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REGISTROS, ISSN 2250-8112, Vol.

14 (2) julio-diciembre 2018: 71-87

Arquiteturas e Estado no Brasil de Vargas


(1930-1945)
Architectures and State in Brazil of Vargas (1930-1945)

Francisco Sales Trajano Filho


Universidade de São Paulo, Brasil

Abstract Resumo
The article proposes an analysis of the State O artigo propõe uma análise da arquitetura
architecture produced for the first Vargas estatal produzida para o primeiro governo
government, between 1930 and 1945. Viewed Vargas, entre 1930 e 1945. Vista não como
not as an autonomous field, but as, above all, um campo autônomo, mas como, sobretudo,
a space of representation of the new model um espaço de representação do novo modelo
of national state that was tried to establish at de Estado nacional que se procurou instaurar
that moment, the architecture is considered nesse momento, a arquitetura é considerada
here both from the ideological and cultural aqui tanto a partir das ambiguidades
ambiguities housed in the state structure ideológicas e culturais alojadas na estrutura de
created by Vargas, but also in its internal estado criada por Vargas, como também em
tensions in which several aesthetic currents suas tensões internas em que várias correntes
coexisted and disputed the public works estéticas coexistiam e disputavam o mercado
market in frank process of expansion in those de obras públicas em franco processo de
decades. The article seeks to highlight the work expansão nessas décadas. O artigo procura
of technical teams producing architecture from destacar o trabalho de equipes técnicas
within the state bureaucracy, corroborating produzindo arquitetura a partir do interior da
the idea that in Brazil the state was not only a burocracia estatal, corroborando a ideia de que
consumer of architecture but an architectural no Brasil o Estado não foi apenas um cliente
producer. To consider this perspective is to consumidor de arquitetura, mas produtor de
open an opportunity to analyze the place and arquitetura. Considerar esta perspectiva é
function of the organs and technical teams descerrar uma oportunidade para se analisar
operating within the structures of the State in o lugar e função dos órgãos e equipes técnicas
the formation of an architectural culture in operando no interior das estruturas do Estado
Brazil in the last century. na formação de uma cultura arquitetônica no
Brasil no século passado.

Key words Palabras clave


Architecture and State - technical teams - State arquitetura e Estado - equipes técnicas - Estado
and nation-building - Brazil e formação nacional - Brasil

Universidade de São Paulo (USP). Instituto de Arquitetura e Urbanismo. Arquiteto graduado (UFPB). Doutor em Teoria e História
da Arquitetura e Urbanismo (USP). Professor do Instituto de Arquitetura e Urbanismo.

sales@sc.usp.br

Recibido el 20 de Julio de 2018 Aceptado el 23 de noviembre 2018

Esta obra está bajo una Licencia Creative Commons Atribución 4.0 Internacional
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Introdução voltadas a dotar o país de infraestruturas 72


em escala territorial, com investimentos em
Ele [Getúlio Vargas] é, sem dúvida, o
transportes, educação, saúde, habitação,
verdadeiro construtor da Nação, o único
edifícios para a administração pública, etc.
arquiteto do Brasil
Como se na criação de uma nova sociedade
Oswaldo Teixeira,1940 em um país como o Brasil, onde “tudo ainda
está, praticamente, por fazer” (Costa, 1936,
Ao lado da questão da identidade nacional, p. 5), coubesse prioritariamente ao Estado
com a qual se articula e para a qual converge conduzir a ação construtiva por excelência
em distintos momentos, o nexo entre Estado (Gorelik, 1994).
e arquitetura conforma o núcleo temático em O protagonismo do Estado como agente
torno do qual parte considerável da história da decisivo nos processos de modernização
arquitetura brasileira do século XX foi escrita. e formação nacional tanto no contexto
Evidência da riqueza interna desse tópico, tal brasileiro quanto na América Latina é um
constatação, contudo, não significa que a dado já consolidado na historiografia e não
relação entre Estado e arquitetura no Brasil cabe retomar (Gorelik, 1994; Guillén, 2004;
seja um território já plenamente mapeado e Martins, 1987). Importa aqui ressaltar o
exaurido para novas empreitadas investigativas. quanto tais processos lidaram com impulsos
Pelo contrário. A recorrência analítica em contraditórios.
certos episódios, como é o caso emblemático
da construção da sede do Ministério da Operando na perspectiva de construção do
Educação e Saúde Pública (MESP), na gestão “novo”, intrínseco à ideia de modernidade, a
do ministro Gustavo Capanema –objeto de conjunção entre processos de modernização
uma riquíssima fortuna crítica cujo início e formação nacional demandava também
remonta praticamente à conclusão de suas a construção de vínculos profundos com o
obras–, acabou por projetar uma larga sombra passado, a história e a tradição. Assim são
sobre um período dos mais profícuos da formulados, por exemplo, pelo escritor
arquitetura produzida para o Estado ou pelo Cassiano Ricardo, membro dos grupos Anta
Estado no Brasil, delimitado pela extensão e Verde-Amarelo do modernismo paulista
do primeiro governo Vargas (1930-1945). dos anos 1920 e que na década seguinte
Todo um universo de realizações, agentes e aparece como um dos principais ideólogos do
processos que apenas recentemente vem se regime varguista. Para esse escritor, paladino
constituindo como objeto de investigação por da “marcha para o Oeste” bandeirista, o
si próprio, e não mais como mero contraponto Estado Novo de Vargas, decretado em 1937
de medalhões como o edifício do MESP. –e que em essência constituía apenas mais um
golpe dentro do golpe, consumando de forma
Consequência da dinamização das forças autoritária a tomada do poder encetada em
produtivas e da ampliação do escopo da 1930–, explicava-se como uma predestinação
esfera estatal, com a massiva expansão fundada na “congregação de duas verdades
das encomendas públicas demandada pela irrecorríveis: a posição do Brasil em face
implantação de políticas de modernização do mundo moderno e o retorno do Brasil a
conduzidas pelo Estado varguista, o incremento suas fontes históricas, étnicas, econômicas e
do campo arquitetônico brasileiro nesse políticas” (Ricardo, 1941, p. 111).
momento atrelava ao processo mais geral de
definição do novo perfil do Estado nacional. Ao reivindicar uma condição privilegiada
no equacionamento da relação entre
Em termos concretos, a consolidação do Estado modernização e construção da nação, os
nacional passava pela dimensão construtiva, intelectuais articularam em seus discursos,
manifestada, desde o começo da década de passado e presente, o nacional e o
1930, na proliferação de iniciativas estatais internacional, o tempo da nação e o tempo

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universal. No momento em que o Estado do campo político, comunistas, liberais e 73


reclama a participação ativa desse grupo na simpatizantes do nazi-fascismo, paladinos
vida nacional, seu engajamento nos embates da história e cultores do radicalmente novo
do tempo presente, impõe-se aos intelectuais a excitados pelo imaginário da modernidade.
ruptura com a imagem habitual de hedonistas Não há dúvida que essa condição de
do saber, distanciados do cotidiano e partida, tão multifacetada, coloca elementos
absortos em um mundo puramente espiritual. fundamentais para pensar a própria (im)
Abandonar a reflexão desinteressada e se possibilidade de uma representação simbólica
engajar na construção de fato da realidade coesa da nação em termos arquitetônicos, sua
imediata: tal é a plataforma a assumir; não pertinência e viabilidade.
mais apenas escrever a história, mas fazer a
Em face das idiossincrasias do chefe da nação
história (Velloso, 2017).
e da diversidade ideológica, política e cultural
Representante maior da ideia de nação na presente em todas as instâncias do governo,
década de 1930, o Estado assume, de fato, a arquitetura produzida para o Estado nessas
a condição de vanguarda, nos termos em que condições não deixaria de repercutir, em termos
discute Gorelik (2005), disparando processos imagéticos e discursivos, as peculiaridades
de transformações sociais, econômicas e que caracterizaram a política varguista. Daí
culturais. E para ele convergem representantes que partir do pressuposto de delimitação
de distintas matrizes intelectuais e ideológicas, ou reconhecimento de uma estética oficial
organizando-se nas entranhas da burocracia a priori na arquitetura do período seja um
estatal por afinidades e interesses em grupos esforço fadado a um baixo rendimento
de poder pulverizados na composição de analítico. Uma falsa questão, na verdade, cujo
uma insólita intelligentsia em constante tensão principal efeito é desviar a atenção do que é
interna (Martins, 1987). mais relevante, ou seja, o funcionamento do
campo arquitetônico no Estado varguista na
Aos membros dessa intelligentsia caberia
diversidade de orientação ideológica e estética
tanto incrementar a burocracia estatal, no
alojada em sua estrutura.
sentido de sua completa reorganização, como
dar forma à nação em termos simbólicos e Em face dessas observações iniciais, este artigo
materiais, moldando uma identidade cultural revisita a arquitetura estatal produzida no bojo
abrangente ao conjunto da nação em do primeiro governo Vargas, entre 1930 e
construção, íntegra e sem cisões, conforme as 1945, explorando, sempre que o cotejo com
premissas encampadas pelo novo Estado que as fontes permite, alguns dos impasses e
se reorganizara pós-crise de 1929 (Martins, dificuldades postas para uma compreensão
1992). “Um Estado (...) fora do liberalismo dessa produção no singular, como amiúde se
caduco” (Figueiredo, 1941, p. 135), de caráter constata na historiografia. Para tanto, toma-
intervencionista, centralizador e modernizador se aqui a arquitetura tanto como um campo
em flagrante flerte com o ideário nazi-fascista ainda carente de organicidade, de autonomia
europeu do entre-guerras. incipiente, e ao mesmo tempo como âmbito em
que distintas representações do novo modelo
A heterogeneidade dominante no campo
de Estado nacional projetaram expectativas
político-ideológico do Estado varguista não
e projetos de país. Em um horizonte de
deixaria de se rebater noutras esferas. De
significativa ampliação do mercado de obras
fato, acabou por marcar profundamente a
públicas, abre-se também aqui um olhar sobre
produção cultural e arquitetônica do período,
o trabalho de equipes técnicas produzindo
caracterizada pela acomodação de um amplo
arquitetura a partir do interior da burocracia
espectro artístico e intelectual no interior
estatal. Com isso, pretende-se instigar uma
do regime: vanguardistas e tradicionalistas,
discussão que considera que no Brasil o Estado
conservadores e progressistas, nacionalistas
não teria sido apenas um cliente consumidor
e cosmopolitas, à esquerda ou à direita
de arquitetura, mas essencialmente também

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produtor de arquitetura, por meio da ação arquitetônica, como privilegiara dentre as 74


de equipes técnicas operando no interior das variantes de arquitetura de vanguarda aquela
estruturas do Estado na formação de uma de matriz corbusiana, encampada pelos
cultura arquitetônica no Brasil no século XX. arquitetos da “escola carioca”.
Equívocos interpretativos já há muito
esclarecidos, na origem desses mal-entendidos
Espaços em disputa
estão as simplificações induzidas por Goodwin
Episódio que desencadeou o que foi chamado no texto do catálogo Brazil Builds. Uma
“fenômeno Brasil” no interior da cultura primeira e mais consequente simplificação foi
arquitetônica internacional nas décadas de estender uma interpretação particular, de uma
1940 e 1950, a exposição Brazil Builds e o realização tão excepcional como era o edifício
catálogo homônimo, com textos de Philip do Ministério, à totalidade da produção
Goodwin e fotografias de G. E. Kidder Smith, é arquitetônica varguista, como se toda a
também a origem de um distendido equívoco arquitetura feita para o Estado nesse momento
no que diz respeito à relação entre Estado e fosse moderna e corbusiana. Ímpar em vários
arquitetura no Brasil. sentidos, as linhas vanguardistas do Ministério
destoavam francamente da orientação
Em dado momento do catálogo, Goodwin
estética vigente em grande parte das obras
ressalta a importância atribuída ao país pelo
públicas sob Vargas. Através dessa operação,
governo e por seu povo, expressa materialmente
Goodwin homogeneiza a arquitetura brasileira
na “construction of impressive new buildings to
do período, cuja diversidade de vertentes
house the departments for all the complicated
e expressões é obliterada em favor de uma
public services” (Goodwin, 1943, p. 91). No
imagem uniformemente moderna.
entanto, destoando do horizonte internacional
de arquitetura para o Estado de meados do Assim como transforma a variedade estilística
século passado, a opção brasileira em matéria brasileira em um bloco homogêneo e
de arquitetura oficial revestia-se de evidente moderno, Goodwin destina tratamento similar
singularidade aos olhos de Goodwin: à arquitetura dos Estados Unidos, Inglaterra e
Alemanha, aplainados em sua complexidade
While Federal classic in Washington, Royal
e reduzidos a sinédoques: o Federal
Academy archaelogy in London and Nazi
Classic representando toda a arquitetura
classic in Munich are still triumphant, Brazil
pública norte-americana, o Royal Academic
has had the courage to break away from the
Archaeology desempenhando o mesmo papel
safe and easy path with the result that Rio
para a arquitetura inglesa e o Nazi Classic
can boast of the most beautiful government
sumarizando a arquitetura alemã sob o Führer.
building in the Western hemisphere.
(Goodwin, 1943, p. 92) Vista à luz da produção historiográfica afeita
ao estudo das relações entre arquitetura e
Alusiva especificamente à arquitetura da sede
Estado no século XX, mesmo nos casos mais
do Ministério da Educação e Saúde, projetada
emblemáticos de sociedades com governos
por uma equipe de arquitetos modernos
totalitários como a Rússia, Itália e Alemanha,
coordenada por Lúcio Costa, esse trecho de
tal suposição soa, no mínimo, inconsistente.
Brazil Builds instigou interpretações sobre a
Como revela a historiografia, tentativas de
arquitetura brasileira do período Vargas de
reconhecimento de uma homogeneidade
largo alcance na historiografia. Uma dessas
estilística em tais circunstâncias tendem ao
interpretações, que vigorou por décadas, é a de
fracasso interpretativo (Lane, 1985; Ghirardo,
que a fala de Goodwin sinalizava uma opção
2013).
a priori e consciente do regime varguista pela
arquitetura moderna. Mais, a de que o Estado Longe da uniformidade e da preponderância
brasileiro sob Vargas não apenas teria imbuído de uma ou outra variante estética sobre as
seus edifícios de uma expressiva modernidade demais, no Brasil de Vargas coexistia, em

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tensão constante, uma variedade de soluções chefe de governo onisciente. Por outro, ela 75
formais pleiteando o papel de representantes funciona ratificando a pouca atenção pessoal
autorizados das demandas simbólicas e concedida à arquitetura por parte de Vargas,
funcionais do Estado. Constatação que, ao provavelmente vista como secundária frente às
contrário da leitura proposta por Goodwin, demandas da prática política.
torna o caso brasileiro em nada destoante
Daí que, se para o arquiteto espanhol Victor
da “esquizofrenia estilística” identificada por
D’Ors era possível afirmar, ao final da guerra
Kenneth Frampton na arquitetura do Reich
civil espanhola, a máxima “nova política,
alemão sob Hitler (Frampton, 2003, p. 262).
nova arquitetura” (Sust, 1975, p. 7), o mesmo
Tendo em vista a determinação de Vargas não se poderia dizer em relação ao caso
em construir um novo sentido de unidade brasileiro. Pelo contrário, como já sinalizamos
em torno da ideia de nação e, por extensão, anteriormente, talvez seja na arquitetura que
de sua própria figura como líder máximo, a com mais clareza percebam-se as dificuldades
dispersão estilística nas obras públicas não em reconhecer uma face coesa e uniforme da
deixa, todavia, de provocar estranhamento. política e do Estado varguista.
Como se a ausência de uma expressão
Perceptível no variado conjunto de edifícios
arquitetônica estável não constituísse uma
construídos entre as décadas de 1930 e 1940,
questão importante a ser considerada em face
a indefinição quanto a uma estética oficial
das pretensões políticas de construção de um
adquire plena visibilidade na arquitetura estatal
Estado nacional estável e homogêneo nos
construída na capital federal, Rio de Janeiro,
pós-1930, em contraponto à fragmentação do
a partir de 1935, particularmente nas sedes
poder entre as oligarquias país afora.
para os vários ministérios, seja compondo
O vazio discursivo criado pela falta de uma novas perspectivas urbanas, como no caso
posição oficial do chefe da nação acerca da da Avenida Presidente Vargas, ou articulando
imagem arquitetônica mais adequada para áreas urbanas ainda escassamente ocupadas,
representação do país levaria, por sua vez, como a esplanada do Castelo. Aspecto de
a uma dinâmica extremamente suscetível a fundamental importância em termos simbólicos
acomodações de interesses diversos, tanto para a construção da imagem do Estado, as
estéticos quanto políticos, no âmbito das instalações para os ministérios, secretárias e
obras públicas e dos circuitos decisórios do demais instâncias da administração pública
poder. Uma multiplicidade de agentes com eram uma resposta concreta à demanda por
conexões ideológicas e culturais distintas espaço físico decorrente da reorganização da
lutava por ocupar posições capazes de burocracia e racionalização das rotinas de
viabilizar a implementação de sua agenda. trabalho implantadas no decorrer dos anos
Numa “história protagonizada por indivíduos” 1930 e coordenadas a partir de 1938 pelo
(Cavalcanti, 1995, p. 20), ministros, assessores, Departamento de Administração dos Serviços
intelectuais, artistas e arquitetos, etc., moviam- Públicos (DASP).
se continuamente nas entranhas do Estado
Ao mesmo tempo, a diversidade de orientações
varguista na busca por conquista de terreno
estéticas peculiar a esse conjunto de obras
fértil em que implantar seus projetos pessoais
contribui, em certa medida, para firmar a
e de seu grupo político, a serem plasmados na
ideia, não de todo equivocada, da vigência de
forma arquitetônica que melhor correspondia
liberdade criativa na produção arquitetônica,
à natureza ideológica dos agentes envolvidos.
da inexistência de uma “arquitetura dirigida”
De um lado, a pulverização estética decorrente sob o regime de um líder “tolerante”, em se
dessa situação ajuda a desmontar a ideia considerando o receio de alguns quanto ao
de um Estado monolítico, na expressão de “fundo malicioso do interesse do Estado pelas
Lauro Cavalcanti, moldado de cima para artes” (Cavalcanti, 1941, p. 283).
baixo conforme a visão totalizante de um

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Sem se ater ao caso brasileiro, a apresentada era por demais pertinente para 76
correspondência entre estética e ideologia ser mera casualidade e incidia sobre um ponto
de Estado baseada na tolerância quanto central e ainda em aberto: investiria o governo
à liberdade de expressão na arquitetura Vargas, já plenamente consolidado no poder,
constituía o norte do artigo “O Estado e a com seus principais adversários neutralizados
arquitetura”, do arquiteto Gerson Pompeu ou cooptados, na construção de uma imagem
Pinheiro, publicado na revista Arquitetura arquitetônica própria? Em caso afirmativo, que
e Urbanismo em julho/agosto de 1938. orientação estética assumiria essa arquitetura?
Tomando como fio condutor da análise
Observadas em retrospecto, nas inúmeras
a situação italiana, Pinheiro via de forma
obras de arquitetura construídas e em
auspiciosa o cenário da “insuspeitíssima Itália
construção desde o início da década de
de Mussolini” (Pinheiro, 1938, p. 170) em face
1930, tais dúvidas tinham plena razão de
do desprestígio crescente das manifestações
ser. Já que, ao volume e imponência de
de arte e arquitetura modernas no horizonte
muitas das novas edificações erguidas até
europeu, constatável, por exemplo, na
então não correspondera nenhuma diretriz
arquitetura dos pavilhões alemão e soviético
formal abrangente, nenhuma norma estética
na Exposição Universal de Paris, de 1937,
impondo-se sobre as demais. E isto, em um
francamente conservadoras.
contexto de intensa disputa entre arquitetos
Ao contrário da Rússia de Stalin, que se orientava acadêmicos, neocoloniais e modernos pelas
por um “academicismo maciço com pretensões encomendas oficiais.
a nacionalismo arquitetônico”, a Itália aceitava
Fato é que, a despeito de contradições
e estimulava “o desenvolvimento da arquitetura
internas e da ausência de uma política clara
chamada moderna, de características
em relação à arquitetura, o novo regime
internacionais” (Pinheiro, 1938, p. 169).
acabaria por funcionar como uma espécie de
Para Pinheiro, graças ao “franco e merecido
desaguadouro de expectativas que vinham se
apoio do Governo [e] sob as vistas vigilantes
acumulando desde meados dos anos 1910
do ‘Duce’ erguem-se na Itália construções
quanto à definição de um estilo arquitetônico
do mais acentuado gosto contemporâneo”,
propriamente brasileiro.
comprovando que “nem sempre os estados
totalitários tendem para o aniquilamento das As condições de funcionamento do mercado
manifestações de arte e de cultura” (p. 170). de encomendas públicas e a aparente
arbitrariedade estilística que perpassa as obras
Concluído em tom elogioso ao papel
de arquitetura não deixam de ressoar certas
desempenhado por Mussolini como chefe de
ambiguidades de fundo próprias ao regime de
governo, por afastar “os obstáculos para a livre
Vargas. A miríade de vinculações ideológicas
expansão da inteligência e da arte”, o artigo
entre seus representantes, a diversidade
de Pinheiro operava no sentido de desmontar
de vertentes intelectuais e projetos de país
a associação corrente entre ideologia política
abrigados em seu interior, combinadas às
e representação estética do Estado, entre
pulsões simultâneas para o passado e para o
internacionalismo e nacionalismo, que se
futuro, para a tradição e para a modernização
mostravam nesse momento embaralhados nos
reverberaram, incontornáveis, na expressão
exemplos fornecidos pela Rússia e Itália. Nessa
arquitetônica das obras do Estado.
perspectiva, não é difícil compreender em seu
Compromissos muitas vezes contraditórios
texto, do título ao teor da discussão, uma
que nem sempre lograram encontrar respostas
mensagem para o próprio governo Vargas,
convenientes em termos estéticos.
cujo Estado Novo havia sido decretado menos
de um ano antes da publicação do artigo. Embora seja instigante desde a perspectiva do
historiador, a heterogeneidade que emerge
Mesmo que nenhuma passagem do artigo
desse verdadeiro laissez-faire estilístico não
faça referência explícita ao Brasil, a questão
constituía de fato uma questão cuja solução

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preocupava o Estado. Pelo contrário, se questionamentos provinham de duas frentes 77


considerarmos a sugestiva fala do ministro principais: de um lado, a campanha por uma
da Fazenda, Alexandre Marcondes Filho, em arquitetura nacional enraizada no passado e na
1944: tradição colonial encampada pelo movimento
neocolonial de Ricardo Severo, José Marianno
Preside, assim, V. Excia. [Getúlio Vargas],
Filho e seguidores. De outro, a pressão exercida
ao renascimento da arquitetura oficial
pelas iniciativas de renovação da linguagem
brasileira, procurando e favorecendo a
arquitetônica nos moldes das vanguardas
fixação dos nossos padrões representativos,
europeias do entre guerras, encetadas na
através do ecletismo das formas e da
década de 1920 a partir da obra do arquiteto
variedade das sugestões adaptadas
de origem ucraniana, Gregori Warchavchik,
ao nosso tempo transformativo e às
e que ganhariam novos contornos por meio
peculiaridades do nosso clima. (“O Sexto
da ação de Lúcio Costa e o grupo de jovens
aniversário,” 1944, p. 178).
arquitetos em torno dele.
Para o “tempo transformativo” do Estado
Encastelados em propostas muito singulares,
Novo, cuja fisionomia mostrava-se em
essas duas frentes atuavam desqualificando
grande parte ainda um processo em aberto,
o modelo acadêmico da ENBA por sua
nada mais conveniente, portanto, do que
dupla inadequação ao tempo da nação e do
uma face arquitetônica plural, indefinida.
mundo. Pelo lado da nação, o movimento
Se a questão de uma estética única para o
neocolonial e o programa de criação de um
Estado se colocava talvez fosse não como
estilo arquitetônico autenticamente brasileiro
um problema para o presente, mas sim para
forçavam a superação do predomínio do
o futuro, como produto de uma decantação
classicismo europeu vigente na ENBA em
gradual de uma imagem coesa e uniforme,
favor de um olhar produtivo para a realidade
capaz de simbolizar de forma satisfatória
brasileira, sua natureza, história e cultura.
um Estado já então estabilizado.
Como representantes do tempo do mundo,
Além das contradições que atravessam de
ou seja, da modernidade, as pretensões
ponta a ponta o regime comandado por
vanguardistas criticavam o cânone acadêmico
Vargas, talvez seja produtivo buscar no próprio
como expressão passadista de historicismo
campo arquitetônico brasileiro outras razões
estilístico, como resposta estática em completa
subjacentes ao quadro de um pluralismo
dissonância com as demandas em contínua
hegemônico, evidente na multifacetada
transformação da civilização maquinista,
arquitetura do Estado varguista. E para isso é
conforme expressão de Le Corbusier. No
importante reconhecer, de saída, as primeiras
mesmo tom, a arquitetura moderna também
décadas do século passado na arquitetura
expunha as inconsistências da pesquisa
brasileira como um interregno. De maneira
neocolonial, considerando-a um ecletismo
simplificada, esse interregno se caracterizaria
mal disfarçado, embora bem-intencionado
pela crise de autoridade da ordem vigente
no propósito mais geral de fixação de uma
e de indefinição quanto à ordem porvir. Um
identidade arquitetônica nacional. Por sua vez,
período de instabilidade, de ausência de uma
a própria arquitetura moderna aparecia, para
hegemonia clara no tocante aos valores a
representantes de dentro e de fora do Estado,
seguir.
como talvez mais um modismo estilístico
Grosso modo esse interregno se encerra exógeno, frente ao qual se recomendava certa
entre os anos 1920 e 1940, e se define prudência. Não como um modelo consolidado,
essencialmente por questionamentos profundos mas como uma tendência incipiente sem raízes
ao cânone acadêmico historicista, a ordem profundas no solo da nação.
vigente, dominante no ensino da Escola
Em resumo o que se configurava nas décadas
Nacional de Belas Artes (ENBA), em descrédito
de 1930 e 1940 era uma situação de impasse
crescente ao longo desse período. Tais

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em uma prática tensionada simultaneamente Não custa lembrar, como afirma Frampton, 78
em várias e divergentes direções: o modelo é justamente a “inconsistência iconográfica”
acadêmico já não dispunha da hegemonia da arquitetura moderna, sua tendência a
gozada na entrada do século, mas ainda era “reduzir toda forma à abstração [gerando]
reputado por sua capacidade de responder às uma maneira insatisfatória de representar o
convenções formais e simbólicas socialmente poder e a ideologia do Estado” que explica “a
aceitas. sobrevivência de uma abordagem historicista
na construção da primeira metade do século
O projeto neocolonial vigorava na produção
XX” (Frampton, 2003, p. 255).
privada com entradas pontuais na produção
para o Estado, mas perdia cada vez mais Entre acadêmicos, neocoloniais e vanguardistas,
espaço justamente para a arquitetura a ocorrência de múltiplas fusões estilísticas.
moderna. Quanto a esta, a desconfiança Manifestações classicizantes modernizadas
sobre seu caráter estrangeiro seria minorada a la Piacentini ou de um neoclassicismo
na passagem da década de 1930 para 1940, simplificado e convencional; regionalismos
e sua participação cresceria em diversas frentes neocoloniais e reinterpretações locais do
de construção de obras públicas, sendo mais mission style norte-americano; ensaios de
presente naquela modalidade de programas modernidade arquitetônica calcados na
de caráter mais utilitário (habitações, escolas, poética de Le Corbusier justapostos a variações
hospitais, etc.) do que nas realizações de art déco de diversas ordens, do streamline ao
natureza mais simbólica-representativa, sendo stripped classicismo, etc: tal era a fauna da
o edifício do Ministério da Educação e Saúde arquitetura varguista reunidos na Exposição de
uma notável exceção. Edifícios Públicos, realizada entre 29 de julho e
24 de agosto de 1944.

Figura 1. Visão geral da Exposição de Edifícios Públicos. Revista do Serviço Público,1944, p. 105.

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Organizada pela Divisão de Edifícios Públicos conduzidas desde o início da década de 79


do DASP e ocupando todo o mezanino do 1930, adquiria clareza na justaposição de
edifício do Ministério da Educação e Saúde opções estilísticas tão díspares representando
Pública em estágio final de acabamento, a o mesmo Estado.
exposição comemorava o sexto aniversário da
criação do DASP fornecendo um abrangente
panorama da ação do Estado em matéria de
arquitetura. Inaugurada por Vargas, coube ao
ministro do Trabalho, Indústria e Comércio,
Alexandre Marcondes Filho, o discurso de
abertura:
O edifício público é uma testemunha da
vida de um povo, um documento escrito no
tempo. Não se limita à finalidade imediata
do serviço do Estado. É, por certo, um
memorial da civilização que o informa. A
época que não se assinala pela arquitetura,
significação e valor de suas construções, Figura 2. Maquete do Hospital de Clínicas de Porto
sobretudo em matéria de edifícios públicos, Alegre, do Ministério da Educação e Saúde na
é um tempo que nada revelou de novo, Exposição de Edifícios Públicos. Revista do Serviço
uma geração que não conseguiu confiar a Público, 1944, p.103.
sua mensagem ao porvir, uma comunidade
que não soube perpetuar-se através do
eloquente simbolismo dos monumentos
levantados pelo esforço coletivo. (Ribeiro,
1944, p. 90)
Evocando o sentido transcendente da
arquitetura como marco histórico no processo
civilizatório, a fala do ministro Alexandre
Marcondes Filho ressaltava a ação diligente
de Vargas na condução do destino de uma
nação cujo progresso repercutia diretamente
na intensificação da dimensão construtiva que
a exposição procurava dar conta. Figura 3. Perspectiva do Palácio da Justiça (nunca
Impressionante pela quantidade de obras construído), do Ministério da Justiça. Revista do
Serviço Público, 1944, p. 59.
reunidas, muitas delas jamais construídas, o
que prevalece na observação da arquitetura
Frente ao universo de obras expostas, discernia-
produzida pelos distintos ministérios e demais
se, no entanto, certas constantes entre ações
instâncias da administração pública presentes
ministeriais e linguagens arquitetônicas,
na Exposição de Edifícios Públicos é uma
reveladoras dos desdobramentos da disputa
verdadeira polifonia estética.
em curso pela condição de arquitetura oficial.
Exemplares neoclássicos, déco, “estilo Uma crescente hegemonia dos arquitetos
Manhattan”, vanguardistas e neocoloniais modernos fazia-se notar no volume de
em suas múltiplas variações, ocupavam o construções do Ministério da Educação e
mezanino do Ministério da Educação e Saúde Saúde Pública. Escolas, hospitais e outros
Pública em franco contraste com o espaço programas funcionais ligadas a este ministério
que os abrigava. O que se percebia de destoavam da maioria dos seus pares em
forma dispersa nas inúmeras obras públicas exposição pelo rigor da forma racional

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Figura 4. Maquete da Cidade das Meninas. Revista do Serviço Público, 1944, p. 99

moderna, descompromissada de qualquer O Estado produtor de arquitetura


historicismo. Nos edifícios dos ministérios do
Obras em vários sentidos excepcionais pelo
Trabalho e da Justiça respostas arquitetônicas
investimento simbólico e recursos econômicos
de um classicismo moderno e monumental
e materiais alocados, as sedes ministeriais
predominavam.
erguidas na capital federal foram concebidas
De sua parte, o Ministério da Agricultura fora do aparato técnico do Estado, ora por
sobressaía pelo recurso a soluções intermédio de concursos públicos abertos,
desenvolvidas a partir da pesquisa neocolonial ora solicitadas diretamente a arquitetos que
desde os anos 1920, criando nexos com a atuavam no mercado de construções públicas
busca por uma expressão de enraizamento no e privadas. Esses mesmos procedimentos
solo e na história do país, numa linguagem caracterizaram também inúmeras outras obras
tradicional evocativa do passado brasileiro encomendadas pelo Estado varguista.
que declina em dialetos regionalistas na
Diferente de outros casos latino-americanos,
obra de arquitetos como Ângelo Murgel.
como a Argentina, por exemplo, o Estado
Tradicionalismo similar definia iniciativas
brasileiro não possuía em sua estrutura uma
isoladas, como a Cidade das Meninas, projeto
instância técnica de produção de arquitetura
filantrópico em que se engajou pessoalmente
de âmbito nacional. Tampouco havia, até
a primeira-dama Alzira Vargas.
meados da década de 1940, agências
Contudo, a correspondência entre pastas organizadas para coordenar os serviços de
ministeriais e linguagens arquitetônicas não projeto, construção e fiscalização de obras
era a regra. Mesmo ministérios como o da públicas, a despeito da existência do Ministério
Educação e Saúde Pública, onde os arquitetos de Viação e Obras Públicas.
modernos ganhavam espaço, revelavam
contradições internas, com obras de cunho O efeito historiográfico desse arranjo da
mais tradicional. De outro modo, o Ministério economia de produção da arquitetura para o
da Fazenda, cuja sede no Rio de Janeiro Estado foi a “naturalização” de determinada
assumira uma feição classicista, tinha sua interpretação que conferiu privilégio e
sede regional, na cidade de Recife, claramente visibilidade àquela modalidade particular
inspirada no projeto do edifício do Ministério sustentada numa suposta autonomia entre
da Educação e Saúde Pública. as partes, que interagem sobre as bases

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de um acordo de feição liberal em que se A consideração da arquitetura produzida 81


preserva a individualidade do arquiteto como por repartições e diretorias de obras
profissional, geralmente atuando de forma públicas permanece, todavia, incipiente
privada e fora da burocracia estatal, portanto, na historiografia da arquitetura brasileira,
isento a priori de quaisquer implicações comparativamente pouco investigada em se
ideológicas. Emblemático disso é a teia de considerando o alcance territorial e volume de
conexões existente entre o grupo de arquitetos suas realizações. A única grande exceção a esse
reunidos em torno de Lúcio Costa e o Estado aparente descaso é o tratamento conquistado
varguista, replicada na ligação entre Niemeyer pela produção habitacional realizada por
e Kubitschek, de Pampulha a Brasília, sob o arquitetos e engenheiros alocados no interior
manto de um mecenato moderno. dos diversos segmentos dos Institutos de
Aposentadoria e Pensões (IAPs), em torno do
Para uma narrativa como a da história da
qual se construiu uma sólida bibliografia nas
arquitetura moderna no Brasil, que se funda
duas últimas décadas.
sobre fortes individualidades e encontra seu
ponto de culminância na exaltação de uma Na historiografia as referências a essa
figura envolta na aura de gênio como Oscar modalidade de atuação, quando constam,
Niemeyer, afirmar a autonomia plena entre as restringem-se ao episódio modernista de Luís
partes na relação dos arquitetos com o Estado Nunes (Vaz, 1989) à frente da Diretoria de
é uma operação essencial. Ainda mais quando, Arquitetura e Construção (depois Diretoria
desconsiderando o claro alinhamento político de Arquitetura e Urbanismo), decorrido
e ideológico de figuras-chave –novamente em Pernambuco entre 1934 e 1937 sob
aqui, Niemeyer, comunista declarado– os auspícios do governo do usineiro Lima
prima por uma abordagem despolitizada e Cavalcanti. Entretanto, além de sucinto, a
desideologizada do fato arquitetônico, como atenção à diretoria desloca-se rapidamente
se tudo se passasse alheio às coisas mundanas. para focalizar a capacidade e o talento
individual de Nunes na montagem e gestão
Embora responda adequadamente a passagens
desse órgão a partir de premissas tão
cruciais da história da arquitetura no Brasil,
inovadoras num meio aparentemente tão
esse viés interpretativo sem dúvida é insuficiente
adverso, desconsiderando o caráter de obra
para uma compreensão abrangente das redes
coletiva das realizações da DAC/DAU a que
de vínculos que perpassam à relação Estado/
alude o próprio arquiteto na carta em que
arquitetura, de maior complexidade e alcance.
solicita sua demissão em 1935.
De imediato porque sua aceitação cabal
implica na desconsideração de outras variantes Fato é que, na organização de uma lista
de relacionamento entre Estado e arquitetura, preliminar de exemplos semelhantes seria
e, por extensão, no alheamento dessa história preciso incorporar, além do caso de Luís Nunes
de um conjunto vasto de experiências que se em Pernambuco, a equipe da Divisão de
caracterizaram justo por uma inserção orgânica Aparelhamentos Escolares do Departamento
no aparato estatal, com as individualidades de Educação do Distrito Federal, dirigida por
muitas vezes dissolvendo-se, subsumidas em Enéas Silva, da qual faziam parte Wladimir
modalidades coletivas de atuação. Fato que Alves de Souza, Attílio Corrêa Lima, Paulo
se verifica no interior das agências, diretorias e de Camargo e Almeida e Raul Penna Firme,
repartições de obras públicas mobilizadas em cuja finalidade era dotar de uma “arquitetura
seus quadros técnicos para, extrapolando os especializada” o projeto pedagógico
limites das realizações excepcionais, construir concebido por Anísio Teixeira, à época
materialmente a presença do Estado país secretário-geral de Educação e Cultura do
afora em meio às políticas de modernização governo de Pedro Ernesto (Oliveira, 1991); os
postas em curso com particular intensidade na arquitetos e engenheiros reunidos na Diretoria
década de 1930 (Segawa, 1997). de Obras Públicas paulista, em cujo quadro

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técnico estavam José Maria da Silva Neves e Observadas em seu efeito conjunto, a 82
Prestes Maia; os trabalhos do Departamento abrangência e continuidade do programa
de Habitação Popular, com Carmem Portinho e contribuíram, talvez mais do que qualquer
Affonso Eduardo Reidy e, ainda nesse âmbito, outra iniciativa posta em curso na época,
a massiva produção de habitação social em para a estabilização e reconhecimento
nível nacional dos IAPs a qual nos referimos de uma determinada imagem do Estado
antes (Bonduki, 1998). em termos arquitetônicos. Esse resultado
explica-se, em grande parte, pelos métodos
Levar em conta o volume e extensão dos
projetuais empregados. Em íntima relação
encargos públicos realizados por esses órgãos
com a natureza funcional dos serviços a
técnicos, imbuindo de presença física a ação
serem prestados, eles aproximavam diretrizes
estatal, implica no reconhecimento de uma
de racionalização do trabalho, conforme os
verdadeira arquitetura de Estado e não mais
ditames do scientific management taylorista, à
somente uma arquitetura para o Estado. Isto
exploração da padronização como recurso ao
posto, abarcar desde essa premissa parcela
incremento da capacidade produtiva na prática
considerável da produção arquitetônica das
arquitetônica através do desenvolvimento de
décadas de 1930 e 1940 é endossar a ideia
séries tipológicas em correspondência com a
de que no Brasil, distinto do que consagra
hierarquia das unidades na estrutura postal
a historiografia e mais semelhante ao caso
nacional.
mexicano (Liernur & Gorelik, 1993), o Estado,
mais do que apenas cliente, numa relação de Parte inextrincável da reorganização dos
cunho liberal com o profissional-arquiteto, foi serviços postais e telegráficos do país
antes e, sobretudo, produtor de arquitetura conduzida pelo governo Vargas praticamente
(Gorelik, 1994). Considerar esta perspectiva é desde sua chegada ao poder, a renovação e
descerrar uma oportunidade para se analisar o ampliação da rede de postos de atendimento
lugar e função dos órgãos e equipes técnicas desses serviços articulava-se com os objetivos
operando no interior das estruturas do Estado de centralização e controle das comunicações
na formação de uma cultura arquitetônica no em suas múltiplas formas, inclusive a telefonia
Brasil no século passado. e a radiodifusão, pelo poder público.
Desencadeada já nos anos 1920, ainda que
Por demais ilustrativo dessa modalidade
com resultados limitados, essa ação seria
de produção desde o interior da esfera da
sobremaneira reforçada na década seguinte,
administração pública, o trabalho desenvolvido
na perspectiva de fortalecimento do Estado
a partir do começo da década de 1930 pela
nacional em detrimento dos interesses privados
Seção de Edifícios do Departamento dos
que monopolizavam vários desses serviços em
Correios e Telégrafos (DCT) é, em muitos
muitos estados e cidades do país.
sentidos, notável. Em termos de alcance
geográfico, suas realizações atingiram de fato A tarefa que se impunha então era dotar de uma
uma condição nacional, firmando a presença nova e estendida estrutura física um conjunto
de edificações especialmente projetadas de serviços em processo de modernização de
para os serviços postais e telegráficos em larga envergadura territorial. É possível aferir o
praticamente todas as capitais e principais arrojo dessa empreitada se considerarmos que
cidades dos estados brasileiros (Pereira, 1999). já em 1932 a Seção Técnica produziria quase
Encetado nos primeiros momentos do governo uma centena de projetos e estudos de reforma,
Vargas, durante as gestões dos ministros ampliação e construção de novas unidades
Juarez Távora e José Américo de Almeida, país afora, especialmente no Nordeste, como
da Viação e Obras Públicas, esse programa estratégia de remediação dos problemas
seria seguidamente ampliado nas três décadas sociais e econômicos ocasionados pela grave
seguintes. seca que assolava a região nesse momento.

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Organizados inicialmente em três soluções uma linguagem plástica de signo moderno de 83


tipológicas, que se multiplicariam ao longo das pronto reconhecimento, associada diretamente
décadas de 1930 e 1940, entre persistências aos serviços prestados pelos Correios e
compositivas de matriz acadêmica e um afã Telégrafos. Um certo ar de família dotava o
modernizante, em projetos que primavam sistema de agências de uma sólida unidade
por investir o conjunto edificado de um senso representativa, sem prejuízo das variações de
de inequívoca urbanidade contemporânea, escala e tipos individuais (Pereira, 1999).
as novas unidades lograram constituir um
universo formal compartilhado decantado em

Figura 5. Correios e Telégrafos, projeto tipo 3. Almeida, 1933, s.p.

Figura 6. Correios e Telégrafos, projeto tipo especial. Almeida, 1933, s.p.

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Com resultados muitas vezes burocráticos Majoritariamente elaborados por arquitetos 84


por sua concepção dentro de uma prática e engenheiros alocados em sua Seção de
baseada na repetição seriada com alterações Edifícios, o Departamento de Correios e
pontuais, é nas agências designadas como Telégrafos, contudo, não se furtaria a contratar
diretorias regionais que uma exploração projetos avulsos, sobretudo de suas diretorias
arquitetônica de maior arrojo fez-se presente regionais, junto a profissionais fora do seu
de fato. Equivalentes modernos dos palácios quadro técnico. Tais foram os casos das
ecléticos erguidos na década de 1920 diretorias de São Luís do Maranhão, projetada
para abrigar as instalações dos Correios e pelo arquiteto Rafael Galvão, e Natal, no Rio
Telégrafos em algumas capitais, as sedes das Grande do Norte, contratada aos arquitetos
diretorias sobressaem por sua imponência, Paulo Candiota e Mário Fertin, entre 1931 e
potencializada em efeito por sua implantação 1933 (Pereira, 1999).
em situações urbanas privilegiadas funcional e
simbolicamente.

Figura 7. Maquete do projeto da agência dos Correios e Telégrafos da cidade de Natal.


Almeida, 1933, s/p.

Figura 8. Perspectiva do projeto da agência dos Correios e Telégrafos da cidade de Fortaleza.


Almeida, 1933, s/p.

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Embora introduzam inovações pontuais no discute-se a questão de uma estética oficial 85


trato entre o edifício e o lote urbano, com ou de orientação estilística em matéria de
atenção para os fluxos horizontais e verticais arquitetura estatal.
próprios às demandas dos serviços postais, e
A Exposição de Edifícios Públicos seria objeto
um acentuado compromisso com premissas
de dura crítica por parte de José Marianno
formais e funcionais de uma arquitetura que
Filho. Médico de formação, estudioso da arte
se pretende vanguardista, esses projetos não
e arquitetura brasileiras, mecenas e defensor
destoam profundamente das características
fervoroso da empreitada neocolonial, tendo
que estavam configurando a imagem de uma
ocupado por um breve período a direção da
“arquitetura postal” para o país.
Escola Nacional de Belas Artes, Marianno Filho
Evidência de uma pesquisa arquitetônica de era notável pela acidez dos comentários que
natureza coletiva, que afetava tanto a produção tecia tanto contra a arquitetura acadêmica de
privada quanto a pública, a familiaridade que matriz beaux-arts quanto contra a arquitetura
se nota entre obras concebidas dentro ou moderna de vanguarda, a que chamava com
fora do aparato técnico estatal talvez indicie frequência, nos inúmeros artigos escritos na
o quanto, nesse momento, a investigação de imprensa diária, de bolchevique, comunista,
uma modernidade arquitetônica, ao menos judaica, “estilo caixa d’água” e afins.
no âmbito da arquitetura postal, repercutia,
É no artigo “Arquitetura estatal”, publicado
antecipava e contribuía para o projeto mais
no jornal A Gazeta, de São Paulo, em 22
geral de consolidação de uma representação
de setembro de 1944, que Marianno Filho
simbólica moderna para um Estado nacional
descerra sua crítica. De saída dirigida ao
cujo perfil também estava em construção,
ministro Capanema, apologista, segundo ele,
ainda que não sem hesitações e contradições.
de uma “arquitetura lacustre”, partidário do
“grêmio futurista”, a atenção de Marianno
Filho logo seria orientada para o aspecto que
Conclusão: Polifônica Babel
lhe era mais caro e que constituía o núcleo
Coincidindo com a abertura da Exposição mesmo do seu empenho há duas décadas,
de Edifícios Públicos, no mesmo dia 29 de ou seja, a questão de um estilo de arquitetura
julho de 1944 Vargas assinava os decretos- propriamente brasileira. Conforme ficava
lei N. 6749, 6750 e 6751, todos tratando de evidente pela observação dos exemplares
aspectos relativos à construção de edifícios reunidos na exposição, era justamente essa a
públicos pelos diferentes ministérios civis. questão que a arquitetura produzida ao longo
Como intenção, os decretos pretendiam do primeiro Vargas deixava em aberto.
normalizar os procedimentos para projeto e
A impressão geral colhida pelos visitantes é
construção de edifícios públicos no âmbito de
que os edifícios públicos recém-construídos
cada ministério que por sua vez trabalhariam
não obedecem a determinado estilo,
em conformidade com a Divisão de Edifícios
o que prova que hoje, como ontem, a
Públicos do DASP, constituindo, em conjunto,
nação ainda não se deu ao trabalho de
o sistema de obras públicas da administração
definir suas simpatias por essa ou aquela
federal. Na prática, o que se propunha a
expressão arquitetônica. (Marianno Filho,
aplicar à atividade propriamente construtiva do
1944, p. 3)
Estado eram procedimentos similares ao que
já vinha se implantando em termos de rotinas À mercê dos gostos pessoais, predileções de
de trabalho e racionalização da administração grupos de poder em cada âmbito do Estado
pública desde o começo do governo Vargas. ou sujeitos às circunstâncias das disputas entre
Todavia, em nenhum trecho desses decretos as diferentes vertentes do campo arquitetônico,

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tudo que o conjunto heterogêneo de obras da 86


exposição não representava era, na opinião
de Marianno Filho, um estilo, uma norma, um
sistema, um código de expressões plásticas.
Espécie de feira arquitetônica, a exposição
atestava a arbitrariedade reinante no plano das
obras públicas, só sanável, segundo Marianno,
através do controle e censura pelo Estado. De
tal forma que as inconsistências explicitadas
na exposição poderiam ser evitadas “se a
arquitetura oficial de toda a nação pudesse vir
a ser convenientemente controlada” (Marianno
Filho, 1944, p.3)
Haverá algum interesse para a nação nessa
luta desenfreada entre os estilos novos
e velhos? Não seria mais prudente, que
uma vez por todas, os poderes públicos
procurassem submeter as edificações
oficiais à censura de uma comissão de
pessoas de reconhecida capacidade
estética e profissional? (Marianno Filho,
1944, p. 3)
Sem poupar adjetivos pejorativos à arquitetura
moderna e sem deixar de apontar as
apropriações equivocadas da gramática
neocolonial, a fala de Marianno Filho expunha
com crueza os impasses da arquitetura
brasileira da primeira metade do século XX,
implicitamente aludindo às expectativas e
frustrações frente ao papel que o Estado
varguista poderia desempenhar no desenlace
do grande nó atravessado no campo
arquitetônico nacional. Em contraponto ao
desejado desenlace é, contudo, a imagem de
uma Babel arquitetônica que o Estado Novo de
Vargas projeta desde a Exposição de Edifícios
Públicos um ano antes de seu desmonte, em
outubro de 1945.

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