como aventureiro das Ciências Sociais, imagem explorada
pelo cinema.
O Funcionalismo tirou a Antropologia dos gabinetes. Com essa escola, a Antropologia foi a campo
e reinventou seus métodos de trabalho e multiplicou seus objetos e sujeitos de pesquisa e, ao estudar a
Antropologia Funcionalista: a função das instituições na manutenção da sociedade | 109

cultura na sua totalidade, abriu caminho para a escola de que desenvolverá a partir dos anos 1930, nos
Estados Unidos da América, o Culturalismo Norte-Americano.

Texto complementar
Bronislaw Malinowski (1884-1942)
(LAPLANTINE, 2004, p. 67-68)
Boas pretendia elaborar relatórios exaustivos, e muitos de seus sucessores nos Estados Unidos
(Kroeber, Murdock...) aplicam-se a estabelecer correlações ente o maior número possível de variá-
veis. Esta maneira de proceder é particularmente aberrante aos olhos de Malinowski. Segundo ele,
convém, pelo contrário, e ele dá o exemplo, mostrar a partir de um só costume, e até de um só obje-
to (por exemplo, a canoa trobriandesa) aparentemente muito simples, que é toda a sociedade que
se manifesta. Instaurando uma ruptura com a história conjetural (a reconstituição especulativa dos
estádios), mas também com a geografia especulativa (a Teoria Difusionista, que tende, no começo
do século XX, a substituir o evolucionismo, e postula a existência de centros de difusão da cultura,
que se transmitiria através de empréstimos às outras culturas, Malinowski considera que uma socie-
dade deve ser estudada como uma totalidade, exatamente como ela funciona no momento em que
é observada. Podemos medir o caminho percorrido desde Frazer, portanto mestre de Malinowski.
Quando perguntavam ao primeiro porque é que ele não ia visitar as sociedades a partir das quais ele
tinha construído sua obra, ele exclamava: “Deus me livre!” Os Argonautas do Pacífico Ocidental, no
entanto publicados apenas poucos anos depois da publicação de Rameau d’Or, e prefaciado, note-
se, pelo próprio Frazer, procede de forma rigorosamente inversa. Por um lado a etnologia torna-se,
uma das primeiras vezes, uma atividade “ao ar livre” desenvolvida, por assim dizer, em direto “den-
tro de uma natureza vasta, virgem e aberta”. Por outro lado ela consiste em analisar de maneira
intensiva e contínua uma micro sociedade sem se referir à sua história.
Se a obra (e a própria personalidade) de Malinowski foi uma das mais controversas de toda a
história da Antropologia, o certo é que o que lhe devemos permanece ainda hoje considerável. Ten-
do compreendido que a única maneira de conhecer os outros é partilhando suas existências, ele in-
ventou literalmente e colocou em prática pela primeira vez a observação participante, dando-nos o
exemplo do que deve ser o estudo intensivo de uma sociedade que nos é estranha. O fato de efetuar
uma estada de longa duração, impregnando-se da mentalidade de seus hóspedes e esforçando-se
por pensar em sua própria língua, pode parecer banal hoje. Não era o caso nos anos 1914-1920 em
Inglaterra, e ainda menos em França. Malinowski ensinou-nos o olhar. Deu-nos o exemplo do que
devia ser uma pesquisa de campo, que não tem mais nada a ver com a atividade de uma “inspector”
questionando um “informador”.
Enfim, uma das grandes qualidades de Malinowski, é sua faculdade em restituir a existência
desses homens e mulheres que apenas podem se tornar conhecidos através de uma relação e ex-
110 | Teorias Antropológicas

periência pessoais. Mesmo quando ele estuda as instituições, nunca são para ele abstrações regu-
ladoras na vida de autores anônimos. Em Os Argonautas do Pacífico Ocidental, como em Jardins de
Coral, ele faz reviver para nós esse povo trobriandês que jamais poderíamos confundir com qual-
quer outra população. Ora, esta exigência de levar avante um projeto científico sem renunciar à sen-
sibilidade artística é talvez a principal característica da Antropologia. Malinowski não nos ensinou
unicamente a ver, mas também a descrever o que vemos: as cenas da vida cotidiana com seu relevo
e sua cor. Deste ponto de vista Os Argonautas parecem-me exemplares. É um livro escrito num estilo
magnífico que aproxima seu autor de um outro Polonês que, como ele, viveu na Inglaterra e que
se exprimia em inglês: Joseph Conrad, e que anuncia as mais belas páginas de Tristes Trópicos de
Lévi-Strauss.

Atividades
1. De acordo com a Teoria Funcionalista Britânica, como se desenvolveu o estudo antropológico no
século XX?

2. Qual a contribuição do teórico Bronislaw Malinowski na história da Antropologia moderna?


Antropologia Funcionalista: a função das instituições na manutenção da sociedade | 111

3. Comente as características antievolucionista e antidifusionista da Antropologia Funcionalista.

4. Qual a importância do estudo comparativo no trabalho desenvolvido por Radcliffe-Brown?


112 | Teorias Antropológicas
Escola antropológica do
Culturalismo Norte-Americano
e seus desdobramentos
Ruth Benedict (Padrões de Cultura, 1934), Margareth Mead (Sexo e Temperamento em Três Socieda-
des Primitivas, 1935), Melville Herskovitz (Antropologia Cultural, 1949), Ralph Linton (Cultura e Personali-
dade, 1945), Ruth Landes (A Cidade das Mulheres, 1947), nos Estados Unidos da América; Roger Bastide
(O Candomblé da Bahia, 1958), na França; e, Fernando Ortiz, (Del Fenómeno de la “transculturación” y de
su Importancia en Cuba, 1983), em Cuba, são os principais articuladores da Escola Antropológica do Cul-
turalismo Norte-Americano, que teve esse país como ponta do iceberg conceitual dessa matriz teórica.
Esses antropólogos provocaram um realinhamento no campo da disciplina, ao dar ênfase ao es-
tudo comparativo (deslocando a questão central da raça para a cultura produzida pelos povos), à busca
de leis que caracterizavam o desenvolvimento das culturas estudadas, o estudo das relações existentes
entre esse desenvolvimento cultural e a personalidade dos indivíduos em sociedade.
A partir dos trabalhos de campo de Franz Boas, na década de 1930, essa escola passou a pesqui-
sar os chamados padrões culturais das sociedades. Esses padrões seriam os marcadores da produção
cultural de um determinado povo, sem índice de superioridade entre um grupo humano e outro, com
marcadores culturais distintos.
O Culturalismo marca um campo de delimitação com o racismo exercitado na Antropologia, num
passado ainda recente. Seus pressupostos conceituais desarticulam a noção de superioridade racial ou
cultural, e destacam a singularidade da prática cultural dos povos.
Ao percorrer esse caminho, a Escola da Antropologia Cultural abre novas perspectivas e possibi-
lidades de estudos culturais, na Antropologia, com as múltiplas possibilidades de conceituação, estudo
e pesquisa de campo, nas diversas formas de organização social, que caracterizam a produção e repro-
dução das condições de vida da humanidade.
114 | Teorias Antropológicas

A Antropologia Cultural significou uma mudança consistente na metódica, abordagem, objetos e


sujeitos da Antropologia, ao ocupar o espaço da reflexão conceitual da Antropologia Social.
Essa mudança teve dois vetores importantes. Primeiro, ela deu autonomia à disciplina, que se viu
independente da Sociologia, como forma de observação dos fenômenos das Ciências Sociais; e, segun-
do, desloca seu foco de observação para o indivíduo, para o comportamento individual, importantes
indicadores dos aspectos culturais de um povo (artesanato, produção artística, produção de artefatos
religiosos e de práticas sociais, como a caça e a pesca).
Das experiências anteriores, até pela força da presença intelectual de Franz Boas, a Antropologia
Cultural incorpora os procedimentos teóricos do trabalho de campo, do método etnográfico e da aná-
lise comparativa.
O método comparativo foi utilizado não para as pesquisas dos sistemas e das relações sociais,
mas para os estudos dos comportamentos particulares e singulares, as formas de pensar, trabalhar e
entreter de homens e mulheres de um determinado grupo humano.
Os recursos conceituais são utilizados para o estudo do conjunto dos comportamentos – saber,
saber-fazer, ser – característicos de um grupo humano, com especificidades adquiridas nos processos
de aprendizagem e transmissão – de uma geração à outra – numa determinada sociedade.
Laplantine destaca três características que dão contornos à fisionomia teórica dessa escola. Se-
gundo o antropólogo francês, a Antropologia Cultural observa a originalidade do fazer cultural de um
povo, e as suas descontinuidades em relação ao tempo e ao espaço:
A Antropologia Cultural estuda os caracteres distintivos das condutas dos seres humanos pertencendo a uma mesma
cultura, considerada como uma totalidade irredutível à outra. Atenta às descontinuidades (temporais, mas sobretudo
espaciais), salienta a originalidade de tudo que devemos à sociedade à qual pertencemos. (LAPLANTINE, 1987, p. 121)

A segunda marca singularizadora apontada por Laplantine é quanto à forma de condução da


pesquisa, focada na observação direta dos atos e ações dos membros da sociedade estudada:
Ela [A teoria da Antropologia Cultural] conduz essa pesquisa a partir da observação direta dos comportamentos dos
indivíduos, tais como se elaboraram em interação com o grupo e o meio no qual nascem e crescem estes indivíduos.
Procurando compreender a natureza dos processos de aquisição e transmissão, pelo indivíduo, de uma cultura, sempre
singular (a forma como estão não apenas informa, mas modela o comportamento dos indivíduos, sem que estes o
percebam), encontra várias preocupações comuns aos psicólogos, psicanalistas e psiquiatras [...] (LAPLANTINE, 1987,
p.122)

Quanto a essa segunda característica, Laplantine sinaliza dois aspectos finais: a utilização de mo-
delos conceituais dessas disciplinas, bem como suas técnicas de investigação, e “a partir dos anos 1930”,
a colaboração pluridisciplinar da Antropologia com essas áreas do conhecimento, que formou a deno-
minada expressão “cultura e personalidade”.
E finalmente, para Laplantine, a terceira marca distintiva é que a Antropologia Cultural:
[...] estuda o social em sua evolução, e particularmente sob o ângulo dos processos de contato, difusão, interação e
aculturação, isto é, de adoção (ou imposição) das normas de uma cultura por outra (LAPLANTINE, 1987, p. 122).

A Escola da Antropologia Cultural teve uma intensa produção conceitual, entre o final dos anos
1920 e os anos 1950, com desdobramentos pontuais posteriores. Apesar das diversas obras e aborda-
gens, ela teve um núcleo denso que “não atribuiu à natureza o que diz respeito à cultura”; não considerou
como universal o que era relativo, como observou Laplantine (1987, p. 123).
Escola antropológica do Culturalismo Norte-Americano e seus desdobramentos | 115

Esse núcleo denso assegurou o eixo central da teoria: a compreensão da diversidade (multiplici-
dade e pluralidade) da cultura, tanto nos aspectos singulares dos traços comportamentais dos mem-
bros de um determinado grupo, quanto na totalidade da “personalidade cultural” do grupo.
A Antropologia Cultural parte do pressuposto de que a variação cultural pode ser encontrada em
cada um dos aspectos das atividades cotidianas dos indivíduos, tais como nas relações religiosas, nas
formas de hospitalidade, nas formas das etiquetas sociais, nos comportamentos sexuais da sociedade,
e nas formas de relações públicas.
O peso da cultura não se manifesta apenas nas formas diversificadas de comportamentos e atividades facilmente locali-
záveis de uma sociedade para outra (como a alimentação, o habitat, a maneira de se vestir, os jogos...), mas também nas
estruturas perceptivas, cognitivas e afetivas, constitutivas da própria personalidade [...] (LAPLANTINE, 1987, p. 125)

Nessa linha de abordagem caminham duas antropólogas norte-americanas que desempenharam


papéis fundamentais na Antropologia Cultural: Margareth Mead e Ruth Benedict. Ambas estudaram
os comportamentos desviantes de indivíduos em sociedades tradicionais. A primeira pesquisou duas
populações vizinhas da Nova Guiné (1969), consideradas opostas em seus comportamentos (ternos e
violentos); a segunda, os índios Pueblos do Novo México (1950).
Em seu estudo no Novo México, Ruth Benedict usa os conceitos sociedade “apoloniana1”, e socie-
dade “dionisíaca2”, para contrapor os índios do Novo México à exaltação e rivalidade permanente que os
habitantes da Ilha Dobu mantêm entre si.
Ruth Benedict elabora o conceito de “arco cultural”. Segundo ela, cada cultura valoriza um pedaço
desse arco e o utiliza conforme seu desejo.
[...] O que caracteriza uma determinada sociedade é uma “configuração cultural”, uma lógica que se encontra ao mesmo
tempo na especificidade das instituições e na dos comportamentos. Toda cultura persegue um objetivo, desconhecido
dos indivíduos. Cada um de nós possui em si todas as tendências, mas a cultura à qual pertencemos realiza uma seleção.
As instituições (e, em especial, as instituições educativas: famílias, escolas, ritos de iniciação) pretendem – inconsciente-
mente – fazer com que os indivíduos se conformem aos valores próprios de cada cultura. (LAPLANTINE, 1987, p. 127)

A Antropologia Cultural dará à disciplina novas formas de abordagens, novos objetos e sujeitos
de investigação antropológica, mas, acima de tudo, legará à Antropologia as noções irredutíveis da plu-
ralidade, diversidade e multiplicidade da cultura – nas formas com que homens e mulheres constroem
suas vidas materiais e imateriais –, sem os conceitos de superioridade racial ou cultural presentes nos
estágios anteriores das Ciências Sociais, em geral, e na Antropologia, em particular.

Ruth Fulton Benedict (1887-1948) –


Antropologia e os padrões culturais dos povos
A antropóloga norte-americana Ruth (Fulton) Benedict formou-se pela Universidade de Colum-
bia. Na instituição, ela foi aluna do formador de antropólogos Franz Boas, seu orientador e mestre nas
1 Relativo a Apolo, na mitologia grega filho de Zeus e considerado o Deus que transmitia aos homens os segredos da vida e da morte; também
cultuado como símbolo de beleza, pureza e perfeição. A organização apoloniana tem natureza harmoniosa, racional e planejada.
2 Relativo a Dionísio, na mitologia grega filho de Zeus com uma mortal. Considerado Deus da música e do vinho, impulsivo, excessivo,
transbordante e amável com aqueles que partilhavam a adoração ao êxtase, ao erotismo e às orgias, mas profundamente cruel trazendo
loucura e destruição para aqueles que o desprezavam.
116 | Teorias Antropológicas

pesquisas de campo. Benedict teve papel destacado na consolidação dos conceitos teóricos da Antro-
pologia Cultural.
Ruth Benedict obteve seu Ph.D.3 em 1923, sob orientação de Boas, com a tese The Concept of
the Guardian Spirit in North America. Nessa época, ela tornou-se docente da Universidade de Columbia
(1923-1931) e editou um importante periódico dessa linha de orientação da Antropologia: Journal of
American Folk-lore (1924-1939).
Na linha aberta por Boas, Ruth Benedict posiciona-se academicamente contra as noções racistas
da Antropologia anterior. Em seus estudos, ela indica a independência dos conceitos de raça, lingua-
gem e cultura. Dessa forma, dissocia-se do campo que argumentava ser a raça um dos pressupostos
do desenvolvimento cultural de um determinado povo. Benedict, assim como Boas, fecha a porta da
Antropologia para a noção de superioridade de uma raça em relação à outra. Sua concepção original
contribuiu para ampliar os horizontes da Antropologia como Ciência Social.
Em 1934, vem à luz uma das suas mais importantes obras: Padrões de Cultura (Patterns of Culture),
obra fundamental para o desenvolvimento e consolidação dos conceitos teóricos da Antropologia Cul-
tural.
No livro, Benedict defende o conceito de modelos culturais. Nele, a autora apresenta a cultura
como algo dinâmico, baseada na idéia de totalidade cultural. Para Ruth, há traços característicos nas
formas de produção cultural dos povos. Os indivíduos dessas formas de organização social devem se
adaptar a esses modelos culturais.
Ela destaca dois modelos de organização cultural dos povos: o padrão apolíneo (equilibrado, har-
monioso, ordenado, conformista, com tendência para a arte) e o padrão dionisíaco (violento, desorde-
nado, conflituoso, com tendência para a guerra).
Dividido em três partes, o livro apresenta conceitos novos para a Antropologia da época. No pri-
meiro capítulo, a autora apresenta o problema da pesquisa e dá ênfase aos aspectos centrais de seus
trabalhos, em especial às questões da diversidade das culturas e de suas integrações.
Para demonstrar a magnitude da diversidade cultural dos povos, Benedict cita um provérbio dos
índios Digger, narrado por um de seus informantes de campo: “No princípio, Deus deu um vaso a cada
povo, um vaso de barro, e por este vaso bebiam a sua vida. Todos enchiam o seu vaso mergulhando-o na
água. Mas os vasos eram diferentes. O nosso quebrou-se; desapareceu” (BENEDICIT, 1989, p. 34).
Para ela, os povos lançavam mão de aspectos culturais relevantes para a reprodução de suas vidas
materiais e imateriais. Não havia superioridade entre uma forma e outra de organização cultural, mas
aspectos importantes para determinados povos.
A diversidade das culturas resulta não apenas da facilidade com que as sociedades elaboram ou repudiam aspectos pos-
síveis da existência. É devida ainda mais a um complexo entretecimento de feições culturais. A forma final de qualquer
instituição tradicional vai, como dissemos, muito além do impulso humano original. Em grande parte esta forma final
depende do modo como esta feição se fundiu com outras de diferentes campos da experiência (BENEDICT, 1989, p. 49).

Para Benedict, as fusões das feições culturais consolidavam um “fenômeno universal”. Dessa for-
ma, imaginar uma cultura “pura”, no sentido de não estar tingida por outra experiência cultural é uma

3 Ph.D. é a expressão abreviada do inglês americano Doctor of Philosophy que significa Doutor em Filosofia. Até o século XIX, os títulos de
doutoramento só poderiam ser concedidos em Teologia, Direito ou Medicina. Em 1861, a University Friedrich Wilhelm, em Berlim, foi a primeira a
conceder o grau a estudos das ciências da humanidade, o que aconteceu também em 1900 nos Estados Unidos e depois em 1917 no Reino Unido.
É um avançado grau acadêmico exigido na carreira de professor universitário ou investigador científico. No Brasil equivale ao Doutorado.
Escola antropológica do Culturalismo Norte-Americano e seus desdobramentos | 117

impossibilidade, no arco cultural dos povos. O resultado desse processo é a integração das culturas, em
diversos espaços humanos.
Benedict aprofunda, na segunda parte do livro, em um espaço geográfico restrito, um estudo
comparativo de três povos:
4
Escolhi três civilizações primitivas para as descrever com certa pormenorização. Um pequeno número de culturas
tomadas como organizações coerentes de comportamento, e mais instrutivo do que muitas, afloradas apenas nos
seus pontos salientes. A relação de motivações e de propósitos com diferentes aspectos de comportamento cultural,
no nascimento, na morte, na puberdade e no casamento, nunca pode ser esclarecida por uma revista que abranja o
mundo. Devemos limitar-nos à tarefa menos ambiciosa da compreensão multilateral de algumas culturas. (BENEDICT,
1989, p. 70)

Na parte final do livro, Benedict enfatiza que sociedade e indivíduos não são antagônicos, mas
interdependentes.
Não há, propriamente, antagonismo entre o papel da sociedade e o papel do indivíduo. Uma das mais desnorteadoras
falsas concepções devidas a este dualismo próprio do século XIX, foi a idéia de que o que se tirava à sociedade dava-se
ao indivíduo, e o que se tirava ao indivíduo dava-se à sociedade. Filosofias da liberdade, credos políticos de laissez-
5
faire , revoluções que apearam dinastias, tudo isso se fundou nesse dualismo. O conflito em Teoria Antropológica entre
a importância do padrão de cultura e a do indivíduo é apenas um aspecto insignificante desta concepção fundamental
da natureza da sociedade. (BENEDICT, 1989, p. 276-277)

Benedict dirá que sociedade e indivíduos não são antagônicos, pois a cultura fornece a matéria-
prima de que os indivíduos fazem a sua vida, material e imaterial.
Em Padrões de Cultura, Benedict destaca que cada cultura tem suas formas próprias de conceber
seu ordenamento moral e ético. Esses ordenamentos só poderão ser compreendidos se forem estuda-
das as culturas desses povos como um todo, em seu conjunto e relações. Esses valores são importantes
para os povos que os detêm. Para a autora, a moralidade de um povo é relativa ao seu universo cultural.
Esses valores pertencem (Padrões Culturais) a sistemas coerentes e lógicos, com significados para esses
povos, por mais que destoem dos valores culturais dos ocidentais. Portanto, devem ser respeitados,
como parte do grande arco de cultura da humanidade, sem hierarquização entre as culturas dos dife-
rentes povos.
Ruth Benedict esteve entre os diversos intelectuais recrutados pelo governo dos Estados Unidos
da América na mobilização de esforços para a Segunda Grande Guerra Mundial. No fogo da batalha,
Benedict elabora o texto As raças da Humanidade (1945), com o objetivo de combater as noções de su-
perioridade racial impregnadas no discurso nazista. O texto é um libelo contra a intolerância racial. Nele,
Benedict fala da diversidade humana e dos encontros e misturas raciais produzidos pelo movimento da
humanidade, em diversas partes do mundo.
Outra obra que faz parte desse esforço da sociedade norte-americana para a mobilização da
guerra é o clássico O Crisântemo e a Espada, de 1946. O texto é um amplo estudo da sociedade e da
cultura do Japão.

4 Os povos estudados por Ruth Benedict na pesquisa citada são os povos do Novo México (Índios Pueblo, do Sudeste), os Dabu (Ilha Dobu da
costa sueste da Nova Guiné Oriental) e os da Costa do Noroeste da América (do Pacífico ao Estreito de Puget).
5 Laissez-faire é a contração da expressão em língua francesa “laissez faire, laissez aller, laissez passer”, que significa “deixai fazer, deixai ir,
deixai passar” . A expressão refere-se a uma ideologia econômica que surgiu no século XVIII, com o iluminista Barão Charles de Montesquieu
(1689-1755) que defendia a existência de mercado livre nas trocas comerciais internacionais. O comércio internacional isento de impostos
alfandegários traria maiores benefícios para as nações envolvidas do que a proteção da produção nacional, e por isso a utilização desse
conceito é polêmica, pois pode significar benefício para alguns e prejuízo para outros.
118 | Teorias Antropológicas

Ruth Benedict produz o que se denomina “Antropologia à distância”, exercitada no período an-
terior à etnografia, quando os antropólogos praticavam a “Antropologia de gabinete”. Ela radiografa a
cultura do Japão por intermédio da literatura, dos jornais, revistas, filmes, arquivos e entrevistas com
imigrantes japoneses. Nesse estudo à distância, a antropóloga pesquisa os padrões culturais dos povos
em conflito, para compreender suas fragilidades e vulnerabilidades.
Benedict compreendeu o papel fundamental do Imperador do Japão para a cultura popular e
para o imaginário social daquele país e orientou o presidente norte-americano Franklin D. Roosevelt6
a permitir a continuidade do governo imperial, no período pós-rendição militar. Para ela, essa perma-
nência daria coesão à sociedade e permitiria a reconstrução do país, com menos grau de resistência por
parte da sociedade japonesa.
Ruth Benedict manteve suas atividades acadêmicas, ao final da guerra, até a sua morte, em 1948.
A exemplo de seu mestre, Franz Boas, ela ajudou a formar uma das mais brilhantes gerações de antro-
pólogos do pós-guerra.

Margaret Mead (1901-1978) –


A Antropologia como vocação científica e política
A antropóloga norte-americana Margaret Mead formou-se em Antropologia no Barnard College
(Nova York). Desenvolveu sua pesquisa de pós-graduação na Universidade de Columbia. Seu primeiro
livro – Coming of Age in Samoa (1928) – é fruto de uma longa pesquisa de campo feita nessa pequena
ilha do sudoeste central do Oceano Pacífico. Na região, Mead estudou as influências biológicas e cultu-
rais no comportamento dos adolescentes da comunidade.
A partir desses primeiros estudos, os trabalhos de Mead passaram a ter forte influência na Escola
Culturalista e no universo da produção acadêmica. Seus trabalhos seguintes – Growing up in New Gui-
nea (1930) e Sex and Temperament (1935) – estudam o papel determinante da cultura na formação dos
valores – moral, ético e aspectos deontológicos – e na conduta social junto ao grupo.
Um dos seus trabalhos de campo de maior destaque foi o realizado com o antropólogo Gregory
Bateson – seu marido na época –, em Bali. Dessa pesquisa de campo resultaram mais de 38 mil foto-
grafias, consolidando uma metódica nova de capturação das informações antropológicas em campo: a
possibilidade de se fazer o registro fotográfico – Balinese Character: a photographic analysis (1941). Essa
experiência pioneira deitou profundas raízes no campo de estudos da Antropologia Visual.
Sua gama de interesse se estendeu para o estudo da sociedade norte-americana no pós-guerra.
Entre suas pesquisas estavam a educação, as formas de organização dos jovens, os comportamentos se-
xuais, as formas e normas das condutas sociais, os direitos das mulheres e a ecologia, novamente como
pioneira de um campo específico de estudo e atuação política.

6 Franklin Delano Roosevelt (1882-1945), foi presidente dos Estados Unidos da América (1933-1945), realizando quatro mandatos. Durante
seu governo enfrentou o período da Grande Depressão (a Crise de 1929, pior e mais longo período de recessão econômica do século XX) e foi
responsável pela entrada dos Estados Unidos na Segunda Guerra Mundial (1939). Recuperou os EUA após a Crise de 1929 criando melhores
condições de vida e trabalho aos norte-americanos e favorecendo a construção do país como grande potência.
Escola antropológica do Culturalismo Norte-Americano e seus desdobramentos | 119

Mead lecionou na Universidade de Columbia e atuou no American Museum of Natural History. Em


1979, um ano após a sua morte, ela foi homenageada com a horária Presidential medal to Freedom,
em razão dos seus estudos acadêmicos e de suas posições políticas, em defesa da liberdade e da luta
contra o racismo na sociedade norte-americana.
Marcantes no trabalho de Margaret Mead foram os seus esforços de colocar à disposição do lei-
tor comum suas reflexões e estudos no campo da Antropologia. Segundo suas palavras, seu objetivo
central era dar às pessoas ferramentas teóricas e conceituais que permitissem a elas compreender o mun-
do e as suas possibilidades de ações nesse mundo real. Para ela, a Antropologia deveria servir para
melhorar “a raça humana”. Mead advogava que as civilizações antigas tinham muito o que ensinar às
modernas, em relação aos seus valores e formas de relacionamento coletivo. Por isso, escreveu, refletiu
e militou em favor da liberdade sexual, dos direitos das mulheres e da igualdade racial.
Margaret Mead criticou os cientistas que se colocavam à margem das reflexões contemporâneas da
sociedade. Para ela, um dos problemas da ciência é que ela aponta para certos aspectos negativos da reali-
dade, de forma simplificada. Segundo Mead, muitos cientistas e docentes evitavam a reflexão profunda,
com respostas simples, curtas e grosseiras, para questões complexas, amplas e sofisticadas.
A antropóloga norte-americana advogava que a cultura é uma lente pela qual homens e mulhe-
res enxergam a realidade social. Há, segundo Mead, múltiplas possibilidades de observação do mundo,
dependendo da maneira como a pessoa foi ensinada para vê-lo, pensá-lo e experimentá-lo, e das suas
reais condições étnicas (cor da pele e condições raciais), regionais (local de nascimento), e climáticas.
Esses fatores mudam as perspectivas com as quais as pessoas vêem o mundo e interagem com ele.
Em seu livro Sexo e Temperamento7, Margaret Mead põe em prática muita de suas concepções
sobre o papel social da Antropologia. A obra tornou-se uma referência cultural, fora dos círculos aca-
dêmicos. Nela, Mead expõe os resultados de seu trabalho de campo na Nova Guiné, sobre as formas
de relacionamento sexual e os respectivos papéis desempenhados por homens e mulheres daquela
comunidade.
Segundo Mead, as culturas Arapesch e Mundugomor não estabeleciam padrões distintos nos as-
pectos sentimentais para homens e mulheres. Existe um tipo de personalidade e temperamento, apro-
vado por todos os membros da sociedade, o que permite, segundo Mead, afirmar que a cultura Arapesch
caracteriza-se como uma sociedade maternal, com comportamentos dóceis. Já entre os Mundugomor o
comportamento era agressivo e incentivado pelo grupo social, tanto por homens como por mulheres.
“Entre os Arapesh e os Mundugomor, os homens e as mulheres possuem idealmente a mesma personalidade social, ao
passo que entre os Tchammbuli suas personalidades se opõem e se completam.” (MEAD, 1969, p. 255)

Para Mead, é o meio social que modela a personalidade das pessoas, e não o código genético. Se-
gundo a antropóloga, se forem retirados alguns ornamentos culturais aos homens e mulheres, tem-se o
mesmo animal. Mead reafirma que é a sociedade a responsável por fazer crescer as mulheres como elas
são, e faz as mulheres atuarem como mulheres e os homens atuarem como homens.
Mead defende a existência de três tipos distintos de culturas: a pós-figurativa, a co-figurativa e a
pré-figurativa. Cada uma implica um tipo diferente de organização cultural dos homens e mulheres no
grupo.

7 Da comparação entre três culturas (Arapesh, Mundugomor e Tchammbuli) que compartilhavam de uma organização social semelhante,
Mead destaca que em duas delas (as duas primeiras mencionadas) a cultura não estabelece um padrão sentimental distinto para homens e
mulheres.
120 | Teorias Antropológicas

A primeira configura uma sociedade em que a criança aprende com os mais velhos. O acervo
cultural é tido como definitivo e não há questionamentos críticos. Na segunda, há o predomínio do
modelo de aprendizado junto com os seus próprios pares. Mead dá o exemplo dos filhos de imigrantes
que aprendem mais com os colegas do que com os pais. Na terceira, são os adultos que aprendem com
os jovens.
Margaret Mead indica que nas sociedades desenvolvidas e modernas co-existem as três formas
de organização da cultura. Mas há uma forte tendência da cultura pré-figurativa, em razão das mudan-
ças tecnológicas e da ciência, em que as gerações mais jovens têm maior domínio das informações
técnicas atualizadas, e tendem a ensinar mais sobre tais tecnologias do que aprender.
Margaret Mead teve papel destacado na Escola Culturalista pelas pesquisas realizadas e pelos
seus posicionamentos ante os problemas concretos do seu tempo, em relação ao comportamento
sexual, aos direitos das mulheres e a luta contra o preconceito racial. Ela exerceu a Antropologia como
vocação científica – compreensão dos complexos mecanismos sociais que configuram os compor-
tamentos do grupo – e como vocação política – a Antropologia como instrumento de mudanças na
realidade social do seu tempo.

Melville Jean Herskovitz (1895-1963) – a Antropologia


do endoculturalismo
O antropólogo norte-americano Melville Jean Herskovitz teve, em sua formação, forte influência
do antropólogo Franz Boas, durante seu período de estudo nas Universidades de Chicago (1920) e Co-
lumbia (1923). Herskovitz lecionou Antropologia desde 1927. O antropólogo desenvolveu pesquisas
etnográficas de campo no Suriname, Haiti, Trinidad e Tobago, Brasil e em diversos países africanos, onde
realizou suas mais importantes pesquisas.
Seu principal campo de pesquisa foi o universo cultural de raízes africanas: The American Negro:
A study in racial crossing (1928) – estudo antropológico cultural dos negros americanos, identificados
como um grupo cultural distinto; Daomé (1938); The Myth of the Negro Past (1941); Man and His Works
(1949; reeditada em 1955 como Antropologia Cultural); Franz Boas (1953 ); Dahomean Narrative: a cross
– cultural analysis (1958, com sua esposa, Frances S. Herskovitz); The Human Factor in Changing Africa
(1962), e suas pesquisas sobre Antropologia Econômica (Economic Anthropology: a study in comparative
economics, 1952).
Para Herskovitz, a cultura origina-se de fatores ligados ao homem, como o meio ambiente, a Psi-
cologia, a Sociologia, a Antropologia e a História. Esses fatores contribuem com a formação da cultura
em uma determinada sociedade.
A exemplo de outros membros dessa escola, Herskovitz defende que essa cultura deve ser apre-
endida, de modo estruturado e dinâmico, por seus integrantes. Dessa forma, há um acúmulo cultural de
saberes – saber, saber-fazer e ser – abertos aos aperfeiçoamentos contínuos, que são imprescindíveis
para a adaptação ao ambiente, mesmo quando não são perceptíveis.
Escola antropológica do Culturalismo Norte-Americano e seus desdobramentos | 121

O antropólogo norte-americano distribuía a cultura em quatro instâncias: a cultura material e


suas sanções; as instituições sociais; o homem e o universo; a estética e a linguagem. Nessas dimensões,
estariam enfeixadas todas as possibilidades de produção e reprodução cultural das vidas materiais e
imateriais dos homens em sociedade.
Para ele, uma cultura pode ser modificada de duas formas: contato com outro sistema cultural
ou por via da dinâmica cultural interna do grupo. Herskovitz identifica esse processo como aculturação,
sistematizado num documento denominado Memorando para o Estudo da Aculturação, produzido por
ele em 1936.
Nesse memorando, Herskovitz define aculturação como um conjunto de fenômenos, resultantes
do contato contínuo e direto entre grupos de culturas distintas. Esses contatos com o tempo provocam
mudanças nos modelos culturais (padrões culturais) de um ou dos dois grupos. Herskovitz advogava
que os sistemas culturais estão em mudanças contínuas, por intermédio de reelaborações, tensões in-
ternas ou acomodações, e não estáticos, paralisados e ossificados.
Dessas pesquisas de campo, Herskovitz tirou os elementos fundamentais da conceituação de re-
lativismo cultural. A teoria elaborada por Franz Boas na década de 1930 – portanto, ainda submersa no
caldo de cultura da superioridade racial e cultural – defende que nenhuma cultura pode ser considera-
da superior em relação à outra. Cada cultura deve ser entendida dentro do seu universo cultural, sem
comparação entre elas, pois cada uma responde ao contexto que a forjou.
Herskovitz emprega o conceito de endoculturação como sendo processo de aprendizagem e edu-
cação desde a infância. Para ele, esse processo estrutura o condicionamento da conduta, do comporta-
mento das relações, que dão estabilidade e constância à cultura de um determinado grupo humano.
Os elementos de um grupo social recebem os valores – crenças, comportamentos, modos de
vida, visão de mundo, aspectos cosmológicos, valores éticos – do grupo social ao qual estão ligados.
Essa transmissão de valores modela os comportamentos dos seus membros. A sociedade não tolera o
desvio desses comportamentos. Todos os atos, comportamentos, regras e valores do grupo são contro-
lados pela sociedade e pelas suas relações. Assim, Herskovitz analisava o papel da endoculturação em
um determinado grupo social.
Herskovitz também teve intenso destaque político. Em 1947, logo depois da Segunda Grande
Guerra, o antropólogo apresentou à Organização das Nações Unidas (ONU) uma recomendação para
que fossem respeitadas as culturas dos diferentes povos do mundo, sem o traço e ranço da suposta
superioridade cultural do Ocidente, em relação aos demais povos do planeta.
Para Herskovitz, ao aceitar a tarefa da Antropologia como instrumento para a busca do lugar ocu-
pado pelo homem no mundo, o relativismo cultural surge como um passo importante na direção dessa
vocação da disciplina e na consolidação do respeito à diferença e a pluralidade cultural dos povos.
Segundo o antropólogo norte-americano, os padrões culturais são como contornos adquiridos
pelos membros de uma cultura. Há, nesse universo cultural, coincidências de padrões individuais de
conduta, manifestos por esses membros da sociedade, que dão liga ao modo de produção e reprodu-
ção da vida da comunidade, com coerência, sentido de continuidade e de forma diferenciada. O padrão
cultural é um comportamento generalizado, com regras e condutas, aceitas ou rejeitadas, pelos mem-
bros de uma determinada forma de organização social.
122 | Teorias Antropológicas

Para Herskovitz, os padrões têm dois significados complementares:


::: forma – quando diz respeito às características dos elementos (casas cobertas de telhas e não
de madeiras ou palhas);
::: psicológico – quando se refere à conduta das pessoas (comer de garfo e faca e não com pau-
zinhos, à moda oriental).
O antropólogo norte-americano teve intensa troca de informações com o estudioso do negro
brasileiro Arthur Ramos8. Durante um longo período, os dois pesquisadores do universo negro desen-
volveram uma ativa troca de informações. O Brasil era encarado como um laboratório racial, com fortes
traços da miscigenação, distintos dos Estados Unidos e de outros países do mundo. Essa característica
deslocou para o país olhares de vários pesquisadores das ciências sociais. O interesse pelos estudos
culturalistas estreitou os laços de estudos desses pesquisadores, na década de 1930.
Herskovitz e Ramos trocaram as primeiras correspondências entre os anos 1935 e 1941. Em 1941,
os dois pesquisadores estiveram juntos na Northwestern University, quando Arthur Ramos acompanhou
durante dois meses o seminário sobre aculturação, apresentado por Herskovitz. Entre os anos 1941 e
1942, o antropólogo norte-americano desenvolveu pesquisa de campo no Brasil. Os dois pesquisadores
trocam correspondências até 1949, ano da morte do pensador brasileiro. Em muitos pontos, as obser-
vações desses estudiosos convergiam, em outros divergiam, mas mantiveram o prumo no campo da
pesquisa da antropologia cultural como linha de suas pesquisas.
Por essa via, a presença do pensamento de Herskovitz no universo intelectual brasileiro é ex-
pressiva e, assim como Boas no passado, influenciou parte do pensamento antropológico brasileiro em
relação aos estudos de caráter cultural.

Ralph Linton (1893-1953) – cultura e personalidade


Ralph Linton foi um dos mais importantes antropólogos norte-americanos no século XX. No
início da década de 1910, estudou na Swarthmore College. Na juventude, durante um acampamento,
apaixonou-se pela Arqueologia. Graduou-se em Educação e mais tarde obteve seu mestrado na Uni-
versidade da Pensilvânia. Desenvolveu estudos na Universidade de Columbia e depois ingressou na
Universidade de Harvard.
Entre os anos de 1925 e 1927, Linton realizou pesquisas em Madagascar, onde desenvolveu im-
portantes estudos etnográficos. Como resultado desses trabalhos de campo, Linton foi convidado a
suceder Boas na direção do Departamento de Antropologia da Universidade de Columbia, em 1937.
Depois da Segunda Grande Guerra, Linton foi para a Universidade de Yale. Nessa instituição, lecio-
nou de 1946 a 1953. Em Yale, Linton deu continuidade às suas produções sobre cultura e personalidade
até o final de sua vida.

8 Arthur Ramos de Araújo Pereira (1903-1949) foi um médico psiquiatra, psicólogo social e antropólogo brasileiro. Considerado um dos
maiores cientistas da humanidade, publicou em 1934 O Negro Brasileiro, assumiu a cátedra de Psicologia Social e foi consagrado o pai da
Antropologia Brasileira. Fundou a Sociedade Brasileira de Antropologia e Etnografia do Rio de Janeiro e, no fim dos anos 1940, assumiu a
direção do departamento de Ciências Sociais da Unesco em Paris, cargo que exerceu até sua morte.
Escola antropológica do Culturalismo Norte-Americano e seus desdobramentos | 123

Sua principal obra foi o estudo publicado em 1936: O Homem: uma introdução à antropologia.
Nele Linton apresenta suas idéias centrais sobre o homem e sua trajetória na linha do tempo e no espa-
ço, desde os seus primórdios.
Ralph Linton definiu cultura como herança social. Para ele, os fatos culturais são frutos das neces-
sidades humanas biológicas (alimentação, habitação, vestuário), sociais (organização social, organização
política, ensino) e psíquicas (crenças, valores estéticos, representações, pensamentos). Essa cultura mo-
dela o homem na sua experiência de construção material e imaterial da vida.
Logo no início do livro, Linton diz:
Muitos pormenores acerca da origem e desenvolvimento do homem são ainda desconhecidos; mas que nossa espécie
evoluiu a partir de alguma forma inferior de vida, já não é posta em dúvida por quem quer que esteja familiarizado com
os fatos [...] A não ser que a ciência toda esteja em erro, não somos anjos decaídos, mas animais aperfeiçoados. E é nesta
crença que o cientista baseia suas esperanças no futuro da nossa espécie. (LINTON, 1976, p. 23)

Dessa forma, Linton apresenta sua concepção de ser humano, sobre a qual deitará uma ampla
gama de reflexão, que atravessa os conceitos de raça, sociedade, família, casamento, tribo, estado, indi-
víduos, história, até aportar nos conceitos de cultura e personalidade.
Nesse par de conceitos, Linton apresenta sua concepção de homem e cultura em uma determi-
nada sociedade:
Há indubitavelmente uma relação íntima entre esta configuração da personalidade e a cultura da sociedade a que o
indivíduo pertence. Na medida em que constitui alguma coisa mais que uma abstração feita pelo investigador, a cul-
tura só existe no espírito dos indivíduos que compõem uma sociedade. Suas qualidades provêm das personalidades
desses indivíduos e da sua interação. Inversamente, a personalidade de cada um dos indivíduos existentes no interior
da sociedade desenvolveu-se e funciona em associação constante com sua cultura. As personalidades afetam a cultura
e a cultura afeta a personalidade. Da influência exercida no desenvolvimento da cultura por certas personalidades, já
tratamos de considerar as dinâmicas da mudança cultural. Neste capítulo nos limitaremos ao outro lado da questão,
isto é, à possível influência da cultura sobre a personalidade. (LINTON, 1976, p. 460-461)

No seu trabalho, Linton consolida a visão da importância do papel da cultura na formação dos
grupos sociais. Para ele, a cultura é um agregado de subculturas, uma forma singular de vida de um grupo
menor, dentro de uma relação social ampla. Essas subculturas têm níveis diferentes de conflitos pontu-
ais – com a cultura mais ampla e com outras subculturas –, no entanto, elas se mantêm coesas entre si.
Para Linton, essas subculturas não têm valor conotativo de superioridade e inferioridade entre si. Elas
são distintas devido ao nível de organização interna e da estrutura de seus elementos. Elas não estão,
segundo Linton, necessariamente ligadas a um espaço geográfico, em especial.
Para Linton, as culturas são formadas por regras e normas de comportamentos ou costumes (va-
lores e crenças). Ele classifica essas regras em três grupos distintos, de acordo com o nível de participa-
ção – obrigatória e facultativa – dos indivíduos: as universais – regras dirigidas a todos os membros da
comunidade; as especialidades – focadas em grupos menores de indivíduos; e as alternativas – faculta-
das a alguns dos indivíduos do grupo social.
124 | Teorias Antropológicas

Ruth Landes (1908-1991) –


narrativas etnográficas da experiência de campo
A antropóloga norte-americana Ruth Landes estudou na prestigiosa Universidade de Columbia,
em Nova York. A fim de desenvolver pesquisa de campo, rumou para o Brasil em 1938 para estudar as
relações raciais do país, como parte dos seus estudos de doutorado. O foco da sua pesquisa deu-se na
Bahia, onde trabalhou com Edson Carneiro e, em 1939, foi expulsa pela polícia política do Estado Novo9
pelo seu envolvimento com as religiões afro-descendentes10.
Publicou, em 1947, sua principal obra, A cidade das Mulheres, em que destaca o papel das mulhe-
res no candomblé brasileiro. Nesse período, a antropóloga manteve contato com as principais figuras
culturais do universo negro baiano, como a Iyalorixá Menininha do Gantois11 e o Babalawo Martiniano
do Bonfim12.
No prólogo do livro, Ruth Landes apresenta a métrica do seu trabalho de campo e sua filiação à
Antropologia Cultural, conduzida pelos principais articuladores dessa linha antropológica.
O material para este livro foi colhido durante uma pesquisa antropológica de campo na Bahia e no Rio de Janeiro, em
1938 e 1939, generosamente apoiada pelo Conselho de Pesquisas em Ciências Sociais da Universidade de Columbia
e dirigida pelo Departamento de Antropologia da Universidade. Muitas pessoas, de diversas maneiras, ajudaram, de
todo coração, com orientações, conselhos e críticas indispensáveis. Nos Estados Unidos a Dra. Ruth Benedict e o Dr.
Franz Boas, da Universidade de Colúmbia, já falecidos, deram-me simpatia e apoio seguros. Igualmente amáveis e
instrutivos foram [...] a Dra. Margaret Mead, do Museu Americano de História Natural [...]. No Brasil, [...] Édison Carneiro
[...] (LANDES, 2002, p. 33)

A partir daí, Landes passeia pelo multiverso cultural da religião afro-descendente – o destaque do
papel das mulheres nessa estrutura religiosa, as particularidades das formas de organização litúrgicas,

9 Estado Novo foi o período da história republicana brasileira em que Getulio Vargas deu um golpe de Estado e instaurou uma ditadura
(1937). Ele determinou o fechamento do Congresso Nacional e extinção dos partidos políticos, outorgou uma nova Constituição, que lhe
conferia o controle total do poder executivo e contava com a censura aos meios de comunicação realizada pelo Departamento de Imprensa e
Propaganda (DIP). O regime de governo do Estado Novo teve seu fim em 1945, quando o então presidente Getulio Vargas foi deposto.
10 As religiões afro-descendentes têm sua matriz identitária na cosmovisão africana. No Brasil, a partir do século XVI, com a chegada de africanos
escravizados das nações Nagô, Jeje e Bantu, para além das proibições e perseguições históricas, estruturaram-se formas de manifestações
religiosas, como o Candomblé Ketu e o Candomblé Angola, que preservam a ritualística e a visão de mundo das culturas de suas nações africanas
de origem.
11 Maria Escolástica da Conceição Nazareth (1894-1986), brasileira da cidade de São Salvador na Bahia. Iniciada no Candomblé Ketu e filha de
Oxum. Descendente de nigerianos e neta de D. Maria Júlia da Conceição Nazareth, fundadora do Ilê Iyá Omi Axé Iyamassê (1849) que recebeu
o popular nome de Terreiro do Gantois, pois as terras onde foi construído foram compradas de um francês conhecido como Senhor Gantois.
Mãe Menininha tinha 28 anos de idade quando assumiu a função de dirigente e a cadeira de Iyalorixá do Candomblé do Gantois, considerada
jovem, por sua idade cronológica, em relação às sacerdotisas de outros terreiros recebeu o apelido de Menininha. Foi uma das Iyalorixás mais
importantes da Bahia e do Brasil, reconhecida como referência religiosa, também pelo enfrentamento a perseguições policiais violentas que
reprimiam o culto aos Orixás e como defensora da história da cultura negra através da preservação dos primeiros terreiros de Candomblé em
Salvador o Engenho Velho e a Casa Branca.
12 Martiniano Eliseu do Bonfim (1859-1943), brasileiro de São Salvador da Bahia, foi filho de pais africanos que compraram suas alforrias
no Brasil. Também conhecido como Ojeladê, nome dado por seus pais ao nascer e que após sua morte integrou-se à hierarquia de alguns
terreiros de culto aos ancestrais na Ilha de Itaparica, foi enviado por seu pai para estudar a língua ioruba e as tradições africanas em Lagos, na
Nigéria (1875) onde viveu durante onze anos e recebeu o título de Babalawo (sacerdote no culto a Ifá). Voltando a Salvador, tornou-se um dos
líderes religiosos que exerceu grande influência na comunidade baiana e sempre manteve estreita ligação com destacados intelectuais. Por
seus conhecimentos, seu imenso prestígio e saber religioso. Martiniano foi um membro muito influente dos candomblés da Bahia, desde os
fins do século XIX. Babalawo e conselheiro – nas mais antigas e prestigiosas casas-de-santo, colaborou com Mãe Aninha na estruturação dos
Ministros de Xangô no Ilê Axé Opo Afonjá onde também recebeu o honroso título de Ajimudá. Participou da organização da União de Seitas
Afro-Brasileiras no segundo Congresso Afro-Brasileiro, realizado em Salvador, em janeiro de 1937.
Escola antropológica do Culturalismo Norte-Americano e seus desdobramentos | 125

o matriarcado e as relações de gênero, a forma de culto no Brasil e o impacto da escravidão no universo


feminino.
Ao chegar à Bahia, Landes não oculta o impacto que a cidade provocou em sua percepção e a
ruptura epistemológica provocada pela chegada do etnógrafo ao campo de pesquisa:
Era manhã cedo, num domingo quente, de céu claro, e a cidade de dois andares da Bahia – a Cidade do Salvador –
estendia-se branca e ofuscante acima das águas. Estivadores negros se aglomeravam nas docas, esperando o navio
atracar. Senti-me completamente suspensa no espaço, no tempo, nos pensamentos. Quão longe, quão longe estava
isto dos livros, da biblioteca e mesmo das salas de aula de Fisk! (LANDES, 2002, p. 45)

Nessa obra, Landes exercita a técnica da etnografia com maestria, com tudo que o pacote tem
direito – pesquisas de campo e diários de campo (registros antropológicos do pesquisador em campo;
espaço da memória social e da construção da subjetividade) –, para o registro da alteridade e pluralida-
de cultural.
O livro é escrito na contramão do que vigia nas Ciências Sociais da época, em especial no Brasil.
Landes contribui, no campo da disciplina, com a revitalização da construção narrativa da Antropologia,
com as digitais da pesquisa de campo, perspectiva do estudo comparativo, a sensibilidade para a ques-
tão da mulher e pelo papel do indivíduo na construção do conhecimento.
Em suma, parece que o favoritismo de fundo sexual dos senhores do Novo Mundo se combinou com os precedentes
culturais da África para elevar o status das mulheres escravas no Hemisfério Ocidental, em especial, nas sociedades de
origem católica-mediterrânica, atingindo o auge no Brasil, onde tanto brancos quanto negros mantiveram significa-
tivos contatos com a África Ocidental. A tendência se estabeleceu firmemente nas instituições e no pensamento do
povo, e assim continua. Contudo, a classe média emergente de colored por toda parte se bate conscientemente pelos
valores da sociedade dominante, embora certos eruditos acreditem que os celebrados valores populares das mulheres
negras do Brasil tenham funcionado insensivelmente para liberalizar a posição social das mulheres brancas brasileiras.
(LANDES, 2002, p. 352)

Na época da publicação, seu trabalho foi duramente criticado por Herskovitz e Arthur Ramos, por
considerá-lo um mero registro de viagem. Mas, para muitos, Landes foi criticada pelas suas opções em
registrar aspectos culturais ligados às mulheres, à sexualidade e às relações raciais.

Roger Bastide (1898-1974) –


interpenetrações das civilizações
O sociólogo francês Roger Bastide foi um dos professores convidados para ajudar na criação da
Universidade de São Paulo (USP), em 1938. Bastide foi o responsável pela cátedra de Sociologia da re-
cém instituição, onde formaram-se importantes intelectuais brasileiros, entre eles Florestan Fernandes,
Antonio Candido, Gilda de Mello e Souza, Maria Isaura P. de Queiroz, Fernando Henrique Cardoso e
Otávio Ianni. No Brasil, o sociólogo francês estudou as religiões afro-descendentes como o candomblé
baiano. Muitas de suas obras importantes versam sobre o universo negro e a presença africana na cons-
trução da civilização brasileira, foco das pesquisas antropológicas do período.
Bastide estuda o sincretismo e a herança africana, nas artes e religião. Suas primeiras investidas
docentes deram-se no campo da estética sociológica e da pesquisa sobre a arte brasileira. Ele estuda
126 | Teorias Antropológicas

o barroco – a obra de Aleijadinho13 – e a poesia afro-brasileira. Em 1945, publica Imagens do Nordeste


Místico em Branco e Preto, sobre sua primeira viagem pelo Brasil.
Na década de 1960, Bastide publica uma obra focada diretamente nas religiões afro-descenden-
tes: Religiões Africanas no Brasil, em que exercita os pressupostos teóricos da Sociologia da religião.
O sociólogo apresenta dois conceitos importantes para a leitura da presença africana na miscige-
nada cultura brasileira: o “princípio de corte” e as “interpenetrações de civilizações”, para a compreensão
da heterogeneidade cultural do país. Segundo Bastide, que substitui paulatinamente o termo sincretis-
mo por interpenetração, as religiões afro-descendentes mantinham os pés em dois mundos: o africano
e o europeu, em razão do princípio de corte, que assegurava a preservação de suas características ori-
ginais.
Sobre esses conceitos, Bastide disse, na introdução de O Candomblé da Bahia:
Não negamos o interesse de todos esses estudos (as pesquisas anteriores, como a de Melville Jean Herskovitz). Nossa
14
tese principal foi consagrada ao problema das transformações, das interpenetrações e das metamorfoses resultantes
do contato entre civilizações. Mas, mesmo que os traços de “culturas” africanas tenham sofrido modificações, na verda-
de, o candomblé deixa de constituir um sistema harmonioso e coerente de representações coletivas e de gestos rituais
[...]. (BASTIDE, 2001, p. 24)

Segundo Bastide, para os estudos das sobrevivências africanas na civilização brasileira, não basta-
va fazer o trabalho etnográfico de descrição dos ritos ou citar nomes das divindades. Era necessário, sem
o obstáculo da tendência de reinterpretar os dados segundo a mentalidade ocidental, compreender a
“epistemologia afro-americana”, ou o sistema de construção do conhecimento do mundo, característico
dessa civilização.
Com o objetivo de compreender a magnitude da epistemologia africana no Brasil, Bastide teve
uma intensa produção bibliográfica, tendo o negro como o foco de seus trabalhos: Psicanálise do Cafuné
(1941); Imagens do Nordeste Místico em Branco e Preto (1945); O Candomblé da Bahia (1958); Sociologia do
Folclore Brasileiro (1959); As Religiões Africanas no Brasil (1971); Estudos Afro-brasileiros (1973) e As Améri-
cas Negras (1974).

Fernando Fernándes Ortiz (1881-1969) –


transculturação
Fernando Ortiz foi um pioneiro dos estudos das civilizações africanas em Cuba. Ortiz estudou o
arco da produção cultural afro-cubana, em suas múltiplas dimensões, da culinária, passando pelos ins-
trumentos musicais – tambores – até os ritos religiosos africanos.

13 Antônio Francisco Lisboa (1730-1814), escultor, brasileiro de Minas Gerais. Filho de mãe africana escravizada e pai português que o alforriou
ao nascer e lhe ensinou arquitetura e a arte de esculpir. Aleijadinho é considerado o maior expoente do estilo barroco mineiro e das artes
plásticas no Brasil colonial. Em 1777 começou a desenvolver uma doença degenerativa dos membros que comprometeu os movimentos das
mãos e por isso ficou conhecido como Aleijadinho.
14 A tese principal do autor, defendida na Universidade de Paris para obter o grau de Doctorat d’État, foi consagrada ao estudo das
interpenetrações de civilizações e a segunda tese, “a pequena tese”, e esta ora introduzida, sobre o candomblé baiano de rito nagô. (N.T.)
(BASTIDE, 2001, p. 23).
Escola antropológica do Culturalismo Norte-Americano e seus desdobramentos | 127

Fernando Ortiz, filho de pai espanhol e mãe cubana nasceu em Havana, em 1881. Cresceu entre
Cuba e Espanha, onde se graduou e doutorou-se em Direito.
Ortiz manteve contato direto com os conceitos produzidos na fornalha da Antropologia Cultural.
Trocou correspondência com Herskovitz sobre a natureza dos encontros culturais na Ilha Caribenha.
Nesse exercício conceitual, cunhou a expressão transculturalismo como um fenômeno social im-
portante para a compreensão da heterogeneidade cultural cubana.
Segundo Ortiz, o neologismo “transculturação” era para substituir, na terminologia sociológica,
o conceito de “aculturação”, compreendido por ele como o trânsito de uma cultura para outra e suas
implicações sociais.
Transculturação expressa os variados fenômenos que se originaram em Cuba, por meio de com-
plexos processos de transmutações de culturas, que atravessavam todas as manifestações culturais do
país: econômica, política, social, jurídica, religiosa, ética, artística, psicológica, sexual, entre outros as-
pectos da vida cubana.
Segundo Ortiz, a história de Cuba era a história de intricados momentos de transculturação, do
índio, desaparecido sob o impacto da cultura espanhola; dos imigrantes brancos espanhóis, sob o im-
pacto da miscigenação da nova cultura do Novo Mundo; dos negros africanos, sob o impacto do novo
ecossistema cultural.
Entendemos que o vocabulário transculturação expressa melhor as diferentes fases do processo de transição de uma
cultura para outra, porque esse não se consiste somente em adquirir uma cultura distinta, que é o que a rigor indica o
termo anglo-saxônico aculturação; o processo implica também necessariamente a perda, o desenraizamento de uma
cultura anterior, o que se poderia dizer uma desculturação parcial, além da criação de novos fenômenos culturais que
podem ser denominados de neo-culturação [...] (ORTIZ, 1993, p. 148)

Segundo Ortiz, a orquestração desse processo chama-se transculturação. Para explicar o concei-
to, Ortiz formula uma metáfora culinária: o ajiáco (guisado com tempero de pimentão), cozido cubano,
no qual vários pedaços são cozidos, com a dissolução de alguns e a permanência de outros. A cultura
transcultural cubana – de trocas culturais entre os diversos povos – é um cozido com todos os elemen-
tos em processo de mudança e transformação, misturando-se em um caldo sintético.
A metáfora expressa a realidade de culturas multiculturais, onde predomina o encontro de várias
matrizes civilizatórias, em processo permanente de troca de elementos culturais, com ressemantizações
e reinvenções permanentes.

Considerações finais
A Teoria da Antropologia Cultural expandiu o repertório conceitual das Ciências Sociais e as pos-
sibilidades de leitura e compreensão dos hábitos e modos humanos.
Seguindo o caminho aberto por Franz Boas – que ajuda a sepultar a visão racista predominante
na Antropologia da primeira metade do século XX –, a Antropologia Culturalista teve seu epicentro nos
círculos intelectuais norte-americanos.
A construção do conceito de Padrões Culturais e da forma com que os povos lançam mão de
elementos culturais desse arco de possibilidades e os adaptam aos seus ecossistemas e necessidades
128 | Teorias Antropológicas

põem por terra o conceito de superioridade cultural entre os povos, base da justificativa colonial e da
segregação.
O mergulho no universo cultural dos povos – propiciado pela etnografia e trabalho de campo –
desdobrou-se em narrativas de compreensão da relatividade dos aspectos culturais e na necessidade
de decifrar, sem o peso mental dos conceitos e preconceitos do Ocidente, a epistemologia dos povos e
suas estruturas cognitivas, cosmovisões de formas de encarar o mundo.
O continente africano e o continente americano tiveram um papel de destaque no período de
articulação do discurso culturalista. Os dois espaços geográficos enfeixavam uma ampla gama de com-
plexos culturais, infra-estrutura da heterogeneidade cultural de seus povos.
Novos conceitos foram necessários para dar conta da forma singular dos encontros civilizatórios
realizados e das suas implicações culturais, na organização da sociedade, nas relações entre os indivídu-
os e nas formas de produção e reprodução de suas condições de vida.
Um dos grandes méritos da Escola da Antropologia Cultural foi a consolidação da visão de que
todas as culturas, independentemente de suas cores, de suas localizações geográficas, de suas carac-
terísticas específicas, fazem parte do grande arco cultural da família humana, onde cada povo bebe a
mesma água do vaso, segundo o tamanho de sua sede.

Texto complementar
O cidadão norte-americano
(LINTON, 1976, p. 106-107)
O cidadão norte-americano desperta num leito construído segundo padrão originário do
Oriente Próximo, mas modificado na Europa Setentrional, antes de ser transmitido à América. Sai
debaixo de cobertas feitas de algodão, cuja planta se tornou doméstica na Índia; ou de linho ou de lã
de carneiro, um e outro domesticados no Oriente Próximo; ou de seda, cujo emprego foi descoberto
na China. Todos esses materiais foram fiados e tecidos por processos inventados no Oriente Próxi-
mo. Ao levantar da cama faz uso dos “mocassins” que foram inventados pelos índios das florestas do
Leste dos Estados Unidos e entra no quarto de banho cujos aparelhos são uma mistura de invenções
européias e norte-americanas, umas e outras recentes. Tira o pijama, que é vestiário inventado na
Índia e lava-se com sabão que foi inventado pelos antigos gauleses, faz a barba que é um rito maso-
quístico que parece provir dos sumerianos ou do antigo Egito.
Voltando ao quarto, o cidadão toma as roupas que estão sobre uma cadeira do tipo europeu
meridional e veste-se. As peças de seu vestuário têm a forma das vestes de pele originais dos nôma-
des das estepes asiáticas; seus sapatos são feitos de peles curtidas por um processo inventado no
antigo Egito e cortadas segundo um padrão proveniente das civilizações clássicas do Mediterrâneo;
a tira de pano de cores vivas que amarra ao pescoço é sobrevivência dos xales usados aos ombros
Escola antropológica do Culturalismo Norte-Americano e seus desdobramentos | 129

pelos croatas do séc. XVII. Antes de ir tomar o seu breakfast, ele olha a rua através da vidraça feita
de vidro inventado no Egito; e, se estiver chovendo, calça galochas de borracha descoberta pelos
índios da América Central e toma um guarda-chuva inventado no sudoeste da Ásia. Seu chapéu é
feito de feltro, material inventado nas estepes asiáticas.
De caminho para o breakfast, pára para comprar um jornal, pagando-o com moedas, invenção
da Líbia antiga. No restaurante, toda uma série de elementos tomados de empréstimo o espera. O
prato é feito de uma espécie de cerâmica inventada na China. A faca é de aço, liga feita pela primeira
vez na Índia do Sul; o garfo é inventado na Itália medieval; a colher vem de um original romano.
Começa o seu breakfast, com uma laranja vinda do Mediterrâneo Oriental, melão da Pérsia, ou tal-
vez uma fatia de melancia africana. Toma café, planta abssínia, com nata e açúcar. A domesticação
do gado bovino e a idéia de aproveitar o seu leite são originárias do Oriente Próximo, ao passo que
o açúcar foi feito pela primeira vez na Índia. Depois das frutas e do café vêm waffles, os quais são
bolinhos fabricados segundo uma técnica escandinava, empregando como matéria-prima o trigo,
que se tornou planta doméstica na Ásia Menor. Rega-se com xarope de maple inventado pelos ín-
dios das florestas do leste dos Estados Unidos. Como prato adicional talvez coma o ovo de alguma
espécie de ave domesticada na Indochina ou delgadas fatias de carne de um animal domesticado
na Ásia Oriental, salgada e defumada por um processo desenvolvido no norte da Europa.
Acabando de comer, nosso amigo se recosta para fumar, hábito implantado pelos índios ame-
ricanos e que consome uma planta originária do Brasil; fuma cachimbo, que procede dos índios da
Virgínia, ou cigarro, proveniente do México. Se for fumante valente, pode ser que fume mesmo um
charuto, transmitido à América do Norte pelas Antilhas, por intermédio da Espanha. Enquanto fuma,
lê notícias do dia, impressas em caracteres inventados pelos antigos semitas, em material inventado
na China e por um processo inventado na Alemanha. Ao inteirar-se das narrativas dos problemas
estrangeiros, se for bom cidadão conservador, agradecerá a uma divindade hebraica, numa língua
indo-européia, o fato de ser cem por cento americano.

Atividades
1. A Escola Antropológica Cultural formulou o conceito de “Padrões de Cultura” rompendo com as
justificativas de superioridade cultural encontradas em outras escolas. Comente.
130 | Teorias Antropológicas

2. Qual a influência de Franz Boas nos estudos antropológicos culturalistas?


Escola antropológica do Culturalismo Norte-Americano e seus desdobramentos | 131

3. Segundo Margaret Mead, como se forma a personalidade social de homens e mulheres em uma
sociedade?

4. Por que o Brasil se tornou um dos campos de trabalho nos estudos antropológicos culturalistas?
132 | Teorias Antropológicas
A escola antropológica do
Estruturalismo francês
Odeio as viagens e os exploradores. E eis que me preparo para contar minhas expedições. Mas quanto tempo para
me decidir! Quinze anos passaram desde que deixei o Brasil pela última vez, e, durante todos esses anos, muitas vezes
planejei iniciar este livro; toda vez, uma espécie de vergonha e de repulsa me impediram. E então? Há que narrar minu-
ciosamente tantos pormenores insípidos, acontecimentos insignificantes? Não há lugar para a aventura na profissão de
etnógrafo; ela é somente a sua servidão, pesa sobre o trabalho eficaz com o peso das semanas ou dos meses perdidos
no caminho; das horas improdutivas enquanto o informante se esquiva; da fome, do cansaço, às vezes da doença; e,
sempre dessas mil tarefas penosas que corroem os dias em vão e reduzem a vida perigosa no coração da floresta virgem
a uma imitação do serviço militar...Que sejam necessários tantos esforços e desgastes inúteis para alcançar o objeto de
nossos estudos não confere nenhum valor ao que se deveria mais considerar como o aspecto negativo de nosso ofício.
As verdades que vamos procurar tão longe só têm valor se desvencilhadas dessa ganga. Decerto, podem-se dedicar
seis meses de viagem, de privações e de fastidiosa lassidão à coleta (que levará alguns dias, por vezes algumas horas)
de um mito inédito, de uma regra de casamento nova, de uma lista completa de nomes clânicos, mas essa escória da
memória – “Às cinco e meia da manhã, entrávamos na Baía de Recife, enquanto pipiavam as gaivotas e uma flotilha de
vendedores de frutas exóticas espremia-se ao longo do casco” –, uma recordação tão pobre merece que eu erga a pena
para fixá-la? (LÉVI-STRAUSS, 1996, p. 15)

Nos anos 1940, o antropólogo francês Claude Lévi-Strauss deu início a uma linha de abordagem
na disciplina que passou a ser conhecida como Estruturalismo. Lévi-Strauss buscava os princípios de
organização da mente humana (pares de oposição e códigos binários), com os objetivos de definir a
anatomia das regras estruturantes das culturas na mente humana, de articular uma teoria das relações
de parentesco, de estudar a lógica do mito, as classificações primitivas e as distinções entre natureza e
cultura.
O antropólogo francês – aluno de Marcel Mauss – percorreu esse caminho com a produção de
obras que se tornaram referências nos estudos das Teorias Antropológicas: As Estruturas Elementares do
Parentesco (1949); Tristes Trópicos (1955); Antropologia Estrutural (1958); Pensamento Selvagem (1962); O
Cru e Cozido (1964); O Homem Nu (1971); Antropologia Estrutural II (1973).
Lévi-Strauss influenciou uma linha de pesquisa e de pesquisadores que se estendeu por vários
campos do conhecimento das ciências humanas, em diversas partes do mundo: Jacques Lacan, Michel
Foucault, Jacques Derrida, Louis Althusser, Edward Sapir.
134 | Teorias Antropológicas

O termo estruturalismo teve origem no conceito de estrutura. No plano racional, estrutura é o pla-
no de uma forma de relação entre as partes. No campo filosófico, diz-se que duas relações têm a mesma
estrutura quando o mesmo plano vale para ambas, como uma carta geográfica – mapa – quando tem
analogia com a região que representa. Estrutura é sinônimo de forma e de sistema, como conjunto de
relações.
O conceito passou para os estudos da Lingüística, para a Estética e para vários outros campos de
pesquisas. O termo tem significado genérico de sistema.
Na Antropologia, o termo pode ser definido como um sistema de elementos em que uma modifi-
cação qualquer implica modificação em todos os outros elementos. Como modelo conceitual, estrutura
deve dar conta dos fatos observados e permitir prever os desdobramentos do conjunto, em caso de
modificação de um dos elementos de sua estrutura.
A estrutura é um plano hierarquicamente organizado e ordenado. Ela tende a preservar o próprio
sistema, ou plano. Suas conexões dinâmicas se aproximam do conceito de organismo, como tem sido
empregado na Biologia. No sentido lato, estrutura é um conjunto de elementos em relação, com uma
ordem hierárquica, com o objetivo de garantir suas funções e conservação. Segundo a definição do Di-
cionário de Filosofia (ABBAGNANO, 1982), a estrutura de um edifício é a correlação das suas partes que
asseguram a estabilidade do edifício e permitem o uso a que se destina.
Em uma organização qualquer, a estrutura é o plano das atividades ou dos órgãos que mantém em pé a própria organi-
1
zação e lhe permite realizar os seus objetivos. Ela não é semelhante a uma máquina pré-cibernética ou a um organis-
mo no sentido pré-evolucionista, mas é um plano articulado de elementos que, dentro de certos limites, são suscetíveis
de variações mais ou menos autônomas. Neste segundo sentido, o termo tem um valor conceitual específico e não se
reduz aos seus sinônimos. (ABBAGNANO, 1982, p. 358)

Assim, o Estruturalismo é todo método ou processo de pesquisa que, em qualquer campo, faça
uso do conceito de estrutura nos sentidos mencionados.
No plano metodológico, o estruturalismo estuda sistemas em grande escala e examina as re-
lações e funções dos elementos que constituem esses sistemas. Eles variam das línguas humanas às
práticas culturais, contos folclóricos e textos literários.
O termo nasce na Psicologia2 e na Lingüística e foi estendido por Lévi-Strauss para a Antropologia
e por outros pesquisadores para outros campos das Ciências Humanas.
Ele toma corpo no Cours de Linguistique Générale ministrado por Ferdinand de Saussure3, na

1 Cibernética (do grego Kubernêtes, que significa piloto) foi primeiro utilizada pelo filósofo grego Platão (428-348 a.C.) para qualificar a arte de
dirigir os homens. Ainda com o sentido de “controle”, o matemático americano Norbert Wiener (1894-1964) apresenta cientificamente em 1948,
na publicação Cibernética ou Regulação e Comunicação no Animal e na Máquina, a cibernética como modelo de estudo de controle e comunicação
em sistemas mecânicos, elétricos ou biológicos. Wiener prestou serviços ao governo americano durante a II Guerra Mundial (1939-1945) no
desenvolvimento dos sistemas de direção de mira automática em máquinas de guerra. Ele percebeu que os computadores deveriam ter habilidades
semelhantes às do ser humano no controle de suas atividades, sendo o homem necessário apenas para estabelecer esse nível de controle. Na
modernidade, os computadores, mesmo mais sofisticados, ainda possuem os mesmos princípios de controle e transmissão de informações.
2 Uma das primeiras fontes foi a Escola Psicológica de Wilhelm Wund (1832-1920). Wund procurou determinar as estruturas da mente na
tentativa de compreender os fenômenos mentais, pela decomposição dos estados conscientes, produzidos pelos estímulos ambientais, o
introspeccionismo (olhar de dentro).
3 Ferdinand de Saussure (1857-1913) foi um lingüista suíço, fundador da moderna lingüística científica com seus estudos sobre a estrutura
da linguagem. Estudou Física e Química na Universidade alemã de Leipzig, onde cursou também Gramática Grega e Latina. Decidiu-se pelos
estudos da linguagem e ingressou na Sociedade Lingüística de Paris onde, em 1879, publicou seus estudos sobre o sistema das vogais nas
línguas indo-européias. Suas conferências apresentaram novos conceitos sobre a Lingüística, que defendia como a ciência geral dos signos,
dos sistemas de significação, inaugurando o termo Semiologia. Ensinou Lingüística Histórica na École Pratique des Hautes Études em Paris (1881-
1913). Na Universidade de Genebra ministrou o Cours de Linguistique Générale (1907-1913), textos que foram publicados em 1916. Suas teorias
basearam o desenvolvimento do estruturalismo do século XX.
A escola antropológica do Estruturalismo francês | 135

Universidade de Genebra (1907-1913). Para Saussure, era possível abordar qualquer língua como um
sistema, em que cada elemento só poderia ser definido pelas relações de semelhanças ou oposição que
mantém com os demais elementos.
Saussure estava interessado na infra-estrutura da língua, aquilo que é comum a todos os falantes
e que funciona no nível do inconsciente. Sua pesquisa concentrou-se nas estruturas mais profundas da
língua, mais do que nos fenômenos superficiais.
Na sua exigência mais geral, o Estruturalismo tende não só a interpretar em termos de sistema um campo específico
de pesquisa como também a mostrar como os diversos sistemas específicos, verificados em diversos campos (por ex.,
na Antropologia, na Economia e na Lingüística), se correspondem ou têm entre si características análogas. Lévi-Strauss,
por ex., julga possível que uma mesma estrutura possa ser encontrada em três níveis da sociedade: no sentido de que
as regras do parentesco e do matrimônio servem para assegurar a comunicação das mulheres entre os grupos, como
as regras econômicas servem para assegurar a comunicação dos bens e dos serviços e as regras lingüísticas à comuni-
cação das mensagens. (ABBAGNANO, 1982, p. 358)

Para Lévi-Strauss, o Estruturalismo era uma forma de “ciência da comunicação”, que revela a na-
tureza das relações não explicitadas. Segundo o antropólogo francês, toda a cultura é uma modalidade
particular de comunicação, regida por leis inconscientes de inclusão e exclusão. Nos estudos dos mitos,
Lévi-Strauss fala da imagem de uma partitura musical não escrita e sem autor, que expressa o incons-
ciente da sociedade. Assim, o sentido do que diz o homem deve ser buscado no que ele encobre, no que
ele esconde, e não no que ele diz ou no que suas palavras expressam.
Essa abordagem original de Lévi-Strauss provoca uma série de rupturas radicais no campo da
Antropologia, segundo François Laplantine. Essas rupturas se dão em quatro pontos centrais:
::: Ruptura com o Humanismo e a Filosofia – com a ideologia do sujeito considerado fonte de
significações:
[...] o Estruturalismo afirma a prioridade do sistema em relação ao homem; das estruturas sociais em relação às esco-
lhas individuais, da língua em relação ao falante singular e, em geral, da organização econômica ou política em re-
lação às atitudes individuais. Com o que, não aceita necessariamente o determinismo do indivíduo, mas apresenta
a exigência de encontrar no sistema em que o indivíduo está inserido, os limites e as condições dentro das quais
pode mover-se para renovar ou transformar o próprio sistema. (ABBAGNANO, p. 358)

::: Ruptura em relação ao pensamento histórico – com a forma de historicismo – evolucionis-


ta, com a adoção de um método de analisar o objeto de estudo em si, relacionando-o apenas
com o que era pertinente a ele, quase que imóvel no tempo, sincrônico, contrapondo-o ao
estudo histórico do mesmo, diacrônico, onde a mudança está sempre presente:
[...] Contra o historicismo, que é substancialmente uma consideração longitudinal da realidade, isto é, uma inter-
pretação desta em termos de devir, desenvolvimento e progresso, afirma o primado de uma concepção transver-
sal (cross-section), isto é, de uma concepção que considera a própria realidade como um sistema relativamente
constante e uniforme de relações. O sistema não é, por certo, julgado estático ou imóvel pelo Estruturalismo,
4 5
porque se admite uma consideração diacrônica , além da sincrônica , do próprio sistema; mas subordina-se a
consideração diacrônica à sincrônica, considerando as mudanças temporais como transformações nas relações
constitutivas de um sistema ou como oscilações dessas transformações em torno do limite constituído pelo pró-
prio sistema. (ABBAGNANO, 1982, p. 358)

4 Diacrônica – a lingüística diacrônica, encontrada no Curso de Lingüística Geral de Ferdinand de Saussure, compreende o estudo histórico das
línguas considerando a substituição sucessiva dos termos – signos – ao longo do tempo.
5 Sincrônica – a visão sincrônica, destacada nos estudos lingüísticos de Ferdinand de Saussure, estabelece o sistema de funcionamento
da linguagem em um determinado tempo. É um estudo descritivo da lingüística – das relações dos termos, signos, coexistentes – sem a
perspectiva histórica.
136 | Teorias Antropológicas

::: Ruptura com o Atomismo – consideração dos elementos independentes da totalidade.


::: Ruptura com o Empirismo – o objeto científico deve ser arrancado da experiência da impres-
são, da percepção espontânea (LAPLANTINE, 1987, p. 134-135).
[...] O estruturalismo afirma a objetividade de todo sistema de relações o qual, mesmo se concebido como um mo-
delo conceitual, isto é, como uma construção científica, não é reduzido a um ato ou uma função subjetiva, mas tem
como função fundamental a de explicar o maior número de fatos constatados. (ABBAGNANO, 1982, p. 358)

A partir de Lévi-Strauss, encontram-se quatro procedimentos básicos do estruturalismo: primeiro,


a análise estrutural examina as infra-estruturas inconscientes dos fenômenos culturais; segundo, os ele-
mentos da infra-estrutura são considerados como relacionados e não como entidades independentes;
terceiro, procura-se entender a coerência do sistema; e quarto, propõe-se a contabilidade geral das leis
para os testes padrões subjacentes no sentido da organização dos fenômenos.
O antropólogo francês Claude Lévi-Strauss não ignora a diversidade e multiplicidade das culturas
e muito menos a história. Mas, para ele, para se compreender as sociedades e seus movimentos era ne-
cessário sair do universo mental do Ocidente, “não se situar ao nível da consciência que o Ocidente tem
de história”, segundo Laplantine: “Essa consciência histórica do ‘progresso’ não carrega consigo nenhu-
ma verdade, é um mito que convém estudar como outros mitos, isto é, estendendo no espaço aquilo
que o historiador percebe como escalonado no tempo” (LAPLANTINE, 1987, p. 138).

Claude Lévi-Strauss (1908) – o Estruturalismo


Filho de um artista e membro de uma família judia de intelectuais franceses, o antropólogo Clau-
de Lévi-Strauss é considerado o pai da Antropologia Estruturalista, tornando-se quase um sinônimo
dela. Ele nasceu em Bruxelas (Bélgica), e iniciou seus estudos de Direito e Filosofia na Universidade de
Sorbonne (Paris). Formou-se em Filosofia. Na França, o antropólogo fez parte da administração do Mu-
sée de l’Homme, e na École Pratique des Hautes Études ocupou a cadeira da quinta seção, “Religião Com-
parada de Povos Não-Letrados”, que no passado pertenceu ao seu mestre, Marcel Mauss, denominada na
época “Ciências Religiosas”.
No Brasil, Claude Lévi-Strauss lecionou Sociologia na Universidade de São Paulo (USP), entre 1935
e 1939. Nesse período, o antropólogo fez diversas expedições pelo país. Como resultado dessas expe-
dições, Lévi-Strauss publica, em 1955, Tristes Trópicos, em que narra o nascimento de sua vocação de
antropólogo.
Nos anos seguintes, Lévi-Strauss – exilado nos Estados Unidos no período da Segunda Grande
Guerra (1939-1945), lecionou em instituições norte-americanas até a década de 1950.
Para Lévi-Strauss, a mente dos povos primitivos é igual à dos povos civilizados. O antropólogo
sempre rejeitou a concepção histórica ocidental como a única válida e com sentido lógico. Seu foco de
estudo foram os índios brasileiros, sul-americanos e norte-americanos.
O objetivo do antropólogo francês era comprovar a tese de que a estrutura dos mitos era idêntica
em qualquer fase da Terra, e assim provar que a estrutura mental da humanidade é a mesma, indepen-
dente da raça, clima ou religião.
A escola antropológica do Estruturalismo francês | 137

Para ele, o indivíduo passa do estado natural para o da cultura enquanto usa a linguagem, apren-
de a cozinhar, produz artefatos e objetos. Nessa transição do estado natural ao cultural, o homem obe-
dece a leis que ele não criou, mas que pertencem a um mecanismo do cérebro.
Lévi-Strauss conceituou duas formas de organização da sociedade: as frias (as que se encontram
“fora da história”, orientando pelo modo mítico de pensar, sendo que o mito é definido como “máquina
de supressão do tempo”), e as quentes (movem-se dentro da história, com ênfase no progresso, estando
em constante processo de transformação tecnológica).
Em 1959, Lévi-Strauss foi nomeado para a cadeira de Antropologia Social do Collège de France,
onde atuou até se aposentar, em 1982. Pelo seu trabalho e pelo reconhecimento internacional, Clau-
de Lévi-Strauss recebeu o título de doutor honoris causa6 em diversas instituições de Ensino Superior:
Bruxelas, Oxford, Chicago, Stirling, Upsala, Montréal, México, Québec, Zaïre, Visva Bharati, Yale, Harvard,
Johns Hopkins e Columbia, entre outras. Em 2005, aos 97 anos, Claude Lévis-Strauss recebeu o 17.º Prê-
mio Internacional Catalunha, na Espanha.

As estruturas elementares do parentesco –


a proibição do incesto: a exogamia
O livro As Estruturas Elementares do Parentesco é considerado como um dos maiores clássicos da
Antropologia do século XX. Logo que veio à luz, o texto mereceu uma resenha famosa feita pela não me-
nos famosa Simone de Beauvoir7, em 1949 e publicada na revista francesa Les Temps Modernes. Simone
pega os leitores pelas mãos e os conduz na aventura intelectual de desvendar esse texto, tido como um
marco da Antropologia Moderna.
Na obra, Lévi-Strauss tem como tela de fundo a concepção de que as instituições humanas têm
significados, são dotadas de significados. Segundo Simone:
[Lévis-Strauss]; ele conjura os espectros da metafísica, mas não aceita, por outro lado, que este mundo seja apenas con-
tingência, desordem, absurdo; seu segredo será tentar pensar o dado sem a intervenção de um pensamento que seja
estrangeiro a este: no coração da realidade ele descobrirá o espírito que a habita. Assim ele nos reconstitui a imagem
de um universo que não tem a necessidade de refletir o céu para ser um universo humano. Não me pertence à tarefa
de criticar – e sim a de apreciar – esta obra especializada: mas não é somente aos especialistas que ela se dirige. Que o
leitor que abra o volume por acaso não se deixe intimidar pela misteriosa complexidade dos diagramas e gráficos; na
verdade, quando o autor discute minuciosamente o sistema matrimonial dos Murngin ou dos Katchin, é o mistério da
sociedade como um todo, o mistério do homem, que ele se esforça por descobrir. (BEAUVOIR, 1949)

6 Doutor Honoris Causa (termo em latim que significa “para honra”). É um título acadêmico outorgado para distinguir e homenagear
personalidades de atuação relevante e de significativa contribuição em prol das Artes, das Ciências, da Filosofia, das Letras ou do melhor
entendimento entre os povos. O doutoramento pode ser atribuído a personalidades em vida, como o presidente Luiz Inácio Lula da Silva
agraciado com o título em 30 de outubro de 2002, mas também postumamente como foi para o cineasta baiano Glauber Pedro de Andrade
Rocha (1939-1981), diretor, entre outros, do filme brasileiro Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964) considerado um marco do Cinema Novo.
Glauber Rocha foi honrado Post-Mortem no dia 26 de setembro de 1994. As duas titulações foram outorgadas pela Universidade Federal da
Bahia (UFBA).
7 Simone Lucie-Ernestine-Marie Bertrand de Beauvoir (1908-1986) foi escritora, filósofa existencialista e feminista francesa. Reconhecida pelo
impacto causado por suas obras que revelaram sua visão de mundo e trajetória de vida. Recebeu o Prêmio Goncourt por sua obra prima Os
Mandarins (1954), e publicou ensaios críticos como O segundo sexo (1949), uma análise do papel da mulher na sociedade; “A velhice” (1970)
sobre o processo de envelhecimento e a sociedade, e “A cerimônia do adeus” (1981) onde apaixonadamente escreveu inspirada em seu ex-
companheiro Jean-Paul Sartre (1905-1980), filósofo francês com quem fundou o periódico Les Temps Modernes em 1945.
138 | Teorias Antropológicas

Nessa obra, Lévi-Strauss, segundo Simone, dedica-se ao problema que mobiliza intelectualmente
sociólogos e etnólogos: a proibição do incesto8. Tanto a importância do incesto quanto a sua obscurida-
de colocam-no em uma posição única entre os fatos humanos.
Simone destaca a existência de duas categorias de fatos: os fatos da natureza e os fatos da cultura.
Mesmo sem os mecanismos que possam pontuar a passagem de um para outro, os fatos da natureza
são universais, e os fatos da cultura obedecem a normas e regras determinadas pelo grupo social.
Para Simone, no universo intelectual de Lévi-Strauss, o incesto escapa a esse enquadramento. Ele,
como fato, tem as duas vertentes:
A proibição do incesto é o único fenômeno que escapa dessa classificação: pois ela aparece em todas as sociedades,
sem exceção, e ao mesmo tempo é uma regra. As diferentes interpretações tentadas até então se esforçaram todas para
mascarar essa ambigüidade. Alguns pensadores evocaram os dois aspectos – natural e cultural – da lei; mas eles apenas
estabeleceram entre eles uma relação intrínseca; supuseram que um interesse biológico teria engendrado a interdição
social; outros viram na exogamia um fato puramente natural: ela seria ditada por um instinto; outros enfim, dentre os
quais Durkheim, consideraram-na exclusivamente um fenômeno cultural. (BEAUVOIR, 1949)

Esses três tipos de explicação têm conduzido a impossibilidades e contradições, segundo Simone.
Se a proibição do incesto desperta um interesse tão grande é, para a intelectual francesa, porque essa
proibição representa o momento de passagem da natureza para a cultura. Esse momento é quando a
natureza ultrapassa a si mesma.
Essa singularidade decorre do caráter particular da sexualidade mesma: é normal que a dobradiça entre natureza e
cultura se encontre no terreno da vida sexual, pois esta, extraída da biologia, coloca imediatamente outrem em jogo;
no fenômeno da aliança se desenvolve essa dualidade: pois enquanto o parentesco é dado, a natureza impõe a aliança,
mas não a determina. Podemos extrair daqui a maneira pela qual o homem, assumindo sua condição natural, define
sua humanidade. Pela proibição do incesto se expressam e se realizam as estruturas fundamentais sobre as quais se
funda a sociedade humana como tal. (BEAUVOIR, 1949)

Nessa linha de raciocínio, Simone argumenta que, na pegada de Lévi-Strauss, a exogamia9 se ma-
nifesta como norma, pois não haveria sociedade sem o reconhecimento de uma regra. A distribuição
de valores morais e éticos entre os membros de um grupo humano é um fenômeno cultural, mas, de
acordo com Simone, a mulher é um produto escasso e essencial à vida do grupo. Assim, a exogamia
estabelece um sistema de regras e normas sociais – trocas e reciprocidades – nas relações entre homens
e mulheres num determinado grupo social.
Ainda nessa direção, Simone aponta que em muitas civilizações primitivas o solteiro é econômica
e socialmente um pária10. Nesse caso, a sociedade desenvolve mecanismos que estabeleçam a proibição
do monopólio de mulheres. Esse é o sentido da proibição do incesto. Dessa forma, o controle das rela-
ções sociais entre homens e mulheres é feito pelo grupo e não em caráter privado.

8 Incesto é a relação sexual ou marital entre parentes próximos, geralmente pais e filhos, irmãos ou meio-irmãos, ou entre tios e sobrinhos.
Considerado um tabu em quase todas as culturas humanas, o incesto é legalmente proibido na maior parte dos países e um “pecado” em algumas
religiões do mundo. Em Biologia, a procriação entre parentes próximos reduz a variabilidade genética, comprometendo a descendência que
pode herdar duas cópias de um gene defeituoso. Na perspectiva antropológica, o incesto representa uma reflexão desafiante. Já definido
como inerente às culturas humanas e também como a passagem de um estado não-cultural a um estado cultural por incentivar alianças entre
grupos sociais distintos.
9 A exogamia é caracterizada pelo casamento entre membros de grupos familiares distintos, sem laços consangüíneos. Com a função de fortalecer
as redes de parentesco e a produção e reprodução necessária à sobrevivência dos grupos, a exogamia apresenta um valor social de troca.
10 Os Párias são os indivíduos que constituem a mais baixa casta do sistema hindu. Considerados “intocáveis”, impuros, são repudiados pelos
membros das demais castas e privados de direitos religiosos ou sociais. Os Párias descendem dos nativos comuns, formam a população mais
pobre e exercem atividades desvalorizadas na sociedade indiana. Apesar do sistema de castas não ser mais reconhecido por lei desde 1946,
continua vigorando socialmente.
A escola antropológica do Estruturalismo francês | 139

A proibição do incesto tem como resultado a definição de uma organização, um sentido positivo
no grupo. Ele estabelece as simetrias e reciprocidade das renúncias no seio familiar, pois haverá a mes-
ma reciprocidade por parte do outro.
[...] pois para renunciar a seus parentes, é necessário que o indivíduo seja assegurado de que a renúncia simétrica de
um outro lhe conceda aliados; ou seja, a regra é a afirmação de uma reciprocidade; a reciprocidade é a maneira ime-
diata de integrar a oposição entre mim e outrem: sem uma tal integração, a sociedade não existiria. Porém, tal relação
não existiria se permanecesse abstrata; sua tradução concreta é a troca: a transferência de valores de um indivíduo a
11
outro os transforma em parceiros; somente sob essa condição pode se estabelecer um mitsein [ser-com] humano.
(BEAUVOIR, 1949)

A regra faz o indivíduo descobrir a reciprocidade. Ela dá, segundo Simone, a chave do mistério da
exogamia. Proibir a mulher para os membros de uma família é colocá-la à disposição de outro homem,
em outra família. Para Simone, a parenta que se rejeita coloca-se à disposição do grupo, estabelecendo
um vasto sistema de comunicação no interior desse grupo.
Simone destaca os aspectos assimétricos das relações entre homens e mulheres num determi-
nado grupo. Para ela, as relações de reciprocidade não se expressam nas relações entre homens e mu-
lheres. Elas se estabelecem por meio das mulheres, pois a assimetria marca as relações entre ambos,
qualquer que seja o sistema de descendência – os filhos pertencem ao grupo do pai ou ao da mãe –; as
mulheres, segundo Simone, pertencem ao homem.
Todos os sistemas matrimoniais implicam que as mulheres sejam concedidas por certos homens
a outros homens, mesmo nos sistemas dualistas em que a convergência entre casamento e troca se
explica pela identidade de seu caráter funcional.
Não é o sistema dualista que faz nascer a reciprocidade: ele antes a exprime de uma forma concreta. É esta mesma pers-
pectiva que permitirá explicar as formas de sociedade mais complexas: elas não são o resultado de acasos históricos e
geográficos; todas elas manifestam uma mesma e profunda intenção: a de impedir o grupo de se fechar em si mesmo
e de mantê-lo diante de outros grupos com os quais a troca seja possível. (BEAUVOIR, 1949)

Simone aponta o esforço de Lévi-Strauss para confirmar essas idéias com uma minuciosa análise
de realidades sociais dadas. Para ela, esse estudo forma a parte mais importante dessa obra. A forma
de casamento é um ponto central dos estudos de proibições matrimoniais – entre primos cruzados
(filhos de um irmão e de uma irmã) e primos paralelos (filhos de dois irmãos ou duas irmãs). Segundo a
intelectual francesa, o estudo de Lévi-Strauss torna patente que não é a natureza quem dita suas leis à
sociedade. Para ela, ao compreender a origem dessa assimetria (natureza versus cultura), compreende-
se também a proibição do incesto.
Para Simone, a obra de Lévi-Strauss confirma a idéia de que a exogamia objetiva assegurar a circu-
lação das mulheres e suas filhas, num determinado grupo social. Seu valor é positivo. Não há um perigo
biológico no casamento consangüíneo, mas um benefício social. A proibição do incesto é a instauração
da cultura no seio da natureza.
Certamente não é porque algum perigo biológico se ligue ao casamento consangüíneo, mas porque do casamento
exógamo resulta um benefício social [...] A lei da exogamia refere-se a valores – às mulheres, valores por excelência [...]
sem as quais a vida não é possível [...] A proibição do incesto é menos uma regra que proíbe casar-se com a mãe, a irmã
ou a filha do que uma regra que obriga a dar a outrem a mãe, a irmã ou a filha; é a regra do dom por excelência. (LÉVI-
STRAUSS, 1982, p. 521-522)

11 Mitsein, expressão em alemão que se traduz “ser-com”. Foi o termo utilizado pelo filósofo existencialista alemão Martin Heidegger (1889-
1976), que em suas reflexões sobre o problema do sentido do “ser” e descobrir o seu porquê definiu como mitsein (ser-com) o “ser-com-os-
outros” – o ser social. Heidegger defendeu que todo ser é sempre “ser-com”, mesmo na solidão, pois a relação com o outro é fundamental na
constituição do ser para a sua relação de “ser-no-mundo” (dasein).
140 | Teorias Antropológicas

No final de sua resenha histórica, Simone arremata com o seguinte convite:


[...] ser homem é se escolher como homem, definindo suas possibilidades sobre a base de uma relação recíproca com
o outro; a presença do outro nada tem de acidental: a exogamia, bem longe de se limitar a registrá-la, ao contrário, a
constitui; através dela se expressa e se realiza a transcendência do homem; ela é a recusa da imanência, a exigência de
ultrapassá-la; aquilo que os regimes matrimoniais asseguram ao homem, pela comunicação e pela troca, é um horizon-
te em direção ao qual ele possa se projetar; sob sua aparência barroca, eles lhe asseguram um além-humano. Mas seria
trair um livro tão imparcial pretender fechá-lo dentro de um sistema de interpretação: sua fecundidade está precisa-
mente em convidar cada um a repensá-lo a sua maneira. É por isso também que nenhuma resenha lhe faria justiça; uma
obra que nos apresenta os fatos, que instaura um método, e que sugere especulações, merece que cada um renove a
descoberta: é preciso lê-la. (BEAUVOIR, 1949)

Pensamento Selvagem –
sistemas lógicos e sofisticados de organização social
Na obra Pensamento Selvagem, Claude Lévi-Strauss criou um método original ao associar a análise
estrutural com a psicanálise, para desvendar os mitos e o que eles ocultam dos sistemas cognitivos dos
povos primitivos. Para tanto, o antropólogo francês teve que se despir do antigo preconceito que cer-
cava o pensamento antropológico acerca dos chamados povos selvagens e primitivos. Para o campo da
disciplina antropológica, Levis-Strauss deu novo contorno aos velhos conceitos consagrados no estudo
etnográfico, tais como raça, cultura, progresso.
Esses povos eram considerados destituídos de cultura, colocados à margem da história e do pro-
gresso da humanidade. Seus sistemas de representação eram considerados formas atrasadas e arcaicas
de pensamento, sem estado, religião e sistema judicial. Ao abordar de um ângulo novo essa temática,
Lévi-Strauss consolida a visão do relativismo cultural, pressuposto da Antropologia moderna.
O estudo sistemático da organização social e familiar dos chamados povos primitivos apontou o
grau de sofisticação de muitas dessas estruturas em relação às ocidentais.
Lévi-Strauss – com base em sua formação filosófica e etnográfica – abandona o conceito do bom
selvagem construído nas narrativas antropológicas do passado. Na sua abordagem original, sua obser-
vação será marcada pela minúcia científica e apaixonada, sem perder sua objetividade científica metó-
dica.
Nessa obra original, Lévi-Strauss mostra-se contrário ao conceito de mentalidade primitiva, pré-
lógica, que pautou o sistema classificatório dos universos culturais dos povos. O autor mostra o profun-
do conhecimento dos povos nativos em relação ao seu ambiente. Na obra, ele conclui que o interesse e
o desejo de conhecer a natureza, sua realidade circundante, pelos nativos, seria guiado pela necessida-
de de encontrar recursos úteis a sua sobrevivência: para decidir se determinada espécie natural é útil,
faz-se necessário conhecê-la.
Para Lévi-Strauss, a mente humana opera, em todos os lugares, de acordo com princípios comuns.
Por essa razão, o conhecimento do mundo é parte da experiência humana. Cada grupo humano experi-
menta essa relação de forma diferente, singular – espaço geográfico –, mas os mecanismos lógicos que
operam em cada grupo e dão sentido às suas existências são os mesmos.
A matéria-prima que permite a produção dos mitos é a metáfora. Lévi-Strauss parte do pressu-
posto de que as histórias que os mitos contam são construções, signos retirados de outros sistemas de
significação. Como as palavras da própria língua, no contexto particular do mito, os elementos verificá-
A escola antropológica do Estruturalismo francês | 141

veis adquirem novos sentidos: rios, montanhas, animais, plantas, céu, cheiros, parto, morte, sexo, troca,
filhos, comportamentos, generosidade, reciprocidade.
12
Essa fórmula, que poderia servir de definição para o bricolage , explica que, para a reflexão mítica, a totalidade dos
meios disponíveis deve estar também implicitamente inventariada ou concebida, para que se possa definir um resul-
tado que sempre será um compromisso entre a estrutura do conjunto e a do projeto. Uma vez realizado, isto estará
portanto inevitavelmente deslocado em relação à intenção inicial (aliás, simples esquema), efeito que os surrealistas
denominam como felicidade “acaso objetivo”. Há mais, porém: a poesia do bricolage lhe advém também e, sobretudo,
do fato de que não se limita a cumprir ou executar, ele na “fala” apenas com as coisas, como já demonstramos, mas
também através das coisas: narrando, através das escolhas que faz entre possíveis limitados, o caráter e a vida de seu
autor. Sem jamais completar seu projeto, o bricoleur sempre coloca nele alguma coisa de si [...] Também sob este ponto
de vista, a reflexão mítica aparece como uma forma intelectual de bricolage. [...] (LÉVI-STRAUSS, 1989, p. 36-37)

Lévi-Strauss comparou o pensamento selvagem do produtor de mito ao do inventor criativo de


máquinas e utensílios. Ambos juntam elementos provenientes de objetos diferentes e, de forma criativa
e imaginativa, rearranjam-nos e dão origem a um novo produto. Cada pedaço mantém sua aparência
original, mas ganham um novo sentido, como num caleidoscópio, que a cada movimento provoca um
novo rearranjo, com um novo resultado e um novo significado.
Essa lógica trabalha um pouco à maneira do caleidoscópio, instrumento que também contém sobras e pedaços por
meios dos quais se realizam arranjos estruturais. Os fragmentos são obtidos num processo de quebra e destruição, em
si contingente, mas sob a condição de que seus produtos ofereçam entre si certas homologias: de tamanho, de vivaci-
dade de cor, de transparência. Eles não têm mais um ser próprio em relação aos objetos manufaturados que falavam
uma “linguagem” da qual se tornaram os restos indefiníveis; mas sob um outro aspecto, devem tê-lo suficientemente
para participar de maneira útil da formação de um ser de tipo novo: este consiste em arranjos nos quais, por um jogo
de espelhos, os reflexos equivalem a objetos, vale dizer, nos quais signos assumem o lugar de coisas significadas; esses
arranjos atualizam possibilidades cujo número, mesmo bastante elevado, não é todavia ilimitado, pois que é função de
disposições e equilíbrios realizáveis entre corpos cujo número é por sua vez finito; enfim e sobretudo, esses arranjos
engendrados pelo encontro de fatos contingentes (o giro do instrumento pelo observador) e de uma lei (a que preside
a construção do caleidoscópio, que corresponde ao elemento invariante dos limites de que falávamos há pouco) proje-
tam modelos de inteligibilidade de algum modo provisórios, pois que cada arranjo se exprime sob a forma de relações
rigorosas entres as suas partes e essas relações têm como conteúdo apenas o próprio arranjo, ao qual, na experiência
do observador, não corresponde nenhum objeto (se bem que seja possível que, por esse viés, determinadas estruturas
objetivas sejam reveladas antes de seu suporte empírico, ao observador que jamais as tenha visto antes, como por
exemplo certos tipos de radiolárias e diatoméias). (LÉVI-STRAUSS, 1989, p. 52-53)

Segundo Lévi-Strauss, ao estudar os mitos de nativos das Américas, o pensamento do produtor


de mitos opera com a “lógica do caleidoscópio”. Os produtores de mitos criam textos e histórias novas,
a partir de elementos existentes em outros sistemas de significação, rearranjando-os e recriando-os de
forma nova, com novo sentido.
Os mitos reproduzem experiências humanas do conhecimento do mundo. Nos mitos, essas expe-
riências, segundo Lévi-Strauss, querem dizer mais e com sentidos diferentes dos registrados no cotidia-
no desses povos. A linguagem mítica desses povos é simbólica. Nela estão contidas as dobras lógicas
do pensamento selvagem. São construções tão lógicas quanto às demais construções elaboradas pela
lógica do homem.

12 Para melhor acompanhar o autor em suas considerações sobre o pensamento mítico, mantivemos nesta tradução os termos bricoler,
bricoleur e bricolage que, no seu sentido atual, exemplificam com grande felicidade, o modus operandi da reflexão mitopoética. O bricoleur é
o que executa um trabalho usando meios e expedientes que denunciam a ausência de um plano preconcebido e se afastam dos processos
e normas adotados pela técnica. Caracteriza-o especialmente o fato de operar com materiais fragmentários já elaborados, ao contrário, por
exemplo, do engenheiro que, para dar execução ao seu trabalho, necessita da matéria-prima (nota de Almir de Oliveira Aguiar e M. Celeste da
Costa e Souza, tradutores da 1.ª edição pela Ed. Nacional – 1989, p. 32).
142 | Teorias Antropológicas

Lógicas baseadas em “oposições binárias” que permitem ao homem classificar, relacionar e dar
sentido a todas as coisas e à sua existência. É essa lógica compartilhada pelos seres humanos permite a
troca de sentidos entre as diversas culturas – sociedades frias e quentes – e propicia a comunicação.
Seria necessário esperar até a metade deste século [20] para que caminhos separados por tanto tempo se cruzassem:
o que dá acesso ao mundo físico pela via da comunicação e aquele do qual há pouco se sabe que, pela via da física, dá
acesso ao mundo da comunicação. O processo total do conhecimento humano assume assim o caráter de um sistema
fechado. Portanto é ainda permanecer fiel à inspiração do pensamento selvagem reconhecer que o espírito científico
em sua forma mais moderna contribuiu para legitimar seus princípios e restabelecê-lo em seus direitos, por um encon-
tro que somente aquele soube prever. (LÉVI-STRAUSS, 1989, p. 298)

Considerações finais
Claude Lévi-Strauss é uma figura estrelar no seio da Antropologia. Suas contribuições ampliaram
o horizonte teórico e conceitual da disciplina e espraiaram pelas ciências humanas seus conceitos e
teorias.
Sua presença no Brasil – como docente e como pesquisador – provocou fortes impactos nas Ci-
ências Sociais do país e formou um time de primeira linha, que contribuiu com a consolidação de seus
métodos de estudo e análise, como o trabalho do antropólogo Roberto da Matta, mestre e doutor em
Filosofia (Ph.D.), em Harvard, autor de Ensaios de Antropologia Estrutural, de 1973, que disse a respeito
dessa influência:
O primeiro traço de união que encontro nestes ensaios é o método estrutural, tal como esse instrumento de trabalho foi
aplicado à Antropologia Social por Claude Lévi-Strauss. Pois foi a partir do teste de suas idéias, especialmente aquelas
relativas às interpretações dos grupos tribais de língua Jê do Brasil Central, que iniciei minha própria compreensão do
13
“método estrutural”, aplicando-o crítica e constantemente ao meu trabalho de pesquisa junto aos índios Jê-Timbira
do Norte de Goiás, do Pará e do Maranhão, dentre os quais tenho estudado sistematicamente os Gaviões e os Apinayé
(cf. MATTA, 1967, 1970, 1970a, 1971, 1971a e 1971b). (MATTA, 1973, p.12)

A pesquisa de campo de Claude Lévi-Strauss perseguiu a forma de organização da mente hu-


mana e as regras estruturantes da cultura. Seus estudos sobre as relações de parentesco, o sistema de
classificação das sociedades primitivas e a lógica do mito desvendaram elementos fundamentais para a
compreensão da forma de organização da vida material e imaterial dos povos.
A distinção entre natureza e cultura, cerne de seu estudo sobre a estrutura do parentesco, reve-
lam as relações não explícitas numa dada sociedade, o papel central da mulher na estrutura de uma
dada sociedade e a função sistêmica do incesto como forma reguladora das relações sociais e do siste-
ma de alianças e trocas entre os grupos humanos. Para Lévi-Strauss, o Estruturalismo é um sistema de
comunicação.
Suas teorias de sociedades “frias” e “quentes” e sobre os conceitos de sincronia e diacronia são
ainda utilizadas como metódicas de estudos e análises, em diversas áreas das ciências humanas.
Lévi-Strauss consolida a idéia que passa a ser um mantra nas teorias antropológicas, a partir da
década de 1920: a igualdade entre a estrutura mental dos povos primitivos e a dos povos civilizados; a
igualdade no seio da grande família humana.

13 Timbiras: um dos ramos dos grupos tribais de língua Jê do Brasil Central, representados pelos Krahó, Krikati, Gaviões, Apinayé e Canela.
A escola antropológica do Estruturalismo francês | 143

Texto complementar
Resenha sobre Saudades do Brasil
(ACHUTTI, 2007)
Grata surpresa para antropólogos, fotógrafos e aficionados de ambas as áreas, um livro de
fotografias do mestre Claude Lévi-Strauss. E com este nome: Saudades do Brasil. Seria coisa da Com-
panhia das Letras? Aprendi, num artigo de Roberto Da Matta, que nós brasileiros temos o privilégio
de poder sentir saudades até da própria saudade. Senti saudade de minha saudade pela Elis Regina
(faz 13 anos que ela viajou sem volta). Coloquei seu último disco na vitrola (não o tenho em CD) e
organizei-me entre ouvir o Saudades do Brasil, da Elis, que há muito não ouvia, e folhear o recente
Saudades do Brasil do Lévi-Strauss. Pulo a introdução do livro, e começo a viajar pelas populações
indígenas brasileiras do ano de 1935 ouvindo a introdução instrumental de César Camargo Maria-
no, quando vem o primeiro texto, no disco: “Mais um dia vai chegar/ Que o mundo vai saber/ Não
se vive sem se dar/ Quem trabalha é que tem/ Direito de viver/ Pois a terra é de ninguém”. É de
arrepiar. Voltando para o início do livro, constata-se que Lévi-Strauss inspirou-se no nome de uma
peça para piano, composta por Darius Milhaud, em 1921, compositor francês que atuara na em-
baixada francesa num Rio de Janeiro em seu período áureo. Para compor esse livro de 228 páginas
estampadas com 176 belas fotos em preto-e-branco, o autor, com o auxílio de sua mulher, refez
a viagem do então jovem etnólogo através de 3 mil fotografias obtidas na sua maioria com uma
câmara Leica. As fotos estão editadas na seqüência que parte da cidade de São Paulo passando por
Pirapora, Pico do Itatiaia, Paraná, Santa Catarina, tribos kadiwéu, bororo, nambikwara, mundé, tupi-
kawahib, terminando com a série que o autor denomina “O Retorno”. Os negativos, de um modo
geral apresentam-se bem conservados e por isso puderam resultar em boas ampliações feitas por
Matthieu Lévi-Strauss, a quem o Claude Lévi-Strauss dá a co-autoria do livro. Apesar de sua afeição
passageira pela fotografia (o autor confessa que depois desse período brasileiro deixou de lado
a técnica fotográfica), influenciado por seu pai como ele definiu: um “artista-pintor e, sobretudo
retratista, que tinha o hábito de fotografar seus modelos para controlar a posição dos traços princi-
pais”, Lévi-Strauss revela ter domínio técnico e uma boa noção de composição e equilíbrio. É bem
verdade que não se pode saber se todas as fotografias apresentadas estão com seu recorte original
ou foram retrabalhadas na ampliação. Algumas que apresentam uma acentuada granulação em
relação às demais poderiam sugerir isso.
Para os conhecedores de uma das principais obras de Lévi-Strauss, Tristes Trópicos, escrita 15
anos depois de ter retornado a Paris, Saudades do Brasil constitui-se num belo volume de ilustração
chegado 40 anos depois do principal. Em Tristes Trópicos o autor afirmava que “a evocação de recor-
dações com 20 anos de idade é semelhante a uma contemplação de uma fotografia amarelecida.
Quando muito pode ter um interesse documental. “Suas fotografias não amareleceram, porém com
86 anos de idade, ao evocar suas recordações o autor revela um tom saudoso e confessamente
cético. Na introdução de Saudades do Brasil não reconhecemos os questionamentos do papel do
antropólogo, que vai ao Terceiro Mundo cumprir uma espécie de ritual de passagem, não encon-
tramos a discussão sobre o caráter das cidades européias em relação às americanas, também não
encontramos os relatos das dificuldades e das peripécias de um estudioso europeu que ganha as
144 | Teorias Antropológicas

matas de um país continental e que, no desespero para não se perder, agarra uma mula pelo rabo.
Enfim não encontramos a vitalidade do antropólogo que revela seu processo, seus questionamentos
e suas descobertas. Em Saudades do Brasil encontramos Lévi-Strauss hesitante quanto à importância
de colocar a público suas fotos. Ele faz questão de alertar para o fato de não trazer o retrato de exis-
tências primitivas. Ao contrário, afirma tratar-se de restos de uma civilização dizimada. Mesclando
seu conhecimento anterior com informações mais recentes, o autor chama a atenção para o desa-
parecimento das populações indígenas, através da diminuição de seus conglomerados e a perda de
suas especificidades e identidades culturais. Ele chega a tomá-las como metáfora da perda de
qualidade de vida na Europa, afirmando que “todos índios doravante, estamos em via de fazer
de nós mesmos o que fizemos deles”. À maneira estruturalista, relaciona a diminuição populacional
e desagregação cultural dos índios com o progresso e o aumento populacional do Ocidente que irá
“devorar a si mesmo”. Termina declarando “afeto e nostalgia” ao Brasil, assim como à sua própria
juventude. Leia-se: saudades.

Atividades
1. Quais os objetivos das pesquisas da Escola Antropológica Estruturalista?
A escola antropológica do Estruturalismo francês | 145

2. Comente o Estruturalismo como um sistema de comunicação segundo a teoria de Lévi-Strauss.

3. De acordo com Simone de Beauvoir, a que se propõem os estudos sobre as estruturas elementares
do parentesco de Lévi-Strauss?
146 | Teorias Antropológicas

4. Como são definidas as sociedades frias e as sociedades quentes no Estruturalismo?


A Antropologia
Interpretativa ou
Hermenêutica
Todo mundo sabe de que trata a Antropologia Cultural: da cultura. O problema é que ninguém sabe muito bem o que
é cultura. Não apenas é um conceito fundamentalmente contestado, como os de democracia, religião, simplicidade e
justiça social, como é também definido de várias maneiras, empregado de formas múltiplas e irremediavelmente im-
preciso. É fugidio, instável, enciclopédico e normalmente carregado. E há aqueles, especialmente aqueles para quem só
o realmente real é realmente real, que o consideram inteiramente vazio ou até perigoso, e que gostariam de eliminá-lo
do discurso sério das pessoas sérias. Em suma, um conceito improvável sobre o qual tentar construir uma ciência. Qua-
se tão ruim quanto a matéria. (GEERTZ, 2001, p. 22)

Na década de 1960, nos Estados Unidos da América, emerge uma nova teoria no campo da An-
tropologia: a Teoria da Antropologia Interpretativa ou Hermenêutica1. Seu principal protagonista foi o
antropólogo Clifford Geertz, considerado um dos mais importantes pensadores da disciplina no século
XX. Suas idéias, ao lado de Claude Lévi-Strauss, provocaram forte impacto intelectual no campo da An-
tropologia e em outras áreas, como a Psicologia, a História e a Teoria Literária.
A Antropologia Interpretativa sinalizou quatro grandes referências que singularizam essa aborda-
gem antropológica, em larga escala, no campo teórico da disciplina:
::: a concepção de compreender a cultura como hierarquização de significados;
::: a busca pela “descrição densa” do cenário cultural observado;
::: o esforço metódico de ir à busca da interpretação do “texto cultural” e não da definição de leis
ou modelos explicativos;
::: basear-se na inspiração legada pela hermenêutica como técnica de interpretação em simetria
com a sua utilização na interpretação de textos filosóficos ou religiosos.

1 Qualquer técnica de interpretação. A palavra hermenêutica é freqüentemente usada para indicar a técnica de interpretação de textos
religiosos ou filosóficos.
148 | Teorias Antropológicas

Segundo Clifford Geertz, pedra angular dessa concepção antropológica, a interpretação antropo-
lógica feita pelo antropólogo em campo é uma “leitura da leitura” que o “nativo” faz de sua própria cultu-
ra. Esse é um pressuposto teórico fundamental da Antropológia Interpretativa, advogada por Geertz.
Para o antropólogo norte-americano, metaforicamente, a Antropologia Interpretativa é a leitura
da sociedade como um texto, análoga a um texto. A interpretação se dá em diversos momentos da lei-
tura do texto. “Nativos” e antropólogos lêem de forma diferente esse texto pleno de significados, marca-
dos por experiências distintas. Os elementos da cultura estudada devem ser entendidos, interpretados,
sob a ótica dessa relação textual e de sua interpretação ou interpretações.
Quando Clifford Geertz, considerado como o pesquisador mais representativo da Antropologia Interpretativa nos Esta-
dos Unidos (Existem nos Estados Unidos, desde meados dos anos 1970, correntes de Antropologia Interpretativa – influen-
ciadas em particular pelos trabalhos hermenêuticos de Ricoeur e de Gadamer) que duvidam da neutralidade do pesquisador
e da objetividade do saber, questionando-se sobre as condições de produção da Antropologia enquanto produção textual.
[...] Propõe-nos a metáfora da “cultura com texto”, ele não quer dizer que a cultura possui uma cultura textual, mas sim
que ela pode ser antropologicamente apreendida, construída, interpretada apenas num texto, num texto que suben-
tende outros textos que foram escritos antes de mim e, sobretudo que foram escritos por outros. Assim a descrição
etnográfica enquanto narração de uma cultura, longe de resolver-se necessariamente na estrutura, é uma questão que
também pode ser colocada em relação com a leitura. Do mesmo fenômeno social, não existe apenas uma, mas sim uma
2
pluralidade de descrições possíveis – a etnografia podendo nesse caso ser considerada uma poligrafia – assim como
uma série de leituras possíveis dessa mesma descrição. Três etnólogos confrontados ao mesmo campo (por exemplo,
Korn, Bateson e Geertz em Bali) nunca darão uma descrição idêntica, e nunca as potenciais leituras desses três etnólo-
gos darão os mesmos resultados. (LAPLANTINE, 2004, p. 110)

Antropologia Interpretativa: o conceito


Segundo Geertz, a construção do conceito deu-se entre inúmeras investidas de campo realizadas
por ele e foi retroalimentada pelo ambiente teórico e intelectual dos anos 1960. Os centros intelectuais
da época estavam sacudidos pelos intensos debates que rasgavam a sociedade mundial, e a norte-
americana em especial. As universidades e os seus intelectuais transpiravam à busca pelo novo e por
novas interpretações sobre os cenários culturais que se desdobravam pelos diversos cantos do mundo.
A disciplina antropológica viu-se atravessada por esse clima.
Depois de Java veio o Bali, onde tentei mostrar que o parentesco, o formato da aldeia, o Estado tradicional, os calendá-
rios, a lei e, da forma mais vil, a briga de galos poderiam ser lidos como textos ou, para acalmar os adeptos da literali-
dade, como “análogos de textos” – eram afirmações materializadas de (para usar outra expressão expositiva) maneiras
específicas de estar no mundo. Depois vieram o Marrocos e uma abordagem semelhante dos Marabu, do desenho
urbano, da identidade social, da monarquia e das trocas complexas no mercado cíclico. (GEERTZ, 2001, p. 27)

Além das pesquisas de campo, o ambiente acadêmico que emoldurava o cenário da articulação
do conceito era intenso. Diversos centros intelectuais procuravam arquitetar conceitos, métodos e me-
tódicas que dessem conta dos cenários móveis e complexos que se avizinhava no horizonte das ciências
humanas e no da Antropologia.
Em Chicago, àquela altura eu começara a lecionar e agitar, teve início e começou a se difundir um movimento mais
geral, vacilante e nada unificado, nessas direções. Alguns, lá e em outros centros, batizaram esse desenvolvimento, ao
mesmo tempo teórico e metodológico, de “Antropologia Simbólica”. Mas eu, encarando tudo isso como um empre-

2 Poligrafia, substantivo feminino (polígrafo+ia). Qualidade de quem é polígrafo; conjunto de conhecimentos vários; coleção de obras diversas,
científicas ou literárias.
A Antropologia Interpre­tativa ou Hermenêutica | 149

endimento essencialmente hermenêutico, um esclarecimento e definição, e não como uma metáfrase ou decodifica-
ção, e pouco à vontade com as misteriosas e cabalísticas implicações de “símbolo”, preferi “Antropologia Interpretativa”
(GEERTZ, 2001, p. 27)

Nesse mar agitado pelas idéias inovadoras, Geertz deu forma – com outros teóricos – ao conceito
e à sua abrangência de observação conceitual e metodológica.
De qualquer forma, fosse ela “simbólica” ou “interpretativa” (alguns até preferiam “semiótica”), começou a surgir um es-
toque de termos, alguns meus, alguns de outras pessoas, outros reutilizados com alteração do sentido anterior, em tor-
no dos quais se poderia construir uma concepção revista do que pelo menos eu ainda chamava de “cultura”: “descrição
densa”, “modelo de/para”, “sistema de sinais”, “episteme”, “ethos”, “paradigma”, “critérios”, “horizonte”, “quadro”, “mundo”,
“jogos de linguagem”, “interpretante”, “sinnzusamenhang” [nexo], “tropo”, “sjuzet”, “experiência próxima”, “ilocucionário”,
“formação discursiva”, “desfamiliarização”, “competência/desempenho”, “fictio”, “semelhança familiar”, “heteroglossia” e,
é claro, “estrutura”, nos seus variados e inúmeros sentidos intercambiáveis. A virada para o sentido, como quer que
tenha sido denominada e expressa, alterou tanto o assunto investigado quanto o sujeito da investigação. (GEERTZ,
2001, p. 27)

Descrição densa X descrição superficial


Para Geertz, a cultura se constitui como “teias de significados” tecidas pelo homem. O significado
que eles dão às suas ações e a si mesmo. Os antropólogos, em seu trabalho de campo e com a sua fer-
ramenta conceitual – a etnografia –, devem buscar os significados desses atos e não suas supostas leis
gerais, leis universais. Os atos e ações desenvolvidos pelos “nativos” estão inseridos em um “universo
imaginativo”, onde essas ações são determinadas, e fazem sentido para eles. Porém, por estar fora desse
“universo imaginativo”, o antropólogo tem uma leitura distinta da leitura do “nativo”.
Segundo Geertz, a descrição densa faz referência ao papel desempenhado pela etnografia. A et-
nografia tem o papel de interpretar os fatos descritos, atrás de suas motivações, objetivos e significados.
A etnografia não seria assim uma mera técnica de descrição minuciosa e detalhada das ações, mas uma
leitura de um texto, uma interpretação feita pelo etnógrafo. Por essa razão, Geertz dirá que o trabalho
do etnógrafo se aproxima do trabalho do crítico literário.
A descrição densa é um mergulho vertical do antropólogo num dado quadro cultural que vai
além da observação superficial ou epidêmica, no nível da superficialidade, de uma cultura. Ou seja, ela
vai muito além do que enuncia a camada visível de uma determinada cultura.
Geertz utiliza-se de um caso de piscadelas descrito por Gilbert Ryle3, onde são analisadas de vá-
rias formas as contrações de uma pálpebra: a linguagem, a comunicação, a informação, o entendimento
estabelecido a partir das piscadelas e os seus efeitos, significados captados, de acordo com os códigos
culturais já estabelecidos e aceitos.
Segundo Ryle, dois garotos piscam rapidamente o olho direito. Num dos meninos, a piscadela
rápida trata-se de um tique involuntário. No outro, a piscadela é um ato de conspiração com um amigo.
Os movimentos são iguais, mas os significados são distintos. Os textos são aparentemente os mesmos,
mas as interpretações são distintas entre si.

3 Gilbert Ryle (1900–1976), filósofo inglês, foi um representante da geração de filósofos britânicos. Ficou reconhecido, principalmente, pela sua
crítica ao dualismo cartesiano, para o qual ele cunhou a frase “o fantasma na máquina”.
150 | Teorias Antropológicas

O quadro torna-se mais complicado com a hipótese de surgir um terceiro garoto que dá piscade-
las para se divertir e imitar o garoto com tique nervoso. O primeiro garoto não tinha intenção de piscar;
o segundo tinha a intenção de piscar, para se comunicar, de acordo com um código socialmente aceito.
Já o terceiro garoto tinha a intenção de ridicularizar.
Poderia, porém, ocorrer um fingimento e não uma conspiração para o caso do segundo garoto,
com a intenção de levar um inocente a pensar que existia uma conspiração em andamento.
Segundo Ryle, há uma “descrição superficial” para descrever aquilo que de fato cada um dos três
garotos pretende com o seu ato; eles contraem a pálpebra direita por motivos diferentes, distintos. Ryle
chama de descrição densa aquilo que o piscador está fazendo, isto é, praticando uma farsa de um ami-
go, imitando uma piscadela para enganar o outro. A descrição densa interpreta aquilo que está oculto
pela epiderme dos atos.
Segundo Geertz, um relato etnográfico deve refletir uma descrição densa feita pelo etnógrafo;
ou seja, ele deve ser capaz de separar as piscadelas dos tiques nervosos e as piscadelas verdadeiras das
imitadas, e as motivações ocultas pelas membranas aparentes. A descrição densa é interpretativa. Ela
interpreta o fluxo do discurso social. A interpretação consiste em salvar o que foi dito num determinado
discurso da sua possibilidade de extinção, e fixá-lo em formas pesquisáveis, mensuráveis. Dessa forma,
a descrição densa deve ser microscópica, no sentido de desvendar as dobras ocultas nos quadros cultu-
rais, e nas relações estabelecidas entre os seus membros.
Para Geertz, essa é a vocação da etnografia, sob a capa da descrição densa. Sua meta é:
[...] uma hierarquia estratificada de estruturas significantes em termos das quais os tiques nervosos, as piscadelas, as
falsas piscadelas, as imitações, os ensaios das imitações são produzidos, percebidos e interpretados, e sem as quais eles
de fato não existiriam (nem mesmo as formas zero de tiques nervosos as quais, como categoria cultural, são tanto não-
piscadelas como as piscadelas são não-tiques) pálpebras. (GEERTZ, 1989, p. 17)

Mesmo sem descartar a possibilidade de interpretações antropológicas em grande escala, de so-


ciedades e civilizações inteiras, Geertz aponta para a dificuldade de se extrair, por intermédio de des-
crições densas – de uma coleção de micros discursos etnográficos, miniaturas etnográficas – um amplo
painel cultural de um certo período, de um continente, de uma civilização, de um país.
Segundo o antropólogo norte-americano, o papel da etnografia, com a prática da descrição den-
sa, é tentar ler textos estranhos, distantes, complexos e herméticos.
O que o etnógrafo enfrenta, de fato – a não ser quando (como deve fazer, naturalmente) está seguindo as rotinas mais
automatizadas de coletar dados – é uma multiplicidade de estruturas conceptuais complexas, muitas delas sobrepos-
tas ou amarradas umas às outras, que são simultaneamente estranhas, irregulares e inexplícitas, e que ele tem que, de
alguma forma, primeiro apreender e depois apresentar. [...]. Fazer etnografia é como tentar ler (no sentido de “construir
uma leitura de”) um manuscrito estranho, desbotado, cheio de elipses, incoerências, emendas suspeitas e comentários
tendenciosos, escritos não com os sinais convencionais dos sons, mas com exemplos transitórios de comportamento
modelado. (GEERTZ, 1989, p. 20)
A Antropologia Interpre­tativa ou Hermenêutica | 151

Clifford James Geertz (1926-2006) –


uma nova luz sobre a Antropologia
O antropólogo norte-americano Clifford James Geertz foi professor da prestigiada Universidade
de Princeton e desenvolveu uma intensa atividade intelectual entre as décadas de 1950 e sua morte em
2006.
Foi professor honorário na School of Social Science – Institute for Advanced Study, em Princeton
(Nova Jersey), do qual foi um dos fundadores, na década de 1970. Doutorou-se em Antropologia pela
Universidade de Harvard (1956). Geertz desempenhou papel destacado na docência e como pesquisa-
dor no MIT4, Harvard, Stanford, University of Califórnia e em Berkeley.
Geertz participou da empreitada da Segunda Guerra Mundial, entre os anos 1942 e 1945. Cinco
anos depois, conclui seus estudos no Antioch College, em Ohio. Graduado em Filosofia e Inglês, Geertz
obtém seu PhD. Na década de 1950, Geertz inicia seus trabalhos de campo. Na Indonésia desenvolve
pesquisas multidisciplinares. Sete anos depois, o antropólogo regressa à Indonésia para novas pesqui-
sas de campo.
Nos anos seguintes, Geertz desenvolveu pesquisas no Marrocos, norte da África, e publicou Islam
Observed, em 1968. Na década de 1970, ingressa na Universidade de Princeton. Logo depois, em 1973,
publica uma das suas mais importantes obras, A Interpretação das Culturas. A seguir vieram à luz Negara:
the theatre state in Bali (1980); O Saber Local (1983); Obras e Vidas (1988); After the Fact (1995); Available
Light: Anthropological Reflections on Philosophical Topics (Nova luz sobre a Antropologia) 2000.
Depois de publicar cerca de vinte livros, o antropólogo norte-americano Clifford James Geertz
morreu em 2006, em decorrência de complicações surgidas após uma cirurgia cardíaca.

Trabalho de campo
Clifford James Geertz desenvolveu intensivas e extensivas pesquisas de campo, base de seus en-
saios publicados. Para ele, no início dos seus trabalhos de campo, a metodologia antropológica era
excessivamente abstrata e distanciada da realidade. Essa situação o impulsionou a elaborar uma nova
abordagem metódica de análise das informações e dados colhidos em campo. Foi com essa perspectiva
que ele se lançou ao estudo da religião em Java5.
Nessa linha de trabalho, ele deu robustez ao que mais tarde chamou-se de Antropologia Interpre-
tativa ou Hermenêutica.
Para Geertz, era importante saber o que as pessoas de determinada formação cultural acham que
são, o que fazem; por que fazem e por qual motivo elas crêem que fazem o que fazem.
Referindo-se à Hermenêutica, Geertz disse:

4 O Instituto Tecnológico de Massachusetts (Massachusetts Institute of Technology, MIT): centro universitário de educação e pesquisa privado
localizado em Cambridge, Massachusetts, nos EUA. Ele é um dos líderes mundiais em ciência e tecnologia, bem como outros campos como
Administração, Economia, Lingüística, Ciência Política e Filosofia. Dentre seus proeminentes departamentos e escolas, destacam-se Sloan
School of Management, Lincoln Laboratory, Computer Science and Artificial Intelligence Laboratory, Media Lab e Whitehead Institute. Muitos dos
seus docentes foram laureados pelo Prêmio Nobel.
5 Java (em indonésio, javanês e sundanês Jawa) é a segunda maior e a principal ilha da Indonésia, onde se situa a capital do país, Jakarta.
152 | Teorias Antropológicas

Ela é muito antiga. Nasceu com: a) a interpretação dos textos sagrados – designados com o nome de exegese, b) a
interpretação dos textos jurídicos, c) a prática da tradução de uma língua para outra. Sua primeira formulação teórica
aconteceu no final do século XVIII com Schleiermacher (pastor protestante, exegeta do Novo Testamento e tradutor de
Platão), depois Dilthey e Nietzsche, que Habermas qualificará de “placa giratória da modernidade”. Mas a hermenêutica
contemporânea só começa realmente com a Lingüística e com a Fenomenologia, ou seja, com o livro de Heidegger,
L’Être et le Temps (Paris, Gallimard, 1964) que colocou em evidência o caráter temporal da experiência humana. Hoje,
seus principais representantes são H. G. Gadamer (Vérité et Méthode, Paris, Le Seuil, 1976) que fundou um método qua-
lificado de “dialógico” e Paul Ricoeur (Temps et Récits, Paris, Points-Seuil, 1976) que lançou as bases entre a interpretação
e a narração. O procedimento hermenêutico, que se afirma hoje, em particular, com a reação ao endurecimento de
certas posições estruturalistas, não abrange unicamente a estrita interpretação dos textos. As questões levantadas pela
hermenêutica são atualmente colocadas no campo da Filosofia (cf. Emanuel Levinas assim como a corrente daquilo e
que foi chamado “desconstrução” com a obra de Jacques Derrida (L’Écriture de la Différence, Paris, Lê Seuil, 1967) e seus
alunos norte-americanos) e das Ciências Sociais, assim como no campo da Semiologia (Umberto Eco, L’oeuvre Ouverte,
Paris, Le Seuil, 1965; Les Limites de I’Interprétation, Paris, Grasset, 1992; Roland Barthes, L’Obvie e l’Obtus, Paris, Le Seuil,
1982; da crítica literária (H.R. Jauss, Pour Une Herméneutique Littéraire, Paris, Gallimard, 1988), da psicanálise (P.Ricoeur,
Le Conflit des Interprétations, Paris Le Seuil, 1969), da Antropologia (C. Geertz, Dan Sperber, Le Savoir des Anthropologues,
Paris, Hermann, 1982), e da teoria da tradução (G. Mounin, Les Problèmes Théoriques de la Traduction, Paris Tel/Gallimard,
1990; J.-R Ladmiral, Traduire: Théorème pour la Traduction, Paris, Tel/Gallimard, 1995; A Berman, L’Épreuve de l’Étranger,
Paris, Tel/Gallimard, 1995) que cultivam laços estreitos com a Antropologia. (LAPLANTINE, 2004, p. 108-109)

Geertz concordava com a tese de Lévi-Strauss de que há uma abordagem etnocêntrica6 no es-
tudo da Antropologia. Para ele, um dos principais riscos do etnocentrismo era o de aprisionar o antro-
pólogo na sua interpretação pessoal, nas teias dos seus próprios significados. Segundo Geertz, o maior
problema do antropólogo em seus estudos não é o de estranhar o outro (nativo diferente dele), mas o
de se estranhar; estranhar a si mesmo. Geertz aconselhava os antropólogos a fugirem dessa armadilha
conceitual, que se conhecessem melhor, antes de estudarem outras sociedades; outros povos; outras
culturas.

Interpretação das Culturas


No livro Interpretação das Culturas, o antropólogo norte-americano trabalha sob o guarda-chuva
teórico do “interacionismo simbólico”.7 A obra se dedica a realizar uma análise antropológica das dimen-
sões culturais da política, da religião e dos costumes sociais.
Nesse trabalho, Geertz mobiliza diversos exemplos do universo cultural balinense. O antropólo-
go percorre da etnografia da briga de galos aos sistemas de casamento. No trabalho de campo, Geertz
observa que a estrutura estruturante da organização das sociedades está centrada na cultura, que pode
ser uma espécie de sistema cultural de organização – controle – das coletividades, do quadro social. Esse
sistema cultural é sustentado por um mecanismo de apreensão do poder por meio da posse dos signos
de poder, por parte dos que controlam as altas esferas de poder social, e da submissão dos membros da
comunidade política a esses signos de poder.
Para a instalação desse cenário – controle das altas esferas e submissão dos membros da comuni-
dade –, a cultura assume o papel de mediadora entre o poder e o objeto de sua ação. Segundo Geertz,

6 Etnocêntrico, adjetivo (etno+cêntrico). Aquele que considera o seu povo ou grupo social como o centro da cultura; é intolerante em relação
a outras culturas; concentra-se sobre uma cultura como interesse ou objeto principal.
7 Interacionismo simbólico: teoria da simbologia utilizada e aceita universamente para indicar atos e situações que possam ser úteis e
necessárias para todo o mundo, pelo menos ser aceita pela imensa maioria da sociedade ocidental, desenvolvida pela chamada “Escola de
Chicago”, nos Estados Unidos.
A Antropologia Interpre­tativa ou Hermenêutica | 153

a cultura tem um padrão de significados que é transmitido historicamente, incorporados em símbolos


e materializado nos comportamentos. Assim, as imagens públicas do comportamento – cultural – são
vistas como as mais eficazes formas do controle social.
A cultura tem uma dupla ação: ela é parte do mecanismo de controle do comportamento social
e é retroalimentadora – cria e recria esse comportamento graças ao seu conteúdo ideológico. Para Ge-
ertz, toda cultura tem uma ideologia que a sustenta, pois a ideologia tem uma dimensão norteadora e
justificativa que o autor chama de “arbitrário cultural”.8
O “arbitrário cultural” forma os princípios, as bases de sustentação, aceitas pelo senso comum
como indiscutíveis. Esses princípios definem o que é valorizado ou não, em termos do comportamento
aceito pelo grupo social. O “arbitrário cultural” é um elemento mediador da apreensão e absorção dos
signos e significados de uma determinada cultura.
Com esse quadro geral como pano de fundo, Geertz desenvolve um método para que o antro-
pólogo comece a levar em conta suas próprias percepções – exercício da vigilância epistemológica –,
com o cuidado para não se deixar influenciar pelas suas próprias opiniões, crenças, valores, conceitos e
preconceitos a respeito dos objetos e sujeitos de sua pesquisa.
Para escapar dessa “tendência” metódica, Geertz analisa e estuda a estrutura significativa da cul-
tura a partir do estudo da percepção dos indivíduos dessa cultura. Para isso, o autor desenvolve um
método em que o essencial é anotar e interpretar o discurso social. Por essa razão, Geertz utiliza com
freqüência a noção de leitura da sociedade como um livro.
A obra tornou-se uma referência fundamental para os estudos de cultura e lançou as bases que
problematizaram na radicalidade o papel do antropólogo e a validade de suas observações em socie-
dades distintas da sua, o que impulsionará, mais à frente, as bases conceituais da Antropologia Pós-
Moderna.
A obra pode ser considerada um tratado de teoria cultural, desenvolvido através de análises con-
cretas. Geertz faz uma dura crítica ao uso desenfreado do conceito de cultura, aspecto recorrente de seu
fazer e pensar antropológicos.
O conceito de cultura que eu defendo é essencialmente semiótico. Acreditando, como Max Weber, que o homem é um
animal amarrado a teias de significados que ele mesmo teceu, assumo a cultura como sendo estas teias e sua análise,
portanto, não como uma ciência experimental em busca de leis, mas como uma ciência interpretativa, à procura do
significado. (GEERTZ, 1989, p. 15)

Geertz define que o objeto da Antropologia é a hierarquia de estruturas significantes. Elas são es-
truturas superpostas de inferências, por onde o antropólogo percorre à procura de um caminho para
compreendê-las e interpretá-las. Não é o antropólogo se tornar um “nativo”, mas conversar com eles.
Fazer a etnografia é ler o discurso social por cima dos ombros de quem os escreveu; é enxergar além das
referências imediatas que se apresentam ao olhar do antropólogo.
O fundamental é aprofundar a busca pelas particularidades e as condições de entendimento das
culturas localizadas, e não mais das estruturas, dos processos de pensamento. Essa posição vai de en-
contro ao que havia sido proposto por Lévi-Strauss, pois perde a unidade psíquica do pensamento.
Geertz conclui a obra com a observação de que a descrição etnográfica – descrição densa, mi-
croscópica – e a análise cultural são incompletas. Pior: quanto mais profunda é a análise cultural, menos
completa ela será. Entretanto, salienta para os antropólogos que olhar as dimensões simbólicas da ação
8 Arbitrário Cultural: “capital simbólico”; estratégia de poder simbólico e violência simbólica.
154 | Teorias Antropológicas

social – arte, religião, ideologia, ciência, lei moralidade – não é afastar-se dos dilemas existencias da
vida, mas mergulhar neles.
A vocação da Antropologia Interpretativa não é responder às questões mais profundas, mas colo-
car à disposição as respostas que outros deram e incluí-las no registro de consulta sobre o que o homem
falou de e para si.

Nova luz sobre a Antropologia


Um dos últimos trabalhos publicados de Clifford Geertz (Nova Luz sobre a Antropologia) apresenta
uma gama de temas e reflexões que acompanharam o trabalho do antropólogo norte-americano ao
longo de sua vida. Nele, Geertz trata do seu aprendizado no exercício da Antropologia, das dimensões
éticas do trabalho de campo, do relativismo e anti-relativismo, da diversidade, do cenário da Antropo-
logia, da religião, da Psicologia Cultural, da relação cultura/mente/cérebro, da globalização, da cultura e
da política no final do século.
A professora do Departamento de Antropologia da Universidade de S. Paulo (USP), Lilia Moritz
Schwarcz, escreveu, à época do lançamento do livro, um vibrante comentário sobre essa obra para a
Revista de Antropologia, no ano 2001.
Intitulado Mercadores do Espanto: a prática antropológica na visão travessa de C. Geertz, logo de
início a professora apresenta o legado conceitual que conduziu o trabalho de Geertz: “Sou da cabeça
aos pés um etnógrafo que escreve sobre etnografia”. O legado teórico foi, na prática e no universo con-
ceitual, a experiência da descrição densa, da etnográfica em profundidade, hermenêutica, nas palavras
do antropólogo norte-americano.
Essa característica Lilia Schwarcz vai destacar no seu texto sobre o livro. Para Geertz, o trabalho
antropológico sempre foi uma tarefa de “corpo a corpo”, “uma grande e complexa experiência de cam-
po”. A Antropologia Interpretativa inaugura um novo momento na reflexão e no fazer antropológico, na
década de 1960, por procurar essa aventura interpretativa.
[...] Revelar as singularidades de outros povos, examinar o alcance e a estrutura da experiência humana, aí estavam
dispostos os maiores trunfos dessa Antropologia Interpretativa, hermenêutica para alguns, simbólica ou criativa para
outros, fundada nos anos 1960 nos Estados Unidos. Ficavam guardados nos pequenos detalhes da vida vivida, na idéia
de que a cultura é microscópica, mas também na capacidade descritiva e de interpretação, os trunfos desse novo mo-
vimento, que surgia sem querer e evitava a rubrica de escola ou as regras e modelos preestabelecidos. (SCHWARCZ,
2001)

Segundo a autora da resenha, esse núcleo de idéias logo se impôs no universo conceitual da
Antropologia. Dessa forma, Geertz surge, pela densidade de sua obra, como uma espécie de líder “não-
nomeado” desse efervescente grupo. Lilia Schwarcz destaca o estilo, a estrutura narrativa e o singular
sistema de codificação que emergiam do texto de Geertz.
Em A Interpretação das Culturas, e por meio de uma série de ensaios que iam da religião a um pequeno ritual de briga
9
de galo em Bali, o antropólogo inaugurava um estilo individual e a prática benjaminiana de produzir insights, no lugar
da grande teoria arrumada. Mais uma vez a religião, como uma prática que ensina a sofrer e menos a consolar, aparecia
como tema central no The Religion of Java. Em Negara, o etnógrafo se vestia de historiador e estudava o ritual em uma

9 Deriva do nome do ensaísta alemão Walter Benedix Schönflies Benjamin (1892-1940).


A Antropologia Interpre­tativa ou Hermenêutica | 155

sociedade monárquica, na qual os limites entre realidade e representação estavam pouco estabelecidos. Foi a publi-
cação de Local Knowledge que Geertz sinalizou para a possibilidade de entender os antropólogos tal qual uma aldeia,
sujeita a padrões e costumes originais. Provocou a todos quando editou Works and Lives, indicando como, no ambiente
intelectual, não há unaminidade possível. (SCHWARCZ, 2001)

No resumo das atividades desempenhadas por Geertz, Lilia Schwarcz destaca a coragem do an-
tropólogo de se posicionar nos debates de sua época e retomar a discussão dos grandes temas da
Antropologia, com observações críticas sobre autores e escolas anteriores, “isso tudo sem deixar de
desfazer de seu próprio trajeto pessoal” (SCHWARCZ, 2001).
No livro, Geertz toca em um ponto polêmico do trabalho de campo: a relação entre antropólogo
e informante. Com a palavra, Geertz:
Enquanto elas (as relações entre antropólogo e informante) se mantêm apenas como ficções parciais (portanto, verda-
des parciais) e apenas mais ou menos percebidas (portanto, meio obscuras), a relação progride bem. O antropólogo
apóia-se no valor científico dos dados coletados e talvez num certo alívio pela simples descoberta de que a tarefa não
10
é, afinal, do todo sisífica . Quanto ao informante, seu interesse é mantido por toda uma série de ganhos secundários: a
sensação de ser um colaborador essencial numa empreitada importante, ainda que mal compreendida; o orgulho por
sua própria cultura ou por seu próprio conhecimento dela; a chance de expressar idéias e opiniões pessoais (e passar
adiante boatos do varejo) e uma pessoa neutra, de fora; e também, de novo, algum benefício material direto ou indireto
de um tipo ou de outro. E assim por diante – as recompensas são diferentes praticamente para cada informante. Mas,
se é rompido o acordo implícito de eles se encararem mutuamente, a despeito de sérios indícios do contrário, como
membros do mesmo universo cultural, nenhum desses incentivos mais comuns é capaz de manter a continuidade da
relação por muito tempo. Ela se extingue aos poucos numa atmosfera de inutilidade, tédio e desapontamento geral,
ou, de forma bem menos comum, desmorona subitamente num sentimento mútuo de que se foi enganado, usado e
rejeitado. Quando isso acontece, o antropólogo experimenta uma perda da empatia: o namoro foi rompido. O infor-
mante vê a coisa como uma revelação de má-fé: sente-se humilhado. E mais uma vez eles se encerram em seus mundos
separados, internamente coesos e incomunicáveis. (GEERTZ, 2001, p. 40-41)

Lilia Schwarcz aponta as pinceladas que Geertz se permite sobre sua biografia pessoal (sua passa-
gem pela marinha), mas aponta, a seguir, o retorno, logo, de sua ampla experiência acadêmica (estudos
em Ohio, estágio no New York Post, a formação em Cambridge, Berkeley) e de campo (Java, Bali, Sumatra e
Marrocos11), e os trinta anos no Instituto de Estudos Avançados, em Princeton, que “levaram à criação con-
junta de um grupo que é hoje referência para todo aquele que se imagine interessado em humanidades”.
Outro aspecto destacado no texto de Lilia Schwarcz é a iconoclastia criativa de Geertz:
Engana-se, porém, aquele que pensa que Geertz apenas desconstrói idéias e conceitos alheios. Ao contrário, várias
bandeiras são levantadas, de maneira mais ou menos direta. Em primeiro lugar, é fácil encontrar a defesa veemente da
etnografia e de uma abordagem cultural. Por sinal, Geertz é o primeiro a buscar por uma dimensão menos vasta para
esse conceito que, ao invés de dar conta de tudo, aparece definido a partir da noção de “consenso”: consenso entre
outros povos, como entre nós. Há ainda uma retomada da discussão sobre o estatuto da dimensão simbólica no pen-
samento social e, mais uma vez, a declaração de que o “significado se dá sempre em contexto” e não é, portanto, um
código a ser decifrado de maneira fria e distante. Aí está implícita a crítica, que muitas vezes aparece de modo direto,
ao modelo estruturalista de Claude Lévi-Strauss, que nunca escondeu sua opção pela busca de estruturas distantes da

10 Na mitologia grega: Sísifo, filho do rei Éolo, da Tessália, e Enarete, era considerado o mais astuto de todos os mortais; foi condenado por
toda a eternidade a rolar uma grande pedra de mármore com suas mãos até o cume de uma montanha, sendo que toda vez que ele estava
quase alcançando o topo, a pedra rolava novamente montanha abaixo até o ponto de partida por meio de uma força irresistível. Por esse
motivo, a tarefa que envolve esforços inúteis passou a ser chamada “Trabalho de Sísifo”.
11 Sumatra ou Samatra é a maior ilha inteiramente na Indonésia (as outras duas ilhas maiores, Bornéu e Nova Guiné, têm territórios parciais
na Indonésia). Marrocos é um país localizado no extremo noroeste da África, estando limitado a norte pelo Estreito de Gibraltar (por onde faz
fronteira com a Espanha), por Ceuta, pelo mar Mediterrâneo e por Melilha, a leste e a sul pela Argélia, a sul pelo Saara Ocidental (território que
controla) e a oeste pelo Oceano Atlântico. A capital do país é a cidade de Rabat.
156 | Teorias Antropológicas

empiria mais imediata. Nesse duelo de gigantes, não há vencedor definido e por isso mesmo sobra a reflexão, que antes
impulsiona para a convivência crítica, do que leva à opção por uma teoria que exclui as demais. (SCHWARCZ, 2008)

Lilia Schwarcz destaca um aspecto importante na concepção de Geertz em relação ao relativismo


cultural. Segundo a antropóloga, o autor criticou com ironia as saídas pasteurizadas, que procuravam
semelhanças e realidades estáveis ou uma natureza quase essencial ao homem. Geertz chamava a isso
de “provincialismo cultural”. Para Geertz, à Antropologia consiste em “examinar dragões, não domesticá-
los ao abominá-los, nem afogá-los em barris de teoria”, sinaliza Lilia Schwarcz.
Mais uma vez, com a palavra, Geertz:
Para ser mais claro, não quero defender o relativismo, grito de guerra do passado e afinal uma palavra desgastada, mas
atacar o anti-relativismo, que me parece estar em ampla ascensão e representar uma versão aerodinâmica de um erro
antigo. O que quer que possa ser ou ter sido originalmente o relativismo cultural (e não há um só dos seus críticos que
o tenha entendido bem), ele serve, atualmente, sobre tudo como um espectro para nos afugentar de certos modos
de pensar e nos encaminhar para outros. E, como os modos de pensar de que estamos sendo afastados me parecem
mais convincentes do que aquele para os quais somos impelidos, além de estarem no cerne da herança antropológica,
eu gostaria de fazer algo a esse respeito. Exorcizar demônios é uma prática a (que) devemos aderir, além de estudá-la.
(GEERTZ, 2001, p. 47)

Segundo Lilia Schwarcz, Geertz faz, no livro, o quê promete não fazer, revê temas espinhosos para
a Antropologia, tais como identidade, nação, estado, povo. Ela reproduz a frase de Geertz que diz que o
“antropólogo é um mercador do espanto”, no seu exercício de etnógrafo e na sua produção etnográfica.
“Não é preciso concordar com Geertz, não há como deixar, no entanto, de se entusiasmar com um pen-
sador que continua duvidando dos seus achados”, diz Lilia Schwarcz (2001).
Por fim, Schwarcz dá ênfase ao aspecto ensaístico do livro. Para ela, o texto é um testemunho
vigoroso da atuação intelectual e de vida experimentado por Geertz, com suas idéias desconcertantes
e provocadoras, que evita a acomodação no campo de reflexão da antropologia, com a negação siste-
mática de modelos metódicos e explicativos.
Mais do que um amontoado de conferências e de ensaios desconexos, esse livro é, portanto, um testemu-
nho de um intelectual vivo e atuante, que faz de suas idéias instrumentos de reflexão (e de provocação),
que evita o comodismo das personalidades consagradas e que, sobretudo, sabe rir de si próprio. Pena que
a editora, que foi tão cuidadosa na tradução e realizou o mais difícil: deu vazão à maneira original do autor
redigir, tenha optado por alterar o título, introduzindo uma versão mais comportada e que combina pouco
com a “boa modéstia” de Geertz. Ao trocar o título original Available Light: anthropological reflections on
philosophical topics por Nova Luz sobre a Antropologia, perdemos na sutileza, assim como fica-se um pouco
distante desse estilo singular de fazer teoria. Afinal, Geertz sempre negou estar criando modelos, assim
como reagiu às homenagens que essencializavam sua Antropologia Interpretativa. (SCHWARCZ, 2001)
Para ela, “Geertz foi muito longe, apesar de continuar negando seu próprio legado”.

Considerações finais
A Antropologia Interpretativa ou Hermenêutica ampliou o repertório da disciplina antropológica
e problematizou o objeto e sujeito da Antropologia e do etnógrafo em seu trabalho de campo.
A Antropologia Interpre­tativa ou Hermenêutica | 157

Geertz foi um protagonista de peso nesse exercício. Sua principal metáfora, a de ler a sociedade
como um livro, denuncia sua intenção de não correr atrás de leis gerais sobre as sociedades e cultura,
mas interpretar as interpretações dos nativos, para as quais essa cultura e sociedade têm valores distin-
tos da do antropólogo.
Sua técnica de descrição densa busca ir além das descrições epidérmicas, superficiais, das so-
ciedades estudadas. Essa leitura microscópica exige mais do que o registro minucioso e criterioso dos
dados obtidos em campo. Ela exige o desvendar das teias interpretativas tecidas pelos membros dessa
sociedade.
A cultura como hierarquização de estruturas significativas mostra-se como um texto a ser revela-
do, como as escrituras religiosas ou filosóficas. Um texto não compartilhado entre o escritor e o leitor;
nativo e antropólogo. Lê-lo implica ir além das referências imediatas colocadas à disposição do antro-
pólogo. Para tanto, faz-se necessário partir do estudo da percepção do nativo dessa cultura. O arbitrário
cultural que dá as regras e compassos dessa cultura são os mediadores, intermediários, para a apreen-
são e absorção dos signos e significados de uma determinada cultura.
Apesar da possibilidade de leituras globais e universalizantes da Antropologia Interpretativa, Ge-
ertz salienta que sua meta é a descrição microscópica e que essas micronarrativas e descrições etnográ-
ficas dificultariam as generalizações.
De uma certa forma, essa Antropologia provoca uma ruptura com a vocação da Antropologia
anterior, que procurava as leis e generalizações dos padrões e comportamentos da sociedade e deter-
minava modelos metódicos do fazer e pensar antropológicos.
Tanto na metódica quanto na abordagem, a Antropologia Interpretativa vitaminará, a partir das
produções de Clifford James Geertz, as provocações instigadas pela Antropologia Pós-Moderna, que se
desenha a partir desse quadro de referência.

Texto complementar
A mitologia de um antropólogo
(TSU, 2008)
O que o sr. acha que o futuro reserva aos antropólogos? Na introdução de seu livro, o sr.
diz que está cada vez mais difícil sobreviver à base de Antropologia, as coisas não são mais
como eram. Qual é o campo de trabalho da Antropologia? Bem, não é bem que não dá para so-
breviver com a Antropologia, acho que os antropólogos estão sobrevivendo bem, mas está ficando
mais difícil porque tudo está ficando mais complicado. Nós lidamos com uma gama maior de so-
ciedades, não apenas as chamadas sociedades simples. Lidamos com sociedades grandes, como a
158 | Teorias Antropológicas

Índia, o Brasil, o que torna as coisas mais complexas do que quando nós ficávamos restritos a apenas
povos tribais. Em segundo lugar, o mundo é agora muito mais integrado e desenvolvido, logo, tudo
é conectado a tudo o mais de forma bastante complicada. Além disso, há muito mais pessoas traba-
lhando nessas áreas, em que antes costumávamos trabalhar sozinhos. Ninguém mais estava muito
interessado nos povos que estudávamos, mas hoje todos estão. Isso faz com que a Antropologia
seja muito mais do que a soma das coisas, em um sentido, mas muito mais difícil de buscar realizar,
em outro.
Mas qual seria o dever dos antropólogos? Não creio que possamos fazer muito mais do que
seguir do jeito que estamos e continuar a pensar no que estamos fazendo e qual a nossa contribui-
ção particular – o tipo de contribuição que a Antropologia pode de fato dar eficazmente. A Antro-
pologia não pode mais ser uma ciência completamente geral, que estuda tudo, que diz estudar o
“Homem”. Ela tem que perceber qual é, em um lugar como a Índia, ou a Indonésia, ou o Marrocos,
ou o Brasil, o seu papel particular em interpretar o que ocorre – isso ao lado de outras disciplinas,
como Economia, Política, História, Literatura. Tudo isso deve ser levado em consideração, e a Antro-
pologia deve encontrar seu lugar e sua contribuição em meio a esses outros campos.
Como o sr. se envolveu com a Antropologia? Eu fiz faculdade depois da guerra – depois da
Segunda Guerra Mundial – e estudei Inglês e Filosofia por uns tempos. E então, quando decidi fazer
a pós-graduação, um de meus professores sugeriu que eu poderia me interessar por Antropologia,
em particular a que estava então sendo ensinada em Harvard, porque em Harvard estava sendo en-
sinada como parte de um departamento multidisciplinar, chamado Relações Sociais. Nesse depar-
tamento, estavam reunidas as disciplinas de Antropologia, Sociologia, Psicologia Social e Psicologia.
Então eu fiz isso e foi assim que entrei para a Antropologia.
O sr. acredita que a Antropologia Cultural, a chamada Antropologia Hermenêutica, pode
ser considerada uma ciência? Claude Lévi-Strauss diria que o tipo de Antropologia praticada
pelo sr. não é Antropologia, e sim etnografia. Devo dizer que não sou da mesma categoria que
Claude, mas não acho essa questão particularmente importante. Não me importa se ele a chama
de ciência ou não, eu mesmo acredito que seja, mas isso depende do que significa “ciência”. Lévi-
Strauss certamente está certo ao dizer que a Antropologia Cultural não segue o mesmo modelo que
as ciências naturais, mas eu acredito que seja empírica, sistemática, tente desenvolver argumentos
que possam ser ao menos confrontados com provas. Ela vai atrás de um objetivo mais ou menos
específico... Por isso não vejo motivo para não chamá-la de ciência, mas concordo que não como
a Física ou a Química etc. Porém não vejo por que compará-la à Física. Eu mesmo não acho que a
questão de como chamá-la seja tão importante.
Então, para ela ser vista como ciência, não é necessário que a chamemos de ciência. Supo-
nho que não. É, não precisa. Eu costumo fazê-lo, bem, por questões políticas.
Parafraseando Max Weber, a Antropologia, tanto em campo quanto na academia, é uma
vocação? Com certeza é uma vocação para mim, tem sido assim nos últimos 50 anos. Espero que
continue a ser, sim, é um compromisso, é mais do que um simples trabalho ou um lugar para se
receber um salário. Eu tento, suponho, melhorar as comunicações entre as pessoas, a compreensão
entre as pessoas. Portanto acredito que seja uma vocação. Nem todos na Antropologia estão com-
prometidos com ela como se fosse uma vocação, mas os melhores estão.
A Antropologia Interpre­tativa ou Hermenêutica | 159

Quais são os limites da interpretação? Se a cultura é um texto – ou análoga a um texto


–, e o antropólogo escreve um texto, e o leitor lê o texto e o interpreta também e isso vai em
frente... Quais são os limites? Bem, não sei, acho que você pára de interpretar quando não tem
mais o que dizer. Por exemplo, eu vou e escrevo sobre Bali ou Java, talvez você leia, pense sobre o
que significa no contexto daquilo que você está fazendo. E, após um tempo, não há muito mais a
ser dito, quer dizer, nada muito mais interessante aparece, você pega o que pode e então segue em
frente. Acho que a corrente de texto depois de um tempo se entrega, porque tudo o que sabemos
de importante ou interessante já foi dito, ao menos naquela linha em particular, não como um todo,
mas nessa linha, sim. Então as coisas são abordadas de modo diferente, e vai-se em frente com isso.
Não creio que haja um ponto final óbvio que diga exatamente onde é o fim da interpretação, mas,
depois de um tempo, depois de 4 000 discussões acerca da briga de galos, quem sabe baste.
Mas é interessante, porque um estudante de Antropologia brasileiro, lendo o ensaio so-
bre a briga de galos balinesa, terá uma visão completamente diferente da de um estudante
de Antropologia balinês, que terá uma visão diferente da do sr. quando escreveu o ensaio.
Cada um está fazendo a sua própria interpretação. Bem, mas a decisão é pessoal. Uma coisa inte-
ressante a fazer seria confrontar as leituras balinesas do texto com as brasileiras. Poderia nos ser útil,
na verdade não faço idéia, depende do que sairia disso. Mas costumo adotar uma visão a posteriori
das coisas. Deve-se tentar primeiro e depois ver se vale a pena. Não podemos prever o que será útil
e o que não o será.
Como se pode escapar do niilismo na interpretação? Eu não vejo qual é o papel do niilismo.
Se você fosse niilista, nem começaria a interpretar. Não tentaria ao menos começar a entender os
outros. Acho que há uma diferença entre o niilismo e uma simples ausência de certeza. É verdade
que quase todas as interpretações antropológicas tenham por fim um resíduo de incerteza, de va-
gueza, indeterminação, contingência. Mas isso não é niilismo, isso é o modo como o mundo é. Se
você for realmente um niilista, não se importará com nada, não tentará buscar compreender nada,
não interpretará nada. Não escreveria – ao menos eu não vejo razão para que escrevesse – um longo
livro sobre coisa nenhuma.
Seu novo livro tem um capítulo intitulado “Anti Anti-Relativismo”. Diante das duas atitu-
des dominantes na antropologia – defesa de um relativismo quase absoluto e defesa de uma
moral ou “natureza humana anterior a qualquer análise antropológica” –, onde exatamente
o sr. se situa? Como eu disse, sou um anti anti-relativista, mas acredito que essa posição seja mais
comum aqui nos Estados Unidos do que imagino que seja no Brasil, embora eu não tenha certeza.
Aqui nos EUA faz parte do movimento neoconservador puxar a carta do relativismo contra, bem,
essencialmente contra a esquerda, contra liberais etc. O que dizem é que, a menos que você se
agarre a certas verdades absolutas, de certo tipo, você não pode acreditar em nada, não pode fazer
nada, agir etc., e eu obviamente me oponho a essa visão. Acho que é possível agir sob a incerteza, é
possível agir sob o indeterminável, porque este é o modo como todos nós vivemos.
Qual é a sua perspectiva quanto aos rumos atuais da globalização, essa moda de globa-
lização que está tomando conta do mundo? Como isso afeta as culturas? Nos últimos capítulos
do meu livro eu falo sobre o que é o padrão, ao menos o que acredito que seja um padrão. Ao mes-
mo tempo em que há muita comunicação e integração em nível mundial e uma ordem neoliberal
160 | Teorias Antropológicas

geral, simultaneamente ocorre uma reação contra isso, que busca aumentar auto-expressões cul-
turais. Acho que devemos usar esse paradoxo para entender exatamente o que acontece. Não me
parece que nem a idéia de o mundo inteiro estar meio que subsumido em uma única hegemonia
nem a noção de “cada um é seu próprio eu” se imporão. Não sei bem o que dizer sobre a globa-
lização como processo, a globalização é um fato, está ocorrendo, o gado atravessa o mundo, há
muita comunicação etc., mas não acho que isso ocorra sem paralelos, sem outros movimentos em
direções opostas.
Então o sr. não concorda que a globalização seja um movimento avassalador de culturas
“menores”? Não, na verdade, não concordo. Bem, não sei como tudo isso terminará – quem é que
sabe isso? Mas o que eu sinto é que essas culturas são realmente fortes e, em certo grau, são estimu-
ladas pela própria globalização a se tornarem ainda mais fortes. Não creio que elas serão esmaga-
das, embora muita gente ache que sim.
O sr. tem uma visão otimista do futuro... Não diria que é uma visão otimista, mas que ao me-
nos esse tipo de pessimismo não é o meu. Tenho meu próprio tipo de pessimismo, que não é esse.
E qual é o seu tipo de pessimismo? Eu não tenho, estava brincando. Eu não acho que o mun-
do esteja prestes a se tornar, por completo, um tipo de hegemonia neoliberal baseada nos Estados
Unidos. Há certamente pessoas que querem isso e alguns cientistas em alguns lugares que dizem
que isso acontecerá, mas creio que há vários motivos para questionar isso. Não acredito que o neo-
liberalismo vá subjugar todo o mundo. Bem, temos que ver, temos que esperar a história e ver.
Existe algum episódio de seu trabalho de campo que o sr. recorde como particularmente
interessante? Fiz muito trabalho de campo e sempre me diverti muito com ele. O primeiro de to-
dos, ir por dois anos e meio a Java, foi bem excitante. Depois fui para Bali por um ano e depois para
o Marrocos por vários anos. E então estive de volta a Java, a Bali, ao Marrocos... O trabalho de campo
foi seguramente um dos pontos altos da minha vida.
Gostaria que o sr. contasse um caso específico, uma história anedótica...Escrevi sobre pra-
ticamente todos os eventos anedóticos que me aconteceram, é difícil me lembrar de algum especí-
fico agora. O trabalho, depois de feito, quando olhamos para ele, é semi-autobiográfico, ao menos
em parte. E no meu trabalho eu já contei uma série de histórias, coisas que me aconteceram: ter
sido surpreendido em plena guerra civil na Sumatra, ter-me envolvido com certas pessoas no Mar-
rocos...
Até que ponto a sociedade a que se pertence e aquela na qual se faz o trabalho de campo
influem no trabalho dos antropólogos? Não há dúvida quanto a isso, todos nós somos, como se
diz hoje, “observadores situados”. A única coisa que se pode fazer a respeito é ter a maior consci-
ência possível desse fato e pensar nisso, não assumir que o modo como vemos as coisas é o modo
como as coisas simplesmente são, mas entender. Sim, obviamente, um antropólogo norte-america-
no ou um brasileiro ou um francês verão as coisas de uma maneira algo diferente, e uma das razões
é o contexto cultural do qual eles vêm, do qual extraem suas percepções e seus princípios. Não há
nada de errado nisso, é inevitável, o erro ocorre quando as pessoas não se conscientizam disso e
simplesmente assumem que qualquer sensação que têm não precisa ser confrontada com a reali-
dade. Claro, não há nada semelhante a um observador totalmente neutro e abstrato. Isso não é tão
fatal quanto pode soar, só significa que é preciso pensar sobre de onde as pessoas vêm, onde elas
estão trabalhando etc.
A Antropologia Interpre­tativa ou Hermenêutica | 161

E o que o sr. pensa a respeito do atual movimento chamado “pós-moderno” na Antropo-


logia? Freqüentemente não se sabe bem de que se trata quando se fala em pós-moderno. Não me
considero um pós-moderno no sentido estrito, mas acredito que os pós-modernos estão apresen-
tando questões interessantes que precisam ser confrontadas até por aqueles de nós que possivel-
mente não estão muito enamorados das respostas dadas por eles quanto poderiam estar. Mas as
questões que eles trazem e as preocupações que eles têm são todas bem reais, e essas questões e
preocupações exigem algum tipo de resposta. Se a resposta que é usualmente associada ao pós-
modernismo, que é uma visão descentrada e altamente relativa das coisas, é a resposta ideal, eu não
tenho certeza, mas acho que os pós-modernos devem ser tomados como positivos para a constru-
ção da Teoria Antropológica. Eles contribuíram muito, criticamente, fizeram com que algumas posi-
ções e argumentos se mostrassem simples demais para serem mantidos e também trouxeram o tipo
de pergunta que você fez momentos atrás sobre a influência da sociedade de alguém na percepção
desse alguém etc. Foi esse tipo de coisa, entre outras, que nos foi trazido pelos pós-modernos. Um
monte de outros problemas com relação à escrita, com relação à retórica, com relação à questão da
prova etc., como nas ciências naturais, tudo isso vem à tona, ao menos em parte, devido à crítica
pós-moderna. Então, como crítica, acredito que tenha tido um valor significativo, mas, como força
positiva e construtiva, sou um pouco mais cético.
Quais são os seus planos para o futuro? O sr. pensa em escrever mais um livro? Não sei,
não estou escrevendo um agora, tenho que escrever alguns ensaios e tenho que dar algumas pa-
lestras, mas tenho 74 anos, então... Você sabe, nesta altura a gente pensa no futuro de um modo
diferente. Não sei, talvez escreva algo, mas no momento não estou trabalhando em um livro, estou
trabalhando – bem, escrevo resenhas, tenho que falar com algumas pessoas no mês que vem e
coisas do gênero. Tenho que tentar cumprir algumas promessas que fiz antes e não pude cumprir
enquanto estava escrevendo livros. Mas eu posso eventualmente voltar a escrever. Veremos. Quan-
do se toca de ouvido, quem sabe?

Atividades
1. Segundo a interpretação de Clifford Geertz, como se dá a organização das sociedades?
162 | Teorias Antropológicas

2. Por que a Teoria Antropológica Interpretativa possibilita a leitura da sociedade como um texto?

3. Comente o surgimento da Antropologia Interpretativa proposta por Clifford James Geertz.


Antropologia
Pós-Moderna ou Crítica
Os antropólogos (e suas obras) James Clifford e Georges Marcus (Writing Culture – the poetics and
politics of ethnography, 1986), Georges Marcus e Michael Fischer (Anthropology as Cultural Critique, 1986),
Richard Price (First Time, 1983), Michel Taussing (Xamanismo, Colonialismo e o Homem Selvagem, 1987),
e James Clifford (The Predicament Culture, 1988) protagonizaram o enredo que passou para a história da
disciplina como a Antropologia Pós-Moderna ou Crítica.
Esses pensadores da disciplina ampliaram a picada conceitual aberta por Clifford Geertz, que pro-
blematizou a relação do observador (etnógrafo) com o observado (informante).
Outro nó importante da crítica pós-moderna são os recursos metódicos que compõem o modelo
textual das etnografias contemporâneas.
A crítica centrada nesses nós atados da Antropologia virou-se para a politização do fazer e pensar
antropológicos, em especial para a crítica aos paradigmas teóricos e à autoridade do registro etnográ-
fico do antropólogo.
Na linha dos temas e conceitos problematizados, essa abordagem passou a conceber a cultura
como um processo polissêmico, aberto, multifacetado. Para os etnógrafos pós-modernos, uma etno-
grafia capaz de registrar esse multiverso teria que ser uma representação polifônica1 dessa polissemia
cultural. Ou seja, um conceito de cultura que não caberia em um modelo engessado, unidimensional e
estanque.
Nessa direção conceitual, a Antropologia Pós-Moderna veste-se de experimentações. Seus regis-
tros etnográficos ganham a forma de ensaios ou críticas culturais, nas observações micrológicas do
cotidiano e nas dobraduras culturais modernas.

1 Polissemia (poli, vários; semia, significado) Vários significados para uma mesma palavra; propriedade que uma mesma palavra tem de
apresentar vários significados. Polifonia é o fenômeno também conhecido como heterogeneidade enunciativa, que pode ser mostrada ou
constitutiva; simultaneidade de vozes ou sons; intertextualidade; interdiscursividade.
164 | Teorias Antropológicas

Novos cenários
A Antropologia Pós-Moderna, ao atingir de frente esses pilares, atinge também dois pressupostos
caros à Antropologia, na qualidade de ciência: o método de abordagem, na qual o antropólogo é um
observador privilegiado no campo de trabalho, sem se envolver com o seu objeto ou sujeito de estudo,
e a sua autoridade de cientista qualificado para uma observação neutra e distante, para não ter seu re-
lato etnográfico contaminado pelos seus valores.
Esses foram os pilares fincados nos primórdios da Antropologia, quando ela reivindicava sua
competência científica.
O antropólogo francês François Laplantine apontou essa mudança de viés (1987). Para ele, um
dos precursores dessa abordagem foi Georges Balandier. Em sua obra, Balandier traçava as linhas do
que chamou de Antropologia da Modernidade.
Segundo Laplantine, uma das maiores contribuições dessa abordagem antropológica foi ajudar
no deslocamento do foco da Antropologia, tirando-o das investigações tradicionais dos etnógrafos, e
de abrir novos focos de investigação. O antropólogo destaca como lócus especial, a cidade.
De acordo com Laplantine:
Correlativamente, essa Antropologia da Modernidade (segundo a expressão de Balandier), que instaura uma ruptura
com a tendência intelectualista da etnologia francesa, leva o pesquisador a interessar-se diretamente pela sua própria
sociedade. Finalmente, enfatizando a realidade conflitual das situações de dependência (econômica, tecnológica, mi-
litar, lingüística...), ela não opera apenas uma transformação do objeto de estudo, mas inicia uma verdadeira mutação
da prática da pesquisa. (LAPLANTINE, 1987, p. 146)

Laplantine aponta também para a ruptura metodológica proposta por essa nova abordagem an-
tropológica, em especial em relação ao antropólogo, ao etnógrafo. Ele passa a ser aquele que é capaz
de viver nele mesmo a tendência principal da cultura que estuda. O etnógrafo não se isenta das circuns-
tâncias que modelam a sociedade que ele estuda. Se as preocupações da sociedade são religiosas, “ele
próprio deve rezar com os seus hóspedes” (LAPLANTINE, 1987, p. 150).
Assim, a etnografia é antes a experiência de uma imersão total, consistindo em uma verdadeira aculturação invertida,
na qual, longe de compreender uma sociedade apenas em suas manifestações “exteriores” (Durkheim), devo interiori-
zá-la nas significações que os próprios indivíduos atribuem a seus comportamentos [...]. Essa apreensão da sociedade
tal como é percebida de dentro pelos atores sociais com os quais mantenho uma relação direta (apreensão esta, que
não é de forma alguma exclusiva da evidenciação daquilo que lhes escapa, mas que, pelo contrário, abre caminho para
essa etapa ulterior da pesquisa), é que distingue essencialmente a prática etnográfica – prática de campo – da do his-
toriador ou do sociólogo. (LAPLANTINE, 1987, p. 150)

Essa abordagem dá uma fisionomia própria para a Antropologia, que a distingue de outras dis-
ciplinas das ciências humanas (História e Sociologia). Isso se dá, de acordo com Laplantine, porque a
Antropologia só se dá com a descoberta etnográfica. Ou seja, com uma experiência direta que comporta
uma parte de aventura pessoal, no corpo a corpo do trabalho de campo (LAPLANTINE, 1987, p. 151).
A abordagem microssociológica passa a dar atenção aos resíduos considerados pouco dignos
de abordagens científicas. Ela provoca uma certa inversão temática, e passa a investigar as pequenas
ocorrências do cotidiano.
O etnógrafo interessa-se pelas condutas e comportamentos comuns, ordinários, cotidiano, tais
como os gestos, expressões corporais, hábitos alimentares e de higiene, o ruído e silêncio da cidade,
vestuário, poética urbana e rural.
Antropologia Pós-Moderna ou Crítica | 165

Diferente da Antropologia Clássica do final do século XIX e início do século XX, essa Antropologia
não está à busca de leis gerais, comportamentos uniformes da sociedade, mas no foco micrológico de
suas experiências cotidianas.
Sobre essa angulação surgida no campo da etnografia, Laplantine diz:
O que me parece importante sublinhar, finalmente, é que grande parte da renovação das ciências humanas contempo-
râneas deve-se incontestavelmente a sua abertura para nossa disciplina, que as influenciou (direta ou indiretamente)
designando-lhes novos terrenos de investigação e convencendo-as de que não deve haver, na prática científica, objeto
tabu [...] (LAPLANTINE, 1987, p. 155)

A Antropologia Pós-Moderna ou Crítica revê, em profundidade, pilares importantes da Antropo-


logia, já observados criticamente por Clifford Geertz, tais como a prática etnográfica, as relações entre
observadores e observados, o campo de abordagem das pesquisas antropológicas, o trabalho de cam-
po e ampliação do espectro temático de interesse da disciplina.
Isso significa que para a etnografia, como experiência simultaneamente perceptiva e lingüística da diferença, não po-
deria ser substituída pela indiferenciação de uma metalinguagem, pelo neutro da cultura ou da estrutura enquanto
neutralização da especificidade, daquilo que vemos e daquilo que nomeamos e que sempre é inédito, a descrição pura
não existe. Toda e qualquer descrição é uma descrição de (um autor) e uma descrição para (um leitor). Toda a descrição
se situa em relação a uma história, uma memória e um patrimônio sendo construída através do imaginário. Em suma,
a descrição é uma atividade de interpretação (ou se preferirmos de tradução) de significados mediatizados por um
pesquisador (que convém passar a chamar de autor) e destinada a um leitor (que é tão ator ou agente como aqueles de
quem se procura dar conta no texto etnográfico). Ela é descrição levada de um certo ponto de vista e dirigida a um des-
tinatário (o leitor que se torna por sua vez intérprete do texto que tem entre as mãos). (LAPLANTINE, 2004, p. 111-112)

Esboço das correntes pós-modernas


A exemplo de outras teorias ou conceitos de abordagens na disciplina antropológica, a Antropo-
logia Pós-Moderna não se constitui como um bloco coeso e único. Há diversas matrizes e formas distin-
tas de concebê-la e compreendê-la. As várias linhas de abordagem pós-modernas, apesar de aspectos
distintos, podem, não de forma rígida e congelada, ser enfeixadas em um conjunto de conceitos que
dão uma certa liga, tênue, mais perceptiva, em relação às correntes anteriores, em particular quanto à
relação do observador com o observado.
A denominada corrente meta2-etnografia ou meta-antropologia estuda a etnografia como gênero
literário, como um texto ensaístico. Ela dá ênfase às novas possibilidades de escrita etnográfica. Diferen-
te dos propósitos do início do século XX, que advogavam à etnografia um registro minucioso dos dados
coletados em campo, essa corrente advoga como parte do fazer antropológico a exploração do gênero
literário, da arquitetura textual: do estilo, estrutura e formas de conceber a narrativa e a mobilização de
um largo repertório de codificação textual (palavras, expressões, códigos).
A preocupação com elaboração textual da etnografia como crítica literária colocará a obra do
crítico alemão Walter Benjamin3 em um lugar de destaque na fronteira de eventos do universo da An-
tropologia Pós-Moderna ou Crítica.
2 O prefixo “meta” vem do grego e significa “após” ou “ esse que ultrapassa, que engloba”; designa uma noção que sucede a uma outra e que
a toma em consideração a posteriori.
3 Walter Benedix Schönflies Benjamin (Berlim, 15 jul. 1892 – Portbou, 27 set. 1940). Benjamin nasceu em uma rica família judaica-alemã. Ele
exerceu a crítica literária e foi um dos mestres do texto ensaístico e da arquitetura textual da narrativa. Suicidou-se, ante a perspectiva de
tornar-se prisioneiro do exército nazista. Benjamin foi uma das estrelas da Escola de Frankfurt. Publicou e traduziu importantes ensaios e
resenhas que lhe deram projeção e reconhecimento no âmbito da crítica literária.
166 | Teorias Antropológicas

A corrente que se denomina etnografia experimental centra seu estudo nas condições de obser-
vação participante do etnógrafo no campo de pesquisa, e nas suas relações com os sujeitos da pesqui-
sa. Muitos dos pressupostos erigidos na década de 1920 (do século passado) tais como neutralidade
axiológica, impessoalidade, imparcialidade, objetividade, em relação à observação participante, serão
revistos por essa corrente, que problematiza a complexa relação do etnógrafo com o sujeito de sua
observação antropológica.
Segundo Laplantine, a tensão se desloca para a relação mostrar versus demonstrar. Mais do que a
descrição cirúrgica de uma dada realidade, passa a ser fundamental a compreensão. Explicar, dentro do uni-
verso proposto nos anos 1920, não era mais o fundamental. A compreensão do quadro passa a ser determi-
nante. Isso muda a relação do antropólogo com a cultura que estuda, e os seus procedimentos em campo.
Não foi a Antropologia que fundou a etnografia, mas sim o contrário, a tal ponto que alguns mestres de nossa discipli-
na (penso em particular em Boas) consideram que qualquer síntese é sempre prematura e que muitos daqueles que,
no período contemporâneo, mais contribuíram para renovar a pesquisa, incluindo a pesquisa teórica – James Clifford
nos Estados Unidos, Jeanne Favret-Saada na França –, preferem qualificar-se de “etnógrafos”. Devemos enfim lembrar
aqui que a descrição etnográfica, que consiste mais em apresentar do que em representar, não se limita unicamente à
sua modalidade textual. Ela opera hoje em um dos campos em maior expansão na nossa disciplina, que é o campo da
museologia, uma atividade de conservação, de exposição e de restituição. (LAPLANTINE, 2004, p. 116)

Uma terceira corrente tida como vanguarda pós-moderna foca a crise dos pressupostos científicos
em geral, a crise dos paradigmas científicos, dos modelos teóricos e da prática científica.
Nessa linha de abordagem, advoga-se que tudo é possível no texto e no trabalho de campo, no
pensar e fazer antropológicos, desde que se promova uma ruptura com os procedimentos – conceituais
e operacionais – adotados no passado da Antropologia.
De modo elástico, pode-se considerar que a denominada Antropologia Pós-Moderna ou Crítica
lança seus holofotes conceituais para a questão do texto etnográfico – sua arquitetura e essência – para
a problematização da complexa relação entre o etnógrafo e o sujeito observado, e nas possibilidades
apresentadas no trabalho de campo – pensar e fazer – desde que se adote novos procedimentos que
impliquem ruptura com os procedimentos adotados pelas correntes antropológicas anteriores.
Em síntese, essa corrente propõe, em linhas gerais, a ruptura com os procedimentos historicamente
construídos pela disciplina, desde os seus primórdios, na metade do século XIX, quando a disciplina passa
a reivindicar um status científico, no âmbito das ciências humanas: desmistificação da etnografia clássica
como forma de produção de conhecimento da realidade factual; crítica à autoridade etnográfica; adoção
da experiência pessoal do etnógrafo à margem da teoria científica; admissão da intersubjetividade na re-
lação do etnógrafo com os informantes no trabalho de campo; admissão da influência do cenário onde se
desdobram a pesquisa nos dados coletados e as limitações impostas ao registro etnográfico; e, um aspec-
to central, a crítica à determinação de leis gerais para a compreensão do arco cultural das sociedades.
Como linha de defesa, a crítica concentra-se nos pressupostos do positivismo científico4 (base da
ruptura científica da Antropologia, com o período especulativo anterior), do reducionismo5 (restrição da
complexidade e diversidade humana) e do empirismo6. Em contrapartida a esses legados, a Antropolo-
gia Pós-Moderna reivindica um posicionamento humanista para o pensar e fazer antropológicos, com
ênfase ao caráter provisório – precários, transitórios, parciais – da análise cultural.

4 Positivismo científico: conceito que advoga o primado da ciência no processo de construção do conhecimento; proclama-se como o
verdadeiro saber científico.
5 Reducionismo: nome das teorias correlatas que defendem, em geral, que objetos, fenômenos, teorias e significados complexos podem ser
sempre reduzidos, a fim de explicá-los, à suas partes constituintes mais simples.
6 Empirismo: teoria que defende que todo o conhecimento deriva da observação e da experiência factual, concreta, real.
Antropologia Pós-Moderna ou Crítica | 167

James Clifford (1945) –


interfaces da Antropologia com a Literatura
O antropólogo norte-americano James Clifford é uma das principias figuras da Antropologia Pós-
Moderna ou Crítica. Desde os anos 1970, seus trabalhos influenciaram um universo expressivo de novos
etnógrafos e pesquisadores da cultura, em especial em suas críticas aos aspectos considerados conven-
cionais da disciplina antropológica.
Formado pela Universidade de Stanford, o antropólogo doutorou-se em história pela Universida-
de de Harvard, no final da década de 1970. Ele é professor de “História da Consciência” da Universidade
da Califórnia, em Santa Cruz. Clifford atua como professor visitante de Antropologia na London School of
Economics e na Universidade de Yale.
Clifford tem intensa participação no debate contemporâneo sobre a Antropologia, com a publi-
cação de livros fundamentais para a compreensão de sua abordagem antropológica, ensaios literários e
presença em palestras, em diversas instituições de ensino e pesquisa, pelo mundo afora.

A experiência etnográfica – Antropologia e Literatura


No livro A Experiência Etnográfica: Antropologia e Literatura no Século XX, James Clifford dá uma
visão geral de como ele concebe a prática etnográfica e sua compreensão sobre a interface existente
entre a Antropologia e a Literatura. Nesse texto, o antropólogo apresenta sua régua de produção textu-
al literária, na prática do fazer etnográfico.
Clifford parte da crítica à atuação do etnógrafo Maurice Leenhardt7, na Melanésia. Missionário,
Leenhardt produz sua etnografia atada ao seu compromisso de intervenção política e ideológica – nos
moldes adotados pelos colonizadores – na vida cultural dessa sociedade. A partir dessa experiência,
James Clifford tece suas reflexões sobre o discurso que sustenta o registro etnográfico.
Clifford se posiciona como um historiador da Antropologia. Ele adota uma posição eqüidistante
nas fronteiras móveis que separam a história da Antropologia da Literatura, epicentro de suas reflexões
conceituais.
Segundo Clifford, a idéias da Antropologia impregnam – viajam para – outras disciplinas. Dessa
forma, os aspectos literários desempenham papel de destaque na construção do discurso etnográfico.
Mais do que penduricalhos, eles constituem o próprio fazer etnográfico.
Assim, ele passa a estudar os processos de construção do texto etnográfico situados historica-
mente e dentro de universos culturais específicos. Clifford dá ênfase às condições de relacionamento
que envolve o etnógrafo, os “nativos” e as demais personagens que habitam o contexto colonial. Para
ele, a etnografia é um campo articulado pelas tensões, ambigüidade e indeterminações próprias do seu
contexto, de suas relações.
Clifford interessa-se pela área indeterminada e incerta que se cria entre a linguagem e a experi-
ência etnográfica. O antropólogo norte-americano criticou a suposta autoridade da etnografia como

7 Maurice Leenhardt (1878-1954); pastor protestante francês e etnógrafo. Teve um papel pioneiro na Antropologia francesa. Atuou como
missionário e etnógrafo na Melanésia, entre 1920 e 1930.
168 | Teorias Antropológicas

método privilegiado de investigação científica antropológica. Segundo ele, há uma forte equivalência
entre o etnógrafo e o seu informante de campo. A barreira instransponível que separava o antropólogo
do nativo rui ante a perspectiva apresentada pela reflexão de Clifford.
O livro mostrou-se provocativo no campo da Antropologia Cultural ao propor que a dimensão
literária é uma base constitutiva do discurso etnográfico e ao indicar uma equivalência radical entre o
etnógrafo e o informante. A construção do discurso antropológico até então “viajou” em direção contrá-
ria: a cientificidade – neutralidade e objetividade – do discurso etnográfico e, para tais fins, a separação
cirúrgica – imparcialidade – entre o etnógrafo e o seu informante.

A Poética e Política da Etnografia –


(Writing culture – the poetics and politics of ethnography)
Dentro do estilo ensaístico proposto pela Antropologia Pós-Moderna, nessa obra editada em
1986 (Writing Culture: the poetics and politics of ethography), os etnógrafos James Clifford e Georges Mar-
cus se debruçam sobre a produção de um qualificado grupo de intelectuais e pensadores – etnógrafos,
críticos literários, historiadores da Antropologia – para analisá-la.
O traço em comum entre esses intelectuais foram suas produções sobre etnografia, Antropologia
Interpretativa, etnografias de viagens, teoria literária e história.
Os autores analisaram pensadores do calibre de Goethe8, Malinowski e Evans-Pritchard. O objeti-
vo da análise era o estudo da produção literária desses autores, seus estilos e suas formas de represen-
tação do real.
A chave da crítica é, para os dois autores, a encruzilhada conceitual na qual se encontra a Antro-
pologia. Para eles, há uma crise na etnografia, que implica questões políticas e epistemológicas, em es-
pecial a autoridade dessas representações junto aos povos (culturas) representados em suas produções
etnográficas. Essas passam a ser contestadas, em todas as suas esferas, conceituais e práticas.
James Clifford e Georges Marcus – em seus ensaios provocativos – desafiam os pensadores das
áreas das ciências humanas e sociais a repensarem suas poéticas e políticas culturais, ante o cenário da
invenção criativa.
Para eles, a forma tomada pela etnografia nas primeiras décadas do século passado tornou-se
superada. No novo quadro, não basta apenas efetuar o registro criterioso e minucioso da realidade, pois
esses registros, na forma textual, não era a realidade, como se pensava. Mas, muitas vezes, uma pálida
alegoria desse real.
Essa distância entre o registro e o universo cultural registrado tira a autoridade do etnógrafo como
especialista da cultura estudada. Nas suas grades mentais estão os antropólogos Malinowski e Evans-
Pritchard, participantes de destaque na definição da Antropologia como ciência humana.

8 Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832); escritor alemão, cientista, filósofo e botânico. Goethe foi uma das personagens mais importantes
da literatura alemã e do Romantismo europeu (século XVIII e inícios do século XIX).
Antropologia Pós-Moderna ou Crítica | 169

A experiência etnográfica: Antropologia e Literatura no século XX (1998) –


confluência do Surrealismo com a Etnografia
James Clifford analisa no ensaio Sobre o Surrealismo Etnográfico a experiência do olhar de Walter
Benjamin. Para Clifford, Benjamin aproxima seu olhar das práticas etnográficas e do universo da Antro-
pologia Contemporânea.
Segundo Clifford, Benjamin tem uma lógica operativa que guia seus procedimentos “em campo”,
como observador privilegiado na Paris do século passado.
Para Benjamin, que considerava o Surrealismo como “o mais recente instantâneo da inteligência
européia”, esse movimento cultural mexeu profundamente com o Velho Continente, e modificaria seu
cenário político e cultural.
Correntes espirituais podem alcançar quedas suficientemente abruptas para permitirem ao crítico estabelecer a sua
“casa de fora”. Tais quedas proporcionam a diferença de nível existente entre a França e a Alemanha no tocante ao Sur-
realismo. É possível que aquilo que nasce no ano de 1919 na França, no círculo de alguns literatos – e vamos dar aqui
os nomes mais significativos: André Breton, Louis Aragon, Philippe Soupault, Robert Desnos, Paul Eluard – não tenha
sido mais que um ribeirinho estreito, alimentado pelo tédio úmido da Europa do pós-guerra e os últimos regatos da
decadência francesa. Os pseudo-sábios, que ainda hoje não ultrapassam os “princípios autênticos” do movimento e
que, mesmo hoje, nada sabem expressar senão a sua opinião de que aqui ainda uma vez uma “igrejinha” de literatos
se empenha em mistificar a honrada opinião pública, assemelham-se um pouco àquela reunião de peritos, que numa
fonte chegam, após madura reflexão, a convencer-se de que essa pequena nascente jamais terá forças para impelir
turbinas. (BENJAMIN, 1980, p. 75)

Essa arquitetura do olhar guarda relação direta com o Surrealismo – forma de percepção da reali-
dade – e com a etnografia – modo de ver a realidade, em movimento, plena de plasticidade e contornos
diversos.
Para Clifford, o ambiente cultural dos anos 1920 e 1930 de Paris provoca uma série de coinci-
dências entre os dois “métodos-movimentos” – Surrealismo e etnografia: lugares, nomes e livros são
comuns em ambas formas de observação: “A etnografia, a ciência do risco cultural, pressupõe um cons-
tante desejo de ser surpreendido, de desfazer sínteses interpretativas e valorizar – quando surge – o
inclassificável, o inesperado outro” (CLIFFORD, 1998, p. 169).
O antropólogo norte-americano persegue as interfaces entre o Surrealismo e a etnografia. Para
ele, o Surrealismo é “cúmplice secreto” da etnografia, na descrição – registro – na análise e na extensão
das “bases de expressão e do sentido no século XX” (CLIFFORD, 1998, p. 137).
Mais: os pensadores e poetas surrealistas se interessavam pelo mundo exótico, imponderável,
de uma certa Paris oculta. Suas peregrinações tornavam o familiar, estranho. Nessa ordem de fatores,
os surrealistas caminhavam na contramão dos etnógrafos, que procuravam tornar o não-familiar em
família.
Essa característica dos surrealistas não passará despercebida por outro comentador da obra de
Benjamin, Sergio Paulo Rouanet. Em uma passagem de seu livro, As Razões do Iluminismo, Rouanet ex-
plicita esse aspecto da obra “benjaminiana”:
A primeira seção de Paris, capital do século XIX, descreve o surgimento das passagens, a partir de 1922, essas gale-
rias recobertas de vidro, com paredes de mármore, ladeadas de lojas luxuosas, perfuradas entre blocos de casas, que
segundo a descrição de um guia da época constituíam “uma cidade, um mundo em miniatura”. A condição social do
aparecimento das passagens foi o florescimento da indústria têxtil, que leva, simultaneamente com as passagens, à
170 | Teorias Antropológicas

fundação dos primeiros “grandes magazines”, e a condição técnica é a utilização do ferro e do vidro como materiais de
construção. Assim como o Império, período em que esse material começou a ser usado, desconhecia a natureza do es-
tado como instrumento de dominação da burguesia, os primeiros construtores desconheceram a natureza inovadora
do ferro e o utilizaram para edificar suportes semelhantes a colunas de Pompéia, da mesma maneira que mais tarde
as estações ferroviárias imitariam chalés [...] As passagens, que na vida real serviam a fins mercantis, transformaram-se,
nos falanstérios, em lugares de moradia: o falanstério é uma cidade de passagens. (ROUANET, 1987, p. 51-52)

Esse aparente paradoxo é provocado pelo jogo contínuo entre familiar e estranho, do qual a et-
nografia e o Surrealismo faziam parte.
Segundo Clifford, as interpretações dos antropólogos tradicionais são inadequadas para o estudo
dos grupos à margem, quando esses entram em espaços históricos ou etnográficos. Suas trajetórias
humanas não resistem às pressões provocadas pelo capitalismo: suas características singulares, parti-
culares estavam presas aos seus passados tradicionais, sem conseguir produzir o novo, não inventavam
mais o seu futuro; o seu amanhã.
Por essa razão, essa Antropologia Tradicional era ineficaz na capturação dos aspectos particulares
desses grupos marginais.
Clifford se opõe ao conceito de uma cultura enlatada. Para ele, a cultura é um diálogo aberto, um
diálogo criativo e inovador, com subculturas e vetores em diversas direções.
Com essas características de cultura, em processo de ebulição e transformações, como a Paris da
década de 1920, a convergência do “olhar” e do interesse pelo exótico confluíam as miras dos surrealis-
tas e dos etnógrafos para experimentações comuns.

Michael Taussig (1940) – Antropologia e xamanismo


O antropólogo Michael Taussig doutorou-se pela London School of Economics e leciona na uni-
versidade norte-americana de Columbia. Seus interesses intelectuais vão da Antropologia Médica aos
estudos da obra do frankfurtiano9 Walter Benjamin.
Taussig desenvolveu diversos trabalhos de campo na América Latina: Colômbia e Bolívia estiveram
entre os países visitados pelo antropólogo. Sua intensa produção intelectual tem início nos anos 1980.
Entretanto, sua obra mais conhecida entre os brasileiros é Xamanismo, Colonialismo e o Homem
Selvagem (1993). Nessa obra, Taussig estuda a relação do mito e da magia com a violência colonial:
registros de torturas e massacres feitos pelos funcionários das companhias que exploravam a indús-
tria da borracha, no início da década de 1910, contra os povos da região do Rio Putumayo (Colôm-
bia). Taussig analisa os rituais xamânicos praticados com o Yagé (Ayahuasca), planta alucinógena da
região, cultivada pelos índios. Para tanto, ele mobiliza as teorias de Benjamin, entre outras teorias.
Elas são usadas como meios de aproximação de uma experiência cultural distinta, dentro de uma
perspectiva interdisciplinar.

9 A Escola de Frankfurt surgiu da iniciativa de um grupo de pensadores alemães, em 1923, com o nome de Instituto de Pesquisa Social de
Frankfurt. O objetivo do instituto era fazer uma crítica da sociedade, em geral: aspectos econômicos, culturais e de produção de conhecimento,
a partir de uma perspectiva marxista (Karl Marx, pensador revolucionário alemão, 1818-1883) renovada. Os principais membros da Escola de
Frankfurt foram Walter Benjamin (1892-1940), Max Horkheimer (1895-1973), Herbert Marcuse (1898-1979), Theodor W. Adorno (1903-1969) e,
mais recente, Karl-Otto Apel e Jürgen Habermas, como sua segunda geração.
Antropologia Pós-Moderna ou Crítica | 171

O livro é dividido em duas partes, segundo Taussig: terror e cura. Para Taussig:
[...] estes temas se comunicam na política da obscuridade epistemológica e na ficção do real, na criação dos índios, no
papel desempenhado pelo mito e pela magia em relação à violência colonial, bem como em relação à cura e no modo
como ela pode mobilizar o terror a fim de subverter essa violência, não através de catarses celestiais, mas fazendo com
que o poder se enrede em sua própria desordem. (TAUSSIG, 1993, p. 15)

Taussig se interessa pela interpretação e a representação desses fatos no universo imaginário dos
índios. Com base na teoria de Walter Benjamin – “a história que mostrava as coisas como elas ‘realmente
foram’ revelou-se o narcótico mais forte do nosso século” – (TAUSSIG, 1993, p. 15), Taussig centra-se na
narrativa histórica clássica e no poder imaginativo enfeixado nessas narrativas.
O pensamento de Benjamin cai como uma luva nessa nova arquitetura de narrar. Em O Narrador,
Benjamin dá as métricas da narração, que se aproxima, observado pelos etnógrafos pós-modernos, da
narrativa etnográfica crítica, mistura de objetividade e subjetividade descritivas.
A experiência que anda de boca em boca é a fonte onde beberam todos os narradores. E, entre os que escreveram
histórias, os grandes são aqueles cuja escrita menos se distingue do discurso dos inúmeros narradores anônimos. Entre
estes últimos, aliás, há dois grupos que certamente se cruzam de maneiras diversas [...] Se se quer personificar estes
dois grupos nos seus representantes arcaicos, então um está encarnado no lavrador sedentário e o outro no marinheiro
mercante. [...] O mestre sedentário e os aprendizes volantes laboravam juntos nas mesmas oficinas e todo mestre fora
aprendiz volante antes de se haver estabelecido em sua terra ou fora dela. Se camponeses e homens do mar tinham
sido velhos mestres da narração, a condição de artífice era sua academia. Nela se unia o conhecimento do lugar dis-
tante, como o traz para casa o homem viajado, como conhecimento do passado, da forma como este se oferece de
preferência ao sedentário. (BENJAMIN, 1980, p. 58)

A narrativa toma uma forma alegórica. Mais uma vez, Taussig dá a palavra a Benjamin: “O valor dos
fragmentos do pensamento é tanto maior quanto menos direto for o seu relacionamento com a idéia
subjacente, e o brilho da representação depende deste valor tanto quanto o brilho do mosaico depen-
de da qualidade da pasta de vidro” (TAUSSIG, 1993, p. 20).
Taussig procura a subjetividade do relato, mais do que uma suposta objetividade. A própria cons-
trução do texto mostra-se uma parte importante dessa forma de pensar e fazer antropológicos. O autor
experimenta uma aproximação intensa entre literatura e etnografia, na construção da narrativa antro-
pológica.
Taussig persegue a alegoria do terror pelo olhar de um preso em sua cela o espaço da morte: o
aprisionamento, a perda do contato com a realidade, o bloqueio do olhar. Segundo Taussig: “A maior
parte de nós conhece e teme a tortura unicamente através das palavras dos outros. Por isso preocupo-
me com a mediação do terror através de escrever eficazmente contra o terror” (TAUSSIG, 1993, p. 25).
Para reproduzir uma experiência não vivida por ele, Taussig procura arquitetar, seguindo as experi-
ências pós-modernas, um texto polifônico, com diversas vozes se intercalando e se sobrepondo, na cons-
trução de sua narrativa, como uma construção coletiva. Taussig denuncia o caráter alegórico dessa
construção, baseada na experiência literária, como tela de fundo. Nesse vai-e-vem, literatura se imiscui
com etnografia, que se imiscui com literatura, num movimento pendular.
A prisão torna-se a alegoria de uma sociedade onde a tortura é comum, e a população fica à mer-
cê dos seus algozes. Assim, no presente, a prisão se transfigura naquilo que foi no passado colonial, em
usina de tortura e fragilização físico e impositivo de um pequeno número de europeus sobre a imensa
maioria dos nativos.
172 | Teorias Antropológicas

Para ilustrar essa idéia, Taussig recorre a uma história chilena (o Imbuche):
[...] existe no campo chileno uma velha história sobre o que acontece quando uma criança é raptada pelas bruxas. A fim
de quebrar a vontade da criança, as bruxas quebram seus ossos e costuram as partes do corpo de maneira anormal. A
cabeça é virada para trás, de tal modo que a criança tem que andar de ré. As orelhas, os olhos e a boca são costurados.
Essa criatura, que recebe o nome de Imbuche, é usada como analogia para a relação entre a junta militar e o povo chi-
leno. (TAUSSIG, 1993, p. 26)

A alegoria é direta: para submeter o povo chileno, o governo militar “quebra os ossos da resistên-
cia”, e transforma o povo chileno num fantoche de retalhos.
Em sua obra, Taussig convoca as idéias de Artaud10 (“Se a confusão é sinal dos tempos, vejo na raiz
dessa confusão uma ruptura entre as coisas e o mundo, entre as coisas e as idéias e signos que cons-
tituem sua representação”), Joseph Conrad11 (O coração das trevas), Foucault12, o embaixador inglês
Casement13, entre outros, para pintar o “espaço da morte”.
Taussig mobiliza os recursos conceituais da crítica literária e das possibilidades dadas pela lite-
ratura – polifonia, polissemia, alegoria – para, dentro de um universo povoado pela narrativa oral dos
índios colombianos, traçar um painel social do terror – a tortura sistemática do colonizador sobre o
nativo – e a cura – ação xamânica praticada por esse povo.
A narrativa se desdobra num contexto histórico em que se mesclam subjetividade e objetividade
factual do etnógrafo e do nativo, de forma alegórica.
Em síntese, nessa obra singular, Taussig, ao trabalhar com a imagem do xamã, revela que não é
sua magia, mas as ficções politizadoras ou politizadas é que criam o efeito da realidade.

Considerações finais
Com as bases teóricas propostas pelos etnógrafos pós-modernos, o debate na Antropologia ga-
nhou novos contornos e dimensões conceituais, na década de 1980.
Essa nova abordagem proposta sacudiu os pressupostos históricos da disciplina, erigidos nas pri-
meiras décadas do século passado, e indicou novas possibilidades teóricas: a interpretação da realidade
factual como possibilidade e não como algo determinado.
Por esse ângulo, cabem as subjetividades do etnógrafo e a do observado, questão impensável
para a metódica e metodologia da década de 1920.
Os seus mentores passam a exercitar a meta-etnografia, em que a própria produção etnográfica
passa a ser analisada. Isso leva a etnografia a flertar com a crítica literária e com a tessitura do texto lite-
rário: estilo, estrutura narrativa e sistemas de codificação etnográficos.

10 Antoine Marie Joseph Artaud (1896-1948) foi um poeta, ator, escritor, dramaturgo, roteirista e diretor de teatro francês. Ligado ao Surrealismo,
foi expulso do movimento por ser contrário à filiação ao partido comunista. Sua obra O Teatro e seu Duplo é um dos principais escritos sobre a
arte do teatro no século XX.
11 Joseph Conrad, nome verdadeiro Józef Teodor Nałęcz Korzeniowski (1857-1924), escritor britânico de origem polonesa.
12 Michel Foucault (1926-1984), filósofo e professor da cátedra de História dos Sistemas de Pensamento no Collège de France desde 1970 a
1984. Autor de História da Loucura e História da Sexualidade. Uma de suas obras mais importantes é Vigiar e Punir.
13 Roger David Casement (1864-1916), patriota irlandês, poeta, revolucionário e nacionalista irlandês e diplomata inglês. Denunciou os abusos
dos direitos humanos no Congo e no Peru por empresas de extração de borracha.
Antropologia Pós-Moderna ou Crítica | 173

Os estudos dos resíduos considerados indignos pelas ciências humanas são estimulados, como
forma de apreensão do contexto estudado e de sua compreensão, além das relações epidérmicas, de
pele, exteriores.
Um conjunto de idéias passa a ser privilegiado por essa etnografia: debate sobre a forma do dis-
curso etnográfico e suas implicações para a apreensão da realidade; politização da relação etnógrafo
versus observado, e ruptura com a reivindicada neutralidade axiológica do pesquisador no campo de
trabalho; relativização da autoridade do etnógrafo em relação à cultura estudada, onde se apresenta
uma equivalência quase que radical entre o etnógrafo e o “nativo”; o destaque ao caráter polissêmico
da cultura.
A Antropologia Pós-Moderna propõe a revisão de vários aspectos centrais da disciplina e, por
essa razão, contribui com a ampliação do espectro de abordagem etnográfica das suas possibilidades
de apreensão e compreensão.

Texto complementar
A etnografia como gênero literário
(GOMES JÚNIOR., 2008)
É oportuna a publicação deste livro do historiador James Clifford, coletânea de ensaios organi-
zada por José Reginaldo Santos Gonçalves, que assina a apresentação e conduz uma esclarecedora
entrevista com o autor no final do volume. Conhecido nos meios antropológicos brasileiros há pelo
menos uma década, faltava uma edição que desse conta, ao menos em parte, de seu trabalho acer-
ca da história das idéias e das práticas que caracterizaram a antropologia do século XX.
O editor brasileiro optou por não traduzir nenhum dos livros publicados originalmente pelo
autor, mas, dos seis ensaios de A Experiência Etnográfica, quatro constam da coletânea de 1988, The
Predicament of Culture: Twentieth-Century Ethnography, Literature and Art. Cabe uma dúvida quan-
to a essa opção: apesar de Clifford declarar na “Introdução” o caráter exploratório e inacabado da
coletânea de 1988, os ensaios que lá estão travam entre si um nítido diálogo, como, por exemplo,
On Ethnographic Surrealism e On Collecting Art and Culture. A despeito da natureza complementar
dos dois textos, apenas o primeiro é traduzido. Além disso, perdem-se, entre outros, escritos sobre
Victor Ségalen, Michel Leiris, Aimé Césaire e Edward Said.
Apesar de suas muitas facetas é possível distinguir no livro dois blocos. O primeiro, composto
por “Sobre a Autoridade Etnográfica”, “Sobre a Alegoria Etnográfica” e “Sobre a Automodelagem
Etnográfica: Conrad e Malinowski”, é talvez o que já produziu mais ressonâncias no Brasil, pois apre-
senta uma visão crítica, bastante ampla, tanto das práticas de campo quanto das práticas textuais
que dominaram a Antropologia no século XX. Já o segundo bloco tem a aparência de ser mais res-
trito, pois versa especificamente sobre a Antropologia francesa entre as duas grandes guerras e
174 | Teorias Antropológicas

traz ensaios que tratam das relações do Surrealismo com a etnografia e das experiências de campo
de Marcel Griaule e Maurice Leenhardt, nomes menos conhecidos fora da França. Mas, apesar da
especificidade, são um contraponto bastante interessante ao consenso etnográfico dissecado nos
primeiros ensaios do livro.
No começo do século, constituiu-se uma rotina que modelou o perfil do antropólogo profis-
sional, de forma quase hegemônica, até os anos 1960. A antiga separação entre o pesquisador de
campo e o antropólogo foi posta em questão e a experiência de campo (visto como uma espécie
de laboratório), com forte caráter iniciático, tornou-se uma exigência. Malinowski em Trobriand foi
o modelo para as gerações futuras: um pesquisador solitário em meio aos nativos, dominando sua
língua e atento para as rotinas da vida cotidiana, tornava-se apto para produzir um conhecimento
holístico da sociedade em questão. Conhecimento com um duplo fim: por um lado, serviria de base
para a ciência do Homem; por outro, garantiria o registro que funcionaria como sucedâneo para
uma perda irreparável. Os trobriandeses desapareceriam enquanto tal, mas o registro do etnógrafo
resgataria a memória que eles, ágrafos, seriam incapazes de preservar, o que, para Clifford, consti-
tui-se numa das pedras angulares da Antropologia do século XX: a construção retórica da idéia do
primitivo em extinção.
Os povos que fizeram a fortuna do pensamento antropológico foram assim constituídos en-
quanto entidades isoladas e descritos em um estado de pretensa pureza. Bastante preocupado em
não ser confundido com o missionário, o viajante ou o funcionário do governo colonial, o etnógrafo
buscou construir em torno de si mesmo a aura de uma experiência voltada para um conhecimento
objetivo. Para isso, uma estratégia textual decisiva dizia respeito ao apagamento dos indícios que
pudessem macular a pureza do encontro entre o pesquisador e os nativos: nada era dito sobre os
preparativos da expedição, sobre a eventual posição de força do governo colonial propiciando a
estada do etnógrafo, ou sobre as interferências decisivas dos informantes nativos. E ficava de fora,
principalmente, o intenso processo subjetivo, pleno de ambivalências, vivenciado pelo etnógrafo. O
caráter negociado, polifônico, tateante, do conhecimento produzido em campo dava lugar no texto
a um monólogo autoral com um mínimo de fissuras.
Pressionado pelas transformações decorrentes da descolonização e da emergência dos mo-
vimentos das minorias e dos direitos civis, esse modelo começou a viver seu ocaso a partir dos anos
1960. Nesse novo cenário, marcado por um intenso translado de povos, de experiências e saberes,
produziu-se uma fabulosa multiplicação de vozes, e o monólogo que caracterizou a etnografia até
então passou a soar como um anacronismo.
De forma bastante abreviada, é esse o eixo de preocupações que conduz a primeira parte de
A Experiência Etnográfica e que se constitui no núcleo mais conhecido do pensamento de Clifford.
Mas há que se falar também de seus estudos franceses.
Até recentemente, a tradição francesa esteve como que sob suspeita, já que suas mais respei-
táveis figuras do campo antropológico, Mauss e Lévi-Strauss, não seguiram os protocolos hegemô-
nicos da Antropologia Anglo-Americana.
O primeiro foi um grande incentivador da pesquisa de campo, mas não a praticou; o segundo,
apesar de ter escrito um dos mais famosos livros no qual a aventura etnográfica ocupa o centro, não
fez no interior do Brasil quase nada daquilo que a rotina etnográfica dos anos 1930 prescrevia. No
que diz respeito ao campo por excelência da etnografia francesa, o fato de o africanismo ter des-
Antropologia Pós-Moderna ou Crítica | 175

lanchado apenas com a Missão Dakar-Djibouti, em 1931, já foi interpretado, por exemplo, como o
resultado da morte prematura de muitos discípulos de Durkheim e Mauss na Primeira Guerra Mun-
dial. Mas os dados trazidos à tona pela interpretação de Clifford mostram que talvez o destino da
pesquisa antropológica na França deva ser visto por meio de outros parâmetros.
Não é possível considerar como simples coincidência biográfica o fato de os membros mais
proeminentes da Missão Dakar-Djibouti, como Marcel Griaule, Michel Leiris e André Schaeffner te-
rem sido colaboradores das revistas Documents e Minotaure (que dedicou um número especial à
missão), editadas por Bataille e egressas da vanguarda surrealista; nem acaso o fato de Bataille ter
sido vinculado por toda vida a Alfred Métraux; nem algo aleatório o fato de o museu do Trocadéro
ter sido um lugar de inspiração e pesquisa fundamental para Picasso e outros artistas. Paris entre as
duas guerras foi um laboratório vivo da “etnografia surrealista”. O exotismo não vinha só da África,
estava ali mesmo, nas ruas de “Le Paysan de Paris”, de “Nadja” ou no mercado das pulgas. A reflexão
antropológica era produzida nos seminários de Mauss, Dumézil e Granet, na Sorbonne, na École
Pratique e no Collège de France, mas também no café do Quartier Latin, onde se reunia o Collège de
Sociologie de Bataille e Caillois.
Clifford não arrisca a idéia de um Marcel Mauss surrealista, mas demonstra muito bem a varie-
dade vertiginosa dos temas de suas aulas, freqüentadas por surrealistas e etnógrafos em formação,
sua “confusão inspirada”, seu caráter boêmio, a ponto de sugerir que uma de suas famosas frases,
aquela que incita à procura das “luas mortas ou pálidas no firmamento da razão”, poderia ser consi-
derada um sumário da “etnografia surrealista”.
O que me parece sugestivo na visada de Clifford sobre a Antropologia na França, particular-
mente seus estudos sobre Griaule, Leiris e Leenhardt, é que não emerge a idéia de uma experiência
fracassada, seja porque Griaule teve uma visão performática da etnografia, concebida enquanto um
trabalho de equipe, seja porque Leiris fez da etnografia uma viagem altamente subjetiva, seja por-
que Leenhardt articulou perigosamente o papel de missionário e de etnógrafo e, a despeito disso,
foi quem sucedeu Mauss na prestigiosa cadeira de etnologia na École Pratique. A França aparece
assim como um espaço dissonante dentro do consenso etnográfico da primeira metade do século,
espaço que agora deixa de parecer tão exótico quando ficamos sabendo um pouco mais, por exem-
plo, sobre as etnografias de Malinowski e de Margareth Mead.
No panorama da etnografia francesa traçado por Clifford resta um ponto de interrogação.
Curiosamente, Lévi-Strauss aparece em uma posição secundária, seja quando o assunto é o Surrea-
lismo ou quando são abordadas as rotinas de campo dos etnógrafos. No primeiro caso, Lévi-Strauss
é referido mais como alguém de fora que, posteriormente, interpretando Mauss como protoestru-
turalista acaba por subtraí-lo do contexto da “etnografia surrealista”, aparentemente avessa aos sis-
temas. Quanto ao trabalho de campo, não há como não lembrar de Tristes Trópicos, quando Clifford
descreve os protocolos dominantes na época. O fato de nele estarem expostos todos os andaimes
da expedição, de ser escrito como autobiografia e ter a forma de narrativa de viagem, faz desse livro
um verdadeiro exotismo frente à rotina textual da época.
Lévi-Strauss poderia muito bem ser levado em conta, como um contraponto, nas reflexões
que tratam de Griaule e Leiris, pois suas etnografias têm muitos pontos de contato no que diz res-
peito ao ritmo, às preocupações estéticas e ao objetivo de formar coleções. Além disso, seus víncu-
los com os surrealistas foram bem mais intensos do que os descritos por Clifford. Não apenas alguns
176 | Teorias Antropológicas

acidentes biográficos, mas algo que, em alguma medida, ficou entranhado no próprio método. Mas,
pelo visto, essa é uma história que ainda está para ser desvendada.
James Clifford pertence a uma corrente de estudiosos que se voltou para a interpretação do
próprio conhecimento do qual é caudatária. Os trabalhos de Clifford Geertz, no campo antropológi-
co, e de Hayden White, nos estudos históricos, são talvez as principais referências dessa tendência.
Deve-se a ela uma consciência aguda da retórica que articula o discurso das ciências humanas, e o
resultado dessa consciência, que mescla ironia e ceticismo, tende a ser duradouro. Só espero que
não seja paralisante, já que muita consciência da linguagem às vezes pode produzir afasia. E espero
que o reconhecimento da etnografia também como “gênero literário” não incite a aventuras pouco
rigorosas em fronteiras discursivas.
Mas isso não me parece um grande risco, pois os antropólogos também sabem ser exigentes.
Bom exemplo disso talvez seja o comentário de Lévi-Strauss sobre seu mais famoso livro, por acaso
aquele que faz uso dos registros literários mais variados. De Tristes Trópicos, disse ele, certa vez, que
parecia coisa de estudante gazeteiro.

Atividades
1. Qual a importância da Etnografia na abordagem antropológica pós-moderna?
Antropologia Pós-Moderna ou Crítica | 177

2. A Antropologia Crítica propõe uma mudança profunda na relação observador/observado apoiada


por várias linhas de abordagem pós-moderna. Quais são elas?

3. Explique a análise de James Clifford sobre autoridade etnográfica.


178 | Teorias Antropológicas
Antropologia Urbana –
o antropólogo e a cidade
A Antropologia deslocou seu foco de observação dos países – e sociedades – considerados “exóti-
cos” para o seu próprio quintal: a sociedade contemporânea. A cidade passou a ocupar um lugar de des-
taque como locus – local – privilegiado de observação dos fenômenos sociais. Saem de cena os povos
“primitivos” e ocupam seu lugar as chamadas “tribos urbanas”, atores sociais urbanos, suas realizações
– físicas e culturais – e implicações.
Colocaram-se logo de cara dois problemas centrais para serem equacionados pelo antropólogo:
sua posição de observador, como parte integrante do seu objeto/sujeito de investigação e estudo, e o
desenvolvimento de uma metodologia – metódica, abordagens e categorias de análises – adequada ao
novo “ecossistema social”.
Com seus profundos problemas, a cidade assume um lugar especial como local de estudo e pes-
quisas antropológicas. A Antropologia vira sua lente de investigação para os problemas urbanos das
sociedades modernas e industriais e os impactos nas formas de organização política, social, econômica
e cultural.
Nos centros urbanos dos diversos países – centrais e periféricos – acumulam-se problemas de
infra-estrutura e de organização do mundo cultural e material. Convergências e divergências rasgam
o tecido da sociedade e expõem suas mazelas e idiossincrasias1, sociais e culturais. Formulam-se várias
formas de abordagens e metodologia: dos operadores de políticas públicas aos pesquisadores das ci-
ências humanas.

1 Idiossincrasia: temperamento peculiar, hábito corporal; maneira pessoal de reagir à ação de agentes externos; comportamental própria de
um indivíduo ou grupo responsável pela interpretação de uma situação de acordo com sua cultura e formação.
180 | Teorias Antropológicas

Estado da arte nas cidades contemporâneas


As cidades contemporâneas são atravessadas por profundas fissuras sociais. A concentração po-
pulacional – provocada em grande parte pelo deslocamento das populações rurais – nos grandes cen-
tros urbanos dos países periféricos provocou desequilíbrios e uma forma de consumo predatório dos
bens sociais e naturais.
Em quase todas as grandes cidades do mundo, o sistema de transporte público vive um colapso,
em horas de “engarrafamento”: precariedade do sistema público (ônibus, metrô, trem), abundância de
transporte alternativo e privado (veículos de pequeno, médio e grande porte), altos índices de morbi-
dade (acidentes com o envolvimento de pequenos e grandes veículos) e stress2, com impacto na saúde
física e mental da população.
As formas de poluição (visual, social e do ar) articulam-se, com conseqüências danosas ao orga-
nismo. Faltam sistemas de saneamento (água potável e esgotos encanados), de coleta de lixo e de as-
sistência social. As áreas de mananciais – onde se encontram os reservatórios que abastecem as cidades
– são ocupadas e degradadas. O mesmo ocorre com as pequenas áreas de mata atlântica, derrubadas
para a construção de condôminos de alto padrão ou para moradias irregulares, nas franjas das matas
ou encostas.
A concentração de renda, cultura e poder é outro aspecto central dos desequilíbrios nas grandes
cidades. Pequenos oásis3 de riqueza são cercados por grandes concentrações de moradias precárias –
favelas, cortiços, barracos e moradia de rua. Essa concentração de riquezas implica a concentração de
cultura – bibliotecas, cinemas, teatros, escolas, centros culturais – e de lazer. Reduzidas áreas de excelên-
cia – material e imaterial – bóiam em meio à pobreza e à carência.
Os aparelhos sociais – escolas públicas, hospitais, creches, postos de saúde – estão concentrados
nas manchas sociais de melhor poder de compra e consumo.
Nas áreas em que os braços do estado não chegam, pipocam as segregações sociais e os altos
índices de violência.
No mesmo cenário de degradação emergem centros de alta tecnologia e de prestação de servi-
ços: tecnologias avançadas nas áreas de informação e comunicação – dotadas de portabilidade, flexibi-
lidade e conectividade – como o sistema de telefonia e televisão digitais.
Nessas pequenas áreas da cidade constroem-se sofisticados pólos financeiros e sistemas de distri-
buição de serviços sociais com alto valor agregado. Os locais públicos próximos das áreas de excelência
são privatizados, em prejuízo à ocupação dos espaços públicos.
É nesse cenário eivado de contradições materiais e imateriais, de fluxos ininterruptos de elemen-
tos contraditórios, de convergências e divergências, de polaridades e conflitos que o antropólogo-
etnógrafo calibra suas lentes de observação.
Diversos centros acadêmicos e sociais procuram elaborar formulações teóricas e práticas que
possam dar respostas aos problemas empíricos e conceituais – das abordagens e intervenções – do
cenário urbano, suas dinâmicas e suas múltiplas relações.

2 Estresse ou stress: pode ser definido como a soma de respostas físicas e mentais de uma incapacidade de distinguir entre o real e as experiências
e expectativas pessoais; resultado de uma reação que o organismo tem quando estimulado por fatores externos desfavoráveis.
3 Área isolada de vegetação no deserto; metaforicamente significa área de conformo, ante o caos.
Antropologia Urbana – o antropólogo e a cidade | 181

Cidade em foco
A Revista Comciencia4 – número 29, março de 2002 – traz um pequeno cardápio dos principais
problemas das cidades contemporâneas. A publicação procurou investigar os problemas da cidade sob
diversos prismas e matizes: as revitalizações de áreas degradadas, a importância do estatuto da cidade,
os programas habitacionais com foco na qualidade de vida, o déficit habitacional dos grandes centros
urbanos, as novas possibilidades de planejamento e organização do espaço urbano, os velhos proble-
mas das novas metrópoles, a tensão e problemática da relação centro versus periferia, a qualidade da
água, a qualidade da coleta do lixo, a qualidade da preservação ambiental, os problemas da educação,
e as tecnologias de inclusão social.
Na apresentação desse número, o diretor de redação do periódico, Carlos Vogt, explica que
as cidades, em sua tendência progressiva ao gigantismo, são produto da Revolução Industrial, em particular da cha-
mada Revolução Científico-Tecnológica, ocorrida na segunda metade do século XIX e que configuraria o mundo, já na
passagem para o século XX, tal qual hoje o conhecemos: a eletricidade, os derivados do petróleo, os veículos a motor
de combustão interna, as indústrias químicas, os transportes urbanos, interurbanos e intercontinentais, o rádio, a fo-
tografia, o cinema, o fonógrafo, mais tarde, na década de 1920, a televisão e os grandes parques de diversão e lazer
destinados ao entretenimento de uma população de trabalhadores, cada vez maior nas cidades, vivendo das novas
formas de trabalho próprias da economia industrial. (VOGT, 2002)

Em seguida, Vogt aponta para o fenômeno que provoca o inchaço das grandes cidades:
De fato, estamos, pela primeira vez na história da humanidade, na iminência de vermos, nos próximos anos deste início
de século, a população das cidades superar a população do meio rural, sendo que, em 2025, segundo projeções da
ONU, essa inversão já mostrará um índice populacional de 61% concentrado em espaços urbanos. [...] Em 1950, não
havia no mundo mais do que 7 cidades com população superior a 5 milhões de habitantes; hoje, são dezenas. Havia
apenas 100 cidades com mais de 1 milhão de habitantes; hoje, elas se multiplicaram a ponto de, em 2025, de acordo
com a ONU, terem uma previsão de 527, e o que é pior, a grande maioria localizada em países subdesenvolvidos ou em
desenvolvimento. (VOGT, 2002)

O cenário aponta para um futuro desalentador:


Pobreza crescente, desemprego, exclusão, violência, criminalidade, desespero, imobilidade social, legados de desespe-
rança de pais para filhos, de geração para geração, incapacidade de intervenção do Estado na formulação e na orien-
tação de políticas públicas fortes e eficazes nas áreas sociais e culturais, por ter cedido às corporações empresariais o
salvo-conduto permanente da livre circulação de seus interesses focados no lucro, na circulação do capital financeiro e
na concentração da riqueza produzida, numa escala jamais vista. (VOGT, 2002)

Como contraponto, Carlos Vogt propõe, em forma de chamamento:


É preciso não fechar e manter vivos os caminhos que nos levam, pela memória, aos lugares sagrados da experiência
única e individual de nossa infância para não perdermos a força mágica que nos solidariza com a natureza e com a
sociedade. [...] Não podemos permitir que se destruam os santuários que, assim, surgiram, por esses caminhos e que
5
fazem ressurgir, como escreveu Cesare Pavese , “na memória do homem os lugares da infância, aos quais se ligam
acontecimentos que lhe emprestam o caráter único e que os distinguem do resto do mundo por este selo mítico”. [...]
Que as cidades não sejam clausura da memória! (VOGT, 2002)

4 “Revista Eletrônica de Jornalismo Científico”, do Labjor – Laboratório de Jornalismo Científico da Universidade Estadual de Campinas (http://
www.comciencia.br/reportagens/framereport.htm). Publicação da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência – SBPC/Labjor – que
divulga reportagens interativas sobre ciência e tecnologia.
5 Cesare Pavese (1908-1950), escritor e poeta italiano.
182 | Teorias Antropológicas

A produção da globalização e as cidades


O debate sobre a cidade e suas implicações tornou-se mais complexo com o advento de um fe-
nômeno antigo, mas que se acentuou, com novas formas de conteúdos: a globalização. Desde o final da
década de 1980, com a adoção do denominado Consenso de Washington6, intensificaram-se as discus-
sões sobre a globalização – mundialização para os franceses – e os novos cenários criados, nos países
centrais e nos periféricos. O geógrafo Milton Santos não se furtou a esse debate.
Em sua obra intitulada Por uma outra Globalização: do pensamento único à consciência universal,
Santos adverte:
A globalização é, de certa forma, o ápice do processo de internacionalização do mundo capitalista. Para entendê-la,
como, de resto, a qualquer fase da história, há dois elementos fundamentais a levar em conta: o estado das técnicas e
o estado da política. (SANTOS, 2001b, p. 24)

Santos discorre sobre o estágio das técnicas e as condições políticas favorecedoras da globaliza-
ção. Segundo ele, há um número de fatores que explicam a “arquitetura da globalização”, da produção
da globalização:
A unicidade da técnica, a convergência dos momentos, a cognoscibilidade do planeta e a existência de um motor único
na história, representado pela mais-valia globalizada. Um mercado global utilizando esse sistema de técnicas avançadas
resulta nessa globalização perversa. Isso poderia ser diferente se seu uso político fosse outro. (SANTOS, 2001b, p. 24)

Entretanto, o que despertará a ênfase da crítica de Santos é que sobre essa base material se constro-
em versões desse processo, em que há a ocorrência de três mundos num só. A contradição dos elementos
materiais e imateriais nas sociedades contemporâneas produz três versões de mundo, ao mesmo tempo:
De fato, se desejamos escapar à crença de que esse mundo assim apresentado é verdadeiro, e não queremos admitir
a permanência de sua percepção enganosa, devemos considerar a existência de pelo menos três mundos num só. O
primeiro seria o mundo tal como nos fazem vê-lo: a globalização como fábula; o segundo seria o mundo tal como ele é:
a globalização como perversidade; e o terceiro, o mundo como ele pode ser: uma outra globalização. (SANTOS, 2001b,
p. 18)

Santos destaca as contradições profundas provocadas pelo processo de globalização – a co-


existência de elementos contraditórios num mesmo espaço geográfico, os conflitos permanentes entre
esses elementos contraditórios, os movimentos internos e externos provocados pelos choques desses
elementos, os movimentos micro e macro do sistema e suas superações possíveis – e a possibilidade de
percepções distintas de uma mesma realidade.

6 A expressão Consenso de Washington – neoliberalismo – nasceu em 1989, criada pelo economista inglês John Williamson, ex-funcionário
do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional (FMI). Numa conferência do Institute for International Economics (IIE), em Washington,
Williamson listou regras políticas que o governo dos Estados Unidos preconizava para a crise econômica dos países da América Latina. Por
decisão do Congresso norte-americano, as medidas do Consenso de Washington foram adotadas como imposições na negociação das dívidas
externas dos países latino-americanos. Acabaram se tornando o modelo do FMI e do Banco Mundial para todo o planeta. Regras: disciplina
fiscal, redução dos gastos públicos, reforma tributária, juros de mercado, câmbio de mercado, abertura comercial, investimento estrangeiro
direto, com eliminação de restrições, privatização das estatais, desregulamentação (afrouxamento das leis econômicas e trabalhistas), direito
à propriedade.
Antropologia Urbana – o antropólogo e a cidade | 183

Diferenças territoriais e reorganização das cidades


Em outra obra – O Brasil: território e sociedade no início do século XXI –, Santos mostra em seis pares
distintos de categoria como estão divididos os quatro Brasis (regiões e suas funções na organização do
território):
::: zonas de densidade e de rarefação;
::: fluidez e viscosidade;
::: espaços de rapidez e da lentidão;
::: espaços luminosos e espaços opacos;
::: espaços que mandam e espaços que obedecem;
::: as novas lógicas que regulam a relação centro – periferia.
Poderíamos assim, grosseiramente – e como sugestão para o debate – reconhecer a existência de quatro Brasis: uma região
concentrada, formada pelo Sudeste e pelo Sul, o Brasil Nordeste, o Centro-Oeste e a Amazônia. (SANTOS, 2001a, p. 268)

Dessa forma, Santos aponta as diferenciações regionais da urbanização do país:


Mas, recentemente, todas as áreas do país conheceram um revigoramento do seu processo de urbanização, ainda que
em níveis e formas diferentes, graças às diversas modalidades do impacto da modernização sobre o território. A situa-
ção anterior de cada região pesa sobre os processos recentes. (SANTOS, 2001a, p. 273)

Nas obras de Santos podem ser observados dois movimentos na reorganização das regiões do
país e na construção de suas diferenciações no processo de urbanização: o movimento macro – sob
o impacto da globalização – no âmbito das regiões, que implicam concentração de riqueza, cultura e
poder em um pólo, em detrimento do outro; e um movimento no âmbito das relações rurais e urbanas,
com as redefinições produtivas das cidades, para a compreensão do quadro de segregação e violência
registradas nas grandes áreas urbanas do país.
A ocupação do território, os seus movimentos internos e externos, macros e micros, produziram
cidades cindidas, apartadas, divididas e segregacionistas.

Dimensão da tragédia urbana, segundo Ermínia Maricato


Na mesma edição sobre as cidades da Revista Comciencia, a professora-titular da Universidade de
São Paulo Ermínia Maricato7 – autora do livro Brasil Cidades: alternativas para a crise urbana – fez uma
reflexão sobre “as dimensões trágicas da urbanização no país”.
Ermínia Maricato sinaliza os aspectos contraditórios da evolução dos indicadores sociais do Bra-
sil. Tendo como base os indicados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), ela salienta
que, desde a década de 1940, ocorreram a queda da mortalidade infantil, o aumento da expectativa
de vida e a redução do número de filhos por mulheres em idade fértil. Outros aspectos positivos foram,
segundo a autora, a melhora do nível de escolaridade registrada no período e o aspecto positivo desses
indicadores na melhoria da qualidade de vida da população.

7 Ermínia Maricato é professora titular, coordenadora do Curso de Pós-Graduação da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP (http://
www.usp.br/fau/docentes/depprojeto/j_whitaker/artigos.html) e do Laboratório de Habitação e Assentamentos Humanos da Faculdade de
Arquitetura e Urbanismo da USP (http://www.comciencia.br/reportagens/framereport.htm).
184 | Teorias Antropológicas

Ela indica o processo de acomodação – arranjo sinalizado por diversos estudiosos – que se deu
em diversos momentos importantes da história brasileira, que modelaram a feição da sociedade: Inde-
pendência (1822), Constituição (1824), Lei da Terra (1850), “libertação” dos escravos (1888), e a Procla-
mação da República (1889).
Apesar do crescimento do período (crescimento de 7% ao ano do Produto Interno Bruto – média
da riqueza nacional8), em razão das circunstâncias políticas apontadas, a renda foi mal divida.
Segundo Ermínia Maricato,
Nesse período, as grandes metrópoles, especialmente São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte, eram vistas como
a alternativa de melhora das péssimas condições da vida rural. Um gigantesco movimento migratório foi o principal
responsável por ampliar a população urbana em 125 milhões de pessoas em apenas 60 anos. Em 1940, cerca de 18,8%
da população brasileira era urbana. Em 2000 essa proporção é de 82%, aproximadamente, o que permite classificar o
Brasil com um dos países mais urbanizados do planeta sendo que perto de 30% dessa população vive em apenas 9
metrópoles. (MARICATO, 2002)

Mesmo com a concentração de renda, Ermínia diz que o processo de industrialização/urbaniza-


ção foi um fator determinante para melhorar as condições sociais do país, com a expansão da rede de
água tratada, aumento do uso de antibióticos, da escolaridade materna, do atendimento à gestante, do
acesso à informação, da expansão do emprego industrial e de um relativo acesso aos direitos trabalhis-
tas urbanos.
Em 1940, as cidades pareciam ser a promessa da superação do Brasil arcaico rumo à modernização e emancipação po-
lítica e econômica. A qualidade de vida em São Paulo, por exemplo, foi observada por vários visitantes, dentre os quais
o antropólogo Claude Lévi-Strauss em seu livro Saudades de São Paulo. O Eldorado era mais do que uma promessa
para aqueles que vinham em busca de uma vida melhor. Era realidade, como bem reflete Valter Rogério em seu filme
Marvada Carne. A vida na periferia urbana dos anos 1960 ou 1970 não era tão boa quanto na cidade oficial, mas era
possível reunir os amigos e vizinhos para um churrasco e uma cerveja (na vida da roça a carne era um alimento raro).
As casas, produto do esforço autônomo dos moradores e de seus amigos nos fins de semana, nos loteamentos ilegais
da periferia, embora apresentando deficiências, eram honestas e dignas. Melhoravam com os pequenos investimentos
provenientes das férias e do 13.º salário, ao longo de muitos anos. (MARICATO, 2002)

Mas, Ermínia Maricato diz que, nesse período, a despeito dos dados, “o ovo da serpente estava
sendo gerido”. No final do século passado, as marcas das grandes cidades são: favelas, poluição do ar e
das águas, enchentes, desmoronamentos, crianças abandonadas, violência e epidemias.
A pobreza urbana é maior do que a média da pobreza brasileira e está concentrada nas regiões metropolitanas. Dos
pobres brasileiros, 33% estão nas “ricas” metrópoles do Sudeste. Concentram-se também nas regiões metropolitanas
80% da população moradora das favelas, conforme estudos de Suzana Pasternak. Em 9 metrópoles brasileiras moram
cerca de 55 milhões de pessoas. É mais do que a população de vários países latino-americanos ou europeus, juntos.
O Rio de Janeiro tem população equivalente a um Chile e São Paulo tem população superior a um Chile e meio. No
entanto, o país não tem política institucional para as regiões metropolitanas, como se os índices de violência, poluição
e miséria que elas apresentam pudessem ser resolvidos com políticas compensatórias pontuais. A ausência de políti-
cas para as metrópoles é uma ofensa à inteligência brasileira. Se os municípios que as compõem se entenderem para
compatibilizar as iniciativas relativas à coleta e destino do lixo urbano e da macro drenagem, por exemplo, melhor para
todos, senão, azar. (MARICATO, 2002)

Pior:
Aproximadamente 50% da população das metrópoles de Rio de Janeiro e São Paulo mora nas favelas ou nos lotea-
mentos ilegais da periferia. Mas os problemas urbanos estão longe de se restringir às áreas metropolitanas. O censo do

8 Produto Interno Bruto (PIB): indicador que mede a produção de um país levando em conta três grupos principais: agropecuária, formado
por agricultura extrativa vegetal e pecuária; indústria, que engloba áreas extrativa mineral, de transformação, serviços industriais de utilidade
pública e construção civil; e serviços, que incluem comércio, transporte, comunicação, serviços da administração pública e outros.
Antropologia Urbana – o antropólogo e a cidade | 185

IBGE de 1991 verificou uma tendência confirmada em 2000, de que as cidades médias (entre 100 000 e 500 000 habi-
tantes) crescem a taxas mais altas do que as regiões metropolitanas (4,8% contra 1,3%). Os problemas das metrópoles
começam a surgir nas cidades de porte médio que ainda apresentam melhor qualidade de vida: Florianópolis, Aracajú,
Ribeirão Preto, São José do Rio Preto, dentre tantas outras. Favelas, crianças abandonadas, moradores de rua, conges-
tionamentos de veículos, mortes no trânsito, poluição da água e, em especial a chamada violência urbana são alguns
dos indicadores que constituem amostra da tendência que é geral. (MARICATO, 2002)

Desacelerou-se o crescimento das metrópoles, segundo Ermínia. As periferias crescem mais do


que os núcleos centrais: Belém (157,9%), Curitiba (28,2%), Belo Horizonte (20,9%), Salvador (18, 1%) e
São Paulo (16,3%), de acordo com pesquisa do IPEA9 para o período 1991/1996.
O crescimento urbano resultante desse intenso crescimento demográfico se fez, em grande parte, fora da lei (sem
levar em conta a legislação urbanística de uso e ocupação do solo e código de obras), sem financiamento público (ou
ignorado pelas políticas públicas) e sem recursos técnicos (conhecimento técnico de engenharia e arquitetura). Sem
alternativas, a população se instalou como pôde, com seus parcos recursos e conhecimento. (MARICATO, 2002)

Um sério problema é a condição da moradia urbana. Não há registro de posse nem instrumentos
regularizadores. Isso, em diversas áreas urbanas importantes. Salvador, Fortaleza, Recife, Maceió, Belo
Horizonte, Porto Alegre, Rio de Janeiro, São Paulo e Curitiba.
O gigantesco crescimento de invasões de terra, em anos recentes, se dá devido à falta de alternativas habitacionais,
10
seja por parte do mercado privado (que não chega a atender 30% da população do país segundo dados da Cibrasec )
seja devido ao diminuto alcance das políticas públicas. Sem subsídios, não há como incorporar a maior parte da po-
pulação ao mercado, muito menos quando ele continua privilegiando os ganhos especulativos. Bancários, professores
secundários, policiais, enfermeiros, todo um contingente de trabalhadores regularmente empregados são excluídos do
mercado o que não dizer dos informais, que são em número crescente. (MARICATO, 2002)

Essa ocupação desordenada do espaço urbano provoca um desequilíbrio no ambiente. Áreas


consideradas frágeis são ocupadas em conseqüência da falta de alternativa (beira de córregos, encostas
deslizantes, várzeas inundáveis, áreas de proteção de mananciais).
Nas grandes e médias cidades, os rios, riachos, lagos, mangues e praias tornaram-se canais ou destino dos esgotos do-
mésticos. O esgotamento sanitário atinge 54% dos domicílios em todo o Brasil, mas apenas 10% do esgoto coletado é
tratado. O restante permanece na rede hídrica. Quanto ao lixo, 29% do montante coletado é tratado. Isso fica evidente
na paisagem de qualquer estrada que deixa as metrópoles ou grandes cidades, as quais são acompanhadas durante
quilômetros pelo lixo não recolhido. (MARICATO, 2002)

Para reverter esse quadro de crise urbana, Ermínia aponta a necessidade de superar o “analfabe-
tismo urbanístico”:
A reversão desse quadro exige, antes de mais nada, um conhecimento mais rigoroso sobre ele. O primeiro passo para
começar a mudar esse rumo é tirar as instituições e a sociedade do “analfabetismo urbanístico” e criar a consciência da
dimensão dos problemas que estão sendo produzidos por esse crescimento urbano sem regulação pública e social-
mente desigual. O conhecimento sobre as cidades no Brasil e sobre a cidade em que cada um vive poderia começar na
rede escolar. (MARICATO, 2002)

9 O Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) é uma fundação pública federal vinculada ao Ministério Extraordinário de Assuntos
Estratégicos. Suas atividades de pesquisa fornecem suporte técnico e institucional às ações governamentais para a formulação e reformulação
de políticas públicas e programas de desenvolvimento brasileiros.
10 Cibrasec – Companhia Brasileira de Securitização. Ela atua no Sistema Financeiro Imobiliário e compra os Certificados de Recebíveis
Imobiliários e os revende aos investidores.
186 | Teorias Antropológicas

Para ela, há instrumentos legais à disposição: planos diretores11 e o Estatuto da Cidade12, além de
mecanismos que visam à função social da propriedade. Por fim, dentro do espírito da publicação, Ermí-
nia diz: “Sem querer abusar do trocadilho trata-se de ocupar a lacuna e criar a consciência com ciência,
com conhecimento” (MARICATO, 2002).

Etnografia urbana
A cidade tornou-se um complexo sistema de organização da sociedade, com seus diversos aspec-
tos positivos e negativos. As cidades, em especial as que nasceram sem planejamento de sua ocupação,
tornaram-se um “caldeirão”, onde se misturam pedaços originais de diversas culturas, suas sínteses e
suas antíteses; suas convergências e suas divergências; seus conceitos e preconceitos; a segregação e o
racismo; a tolerância e a intolerância religiosa; os condomínios fechados e as moradias precárias; seus
aparelhos sociais de qualidade e sem qualidade mínima de utilização; suas ruas, esquinas, becos; suas
formas tradicionais e inéditas de organização, sua liberdade e repressão; suas elites, seus miseráveis e
suas “tribos urbanas”.
Observar e estudar esse complexo sistema, suas populações, suas produções materiais e imate-
riais, torna-se um desafio estonteante para o etnógrafo moderno. Encontrar uma metódica adequada
para essa observação, formas de análises e categorias de análise torna-se um desafio instigante para as
ciências humanas e seus formuladores: um desafio para a etnografia urbana.

De fora e de longe
José Guilherme Cantor Magnani – Departamento de Ciências Humanas da Universidade de S.
Paulo e membro do Núcleo de Antropologia Urbana da Universidade de São Paulo – escreveu em 2002
o artigo publicado na Revista Brasileira de Ciências Sociais, no qual procura articular duas linhas de re-
flexão, segundo suas próprias palavras: uma sobre a cidade e outra sobre etnografia.
Neste artigo pretendo articular duas linhas de reflexão: uma sobre cidade e outra sobre etnografia. O propósito é ex-
plorar as possibilidades que esta última, como método de trabalho característico da Antropologia, abre para a compre-
ensão do fenômeno urbano, mais especificamente para a pesquisa da dinâmica cultural e das formas de sociabilidade
nas grandes cidades contemporâneas. Em primeiro lugar exponho, de forma sumarizada, alguns dos enfoques mais
correntes sobre a questão da cidade e, em contraste com estas abordagens, que classifico como um olhar de fora e de
longe, apresento outra de cunho etnográfico, a que denomino de olhar de perto e de dentro. (MAGNANI, 2002)

Magnani procura contribuir com a elaboração de uma perspectiva que possibilite “um recorte
mais específico, voltado para o estudo de temas própria e especificamente urbanos” (MAGNANI, 2002)
O pesquisador agrupa em dois blocos as abordagens sobre a cidade: a primeira de análise e diag-
nóstico com ênfase em aspectos desagregadores – colapso do sistema de transporte, as deficiências do
saneamento básico, falta de moradia, concentração e desigualdade na distribuição dos equipamentos,

11 Plano Diretor: instrumento básico da política de desenvolvimento do município, com a finalidade de orientar a atuação do poder público e
da iniciativa privada na construção dos espaços urbano e rural e na oferta dos serviços públicos essenciais, com o objetivo assegurar melhores
condições de vida para a população.
12 Estatuto da Cidade: – Lei 10.257 de 10 de julho de 2001 – visa a regulamentação do desenvolvimento urbano no Brasil; responsável por
regulamentar e definir instrumentos à efetivação das diretrizes encontradas no capítulo sobre política urbana da mais recente Constituição
brasileira (1988).
Antropologia Urbana – o antropólogo e a cidade | 187

aumento dos índices de poluição e violência, dos chamados países “emergentes” 13; a segunda aborda-
gem com cenários marcados por uma “feérica sucessão de imagens (deslumbrante) – superposição e
conflitos de signos, simulacros, não-lugares, redes e pontos de encontros virtuais – articulada por semi-
ólogos, arquitetos, críticos pós-modernos, referidas às cidades do “primeiro mundo”.
No primeiro caso, apresenta-se uma linha de continuidade onde fatores desordenados de crescimento acabam por
produzir inevitavelmente o caos urbano; no segundo, enfatiza-se a ruptura, conseqüência de saltos tecnológicos que
tornam obsoletas não só as estruturas urbanas anteriores como as formas de comunicação e sociabilidade a elas cor-
14
respondentes; o caos, aqui, é semiológico . Um, fruto do capitalismo selvagem; a outra, mais identificada com o capi-
talismo tardio. (MAGNANI, 2002)

Para o autor, as duas abordagens levam a conclusões semelhantes “no plano da cultura urbana”:
deterioração dos espaços e equipamentos públicos, privatização da vida coletiva, segregação, elimina-
ção do contato, confinamentos, entre outros aspectos. Magnani diz que esse “esquematismo” é comum
no discurso da mídia e setores acadêmicos, pois é uma fórmula de sucesso.
Tanto num caso como no outro essa denominação alude ao papel que tais cidades ocupam numa economia altamente
interdependente: sedes de conglomerados multinacionais, pólos de instituições financeiras, produtoras e/ou distri-
buidoras de determinados serviços, informações e imagens, elas constituem os nós da ampla rede que também já é
conhecida, num mundo globalizado, como “sistema mundial”. Sua influência, desta forma, faz-se sentir muito além das
respectivas fronteiras físico-administrativas e nacionais. (MAGNANI, 2002)

Após discorrer sobre as duas abordagens, com base na bibliografia produzida, Magnani enfatiza
que o seu propósito é delimitar um campo onde seja possível apreciar alternativas de análise “para a
dinâmica urbana contemporânea” (MAGNANI, 2002).

Perto e dentro
Após uma série de observações sobre as formas de abordagens da dinâmica urbana contem-
porânea, seus aspectos em comum (ausência de atores sociais, por exemplo), natureza da observação
etnográfica, Magnani indica o ponto central de sua análise:
Assim, o que se propõe inicialmente com o método etnográfico sobre a cidade e sua dinâmica é resgatar um olhar de
perto e de dentro capaz de identificar, descrever e refletir sobre aspectos excluídos da perspectiva daqueles enfoques
que, para efeito de contraste, qualifiquei como de fora e de longe. (MAGNANI, 2002)

Segundo Magnani, a mudança de foco tem a vantagem de evitar a dicotomia: indivíduo versus
megaestruturas urbanas (despersonalização, massificação, solidão etc.).
Entretanto, contrariamente às visões que privilegiam, na análise da cidade, as forças econômicas, a lógica do mer-
cado, as decisões dos investidores e planejadores, proponho partir daqueles atores sociais não como elementos
isolados, dispersos e submetidos a uma inevitável massificação, mas que, por meio do uso vernacular da cidade
(do espaço, dos equipamentos, das instituições) em esferas do trabalho, religiosidade, lazer, cultura, estratégias de
sobrevivência, são os responsáveis por sua dinâmica cotidiana. Postulo partir dos atores sociais em seus múltiplos,
diferentes e criativos arranjos coletivos: seu comportamento, na paisagem da cidade, não é errático, mas apresenta
padrões. (MAGNANI, 2002)

13 Países emergentes: eram os chamados países do Terceiro Mundo, em oposição aos países ricos chamados de Primeiro Mundo. Em 2003,
com a articulação da diplomacia brasileira, formou-se o G-20, com os maiores países desse bloco.
14 Semiólogo (semio+logo); teórico que estuda os fatores culturais como signos, baseando-se nos estudos lingüísticos de Ferdinand de
Saussure.
188 | Teorias Antropológicas

Magnani parte em busca desses padrões, modeladores do comportamento dos atores sociais, na
paisagem da cidade, e dentro de sua dinâmica urbana.
Nesse ponto do artigo, uma nova interrogação é feita: trata-se da Antropologia da cidade (a cida-
de em seu conjunto) ou Antropologia na cidade (prática cultural em particular)?
Partir das regularidades, dos padrões e não das “dissonâncias”, “desencontros”, “hibridizações” como condição da pes-
quisa supõe uma contrapartida no plano teórico: a idéia de totalidade como pressuposto. Não se trata, evidentemente,
daquela totalidade que evoca um todo orgânico, funcional, sem conflitos; tampouco se trata de uma totalidade que
coincide, no caso da cidade, com os seus limites político-administrativos: em se tratando de São Paulo, por exemplo,
é impensável qualquer pretensão de etnografia de uma área de 1 525km2 ocupada por cerca de doze milhões de
pessoas. No entanto, renunciar a esse tipo de totalidade não significa embarcar no extremo oposto: um mergulho na
fragmentação. Se não se pode delimitar uma única ordem, isso não significa que não há nenhuma; há ordenamentos
particularizados, setorizados; há ordenamentos, regularidades. (MAGNANI, 2002)

Segundo Magnani, no tocante à totalidade, mesmo ao se considerar que o recorte definido é


condição para o bom exercício da etnografia, “a exigência da totalidade vai além dessa necessidade de
se poder contar com o objeto da pesquisa no interior de limites demarcados”: a totalidade se coloca em
múltiplos planos e escalas (MAGNANI, 2002). Outro aspecto da totalidade que o autor destaca é a sua
dupla face: como ela é vivida pelos atores sociais, e como ela é percebida e descrita pelo pesquisador.
O autor alinha uma série de campos da Antropologia Urbana em que a questão da dupla face
da totalidade se apresenta: terreiros de candomblé, grupos de jovens, escolas de samba, torcidas orga-
nizadas de futebol. Nesses campos, entre outros, há uma totalidade experimentada como recorte de
fronteira e como código de pertencimento pelos integrantes do grupo.
Assim, uma totalidade consistente em termos da etnografia é aquela que, experimentada e reconhecida pelos atores
sociais, é identificada pelo investigador, podendo ser descrita em seus aspectos categoriais: para os primeiros, é o con-
texto da experiência, para o segundo, chave de inteligibilidade e princípio explicativo. Posto que não se pode contar
com uma totalidade dada a priori, postula-se uma a ser construída a partir da experiência dos atores e com a ajuda de
hipóteses de trabalho e escolhas teóricas, como condição para que se possa dizer algo mais que generalidades a res-
peito do objeto de estudo. (MAGNANI, 2002)

Assim, segundo o autor, os dois planos apresentados – cidade em seu conjunto e o de cada práti-
ca cultural – são dois pólos de uma relação “que circunscrevem, determinam e possibilitam a dinâmica
que se está estudando” (MAGNANI, 2002).
Para captar essa dinâmica, por conseguinte, é preciso situar o foco nem tão de perto que se confunda com a perspec-
tiva particularista de cada usuário e nem tão de longe a ponto de distinguir um recorte abrangente, mas indecifrável e
desprovido de sentido. Em outros termos, nem no nível das grandes estruturas físicas, econômicas, institucionais etc.,
nem no das escolhas individuais: há planos intermediários onde se pode distinguir a presença de padrões, de regula-
ridades. E para identificar essas regularidades e poder construir, como referência, algum tipo de totalidade no interior
da qual seu significado possa ser apreciado, é preciso contar com alguns instrumentos, algumas categorias de análise,
como será discutido a seguir. (MAGNANI, 2002)

Categorias de análise
Para o autor, essas categorias de análise têm um duplo estatuto: surge do reconhecimento em-
pírico – arranjos concretos e efetivos por parte dos atores sociais – e podem ser descritos e “num plano
mais abstrato” – categorias: pedaço, trajeto, mancha, pórtico, circuito.
Desenvolvi algumas categorias que descrevem as formas como podem se apresentar alguns desses recortes na paisa-
gem urbana – pedaço, mancha, trajeto, circuito – procurando mostrar as possibilidades que abrem para identificar dife-
Antropologia Urbana – o antropólogo e a cidade | 189

rentes situações da dinâmica cultural e da sociabilidade na metrópole: a noção de pedaço evoca laços de pertencimento
e estabelecimentos de fronteiras, mas pode estar inserida em alguma mancha, de maior consolidação e visibilidade na
paisagem; esta, por sua vez, comporta vários trajetos como resultado das escolhas que propicia a seus freqüentadores. Já
circuito, que aparece como uma categoria capaz de dar conta de um regime de trocas e encontros no contexto mais am-
plo e diversificado da cidade (e até para fora dela) pode englobar pedaços e trajetos particularizados. (MAGNANI, 2002)

No artigo, Magnani percorre o caminho teórico em busca de uma metodologia – metódica, pro-
cedimentos, categorias de análise – que dê conta da complexa realidade da dinâmica urbana contem-
porânea. Na conclusão ele diz:
No entanto, cabe reafirmar, por fim, que a meta é seguir em busca de uma lógica mais geral. Do olhar de perto e de
dentro, próprio da etnografia, para um olhar distanciado, em direção, aí sim, a uma antropologia da cidade, procurando
desvelar a presença de princípios mais abrangentes e estruturas de mais longa duração. É somente por referência a pla-
nos e modelos mais amplos que se pode transcender, incorporando-o, o domínio em que se movem os atores sociais,
imersos em seus próprios arranjos, ainda que coletivos. (MAGNANI, 2002)

Considerações finais
A Antropologia Urbana faz com que o etnógrafo traga para o seu quintal – lugar onde vive e
constrói suas representações culturais – a reflexão do pensar e fazer antropológicos. A cidade mostra-se,
apesar da proximidade, um terreno escorregadio e perigoso.
A cidade é complexa – articulam-se áreas segregadas e precárias, pontos de convergência de vá-
rias formas de violência – física e simbólica –, com áreas incluídas no movimento global e infra-estrutu-
ras sofisticadas de informação e comunicação digitais (áreas rápidas e áreas lentas; áreas que mandam e
áreas que obedecem; áreas opacas e áreas luminosas) – múltipla – com diversas formas de organização
dos atores sociais e institucionais, nos planos políticos, econômicos, sociais e culturais – polifônica – com
diversos universos culturais originais, ressemantizados e reinventados – e mutante – processo ininter-
rupto e permanente de mudança e transformações.
A investigação da cidade impõe ao etnógrafo uma série de desafios, na sua prática profissional,
em especial, quanto à totalidade e à abrangência da etnografia urbana: etnografia da cidade ou etno-
grafia na cidade.
Outro calcanhar de Aquiles: a totalidade experimentada e reconhecida pelos atores sociais, reco-
nhecidas pelo etnógrafo e com capacidade de compreensão descritiva.
No passado da Antropologia, essas eram questões que não se colocavam com tanta ênfase, na
medida em que os informantes de uma cultura estavam distantes – geográfica e fisicamente – dos rela-
tos produzidos pelos etnógrafos sobre as culturas dos nativos.
Na Antropologia Urbana, não!
O relato do etnógrafo está à disposição dos sujeitos de sua investigação, graças às modernas for-
mas de captação, organização e difusão dos relatos etnográficos.
Esse cenário impõe à etnografia a necessidade de construções conceituais de categorias de aná-
lise e procedimentos práticos do trabalho de campo para a apreensão e compreensão dessa realidade
mutante.
190 | Teorias Antropológicas

Texto complementar

Tribos urbanas: metáfora ou categoria


Selvagens, desajustados?

(MAGNANI, 1992)
Quando a imprensa noticia certo tipo de ocorrência, geralmente envolvendo grupos de jovens
ou adolescentes – enfrentamentos entre bandos rivais, comportamento em shows e festivais, picha-
ções etc. – inevitavelmente aparece o termo “tribos urbanas” no box explicativo que acompanha a
matéria.
Com essa referência, o que se pretende é introduzir algum princípio de ordenamento num
universo que se caracteriza exatamente por sua fragmentação e singularidade. Analisando mais
de perto essa tentativa de explicação, percebe-se que na maioria das vezes o caráter das transgres-
sões identificado em tais manifestações não extrapola um limiar até certo ponto previsto e tolerado
como característico de determinada faixa etária. Quando os efeitos de tais práticas vão além desse
limiar, muda o enfoque: está-se no âmbito da delinqüência, do banditismo, da violência urbana.
Algumas dessas ocorrências, contudo, oscilam entre as fronteiras do tolerado e do francamen-
te reprovado: é o caso das pichações, que introduzem uma tensão entre a natureza de seus prota-
gonistas (“adolescentes em fase de auto-afirmação”) e os danos que suas intervenções produzem
no patrimônio público ou privado. Fica-se na dúvida entre acionar os policiais da Secretaria de Se-
gurança, os psicólogos da Saúde ou os teóricos da Secretaria da Cultura. Um pouco “selvagens”
demais, os integrantes dessa tribo...
Este quadro mostra, entre outras coisas, a ambigüidade do uso do termo “tribos urbanas” em
seu uso corriqueiro, tal como aparece no senso comum e na mídia. Que dizer, então, de seu empre-
go em pesquisas e trabalhos ditos científicos?

Metáfora ou categoria
A primeira observação é: quando se fala em “tribos urbanas” é preciso não esquecer que na
realidade está-se usando uma metáfora, não uma categoria. E a diferença é que enquanto aquela é
tomada de outro domínio, e empregada em sua totalidade, categoria é construída para recortar, des-
crever e explicar algum fenômeno a partir de um esquema conceitual previamente escolhido. Pode
até vir emprestada de outra área, mas neste caso deverá passar por um processo de reconstrução.
A metáfora, não: traz consigo a denotação e todas as conotações distintivas de seu uso inicial.
Por algum desses traços é que foi escolhida, tornando-se metáfora exatamente nessa transposição:
o significado original é aplicado a um novo campo. A vantagem que oferece é poder delimitar um
problema para o qual ainda não se tem um enquadramento. É usada no lugar de algo, substitui-o,
dá-lhe um nome. Evoca o contexto original, em vez de estabelecer distinções claras e precisas no
contexto presente. O problema, contudo, que acarreta é que dá a impressão de descrever, de forma
total e acabada, o fenômeno que se quer estudar, aceitando-se como dado exatamente aquilo que
Antropologia Urbana – o antropólogo e a cidade | 191

é preciso explicar. Para apreciar devidamente os limites e alcances de seu emprego, é preciso antes
de mais nada ter presente qual é o domínio, o sistema de significações de onde foi tirada.
E qual é o domínio original de “tribo”? A etnologia e, nela, uma forma de organização de socie-
dades que constituíram o primeiro e mais significativo objeto de estudo da Antropologia.
Não deixa de ser sintomático o fato de se tomar emprestado um termo usual no estudo das so-
ciedades de pequena escala para descrever fenômenos que ocorrem em sociedades contemporâneas
altamente urbanizadas e densamente povoadas. O recurso parece deslocado, mas é exatamente isso
que se quer com o uso de metáforas: um de seus efeitos é projetar luz de forma contrastante sobre
aquilo que se pretende explicar.
Para poder avaliar até que ponto esse termo ajuda a entender tais fenômenos, nas sociedades
modernas, é preciso inicialmente descobrir os significados que ele tem no campo em que é maneja-
do como termo técnico, nas sociedades indígenas. O segundo passo é identificar que relação existe
entre o recorte original e aquele que se produz com a utilização no novo contexto.
Sem entrar em detalhes e controvérsias que não cabem nos limites e propósito deste artigo,
pode-se dizer que tribo constitui uma forma de organização mais ampla que vai além das divisões
de clã ou linhagem de um lado e da aldeia, de outro. Trata-se de um pacto que aciona lealdades para
além dos particularismos de grupos domésticos e locais15.
E o que é que vem à mente quando se fala em “tribos urbanas?” Exatamente o contrário dessa
acepção: pensa-se logo em pequenos grupos bem delimitados, com regras e costumes particulares
em contraste com o caráter homogêneo e massificado que comumente se atribui ao estilo de vida
das grandes cidades. Não deixa de ser paradoxal o uso de um termo para conotar exatamente o
contrário daquilo que seu emprego técnico denota: no contexto das sociedades indígenas “tribo”
aponta para alianças mais amplas; nas sociedades urbano-industriais evoca particularismos, estabe-
lece pequenos recortes, exibe símbolos e marcas de uso e significado restritos.
Por isso é que não se pode tomar um termo de um contexto e usá-lo em outro, sem mais – ou
ao menos sem ter presente as reduções que tal transposição acarreta. Como categoria, tribo quer
dizer uma coisa; enquanto metáfora é forçada a dizer outras, até mesmo contra aquele sentido
original. Sendo metáfora, “tribo” evoca mais do que recorta. E evoca o quê? Primitivo, selvagem,
natural, comunitário – características que se supõe estarem associadas, acertadamente ou não, ao
modo de vida de povos que apresentam, num certo nível, a organização tribal. O fato de substituir
a precisão do significado original por imagens associadas de forma livre (e algumas delas incor-
retamente) é que dá ao termo “tribo” seu poder evocativo, permitindo-lhe designar realidades e
situações bastante heterogêneas.

15 Evans-Pritchard, E. E. Os Nuer. São Paulo: Perspectiva, 1978; SAHLINS, Marshall. Sociedades Tribais. Rio de Janeiro: Zahar, 1970. Atualmente
há quem discuta a legitimidade desse uso do termo tribo: argumenta-se que a categoria apropriada, em qualquer caso, é sociedade. Tribo não
passaria, então, de uma designação inadequada porque empregada para designar sociedades indígenas sem reconhecer seu direito e estatuto
de verdadeira sociedade frente à sociedade nacional, inclusiva. Levando-se em conta, porém, o sentido e contexto do uso do termo tribo por
inúmeros autores – além dos citados – mantém-se, neste texto, a referência ao seu uso mais tradicional.
192 | Teorias Antropológicas

Usos e abusos
Esta liberdade que a metáfora possibilita não a desqualifica em contextos de pesquisa e análi-
se; exige, contudo, que se tenha presente que seu emprego não é unívoco e que se tomem os cui-
dados correspondentes, sob pena de, aí sim, torná-la equívoca. Sem esse exercício prévio corre-se o
risco de iniciar o trabalho na base de uma convenção do tipo: todos sabem do que se está falando,
quando na realidade cada qual lê o termo em questão (no caso tribo) com um significado diferente.
E na maioria das vezes, segundo o senso comum mais rastaqüera.
A seguir, rapidamente, alguns significados de seu emprego em textos a respeito da cidade e
seus personagens.
Um primeiro significado, mais geral, de tribo urbana, tem como referente determinada escala
que serve para designar uma tendência oposta ao gigantismo das instituições e do Estado nas so-
ciedades modernas: diante da impessoalidade e anonimato destas últimas, tribo permitiria agrupar
os iguais, possibilitando-lhes intensas vivências comuns, o estabelecimento de laços pessoais e leal-
dades, a criação de códigos de comunicação e comportamento particulares.
Em outros contextos, tribo evoca o “primitivo” e designa pequenos grupos concretos com ên-
fase não já em seu tamanho, mas nos elementos que seus integrantes usam para estabelecer dife-
renças com o comportamento “normal”: os cortes de cabelo e tatuagens de punks, carecas, a cor da
roupa dos darks e assim por diante.
Quando evoca o “selvagem”, o termo designa principalmente o comportamento agressivo,
contestatório e “anti-social” desses grupos e as práticas de vandalismo e violência atribuídas a ou-
tros como as gangues de pichadores, as torcidas organizadas.
Grandes concentrações – concertos de rock em estádios, shows e outras manifestações (envol-
vendo ou não consumo de drogas ou comportamentos coletivos tidos como irracionais) – ensejam
também o emprego de “tribos urbanas”. Neste caso o que se evoca é algo confusamente imaginado
como “cerimônias primitivas totêmicas”. E assim por diante.
Por último é preciso ainda levar em conta que até mesmo a particular idéia que vê na tribo indí-
gena uma comunidade homogênea de trabalho, consumo, reprodução e vivências através de mitos
e ritos coletivos16, não se aplica às chamadas “tribos urbanas”: sob esta denominação costuma-se
designar grupos cujos integrantes vivem simultânea ou alternadamente muitas realidades e papéis,
assumindo sua tribo apenas em determinados períodos ou lugares.
É o caso, por exemplo, do rapper que oito horas por dia é office-boy; do vestibulando que nos
fins de semana é rockabilly; do bancário que só após o expediente é clubber; do universitário que à
noite é gótico; do secundarista que nas madrugadas é pichador, e assim por diante.

Concluindo
Uma análise das utilizações mais freqüentes da expressão “tribos urbanas” mostra que na maio-
ria dos casos não se vai além do nível da metáfora. Assim, esse termo – a menos que seja empre-

16 Homogeneidade que está longe de caracterizar a cultura, o modo de vida, os sistemas simbólicos desse tipo de sociedade.
Antropologia Urbana – o antropólogo e a cidade | 193

gado após um trabalho prévio com o propósito de definir seu sentido e alcance – não é adequado
para designar, de forma unívoca e consistente, nenhum grupo ou comportamento no contexto das
práticas urbanas. Pode constituir um ponto de partida, mas não de chegada, pois não constitui um
instrumento capaz de descrever, classificar e explicar as realidades que comumente abrange.
Ao invés de tentar reduzir os múltiplos grupos e práticas a um suposto denominador comum,
mais proveitoso seria explorar sua diversidade na paisagem urbana, procurando determinar as rela-
ções que estabelecem entre si e com outras instâncias da vida social.
Uma possível estratégia de pesquisa poderia, por exemplo, começar por um primeiro recorte,
o da faixa etária, para ficar no universo de jovens e adolescentes.
O passo seguinte seria escolher como eixo da análise uma (ou várias) das facetas normalmente
presentes na constituição e dinâmica desses grupos: o estabelecimento de laços de sociabilidade, a
ênfase nos ritos de passagem, a presença de códigos de diferenciação, as formas de uso e apropria-
ção do espaço urbano, as modalidades preferidas de entretenimento e lazer etc. Um levantamento
etnográfico encarregar-se-ia de mostrar a forma concreta e distintiva que cada grupo – ou aquele
escolhido como objeto da pesquisa – dá a alguma dessas práticas.
Aí, sim, até que se poderia fazer referência às sociedades tribais, pois nelas, assim como em
outras formas de organização social, existe um cuidado especial com aqueles momentos em que
membros de conjuntos etários em tempos de iniciação exercitam-se aprendendo, contestando ou
pondo à prova a consistência das relações sociais que logo terão que assumir – passado o período
da liminaridade – já então revestidos de um novo status.

Atividades
1. Quais são as três versões de mundo, apontadas por Milton Santos, na produção da globalização
nas sociedades?
194 | Teorias Antropológicas

2. Comente as duas linhas de reflexão propostas por José Guilherme Cantor Magnani para a
elaboração das categorias de análise da Etnografia urbana.

3. Qual a definição na Etnografia urbana da cidade como cenário a ser estudado?

4. Como o professor Milton Santos apresentou as categorias diferenciadoras e os movimentos de


reorganização presentes no processo de urbanização do Brasil?
Antropologia Visual
e a descrição etnográfica
“E agora, deixa-me mostrar, por meio de uma comparação, até que ponto
nossa natureza humana vive banhada em luz ou mergulhada em sombras. Vê!
Seres humanos vivendo em um abrigo subterrâneo, uma caverna, cuja boca se
abra para a luz, e se estende por toda a caverna. Aí sempre viveram, desde crian-
ças, tendo as pernas e o pescoço acorrentados, de modo que não podem mover-
se, e apenas vêem o que está à sua frente, uma vez que as correntes os impedem
de virar a cabeça. Acima e por trás deles, um fogo arde a certa distância, e entre
o fogo e os prisioneiros, a uma altura mais elevada, passa um caminho. Se olha-
res bem, verás uma parede baixa que se ergue ao longo desse caminho, como
se fosse um anteparo que os animadores de marionetes usam para esconder-se
enquanto exibem os bonecos [...] Pois esses seres são como nós. Vêem apenas
suas próprias sombras, ou as sombras uns dos outros, que o fogo projeta na
parede que lhes fica à frente.”
(PLATÃO apud ARANHA, 1986).

Centralidade da imagem
No âmbito da disciplina, a Antropologia Visual tornou-se um importante instrumento para a des-
crição etnográfica. Desde os trabalhos de campo de Malinowski, em Os argonautas do Pacífico Ocidental,
a fotografia – e mais contemporaneamente outras formas de registros visuais (cinema, vídeo, imagens
pictóricas, multimídia, celulares, fotografia jornalística e publicitária, outdoor, murais de rua, pichação,
grafite de rua) – é um suporte importante de fidelidade do registro de dados.
A infra-estrutura tecnológica que se tem permite um amplo trabalho com várias possibilidades
para a capturação e a edição de imagens, nas ciências humanas. Por essa razão, a fotografia é uma fonte
196 | Teorias Antropológicas

inspiradora à reflexão conceitual da etnografia, pois além da técnica ela é uma ótima fonte de docu-
mentação. A fotografia permite um alto grau de fidelidade na tradutibilidade dos códigos imagéticos
em escrita.
Por ser uma forma de apropriação instrumental das imagens em campo, a fotografia é facilitado-
ra do diálogo entre o etnógrafo e sua fonte de informação, tornando-se uma mediadora entre as suas
culturas e azeitando a produção do conhecimento da realidade investigada.
Mesmo sendo uma analogia máxima e fiel – uma superanalogia – do registro da realidade, ela
não é a realidade. Como outras formas de linguagem, a fotografia é polissêmica. Ela guarda uma tensão
dialética entre o conteúdo do registro e a sua aparência.
Como mostrou Platão, a centralidade da imagem é um traço característico do Ocidente. A ima-
gem tem uma função específica na sociedade. A apropriação dos instrumentos técnicos que permitem
o registro dessa forma de analogia do real assume, cada vez mais, papel de destaque na descrição etno-
gráfica no campo da investigação antropológica.
Parece, em uma primeira aproximação, que é a palavra intuição a que melhor exprime a osmose entre visão e conhe-
cimento. [...] E esta equivalência, que nos parece trivial, entre visão e intuição não seria antes o efeito da influência que
ainda exerce Descartes sobre o uso que fazemos do vocabulário filosófico? [...] Não seria o fato de “ver” o melhor análo-
go desta apreensão pontual de um conteúdo pelo espírito? Esse tema cartesiano é bem conhecido. E parece poder ser
inscrito, grosso modo, em uma tradição que remonta a Platão. Assim, a visão teria sido, desde os gregos, o paradigma de
um saber imediato cuja certeza é tão forte que ele se garante por si próprio [...] (LEBRUN, 1988, p. 21)

Modelos de descrição etnográfica


Em seu ensaio sobre a etnografia, Laplantine (2004) dedicou um capítulo para a descrição etno-
gráfica e os diversos modelos experimentados pela ciência. Ele guardou um lugar especial para o regis-
tro fotográfico. Segundo o antropólogo francês é nela que se exercitam as qualidades de observação,
de sensibilidade, de inteligência e imaginação científicas do pesquisador.
É aí que esperamos a revelação do etnólogo (aquele que faz emergir a lógica própria a tal cultura). É enfim a partir desse
ver organizado em um texto que começa a se elaborar um saber: o saber característico dos antropólogos. (LAPLANTI-
NE, 2004, p. 10)

Laplantine reconstrói uma linha imaginária de tempo para a apresentação dos modelos de descri-
ção etnológica (o modelo das ciências naturais; o modelo dos romances naturalistas; o modelo pictórico
dos quadros e retratos, e o modelo fotográfico).
Para ele, a primeira forma de observação e descrição científica foi a observação e descrição da
natureza, o modelo das ciências naturais. A observação e descrição da natureza permitiram a fundação
da ordem descritiva, da descrição como ordem. Segundo o antropólogo, a descrição naturalista não
cedia espaço ao risco da improvisação. Essa forma de observação e descrição levou ao conhecimento
descritivo:
O naturalista (especialista dos ervanários, das coleções mineralógicas ou zoológicas e dos jardins botânicos) é ao mes-
mo tempo um homem do olhar e da palavra, do ver e da linguagem. Ele exerce uma atividade simultaneamente visual
e lingüística na qual conhecer, reconhecer, recolher, olhar, nomear, identificar, classificar, conservar (no sentido museo-
lógico do termo) são uma única e mesma operação. (LAPLANTINE, 2004, p. 72)
Antropologia Visual e a descrição etnográfica | 197

Laplantine cita Radcliffe-Brown e Claude Lévi-Strauss como expoentes deste modelo na Antro-
pologia.
O segundo modelo, o antropólogo vai sacar do romance naturalista, que deu asas ao modelo
positivista de observação e de experimentação. Pintores e escritores do século XIX, sobretudo na Fran-
ça, lançam mão dessa forma descritiva em suas obras e experiências artísticas. O escritor-estudante-
pesquisador do Realismo recorre à documentação precisa; toma notas de suas observações em campo;
monta arquivos; viaja; freqüenta os cenários de suas obras (hospitais); faz reportagens; visita prisões,
minas e reconstrói o estilo e modo de vida que quer retratar em seus textos.
Esse tipo de romance, para Laplantine, tem duas particularidades. A primeira é a teoria do meio
ambiente. Os escritores do período naturalista radicalizam no exercício de descrição do ambiente e nas
suas implicações com os personagens de seus romances.
A segunda particularidade é que os escritores realistas são escritores do “instantâneo”. Eles com-
partilham o mesmo tesouro dessa forma de observação e descrição com os seus contemporâneos, os
pintores impressionistas1 e os primeiros fotógrafos:
Se para eles a descrição reveste sempre um caráter explicativo, ela concerne exclusivamente à presença e o presente
daquilo que é descrito, nunca ao passado. Eles manifestam pela escrita viva e incisiva – o jornalismo passou por aí –
preocupações de lexicógrafos e não de gramaticistas. (LAPLANTINE, 2004, p. 76)

O objetivo desses artistas era apresentar a descrição mais minuciosa possível da realidade. Essa
empreitada do Realismo – característica do Ocidente, desde os gregos – deseja que seus romances se-
jam uma cópia objetiva do real. Isso a faz aproximar-se do registro etnográfico da Antropologia.
É bem possível que muitos antropólogos sejam sem o saber escritores realistas. A maneira como se procura a descrição
mais completa de um grupo humano através da observação distanciada da “realidade social” é comum às correntes
positivistas das ciências sociais e naturalistas do romance. [...] (LAPLANTINE, 2004, p. 76)

O terceiro modelo de descrição etnográfica que o antropólogo francês apresenta é o pictural,


dos quadros e do retrato. Para ele, o universo da pintura é um dos grandes modelos da descrição. O
modelo permite ao autor pintar a realidade e mostrar os objetos de forma simultânea e não de forma
sucessiva.
O modelo pictural traz uma série de questionamentos importantes para o exercício da Antropo-
logia, que Laplantine destaca em relação ao modelo:
Pintar equivale a uma certa forma de pensar: um pensamento visual que é um pensamento do espaço, de um espaço
que nunca aparece evidente, uma vez que ele é decomposto e recomposto [...] Este último aspecto nos permite colocar
em evidência o fato que a história do olhar e da escrita pictural introduzem uma série de revoluções do espaço. [...] Ou-
tra questão que também merece uma reflexão atenta que nós apenas podemos esboçar aqui, é a de saber se o pintor
ou etnólogo são observadores situados fora da tela e ou do espaço observado. O autor sempre permanece de um único
lado do balcão, servindo e observando os personagens ou, como os taberneiros de antigamente, vem beber um copo
com os clientes? (LAPLANTINE, 2004, p. 77-78)

Segundo o autor, por essas razões, o modelo pictórico contribuiu com a reflexão sobre o olhar e a
pesquisa e ajudou a pensar a descrição etnográfica.

1 O Impressionismo é um movimento artístico surgido na França no século XIX que criou uma nova visão conceitual da natureza utilizando
pinceladas soltas dando ênfase na luz e no movimento. As telas eram pintadas ao ar livre para que o pintor pudesse capturar melhor as
nuances da luz, da natureza e seus movimentos. A arte era classificada como alegre e vibrante, com muita cor e movimento. A presença dos
contrastes, da natureza, transparências luminosas, claridade das cores, sugestão de felicidade e de vida harmoniosa transparecem nas imagens
criadas pelos impressionistas.
198 | Teorias Antropológicas

O último modelo de descrição etnográfica é o modelo da fotografia. Laplantine dá ênfase aos


laços de paternidade entre a pintura, o quadro e a fotografia. O autor toma como modelo de reflexão
sobre a fotografia o livro do francês Roland Barthes (La Chambre Claire, 19802).
O livro de Barthes tornou-se uma referência na reflexão sobre o papel da fotografia. Barthes pro-
cura estabelecer uma relação entre o processo ótico de reprodução da imagem (a câmara clara [câmara
lúcida] e o da fotografia [câmara escura]).
Tal como escreve Roland Barthes [...] [a fotografia] “não sabe dizer o que ela oferece ao olhar” [...] Ela é quase sempre
um cântico alternando o “Veja”, “Vê”, “Aqui está”. Já situamos antes a descrição do lado da contemplação e não da ação.
A fotografia pode ser fonte de aborrecimento, mas ela pode também provocar aquilo que Barthes chama de “êxtase
fotográfico”. (LAPLANTINE, 2004, p. 80-81)

Laplantine destaca a ligação visceral da fotografia com seu referente. Ela confere um grau de ob-
jetividade ao objeto ou sujeito observados. A fotografia tem um tal poder de objetividade que dobra o
sectarismo e as dúvidas, ante as evidências por ela apresentada.
Para Laplantine:
O que funda a especificidade da descrição fotográfica é um laço absolutamente indefectível com o seu referente. Enquan-
to a descrição naturalista designa e que a descrição pictórica evoca ou sugere, a imagem, quanto a ela, oferece-se inteira-
mente como substituição do real. [...] A fotografia, quanto a ela, coloca imediatamente um termo ao cepticismo relativo a
uma questão e à dúvida quanto a uma interrogação. [...] Ela é da ordem da certeza, da evidência, e mais ainda da prova da
objetividade dos fatos. [...] Tudo pode ser recusado na existência, salvo a fotografia. (LAPLANTINE, 2004, p. 81)

A seguir, em sua linha de raciocínio sobre o modelo de descrição etnográfica propiciado pela
fotografia, Laplantine destaca a singularidade da fotografia. Segundo o autor, é impossível falar da fo-
tografia em geral. Só é possível falar unicamente de uma fotografia. Ela é a reprodução de uma cena, de
uma paisagem de um personagem, em sua “singularidade e contingência”.
[...] A fotografia é realmente o modelo perfeito da descrição do que é único e que nunca se repete. Ela capta o fugitivo, o
aleatório, o singular, em sua nudez e em seu silêncio, sem induzir em si o menor efeito de causalidade, a menor procura
de uma ordem escondida por trás das aparências [...] (LAPLANTINE, 2004, p. 82)

Encerrando sua caminhada no bosque da descrição fotográfica, Laplantine dedica-se a apontar


dois momentos fundamentais da utilização dessa forma de descrição na etnografia, que se tornaram
modelo na disciplina.
O primeiro momento fundamental foi com Malinowski e a utilização que ele fez – e mais tarde
Marcel Mauss – da fotografia no seu clássico livro sobre os Trobiandeses:
Um dos pontos de partida que fez com que em Antropologia Social e Cultural se recorresse à fotografia foi certamente
Os Argonautas do Pacífico Ocidental de Malinowski publicado com fotos tiradas a partir de 1914 pelo autor. Este livro,
realmente pioneiro, vai abrir o caminho daquilo a que chamamos hoje Antropologia Visual. (LAPLANTINE, 2004, p. 83)

Agora, Marcel Mauss:


[...] Alguns anos mais tarde, Marcel Mauss, em seus cursos no Instituto de Etnologia de Paris, recomendava a seus estudan-
tes, entre os diferentes métodos de observação, “o método fotográfico”: “todos os objetos devem ser fotografados”, diz ele,
acrescentando ainda que convém empregar se possível fotografias tiradas de avião [...] (LAPLANTINE, 2004, p. 84)

O segundo momento fundamental do recurso fotográfico na descrição etnográfica foi a contribui-


ção considerada decisiva de Gregory Bateson e Margaret Mead, de seu longo trabalho de campo em Bali:

2 No Brasil, o livro foi editado com o título A Câmara Clara: nota sobre a fotografia.
Antropologia Visual e a descrição etnográfica | 199

[Após Malinowski] Será preciso, no entanto, esperar ainda uns quinze anos para que a fotografia etnográfica assuma
um autêntico estatuto: será com a obra de Gregory Bateson e de Margaret Mead. Em Bali, durante dois anos, os dois
pesquisadores põem em prática as últimas páginas de Naven: “Não podemos nos contentar com observações e entre-
vistas. Precisamos utilizar autênticas técnicas de análise descritiva dos gestos, das posturas, das mímicas”. Eles flagram
25 000 fotografias e voltam também com uns 700 metros de películas 16 mm. Balinese Character: a photografic analysis,
publicado em 1942, é o resultado desta empresa. A partir da descrição de 700 fotos, Bateson e Mead mostram-nos
como é que moças e moços adquirem corporalmente e interiorizam os modelos de aprendizado da cultura balinesa
(LAPLANTINE, 2004, p. 84)

Proclamando o caráter insubstituível da fotografia na descrição etnográfica, Laplantine conclui


sua argüição com o alerta de como a fotografia pode impedir o etnógrafo de cair nas armadilhas do
dogmatismo:
Descrever é sempre descrever a partir de uma perspectiva: ao perto, ao longe, em face, do lado, de través... Em suma,
a fotografia permite à escrita etnográfica (instrumentalizada ou não) evitar às armadilhas e as ilusões do pensamento
dogmático, cuja particularidade é ser afirmativo, unívoco e de certo modo monofocalizado. (LAPLANTINE, 2004, p. 86)

Roland Barthes (1915-1980) –


Antropologia e a mensagem fotográfica
O francês Roland Barthes exerceu uma série de atividades intelectuais e foi uma das figuras mais
importantes do debate conceitual em sua época. Barthes brilhou no cenário intelectual como escritor,
sociólogo, crítico literário, semiólogo3 e filósofo.
Como muitos intelectuais de sua época, sua reflexão foi influenciada pelo pensamento da Escola
Estruturalista, inaugurada pelo lingüista Ferdinand de Saussure.
Formado em Letras Clássicas, Gramática e Filosofia, pela Universidade de Paris, entre os anos de
1939 e 1943, Barthes trabalhou no Centre National de la Recherche Scientifique (CNRS), na década de 1950.
Uma de suas mais importantes obras sobre a reflexão da fotografia foi “A Câmara Clara”. No livro,
Barthes procura estabelecer uma relação entre o processo de reprodução de imagem (instrumento de
prismas de reflexão total, mediante o qual se pode observar simultaneamente um objeto e a sua ima-
gem projetada sobre uma folha de papel, para ser desenhada) e o da fotografia.
Segundo Barthes, a fotografia é o objeto de três práticas: fazer, suportar e olhar.
Eis-me assim, eu próprio, como medida do “saber” fotográfico. O que meu corpo sabe da Fotografia! Observei que uma
foto pode ser objeto de três práticas (ou de três emoções, ou de três intenções): fazer, suportar, olhar. O Operator é o
Fotógrafo. O Spectator somos todos nós, que compulsamos, nos jornais, nos livros, nos álbuns, nos arquivos, coleções
4
de fotos. E aquele ou aquela que é fotografado, é o alvo, o referente, espécie de pequeno simulacro, de eídolon emi-
tido pelo objeto, que de bom grado eu chamaria de Spectrum da Fotografia, porque essa palavra mantém, através de
sua raiz, uma relação com o “espetáculo” e a ele acrescenta essa coisa um pouco terrível que há em toda fotografia: o
retorno do morto. (BARTHES, 1984, p. 20)

3 A semiótica (do grego semeiotiké ou “a arte dos sinais”) é a ciência geral dos signos e da semiose, que estuda todos os fenômenos culturais
como se fossem sistemas sígnicos, isto é, sistemas de significação. Ocupa-se do estudo do processo de significação ou representação, na
natureza e na cultura, do conceito ou da idéia, e investiga qualquer campo de pesquisa: artes visuais, música, fotografia, cinema, culinária,
vestuário, gestos, religião, ciência. Semiólogo ou semioticista é quem se coloca nesse campo de abordagem.
4 Palavra grega. Idolatria que significa imagem, por sua vez, tem origem nas palavras Eídolon (imagem) + latreia (culto).
200 | Teorias Antropológicas

Barthes tinha em mente a fotografia do irmão de Napoleão, Jerônimo, que encabeça a abertura
desse livro:
Um dia, há muito tempo, dei com uma fotografia do último irmão de Napoleão, Jerônimo (1852). Eu me disse então,
com um espanto que jamais pude reduzir: “Vejo os olhos que viram o Imperador”. Vez ou outra, eu falava desse espanto,
mas como ninguém parecia compartilhá-lo, nem mesmo compreendê-lo (a vida é, assim, feita de golpes de pequenas
solidões), eu esqueci. Meu interesse pela Fotografia adquiriu uma postura mais cultural. Decretei que gostava da Foto
contra o cinema, do qual, todavia, eu não chegava a separá-la. Essa questão se fazia insistente. Em relação à Fotografia,
eu era tomado de um desejo “ontológico”: eu queria saber a qualquer preço o que ela era “em si”, por que traço essencial
ela se distinguia da comunidade das imagens. Um desejo como esse queria dizer que, no fundo, fora das evidências
provenientes da técnica e do uso e a despeito de sua formidável expansão contemporânea, eu não estava certo de que
a Fotografia existisse, de que ela dispusesse de um “gênio” próprio. (BARTHES, 1984, p. 12)

Barthes dirá que sem a intervenção do observador (pessoal e subjetiva), a fotografia ficaria li-
mitada ao registro documental. O livro foi a última obra do autor publicada, poucos dias antes de ser
atropelado e morrer, em 1980.
Apesar da receptividade de “Câmara Clara”, foi um outro ensaio de Barthes que apresentou uma
metódica de utilização da fotografia em jornal como um elemento de análise da realidade social e,
portanto, dentro de um contexto de descrição etnográfica, com aspectos conotativos e denotativos: “A
mensagem fotográfica”.
O texto faz parte de uma coletânea publicada, em 1990, com comentário de Luiz Costa Lima:
Teoria da Cultura de Massa, editado pela Paz e Terra.
No texto, Barthes se dedicará em deslindar os meandros da linguagem fotográfica da imprensa.
Para o autor, a mensagem fotográfica da imprensa tem, como qualquer mensagem, três partes: emis-
são, canal e meio receptor. A partir dessa constatação, ele passa a analisar as características próprias
dessa forma de linguagem.
A fotografia de imprensa é uma mensagem. A totalidade dessa mensagem é constituida por uma fonte emissora, um
canal de transmissão e um meio receptor. A fonte emissora é a redação do jornal, o grupo de técnicos, dentre os quais
uns batem foto, outros a escolhem, a compõem, a tratam, e outros enfim a intitulam, preparam uma legenda para ela
e a comentam. O meio receptor é o público que lê o jornal. E o canal de transmissão é o próprio jornal, ou, mais exata-
mente, um complexo de mensagens concorrentes, de que a foto é o centro, mas de que os contornos são cosntituídos
pelo texto, título, legenda, paginação, e , de maneira mais abstrata mas não menos “informante”, pelo próprio nome do
jornal (pois este nome pode constituir saber que pode fazer infletir fortemente a leitura da mensagem propriamente
dita: uma foto pode mudar de sentido ao passar de l’Aurore para l’Humanité). (BARTHES, 1990, p. 303)

Nesse contexto, mais do que um produto, a fotografia é dotada de “uma autonomia estrutural”.
Para analisá-la, Barthes recorrerá à metodologia estruturalista. A totalidade da informação é constituída
de duas estruturas convergentes e heterogêneas. No texto, a substância da mensagem são as palavras;
a substância da fotografia é constituída por linhas, superfícies e tonalidades.
Segundo Barthes, primeiro, a análise deve incidir sobre as estruturas separadamente. Esgotada
a análise em cada uma das estruturas – texto e imagem – compreende-se, então, a maneira como se
completam.
Barthes explorará o que ele chama de “paradoxo fotográfico”. A fotografia tem uma dimensão de
analogon (analogia), perfeita analogia com a realidade, a reprodução dos aspectos visíveis da realidade
fotografada: a analogia mecânica com a realidade, denotatividade. Mas ela tem também uma dimensão
subjetiva, conotativa: a leitura que a sociedade faz dessa fotografia.
[...] O paradoxo fotográfico seria então a coexistência de duas mensagens, uma sem código (seria o análogo fotográfi-
co) e outra com código (seria a “arte” ou o tratamento ou a “escritura” ou a “retórica” da fotografia): estruturalmente, o
Antropologia Visual e a descrição etnográfica | 201

paradoxo não é evidentemente a colusão de uma mensagem denotada e de uma mensagem conotada [...]. Este para-
doxo estrutural coincide com um paradoxo ético [...] [ele] obriga, portanto, a um verdadeiro deciframento. (BARTHES,
1990, p. 307)

Segundo Barthes, o registro do real, analogon, a mensagem sem código, dá-se com a imagem,
pura e simples, imagem denotativa. A dimensão conotativa, entretanto, dá-se com uma série de opções
feitas pelo fotógrafo: nível de produção da fotografia (tratamento, escolha técnica, enquadramento,
paginação). O processo de conotação tem seis procedimentos, divididos em dois grupos:
::: primeiro grupo – trucagem, pose, objetos;
::: segundo grupo – fotogenia, estetismo e sintaxe.
Nos primeiros procedimentos, a conotação é produzida por uma modificação do próprio real;
modificação da mensagem denotada.
Para Barthes, esses termos estruturais têm funções específicas na construção da dimensão cono-
tativa (subjetiva) da fotografia.
A trucagem utiliza-se da credibilidade particular da fotografia. Ela intervém no plano de deno-
tação. Os jornais usam e abusam desse recurso. A trucagem ocorre quando um jornal fotografa um
personagem abraçado a outro de forma que, de certo ângulo, pareça que eles estão se beijando. O en-
quadramento da imagem conota (dá a entender) uma postura diferente da intenção dos personagens.
As poses têm uma reserva de atitudes estereotipadas chamadas de “gramática histórica”. Elas
usam da associação de imagens para conotar uma mensagem. Uma fotografia de alguém de terno e
gravata conota seriedade e sobriedade. Uma fotografia de alguém de chinelo e bermuda conota uma
pessoa descontraída.
Os objetos, segundo Barthes, indutores, correntes de associação de idéias (livros conotam inteli-
gência, assim como os óculos; armas conotam violência).
A fotogenia é uma estrutura informativa, onde a mensagem é conotada pela própria imagem,
ou embelezamento da imagem (iluminação mais acentuada, impressão em papel de qualidade com
impressão e tintas especiais, e pela tiragem).
O estetismo remete à fotografia para a idéia de um quadro, contrário à pintura verdadeira. Segun-
do Barthes, isso ocorre, quando a fotografia se faz pintura, para impor um significado mais sutil e mais
complexo, que o permitiriam outro processo conotativo.
Por fim, a sintaxe é uma leitura discursiva de objetos e signos. O encadeamento das informações
induz a uma leitura específica, que pode ser diferente de uma pessoa para outra.
Dessa forma, com uma sacada genial, Barthes explorou as dimensões do paradoxo da fotografia
(dimensão denotativa – analogia com a realidade – e dimensão conotativa – aspectos subjetivos que
interferem na leitura da fotografia).
Para finalizar, Barthes faz três observações:
::: o texto constitui uma mensagem parasita, destinado a conotar a imagem;
::: o efeito da conotação é provavelmente diferente segundo o modo de apresentação do discur-
so; quanto mais próximo está o discurso da imagem, menos parece conotá-la;
202 | Teorias Antropológicas

::: é impossível à palavra dublar a imagem, pois na passagem de uma estrutura à outra elaboram-
se significados distintos.
Viu-se que o código de conotação não era verossimilmente nem “natural”, nem “artificial”, mas histórico, ou, se se prefe-
re: “cultural”; os signos aí são gestos, atitudes, expressões ou efeitos, dotados de certos sentidos em virtude do uso de
uma certa sociedade: a ligação entre o significante e o significado, isto é, a significação propriamente dita, permanece
senão imotivada, pelo menos inteiramente histórica. Não se pode dizer, portanto, que o homem moderno projete na
leitura da fotografia sentimentos e valores caracteriais ou “eternos”, isto é, infra- ou trans-históricos, a menos que se
precise bem que a significação seja sempre elaborada por uma sociedade e uma história definidas; a significação é, em
suma, o movimento dialético que resolve a contradição entre o homem cultural e o homem natural. (BARTHES, 1990,
p. 313)

Barthes conclui o texto abordando a conotação ideológica (conotação perceptiva, conotação


cognitiva).
[...] resta o problema da conotação ideológica (no sentido mais amplo do termo) ou ética, a que introduz na leitura da
imagem razões ou valores. É uma conotação forte, exige um significante muito elaborado, ordinariamente de ordem
sintática: reencontro de personagens (como foi visto a propósito da trucagem), desenvolvimento de atitudes, conste-
lação de objetos; o filho do Xá do Iran acaba de nascer; eis na fotografia: a realeza (berço adorado por uma multidão de
servidores que o rodeiam), a riqueza (várias nurses), a higiene (blusas brancas, teto do berço em plexiglass), a condição
apesar de tudo humana dos reis (o bebê chora), isto é, todos os elementos contraditórios do mito principesco, tal como
o consumimos hoje. [...] a denotação, ou a sua aparência, é uma força imponente a modificar as opiniões políticas:
nenhuma foto jamais convenceu ou desmentiu alguém (mas ela pode “confirmar”) na medida em que a consciência
política é talvez inexistente fora do logos: a política é o que permite todas as linguagens. (BARTHES, 1990, p. 314- 315)

O aspecto forte do texto é a constituição de uma metodologia, anexada ao Estruturalismo, para


a leitura da fotografia, como objeto paradoxal: uma dimensão denotativa (analógica) e outra dimensão
conotativa (subjetiva histórica). Essa foi uma grande contribuição de Barthes à compreensão e apreen-
são da fotografia como forma de descrição etnográfica, e para a sua calibragem no âmbito da Antropo-
logia Visual, que vai além do registro fotográfico, a abarca outras formas de produção de imagens, como
o vídeo, o filme, a imagem pictórica, entre outras.

Considerações finais
A Antropologia Visual tem no recurso da fotografia um importante instrumento de descrição et-
nográfica. Desde a metade da década de 1910, a fotografia tem sido usada com bons resultados, no
campo da etnografia.
Malinowski e Margaret Mead usaram com sucesso esse recurso, em seus trabalhos de campo. De
uma certa forma, essas experiências construíram uma referência para as futuras gerações de etnógrafos,
que rasgaram os continentes, para registrar a diversidade humana e cultural dos povos.
O texto de Barthes, entretanto, serve de alerta. A fotografia é polissêmica. Ela tem duas dimen-
sões distintas: a denotativa, que é a reprodução factual da realidade registrada, tal como ela se apresen-
ta ao capturador da informação: a conotativa, que é histórica e opera, ora na distribuição das imagens
fotográficas, ora na produção dessa informação.
As categorias de análise apresentadas por Barthes – trucagem, pose, objetos, fotogenia, este-
tismo e sintaxe – podem se estender para outras formas de produção de imagens, como o vídeo e as
produções multimídias. Nesses suportes há também a articulação dessas duas dimensões.
Antropologia Visual e a descrição etnográfica | 203

Essas categorias também favorecem o etnógrafo, na análise do material colhido em campo. Pelo
lado dos sujeitos investigados, os informantes conhecem muitas vezes mais do que o etnógrafo, os
recursos tecnológicos de capturação de imagens podem lançar mão desses recursos e induzir o etnó-
grafo a erros de análise e interpretação – associação planejada de gestos e a interferência de outros
personagens no enquadramento fotográfico; a pose deliberadamente debochada, a utilização de obje-
tos descontextualizados – utilização inadequada de utensílios de caça, pesca, cerimônia religiosa, entre
outros.
Pelo lado do etnógrafo a situação também pode induzir ao erro analítico: a utilização de uma luz
mais forte, para melhorar a imagem; o recurso de edição de imagens; a associação deliberada de infor-
mações que articulem uma mensagem para o receptor.
São todos cuidados que ensinam o etnógrafo no seu trabalho e não permitem o desfalecimento
de sua vigilância epistemológica.
Os diversos recursos de produção imagética, cada vez, converter-se-ão em instrumentos importan-
tes da descrição etnográfica, contribuindo para a apreensão e compreensão do complexo quadro da di-
versidade humana e cultural que reinventam, a cada minuto, a feição desse ecossistema chamado Terra.

Texto complementar

Pierre Fatumbi Verger – mensageiro entre dois mundos


(GOMES, 2008)
A imagem é uma linguagem que alcançou espaço no meio acadêmico e hoje não está mais
separada do saber científico. A Antropologia neste novo contexto de subjetividade na qual a socie-
dade deve ser concebida como uma linguagem vem ampliando seus horizontes metodológicos e
incorporando a fotografia não apenas como um recurso, mas como um meio de expressão do com-
portamento cultural:
Considerar a imagem com uma linguagem visual composta de diversos tipos de signos equivale a considerá-la
como uma linguagem e, portanto, como uma ferramenta de expressão e de comunicação. Seja ela expressiva ou
comunicativa, é possível admitir que uma imagem sempre constitui uma mensagem para o outro, mesmo quando
o outro somos nós mesmos. Por isso, uma das precauções necessárias para compreender da melhor forma possível
uma mensagem visual é buscar para quem ela foi produzida. (JOLY, Martine. Introdução à Análise da Imagem. 6.
ed. Campinas, SP: Papirus, 1996)

A Antropologia Visual é a interação das linguagens textual e visual e essa interação pode con-
tribuir muito para o entendimento dos significados culturais tornando as pesquisas etnográficas
mais completas, já que, quando se é difícil descrever situações a imagem fala e quando as estruturas
e relações estão em jogo, o texto se faz presente.
Encontrar o equilíbrio entre as técnicas de repente seja o complexo na nova Antropologia, mas
quando alguém consegue fica claro que não é impossível de fazê-lo.
204 | Teorias Antropológicas

Pierre Verger talvez seja o fotógrafo/etnógrafo que alcançou isto quando ainda a discussão de
validade acadêmica da fotografia estava acontecendo.
O filme Pierre Fatumbi Verger: mensageiro entre dois mundos, sobre a vida e a obra do francês
que se tornou baiano fundamental, foi narrado e apresentado por Gilberto Gil, que encarna o papel
de refazer os caminhos percorridos por Verger, nos três continentes: África, Europa e América; mos-
trando sua vida e pesquisa que se misturam aos olhos de quem começa estudá-lo.
O enredo do filme é intenso entre os mundos baiano e africano, o tempo todo somos emba-
lados por atabaques tocados com força e vigor, o contraste sempre muito presente reforça o olhar
que Verger tinha, misturado às cores e línguas que faz do mistério e do segredo personagens que
estão ali, na Bahia, na África, em Verger, no filme.
Pierre Verger vê no ano de 1932 um marco, após a morte da mãe, torna-se um fotógrafo via-
jante. De dezembro de 1932 até agosto de 1946, foram quase 14 anos consecutivos de viagens
ao redor do mundo, sobrevivendo exclusivamente da fotografia. Verger negociava suas fotos com
jornais, agências e centros de pesquisa. Fotografou para empresas e até trocou seus serviços por
transporte. Paris tornou-se uma base, um lugar onde revia amigos e podia fazer contatos para no-
vas viagens. Trabalhou para as melhores publicações da época, mas em suas imagens observamos
sempre o olhar atento que registrava os costumes e hábitos de negros por todo mundo. Na sua
viagem à África Ocidental (1935-1936), Verger conhece a cultura iorubá e somente em 1946 chega
a Salvador onde aguçou seu interesse pelas raízes dos costumes locais e a relação entre a cidade
brasileira e o outro lado do Atlântico, iniciando uma pesquisa sobre a cultura e a religião africanas:
cultos aos orixás, a botânica usada nos rituais, o comércio de escravos entre o golfo de Benin e a
Bahia de Todos os Santos foram alguns de seus temas.
Verger, como ele mesmo diz na entrevista incluída no filme, fixou-se na Bahia em “razão do
charme de Salvador”, onde inicialmente não “ousava” fotografar nenhuma pessoa de pele clara.
Nessa pesquisa ele passa 20 anos entre os dois continentes, protegido por uma entidade; torna-se
filho de Mãe Senhora, realizando um trabalho academicamente reconhecido, recebia uma bolsa
de estudos e pesquisas do Institut Français d’Afrique Noire (Ifan) e como resultado apresenta a etno-
grafia Fluxo e refluxo do tráfico de escravos entre o Golfo do Benim e a Bahia de Todos os Santos, dos
séculos XVII a XIX, um trabalho que mostra a forte relação de brasileiros em Benin e africanos em
Salvador. A realização dessa obra se deu de uma maneira mais que participativa, Verger foi primei-
ramente iniciado no candomblé, é nomeado babalaô (pai do segredo, uma espécie de adivinho),
se torna Fatumbi depois de batizado no Ifá (jogo de adivinhação que deu origem ao que é conhe-
cido como jogo de búzios no Brasil). Pierre Fatumbi Verger era integrante, participante e religioso,
ganhou confiança, entrou no mundo de segredos e mistérios que pesquisava. Ele próprio dizia-se
racionalista, que não acreditava e não se considerava pesquisador já que não possuía seriedade e
vontade de perguntar tal como um pesquisador faz, naquele momento ele estava criando um estilo
próprio de fazer etnografia, de pesquisar e fazer ciência. Em 1966 recebeu o título de doutor pela
Academia na Universidade Sorbonne sem mesmo ter uma formação acadêmica, mas uma formação
de conhecimento da realidade.
O diretor Lula Buarque de Hollanda nos leva em uma viagem na vida de Verger e na história
e conhecimentos africanos. Em alguns momentos do filme os detalhes são tantos que parece que
Verger está no segundo plano: a voz dada aos africanos entrevistados é constante, as imagens mos-
Antropologia Visual e a descrição etnográfica | 205

tram as ricas heranças africanas no Brasil, quadros interessantes são apresentados com movimento
e depois a fotografia de Verger, a combinação funciona muito bem. Quando não estamos sendo
invadidos por uma cultura negra com modos de organização, religião e costumes muito particulares
com uma lógica muito elaborada estamos assistindo rituais onde a beleza dos detalhes, das cores,
contrastes, composições se revelam em instantes. As entrevistas das pessoas envolvidas com o can-
domblé e com Verger e os depoimentos de pesquisadores, fotógrafos e amigos como Jean Rouche,
Jorge Amado, Zélia Gattai, Mãe Stella, Pai Agenor, Cid Teixeira e Milton Geran são mesclados com
textos de Verger narrados por Gil.
Gilberto Gil empresta ao filme um pouco de si, de sua crença, fé e emoção. Parece ter se identi-
ficado muito com o papel que lhe é incumbido: refazer o caminho de Verger por Paris, Benin e Bahia,
através das pesquisas de Lula Buarque e Marcos Bernstein. A entrevista que Verger concedeu a Gil
é interessante em vários aspectos, nela o fotógrafo fala do seu racionalismo e surpreende quando
fala que não existe incorporação e sim o extravasamento daquilo que a pessoa é (e/ou que a crença
e o social permitem que ela seja – uma análise, digamos, estruturalista). Outro dado interessante
é quando afirma que não se considera um pesquisador, pois não pergunta “o que é” ou “o que
significa isso”? Parece que Verger ao contrário busca conhecer, no sentido de ter uma experiência
individual e subjetiva, para então fazer análises e abstrações. No entanto o que mais chama a aten-
ção é o que ocorre depois da entrevista, Pierre Verger morre no dia seguinte. Agora não é a vida
e obra de Verger que está virando filme, sua morte também é registrada, é capturada pelas lentes e
sentida pelo narrador (Gil). Mas uma vez, o mistério se faz presente no filme, quando acontece algo
que não pode ser nomeado de mera coincidência de fatos. O final do filme é o final da vida do seu
protagonista: Pierre Fatumbi Verger (1902-1996).

Atividades
1. Por que a descrição fotográfica é considerada polissêmica?
206 | Teorias Antropológicas

2. Como Laplantine apresenta os modelos de descrição etnográfica?

3. Comente a utilização da metodologia estruturalista na análise da fotografia feita por Barthes.

4. De que forma os registros visuais colaboram com o exercício etnográfico?


Gabarito
Vôo panorâmico da “aventura antropológica”
1.
a) Nomes e atividades desenvolvidas pelos primeiros ocupantes da localidade (registrados e
documentados ou registros de crença populares).
b) Mineração, pesca, agrária, comércio, pecuária, área remanescente de quilombo, área
remanescente de aldeias indígenas.
c) Rio, mar, floresta, lagoa, serra.

2.
a) Festas religiosas (Juninas ou S. Benedito, S. Bárbara), Festas Cívicas (Independência, Proclama-
ção da República, Abolição da Escravidão).
b) Religiosa, militar ou civil; turística ou econômica; feriado nacional ou local; de uma comunidade
étnica ou da população em geral.
c) Participação ativa (por quê?) ou participação parcial (por quê?).

3. Com a Teoria do Evolucionismo Social foram realizadas as primeiras experiências científicas


da Antropologia a partir da segunda metade do século XIX. A Teoria do Evolucionismo Social
sistematizou o conhecimento do desenvolvimento das sociedades dos estágios primitivos aos
civilizados, e seus teóricos formularam o conceito de unidade psíquica do homem.
208 | Teorias Antropológicas

A formação da literatura antropológica


1. A expansão marítima propicia a chegada dos europeus ao “Novo Mundo” e o contato com seus
habitantes. Esses povos encontrados eram diferentes em tudo. Seus costumes e comportamentos
provocaram profunda ruptura nas identidades dos povos europeus que compreendiam um
padrão de comportamento ante o mundo. Essa ruptura promove a necessidade de desvendar
tamanhas diferenças apresentadas pelos novos povos.

2. A Antropologia espontânea se ocupava da descrição da riqueza das terras, da fauna e flora, da


topografia, dos povos e seus costumes. Foram os primeiros registros etnográficos da diversidade
humana e cultural.

3. O confronto de costumes e crenças entre os europeus e os povos do “Novo Mundo” impulsionou


a reflexão sobre a natureza humana desses novos povos. Baseados na concepção religiosa de
mundo, os europeus buscavam nas escrituras sagradas a resposta para a questão polêmica do
período: o povo selvagem tem alma?
De um lado a defesa da natureza humana do índio, e do outro a negação da natureza humana dos
indígenas e a defesa de sua submissão aos europeus.

4. Com o Iluminismo surge uma nova visão sobre o debate da natureza humana e suas realizações.
As diferenças humanas e culturais passam a ser compreendidas pelo universo da ciência e não
mais pelo universo teológico. Os teólogos que antes polemizavam acerca da diversidade e da
alteridade são substituídos pelos filósofos nos séculos seguintes.

Evolucionismo Social: o ingresso da Antropologia na Era da Ciência


1. No século XIX, as potências européias já tinham conhecimento da existência dos Novos Mundos
e seus povos. Fez-se necessário, então, um projeto de ocupação e exploração econômica
desses novos territórios. Nessa mesma época surge o Evolucionismo Social como ciência que
estuda o deslocamento do homem no espaço e no tempo e suas realizações, o que permitiu a
compreensão e o desenvolvimento de mecanismos eficientes de dominação desses novos povos
e seus territórios.

2. A Antropologia Científica contava com os “Homens de ciência” que através da sistematização das
informações coletadas pelos administradores coloniais, sobre os novos povos, estudavam o de-
senvolvimento do homem e de suas realizações materiais e imateriais nos eixos do tempo e do
espaço. O conceito de evolução da espécie e de suas realizações é amplamente explorado nas
teorias elaboradas sob a ótica do Evolucionismo Social, fundamental para a constituição do saber
antropológico.

3. As teorias elaboradas na escola do Evolucionismo Social são apoiadas no conceito de evolução


da espécie e de suas sociedades. Uma das teorias importantes que marca os estudos sobre o
Gabarito | 209

desenvolvimento das sociedades e culturas humanas é a do cientista Lewis Henry Morgan.


Sua obra divide em estágios o desenvolvimento da sociedade humana: a selvageria, a barbárie
e a civilização. A classificação de cada estágio está baseada na capacidade de reprodução
tecnológica que garante ao homem superioridade e domínio sobre a natureza e suas condições
de existência.

4. O conceito de “unidade histórica” do homem, desenvolvido na escola evolucionista, passou


a expressar a idéia de que no processo de “seleção natural” os mais aptos – os europeus –
sobreviveriam como um povo superior aos demais. Esse pensamento, o “racismo científico”, teve
forte influência sobre a intelectualidade brasileira que estudava a formação da sociedade e as
políticas adotadas para essa sociedade no século XIX.

Antropologia Difusionista: a reação à racialização das relações humanas


1. Os teóricos difusionistas consideravam a cultura como fator determinante da diversidade cultural
humana e que os grupos humanos possuiam as mesmas raízes culturais, não havendo, então,
raças superiores ou inferiores e sim povos distintos nas formas de apropriação dos elementos
culturais. E os seres humanos em todos os povos têm as mesmas capacidades e competências.

2. O teórico Friedrich Ratzel considerava que as condições do meio em que viviam determinavam
a constituição física e as representações mentais e psicológicas dos homens, explicando assim a
diversidade de culturas entre os povos.

3. A Escola Difusionista Inglesa, reagindo ao racismo do Evolucionismo Social, defendia que todas as
culturas teriam a mesma origem geográfica e humana, o Egito.

4. O difusionista Franz Boas considerava em seus estudos a particularidade histórica de cada povo
estudado. Defendeu que cada cultura se desenvolve de maneira singular em cada grupo humano
que deve ser estudado em seu universo cultural sem que essa diversidade de culturas caracterize
uma superioridade racial.

Antropologia: objeto e metodologia de investigação


1. Na Escola Sociológica Francesa foram desenvolvidas pesquisas centradas nas representações
coletivas da sociedade. A realização desses estudos definiu os fenômenos sociais como objeto de
investigação socioantropológico e também a metodologia a ser utilizada na formulação da teoria
do conhecimento.

2. Para Émile Durkheim, as instituições – familiares, escolares, governamentais, religiosas ou policiais


– cumprem a função de manter a ordem social preservando as normas e leis que regem as relações
sociais. A ausência dessas normas sociais provoca a anomia, que compromete a coesão e a saúde
da sociedade e de seus membros.
210 | Teorias Antropológicas

3. O conceito de “fato social total”, formulado por Marcel Mauss, consiste na articulação biológica,
psicológica e sociológica nas relações sociais. Essa articulação possibilita um permanente sistema
de comunicação física e simbólica constituindo o fundamento da vida social.

4. No final do século XIX, os reflexos dos conflitos políticos e sociais – a derrota de Sedan, a Comuna
de Paris, a III República, os movimentos operários, a instituição do divórcio e a instituição da
educação laica – que passaram a fazer parte da história da França, influenciaram sobremaneira
os estudos de Émile Durkheim, que, preocupado com as questões sociais da época, centrou suas
pesquisas nas representações coletivas da sociedade.

Antropologia Funcionalista: a função das instituições


na manutenção da sociedade
1. A Escola Antropológica Funcionalista priorizou o estudo da organização dos sistemas sociais. Seus
teóricos, através da observação participante e da narrativa monográfica, desenvolveram pesqui-
sas sobre a função das instituições na manutenção da totalidade cultural numa dada sociedade e
seus esforços estavam em compreender de forma sincrônica e explicar cientificamente o universo
cultural dos povos estudados.

2. O antropólogo Bronislaw Malinowski sistematizou a observação participante e a técnica etnográfica


na Escola Funcionalista. Seus estudos compreendiam as motivações sociais, psicológicas e
biológicas de um grupo humano, exigiam que o pesquisador em campo exercitas-se o “olhar” para
apreender a visão de mundo dos povos estudados e, de forma imparcial, procede-se o registro
detalhado e verdadeiro de suas observações, o que contribuiu para a construção do trabalho
antropológico no imaginário social.

3. Na Teoria Funcionalista, as sociedades devem ser estudadas em sua totalidade, na forma como
se apresentam no momento da observação e independentes dos processos de transmissão
de elementos culturais que tenham ocorrido no passado, contrapondo-se, assim, às visões
evolucionistas e difusionistas na Antropologia.

4. Segundo o teórico Radcliffe-Brown, a Antropologia Social deveria estudar casos concretos


das sociedades humanas conhecendo suas semelhanças e diferenças estruturais por meio da
pesquisa científica. E o método do estudo comparativo permitia a compreensão das instituições,
a identificação das leis de funcionamento e a comparação sistemática das organizações sociais.
Gabarito | 211

Escola antropológica do Culturalismo Norte-Americano


e seus desdobramentos
1. As Teorias Antropológicas Culturalistas explicavam a diversidade cultural dos povos a partir dos
pressupostos do Relativismo Cultural. Os padrões culturais evidenciam as singularidades cul-
turais, resultantes das necessidades particulares, biológicas, sociais e psíquicas dos indivíduos de
determinado grupo e de suas formas de organização, sem que essas especificidades determinem
ou indiquem a superioridade de um povo em relação a outro.

2. A Antropologia Culturalista empenhou-se na compreensão do desenvolvimento das culturas


e comportamento dos indivíduos de determinado grupo. Nesses estudos seus pesquisadores
foram intelectualmente influenciados pelo teórico Franz Boas. O trabalho de campo, o modelo
etnográfico e o estudo comparativo utilizados no Relativismo Cultural de Boas foram ferramentas
importantes nos desdobramentos conceituais da Escola Antropológica Culturalista.

3. A antropóloga Margaret Mead identifica três tipos distintos de cultura: a pós-figurativa, a co-
figurativa e a pré-figurativa, em que cada uma determina um tipo de organização que modela a
personalidade dos homens e mulheres de um grupo social.

4. O interesse pela heterogeneidade cultural atraiu os estudos antropológicos culturalistas que en-
contraram no Brasil, considerado um laboratório racial, a possibilidade de compreender a presen-
ça africana na miscigenação cultural da civilização brasileira.

A escola antropológica do Estruturalismo francês


1. O Estruturalismo inaugurado pelo antropólogo Claude Lévi-Strauss permitiu a pesquisa sobre
a forma de organização da mente humana e as regras estruturantes da cultura com os estudos
sobre as relações de parentesco, o sistema cognitivo dos povos primitivos e a distinção entre na-
tureza e cultura.

2. Para o teórico Lévi-Strauss, o Estruturalismo é uma ciência da comunicação. Um conjunto de nor-


mas e regras culturais que asseguram a comunicação entre os indivíduos de determinado grupo
revela o inconsciente da sociedade.
212 | Teorias Antropológicas

3. A análise de Simone de Beauvoir sobre as estruturas elementares do parentesco afirma que Lévi-
Strauss estuda os mistérios da sociedade, o mistério do homem. O antropólogo aborda o incesto
considerando a existência de fatos da natureza e de fatos da cultura. E compreende que a proibi-
ção do incesto e a norma da exogamia garantem o controle das relações sociais, a reciprocidade
entre os indivíduos e comunicação interna de um grupo.

4. Segundo Lévi-Strauss, existem duas formas de organização da sociedade. As sociedades frias são
orientadas por mitos, uma linguagem simbólica, são narrativas construídas com a ressignificação
de elementos de outros sistemas de significação. E as sociedades quentes estão em permanente
transformação tecnológica, a exemplo do que ocorre nas chamadas sociedades civilizadas.

A Antropologia Interpre­tativa ou Hermenêutica


1. O antropólogo Clifford Geertz observou que a organização das sociedades está centrada na
cultura e essa possui um sistema de signos de poder que estabelecem eficazes formas de controle
social.

2. A Teoria Antropológica Interpretativa utiliza a hermenêutica – interpretação de textos filosóficos


ou religiosos – como técnica para as possíveis interpretações do discurso de uma sociedade que
pode assim ser lida como um texto cultural.

3. Clifford Geertz inaugura a Antropologia Interpretativa provocando a ruptura do que ele chamou
de “provincialismo cultural” – padrões generalizados da sociedade – o que limitava o estudo dos
elementos das culturas que devem ser entendidos, interpretados.

Antropologia Pós-Moderna ou Crítica


1. A Antropologia Pós-Moderna preocupa-se com a construção do modelo textual das etnografias
contemporâneas. Os registros etnográficos devem representar a polifonia (várias vozes) nas cul-
turas polissêmicas (múltiplas-plurais) interessando-se pela apreensão das experiências cotidianas
dos “nativos”, favorecendo a politização do fazer e pensar antropológicos.

2. A Antropologia Pós-Moderna se constitui de várias teorias que defendem mudanças na relação


observador/observado. A meta-etnografia concebe os registros etnográficos como elaboração
de ensaios literários. A etnografia experimental problematiza os procedimentos em campo,
exigindo que a observação participante do etnógrafo seja uma apreensão da realidade estudada.
A vanguarda pós-moderna argumenta a favor de novas práticas e modelos teóricos que devem
romper com pressupostos científicos da Antropologia no passado.

3. James Clifford valoriza a dimensão literária do fazer antropológico, as relações que envolvem o
etnógrafo, seu informante e a cultura estudada. Segundo Clifford, a imparcialidade exercitada na
Gabarito | 213

pesquisa científica até as primeiras décadas do século XX distancia o universo cultural estudado
do registro feito a partir da observação axiológica desse universo cultural, contestando assim,
a autoridade das produções etnográficas que compromete a compreensão dessa realidade
cultural.

Antropologia Urbana – o antropólogo e a cidade


1. O geógrafo Milton Santos destaca “a globalização como fábula”, “a globalização como perversidade”
e “uma outra globalização” como três versões de mundo que surgem nas sociedades globalizadas.

2. O novo cenário da Antropologia Urbana desafiou o etnógrafo moderno a buscar uma metodo-
logia eficaz de observação e estudo da realidade urbana contemporânea. Disposto a contribuir
para a superação desse desafio, José Magnani propõe a articulação de duas linhas de reflexão:
uma sobre a cidade – caos urbano e caos semiológico, e outra sobre a etnografia – dinâmica
cultural e formas de sociabilidade. Essa articulação possibilita a delimitação de um campo e suas
alternativas de análise.

3. A antropologia urbana observa a cidade contemporânea como um ecossistema social que apre-
senta profundas contradições materiais e imateriais. O desenvolvimento de uma etnografia urba-
na para o estudo desse cenário definiu a cidade como um sistema complexo, múltiplo, polifônico
e mutante.

4. Nas pesquisas sobre as regiões e suas funções na organização territorial, o professor Milton Santos
observa que cada região do Brasil passou por uma forma diferente de processo de urbanização.
Diferença justificada pela categoria na qual está inserida determinada região. Essas categorias
são: as zonas de densidade e de rarefação, fluidez e viscosidade, espaços de rapidez e de lentidão,
espaços luminosos e espaços opacos, espaços que mandam e espaços que obedecem e as novas
lógicas que regulam a relação centro-periferia. Esse mesmo processo apresenta dois movimentos
de reorganização das regiões do país: um movimento impulsionado pela globalização e outro
pela necessidade de redefinição das funções produtivas.

Antropologia Visual e a descrição etnográfica


1. A fotografia é considerada polissêmica por apresentar duas dimensões. Segundo Barthes, a di-
mensão conotativa é a leitura que a sociedade faz da imagem e a dimensão denotativa é o regis-
tro real da imagem.

2. O antropólogo François Laplantine apresenta quatro modelos de descrição etnográfica: o mo-


delo das ciências naturais – fundador da ordem descritiva; o modelo dos romances naturalistas
– descrição minuciosa da realidade; o modelo pictórico – reflexão sobre o olhar e a escrita; e o
modelo fotográfico – objetividade dos fatos observados.
214 | Teorias Antropológicas

3. O francês Roland Barthes utilizou a metodologia estruturalista para a análise da fotografia da


imprensa que considerava ter “uma autonomia estrutural”. Barthes considerou que as estruturas
convergentes e heterogêneas deveriam ser estudadas separadamente para a compreensão da
totalidade das informações.

4. A Antropologia Visual, com seus diversos recursos, possibilita ao exercício etnográfico instrumen-
tos eficazes de descrição que colaboram com a fidelidade do registro dos dados, agem como
facilitadores do diálogo entre as culturas e auxiliam na vigilância epistemológica do etnógrafo.
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Hino Nacional
Poema de Joaquim Osório Duque Estrada
Música de Francisco Manoel da Silva

Parte I Parte II

Ouviram do Ipiranga as margens plácidas Deitado eternamente em berço esplêndido,


De um povo heróico o brado retumbante, Ao som do mar e à luz do céu profundo,
E o sol da liberdade, em raios fúlgidos, Fulguras, ó Brasil, florão da América,
Brilhou no céu da pátria nesse instante. Iluminado ao sol do Novo Mundo!

Se o penhor dessa igualdade Do que a terra, mais garrida,


Conseguimos conquistar com braço forte, Teus risonhos, lindos campos têm mais flores;
Em teu seio, ó liberdade, “Nossos bosques têm mais vida”,
Desafia o nosso peito a própria morte! “Nossa vida” no teu seio “mais amores.”

Ó Pátria amada, Ó Pátria amada,


Idolatrada, Idolatrada,
Salve! Salve! Salve! Salve!

Brasil, um sonho intenso, um raio vívido Brasil, de amor eterno seja símbolo
De amor e de esperança à terra desce, O lábaro que ostentas estrelado,
Se em teu formoso céu, risonho e límpido, E diga o verde-louro dessa flâmula
A imagem do Cruzeiro resplandece. – “Paz no futuro e glória no passado.”

Gigante pela própria natureza, Mas, se ergues da justiça a clava forte,


És belo, és forte, impávido colosso, Verás que um filho teu não foge à luta,
E o teu futuro espelha essa grandeza. Nem teme, quem te adora, a própria morte.

Terra adorada, Terra adorada,


Entre outras mil, Entre outras mil,
És tu, Brasil, És tu, Brasil,
Ó Pátria amada! Ó Pátria amada!

Dos filhos deste solo és mãe gentil, Dos filhos deste solo és mãe gentil,
Pátria amada, Pátria amada,
Brasil! Brasil!

Atualizado ortograficamente em conformidade com a Lei 5.765, de 1971, e com o artigo 3.º da Convenção Ortográfica
celebrada entre Brasil e Portugal em 29/12/1943.
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