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A trama das referências

e os múltiplos sentidos
de Do Inferno
João Paulo Lian Branco Martins
joaopaulobrancomartins@gmail.com
“Eu lhe direi onde estamos. Estamos
na mais extrema e absoluta região da
mente humana, um mundo das
profundezas, escuro e inconsciente. Um
abismo radiante onde os homens
encontram a si mesmos. O Inferno,
Netley. Nós estamos no Inferno.”
“Eu inventei tudo, e
Sir William Gull
acabou se realizando.
Essa é a parte
engraçada.”
Robert Lees
Os crimes
q Whitechapel, Londres
q Agosto a novembro de 1888
q Cinco prostitutas mortas
ü Duas tiveram a garganta
cortada e o corpo mutilado
ü Remoção de órgãos de três
ü Conhecimentos anatômicos?

q A alcunha “Jack, o Estripador” foi tirada de uma


carta enviada à Agência Central de Notícias de
Londres
As cartas

Carta Dear boss

Carta From Hell


Os crimes

A repercussão
q Ampla cobertura jornalística na
época, devido à natureza dos
crimes e ao fracasso da polícia
em efetuar a captura do
criminoso
q Em 127 anos, o mistério
resultou num emaranhado de
pesquisas históricas, teorias
conspiratórias
e folclores duvidosos
Por que Jack fascina?
Nosso dia a dia é marcado por um esforço
contínuo em emprestar sentido, ordem e propósito
à nossa existência. Catástrofes, assim como a
morte, são como grandes fossos de ausência de
sentido no nosso caminho. Grandes tragédias,
naturais ou não, rompem a ordem que conferimos
ao que nos cerca.
Homicídio é uma tragédia. Homicídios sem
solução são enormes lacunas que cobram de nós
significado.
Por que Jack fascina?
Os cinco assassinatos atribuídos ao Jack, o
Estripador, após 127 anos, ainda não foram
solucionados. Trata-se de uns dos primeiros crimes
hediondos que ganharam cobertura da grande
mídia. Aconteceram numa época e numa
sociedade que se orgulhava da ordem e do
progresso positivista.
Não é de se estranhar que tantos se empenhem em
conferir sentido a acontecimentos que agem como
verdadeiros buracos negros, demandando
significado.
A investigação de um crime, em última análise, é a
Por que Jack fascina?
A investigação de um crime, em última análise, é a
expressão desse empenho. Se ela falha, nada
impede que recorramos ao pensamento mágico,
essa tentativa de escapar à angústia tanto do mundo
que nos cerca quanto do que nos é interno. É como
se o fato de estabelecermos uma relação causal
entre eventos desconexos oferecesse um controle
tranquilizador sobre a nossa existência.
Por que Jack fascina?
Crimes hediondos como os do Jack, o Estripador,
até hoje, sem solução e ecoando numa mídia
recém-nascida e com pouco repertório cobram um
sentido e uma ordem, uma explicação, capazes de
nos tranquilizar.
Então, diante da falta de sentido, da falta de
solução, o pensamento mágico preenche a lacuna
com uma hipertrofia de sentidos. Daí a vasta
literatura “Estripadorológica”, repleta de
pesquisas históricas, lendas, teorias conspiratórias e
folclores duvidosos.
“Cinco miseráveis assassinadas, um
agressor anônimo. Essa realidade é
minimizada pelo vasto parque temático que
construímos ao seu redor. Na verdade,
nada disso tem a ver com os assassinatos,
nem com o assassino ou com as vítimas.
Diz respeito a nós. A nossas mentes e
como elas dançam. Jack espelha nossas
histerias. Desprovido de rosto, ele é o
receptáculo para todo novo pânico social. É
um judeu, um médico, um maçom ou um
nobre ensandecido.”
Alan Moore
“A dança dos caçadores de gaivota”
• 31/12/1816 a 29/01/1890
• Primeiro Baronete da Rua Brook e
um dos quatro médicos ordinários
da Rainha Vitória
• Diretor do Guy's Hospital
• Professor titular de Fisiologia
• Presidente da Sociedade Clínica
Sir William Withey Gull

Contribuições para a ciência


Síndrome de Gull-Sutton (Doença Crônica de
Bright, atualmente, Doença Renal Crônica)
q In 1872, com Henry G. Sutton, artigo que revia
etiologia da Doença de Bright.

Medula espinhal e paraplegia


q 3 palestras em 1848
Mixedema
qEm 1873, demonstrou que a
causa do mixedema é a atrofia da
tireoide. "On a cretinoid state
supervening in adult life in women”
Sir William Withey Gull

Anorexia Nervosa
q Em 1873, descreveu três pacientes com quadro
anoréxico restritivo, cunhando o termo "apepsia
histérica” e posteriormente “Anorexia Nervosa”
q O quadro clínico incluía emagrecimento,
amenorreia, bradicardia, baixa
temperatura corporal, edema nos
membros inferiores, obstipação e
cianose periférica
q A anorexia nervosa afeta principalmente
adolescentes e adultos jovens do sexo
feminino
Sir William Withey Gull

Ele e elas
q Sir William Gull defendeu a entrada de
mulheres na carreira médica
q Em 1886, dirigiu reunião na Medical
Society, determinando a concessão de
bolsas de estudo para alunas de medicina

q Ironicamente, um homem que


defendeu direitos femininos, desde
os anos1970, é acusado de ser o
Jack, o Estripador,
Autores
Roteirista
qAlan Moore
(Inglaterra, 18/11/1953)

Desenhista
qEddie Campbell
(Escócia, 10/08/1955)
Alan Moore
q 2000 AD q Independentes
q Warrior. q Do Inferno,
ü Miracleman q Lost Girls
q Voz do fogo
ü V de Vingança
q Image Comics
q DC Comics
q A Liga dos Cavalheiros
ü Batman: A piada mortal
Extraordinários
ü Monstro do Pântano
q Promethea
ü Watchmen
Roteirista de HQ, desenhista, romancista,
ocultista, mago ceremonial e anarquista
Eddie Campbell

qAlec: the years have pants


qBacchus (aka Deadface)
qThe lovely horrible stuff.
Do Inferno

Cronologia de publicação
q De 1989 a 1996 – 16 partes
ü Taboo de Steve Bissette
ü Kitchen Sink Press.

q 1998 - Eddie Campbell


Comics
ü Volume único acrescido de “A
dança dos caçadores de gaivota”

q 1999 – distribuição nos


EUA: Top Shelf
Do Inferno

A história em quadrinhos

qNarra a investigação dos famigerados


assassinatos de Whitechapel no final do
século XIV
q1988
ü Centenário dos assassinatos do Jack, o Estripador

qAlan Moore
ü Interesse em escrever sobre crimes
ü fascínio pela “Estripadorologia”
Do Inferno

Ponto de partida
qThe final solution (1978)
de Stephen Knight qProstitutas
ü Que atribui os assassinatos a
supostamente
uma conspiração maçônica
mortas para
ocultar
indiscrições do
neto da rainha
Vitória, Eddy
O que não é
q Não é mistério convencional.
ü Já nos primeiros capítulos, conhece-se a identidade do
Estripador

q Não é suspense em torno da captura do


assassino antes que mate novamente
q Não é documentário
q Moore não acredita na própria solução

q Ficção histórica
ü Mas realça e entrelaça fatos que enriquecem a
narrativa e atendem as intenções dos autores
Parece, mas não é
qAparenta fazer coro com as teorias vigentes,
mas não busca desmascarar um suspeito
qMais do que rituais maçônicos e bruxaria, é
miasma da modernidade, tapeçaria de uma
era. Os horrores do Século 20 condensados
em cinco assassinatos
qNão é um “whodunnit”, mas um “wha’ happen”
ü Pretende mostrar o que acontece e imaginar o que
passa pela mente do assassino
Noção básica
“Homicídio, um evento humano
localizado, tanto no espaço quanto no
tempo, tem um campo imaginário
completamente não circunscrito por
ambos os conceitos. Possui significado e
forma, mas não solução. A incerteza
quântica, a incapacidade de se
determinar tanto a localização de uma
partícula quanto a sua natureza,
necessita que nós mapeemos todos os
possíveis estados da partícula: sua
superposição. Jack não é Gull ou
Druitt. Jack é uma superposição”
Alan Moore
O propósito de Alan Moore
q Os homicídios de 1888
ü Ninguém sabe o que aconteceu ao certo
ü Continuarão a ser um mistério sem solução
ü Tela perfeita para se criar uma realidade

q Tratar um caso sensacional sem sensacionalismo


ü Os assassinatos, com exceção, do quinto terminam
rapidamente

q Evitar truques consagrados que fazem vísceras e


sangue serem desfrutados como uma fantasia
ü Não é um supervilão, não é um Hannibal Lecter, é
um insano seguindo rituais que só ele conhece.
O propósito do Estripador
qOs homicídios são rituais

quma luta milenar


qAtos da “racionalidade
masculina” para conter “o
poder lunar feminino”
qReafirmação da
dominância masculina
Comen-
tário
político

Viés Do Viés
psicopato
místico
inferno -lógico

Comen-
tário
social
Comentário Social
Apesar das afirmações de racionalidade e
progresso, a Londres do Sec. XIX é cruel e
injusta. Não é um lugar agradável,
principalmente se você for pobre, ainda mais
se for mulher
Comentário Social
q Disparidade Social
ü Cap. 5 contrasta privilégios de
Gull e miséria de Polly
Nichols

q Relações assimétricas de
gênero, misoginia
q Assassinatos do Estripador
vistos como a expressão
plena das injustiças e
também da hipocrisia do
Sec. XIX (Cartas falsas,
polícia venal)
Comentário Político

qPrenúncio do século XX, útero simbólico


de tempos mais violento e autoritários
üVisões de Gull como constatação
üCobertura na época antecipou o jornalismo
marrom dos tabloides e o fascínio moderno
pelos assassinos seriais
Viés psicopatológico
q Isquemia cerebral
q Confusão transitória
q Alteração de caráter até demência orgânica
q Ideias deliroides
q Alucinações
q As visões de Gull podem entendidas como
alterações do rebaixamento de consciência ou
como, sugere Moore, transes da fase de aura
observados em alguns assassinos seriais
Viés místico

• Paganismo infiltrado
na arquitetura de Paganismo
Londres
− Nicholas Hawksmoor e o
design pagão dos edifícios
cristãos
Viés místico

q Rituais maçônicos,
magia cerimonial e Paganismo
sacrifícios
ü Ao término do périplo que
entrelaça geografia,
religião, politica e q História hermética da
mitologia, Netley capital britânica
vislumbra a estrutura − Palco de conflito entre
mística subjacente paganismo e ortodoxia,
insanidade artística e
racionalidade científica,
masculino e feminino,
cérebro direito e esquerdo
Viés místico

A quarta dimensão
“Sabe, Gull, isso me faz
pensar em algumas teorias que
meu filho, Howard, propôs.
Elas sugerem que o tempo seja
um ilusão humana... que todas
as eras COEXISTEM no
todo estupendo da eternidade”
James Hinton
qNos anos 50, em casa A quarta dimensão
anexa ao beco onde foi
morta a primeira
prostituta, morador
afirmou ter visto uma
mulher seguida por um
homem de cartola. Em
Do Inferno, relato deixa de
ser lenda urbana e se
torna reflexo de que Gull
existe em todos os
momentos ao mesmo
tempo.
Viés místico

Visões
“Diga-me Sr. Lees: Já teve REALMENTE uma visão?
Uma visão de VERDADE [...] Não? Não creio... mas
eu tive.”
Sir William Gull
Viés místico

q Visões de Gull com Visões


caráter de êxtase
profético
q Aumentam de
intensidade a cada
morte

q Culminan numa
espécie de viagem
no tempo
A ilustração
qGrade de nove
quadros, ritmo de
metrônomo
qBico de pena
rabiscado,
ocasionalmente
carvão
A ilustração
qAspecto sujo, sombrio
e melancólico. Parece
desenhado com fuligem
qLembra esboços, mas
que logo se consolidam
qAmplifica a tensão da
história, sem arroubos e
exageros
A ilustração
qFulgor expressionista
üOpressão das igrejas
üA vivacidade nos pubs

üDesespero no rosto
das prostitutas, sexo e
violência retratados de
maneira insipida (nem
excita e nem provoca)
Estrutura

MODUS
OPERANDI
Como Moore
organizou “Do
Inferno”

Não
Inclusão linearidade
Inclusão
Contém de tudo na vida
qEscândalos e corrupção
qAmor e morte
qA opinião pública
qO que as prostitutas fazem quando no trabalho
ou de folga

qFilosofia e ritual
qPontas de celebridades
Inclusão
q Alan Moore alinhavou
elementos pesquisados
q Preencheu lacunas com
eventos fictícios possíveis.
q A narrativa é repleta de
pequenos detalhes e
camadas textuais
q Várias alusões, repetições, Inclusão
ressonâncias e significados,
tanto declarados quanto
implícitos.

qO bruxo Alan Moore,


buscando significações e
relações em todas as coisas
Narrativa não linear
qPassado, presente e future colidem
qLinha de tempo, um emaranhado de
múltiplas fontes
qO Estripador se descola do tempo e não
se submete mais a uma narrativa linear
q Muitas personagens aparecem apenas
em alguns quadros, contribuindo com Estrutura
um único tijolo no muro da história
q Espaço físico da cidade e sua história
são organizados como estruturas
complexas.

q Gull passeia com seu cocheiro por


Londres; jornada pela estrutura física de
Londres
q Mais tarde, jornada semelhante, mas
pela estrutura do tempo
Obrigado,

João Paulo Lian Branco Martins


joaopaulobrancomartins@gmail.com

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