Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Sequência 2 • Contos
Grupo I
Parte A
O rosto da jovem que se aproxima é vago e sem contornos, uma pincelada clara, e, quando
os tiver, a esses contornos, ele será o rosto de uma fotografia que tem corrido mundo numa
mala qualquer, que tem morado no fundo de muitas gavetas, o único fetiche 1 de George. As
suas
5 feições ainda são incertas, salpicando a mancha pálida, como acontece com o rosto das
pessoas mortas. Mas, tal como essas pessoas, tem, vai ter, uma voz muito real e viva, uma voz
que a cal e as pás de terra, e a pedra e o tempo, e ainda a distância e a confusão da vida de
George, não prejudicaram. Quando falar não criará espanto, um simples mal-estar.
Agora estão mais perto e ela encontra, ainda sem os ver, dois olhos largos, semicerrados,
1 uma boca fina, cabelos escuros, lisos, sobre um pescoço alto de Modigliani2. Mas nesse tempo,
0 dantes, não sabia quem era Modigliani e outros que tais, não eram lá de casa, os pais tinham
sido condenados pelas instâncias supremas à quase ignorância, gente de trabalho, diziam
como se os outros não trabalhassem, e sorriam um pouco com a superioridade dessa mesma
ignorância se a ouviam falar de um livro, de um filme, de um quadro nem pensar, o único que
tinham visto talvez fosse a velha estampa desbotada do Angelus 3 que estava na casa de jantar.
1 Com superioridade, pois, e também com uma certa indignação. Ou seria mesmo vergonha?
5 Como quem ouve um filho atrasado dizer inépcias4 diante de gente de fora que depois, Senhor,
pode ir contar ao mundo o que ouviu. E rir. E rir.
Já não sabe, não quer saber, quando saiu da vila e partiu à descoberta da cidade grande,
onde, dizia-se lá em casa, as mulheres se perdem. Mais tarde partiu por além-terra, por além-
mar. Fez loiros os cabelos, de todos os loiros, um dia ruivos por cansaço de si, mais tarde
2
castanhos, loiros de novo, esverdeados, nunca escuros, quase pretos, como dantes eram.
0
Teve muitos amores, grandes e não tanto, definitivos e passageiros, simples amores, casou-se,
divorciou-se, partiu, chegou, voltou a partir e a chegar, quantas vezes? Agora está – estava –,
até quando?, em Amesterdão.
Depois de ter deixado a vila, viveu sempre em quartos alugados mais ou menos modestos,
depois em casas mobiladas mais ou menos agradáveis. As últimas foram mesmo francamente
2
confortáveis. [...]
5
Uma casa mobilada, sempre pensou, é a certeza de uma porta aberta de par em par, de
mãos livres, de rua nova à espera dos seus pés.
1. fetiche: objeto que suscita grande interesse e atração. 2. Modigliani: pintor italiano (1884-1920). 3. Angelus: oração católica que se reza
à Virgem Maria; 4. inépcias: absurdos, tolices.
Testes por sequência
Letras em dia, Português, 12 .° ano • Teste 4
1 Explicita o valor da «fotografia» (l. 2), considerando o encontro entre George e a «jovem que se
aproxima» (l. 1) descrito nos dois primeiros parágrafos.
Parte B
Lê o excerto da Farsa de Inês Pereira, de Gil Vicente, e as notas.
5 Compara a perspetiva de mãe e filha quanto ao casamento, considerando as duas últimas falas de
cada uma das personagens.
Regista as letras – (a), (b) e (c) – e, para cada uma delas, o número que corresponde à opção
selecionada em cada um dos casos.
1. laudatória 1. «Não te apresses tu, Inês,/maior é o ano qu’ o 1. a subversão dos valores
2. religiosa mês.» (vv. 23-24) morais e a ambição
3. sacra 2. «– assi me dê Deus o Paraíso,/mil vezes que não 2. a observância dos valores
lavrar.» (vv. 30-31) familiares e religiosos
4. satírica
3. « Logo eu adivinhei/lá na missa onde eu 3. o carácter desinteressado das
estava,/como a minha Inês lavrava/a tarefa que lhe jovens donzelas
eu dei...» (vv. 1-4) 4. o carácter conflituoso
4. «Quero-m’ora alevantar;/folgo mais de falar das mães
nisso,» (vv. 28-29)
Parte C
7 A família, com diferentes configurações, está presente em diversas obras abordadas durante o
ensino secundário.
Baseando-te na tua experiência de leitura, escreve uma breve exposição sobre o modo como a
família é representada em dois dos autores ou em duas das obras que estudaste, no ensino
secundário, no domínio da Educação Literária.
A tua exposição deve incluir:
– uma introdução ao tema;
– um desenvolvimento no qual explicites um aspeto que evidencie o modo como a família é
representada em cada um dos autores ou obras que selecionaste, fundamentando cada um
desses aspetos em, pelo menos, um exemplo pertinente;
– uma conclusão adequada ao desenvolvimento do tema.
Testes por sequência
Letras em dia, Português, 12 .° ano • Teste 4
Grupo II
Tenho andado a viver em casas alugadas desde que vivo por conta própria. Muitas vezes penso
que, tal como as coisas estão em Portugal, é irracional pagar uma renda. Com o mesmo montante
mensal, compra-se uma casa ao banco. Mas a verdade é que me agrada o carácter transitório do
aluguer. Agrada-me ainda mais o carácter subversivo do aluguer: optar por não dever nada à banca, em
5 Portugal, é tão subversivo como optar por um casamento de amor na Índia. Desmorona-se o sistema.
Não gosto da imobilidade definitiva dos imóveis, nem do peso lacónico1 dos móveis. Deprimem-me
as avarias indecifráveis dos eletrodomésticos e as despesas fixas da eletricidade. Perturba-me a
transparência psicológica da decoração: «Diz-me como preenches os teus interiores, e serei obrigado a
saber quem és.» Mesmo que eu não o queira, terei que saber quem és. Irrita-me a ditadura do espaço
1 ditada pelas paredes, e a corrosão do tempo nas paredes.
0 Não gosto de casas, mas gosto de janelas. Há qualquer coisa de sagrado numa janela, um altar
primordial sobre os horizontes das possibilidades humanas, uma revelação que separa a luz das
trevas. A janela representa uma conquista civilizacional, indica uma sociedade que alcançou segurança
e paz, que honra os acordos territoriais estabelecidos com os vizinhos; e que confia num comportamento
semelhante por parte desses vizinhos. Recordo-me de ter atravessado muitas povoações no
1 Afeganistão cujas casas não possuíam o conceito de janela: uma abertura na parede não era um luxo,
5 era um perigo. Imagino que os habitantes dessas casas não sentissem a falta de janelas, porque
simplesmente não deviam pôr a questão de, um dia mais tarde, as colocar.
Uma janela tem, por definição, uma parede a emoldurá-la. A matéria e a sua ausência, a leveza e o
peso contrapostos. Mas nem sempre a parede define a janela por oposição. Por vezes a parede e a
respetiva janela podem concorrer para a mesma sensação de liberdade e movimento: é o caso da
2 parede do compartimento de um comboio, que atravessa campos de trigo soviético, que fura
0 desfiladeiros andinos2, que serpenteia pelas colinas etruscas3 que deram a cor, séculos mais tarde, à
pintura serena de Piero della Francesca. Uma janela pode ser a escotilha de um cargueiro, dar vista
sobre aguaceiros equatoriais, sobre ondas preguiçosas que a proa do navio cruza em diagonal, sobre o
cromatismo sonolento de contentores alinhados em busca de portos orientais.
Para lá da janela estende-se o mistério da paisagem. A casa encerra o espaço, a janela desvenda
2 e oferece o mundo.
5
CADILHE, Gonçalo, 2011. 1 Km de cada vez. Alfragide: Oficina do Livro (pp. 58-59)
1. lacónico: básico; 2. andinos: relativo aos Andes; 3. etruscas: relativas à Etrúria, antiga região da Itália (correspondente à atual Toscana).
1 No primeiro e no segundo parágrafos do texto, o autor assume a sua preferência por casas alugadas
2 Com a expressão «transparência psicológica da decoração» (l. 8), Gonçalo Cadilhe refere-se
(A) à tendência que existe para se analisar o perfil de alguém a partir da decoração da sua
casa.
(B) ao facto de a decoração de um espaço refletir, irrefutavelmente, a personalidade de quem o
ocupa.
(C) à influência que a decoração de uma casa tem nos seus proprietários.
(D) à repercussão que a decoração tem na aquisição de um imóvel.
5 As expressões «o sistema» (l. 5) e «o mistério da paisagem» (l. 27) desempenham a função sintática
de
(A) complemento direto, em ambos os casos.
(B) sujeito, em ambos os casos.
(C) complemento direto e sujeito, respetivamente.
(D) sujeito e complemento direto respetivamente.
Regista as letras – (a), (b) e (c) – e, para cada uma delas, o número que corresponde à opção
selecionada em cada um dos casos.
7 Identifica o ato de fala presente no enunciado «Irrita-me a ditadura do espaço ditada pelas paredes,
e a corrosão do tempo nas paredes.» (ll. 9-10).
Testes por sequência
Letras em dia, Português, 12 .° ano • Teste 4
Grupo III
Num texto de opinião bem estruturado, com um mínimo de duzentas e um máximo de trezentas e
cinquenta palavras, defende uma perspetiva pessoal sobre o(s) papel(éis) que o espaço íntimo (lar)
desempenha na vida do ser humano.
No teu texto:
– explicita, de forma clara e pertinente, o teu ponto de vista, fundamentando-o em dois argumentos,
cada um deles ilustrado com um exemplo significativo;
– utiliza um discurso valorativo (juízo de valor explícito ou implícito).
Observações:
1. Para efeitos de contagem, considera-se uma palavra qualquer sequência delimitada por espaços em branco, mesmo
quando esta integre elementos ligados por hífen (ex.: /dir-se-ia/). Qualquer número conta como uma única palavra,
independentemente do número de algarismos que o constituam (ex.: /2023/).
2. Relativamente ao desvio dos limites de extensão indicados, há que atender ao seguinte:
− um desvio dos limites de extensão indicados implica uma desvalorização parcial do texto produzido;
− um texto com extensão inferior a oitenta palavras é classificado com zero pontos.
Cotações
Item
Grupo
Cotação (em pontos)
1. 2. 3. 4. 5. 6. 7.
I 104
16 16 8 16 16 16 16
1. 2. 3. 4. 5. 6. 7.
II 56
8 8 8 8 8 8 8
III Item único 40
Total 200
Testes por sequência
Letras em dia, Português, 12 .° ano • Teste 4
Parte C
Escrita • Escrever uma exposição,
respeitando as marcas de género.
7. 16 pontos
1. 8 pontos
• Ler textos de diferentes graus
de complexidade argumentativa:
2. 8 pontos
relato de viagem.
Sugestões de resolução do Teste 4 casar, pois acredita que o casamento a libertará das
tarefas domésticas que tanto despreza («Quero-
Grupo I – Parte A m’ora alevantar;/ folgo mais de falar nisso/ – assi me
1. O encontro entre George e Gi, descrito nos dê Deus o Paraíso,/mil vezes que não lavrar.», vv.
parágrafos iniciais, corresponde a um cruzamento 28-31). Por seu lado, a Mãe considera que o papel
entre fases distintas da vida da protagonista (George da mulher, no casamento, é o de cuidar da casa e ter
corresponde à idade adulta e Gi representa o tempo filhos («Quando te não precatares,/virão maridos a
de juventude da mesma). A fotografia, onde surge o pares,/ e filhos de três em três.», vv. 25-27).
rosto de Gi («O rosto da jovem que se aproxima é 6. a) 4; b) 3; c) 1.
vago e sem contornos, uma pincelada clara, e,
quando os tiver, a esses contornos, ele será o rosto Grupo I – Parte C
de uma fotografia que tem corrido mundo», ll. 1-2), é
referida como o único «fetiche» de George, que, 7. Resposta pessoal. Tópicos de resposta:
apesar de estar em constante mudança, mantém – Amor de Perdição, de Camilo Castelo Branco: a
sempre consigo esse retrato («o rosto de uma família surge como instituição que dá prioridade à
fotografia que tem corrido mundo numa mala honra e estatuto social, em detrimento da felicidade
qualquer, que tem morado no fundo de muitas dos seus elementos (as famílias dos protagonistas,
gavetas», ll. 2-3). Assim sendo, é possível concluir Simão Botelho e Teresa Albuquerque, proíbem o
que a «fotografia» representa, na fase adulta da amor do jovem casal, cuja história termina com a
personagem, a ligação ao passado, a fixação da clausura, exílio e morte).
juventude perdida, a imagem ideal da juventude – Os Maias, de Eça de Queirós: obra que relata a
intocada e dos sonhos por cumprir. história da família dos Maias, ao longo de três
gerações (Afonso da Maia, Pedro da Maia e Carlos
2. George pode ser interpretada como protótipo da
da Maia), explorando as suas alegrias, dramas e
mulher independente e profissionalmente realizada,
conflitos. Destaca-se o acolhimento de Carlos da
tendo tido a coragem de enfrentar preconceitos
Maia por parte do seu avô (Afonso), após o suicídio
sociais relativos às mulheres ao abandonar a vila
de seu pai (Pedro), revelando que a família
onde nasceu em busca de um sonho. Deste modo,
representa, acima de tudo, um espaço de refúgio,
as transformações físicas vividas pela personagem
acolhimento e amor.
são reveladoras do carácter livre da personagem,
que exterioriza, através da cor com que pinta o
cabelo, o seu desprendimento em relação à vida, à Grupo II
criação de hábitos e de rotinas e também a sua 1. (B).
quebra com as convenções representadas pelo
2. (A).
ambiente da vila e as perspetivas da família sobre a
sua vida e o seu futuro. 3. (D).
3. (D). 4. (C).
5. (B).
Grupo I – Parte B
6. a) 3; b) 2; c) 2.
4. No excerto apresentado, Inês é caracterizada
como preguiçosa, aspeto denunciado pela própria 7. Ato de fala expressivo.
mãe («Logo eu adivinhei/ lá na missa onde eu
estava,/ como a minha Inês lavrava/ a tarefa que lhe Grupo III
eu dei.../ Acaba esse travesseiro!», vv. 1-5, e «
Resposta pessoal.
Como queres tu casar/com fama de preguiçosa?»,
vv. 15--16). Para além disso, é uma personagem
sonhadora e romântica, desejando,
desesperadamente, casar-se («Prouvesse a Deus!
Que já é razão/de eu não estar tão singela», vv. 12-
13).