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Abstract Resumo
The article proposes an analysis of the State O artigo propõe uma análise da arquitetura
architecture produced for the first Vargas estatal produzida para o primeiro governo
government, between 1930 and 1945. Viewed Vargas, entre 1930 e 1945. Vista não como
not as an autonomous field, but as, above all, um campo autônomo, mas como, sobretudo,
a space of representation of the new model um espaço de representação do novo modelo
of national state that was tried to establish at de Estado nacional que se procurou instaurar
that moment, the architecture is considered nesse momento, a arquitetura é considerada
here both from the ideological and cultural aqui tanto a partir das ambiguidades
ambiguities housed in the state structure ideológicas e culturais alojadas na estrutura de
created by Vargas, but also in its internal estado criada por Vargas, como também em
tensions in which several aesthetic currents suas tensões internas em que várias correntes
coexisted and disputed the public works estéticas coexistiam e disputavam o mercado
market in frank process of expansion in those de obras públicas em franco processo de
decades. The article seeks to highlight the work expansão nessas décadas. O artigo procura
of technical teams producing architecture from destacar o trabalho de equipes técnicas
within the state bureaucracy, corroborating produzindo arquitetura a partir do interior da
the idea that in Brazil the state was not only a burocracia estatal, corroborando a ideia de que
consumer of architecture but an architectural no Brasil o Estado não foi apenas um cliente
producer. To consider this perspective is to consumidor de arquitetura, mas produtor de
open an opportunity to analyze the place and arquitetura. Considerar esta perspectiva é
function of the organs and technical teams descerrar uma oportunidade para se analisar
operating within the structures of the State in o lugar e função dos órgãos e equipes técnicas
the formation of an architectural culture in operando no interior das estruturas do Estado
Brazil in the last century. na formação de uma cultura arquitetônica no
Brasil no século passado.
Universidade de São Paulo (USP). Instituto de Arquitetura e Urbanismo. Arquiteto graduado (UFPB). Doutor em Teoria e História
da Arquitetura e Urbanismo (USP). Professor do Instituto de Arquitetura e Urbanismo.
sales@sc.usp.br
Esta obra está bajo una Licencia Creative Commons Atribución 4.0 Internacional
Francisco Sales Trajano Filho. Arquiteturas e Estado no Brasil de Vargas (1930-1945)
tensão constante, uma variedade de soluções chefe de governo onisciente. Por outro, ela 75
formais pleiteando o papel de representantes funciona ratificando a pouca atenção pessoal
autorizados das demandas simbólicas e concedida à arquitetura por parte de Vargas,
funcionais do Estado. Constatação que, ao provavelmente vista como secundária frente às
contrário da leitura proposta por Goodwin, demandas da prática política.
torna o caso brasileiro em nada destoante
Daí que, se para o arquiteto espanhol Victor
da “esquizofrenia estilística” identificada por
D’Ors era possível afirmar, ao final da guerra
Kenneth Frampton na arquitetura do Reich
civil espanhola, a máxima “nova política,
alemão sob Hitler (Frampton, 2003, p. 262).
nova arquitetura” (Sust, 1975, p. 7), o mesmo
Tendo em vista a determinação de Vargas não se poderia dizer em relação ao caso
em construir um novo sentido de unidade brasileiro. Pelo contrário, como já sinalizamos
em torno da ideia de nação e, por extensão, anteriormente, talvez seja na arquitetura que
de sua própria figura como líder máximo, a com mais clareza percebam-se as dificuldades
dispersão estilística nas obras públicas não em reconhecer uma face coesa e uniforme da
deixa, todavia, de provocar estranhamento. política e do Estado varguista.
Como se a ausência de uma expressão
Perceptível no variado conjunto de edifícios
arquitetônica estável não constituísse uma
construídos entre as décadas de 1930 e 1940,
questão importante a ser considerada em face
a indefinição quanto a uma estética oficial
das pretensões políticas de construção de um
adquire plena visibilidade na arquitetura estatal
Estado nacional estável e homogêneo nos
construída na capital federal, Rio de Janeiro,
pós-1930, em contraponto à fragmentação do
a partir de 1935, particularmente nas sedes
poder entre as oligarquias país afora.
para os vários ministérios, seja compondo
O vazio discursivo criado pela falta de uma novas perspectivas urbanas, como no caso
posição oficial do chefe da nação acerca da da Avenida Presidente Vargas, ou articulando
imagem arquitetônica mais adequada para áreas urbanas ainda escassamente ocupadas,
representação do país levaria, por sua vez, como a esplanada do Castelo. Aspecto de
a uma dinâmica extremamente suscetível a fundamental importância em termos simbólicos
acomodações de interesses diversos, tanto para a construção da imagem do Estado, as
estéticos quanto políticos, no âmbito das instalações para os ministérios, secretárias e
obras públicas e dos circuitos decisórios do demais instâncias da administração pública
poder. Uma multiplicidade de agentes com eram uma resposta concreta à demanda por
conexões ideológicas e culturais distintas espaço físico decorrente da reorganização da
lutava por ocupar posições capazes de burocracia e racionalização das rotinas de
viabilizar a implementação de sua agenda. trabalho implantadas no decorrer dos anos
Numa “história protagonizada por indivíduos” 1930 e coordenadas a partir de 1938 pelo
(Cavalcanti, 1995, p. 20), ministros, assessores, Departamento de Administração dos Serviços
intelectuais, artistas e arquitetos, etc., moviam- Públicos (DASP).
se continuamente nas entranhas do Estado
Ao mesmo tempo, a diversidade de orientações
varguista na busca por conquista de terreno
estéticas peculiar a esse conjunto de obras
fértil em que implantar seus projetos pessoais
contribui, em certa medida, para firmar a
e de seu grupo político, a serem plasmados na
ideia, não de todo equivocada, da vigência de
forma arquitetônica que melhor correspondia
liberdade criativa na produção arquitetônica,
à natureza ideológica dos agentes envolvidos.
da inexistência de uma “arquitetura dirigida”
De um lado, a pulverização estética decorrente sob o regime de um líder “tolerante”, em se
dessa situação ajuda a desmontar a ideia considerando o receio de alguns quanto ao
de um Estado monolítico, na expressão de “fundo malicioso do interesse do Estado pelas
Lauro Cavalcanti, moldado de cima para artes” (Cavalcanti, 1941, p. 283).
baixo conforme a visão totalizante de um
Sem se ater ao caso brasileiro, a apresentada era por demais pertinente para 76
correspondência entre estética e ideologia ser mera casualidade e incidia sobre um ponto
de Estado baseada na tolerância quanto central e ainda em aberto: investiria o governo
à liberdade de expressão na arquitetura Vargas, já plenamente consolidado no poder,
constituía o norte do artigo “O Estado e a com seus principais adversários neutralizados
arquitetura”, do arquiteto Gerson Pompeu ou cooptados, na construção de uma imagem
Pinheiro, publicado na revista Arquitetura arquitetônica própria? Em caso afirmativo, que
e Urbanismo em julho/agosto de 1938. orientação estética assumiria essa arquitetura?
Tomando como fio condutor da análise
Observadas em retrospecto, nas inúmeras
a situação italiana, Pinheiro via de forma
obras de arquitetura construídas e em
auspiciosa o cenário da “insuspeitíssima Itália
construção desde o início da década de
de Mussolini” (Pinheiro, 1938, p. 170) em face
1930, tais dúvidas tinham plena razão de
do desprestígio crescente das manifestações
ser. Já que, ao volume e imponência de
de arte e arquitetura modernas no horizonte
muitas das novas edificações erguidas até
europeu, constatável, por exemplo, na
então não correspondera nenhuma diretriz
arquitetura dos pavilhões alemão e soviético
formal abrangente, nenhuma norma estética
na Exposição Universal de Paris, de 1937,
impondo-se sobre as demais. E isto, em um
francamente conservadoras.
contexto de intensa disputa entre arquitetos
Ao contrário da Rússia de Stalin, que se orientava acadêmicos, neocoloniais e modernos pelas
por um “academicismo maciço com pretensões encomendas oficiais.
a nacionalismo arquitetônico”, a Itália aceitava
Fato é que, a despeito de contradições
e estimulava “o desenvolvimento da arquitetura
internas e da ausência de uma política clara
chamada moderna, de características
em relação à arquitetura, o novo regime
internacionais” (Pinheiro, 1938, p. 169).
acabaria por funcionar como uma espécie de
Para Pinheiro, graças ao “franco e merecido
desaguadouro de expectativas que vinham se
apoio do Governo [e] sob as vistas vigilantes
acumulando desde meados dos anos 1910
do ‘Duce’ erguem-se na Itália construções
quanto à definição de um estilo arquitetônico
do mais acentuado gosto contemporâneo”,
propriamente brasileiro.
comprovando que “nem sempre os estados
totalitários tendem para o aniquilamento das As condições de funcionamento do mercado
manifestações de arte e de cultura” (p. 170). de encomendas públicas e a aparente
arbitrariedade estilística que perpassa as obras
Concluído em tom elogioso ao papel
de arquitetura não deixam de ressoar certas
desempenhado por Mussolini como chefe de
ambiguidades de fundo próprias ao regime de
governo, por afastar “os obstáculos para a livre
Vargas. A miríade de vinculações ideológicas
expansão da inteligência e da arte”, o artigo
entre seus representantes, a diversidade
de Pinheiro operava no sentido de desmontar
de vertentes intelectuais e projetos de país
a associação corrente entre ideologia política
abrigados em seu interior, combinadas às
e representação estética do Estado, entre
pulsões simultâneas para o passado e para o
internacionalismo e nacionalismo, que se
futuro, para a tradição e para a modernização
mostravam nesse momento embaralhados nos
reverberaram, incontornáveis, na expressão
exemplos fornecidos pela Rússia e Itália. Nessa
arquitetônica das obras do Estado.
perspectiva, não é difícil compreender em seu
Compromissos muitas vezes contraditórios
texto, do título ao teor da discussão, uma
que nem sempre lograram encontrar respostas
mensagem para o próprio governo Vargas,
convenientes em termos estéticos.
cujo Estado Novo havia sido decretado menos
de um ano antes da publicação do artigo. Embora seja instigante desde a perspectiva do
historiador, a heterogeneidade que emerge
Mesmo que nenhuma passagem do artigo
desse verdadeiro laissez-faire estilístico não
faça referência explícita ao Brasil, a questão
constituía de fato uma questão cuja solução
em uma prática tensionada simultaneamente Não custa lembrar, como afirma Frampton, 78
em várias e divergentes direções: o modelo é justamente a “inconsistência iconográfica”
acadêmico já não dispunha da hegemonia da arquitetura moderna, sua tendência a
gozada na entrada do século, mas ainda era “reduzir toda forma à abstração [gerando]
reputado por sua capacidade de responder às uma maneira insatisfatória de representar o
convenções formais e simbólicas socialmente poder e a ideologia do Estado” que explica “a
aceitas. sobrevivência de uma abordagem historicista
na construção da primeira metade do século
O projeto neocolonial vigorava na produção
XX” (Frampton, 2003, p. 255).
privada com entradas pontuais na produção
para o Estado, mas perdia cada vez mais Entre acadêmicos, neocoloniais e vanguardistas,
espaço justamente para a arquitetura a ocorrência de múltiplas fusões estilísticas.
moderna. Quanto a esta, a desconfiança Manifestações classicizantes modernizadas
sobre seu caráter estrangeiro seria minorada a la Piacentini ou de um neoclassicismo
na passagem da década de 1930 para 1940, simplificado e convencional; regionalismos
e sua participação cresceria em diversas frentes neocoloniais e reinterpretações locais do
de construção de obras públicas, sendo mais mission style norte-americano; ensaios de
presente naquela modalidade de programas modernidade arquitetônica calcados na
de caráter mais utilitário (habitações, escolas, poética de Le Corbusier justapostos a variações
hospitais, etc.) do que nas realizações de art déco de diversas ordens, do streamline ao
natureza mais simbólica-representativa, sendo stripped classicismo, etc: tal era a fauna da
o edifício do Ministério da Educação e Saúde arquitetura varguista reunidos na Exposição de
uma notável exceção. Edifícios Públicos, realizada entre 29 de julho e
24 de agosto de 1944.
Figura 1. Visão geral da Exposição de Edifícios Públicos. Revista do Serviço Público,1944, p. 105.
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técnico estavam José Maria da Silva Neves e Observadas em seu efeito conjunto, a 82
Prestes Maia; os trabalhos do Departamento abrangência e continuidade do programa
de Habitação Popular, com Carmem Portinho e contribuíram, talvez mais do que qualquer
Affonso Eduardo Reidy e, ainda nesse âmbito, outra iniciativa posta em curso na época,
a massiva produção de habitação social em para a estabilização e reconhecimento
nível nacional dos IAPs a qual nos referimos de uma determinada imagem do Estado
antes (Bonduki, 1998). em termos arquitetônicos. Esse resultado
explica-se, em grande parte, pelos métodos
Levar em conta o volume e extensão dos
projetuais empregados. Em íntima relação
encargos públicos realizados por esses órgãos
com a natureza funcional dos serviços a
técnicos, imbuindo de presença física a ação
serem prestados, eles aproximavam diretrizes
estatal, implica no reconhecimento de uma
de racionalização do trabalho, conforme os
verdadeira arquitetura de Estado e não mais
ditames do scientific management taylorista, à
somente uma arquitetura para o Estado. Isto
exploração da padronização como recurso ao
posto, abarcar desde essa premissa parcela
incremento da capacidade produtiva na prática
considerável da produção arquitetônica das
arquitetônica através do desenvolvimento de
décadas de 1930 e 1940 é endossar a ideia
séries tipológicas em correspondência com a
de que no Brasil, distinto do que consagra
hierarquia das unidades na estrutura postal
a historiografia e mais semelhante ao caso
nacional.
mexicano (Liernur & Gorelik, 1993), o Estado,
mais do que apenas cliente, numa relação de Parte inextrincável da reorganização dos
cunho liberal com o profissional-arquiteto, foi serviços postais e telegráficos do país
antes e, sobretudo, produtor de arquitetura conduzida pelo governo Vargas praticamente
(Gorelik, 1994). Considerar esta perspectiva é desde sua chegada ao poder, a renovação e
descerrar uma oportunidade para se analisar o ampliação da rede de postos de atendimento
lugar e função dos órgãos e equipes técnicas desses serviços articulava-se com os objetivos
operando no interior das estruturas do Estado de centralização e controle das comunicações
na formação de uma cultura arquitetônica no em suas múltiplas formas, inclusive a telefonia
Brasil no século passado. e a radiodifusão, pelo poder público.
Desencadeada já nos anos 1920, ainda que
Por demais ilustrativo dessa modalidade
com resultados limitados, essa ação seria
de produção desde o interior da esfera da
sobremaneira reforçada na década seguinte,
administração pública, o trabalho desenvolvido
na perspectiva de fortalecimento do Estado
a partir do começo da década de 1930 pela
nacional em detrimento dos interesses privados
Seção de Edifícios do Departamento dos
que monopolizavam vários desses serviços em
Correios e Telégrafos (DCT) é, em muitos
muitos estados e cidades do país.
sentidos, notável. Em termos de alcance
geográfico, suas realizações atingiram de fato A tarefa que se impunha então era dotar de uma
uma condição nacional, firmando a presença nova e estendida estrutura física um conjunto
de edificações especialmente projetadas de serviços em processo de modernização de
para os serviços postais e telegráficos em larga envergadura territorial. É possível aferir o
praticamente todas as capitais e principais arrojo dessa empreitada se considerarmos que
cidades dos estados brasileiros (Pereira, 1999). já em 1932 a Seção Técnica produziria quase
Encetado nos primeiros momentos do governo uma centena de projetos e estudos de reforma,
Vargas, durante as gestões dos ministros ampliação e construção de novas unidades
Juarez Távora e José Américo de Almeida, país afora, especialmente no Nordeste, como
da Viação e Obras Públicas, esse programa estratégia de remediação dos problemas
seria seguidamente ampliado nas três décadas sociais e econômicos ocasionados pela grave
seguintes. seca que assolava a região nesse momento.