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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO

FACULDADE DE CIÊNCIAS HUMANAS E DA SAÚDE


CURSO DE PSICOLOGIA

CLARA AMARANTE DE SOUZA

SEXUALIDADE, FEMINISMOS E PSICANÁLISE:


DIÁLOGO ENTRE FREUD E KAREN HORNEY

SÃO PAULO
2022
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
FACULDADE DE CIÊNCIAS HUMANAS E DA SAÚDE
CURSO DE PSICOLOGIA

CLARA AMARANTE DE SOUZA

SEXUALIDADE, FEMINISMOS E PSICANÁLISE:


DIÁLOGO ENTRE FREUD E KAREN HORNEY

Trabalho de conclusão de curso como exigência


parcial para a graduação no curso de Psicologia,
sob orientação da Profa. Dra. Luciana Szymanski
Ribeiro Gomes

SÃO PAULO
2022
AGRADECIMENTOS

Pensar é melhor conversando. Não me esqueço dessa fala de um amigo querido, e


acredito que cabe muito bem nos agradecimentos desta pesquisa. Gostaria de agradecer
a todos que compartilharam comigo o processo de construção desse trabalho, sem vocês
isso não seria possível. Agradeço

À Luciana Szymanski, orientadora querida, pelo apoio, pela parceria e pelas trocas, e
também por acreditar no projeto desde o princípio, apesar de não ser sua principal linha
de pesquisa,

À Paula Peron, orientadora em outros projetos, pela leitura, pelos apontamentos e


referências - muitas delas se tornaram essenciais -, e também por aceitar o convite para
ser parecerista,

Aos professores Ricardo Radin e Sandra Sanchez, que me orientaram nas primeiras
disciplinas de pesquisa, e me ajudaram a construir os primeiros esboços deste trabalho,

À Patrícia Mafra Amorim, cujo trabalho foi uma das principais referências nesta pesquisa,
pela generosidade em compartilhar comigo seu exemplar da edição brasileira de
Psicologia Feminina, de Karen Horney, de tão difícil acesso, o que transformou minha
leitura dos textos da autora,

À Silvia Kazue Arima, por todas as nossas conversas nas manhãs no CAPS, pelas ótimas
referências, leituras e discussões sobre o tema da pesquisa,

À equipe do CAPS ij Lapa, por todo o apoio no último ano, e pela compreensão durante
os corridos momentos de conclusão deste trabalho,

Aos colegas da turma de orientação e da faculdade, com quem dividi o cotidiano de


dedicação à pesquisa, e a apreensão sobre a conclusão do trabalho, e do curso,

À minha família, aos amigos e ao Pedro, pelo afeto cotidiano que me permite cada
realização, com amor.
RESUMO

SOUZA, C. A., Sexualidade, feminismos e psicanálise: diálogo entre Freud e Karen


Horney. 2022. Orientador: Profa. Dra. Luciana Szymanski

Considerando a relevância de pesquisas que revisitem a teoria da sexualidade em


psicanálise, e a centralidade do tema para o campo, esta pesquisa teórica se propôs a
aprofundar a discussão sobre sexualidade em psicanálise a partir da aproximação entre
reflexões de Karen Horney e a teoria freudiana. Pouco reconhecida e com obra pouco
difundida no Brasil, desde a publicação de seu primeiro artigo sobre sexualidade feminina
em 1923, esta psicanalista alemã integrou de maneira central os debates da época sobre
o tema, que trouxe importantes transformações para teoria psicanalítica. A partir da leitura
exegética de Psicologia Feminina (1991), coletânea de artigos publicados entre 1923 e
1937, discutidos no segundo capítulo, em contraposição a textos freudianos sobre
sexualidade da mesma época, discutidos no primeiro, o objetivo foi analisar as reflexões
dos dois autores em seu contexto histórico, de maneira a aprofundar a discussão sobre
sexualidade em psicanálise, realizada na análise. Foi possível identificar que os principais
apontamentos críticos da autora estavam centrados no referencial masculino da teoria;
nos conceitos de inveja do pênis, complexo de castração feminino, e primazia fálica; na
representação da vagina e anatomia feminina; e na desconsideração de fatores sociais e
culturais na compreensão da sexualidade feminina. Embora uma pioneira, com propostas
que dialogam com reivindicações de movimentos feministas de sua época, e mesmo
posteriores, percebe-se que Horney não deixa de compreender a diferença sexual em
termos naturalizantes e biológicos, e a feminilidade enquanto inata, o que limita sua leitura
atualmente.

Palavras-chave: Karen Horney; sexualidade feminina; feminilidade; psicanálise;


feminismos.
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 2

MÉTODO 11

SEXUALIDADE EM FREUD: UMA REVISÃO BIBLIOGRÁFICA 20

A SEXUALIDADE DESDE O INÍCIO DA PSICANÁLISE 20

ANOS 20, O ÉDIPO E A PROFUSÃO DE UM LONGO DEBATE 25

FEMINILIDADE E SEXUALIDADE FEMININA: AS TRANSFORMAÇÕES DA DÉCADA DE 30 30

KAREN HORNEY 37

BIOGRAFIA 37

PSICOLOGIA FEMININA (1967) 42


A gênese do complexo de castração nas mulheres (1923) 43
A fuga da feminilidade: o complexo de masculinidade nas mulheres segundo as óticas
masculina e feminina (1926) 46
Feminilidade inibida: a contribuição psicanalítica para o problema da frigidez (1927) 49
O ideal monogâmico (1927) 50
A tensão pré-menstrual (1931) 53
A desconfiança entre os sexos (1931) 54
Os problemas no casamento (1932) 56
Medo da mulher: observações sobre a diferença específica no medo sentido por homens e
mulheres em relação ao sexo oposto (1932) 58
A negação da vagina: uma contribuição para o problema das angústias genitais específicas
nas mulheres (1933) 59
Fatores psicogênicos nos distúrbios funcionais femininos (1932) 61
Conflitos maternos (1933) 62
A supervalorização do amor: estudo de um tipo feminino comum atualmente (1934) 63
O masoquismo feminino (1935) 65
Mudanças de personalidade nas adolescentes (1935) 67
A necessidade neurótica de amor (1936) 68

ANÁLISE 71

CONSIDERAÇÕES FINAIS 88

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 92
INTRODUÇÃO

Desde Estudos sobre histeria, publicado com Josef Breuer, em 1895, Freud afirma
a existência de um elemento sexual na etiologia dos sintomas histéricos, e a partir de
então atribuiu crescente importância à sexualidade na compreensão do psiquismo. Essa
hipótese de que a sexualidade, enquanto fonte de traumas psíquicos, cumpre um papel
fundamental na psicogênese da histeria, inaugura, segundo Prates (2001), não apenas a
própria psicanálise, mas uma outra maneira de pensar o fenômeno sexual. Foi também a
partir da centralidade do conceito de sexualidade na teoria psicanalítica, que se
desenvolveram outros conceitos igualmente fundamentais, como o de pulsão e libido
(Garcia-Roza, 2009).
No verbete ‘Sexualidade’ de Dicionário de Psicanálise, Elizabeth Roudinesco e
Michel Plon (1998) contextualizam historicamente sua introdução na psicanálise no final
do século XIX - período no qual havia significativa preocupação da comunidade científica
europeia com a identificação do fator sexual na gênese dos sintomas neuróticos. Segundo
os autores, Freud efetuou uma ruptura epistemológica e teórica com a sexologia ao
elaborar toda uma nova conceituação, que estendeu

a noção de sexualidade a uma disposição psíquica universal e extirpando-a de seu


fundamento biológico, anatômico e genital, para fazer dela a própria essência da
atividade humana. Portanto, é menos a sexualidade em si mesma que importa na
doutrina freudiana do que o conjunto conceitual que permite representá-la: a
pulsão, a libido, o apoio e a bissexualidade. (ROUDINESCO e PLON, 1998, p. 704)

Laplanche e Pontalis (2001), no verbete ‘Sexualidade’ de Vocabulário da


Psicanálise, também enfatizam que:

Na experiência e na teoria psicanalíticas, ‘sexualidade’ não designa apenas as


atividades e o prazer que dependem do funcionamento do aparelho genital, mas
toda uma série de excitações e de atividades presentes desde a infância que
proporcionam um prazer irredutível à satisfação de uma necessidade fisiológica
fundamental (respiração, fome, função de excreção, etc.) (LAPLANCHE e
PONTALIS, 2001, p. 476).

Em Cartografias do feminino, Birman (2001) afirma que o lugar conferido à


sexualidade na constituição do sujeito é um dos traços marcantes do discurso
psicanalítico. No discurso freudiano, a sexualidade não tem um sentido único, mas uma
multiplicidade de significados, sendo um conceito marcado pela condensação polissêmica

2
e pela complexidade. Embora Freud tenha reconhecido o papel preponderante da
sexualidade desde a década de 90 do século XIX, sua elaboração teórica desse conceito
foi extremamente complexa, e passou por inúmeras modificações ao longo dos anos
(Arán, 2009). As diferentes edições dos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade em
1910, 1915, 1920 e 1924, após sua publicação em 1905, por exemplo, ilustram esse
processo de constante modificação e desenvolvimento da teoria freudiana, e as
incidências de suas descobertas posteriores, acerca das pulsões e do aparelho psíquico,
em suas construções teóricas.
Esse processo histórico de construção do conceito de sexualidade na teoria
psicanalítica, se deu, também, a partir das críticas, experiências e contribuições de
inúmeros autores e campos do pensamento. Para Birman (2001), para que se possa
circunscrever devidamente o conceito de sexual no discurso psicanalítico é necessário
que se possa destrinchar meticulosamente esse campo polissêmico, com o intuito de
enunciar os diferentes significados que se condensam na palavra sexualidade. Como nos
lembra Prates (2001), esse conceito foi, possivelmente, aquele que Freud defendeu com
mais veemência em sua obra, o que levou a inúmeras dissidências. O extenso debate em
torno da questão da sexualidade feminina e feminilidade, que marcou as discussões
psicanalíticas das décadas de 1920 e 1930, pode ser considerado uma expressão desse
processo, que impulsionou importantes desenvolvimentos e transformações conceituais
na psicanálise.
Este debate se deu, na Europa, em um período marcado pelo fortalecimento do
pensamento e das lutas feministas, que já apresentavam importantes reivindicações em
relação à condição política e social das mulheres, e à igualdade de direitos, e
conquistavam mudanças no contexto social e cultural europeu, algo que não deixou de
atravessar a psicanálise (Kehl, 2016). Em Lacan e o feminismo (2020), Rafael Cossi
comenta a relação histórica entre o feminismo europeu das primeiras décadas do século
XX, e a psicanálise freudiana: por um lado, Freud foi acolhido por correntes feministas
européias que enaltecem a premissa do inconsciente, enquanto uma instância que abala
a coerência do sujeito da filosofia, e também pelo interesse no reconhecimento da
constituição social e cultural do sujeito como homem ou mulher - dado a proposta do
complexo de Édipo:

3
A grande dedicação da psicanálise à sexualidade feminina nos anos 1920 chama a
atenção dos movimentos feministas desse período que visavam contrapor-se às
normas ditadas pela burguesia vitoriana - nesse âmbito, pregava-se que o discreto
impacto da mulher no espaço público e a módica participação nos processos de
produção seriam decorrentes da função reprodutiva que lhe cabia, ou seja, seu
aparato biológico justificaria sua menor importância sociopolítica, argumento este
que precisava ser combatido. (COSSI, 2020, p. 21)

Ao mesmo tempo, Freud foi criticado com argumentos que apontavam para o
caráter falocêntrico e patriarcalista de sua teoria. Para Patrícia Porchat (2007), a história
do encontro entre feminismos e psicanálise é uma história de colaboração, mas também
de confronto, que tem como foco principal a sexualidade feminina, a explicação da
aquisição de gênero e o papel da psicanálise na reprodução da hierarquia de gênero.
Mara Lago (2010) comenta, em A psicanálise nas ondas dos feminismos, como os
desentendimentos entre feminismos e psicanálise se iniciam no momento a partir do qual
Freud começa a se debruçar sobre a questão da diferenciação sexual, e revisar sua
concepção de paralelismo entre a organização de meninos e meninas no complexo de
Édipo, na década de 1920 e 1930.
Ao propor a fase fálica da organização genital infantil, Freud institui o falo como o
significante da diferenciação entre masculinidade e feminilidade, e aponta dificuldades
particulares no desenvolvimento da feminilidade. Para a autora, o conjunto teórico
desenvolvido por Freud - inveja do pênis, Supereu diferenciado, a mudança de zona
genital feminina e o masoquismo - inaugura as polêmicas entre feminismos e psicanálise.
Na década de 1920, a premissa fálica, assim como o mistério do feminino, o desprezo
pelo orgasmo clitoridiano e o enaltecimento do orgasmo vaginal - que se sustenta na idéia
de que o clitóris era apenas um instrumento que conduz à vagina -, foram, segundo a
autora, interpretados como uma forma da psicanálise se colocar a serviço da repressão
da sexualidade feminina e organizá-la a serviço do prazer masculino e da reprodução
(Porchat, 2007).
Naquele período, o contexto social foi marcado pelo crescente movimento de lutas
feministas, que contestavam a hierarquização de gênero, e buscavam a igualdade de
direitos sociais e políticos entre homens e mulheres. Segundo Bonfim (2011), "apoiadas
neste ideal de igualdade, as feministas criticaram a abordagem freudiana, pois, para elas,
identificar a falta fálica no núcleo do desenvolvimento da mulher seria, portanto, colocá-la
sob o signo de uma inferioridade de valor" (p. 36). Assim, em sua leitura, as contestações
feministas chegaram aos circuitos psicanalíticos centradas na controvérsia sobre o lugar

4
do falo na teoria freudiana. Como observa Maria Josefina Fuentes, acerca da relação
entre Freud e o pensamento feminista de sua época, em As mulheres e seus nomes:
Lacan e o feminino (2009):

Freud, contrariamente ao feminismo, manteve-se partidário do feminino como um


real enigmático que não cessou de se apresentar em sua clínica. O que não
significa que as vozes do feminismo que entraram no interior do campo da
psicanálise pelas analistas que aderiram intelectualmente ao movimento, não
tenham conduzido Freud a rever suas teses sobre a sexualidade feminina, como
ocorreu com o Édipo feminino. (FUENTES, 2009, p. 64)

Assim, desde seu início, a psicanálise tanto influenciou diferentes teorias e


movimentos feministas, quanto foi ela mesma afetada pelos avanços desses movimentos.
Roudinesco (1998; 2016) retoma como o debate em torno da sexualidade feminina dividiu
o movimento psicanalítico a partir da década de 1920, momento no qual as mulheres
passaram a integrá-lo de maneira mais central. Surgiram diferentes autores que se
contrapuseram, ou por vezes reafirmaram, as proposições freudianas no campo da
sexualidade feminina, tais como: Ernest Jones, Melanie Klein, Helene Deutsch, Karen
Horney e Jeanne Lampl-de Groot. Segundo Prates (2001), este debate teve também a
participação de Freud, e seu principal veículo foi a publicação oficial da IPA1, o
International Journal of Psychoanalysis. A questão central está em considerar a
feminilidade primária ou secundária, ou seja, o modo como cada um dos autores se
relaciona teoricamente com a premissa fálica.
Roudinesco (1998; 2016) atribui a reformulação teórica do sistema de pensamento
freudiano clássico sobre sexualidade, diferença sexual e libido, que ocorreu durante o
período entreguerras (1918-1939), aos questionamentos destas diferentes psicanalistas
mulheres sobre a relação primordial da criança com a mãe, e a especificidade da
sexualidade feminina. A autora aponta como, neste debate, as teses freudianas foram
particularmente criticadas pela escola inglesa de psicanálise, composta por figuras como
Melanie Klein, Ernest Jones, Karen Horney, entre outros psicanalistas, que:

Além de questionarem o primado atribuído à lei do pai, ao ‘falocentrismo’ freudiano


e ao ideal educativo na abordagem psicanalítica das crianças, criticavam, com toda
a razão, a extravagante hipótese freudiana da ausência na menina do sentimento
da vagina, e opunham um dualismo à noção de libido única. (ROUDINESCO, 2016,
p. 397)

1
IPA é a sigla para International Psychoanalytical Association, em português Associação Internacional de
Psicanálise.

5
Patrícia Amorim (2021) aponta, em sua tese Karen Horney, o feminismo e a
feminilidade: um desmentido na história da psicanálise, como a psicanalista e psiquiatra
alemã Karen Horney foi uma importante figura nesse debate, pois questionava, desde o
início da década de 1920, o falocentrismo presente na sociedade, e na própria
psicanálise, além de apontar diretamente para psicanalistas cujas concepções em relação
ao desenvolvimento psíquico feminino ela considerava marcadas pelo machismo. Para a
autora: "Já nessa época, ao mesmo tempo em que dialogava com seus pares, também
trazia questionamentos clínicos e políticos vanguardistas, especialmente em relação à
feminilidade" (p. 14).
Na Alemanha, Karen Horney foi cofundadora do Instituto de Psicanálise de Berlim,
onde permaneceu como docente ativa na formação de analistas de 1920 a 1932, e
auxiliar no processo de estabelecimento da Policlínica de Berlim2. Nos Estados Unidos,
participou da fundação do Instituto de Psicanálise de Chicago, e foi posteriormente
professora na Nova Escola de Pesquisas Sociais e integrante do Instituto de Psicanálise
de Nova York, até sua expulsão em 1941. A ida para os Estados Unidos em 1934, se deu
em meio a Segunda Guerra Mundial, e com ela Horney foi ainda mais influenciada por
perspectivas de outras áreas, como a Sociologia e a Antropologia, e ingressou em
debates que institucionalizaram a psicanálise no país (Amorim, 2021).

O lugar de Horney nos primórdios dessa história parece-nos digno de nota, mas por
algum motivo a autora parece não ter sido reconhecida na mesma medida em que
contribuiu para o desenvolvimento teórico e institucional da psicanálise. Psicanalista
da segunda geração, sendo uma das primeiras mulheres no campo e tendo
formação também em psiquiatria, a autora apresentou vasta teorização sobre a
constituição psíquica feminina, encabeçando o debate sobre a feminilidade que
dividiu psicanalistas de todo o mundo entre as décadas de 20 e 30 (AMORIM, 2021,
p. 16).

Karen Horney foi uma das psicanalistas da época que mais se opôs à concepção
de inveja do pênis, e sustentou a ideia de uma essência feminina fundamentada na
relação direta com a mãe, que poderia ser perturbada por fatores do desenvolvimento e
pela relação com o pai. Assim, ela costuma ser mencionada como a primeira psicanalista
2
Como comenta Anna Danto (2019), a Policlínica de Berlim, inaugurada em 1920, foi o primeiro de uma
série de centros de tratamento psicanalítico gratuito, criados por uma geração ativista de psicanalistas, em
dez cidades e sete países entre 1920 e 1938. As inovações da Policlínica de Berlim incluíram: propostas de
análise fracionada - ou limitada no tempo -, tratamento gratuito, o debate formal sobre a psicanálise infantil e
a padronização da educação psicanalítica (Danto, 2019), e Karen Horney foi um dos membros fundadores e
a primeira mulher a ensinar na Policlínica.

6
a introduzir críticas feministas na psicanálise, devido a seu tensionamento de alguns
atravessamentos da lógica patriarcal nas teorizações freudianas, apesar dela não se
auto-denominar desta forma. Dentro do movimento psicanalítico alemão e europeu, até
metade da década de 1930, Karen Horney sugeriu, por exemplo, que as meninas desde
cedo têm sensações vaginais, mas há, no entanto, uma negação da vagina, culturalmente
motivada (Porchat, 2007), o que contraria proposições centrais da teoria da sexualidade
freudiana, tais como a inveja do pênis e a primazia fálica.
Em Este sexo que não é só um sexo, Luce Irigaray (2017), importante psicanalista
e pensadora feminista francesa, comenta a obra de Horney, e a considera quem primeiro
se recusou a se submeter à perspectiva freudiana sobre sexualidade feminina, e que
“sustentou que a sequência complexo de castração-complexo de Édipo, tal como Freud a
havia articulado para explicar a evolução sexual da menina, devia ser revertida” (p. 61).
Silva (2021) argumenta que desde os princípios da psicanálise, Horney trouxe variados
apontamentos que são até hoje relevantes na intersecção com os feminismos e os
estudos de gênero, tais como

a crítica ao referencial masculino nas teorizações e à universalidade do Édipo, a


proposição de leituras da feminilidade que não se ancoram em um ideal de sujeito
masculino, a ênfase na influência da cultura nas produções científicas e na própria
subjetividade, a necessidade de um olhar para questões culturais na clínica
psicanalítica, entre tantas outras (SILVA, 2021, p. 31).

Considerando a relevância histórica das problematizações de Karen Horney no


campo psicanalítico - principalmente ao seu pioneirismo na introdução do debate sobre a
sexualidade feminina neste campo -, e a pouca tradução e difusão de seu trabalho em
meios acadêmicos e pesquisas em psicanálise no Brasil, o principal objetivo deste
trabalho é aprofundar a discussão sobre a sexualidade em psicanálise, a partir da
aproximação entre reflexões de Karen Horney e a psicanálise freudiana. O estudo da obra
de Horney, portanto, se dá a partir do entendimento de que o diálogo com proposições da
crítica feminista em torno de conceitos psicanalíticos é relevante para produção de
conhecimento acerca da sexualidade, e de seus desdobramentos em psicanálise.
Conjuntamente, a pesquisa tem, como objetivos específicos, identificar quais as reflexões
feitas por Horney sobre a sexualidade na teoria freudiana, e a que pontos da teoria se
referem, com a finalidade de empreender uma reflexão acerca do diálogo histórico entre

7
psicanálise e feminismos, e sua influência na teoria e na prática psicanalíticas ligadas à
sexualidade.
A problemática acerca da diferença sexual e sexualidade feminina em psicanálise,
não se esgotou nas primeiras décadas do século passado, muito pelo contrário: além de
ter sido largamente revisitada pelo feminismo francês na década de 70, a partir do retorno
a Freud empreendido por Lacan, o tema parece ser ainda muito presente e atual nos
debates entre psicanálise, feminismos, estudos de gênero, filosofia, antropologia, entre
outras áreas (Lago, 2010). O debate sobre feminilidade é, ainda hoje, relevante para o
desenvolvimento da teoria psicanalítica, pois envolve discordâncias e problematizações
que vão além da teoria, envolvendo também suas consequências clínicas e políticas da
teoria, que devem ser reconhecidas (Amorim e Belo, 2020).
Um exemplo importante, que expressa a atualidade deste debate é a recente fala
de Paul B. Preciado, apresentada em 2019, na Escola da Causa Freudiana, na França, e
publicada em 2020, sob o nome O monstro que vos fala, relatório para uma academia de
psicanalistas. Ao ser convidado para uma fala sobre o tema 'mulheres em psicanálise', o
filósofo e autor espanhol critica veementemente o caráter datado, binário e heterossexista
do recorte escolhido, assim como de alguns posicionamentos sustentados por
determinados psicanalistas sobre a experiência da transexualidade. Preciado (2020)
ironiza que teria sido mais apropriado organizar um encontro sobre os homens brancos
heterossexuais e burgueses, pois a maioria dos textos e práticas psicanalíticas giram em
torno do poder discursivo e político desse tipo de sujeito, que é ainda hoje tomado como
universal e central nos discursos e instituições psicanalíticas da modernidade colonial. O
autor defende, ainda, que as formas de amor hetero e homossexual consideradas
normais ou patológicas pela psicanálise são

grandes artefatos de ficção que construímos coletivamente e que, se antes


eram, quem sabe, necessários para a sobrevivência de um determinado
grupo de animais humanos, hoje nada mais são do que pesadas armaduras
produzindo nada mais do que morte e opressão. Artefatos inventados e
politicamente legitimados, convenções históricas, instituições culturais que
tomaram a forma de nossos próprios corpos, a ponto de nos identificarmos
com eles (PRECIADO, 2020, p. 17).

A crítica de Preciado (2020) é extremamente atual, e ao mesmo tempo em que


ecoa todo um debate histórico sobre sexualidade e feminilidade no campo psicanalítico,
que se iniciou há praticamente um século, e ainda não se esgotou. As problematizações

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do autor acerca da centralidade do sujeito masculino e do lugar atribuído à mulher no
discurso psicanalítico, por exemplo, remetem aos apontamentos de Horney em seus
textos sobre sexualidade feminina no início da década de 1920, sobre o referencial
masculino adotado nas teorizações da psicanálise. As novas manifestações da
sexualidade, a pluralidade de identidades sexuais, os novos arranjos familiares, entre
outros fatores dos quais fala Preciado, entre outros teóricos feministas contemporâneos,
compõem um panorama atual que é crítico a inúmeras proposições sobre sexualidade em
psicanálise - de Freud a Lacan, à psicanalistas feministas -, o que convoca o campo a se
revisitar.
Também para Thamy Ayouch (2014), tanto as mudanças nas relações de aliança,
quanto a maior visibilidade de identidades de gênero alternativas, questionam o aparato
tradicional da psicanálise e tornam imprescindível uma revisão de premissas acerca da
sexualidade. O autor afirma as potencialidades ligadas ao ato de conhecer e ao
pensamento em psicanálise, considerando que não é um pensamento que representa um
engessamento de identidades, é vínculo, excede a binariedade e abre um espaço além da
identidade, na mudança perpétua das identificações. Ele defende que a tarefa da
psicanálise é permitir uma plasticidade na construção psíquica das dessemelhanças e das
semelhanças, uma atividade psíquica em constante movimento, para além dos
binarismos. Para Oliveira e Nicolau (2020), o diálogo entre a psicanálise e outras áreas,
como o feminismo, é fundamental para "impulsionar avanços teóricos que permitam novas
construções para velhos sintomas" (p. 3). Os autores sustentam que a história do debate
entre esses dois campos, apesar de marcada por críticas, tensões e questionamentos,
possibilitou e ainda possibilita, devido ao avanço do debate, a realização de uma leitura
social e subjetiva dos fenômenos de sujeição.
Silva (2021) defende a relevância do conhecimento das histórias em sua
multiplicidade, ou seja, de serem contadas aquelas que não são tão difundidas, "não
apenas porque elas importam para a produção de furos nas discursividades mais
cristalizadas nos entrecruzamentos entre gênero e psicanálise, mas também porque
podem aportar contribuições para essas discussões no Brasil hoje” (p. 24). A autora
defende, ainda, que as proposições de Horney são relevantes para o campo psicanalítico,
em suas intersecções com feminismos e estudos de gênero, pois abrem caminho para
enlaçamentos posteriores entre essas áreas, o que argumenta a favor da importância de
conhecer sua obra e a tradição das produções nesse campo.

9
Nesse sentido, parece pertinente e interessante revisitar momentos da história da
psicanálise onde as questões da sexualidade faziam tensão internamente, como na
década de 20 e 30 do século XX, a partir da obra de uma autora central para o debate,
que se posicionou criticamente às concepções majoritariamente aceitas na época. A obra
de Karen Horney, apesar de pouco traduzida e pouco presente nas discussões
psicanalíticas contemporâneas sobre sexualidade feminina, parece ter sido bastante
significativa em sua época, pois foi amplamente discutida nos círculos psicanalíticos,
assim como comentada por Freud e outros psicanalistas importantes da primeira e
segunda geração. Assim, há o interesse em investigar, a partir do diálogo com a teoria
freudiana, as contribuições de Karen Horney sobre os conceitos de diferença sexual e
feminilidade no início da psicanálise, centrais para os enlaces entre psicanálise, estudos
de gênero e feminismos.
Sobre as publicações de Horney ligadas diretamente à problemática da
sexualidade feminina, a referência mais frequente é a obra Psicologia Feminina (1967),
publicada postumamente por um de seus alunos, Harold Kelman, em 1967. Nesta
coletânea, dos quinze textos, escritos entre 1923 e 1936, quatro se dedicam a questões
relativas ao casamento, dois à maternidade, e nove a questões relativas à condição
cotidiana de mulheres no início do século XX, que viviam conflitos entre as tradições
vitorianas e os desejos por mais autonomia, que envolvem temas como o casamento, a
monogamia, os relacionamentos, os processos fisiológicos femininos, a sexualidade,
entre outros (Amorim, 2021).
Neles, a autora expõe diretamente suas considerações sobre a sexualidade
feminina e a feminilidade segundo a psicanálise freudiana, em um diálogo direto com
Freud. Esta publicação foi a referência central desta pesquisa, pois nela. Devido à
dificuldade em obter acesso à obra traduzida para o português, a edição utilizada durante
a maior parte do tempo de pesquisa foi Feminine Psychology (1967), publicada em Nova
York, pela W. W. Norton & Company, em 1967. Só foi possível acesso à obra traduzida em
língua portuguesa, Psicologia Feminina, na edição de 1991 da Editora Bertrand, nos
meses finais da pesquisa, devido à generosidade da pesquisadora brasileira Patrícia
Mafra de Amorim, referência essencial neste trabalho.
A partir de uma revisão e apresentação resumida desta obra de Horney, procura-se
confrontar suas reflexões à teoria da sexualidade freudiana, e, assim, divulgar sua obra,
de forma a contribuir para articulação entre feminismos e psicanálise. Segundo Amorim

10
(2021), Psicologia Feminina (1991) expressa o porque "Karen Horney é tida como a
psicanalista que inseriu a pauta feminista na psicanálise" (p. 13). Para a autora, os
questionamentos de Horney sobre a relevância da mãe no desenvolvimento psíquico do
sujeito e a consideração de fatores históricos, sociais e culturais na teoria, são cruciais
atualmente na articulação entre feminismos, estudos de gênero e a psicanálise. Da
mesma forma, Silva (2021) defende que as proposições da autora na década de 1920
abrem caminhos para diversos entrelaçamentos entre psicanálise e feminismos
posteriores, o que aponta para a relevância de retomar sua obra, e conhecer a tradição
das produções nesse campo. Tanto em termos históricos, quanto teóricos, a obra da
autora se faz relevante para o campo psicanalítico em suas intersecções com feminismos
e estudos de gênero.
Para alcançar o objetivo principal, de aprofundar a discussão sobre a sexualidade
em psicanálise a partir da aproximação entre reflexões de Karen Horney e a psicanálise
freudiana, foi necessário inicialmente revisitar o próprio conceito de sexualidade em
Freud, e seus principais preceitos sobre desenvolvimento sexual e assunção do gênero,
para poder aproximá-las das ideias de Horney. Portanto, o primeiro capítulo apresenta
uma revisão bibliográfica da teoria da sexualidade nas principais obras de Freud sobre o
tema, e procura dar conta de um panorama do desenvolvimento de sua concepção de
sexualidade - que serve como referência para o pensamento e crítica de Karen Horney. O
fato da obra de Horney e de Freud serem contemporâneas, e de Freud também comentar
diretamente sua produção em algumas de suas publicações - como a conferência
Feminilidade, de 1931 -, faz com que a revisão bibliográfica destes textos freudianos
sobre sexualidade dê também dimensão do alcance das afirmações de Horney e sua
recepção pelo meio psicanalítico da época.
O segundo capítulo é subdividido em dois subcapítulos, o primeiro é dedicado à
apresentação de Karen Horney, sua breve biografia e a contextualização do conjunto de
sua obra, com base principalmente nas obras de Susan Hitchcock (2005), Patrícia Mafra
de Amorim (2021), Flávia Bonfim (2011), e Elisabeth Roudinesco e Michel Plon (1998). O
segundo é dedicado à apresentação detalhada da leitura da obra Psicologia Feminina,
através de uma síntese de cada artigo, no intuito de difundir e tornar mais acessível a
produção de Horney. O terceiro capítulo envolve a análise das proposições de Horney
apresentadas anteriormente, à luz da teoria da sexualidade segundo Freud, apresentada
no primeiro capítulo. A análise propicia também a revisão bibliográfica e histórica de

11
determinadas dimensões basais do saber psicanalítico, através da mobilização teórica
norteada pelos apontamentos críticos de Horney, que acredito ser uma investigação que
produz conhecimento relevante sobre sexualidade em psicanálise. Seguindo a proposição
de Laplanche (1992): "A partir desses questionamentos radicais, violentos, é
necessariamente uma nova temática, novas ordenações, novos conceitos ou uma nova
disposição dos conceitos que se desenha" (p. 01).
O quarto e último capítulo traz as considerações finais, na qual procura-se esboçar
a relação daquilo que foi desenvolvido na análise, e as reivindicações de movimentos
feministas, de forma a apontar possíveis caminhos de continuidade dessa investigação.

12
MÉTODO

Para discutir a pesquisa em psicanálise atualmente, Renato Mezan (2006) retoma


o entendimento freudiano do trabalho clínico realizado em psicanálise, que, segundo ele,
propiciava descobertas que não se restringiam a um determinado paciente, mas podiam
ser integradas a uma teoria geral do funcionamento e dos transtornos psíquicos. Freud
afirma, em Dois verbetes de enciclopédia (1923), que psicanálise é tanto uma teoria,
quanto um método de investigação e uma terapêutica. A teoria psicanalítica é produzida a
partir do conhecimento que é adquirido através do método investigativo. Ao introduzir a
reflexão acerca das aproximações entre a psicanálise e as ciências empíricas, ele propõe
sua diferenciação a partir do fato da psicanálise procurar lidar com os problemas
imediatos da observação, sondar o caminho à frente com o auxílio da experiência,
portanto, se acha sempre incompleta e disposta a corrigir ou a modificar suas teorias, de
forma que o caráter provisório das hipóteses não faz com que sejam incongruentes, e sim
deixa ao encargo das futuras investigações uma maior precisão de definição (Freud,
1923).
Cesar e Sara Botella (2001) comentam a atualidade das discussões acerca da
definição do campo da pesquisa em psicanálise e de sua cientificidade, e afirmam que o
método de pesquisa psicanalítica difere dos métodos científicos clássicos, pois sua
especificidade é inseparável de sua práxis. Ou seja, segundo os autores, a psicanálise é
indissociável de um método, pois é ela própria um procedimento de investigação. Gilberto
Safra (2001) reconhece, também em acordo com as proposições de Freud, que o método
psicanalítico não é direcionado no sentido de alcançar a conclusão fechada do saber
acerca de algo, ou pela busca de um objetivo determinado, é muito mais um
procedimento processual. Assim ele afirma, sobre a metodologia empregada em
pesquisas em psicanálise, que seu rigor está ligado à fidelidade a princípios que norteiam
a prática da investigação psicanalítica, e não ao rigor característico da metodologia
tradicional, que dicotomiza sujeito e objeto.
Maria Lúcia V. Violante retoma, em Pesquisa em Psicanálise (2000), a definição de
Joel Birman (1993) sobre o campo de pesquisa psicanalítica: se dá a partir de seu objeto,
que é o psíquico, de seu método, que é a interpretação, e de sua técnica, a associação
livre, assim como pelas condições de possibilidade para emergência das formações do
inconsciente. Violante (2000), em consonância com o entendimento de Birman (1993),

13
considera que a investigação em psicanálise pode exceder as situações analíticas e
clínicas, pois o espaço analítico, tal como locus para pesquisa psicanalítica, pode ser
transposto para diversas outras áreas de investigação, desde que sejam respeitados os
critérios teórico-metodológicos da psicanálise.
Segundo Renato Mezan (1993), a pesquisa em psicanálise pode se dar em duas
principais vertentes, que não são excludentes. A primeira delas passa pelo modo de
produção dos conhecimentos psicanalíticos - que ele utiliza como principais exemplos as
obras de Freud e André Green -, envolve a elaboração teórica a partir das próprias
experiências clínicas, segundo um processo de análise epistemológica e metodológica. A
segunda vertente diz respeito à inclusão em contextos universitários - como fez Jean
Laplanche através das Problemáticas, curso ministrado por Laplanche na Universidade de
Paris VII, centrado em uma abordagem da teoria psicanalítica a partir do próprio método
analítico, guiada pela problematização de alguns de seus conceitos e eixos fundamentais,
e o reconhecimento de suas contradições.
As aulas das Problemáticas representam um espaço de reflexão sobre os
fundamentos da psicanálise proposto por Laplanche, e foram publicadas sob o mesmo
título a partir de 1980 em seis diferentes volumes. Essa vertente envolve a realização de
leituras históricas de textos psicanalíticos, que os problematizam e os interpretam,
partindo da premissa de que é possível ler textos analíticos de um modo analítico (Mezan,
1993), ou seja, de que é possível utilizar o método psicanalítico como instrumento para
investigação dos textos que fundamentam a teoria. Assim, a pesquisa em psicanálise,
apesar de estar historicamente atrelada à experiência clínica, também pode ter caráter
teórico - metapsicológico - e histórico, e pode acontecer no interior das universidades.
Renato Mezan (2006) comenta, a partir de sua própria experiência como orientador
de pesquisas de pós-graduação, a heterogeneidade das pesquisas em psicanálise:
alguns trabalhos examinam conceitos centrais da teoria, outros abordam a prática clínica,
outros enfatizam estruturas psicopatológicas, relações sociais fundamentais ou, ainda, a
clínica em instituições. Para o autor, o que há de comum entre eles é a identificação de
um problema de pesquisa, e então sua investigação a partir dos meios conceituais
oferecidos pela psicanálise: "Com freqüência, as noções empregadas para estudar o
problema escolhido saem revigoradas do embate com aquilo que foram convocadas a
esclarecer" (p. 233).

14
Luiz Alfredo Garcia-Roza (1994) propõe que a pesquisa teórica em psicanálise
deve envolver um processo de submissão da teoria psicanalítica a uma análise crítica,
com a finalidade de verificar sua lógica interna​, sua coesão estrutural e também as
condições de possibilidade de seus conceitos​. Defende que o pesquisador adote uma
postura irreverente, que possibilite, a partir da mobilização de recursos do imaginário, a
emergência do novo e a ultrapassagem dos limites daquilo que já está estabelecido. E,
ainda segundo o autor, essa postura se expressa, em termos metodológicos, a partir da
exploração da natureza singular e das problemáticas próprias aos conceitos
fundamentais.
Violante (2000), por sua vez, reforça a prática de Laplanche nas Problemáticas ao
reconhecer a importância de pesquisas exegéticas em psicanálise, que, segundo ela, é
referente à possibilidade de produção de conhecimento teórico a partir do emprego do
método psicanalítico na realização de uma leitura histórica de seus textos fundamentais.
Para a autora, o mais relevante é problematizar o objeto de estudo, no caso textos
teóricos fundamentais, de tal forma que a psicanálise seja imprescindível para a
efetivação do estudo e de uma resposta à questão colocada.
Se pretende, portanto, que esta pesquisa vá ao encontro do que os diferentes
autores mencionados reconhecem como uma pesquisa teórica em psicanálise, que se
constitui a partir da leitura e análise de textos fundamentais da teoria psicanalítica
freudiana, nesse caso com ênfase na questão da sexualidade, e a partir do diálogo com
outros textos historicamente, de Karen Horney. Em O tronco e os ramos (2014), Renato
Mezan discute a expansão de fronteiras internas e externas do campo psicanalítico, e a
evolução da disciplina nas primeiras décadas do século XX, devido à contribuição de
diversos psicanalistas de primeira e, principalmente, da segunda geração - Melanie Klein,
Otto Rank, Sándor Ferenczi, Karen Horney, Ernst Jones, para nomear alguns.
Mezan (2014) denomina o período entre guerras mundiais como a 'era dos
debates' em psicanálise, devido às importantes discussões empreendidas por diferentes
psicanalistas do período, em torno da pulsão de morte, da sexualidade feminina, entre
outros temas emergentes nos círculos da época. Num momento posterior, durante a
Guerra Fria, alguns grupos se consolidam em escolas mais delimitadas, como a corrente
inglesa kleiniana, a escola das relações de objeto, também majoritariamente inglesa, e os
discípulos franceses de Lacan, centrados no retorno a Freud, por exemplo. Para o autor,
"apesar de encerrados cada um nas próprias muralhas, esses grupos - até pela

15
necessidade de comprovar sua razão de ser - fazem avançar a psicanálise em muitos
aspectos" (p. 519).
Mezan (2014) aponta, ainda, para a importância de reconhecer a história não
enquanto uma sequência de fatos causais, que diria respeito apenas ao movimento
psicanalítico, suas divergências e rupturas. O autor considera necessário reconhecer a
história enquanto algo que é intrínseco ao desenvolvimento teórico da disciplina,
inicialmente fundada por Freud, ou seja, como identifica Amorim (2021), “historicizar a
psicanálise a fim de construir um saber acerca de suas origens e desenvolvimento para
melhor apreender a teoria e fazê-la avançar” (p. 118).
Roudinesco e Plon (1998) enfatizam como, no cerne do movimento psicanalítico da
década de 20 e 30, se desenrolou um importante debate sobre o monismo sexual e a
sexualidade feminina, que opôs partidários da escola inglesa, como Melanie Klein e Ernst
Jones, à escola vienense, de Helene Deutsch e Jeanne Lampl-De Groot, por exemplo.
Segundo os autores, apesar da concepção psicanalítica em comum acerca do papel
essencial da sexualidade no funcionamento psíquico, "com efeito, essa querela havia
mostrado como era difícil conciliar a idéia da diferença sexual e da bissexualidade (no
sentido psíquico) com a de uma libido única (essencialmente masculina)" (p. 74). Karen
Horney foi uma das psicanalistas a participarem e contribuírem neste extenso debate, que
alcançou diferentes círculos psicanalíticos, e que possibilitou a expansão do
conhecimento acerca de sexualidade, sexualidade feminina e diferença sexual em
psicanálise.
Assim, para esta pesquisa teórica de caráter exegético, que tem como objetivo
uma aproximação e releitura crítica de textos teóricos fundamentais sobre a sexualidade
em psicanálise - e o princípio do diálogo entre feminismos e psicanálise -, foram
primeiramente selecionadas obras de Sigmund Freud e Karen Horney que tratam
diretamente desta temática. O critério de escolha dos textos foi o de relevância por
aparição em pesquisas em bases de dados e frequência enquanto referência para outros
trabalhos sobre o tema da sexualidade em psicanálise e sobre a obra de Karen Horney. A
leitura dos textos freudianos selecionados se deu em ordem cronológica, desde Três
ensaios sobre a teoria da sexualidade, publicado em 1905, até Feminilidade, conferência
de 1933, um de seus últimos textos dedicados especificamente à sexualidade feminina,
tão cara à interface entre o pensamento feminista e a psicanálise.

16
Após a realização da leitura, fichamento e discussão dos textos, foi produzido um
primeiro capítulo dedicado à sexualidade em Freud, dividido em quatro subcapítulos, que
mapeiam o desenvolvimento sexual segundo sua teoria e apresentam a revisão
bibliográfica realizada. Os subcapítulos foram divididos de maneira cronológica: o primeiro
referente ao momento mais inicial da obra de Freud, que portanto aborda a teoria da
sedução e da fantasia, o fator sexual na etiologia das neuroses e a sexualidade infantil; o
segundo aborda o complexo de Édipo freudiano, e as primeiras proposições freudianas
acerca da diferença sexual. E o terceiro subcapítulo é dedicado à questão específica da
sexualidade feminina em Freud - explorada principalmente nas conferências Sexualidade
feminina (1931) e Feminilidade (1933), bastante abordadas por Karen Horney e pela
crítica feminista, e que apresentam o pensamento freudiano acerca da sexualidade
feminina após a recepção de diferentes críticas a partir de suas publicações da década de
1920, tais como as de Horney, que ele comenta em Sexualidade feminina (1931).
Os textos de Freud lidos foram: Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. (1905),
O desenvolvimento da libido e as organizações sexuais (1917) - apresentados no primeiro
subcapítulo -, Dissolução do complexo de Édipo (1924), Algumas consequências
psíquicas da distinção anatômica entre os sexos (1925) - apresentados no segundo
subcapítulo -, Sobre a sexualidade feminina (1931) e A feminilidade (1933) - apresentados
no terceiro subcapítulo. A seleção das obras freudianas se baseou: em menções e
relevância nas diferentes referências consultadas para realização do projeto de pesquisa;
na lista de indicação da Editora Imago sobre o tema da sexualidade em sua edição das
obras completas de Freud, de 1996; e também na edição Amor, sexualidade e
feminilidade, das obras incompletas de Sigmund Freud, lançado pela Editora Autêntica
em 2018, que reúne textos freudianos de diferentes épocas, que reconhecidamente
tratam diretamente desta temática.
Considerando o quão vasta é a obra de Freud, e a relevância da sexualidade para
sua proposição da psicanálise, foram selecionar no mínimo dois textos absolutamente
indispensáveis para cada período da obra freudiana a ser abordado no primeiro capítulo,
considerando-a em seus marcos fundamentais para pensar a sexualidade e a diferença
sexual, como a introdução do conceito de pulsão no início do século XX, as mudanças na
proposição do Édipo feminino na década de 1920, e as considerações acerca da
feminilidade, na década de 1930. O principal objetivo do capítulo é apresentar o processo
de desenvolvimento da teoria da sexualidade freudiana e suas transformações ao longo

17
de sua obra, para analisá-la posteriormente em relação às propostas e reflexões
apresentadas por Karen Horney. Os principais comentadores utilizados são Luiz
Garcia-Roza, Freud e o inconsciente (2009); Ana Laura Prates, Feminilidade e
experiência psicanalítica (2001); Michele Roman Faria, Constituição do sujeito e estrutura
familiar: o complexo de édipo, de Freud a Lacan (2021); Rafael Kalaf Cossi, Lacan e o
feminismo: a diferença dos sexos (2020).
O segundo capítulo é dedicado especificamente à Horney e sua obra sobre
sexualidade feminina. Um primeiro subcapítulo apresenta sua breve biografia e
contextualiza o conjunto de sua obra, com base principalmente na obra de Susan Tyler
Hitchcock, Karen Horney Pioneer Of Feminine Psychology; a tese de doutorado de
Patrícia Mafra de Amorim, Karen Horney, o feminismo e a feminilidade - um desmentido
na história da psicanálise (2021); Karen Horney and Feminism (1981), de Dee Garrison; e
Dicionário de Psicanálise, de Elisabeth Roudinesco e Michel Plon (1998). Considerando a
extensão do conjunto de suas publicações e a ênfase desta pesquisa na temática da
sexualidade, foi atribuído destaque à obra Psicologia Feminina (1991), coletânea
publicada postumamente em 1967 por um dos alunos de Horney, que reúne quinze
artigos centrados na questão do feminino, escritos entre 1922 e 1937, e renovou o
interesse na obra da autora, que depois de sua morte em 1952 tinha caído no
esquecimento (Amorim, 2021).
A obra Psicologia feminina (1991) é então explorada no subcapítulo seguinte, que
inclui a apresentação geral da obra e de cada um dos artigos. Pela dificuldade de acesso
à tradução em português, a obra foi lida no original em inglês, na edição de 1967. Foi
realizado fichamento por artigo, acompanhado da leitura de comentadores selecionados
da obra de Horney, e do panorama crítico ao qual pertence: a tese da psicanalista
brasileira Patrícia Amorim, Karen Horney, o feminismo e a feminilidade - um desmentido
na história da psicanálise (2021); a tese de Flávia Bonfim, Primazia, Querela, Significante
e Objeto a: Um percurso na psicanálise sobre o falo (2011); entre outros.
Considerando a pouca difusão da obra de Horney, e sua relevância histórica no
debate sobre sexualidade feminina em psicanálise, optou-se por apresentar
detalhadamente sua principal obra sobre o tema, através de uma síntese dos argumentos
centrais de cada um de seus artigos, publicados ao longo de quinze anos. O segundo
capítulo apresenta, ainda, um terceiro subtítulo, dedicado a alguns dos principais
desdobramentos da obra de Horney, portanto, seus caminhos de pesquisa após o

18
abandono da ênfase na sexualidade feminina e também comentários de outros autores
sobre a sua obra, como é o caso de Jacques Lacan, em um texto fundamental, A
significação do falo.
O terceiro capítulo é dedicado à análise das proposições de Horney apresentadas
no capítulo anterior, à luz da teoria da sexualidade segundo Freud, apresentada no
primeiro capítulo. Ou seja, o terceiro capítulo procura dar conta do objetivo de contrapor a
leitura de Horney sobre feminilidade e sexualidade feminina, à concepção de Freud, que
se desenvolve contemporaneamente às publicações de Horney. O enfoque está em
observar quais as diferenças entre Freud e Horney, considerando também as críticas mais
frequentes àquilo que foi proposto por Freud sobre esse tema. Tendo essas críticas em
vista, pretende-se comentar o quanto Horney dá ou não conta dela e de avanços exigidos
por elas. E, finalmente, há um último capítulo dedicado às considerações finais da
pesquisa, que relaciona o que foi desenvolvido ao contexto das reivindicações feministas,
e aponta possíveis caminhos de continuidade da pesquisa.

19
1. SEXUALIDADE EM FREUD: UMA REVISÃO BIBLIOGRÁFICA

1.1. A SEXUALIDADE DESDE O INÍCIO DA PSICANÁLISE

Para Laplanche e Pontalis (2001), no verbete ‘Sexualidade’ de Vocabulário da


Psicanálise:

Na experiência e na teoria psicanalíticas, "sexualidade" não designa apenas as


atividades e o prazer que dependem do funcionamento do aparelho genital, mas
toda uma série de excitações e de atividades presentes desde a infância que
proporcionam um prazer irredutível à satisfação de uma necessidade fisiológica
fundamental (respiração, fome, função de excreção, etc.) e que se encontram a
título de componentes na chamada forma normal do amor sexual (LAPLANCHE e
PONTALIS, 2001, p. 476).

No verbete 'Sexualidade' de Dicionário de Psicanálise, Elizabeth Roudinesco e


Michel Plon (1998) contextualizam historicamente sua introdução na psicanálise no final
do século XIX - período no qual havia significativa preocupação da comunidade científica
europeia com a identificação do fator sexual na gênese dos sintomas neuróticos. Segundo
os autores, Freud efetuou uma ruptura epistemológica e teórica com a sexologia ao
elaborar toda uma nova conceituação capaz de construir a evidência do fenômeno sexual;
assim, ele estendeu

a noção de sexualidade a uma disposição psíquica universal e extirpando-a de seu


fundamento biológico, anatômico e genital, para fazer dela a própria essência da
atividade humana. Portanto, é menos a sexualidade em si mesma que importa na
doutrina freudiana do que o conjunto conceitual que permite representá-la: a
pulsão, a libido, o apoio e a bissexualidade (ROUDINESCO e PLON, 1998, p. 704).

Desde Estudos sobre histeria (1895), Freud reconhece, em conjunto com Breuer, a
existência de um elemento sexual na etiologia dos sintomas histéricos, em um momento
histórico no qual o conteúdo sexual do trauma psíquico começava a aparecer enquanto
um dos pressupostos de sustentação da teoria e da terapia da histeria da época
(Garcia-Roza, 2008). Essa hipótese, segundo Prates (2001), inaugura não apenas a
psicanálise, mas uma maneira de pensar o fenômeno sexual, pois, a partir dela se
constitui uma oposição entre o registro biológico e o da sexualidade.
Márcia Arán (2009) aponta como, embora Freud tenha reconhecido o papel
preponderante da sexualidade desde a década de 90 do século XIX, a elaboração teórica
desse conceito sempre foi extremamente complexa e passou por inúmeras modificações

20
ao longo dos anos. Inicialmente em sua prática clínica e investigação acerca do
funcionamento das neuroses, Freud reconheceu que o conteúdo apresentado por seus
pacientes fazia referência a conflitos de ordem sexual, que remontavam aos primeiros
anos de vida. Eram experiências de caráter traumático, reprimidas na infância, que se
configuravam como origem dos sintomas observados na vida adulta — o que indicava a
presença da vida sexual desde a infância. Inicialmente Freud propôs, então, uma teoria
da sedução, segundo a qual a neurose teria como origem um abuso sexual real durante a
infância.
Alguns anos depois, após a introdução da noção de realidade psíquica — aquilo
que para o sujeito assume valor de realidade em seu psiquismo —, essa teoria foi
substituída pela teoria da fantasia, que designa a vida imaginária do sujeito e a maneira
como este representa para si mesmo sua própria história (Roudinesco e Plon, 1998). Se
na primeira o trauma sexual implicava a ação externa de um outro, na segunda o próprio
sujeito é quem formula representações fantasísticas, que, por serem inaceitáveis para ele,
se tornam responsáveis pelos sintomas. Para Marco Antonio Coutinho Jorge (2000), em
Fundamentos da Psicanálise de Freud a Lacan: vol. 1:

Se com os relatos de suas pacientes histéricas Freud partira da idéia da ocorrência


de uma sedução e de um “trauma sexual infantil”, ele desembocou, através da
revelação da existência das fantasias sexuais nessas pacientes, na noção de
“infantilismo da sexualidade”, isto é, de que a sexualidade é sempre traumática
enquanto tal, e isto para todo e qualquer sujeito. (JORGE, 2000, p. 21)

Em Três ensaios sobre a teoria da sexualidade (1905), publicado dez anos depois
dos Estudos sobre histeria, e reeditado pela quinta e última vez em 1924, Freud expõe a
importância da vida sexual em todas as realizações humanas e procura ampliar o
conceito de sexualidade, considerando a sexualidade infantil, uma disposição bissexual
inata no ser humano, entre outras proposições que "sempre constituíram os mais fortes
motivos para a resistência à psicanálise" (p. 18). Nos Três Ensaios, a disposição à
bissexualidade é entendida como uma disposição psíquica inconsciente característica de
toda subjetividade humana, e a homossexualidade - considerada como inversão - é
compreendida como uma escolha sexual derivada da existência de uma bissexualidade
originária (Roudinesco e Plon, 1998). Para Garcia-Roza (2009), em Freud e o
Inconsciente:

21
Se a importância da sexualidade era algo que Freud, desde seus primeiros escritos,
já havia assinalado, o que vai ser colocado nos Três ensaios é a perda da inocência
infantil. O tema desses ensaios é o pequeno ‘perverso polimorfo’ com sua
sexualidade fragmentada em pulsões parciais vagando entre objetos e objetivos
perversos (Garcia-Roza, 2009, p. 96).

No primeiro ensaio, Freud, a partir da compreensão do funcionamento da pulsão


sexual de psiconeuróticos, obtida através da investigação psicanalítica, identifica a
existência de inclinações a todas as perversões na vida sexual considerada normal. O
primeiro dos três ensaios tem como enfoque mostrar o quanto a noção de sexualidade
supera, em muito, os limites impostos pelas teorias em vigor na época - que se baseavam
principalmente na noção de instinto sexual -, o que implicaria repensar o próprio conceito
de desvio ou perversão (Garcia-Roza, 2009). Para Garcia-Roza (2009):

Freud não se propõe apenas a oferecer mais uma teoria sobre a sexualidade,
mantendo-se, porém, no interior da mesma sintaxe em que foi produzido o saber
anterior. As teorias existentes assentavam-se todas elas na noção de instinto,
noção essa que vai ser substituída em Freud pelo conceito de pulsão (Trieb).
(GARCIA-ROZA, 2009, p. 96)

No segundo ensaio, Freud (1905) se volta para vida sexual na infância para
examinar as inclinações perversas nas psiconeuroses, e afirma a existência de atividade
sexual nas crianças, que "já quando se nutrem têm também satisfação sexual, que
sempre buscam obter no­vamente no conhecido ato de 'sugar'" (p. 157). Freud afirma
também a existência de um período de latência no desenvolvimento da atividade sexual
na criança, que se inicia a partir dos cinco anos de idade. Anteriormente, a excitação
sexual das crianças provém de muitas fontes, como da adequada excitação sensorial das
zonas erógenas e também como produto secundário de um grande número de processos
do organismo. Como aponta Ana Laura Prates (2001): “A finalidade da pulsão sexual
infantil diz respeito a uma satisfação experimentada anteriormente. Há, portanto, um
desejo de retorno da satisfação que se revela sob a forma de tensão e estímulo” (p. 31).
Para Freud, a pulsão sexual na infância não é centra­da e sim sem objeto, é
autoerótica, encontra, num primeiro momento, satisfação no próprio corpo e se apoia em
funções orgânicas ligadas à sobrevivência. Sendo assim, nesse período a zona genital
não se faz notar mais do que qualquer outra zona erógena. Para Freud, o corpo da
criança é

22
um corpo erógeno no qual a mãe, por meio de seus cuidados, marca determinados
pontos como zonas de obtenção de prazer (...). É por meio desse contato inicial
com a mãe, marcado pela experiência de satisfação das necessidades, que o corpo
da criança se torna fonte de prazer, e é esse prazer que define o campo da
sexualidade para Freud (FARIA, 2021, p. 36).

Entre as fases de organizações pré-genitais entre os dois e os cinco anos de idade,


Freud aponta a primeira fase como erotismo oral, a segunda como caracterizada pela
predominância de sadismo e erotismo anal, e na terceira fase, a vida sexual é
determinada também pela participação das zonas genitais. Dado que as manifestações
pulsionais se apoiam nas experiências de satisfação, o campo pulsional se ordena
inicialmente na boca, em seguida no ânus e finalmente nos genitais (Faria, 2021). Freud
(1905) comenta que esse último período, a fase fálica, produz uma escolha de objeto, e é
tida como importante precursora da organi­zação sexual definitiva, apesar da incerteza da
meta sexual. Ele considera, por exemplo, que: "para se tornar uma mulher é necessária
uma nova repressão, que anula uma parcela de masculinida­de infantil e prepara a mulher
para a mudança da zona genital diretriz" (p. 36). Importante observar como é apenas na
edição de 1915 que a noção de organização pré-genital infantil aparece considerando
organização oral, anal-sádica e, posteriormente, fálica, que só é introduzida em 1923,
após suas considerações em A organização genital infantil (1923).
O terceiro ensaio é dedicado à análise da sexualidade genital na puberdade. Nesse
período, as pulsões sexuais, até então marcadas pelo autoerotismo, encontram um objeto
sexual em função da combinação das pulsões parciais sob o primado da zona genital e a
meta da descarga de produtos sexuais. Para Garcia-Roza (2009), neste ensaio fica
evidente a marca biológica presente no pensamento freudiano, principalmente
considerando que a pulsão sexual fica de certa forma subordinada à função reprodutora.
No entanto, como nota o próprio autor, a "ênfase concedida ao biológico é atenuada
quando Freud se refere às modificações ulteriores que podem conferir direções diversas
aos fatores constitucionais" (p. 110).
Ana Laura Prates (2001) nos lembra de que no final de sua obra, em Esboço da
psicanálise, publicado em 1938, Freud reafirma sua definição de sexualidade de 1905,
contida nos Três ensaios. Na perspectiva da autora, a psicanálise contradiz a concepção
popular de sexualidade, pois enfatiza três aspectos, até então desconsiderados: "de que
as manifestações sexuais ocorrem desde o nascimento, a distinção entre os conceitos de
sexual e genital, e o fato de as zonas erógenas não corresponderem necessariamente à

23
função reprodutiva” (p. 31). Como observa Fuentes (2009), o esforço de Freud nos Três
ensaios era, principalmente, demonstrar a inexistência do instinto, em contraposição à
aberração da pulsão perverso-polimorfa, que não responde à meta reprodutiva. É nos
Três ensaios que Freud propõe a existência da pulsão sexual, e de sua manifestação, a
libido, e que é a partir destas forças pulsionais - de caráter sexual - que se formam os
sintomas neuróticos, tomados como substitutos de tendências cuja força advém da pulsão
sexual (Prates, 2001).
Para Michele Roman Faria (2021), o conceito que melhor permite compreender a
noção freudiana de sexualidade é o conceito de pulsão, que é definida por Freud (1905)
nos Três ensaios enquanto "o representante psíquico de uma fonte endossomática de
estímulos que não pára de fluir" (p. 66). Garcia-Roza (2009) frisa, ainda, um aspecto
importante deste texto, que é tão fundamental e inaugural da obra freudiana, e que ao
mesmo tempo foi editado inúmeras vezes, incluindo conclusões posteriores:

Esse livro, que nos fala da pré-história da sexualidade, é que vai fornecer a Freud
os elementos indispensáveis para a compreensão do complexo de Édipo, apesar
de ele mesmo não citar uma única vez o Édipo, a não ser em notas de pé de página
acrescentadas posteriormente. (GARCIA-ROZA, 2009, p. 95).

Apesar da centralidade do estudo de mulheres histéricas desde o princípio da


psicanálise, e sua teoria da etiologia sexual das neuroses, Freud passa a se dedicar à
teorização das diferenças sexuais, e à sexualidade feminina, apenas no início da década
de 20. Em 1923, Freud publica A organização genital infantil, no qual discorre sobre a
importância das teorias sexuais infantis e seus efeitos sobre a sexualidade adulta, assim
como a diferença entre a vida sexual infantil e adulta, e da organização pré-genital. No
mesmo ano, Freud realiza uma das edições dos Três Ensaios, na qual acrescenta estes
pontos à sua teoria da sexualidade: de que a passagem da sexualidade infantil para
adulta deixa de ser baseada em uma perspectiva de desenvolvimento orgânico, ligada à
maturação dos genitais, e passa a ser marcada por uma mudança na interpretação da
diferença sexual (Kehl, 2016).

1.2. ANOS 20, O ÉDIPO E A PROFUSÃO DE UM LONGO DEBATE

O complexo de Édipo é, em psicanálise, o universal que organiza a sexualidade,


esta sexualidade que Freud demonstrou ser uma construção (Faria, 2021). O complexo

24
de Édipo consiste em um momento organizador do desenvolvimento sexual infantil, que
tem lugar quando a região genital adquire importância central no desenvolvimento sexual
da criança, durante a fase fálica, por volta dos cinco anos de idade.

Com Freud, aprendemos que o ser humano não nasce homem ou mulher, macho
ou fêmea como os animais. Há aí um tornar-se homem, um tornar-se mulher –
sendo o complexo de Édipo e de castração a via freudiana para explicar como o
sujeito acede ao posicionamento subjetivo feminino ou masculino (BONFIM, 2011,
p. 25).

Muito embora já houvessem referências ao mito de Sófocles, Édipo Rei, nas


correspondências entre Freud e Fliess, ainda no final dos anos 1890, o termo complexo
de Édipo é utilizado pela primeira vez no texto Sobre um tipo especial de eleição de objeto
no homem (1910), em referência ao desejo do menino pela mãe e a rivalidade com o pai,
visto como empecilho na realização desse desejo (Prates, 2001). Como nos lembra Faria
(2021), o primeiro modelo desenvolvido por Freud do complexo de Édipo é centrado no
menino, enquanto o processo nas meninas se mantém como um enigma, sendo inclusive
considerado ainda incompleto, mesmo depois da publicação de seus artigos sobre
feminilidade, na década de 30.
É com base em três universais que Freud formaliza sua teoria sobre o complexo de
Édipo, em Dissolução do Complexo de Édipo (1924): a sexualidade infantil, a premissa
fálica3, e o fato da mãe ser o primeiro objeto de amor da criança para ambos os sexos
(Faria, 2021). Para Iannini e Tavares (2018), este artigo expressa um esforço de Freud em
repensar o complexo de Édipo no contexto de sua reformulação teórica das instâncias
psíquicas, publicada um ano antes, em O Eu e o Isso, de 1923. É nestas duas
publicações que Freud apresenta a dialética através da qual as múltiplas combinações
das identificações edípicas, determinam, desde a infância, a escolha de objeto (Prates,
2001).
Para Freud, o complexo de Édipo tem um papel fundamental na constituição do
sujeito e do desejo, e o considera o evento psíquico central na vida humana, contrariando
a tese de Otto Rank4, de que esse evento seria o traumatismo do nascimento (Iannini e
Tavares, 2018). Em Dissolução do complexo de Édipo (1924), Freud enfatiza a relevância

3
O caráter universal da construção de teorias sexuais infantis, que possuem como ponto em comum o
desconhecimento da diferença sexual, e portanto a atribuição da posse de um pênis a todos, inclusive às
mulheres.
4
O trauma do nascimento (1924), de Otto Rank.

25
do complexo de Édipo como o fenômeno central do período sexual da primeira infância, e
apresenta sua análise das razões de seu declínio - ponto determinante para a
psicopatologia psicanalítica, pois os destinos da sexualidade masculina e feminina se
definem a partir desse declínio (Faria, 2021).
A castração, situada imaginariamente como a falta de pênis, é inicialmente negada
e em um momento posterior, ressignificada pelo menino. Ou seja, para Freud, a visão dos
genitais femininos não é suficiente - é preciso que haja um efeito de ressignificação de
uma primeira experiência, através da retroação de um segundo momento: “A articulação
desses dois elementos produz um efeito de significação da questão da falta enquanto
castração. É, portanto, a ordenação da problemática da falta que marca a passagem da
premissa fálica ao complexo de castração” (FARIA, 2021, p. 41).
A premissa fálica pode ser entendida, como propõe Faria (2021), enquanto uma
forma de articulação do sexual, na qual a criança encontra a possibilidade de não lidar
com a falta, no sentido de que o pênis possa faltar, sendo apenas a presença possível de
ser formulada pela criança, o que a leva a assumir que o pênis esteja presente em todos.
O complexo de castração evidencia o fato de que a premissa fálica é falsa, pois há falta,
há ausência, assim como presença. Assim, introduz para a criança a dialética do par
presença e ausência, que a partir de então torna-se central na organização de seu
mundo. A partir da instauração do complexo de castração, é preciso se confrontar com a
falta, já que é capaz de conceber que o pênis pode faltar, enquanto antes era
compreendido apenas enquanto presença: “Confrontar-se com essa questão exige da
criança, necessariamente, um posicionamento. É nesse posicionamento que está a saída
do complexo de Édipo”5.
Freud supõe serem as decepções dolorosas experimentadas pela criança que a
conduzem ao declínio do Édipo: para a menina, ligada às punições do pai, por quem
pretende ser amada; para o menino, outros irmãos para quem a mãe dirige seu amor.
Freud reforça a ideia de desenvolvimento sexual em fases, rumo à sexualidade genital, e
introduz a fase fálica do desenvolvimento sexual infantil. Nessa fase, segundo Freud
(1924), o "genital é apenas o masculino, mais precisamente o pênis; o feminino não foi
ainda descoberto. A fase fálica, simultânea à do complexo de Édipo, não continua a se
desenvolver até a organização genital definitiva, mas submerge e é substituída pelo
período de latência" (p. 206).

5
FARIA, M., op. cit., 2021, p. 43.

26
Na fase fálica, o menino expressa interesse pelo genital e atividade sexual
masturbatória intensa, o que é seguido por restrições à sua manipulação e outras
ameaças de perda do pênis - ameaças de castração, frente às quais a organização
genital fálica do menino sucumbe. Freud considera que não apenas ela sucumbe à
ameaça de castração, acompanhada da visão do genital feminino, que expressa a
ausência do pênis. Como aponta Faria (2021), "inicialmente, essas ameaças não tem
efeito sobre a criança e são simplesmente desconsideradas. Somente a partir da visão
dos genitais femininos é que essas ameaças são ressignificadas, estabelecendo-se
assim, o que Freud chama de complexo de castração" (grifo da autora, p. 39).
Para Freud, admitir a possibilidade da castração, e perceber que a mulher é
castrada, põe fim às duas possibilidades de obter satisfação do complexo de Édipo. A
explicação do complexo de Édipo está, para Freud, no conflito entre o interesse narcísico
no genital, e o investimento libidinal dos objetos parentais, no qual prevalece o Eu da
criança. Os investimentos objetais são abandonados e substituídos pela identificação, a
autoridade parental é introjetada no Eu sob a forma de Supereu, que assim perpetua a
proibição do incesto, e protege o Eu do retorno do investimento libidinal de objeto.
As tendências libidinais do Édipo são dessexualizadas e sublimadas, e, em outra
parte, inibidas na meta e transformadas em impulsos ternos, um processo que salva o
genital do perigo da perda, mas ao mesmo tempo suspende sua função, e dá início ao
período de latência. Freud entende que esse processo pode ser chamado de repressão,
mas sem a característica participação do Supereu nesse processo, pois nesse momento
ainda está em formação. Segundo ele, os nexos estabelecidos pela observação analítica
de menino - um processo descrito a partir da progressão da organização fálica, ao
complexo de Édipo, à ameaça de castração, à formação do Supereu e, então, ao período
de latência - justificam a afirmação de que o complexo de Édipo sucumbe à ameaça de
castração.
Ao introduzir sua leitura do fim do Édipo para a menina, Freud apresenta seu
material como mais obscuro e insuficiente. Reconhece que o sexo feminino desenvolve
um complexo de Édipo, um Supereu e um período de latência, possuir organização fálica
e complexo de castração, mas de um jeito diferente. Sobre o Édipo feminino, Freud o
apresenta na seguinte sequência: inicialmente, o clitóris se comporta como um pênis, mas
ao ter contato com o genital masculino, a menina nota que 'saiu perdendo', e desenvolve
um sentimento de desvantagem e inferioridade, consolado pela expectativa de

27
desenvolver futuramente um membro como o do menino. Portanto, para a menina, há a
aceitação da castração como algo consumado, e então uma tentativa de compensação, à
qual responde uma equação simbólica entre pênis-bebê. O desejo de ter um filho, e um
pênis, permanecem investidos inconscientemente, o que Freud considera contribuir para
a preparação da mulher para seu futuro papel sexual.
Em Dissolução do complexo de Édipo (1924), a hipótese de Freud sobre a saída
da menina do Édipo consiste em um abandono gradativo, já que o desejo de um filho do
pai não se realiza (Faria, 2021). Os desejos de possuir um pênis e um filho permanecem
catexizados no inconsciente e ajudam a preparar a mulher para seu papel posterior - é na
maternidade que se dá a solução do Édipo feminino. Em Algumas consequências
psíquicas da diferença anatômica entre os sexos (1925), Freud acrescenta às colocações
do texto de 1924. Sobre o complexo de Édipo da menina, ele apresenta desde o início um
problema que a diferencia do garoto, de como a menina abandona a mãe como primeiro
objeto e toma o pai, enquanto o garoto a mantém. Ele considera que a resposta está na
fase pré-edípica da menina: ela inicia sua descoberta da zona genital a partir da
masturbação clitoridiana e, em um determinado momento "ela nota o pênis de um irmão
ou companheiro de jogos, flagrantemente visível e de tamanho notável, reconhece-o de
imediato como a superior contrapartida de seu próprio órgão pequeno e oculto, e passa a
ter inveja do pênis" (p. 290).
A visão da diferença genital é diferenciada entre menino e menina, para Freud o
menino inicialmente recusa sua percepção, mas frente à ameaça de castração a
lembrança passa a suscitar afetos que levam a crer na factualidade da ameaça. Faria
(2021) aponta como nessa publicação, a relação entre as ameaças de castração e a visão
do genital feminino na explicação do Édipo do menino, aparece de maneira inversa ao
texto de 1924: "Freud afirma ser a visão dos genitais femininos o que passa a ter a
significação da castração, devido à ameaça real sofrida pela criança" (p. 40). Com a
menina é diferente, pois para ela há uma constatação, "num instante ela faz seu
julgamento e toma sua decisão. Ela viu, sabe que não tem e quer ter" (FREUD, 1925, p.
291). A autora comenta como a ênfase de Freud recai sobre a decepção da menina de ter
sido feita sem o pênis, o que leva a afirmação da inveja do pênis como o efeito do
complexo de castração feminino.
Freud indica que neste momento se separa o complexo de masculinidade da
mulher, que "que eventualmente reservará grandes dificuldades ao desenvolvimento

28
prescrito rumo à feminilidade, caso não seja logo superado" (p. 291), no qual a menina se
recusa a admitir a castração. Outras consequências psíquicas da inveja do pênis nas
mulheres são, segundo ele: a produção de um sentimento de inferioridade atrelado ao
reconhecimento da ferida narcísica, o que a conduz ao menosprezo do sexo; o papel
muito maior do ciúme na vida psíquica da mulher como um desvio da inveja do pênis; o
afrouxamento da relação terna com o objeto materno, pois a menina responsabiliza a mãe
por sua falta de pênis; e, finalmente, o efeito considerado por ele o mais importante, é o
surgimento de uma corrente contrária à masturbação após a descoberta da inferioridade
do clitóris, que é um prenúncio da eliminação da sexualidade clitoridiana para o
estabelecimento da feminilidade na puberdade.
Freud (1925) conclui que, "Dessa maneira, o reconhecimento da diferença sexual
anatômica impele a menina a afastar-se da masculinidade e da masturbação masculina,
em direção a novas trilhas que levam ao desenvolvimento da feminilidade" (p. 295). O
Édipo passa a desempenhar um papel a partir desse momento, no qual a libido da menina
passa para uma nova posição, ela abandona o desejo de ter um pênis pelo desejo de ter
uma criança - o que a leva a tomar o pai como objeto amoroso. Freud conclui que, na
menina, o Édipo é uma formação secundária precedida pelos efeitos do complexo de
castração que o preparam: "enquanto o complexo de Édipo do menino sucumbe ao
complexo de castração, o da menina é possibilitado e introduzido pelo complexo de
castração" (p. 296).
Na última seção do artigo de 1925, Algumas consequências psíquicas da diferença
anatômica entre os sexos, Freud menciona ao pensamento feminista, que considera
procurar impor uma igualdade entre os sexos, do qual ele discorda e afirma que todos,
"graças à disposição bissexual e à herança genética cruzada, reúnem em si caracteres
masculinos e femininos, de modo que a masculinidade e a feminilidade puras
permanecem construções teóricas de conteúdo incerto" (p. 298). Ele faz menção breve a
três trabalhos que considera serem valiosos e se aproximarem do seu, embora não
coincidam completamente: Formas de manifestação do complexo da castração feminino
(1921), de Abraham, Psicanálise das funções sexuais femininas, de Helene Deutsch
(1925), e Sobre a gênese do complexo da castração feminino (1923), de Karen Horney,
que será abordado no capítulo 2.2., sendo um dos artigos publicados em Psicologia
feminina (1991). Como apontam Iannini e Tavares (2018), a particular rejeição dos
psicanalistas ingleses das teses defendidas neste texto de 1925, marcou a primeira

29
década de intensos debates em torno da questão da sexualidade feminina: "se Freud
retoma o tema da sexualidade feminina ainda em duas importantes ocasiões no início da
década de 1930, isso se deve, pelo menos em parte, à grande e polêmica repercussão
deste seu pequeno escrito" (p. 211).

1.3. FEMINILIDADE, SEXUALIDADE FEMININA E FEMINISMOS: AS


TRANSFORMAÇÕES DA DÉCADA DE 30

Assim como a sexualidade feminina ocupou prementemente a última fase do


pensamento de Freud, os debates sobre este tema se tornaram cada vez mais inflamados
ao longo da década de 1920, desde a publicação de Manifestações do complexo de
castração na mulher (1921), de Karl Abraham. O período foi marcado por inúmeros
artigos e debates sobre a temática, que separou as vertentes vienense - mais alinhada à
perspectiva freudiana, representada por Jeanne Lampl-de Groot, Marie Bonaparte,
Helene Deutsch e Ruth Mack Brunswick - e a inglesa, mais crítica à Freud, representada
por Karen Horney, Melanie Klein e Ernest Jones (Iannini e Tavares, 2018). Em 1927, no
congresso da International Psychoanalytical Association, que as posições se acirraram:

Tudo girava em torno da centralidade proposta por Freud ao complexo de


castração, à primariedade da inveja do pênis e ao primado do falo, articulados ao
caráter monista da libido freudiana. A vertente vienense buscava matizar e integrar
suas posições a uma certa ortodoxia freudiana, ao passo que a vertente inglesa, de
forma geral, tendia à rejeição, total ou parcial, dessas perspectivas. (IANNINI e
TAVARES, 2018, p. 239)

As formulações destes psicanalistas contribuíram para a articulação das posições


feministas, e o debate em torno da sexualidade feminina nos círculos psicanalíticos nos
anos 1920 estabeleceu uma relação com os movimentos feministas desse período. O
aumento de mulheres no mercado de trabalho, bem como suas conquistas em termos de
direitos, fazia com que ocupassem cada vez mais a esfera pública, podendo, assim,
reivindicar maior autonomia também no campo sexual. Assim, as descobertas freudianas
encaixaram-se nas demandas feministas por liberação sexual. O conceito de pulsão
sexual, por exemplo, enquanto energia presente em todos os seres humanos, que se
contrapunha ao entendimento de sexualidade atrelada à reprodução, tinham apelo para
feministas das primeiras décadas do século XX, em sua relação com a luta pela igualdade
e contra as restrições impostas pela organização social (Amorim, 2021).

30
Na época, os movimentos confrontavam a norma da burguesia vitoriana vigente, de
que o aparato biológico e papel reprodutivo da mulher justificaria sua menor importância
sócio-política, sua discriminação e sua falta de participação em processos produtivos. A
posição destes movimentos com relação a Freud pendia, então, entre o interesse pelo
argumento da constituição subjetiva enquanto um processo histórico e cultural, através do
Édipo, e a crítica ao caráter falocêntrico de concepções como as de que a diferença
anatômica prescrevia menor valor e inferioridade de condições à mulher, em comparação
ao homem (Cossi, 2016). Segundo o autor,

Os principais pontos de divergência diziam respeito ao fato de o complexo de


castração ser considerado um processo único, válido tanto para meninos e
meninas; ao fato de a libido também ser única, masculina — correlato de o falo ser
encarado como instrumento teórico intrinsecamente atrelado ao pênis. Nesse
sentido, o clitóris seria uma versão feminina do pênis, libidinalmente desinvestida à
medida que a vagina entra em cena; contudo, a menina sempre padeceria da
‘inveja do pênis’ — tese essa vigorosamente combatida por Horney (COSSI, 2016,
p. 12).

Ainda segundo o pensamento de Cossi (2016), as perspectivas críticas de


psiscanalistas procuraram rejeitar o modelo da organização da sexualidade masculina, e,
ao enfatizarem a fase pré-edípica e a relação primordial com a mãe, deslocam o pai do
lugar privilegiado na leitura freudiana do Édipo. O interesse destas autoras nesse
momento era, para o autor, retirar a feminilidade de um lugar secundário, tomado como
uma saída precária, decorrente de instâncias psíquicas falhas em comparação ao
homem.
Iannini e Tavares (2018) apontam como Sobre sexualidade feminina (1931), pode
ser lido como um prolongamento do que foi esboçado em Algumas consequências
psíquicas da distinção anatômica entre os sexos (1925) - principalmente devido à
mencionada repercussão e recepção crítica de suas proposições entre psicanalistas
ingleses e grupos feministas. Este texto de 1931 demonstra que Freud estava atento a
esse debate, pois nele reconhece a importância da fase pré-edípica, e também comenta
os trabalhos de autores que o criticam, sem abrir mão de suas prerrogativas: não existe
uma fase fálica exclusiva das meninas, e o falo tem papel central em ambos os sexos
(Cossi, 2016). Sobre as ampliações desta publicação com relação à obra anterior, James
Strachey (2016) aponta a ênfase à intensidade e longa duração da ligação pré-edipiana
da menina à mãe, e o exame do elemento ativo na atitude da menina com a mãe, e na
feminilidade em geral.

31
No artigo de 1931, Freud discorre de maneira mais profunda sobre a fase
pré-edípica da menina, marcada por uma vinculação original e exclusiva com a mãe, de
longa duração, da qual a forte relação com o pai é herdeira, e que possibilita a
compreensão de muitos fenômenos da vida sexual antes sem explicação. Frente à sua
dificuldade de apreensão desta relação, menciona as contribuições de Jeanne Lampl-de
Groot e Helene Deutsch. A consideração e absorção da importância dessa fase no
desenvolvimento da sexualidade infantil e do psiquismo, pode ser entendida como uma
sensibilidade aos levantamentos de psicanalistas consideradas feministas da época,
incluindo Karen Horney.
Freud observa que esta fase pode conter as fixações e repressões que remontam
ao surgimento das neuroses, e sugere que possui também íntima relação com a etiologia
da histeria, sendo a fase de dependência da mãe e a histeria características especiais
que ele atribui à feminilidade. Neste texto, ele menciona diretamente uma crescente
crítica feminista às suas afirmações sobre o não reconhecimento da vagina nos primeiros
anos de vida, e reafirma que no âmbito da genitalidade da menina na infância, o essencial
se dá no clitóris, considerando a primeira fase da vida sexual da mulher, de caráter mais
masculino. Uma importante diferença entre o desenvolvimento sexual de homens e
mulheres apontado por Freud, diz respeito à mudança de objeto: para ambos o primeiro
objeto de amor é a mãe, mas ao final do desenvolvimento feminino deve haver uma
mudança no sexo do objeto.
Outra diferença, ainda, diz respeito ao complexo de Édipo, e ao complexo de
castração, dado que a menina aceita o fato de sua castração, e se revolta contra isso,
momento a partir do qual decorrem três possíveis saídas. A primeira, a feminilidade, na
qual há o abandono da masturbação clitoridiana e renúncia à atividade, alinhada à
posição masculina, portanto a passividade se torna dominante, e ocorre uma virada em
direção ao pai, movida inicialmente pelo desejo de obter dele um pênis, que depois é
deslocado para ter um filho. A segunda, a renúncia geral da vida erótica, na qual a
descoberta da castração materna faz a menina abandonar a mãe como objeto de amor,
ou seja, faz com que a menina ressignifique sua falta de pênis como uma falta com
relação à mãe. Finalmente, a terceira, o complexo de masculinidade, no qual mantém
atividade clitoridiana, se identifica com a mãe fálica e com o pai.
Freud se interessa pelos mecanismos que atuam no afastamento da menina em
relação ao objeto materno. Ele menciona o papel relevante de seu rancor ligado à mãe,

32
por ser impedida de exercer a atividade sexual, além do fato de que a percepção da
castração leva a uma desvalorização da feminilidade e da mãe. A ambivalência que
caracteriza o vínculo primordial com a mãe, também induz ela mesma ao afastamento por
parte da menina, ao passo que os meninos resolveriam essa ambivalência alojando os
sentimentos hostis no pai. Freud aborda também a díade passividade e atividade no
desenvolvimento sexual feminino, e sua relação com a mãe e a fase pré-edípica.
Ele aponta as primeiras vivências sexuais da criança com a mãe a partir da
amamentação, de caráter inicialmente passivo e então ativo. Segundo Freud (1931): "A
surpreendente atividade sexual da menina em relação à mãe se manifesta, na sequência
temporal, em tendências orais, sádicas e, por fim, até mesmo fálicas, dirigidas à mãe" (p.
214). Para o autor, o momento do afastamento da mãe corresponde a uma forte
diminuição dos impulsos sexuais ativos e um aumento daqueles passivos, e também ao
cessar da masturbação clitoridiana. Ele conclui que "o caminho para o desenvolvimento
da feminilidade fica aberto para a menina, desde que não seja limitado pelos resíduos da
superada ligação pré-edípica com a mãe" (p. 216). ​
Ao fim de Sexualidade feminina (1931), Freud reconhece que seu trabalho é
apenas uma das contribuições ao tema, e menciona diretamente outras publicações.
Strachey (2016) destaca o tipo de tratamento que ele dá à apresentação desses
trabalhos, como se fossem produções que surgiram espontaneamente, e não como
reações a seu artigo de 1925, ao qual ele não faz nenhuma referência. Afirma que o
trabalho de Karl Abraham sobre o complexo de castração feminino ainda não foi
superado, e concorda com as proposições de Jeanne Lampl-de Groot sobre a atitude
fálica da menina com a mãe no período pré-edípico. Freud vê uma insuficiência nesse
trabalho, pelo fato de apresentar o afastamento da mãe como simples mudança de objeto,
sem considerar a hostilidade, tema abordado por Helene Deutsch. Ele menciona também
Melanie Klein e os primeiros estágios do conflito do Édipo, os quais afirma não
corresponderem à sua experiência analítica com adultos.
Freud (1931) faz referência direta e crítica ao trabalho de Karen Horney, que
considera reduzir a importância dos impulsos libidinais primordiais da criança, em favor de
processos de desenvolvimento posteriores, "de modo que — numa formulação extrema —
àqueles apenas restaria o papel de indicar certas direções, enquanto as intensidades que
tomam esses caminhos são providas por regressões e formações reativas posteriores" (p.
219). Ele argumenta que, em Fuga da feminilidade, de 1926, artigo que será discutido no

33
capítulo 2.2., Horney considera que a inveja primária do pênis é muito superestimada, e
atribui a intensidade do empenho por masculinidade depois exibido a uma inveja do pênis
secundária, utilizada pela garota para defender-se dos impulsos femininos, em especial
da ligação feminina ao pai. Ele discorda, argumentando que

por mais seguro que seja o fato dos reforços posteriores por regressão e formação
reativa, por mais difícil que talvez seja estimar a força relativa dos componentes
libidinais que ali confluem, acho que não devemos ignorar que os primeiros
impulsos libidinais possuem uma intensidade superior à de todos que vêm depois,
que bem pode ser qualificada de incomensurável. Sem dúvida, é correto que existe
oposição entre a ligação ao pai e o complexo da masculinidade — trata-se da
oposição geral entre atividade e passividade, masculinidade e feminilidade —, mas
isso não nos dá direito a supor que um é primário e o outro deve sua força apenas
à defesa. E se a defesa contra a feminilidade se mostra tão enérgica, de onde pode
ela retirar sua força se não do empenho por masculinidade, que teve sua primeira
expressão na inveja do pênis por parte da menina e, por isso, merece receber tal
denominação? (FREUD, 1931, p. 220).

Segundo Iannini e Tavares (2018), a vigésima-terceira das Conferências


introdutórias à psicanálise, publicada em 1933, Feminilidade, mantém forte relação com o
texto de 1931, no entanto, apresenta uma reformulação teórica importante, que é a
reafirmação da existência da libido única, mas que não é nem masculina e nem feminina,
está a serviço das funções sexuais masculina e feminina. Freud (1933) afirma, logo no
início do texto, que “o que constitui a masculinidade ou feminilidade é uma característica
desconhecida, que a anatomia não pode apreender” (p. 266), tampouco o pode a
psicologia, ou o estabelecimento de uma relação simplista entre feminilidade e
passividade, e masculinidade e atividade. Freud caracteriza a feminilidade a partir da
preferência por metas passivas - não pela passividade, dado que pode ser necessária
uma boa dose de atividade para alcançar uma meta passiva -, ao mesmo tempo em que
atenta para a incidência da organização social, que empurra a mulher para situações
passivas.
Freud (1933) não se propõe a responder o que é a mulher, tarefa que considera
impossível para psicanálise, mas sim investigar como se desenvolve a mulher a partir da
criança inatamente bissexual. Ela ressalta dois pontos em sua exploração da sexualidade
feminina, a primeira é de que a constituição não se ajustará à função sem alguma
relutância, e que as mudanças decisivas se realizam antes da puberdade. As primeiras
fases do desenvolvimento da libido são inicialmente iguais para meninos e meninas, e
com a entrada na fase fálica, as diferenças entre os sexos diminuem diante das

34
semelhanças - ambos desconhecem a vagina, e os atos masturbatórios da menina se dão
no clitóris, tido como equivalente ao pênis, e principal zona erógena na fase fálica da
menina. A mudança rumo à feminilidade, como coloca Freud, na qual o clitóris cede sua
sensibilidade à vagina, e a mudança de objeto da mãe para o pai na situação edípica,
seria uma das tarefas a serem cumpridas no desenvolvimento feminino. Freud (1933)
considera ser inevitável que a forte ligação da menina com a mãe ceda o lugar à ligação
ao pai, e esse afastamento da mãe se dá a partir da ambivalência e hostilidade, de forma
que a relação com ela acaba em ódio.
O fator específico que se dá para a menina, em contraposição ao menino, que
poderia explicar o desfecho de sua relação materna, é o complexo de castração, que é
iniciado, para ambos os sexos, a partir da visão da diferença genital. Ele retoma as três
possíveis saídas frente à descoberta da própria castração: uma que leva à inibição sexual
ou à neurose; a segunda, à mudança de caráter no sentido de um complexo de
masculinidade; e a terceira, à feminilidade considerada normal.
Freud (1933) discorre também sobre a diferença no tocante à relação entre o
complexo de castração e o complexo de Édipo para meninas e meninos, que, dado que
na menina o complexo de castração prepara para o Édipo, ao invés de construí-lo, e que
através da inveja do pênis a menina é afastada da ligação materna e entra na relação
edípica com o pai como forma de proteção. Sem a angústia de castração que leva o
menino a sair do Édipo, a menina permanece no Édipo por tempo indefinido, o que
acarreta em dificuldades na formação do Supereu - “e as feministas não gostam quando
apontamos os efeitos desse fator para o caráter feminino mediano” (p. 286).

As mulheres teriam uma menor capacidade de sublimação que os homens,


especificamente pelo fato de que não conheceriam, ao contrário desses últimos, a
angústia de castração, mas apenas o complexo de castração. Consequentemente,
seriam incapazes de construir um super-eu consistente que lhes permitisse ter
acesso completo à civilização e à sublimação. (BIRMAN, 2001, p. 18)

Ao fim, Freud menciona algumas autoras a quem esta investigação deve


contribuições de relevo: Ruth Mack Brunswick, Jeanne Lampl-de Groot, Helene Deutsch,
e não de Horney, embora sua menção à posição de analistas que consideram a inveja do
pênis como formação secundária - da qual ele discorda - remeta às proposições da autora
em seus artigos de 1923 e 1926. Em seus dois artigos, Sexualidade feminina (1931) e
Feminilidade (1933), Freud afirma que o desejo que leva a menina a se voltar ao pai é,

35
originalmente, o desejo de possuir o pênis que a mãe recusou, e ela espera obter de seu
pai. Assim, entende-se que a situação feminina só se estabelece se houver a substituição
do desejo pelo pênis, pelo desejo por um bebê, através de uma equivalência simbólica
entre pênis e bebê.
Para Faria (2021): "Na saída normal do Édipo feminino, o que Freud enfatiza é uma
certa equivalência entre maternidade e feminilidade, deixando quase sem solução o
problema do surgimento do superego feminino e das identificações na mulher" (p. 48).
Embora existam outras saídas para o Édipo feminino, além daquela que alinha
maternidade e feminilidade. Como mencionado, Freud anuncia três saídas possíveis para
as mulheres do complexo impasse entre o falicismo - necessário para afastar a menina da
mãe -, e a retomada posterior de uma passividade especificamente feminina, que a libere
do complexo de masculinidade (Prates, 2001).
Prates (2001) comenta o caráter polêmico do conceito de inveja do pênis na teoria
freudiana, calcado na diferença anatômica entre os sexos, e bastante questionado por
Karen Horney, em Psicologia feminina (1991), assim como por outras psicanalistas da
época. Para a autora, Freud tentou manter uma solução de compromisso entre a
premissa fálica e a noção de bissexualidade, sendo a noção de inveja do pênis uma
consequência desse embate teórico. Segundo ela, também é possível, por outro lado,
deduzir essa inveja a partir dos efeitos do complexo de castração na mulher, de forma que
ela atinja a feminilidade a partir do deslocamento da suposição fálica da mãe para o pai, e
do pênis para o bebê: "A feminilidade, dessa forma, fica aprisionada num circuito fálico
que provoca, na teoria freudiana, uma equiparação entre mãe e mulher" (p. 45).

36
2. KAREN HORNEY

2.1. BIOGRAFIA

Existem três biografias da autora publicadas atualmente, todas em inglês, sem


tradução para o português: Karen Horney: gentle rebel of psychoanalysis, de 1978,
publicado por um de seus alunos na New School for Social Research, Jack L. Rubins; A
mind of her own, da jornalista Susan Quinn, de 1987; e A psychoanalyst’s search for
self-understanding, do psicanalista Bernard Paris, publicada em 1994 (Amorim, 2021).
Neste capítulo, as principais referências são o livro de Susan Tyler Hitchcock, Karen
Horney Pioneer Of Feminine Psychology (2005); a tese de doutorado de Patrícia Mafra de
Amorim, Karen Horney, o feminismo e a feminilidade - um desmentido na história da
psicanálise (2021); e o Dicionário de Psicanálise, de Élisabeth Roudinesco e Michel Plon
(1998) e Karen Horney and Feminism (1981), de Dee Garrison.
Karen Clementina Theodora Danielsen nasceu em 1885, em Eilbeck, uma aldeia
ao leste de Hamburgo, na Alemanha, em uma família protestante. Seu pai era capitão da
Marinha, de origem dinamarquesa, e sua mãe, de quem Karen era muito mais próxima,
era filha de um arquiteto e reprovava o conservadorismo e a religiosidade do marido, de
quem se separou em 1904. Segundo Roudinesco e Plon (1998), a proximidade da mãe
desde a juventude era acompanhada de uma rejeição do pai, "que não queria que ela
estudasse, desejando que se consagrasse aos trabalhos domésticos. Como todas as
mulheres de sua geração, teve de enfrentar uma luta violenta para ter acesso à liberdade
de fazer suas próprias escolhas" (p. 355).
Com a ajuda da mãe, e o consentimento do pai, Karen começou a estudar no
momento em que passaram a ser admitidas meninas no ensino médio em Hamburgo,
ingressou em 1901, com a intenção de atender ao ensino superior em medicina. Em 1904
sua mãe se separou do pai, e se mudou com Karen e seu irmão para um apartamento em
Hamburgo, onde passaram a morar os três e alugar um quarto para compor a renda
familiar. Em 1906, Karen ingressou no curso de medicina na Universidade de Friburgo, na
Alemanha. Sua mãe também se mudou e morou com a filha em Friburgo, em um
momento subsequente à separação do marido. Como aponta Amorim (2021), segundo os
diários de Karen, suas "ponderações acerca da compatibilidade entre a feminilidade e
conquistas intelectuais surgem durante o período em que cursa medicina" (p. 34).

37
Após a conclusão da formação, em 1908, Karen se mudou para Gottingen, na
Alemanha, para fazer uma residência médica na área de psiquiatria. Na mesma região
onde viviam os pais de Oskar Horney, um colega de faculdade que conheceu em
Friburgo, formado em economia, frequentador dos mesmos círculos que Karen, que havia
se tornado um rico industrial. Em 1909, eles se casaram em Berlim, tiveram a primeira
filha, Brigitte, em 1911, a segunda, Marianne, em 1913, e a terceira, Renate, em 1916. O
pai de Karen faleceu durante a gravidez de sua primeira filha, em 1910, e sua mãe no ano
seguinte, em 1911.
Karen Horney decidiu se especializar em psiquiatria pela escola médica de Berlim
e desenvolveu interesse pelas ideias de Sigmund Freud, ainda muito incipientes e
bastante criticadas no meio psiquiátrico alemão. Assim, seu estudo da psicanálise se deu,
primeiramente, de forma discreta. Ela entrou em contato com textos de Freud, Adler, Rank
e Jung, e fez análise com Karl Abraham entre 1911 e 1913, depois novamente em 1918
(Hitchcock, 2005). Sobre a análise de Horney com Abraham, Roudinesco e Plon (1998)
comentam que:

ele atribuiu seus sintomas de depressão à atração que ela sentia pelos homens
fortes e a uma admiração recalcada por seu pai. Abraham aplicava assim ao “caso
Horney” a tese clássica da inveja do pênis, que seria contestada por Melanie Klein,
Ernest Jones e a escola inglesa. (ROUDINESCO e PLON, 1998, p. 355)

Começou a atuar como psiquiatra desde 1912, em um hospital psiquiátrico


berlinense, e em 1919, Horney começou sua prática privada de psicanálise (Amorim,
2021). Em 1920, participou da fundação do Instituto Psicanalítico de Berlim, sendo a única
mulher entre os seis fundadores e a única a dar aulas no Instituto, onde Fritz Perls foi um
de seus alunos, por exemplo. Uma vez mais estabelecida dentro do círculo psicanalítico
de Berlim, Karen Horney passou a tornar públicos seus questionamentos sobre a
sexualidade feminina, a ideia de superioridade masculina e a inveja do pênis. Ela foi a
primeira a criticar a tese freudiana sobre a feminilidade através de sua resposta à
Abraham6 no congresso da Associação Internacional de Psicanálise (IPA) em Berlim, em
1922 (Roudinesco e Plon, 1998), mesmo ano da morte de seu irmão. Horney apresentou,
na presença de Freud, um artigo com o tópico do complexo de castração em mulheres,

6
Karl Abraham (1877-1925), foi um psicanalista alemão, um dos primeiros discípulos de Freud, com quem
Horney fez análise por alguns anos. Abraham havia defendido uma tese acerca da inveja do pênis em um
congresso da IPA (Associação Psicanalítica Internacional) de 1920, momento imediatamente posterior ao
processo analítico de Horney com ele.

38
publicado no ano seguinte sob o título A gênese do complexo de castração nas mulheres
(1923). Para Garrison (1981), nesse artigo ela questiona abertamente as colocações de
Abraham e Freud acerca do complexo de castração feminino e da inveja do pênis,
indicando-a enquanto uma formação secundária; no entanto, ela não disputa o argumento
freudiano de uma realização da feminilidade através da maternidade e da aceitação do
amor heterossexual.
Em 1923, a empresa para qual trabalhava Oskar Horney declarou falência, o que o
levou à falência três anos depois, em 1926, processo que o deixou extremamente abalado
e levou à piora considerável de seu estado de saúde. É um momento no qual Karen ficou
mais longe da família e das filhas; e também vivenciou pioras na situação de seu
casamento, que já não ia bem (Hitchcock, 2005). Em 1926, eles se separaram, mesmo
ano em que ela apresentou o artigo A fuga da feminilidade, parte de uma publicação em
celebração aos 70 anos de Freud - Freud Festschrift -, que gerou diferentes ressalvas
para outros neo-freudianos e discípulos de Freud, pois nele Horney critica mais
abertamente Freud e analistas homens.
No Congresso Internacional de Psicanálise de 1927, em Innsbruck, Horney é
acompanhada por Ernest Jones e Melanie Klein, e é considerada uma das analistas mais
respeitadas no meio (Garrison, 1981). Até esse período, seus artigos expressavam suas
dúvidas com relação à estrutura teórica da sua profissão, majoritariamente masculina.
Entre 1927 e 1932, ela voltou sua atenção às temáticas do casamento e da monogamia,
considerando as influências da dimensão inconsciente, dos conflitos infantis, do complexo
de Édipo e do tabu do incesto. Para a autora, sua explicação do conflito sexual da
sexualidade feminina foi uma mutação curiosa, na qual ela cruzou um certo determinismo
biológico presente em Freud, com seu próprio reconhecimento de influências sociais.
Cinco anos depois, em 1931, Freud respondeu diretamente à Horney em sua conferência
Sexualidade feminina.

Nem sempre é possível encontrar de forma explícita no texto freudiano críticas


dirigidas às considerações que se colocavam nesta contenda, entretanto, a última
parte do artigo freudiano de 1931, ‘Sexualidade Feminina’, se presta de maneira
direta e certeira a desmontar os principais argumentos dos mais eminentes
pós-freudianos, entre os quais podemos citar: Melanie Klein, Ernest Jones, Hélène
Deutsch e Karen Horney. (BONFIM, 2011, p. 36)

Em 1932, considerando a ascensão do regime nazista na Alemanha, a perseguição


à comunidade judaica e a consideração da psicanálise enquanto uma ciência judaica,

39
Horney abandonou o Instituto de Berlim e se mudou para Chicago, nos Estados Unidos,
junto com sua filha mais nova, Renate. Sayers (1992) comenta como, na Alemanha,
Horney era valorizada por seus alunos, mas tinha outra recepção entre seus colegas
psicanalistas, que desconfiavam de sua tentativa de combinar a psicanálise com a
Sociologia. Segundo a autora, Horney foi desconsiderada por muitos de seus colegas
freudianos, principalmente no que se refere à ocupação de cargos mais significativos no
Instituto de Berlim, onde lecionava e dava palestras, assim como na Sociedade
Psicanalítica Alemã. Sua posição na Sociedade foi se tornando cada vez mais incômoda,
assim como o contexto político alemão, a crise econômica e de desemprego, o que
motivou sua ida para os Estados Unidos, e seu aceite do convite de seu ex-aluno, Franz
Alexander, para ocupar o cargo de Diretora Assistente do recém-criado Instituto de
Psicanálise de Chicago.
Garrison (1981) relaciona a mudança para os Estados Unidos também à reação de
Freud às suas proposições, em seu artigo Sexualidade feminina, publicado em 1931. A
autora argumenta, ainda, que a situação política na Alemanha foi possivelmente um fator
menos relevante para sua mudança de país, pois apesar de anti-fascista, Horney
mantinha uma atitude apolítica, talvez até ingênua com relação ao regime nazista. Em
1932, Horney publica Os problemas no casamento, artigo no qual aprofunda ainda mais a
problemática do casamento como instituição reguladora da sexualidade, principalmente
das mulheres, e, "neste percurso, sua crítica aos aspectos biologizantes da teoria
psicanalítica tornou-se ainda mais sólida, com a análise de fatores culturais em suas
explicações" (AMORIM, 2021, p. 69).
Horney se mudou para os Estados Unidos em setembro de 1932. Em Chicago, se
tornou diretora associada do Instituto Psicanalítico de Chicago, e ficou próxima de outros
intelectuais, como Margaret Mead - antropóloga que desenvolveu estudos sobre meninas
adolescentes em diferentes sociedades -; do psicanalista húngaro radicado nos Estados
Unidos que havia sido seu aluno, Franz Alexander; e do psicanalista e filósofo alemão,
Erich Fromm, que tornou-se seu companheiro por um período, em 1934. Horney começou
a apresentar aulas e seminários no Instituto, em Chicago, com temas como The Mother’s
Conflicts as Expressed Toward the Child, tentando atrair atenção do público para prática
da psicanálise, ainda tão incipiente no país. São significativos seus esforços na
divulgação da psicanálise, através de cursos teóricos, supervisão clínica e análise didática

40
(Amorim, 2021). No mesmo ano da mudança para Chicago, ela publica Medo da mulher
(1932).
Em 1933, Horney publicou A supervalorização do amor, se mantendo na temática
sobre questões femininas e a relação de mulheres com os homens e o mundo do
trabalho. Em 1935, se mudou para Nova York - naquele momento o centro da psicanálise
norte-americana -, e foi aceita no Instituto Psicanalítico de Nova York, além de estabelecer
relação com o New School for Social Research, também na mesma cidade. Ainda em
1935, Horney passou a se aprofundar em questões relativas a bases culturais das
neuroses através de seu curso Culture and Neurosis, oferecido na New School, no qual
apresentava contraposições às origens infantis apontadas por Freud e aceitas largamente
por outros neo-freudianos. Em 1936, ela publicou o artigo Culture and Neurosis, e no ano
seguinte, em 1937, publicou seu primeiro livro, A personalidade neurótica do nosso
tempo, que obteve relativo sucesso no meio psicanalítico nova-iorquino, apesar do
incômodo de psicanalistas mais ortodoxos com seus argumentos sobre a influência da
cultura no desenvolvimento psíquico. É posteriormente que ela rompe de maneira mais
profunda com o pensamento freudiano que caracterizava o Instituto - em 1939,
começaram as grandes críticas a ela e o conflito com a sociedade psicanalítica de Nova
York (Garrison, 1981).
Após a publicação e repercussão de Novos rumos da psicanálise (1939), Horney
foi demovida do Instituto Psicanalítico de Nova York em 1941; ela "seria rebaixada de seu
cargo de supervisora e analista didata por causa de sua opinião não ortodoxa" (AMORIM,
2021, p. 39). Bonfim (2011) considera que, nesta publicação de 1939, Horney apresenta
seu pensamento final sobre o complexo de Édipo e a sexualidade feminina, e enfatiza
aspectos sociais e culturais da história de vida do sujeito, em detrimento da dimensão
inconsciente. Alguns meses após seu rebaixamento no Instituto, Horney fundou uma nova
sociedade profissional, em conjunto com outros colegas: a Associação Americana para o
Avanço da Psicanálise, que existe até hoje. Na época, logo foram admitidos, tanto como
membros, quanto como conferencistas, alguns dissidentes de Freud que tendiam ao
culturalismo7, como Harry Stack Sullivan, Margaret Mead, Abram Kardiner, Clara

7
Segundo Roudinesco e Plon (1998), o termo culturalismo designa as tendências da antropologia voltadas
à construção de uma explicação para o homem fundamentada na diferença e no relativismo - em oposição
ao universalismo -, com enfoque na diversidade dos comportamentos, atitudes, mentalidades e costumes
entre as culturas. A corrente culturalista é essencialmente norte-americana, e é representada pela escola da
Cultura e Personalidade, da qual fazem parte Margaret Mead e Abram Kardiner, por exemplo, ligados à
Karen Horney durante seu período nos Estados Unidos. Como nos lembram os autores: "embora a corrente

41
Thompson (Roudinesco e Plon, 1998). Suas últimas publicações foram em 1942,
Self-analysis; três anos depois, 1945, Our Inner Conflicts; e em 1950, Neurosis and
Human Growth.
Em sua obra mais madura, a teoria de Horney pode ser considerada neofreudiana
no sentido de sua concordância com conceituações básicas tais como o inconsciente, a
transferência, a resistência, associação livre, a hipótese de determinação rígida dos
processos psíquicos, a suposição de motivação do comportamento devido a fatores
externos. Ao mesmo tempo, suas discordâncias são expressivas, pois Horney questiona a
universalidade do pensamento freudiano, e considera a neurose, por exemplo, não um
conflito entre Isso, Eu e Supereu, mas entre o sujeito e seu contexto social e cultural
(Garrison, 1981).
Karen Horney morreu de câncer em dezembro de 1952, em Nova York.

2.2. PSICOLOGIA FEMININA (1967)

Pode-se considerar o livro Psicologia feminina (1991) como uma reunião dos
ensaios de Horney sobre sexualidade feminina e feminilidade em psicanálise, nos quais
ela peoblematiza conceitos centrais da teoria freudiana, ao mesmo tempo em que discute
instituições como o casamento e a monogamia, e a incidência do contexto social e cultural
em questões relativas à feminilidade. Amorim e Belo (2020) como é perceptível seu
progressivo desprendimento do pensamento freudiano ao longo dos textos incluídos nesta
publicação - nos primeiros, suas elaborações aparecem mais vinculadas à Freud, e,
gradualmente, ela adota interpretações consideradas cada vez mais culturalistas para
aquilo que observa em sua prática clínica. Neste percurso, há o fortalecimento da
influência de uma análise de fatores culturais em suas explicações.
Na introdução de Psicologia feminina (1991), feita pelo discípulo de Karen Horney,
Harold Kelman, em 1967, o autor enfatiza o seu pioneirismo - a publicação de seu
primeiro artigo psicanalítico data de 1917, e sua formação superior em psiquiatria foi
concluída em 1913 -, e aborda a emergência contemporânea das ideias de Freud e
Horney sobre a sexualidade feminina. Segundo o autor, as primeiras problematizações
feitas por Horney são relativas à teoria da libido e do desenvolvimento psicossexual, e os
artigos incluídos na publicação, escritos entre 1923 e 1936, contém em detalhes o

Cultura e Personalidade tenha-se mostrado crítica a respeito das teses freudianas, ela foi uma das vias de
introdução da psicanálise nos Estados Unidos" (ROUDINESCO e PLON, 1998, p. 140).

42
progressiva enfrentamento de Horney às propostas freudianas. Nesta coletânea, dos
quinze textos, escritos entre 1923 e 1936, quatro se dedicam a questões relativas ao
casamento, dois à maternidade, e nove a questões relativas à condição cotidiana de
mulheres no início do século XX, que viviam conflitos entre as tradições vitorianas e os
desejos por mais autonomia, que envolvem temas como o casamento, a monogamia, os
relacionamentos, os processos fisiológicos femininos, a sexualidade, entre outros
(Amorim, 2021).
Entre os anos de 1927 e 1932, Horney se dedica a escrever sobre problemáticas
ligadas à monogamia e o casamento como instituições reguladoras da sexualidade
humana, tendo ela mesma se separado do marido Oskar Horney, em 1926, e se tornando
única provedora para as três filhas adolescentes (Quinn, 1987). Kelman (1991) frisa a
irreverência de Horney com relação à doutrina freudiana, sua postura de questionamento
da teoria a partir de suas observações clínicas. Para o autor, através dos artigos de
Psicologia feminina (1991), é possível observar o desenvolvimento da própria teoria de
Horney acerca da sexualidade feminina, e como ela progressivamente a assume como
uma teoria propriamente sua sobre o desenvolvimento feminino. Interessante observar
também, como aponta Kelman (1991), que as perspectivas próprias que Horney
desenvolveu a partir de sua constante pesquisa sobre a sexualidade feminina, já vão em
direção à grande temática que irá desenvolver posteriormente, em A personalidade
neurótica do nosso tempo (1937), na qual ela se debruça sobre as consequências do
impacto da cultura nos sujeitos, a despeito de sexo e gênero.

2.2.1. A gênese do complexo de castração nas mulheres (1923)

O primeiro artigo da coletânea, A gênese do complexo de castração nas mulheres,


de 1923, é a primeira publicação de Horney sobre o tema da sexualidade, escrita depois
de dez anos do início de sua atuação clínica enquanto psiquiatra, e quatro enquanto
psicanalista. Foi apresentado no 7º Congresso Internacional de Psicanálise, em 1922, em
uma mesa presidida por Freud, como resposta a um artigo de Karl Abraham sobre o
mesmo tema8, apresentado no congresso anterior, em 1920 (Garrison, 1981). Logo no

8
Manifestações do complexo de castração na mulher (1921), de Karl Abraham, o primeiro artigo
psicanalítico a focalizar em detalhe a questão da sexualidade feminina (Mezan, 1999). Prates (2001)
apresenta de maneira sintética as colocações de Abraham, que observa o descontentamento de muitas
mulheres com sua condição feminina, e a manifestação do desejo de serem homens - o que ele atribui à
constatação da diferença sexual, ou seja, à visão do órgão masculino. Abraham chama de complexo de

43
início, Horney o menciona e considera suas colocações insatisfatórias para as mulheres,
tanto de um ponto de vista narcísico, quanto biológico. Ela, que havia sido analisada por
ele no início de seu percurso psicanalítico, constrói uma crítica à sua teoria, a partir da
própria experiência clínica com mulheres. Horney resume aquilo que considera a noção
psicanalítica fundamental sobre as formas assumidas pelo complexo de castração nas
mulheres, utilizando trechos da publicação de Abraham sobre o tema:

Muitas mulheres, tanto em criança quanto na idade adulta, sofrem temporária ou


permanentemente com a realidade do seu sexo. A origem das manifestações na
sua vida mental surgidas da objeção em ser mulher é encontrada no seu desejo de
ter pênis quando garotinhas. A desagradável ideia de ser fundamentalmente
desprovida neste aspecto dá origem a fantasias passivas de castração, enquanto
as fantasias ativas surgem de atitude de vingança com o homem favorecido
(HORNEY, 1991 [1923], p. 37).

Considerando essa formulação insatisfatória, ela questiona a afirmação de


Abraham de que as mulheres se sentem em desvantagem por razões genitais, e recusa a
atribuição de uma superioridade natural ao pênis (Prates, 2001). Ela indaga se todas as
formas do complexo de castração encontrado nas mulheres se baseiam apenas na
insatisfação da ambição de ter um pênis, ou seja, problematiza a centralidade da inveja
do pênis enquanto sustentação do complexo de castração nas mulheres. Horney (1991
[1923]) toma como ponto de partida a manifestação mais direta da inveja do pênis, o
desejo de urinar como homem, que é composto pelo etorismo uretral, e observa que
mesmo que possivelmente surja um sentimento de desvantagem nas meninas em relação
ao erotismo uretral, o papel representado por esse fator aparece de maneira exagerada,
"como se tem feito até agora em muitos grupos, se imediatamente lhe atribuirmos todos
os sintomas e fantasias cujo conteúdo seja o desejo de urinar como os homens" (p. 37).
Para Horney, a força originária e mantenedora desse desejo é encontrada na escopofilia
passiva e ativa, o que se deve ao fato do menino ter a permissão de expor e olhar seu
genital, de maneira a satisfazer, de certa forma, a curiosidade sexual. Ela apresenta casos
clínicos nos quais identifica uma relação íntima entre o erotismo uretral e o instinto
escopofílico.
Além do erotismo uretral e o instinto escopofílico, Horney acrescenta um terceiro
elemento ao desejo de urinar como homens, que considera ser o protótipo da inveja do

castração o agrupamento das consequências psíquicas da falta de pênis na mulher. A autora chama
atenção, ainda, para a relevância deste texto, que “inaugura esse grande debate que se prolongará pelos
anos seguintes, e cujos ecos ainda hoje podem ser escutados” (PRATES, 2001, p. 48).

44
pênis: os desejos onanistas recalcados, que pode ter origem, segundo ela, no fato de se
permitir ao menino segurar o órgão genital para urinar seja interpretado como permissão
para se masturbar. A partir do caso clínico, aponta a conclusão de que as meninas
apresentam dificuldade em superar a masturbação, por ser algo proibido por conta de
diferenças anatômicas. Ela resume sua resposta para a questão do motivo pelo qual a
inveja do pênis é ocorrência típica: as meninas têm a impressão, comparando-se com os
meninos, de estarem sujeitas a restrições no sentido da possibilidade de satisfações
pulsionais significativas no período pré-genital, e Horney concorda que estão em
desvantagem com relação a possibilidade de gratificação. A possibilidade do papel sexual
de mãe na maturidade não lhe traz compensação, pois está, segundo Horney, fora de
suas possibilidades de gratificação imediata.
Ela questiona se o complexo de castração se fundamenta, e obtém sua força, na
inveja do pênis. Ela considera necessário atentar para os fatores que determinam a
superação da inveja do pênis, ou se ela regressivamente se reforça de modo a ocorrer a
fixação. Horney comenta duas maneiras de superação da inveja do pênis: a partir da
passagem do desejo narcisista auto-erótico do pênis para o desejo pelo pai em virtude da
identificação com a mãe; ou o desejo material de ter um filho, do pai. Horney argumenta
que o complexo de castração nas mulheres não deve ser compreendido como um
resultado natural da diferença anatômica, mas como resultante de outros fatores,
especialmente da relação entre pai e filha. A partir de explanações sobre três casos
clínicos, Horney apresenta uma leitura na qual o desejo de mulheres em ser homens
manifesta uma forte identificação paterna correspondente a uma fase secundária do
desenvolvimento, e o complexo de castração na mulher seria então fruto dessa
identificação (Prates, 2001). Segundo Horney:

O que acontece é que a fase de identificação com a mãe dá lugar em grande parte
à de identificação com o pai, havendo, ao mesmo tempo, regressão a um estágio
pré-genital. Acredito que esse processo de identificação com o pai seja uma das
raízes do complexo de castração nas mulheres (HORNEY, 1991 [1922], p. 46).

Horney menciona o texto A psicogênese de um caso de homossexualismo numa


mulher (1920), no qual Freud defende que este mesmo tipo de identificação com o pai - o
mesmo processo que Horney apresenta tendo como produto o complexo de castração - é
umas das bases da homossexualidade feminina manifesta. Ela questiona a afirmação de
Freud de que a inveja do pênis é, sozinha, a responsável pelas fantasias de castração

45
femininas, e apresenta diferentes casos clínicos, que considera evidenciarem os
diferentes disfarces da fantasia básica de ter sido castrada pela relação amorosa com o
pai, que Horney denomina como a segunda raiz de todo complexo de castração nas
mulheres.
A problematização de Horney (1991 [1923]) está centrada na questão se a
insatisfação com o papel sexual feminino, que resulta da inveja do pênis nas mulheres, é
o definidor de seu complexo de castração: "É exatamente esta identificação com o pai do
sexo oposto que me parece a origem tanto da homossexualidade como do complexo de
castração em ambos os sexos" (p. 50). A partir desses apontamentos, Horney conclui que
a inveja do pênis é um evento secundário e complicador do desenvolvimento da mulher, e
que o seu sentimento de desvantagem estaria mais baseado nas possibilidades de
gratificação social que os meninos adquirem, em comparação com as meninas, durante a
infância (Bonfim, 2011). Assim, Horney reconhece a ocorrência da inveja do pênis, mas
ao propor seu caráter de formação secundária, ela relativiza sua importância psíquica na
constituição da feminilidade - Iannini e Tavares (2018) apontam como Feminilidade, texto
freudiano de 1931, parece ser uma resposta a esse tipo de proposição. Ao mesmo tempo,
ela afirma a diferença sexual em bases biológicas, e, evitando assumir um ponto de vista
masculino, busca aquilo específico da mulher.

2.2.2. A fuga da feminilidade: o complexo de masculinidade nas


mulheres segundo as óticas masculina e feminina (1926)

Neste artigo, publicado três anos após o anterior, e pouco depois da publicação de
O Eu e o Isso (1923), A Dissolução do complexo de Édipo (1924) e Algumas
consequências psíquicas da distinção anatômica entre os sexos (1925), Horney discute a
unilateralidade da pesquisa em psicanálise, centrada apenas em meninos e homens, e os
empreendimentos de Freud, Karl Abraham e Helen Deutsch, que investigaram a relação
entre a noção de inveja do pênis e a formação das neuroses nas mulheres. Ela menciona
as proposições acerca da fase fálica, do reconhecimento infantil apenas do genital
masculino, e a concepção do caráter fálico do clitóris nas meninas - enfatizando a
perspectiva masculina utilizada pela psicanálise nesse tipo de construção -, e se indaga
seu valor para uma percepção mais acurada do desenvolvimento feminino. Horney
menciona a influência da obra de Georg Simmel em seu pensamento, referente ao

46
reconhecimento do caráter masculino e patriarcal de sua civilização, além da distinção da
atribuição cultural de valores ao masculino e o feminino. Horney, através de uma
comparação direta, afirma que as ideias psicanalíticas sobre o desenvolvimento feminino
não diferem muito das típicas ideias de meninos com relação às meninas na infância.
Ela levanta questões que surgem uma vez que se intenta abordar a psique
feminina para além de uma perspectiva masculina, e menciona como a leitura
psicanalítica da diferença genital não leva em consideração outras diferenças biológicas,
atreladas aos papéis masculino e feminino na função reprodutiva. Ela indaga, "e a
maternidade?"9. Considera as ideias de Ferenczi de que a maternidade, tendo sido
imposta às mulheres como um peso resultante de sua derrota no período primitivo de
conflito, possa ser tida como uma desvantagem em uma perspectiva social, mas
questiona o reconhecimento de um embasamento biológico da inveja do pênis,
desconsiderando uma grande potencialidade da mulher nesse mesmo âmbito, que é sua
capacidade para maternidade. Horney propõe, a partir do que observa na clínica, a
existência de uma inveja da maternidade nos homens, de maior capacidade de
sublimação que a do pênis, sublimação essa que ela aponta como uma das forças
motrizes no estabelecimento dos valores culturais.
Horney associa diretamente a histórica produtividade masculina a uma mais fácil
sublimação da inveja da maternidade nos homens, do que da inveja do pênis nas
mulheres, e questiona se o grande impulso criativo e construtivo dos homens não seria
compensatório de sua sensação de cumprir um papel relativamente pequeno no processo
reprodutivo. Ela compreende que a mulher biologicamente não está em desvantagem na
sua organização sexual, ao passo que o homem possui clara desvantagem no que diz
respeito à reprodução. Porque não se encontra um mecanismo semelhante de
autocompensação da inveja do pênis na mulher? Ou é menor que a dos homens -
considerando que não há desvantagem na organização genital de mulheres adultas, e o
papel do homem na reprodução é menor -, ou é descarregada com êxito de outra forma -
através da transmutação no desejo de ter um filho. Horney discute mudanças teóricas
sobre a compreensão desse mecanismo, fazendo menção ao texto de Freud publicado
um ano antes, Algumas consequências psíquicas da distinção anatômica entre os sexos
(1925).

9
HORNEY, K., A fuga da feminilidade: o complexo de masculinidade nas mulheres segundo as óticas
masculina e feminina, 1991 [1926], p. 56.

47
Horney aponta duas fontes de material clínico sobre o complexo de masculinidade,
o primeiro advindo da análise de meninas pequenas, que possuem uma inveja do pênis
que ela considera primária, ligada à observação do privilégio do menino na relação com o
erotismo uretral e o onanismo. Segundo, da clínica de mulheres adultas, nas quais se
observa o poder dinâmico da inveja do pênis, mas enquanto uma formação secundária,
que carrega tudo aquilo que foi malogrado no desenvolvimento da feminilidade, portanto
não ligada à inveja do pênis primária. Ela afirma:

Minha experiência, do início ao fim, provou-me com nítida constância que o


complexo de Édipo nas mulheres leva (não apenas nos casos extremos em que o
sujeito sofreu muitos desgostos, porém regularmente) à regressão à inveja do
pênis, em todos os graus e nuances, é claro (HORNEY, 1991 [1926], p. 61).

Horney apresenta também sua leitura da diferença do complexo de Édipo em


meninos, que renunciam à mãe como objeto em nome do medo de castração, e em
meninas, que renunciam ao pai como objeto, mas se retraem na aceitação do papel
feminino. Para Horney, a fuga da feminilidade, resultante do Édipo feminino, possui
relação com a masturbação infantil, considerada a expressão das excitações edípicas. Ela
questiona mais uma vez se as questões conhecidas até então sobre o viés masculino
daquilo que se conhece sobre masturbação infantil, ponderando a possibilidade de
sensações vaginais durante o desenvolvimento genital da menina. Horney afirma ser
difícil afirmar precisamente, mas considera que estas provavelmente ocorrem, pois,
segundo ela, as fantasias edípicas de meninas sobre a penetração forçada durante a
infância, e o medo de uma ferida interna, demonstram que a vagina possui papel na
organização genital infantil da mulher, assim como o clitóris. A ansiedade genital feminina,
que remete às fantasias de penetração, advinda da culpa pelos desejos incestuosos pelo
pai, levaria a menina a se refugiar em um papel masculino fictício de maneira mais
expressiva do que a inveja do pênis.
Os ganhos da fuga da feminilidade estariam ligados à defesa do Eu contra a culpa
e a ansiedade que o papel feminino carrega, devido a sua relação com desejos libidinais
voltados ao pai, e também à identificação com o pai. Em suma, ela concorda com a noção
freudiana de que a menina se desenvolve sexualmente à escolha de objeto através da
inveja do pênis, mas propõe que seja apresentada outra forma daquela de Freud. Horney
(1991 [1926]) propõe, recuperando Simmel, que "os motivos característicos da fuga para
o papel masculino - cuja origem é o complexo de Édipo - reforçam-se e baseiam-se na

48
real desvantagem em que as mulheres atuam na vida social" (p. 65). Portanto, indica que
a menina nasce exposta à transmissão da sugestão de sua inferioridade, algo que
estimula seu complexo de masculinidade, de maneira a propor a interação de psiquismo e
fatores sociais na explicação do fenômeno de fuga da feminilidade.
Ela reconhece que suas proposições são muitas vezes diametralmente opostas
àquelas correntes no meio psicanalítico de sua época, mas afirma que tem como objetivo
indicar o sexo do observador como uma possível fonte de erro, e assim avançar na meta
comum, de ir além dos aspectos subjetivos dos pontos de vista masculino ou feminino, e
conhecer melhor o desenvolvimento psíquico da mulher de maneira mais condizente com
sua natureza, em suas qualidades específicas e diferenças com relação ao homem.

2.2.3. Feminilidade inibida: a contribuição psicanalítica para o


problema da frigidez (1927)

Neste artigo, publicado em 1926-27, Horney apresenta suas considerações sobre a


psicogênese da frigidez feminina, que, segundo ela, se diferenciam de duas visões
médicas correntes na época: uma primeira que toma a frigidez enquanto uma doença, tal
como qualquer outra, portanto requer o conhecimento de sua etiologia e terapia; e uma
segunda, que a considera como a atitude sexual normal da mulher civilizada, o que
esgota as possibilidades de atuação terapêutica. Horney aponta como ambos os
argumentos, tanto os que enfatizam fatores sociais, quanto os constitucionais, se baseiam
em fortes convicções subjetivas, e portanto não são úteis para esclarecer a questão.
Na sua opinião, é a psicanálise quem consegue responder às questões sobre quais
processos do desenvolvimento levam à formação do sintoma da frigidez - entendido como
inibição da função sexual -, e qual o valor atribuído a esse fenômeno na economia libidinal
da mulher. Ou seja, conseguir determinar se a frigidez é um sintoma isolado, ou
conectado a distúrbios psíquicos reais, se é orgânica ou psicologicamente condicionada.
Ela investiga outras manifestações que, usualmente, em sua experiência clínica,
acompanham a frigidez no impedimento de outras funções femininas, tais como distúrbios
na menstruação e na atitude da mulher frente à maternidade, às tarefas domésticas e aos
homens. Através da investigação psicanalítica da dimensão psíquica inconsciente da vida
dessas mulheres em sua experiência clínica, identificou como ponto comum uma

49
determinada rejeição do papel feminino. Amorim (2021) aponta como novamente as
fantasias de penetração são fundamentais para as interpretações de Horney.
Horney (1991 [1926-27]) associa a frigidez feminina não à rejeição do sexo, mas à
relutância em assumir específico papel feminino, assim como ao desejo e às fantasias de
masculinidade - características do complexo de masculinidade nas mulheres. Ela
descreve, portanto, a frigidez como fruto de um complexo de masculinidade, e, como
aponta Amorim (2021), ela reafirma sua posição teórica de rejeição da inveja do pênis
como estruturante da feminilidade, considerando-a fase crucial para a fixação da libido no
desenvolvimento de patologias da feminilidade. Frente à inveja do pênis ela afirma que,
para a menina, não há razões para invejar o menino, devido às suas vantagens do ponto
de vista biológico, centradas na maternidade. Ela considera uma superestimação da
inveja do pênis na psicanálise, "realmente, o complexo de masculinidade da vida adulta,
com suas frequentes e catastróficas consequências, não é resultado direto deste período
inicial do desenvolvimento, mas surge só depois de complicado desvio" (p. 74). Seriam,
portanto, as primeiras relações de objeto da criança que determinariam o
desenvolvimento em um ou outro sentido.
Ela considera que a frequência da frigidez feminina, tal como observava, estaria
ligada a fatores culturais e supra-individuais, pois entende o ambiente cultural enquanto
pouco favorável para o desenvolvimento da mulher e de sua individualidade. Ela conclui
que o quanto o efeito decisivo está ligado a fatores exógenos ou endógenos será
diferente a depender de cada caso individual, sendo o mais fundamental a operação
conjunta destes fatores.

2.2.4. O ideal monogâmico (1927)

Este artigo foi primeiramente apresentado no 10º Congresso Internacional de


Psicanálise, que ocorreu em Innsbruck, em 1927, e foi publicado no Jornal Internacional
de Psicanálise, no ano seguinte, em 1928. Nele, Horney apresenta considerações
psicanalíticas sobre os problemas do casamento, tido como o aspecto da vida íntima mais
obviamente relacionada com a situação edipiana. Para Horney, a importância prática
dessa instituição social leva à necessidade de procurar compreender seus fundamentos
psicológicos, e, assim, ela aborda como as questões inconscientes são condicionantes da
opção pela monogamia e por determinados parceiros.

50
Ela propõe que aquilo que leva ao casamento, apesar da constatação de constante
infelicidade conjugal, é a expectativa de encontrar, através dele, a satisfação de todos os
antigos desejos oriundos da situação edípica da infância. Ou seja, o casamento está
sujeito ao peso dos desejos inconscientes, e, assim, para Horney, o ideal monogâmico do
casamento estaria fadado ao fracasso por duas razões: pelas hostilidades provocada pelo
inevitável desapontamento de desejos infantis e pela ameaça superegóica proveniente do
tabu do incesto. Portanto, por um lado, é devido a características próprias ao Id - ao
caráter substitutivo do objeto e a discrepância entre o objeto encontrado, a satisfação
alcançada e os desejos inconscientes -, e por outro, é devido à ameaça ao Supereu da
ressurreição da proibição do incesto no casamento, que acarreta em uma aversão ao
objeto, referente à facil associação entre a proibição e a satisfação do desejo. Horney
(1991 [1927]) afirma que os dois fatores, a desilusão e a proibição do incesto, "com todas
as suas consequências de secreta hostilidade com o marido e a esposa, afastarão o outro
parceiro, levando-o involuntariamente a buscar novo objeto de amor. Esta é a situação
básica que dá origem ao problema da monogamia" (p. 68).
No casamento, o Supereu é ameaçado pelo retorno da antiga proibição de incesto,
associada dessa vez ao parceiro, o que leva a uma substituição dos objetivos sexuais
diretos por uma atitude afetiva na qual esses alvos são inibidos ou recalcados. Em
resposta, para viabilizar a monogamia no casamento, a despeito do retorno da proibição
do incesto, no âmbito do Id ela aponta as inibições sexuais, e no Eu localiza as tentativas
de reafirmação ou justificação, ou de supervalorização do amor conjugal (Amorim, 2021).
Horney aponta, ainda, que "os desejos de poligamia, portanto, entram em conflito com a
exigência do parceiro de uma relação monogâmica e com o ideal de fidelidade que
estabelecemos mentalmente para nós mesmos" (p. 88).
Enquanto origem da exigência monogâmica, ela aponta o reviver do desejo infantil
de monopolizar o pai e a mãe, que se revela em análise enquanto derivado da fase oral -
desejo de incorporar o objeto. No passado infantil, a reivindicação do monopólio do amor
de um dos pais foi frustrada, e teve como resultado uma reação de ódio e ciúme, que se
ocultam por trás da exigência de monopólio, e se manifestam frente à repetição da antiga
frustração. Horney coloca que o orgulho exige a relação monogâmica de forma
proporcional à cicatriz narcísica da primeira frustração, e também aponta o fator narcísico
da exigência de monogamia, que é associado a elementos pulsionais sádico-anais. Para

51
ela, a demanda monogâmica representa mais uma satisfação narcísica e impulsos
sádicos, do que indica desejos de amor verdadeiro.
Para Horney, o ideal monogâmico se fortalece a partir de fontes inconscientes
bastante primitivas, tornando-se um ideal imperioso, que "compartilha da evolução de
outros ideais em que os instintos elementares rejeitados pelo consciente se satisfazem"
(p. 89). Ela continua, "Na medida em que a sociedade dá tanta importância a monogamia,
ela tem interesse, do ponto de vista da economia psíquica, em permitir a satisfação dos
instintos elementares que fundamentam a exigência, para compensar a restrição que
impõe" (p. 90).
Horney confronta a afirmação de que os homens possuem maior disposição
poliamorosa, algo que ela considera uma fantasia tendenciosa a favor dos homens, sem
nenhuma substância. Ela procura, na realidade, investigar a monogamia e o fenômeno de
maior fidelidade nas mulheres, fato que relaciona também a fatores históricos e sociais,
mas explora também em sua dimensão psíquica. Ela apresenta duas principais questões
do ponto de vista analítico: a primeira, referente à possibilidade de existência de uma
representação psíquica do fato da gravidez tornar o coito fisiologicamente mais importante
para as mulheres, e a segunda, referente às diferenças entre os destinos edípicos de
meninos e meninas devido à renúncia ao objeto.
A autora resume suas colocações ao longo do ensaio sobre os motivos por trás da
exigência de monogamia, assim como as forças conflitantes, cuja força motriz deriva dos
desejos que se originam do complexo de Édipo. Sendo assim, é inevitável sua
mobilização no casamento, mesmo que em diferentes graus de atividade. Segundo suas
observações, os elementos de ódio encontram saída não só quando transgride a norma
da monogamia, mas também quando é obedecida, assim como podem ser dirigidos ao
parceiro de uma forma ou de outra, de ambos os lados solapando a base da ternura entre
o casal. Horney considera que essa perspectiva não nos torna impotentes diante dos
conflitos do casamento, e sim que "a descoberta das fontes inconscientes onde eles se
alimentam pode enfraquecer o ideal de monogamia e também a tendências polígamas,
tornando possível vencê-los" (p. 95).

2.2.5. A tensão pré-menstrual (1931)

52
Em A tensão pré-menstrual, publicado em 1931, Karen Horney (1991 [1931])
apresenta a observação clínica de que o processo de análise de mulheres a leva a afirmar
que a menstruação é foco de angústia, e desperta fantasias de natureza ativa e passiva -
o que a leva a discutir os distúrbios funcionais e psicológicos da menstruação,
questionando a pouca atenção que recebem. Entre eles, ela identifica graus variados de
tensão, desânimo, apatia, irritabilidade e angústia, que "tem muito a ver com as
elaborações de fantasias sobre o fluxo menstrual" (p. 98), e retrocedem com o início do
sangramento, sem se transformarem em verdadeiros distúrbios. Horney discorre sobre as
representações ligadas ao sangue menstrual, mas dá principal atenção ao período
anterior ao sangramento, marcado pelas tensões pré-menstruais.
Ela discorre sobre as mudanças fisiológicas que caracterizam o ciclo menstrual da
mulher - os ciclos hormonais, a atividade uterina, o metabolismo e o aumento da libido -, a
partir da justificativa de que os processos psicológicos caminham paralelos aos físicos, ou
são causados por eles. Horney admite um processo psíquico de aumento da libido,
paralelo a essas mudanças fisiológicas do período pré-menstrual, cuja tensão as jovens
lidam sozinhas, dado as restrições culturais. Horney indaga se o aumento da libido pode
ser, realmente, o agente específico das tensões pré-menstruais, enfatizando o aspecto
biologicamente decisivo desse acontecimento psicológico, ou seja, que o aumento da
libido tem como significado biológico a preparação para a gravidez. Ela questiona, assim,
se as tensões pré-menstruais não são manifestação psíquica das mudanças fisiológicas
ligadas ao ciclo menstrual e a preparação para procriação.
Para responder, ela apresenta casos clínicos que favorecem sua hipótese. Traz o
caso clínico de uma paciente, e menciona a recorrência de sonhos que se conectam à
temática da concepção; faz conclusões sobre o conflito entre o desejo por um filho e uma
defesa intensa contra este desejo, que faz com que sua realização nem se torne uma
possibilidade, e levam a supor que "no momento em que o organismo se prepara para
conceber uma criança, o desejo recalcado de engravidar é mobilizado por todos os seus
contra-investimentos, produzindo distúrbios no equilíbrio psíquico" (p. 102). Ela observa
que há menos ocorrência de tensões pré-menstruais em casos nos quais há o conflito,
mas ainda assim há a ocorrência de gravidez.
Ela oferece a hipótese de que as diferentes tensões sentidas pelas mulheres são
diretamente promovidas pelo processo psicológico de preparação para a gravidez.
Quando estas tensões estão presentes, a mulher se antecipa em conflitos envolvendo o

53
desejo por uma criança, que Horney (1991 [1931]) defende como primordial, portanto, faz
a crítica de que a maternidade representa um problema mais vital do que Freud assume.
Horney afirma, ainda, que a presença da tensão pré-menstrual não é expressão de uma
fraqueza feminina básica, mas sim expressão dos conflitos emergentes pela necessidade
de ter um filho naquele determinado momento. Defendendo a ocorrência de uma
tendência instintual para a maternidade, enquanto representação psíquica de um estímulo
somático interior de fluxo contínuo - fazendo referência ao conceito de pulsão nos Três
ensaios -, ela afirma "que o desejo de ter um filho pode realmente acarretar considerável
reforço secundário do desejo de ter pênis, mas que o desejo é primário e instintivamente
ancorado nas profundezas da esfera biológica" (p. 104).
Em suma, a autora argumenta a favor do reconhecimento dos processos
fisiológicos específicos do aparelho genital feminino como decisivos na economia libidinal
de mulheres. Amorim (2021) considera que não é à toa que Horney volta a escrever sobre
questões relativas à feminilidade em 1931, dado que no artigo Sexualidade Feminina
(1931), publicado no mesmo ano, Freud "reafirma categoricamente sua teoria do
desenvolvimento feminino, mas agora considerando a fase pré-edípica da menina como
de fundamental importância no seu desenvolvimento não apenas devido à inveja do
pênis" (p. 97).

2.2.6. A desconfiança entre os sexos (1931)

Neste artigo, apresentado em 1930 à German Women's Medical Association e


publicado em 1931, Horney (1991 [1931]) procura chamar atenção para as razões
psicológicas para a desconfiança entre os sexos. Ela aponta para a frequência de uma
hostilidade, evidente ou camuflada, nas relações amorosas, que é comumente associada
a fatores individuais, mas que, em sua visão, expressa a existência de um denominador
comum. Ela relaciona a hostilidade à intensidade dos afetos e à dificuldade em
controlá-los: "Qualquer um, até certo ponto, tende a subestimar os próprios impulsos
hostis e, sob pressão de sua consciência culpada, pode projetá-los no parceiro" (p. 106).
Outro fator apontado por ela é o fato da intensidade do amor revolver as expectativas
secretas e angústias em relação à felicidade que se encontram adormecidas. Horney
questiona: "Quais os fatores no desenvolvimento humano que levam a discrepância entre

54
as expectativas e a realização, e o que faz com que elas adquiram significado especial
nos casos particulares?" (p. 107).
Ela menciona os primórdios do desenvolvimento, o período de dependência do
bebê e sua impotência em expor sua raiva e agressão, de forma que percebe suas forças
destrutivas e se sente igualmente ameaçada por adultos, o que dá origem às angústias
infantis. Aborda a maneira com que os conflitos da infância afetam o relacionamento na
vida adulta, se utiliza de exemplos para demonstrar como a atitude de mulheres em
relação aos homens pode ser perturbada pelos conflitos infantis, e enfatiza a ocorrência
de distúrbios no desenvolvimento da maternidade em ambos os casos.
Para falar de determinadas atitudes que considera típicas dos homens com as
mulheres, ela se vale de exemplos de discursos correntes sobre as mulheres em
diferentes momentos históricos e culturais - como o mito de Adão e Eva; as mulheres dos
povos indígenas Arunta, Miri, Watela; o Culto da Virgem na Idade Média; as deusas-mães
da antiguidade. Todos sustentam a sugestão de Horney da existência uma desconfiança
dos homens em relação às mulheres calcada no ressentimento e na inveja, ligados ao
papel da mulher na reprodução. O resíduo de ressentimento e angústia de homens com
relação às mulheres se expressam, segundo Horney (1991 [1931]), através de "manobras
defensivas e desconfiadas dos homens contra a ameaça da invasão feminina dos seus
domínios: daí a tendência a desvalorizar a gravidez e o parto e a enfatizar
excessivamente a capacidade genital masculina" (p. 113).
Horney reconhece a importância da luta recente de mulheres pela igualdade e
afirma que não atribui toda a hostilidade à questão do papel do homem na sociedade na
luta de poder, e também não defende uma supremacia das mulheres. Na realidade, sua
indagação diz respeito à necessidade da luta de poder entre os sexos, e ao caráter
ideológico da pouca consciência que se tem sobre essa luta - que responde à supremacia
cultural masculina. Sua tentativa é revolver as racionalizações e examinar as ideologias
quanto às suas forças tendenciosas fundamentais. Ela defende que a psicanálise pode
contribuir para investigação dos motivos dessa luta pelo poder, de forma não a eliminar os
motivos, mas ajudar o paciente na "criação de melhores chances de combater esta luta na
sua própria arena sem relegá-la à periferia" (p. 116).

2.2.7. Os problemas no casamento (1932)

55
Em Os problemas no casamento, Horney tem como principal enfoque uma
abordagem psicanalítica da instituição do casamento, através sua observação clínica das
dificuldades e conflitos que apresentam, e das diferenças entre homens e mulheres nos
casamentos heterossexuais. Para se aprofundar, faz uso das teorias freudianas sobre o
complexo de Édipo, sobre processos inconscientes e conflitos neuróticos, e aponta alguns
dos conflitos inevitáveis no casamento. Horney parece questionar se há compatibilidade
entre o casamento e a constituição psíquica do sujeito, marcado por sua dimensão
inconsciente. Sua consideração inicial é de que as dificuldades do casamento respondem
ao processo de desenvolvimento, que a frequente desconfiança entre homens e mulheres
no casamento, não é decorrente das experiências dos últimos anos anteriores, e sim do
início da infância.
Estas experiências da adolescência e puberdade são, segundo Horney,
condicionadas por atitudes previamente adquiridas sobre as quais não temos consciência.
Horney tematiza a carga imensa das exigências do casamento, a falha entre a lei e a
felicidade, a aversão ao parceiro, a interação entre amor e ódio, a escolha de parceiro
equivocada, os perigos da crescente restrição das demandas por amor e do conflito
causado por expectativas contraditórias. Um ponto que a autora chama atenção é o fato
do casamento também ser caracterizado pelo relacionamento sexual entre dois indivíduos
de sexos opostos, o que pode justamente ser o ponto decisivo para as desavenças:
"todas as dificuldades que surgem no casamento, quase sempre - ou melhor, sempre - a
parte do leão é apresentada por nós como resultante do nosso próprio desenvolvimento"
(p. 122).
Horney está fazendo referência aqui à atitude de desconfiança entre os sexos,
discutida em ensaio anterior, que tem origem nas frustrações sentidas na infância, que
condicionam inconscientemente as experiências sexuais posteriores na puberdade. Ela
retoma as afirmações de Freud sobre a sexualidade infantil e o complexo de Édipo, e a
influência das primeiras experiências de amor e frustração nos relacionamentos com o
sexo oposto na vida adulta. Neste sentido, ela diferencia claramente o desenvolvimento
sexual masculino e feminino, seleciona determinados exemplos que, segundo ela,
demonstram alguns traços da típica atitude masculina no casamento.
Nos homens, ela aponta os resíduos da relação inicial de dependência da mãe no
relacionamento com outra mulher, que estará destinada a substituí-la. Ela elenca algumas
tendências que considera típicas, sobre as quais traz informações provenientes de suas

56
observações, tais como: o receio diante da mulher proibida; a ideia de santidade da
mulher; e o medo masculino de ser incapaz de satisfazê-la, principalmente sexualmente,
oriundo de resíduos de uma insegurança na afirmação da masculinidade na infância.
Nas mulheres, enquanto dificuldades que carrega do desenvolvimento para o
casamento, Horney (1991 [1932]) menciona apenas a frigidez, um indício de distúrbio na
relação com o sexo oposto: "não importam as variações de conteúdo individual, é sempre
expressão da rejeição do homem, seja o indivíduo ou o sexo masculino em geral" (p.
125). Essa hostilidade, que pode ser pouco explícita, está ligada à incapacidade de amar
um homem, que a autora justifica a partir da noção de angústia, que deve ser investigada
no desenvolvimento psíquico da menina e seus típicos destinos pulsionais, onde se
encontram diversos fatores que fazem o papel feminino adquirir caráter desagradável e
perigoso. Aqui, novamente, há uma ênfase nas fantasias de destruição e penetração.
Para a autora, a menina escapa desses sentimentos desconfortáveis pelo "artifício
característico da fuga para o papel masculino desejado ou imaginado" (p. 126).
Em suma, o marido traz muitas atitudes residuais ligadas à mãe enquanto a mulher
santificada e proibida, a quem ele nunca foi capaz de satisfazer, enquanto a mulher traz a
frigidez, sua rejeição do homem e sua ansiedade relativa a ser mulher, mãe e esposa, que
a leva a um papel masculino imaginário, da ordem do desejo. Ela resume sua
argumentação na noção de que os problemas no casamento, que levam a sua ruptura,
são consequência de um processo usualmente oculto, que se transforma em antipatia e
aversão pelo parceiro, devido à força de conflitos não resolvidos do desenvolvimento
individual. Horney (1991 [1932]) aponta para a possibilidade de reconhecer o caráter
contraditório e de impossível satisfação de muitas das expectativas com relação aos
parceiros, o que leva a uma renúncia dos direitos a formas diferentes de busca de
satisfação pulsional para além daquilo que permanece insatisfeito pelo parceiro. Assim, "é
preciso rever seriamente o padrão absoluto da monogamia, examinando-lhe, sempre
conceitos, origem, valores e perigos" (p. 129).

2.2.8. Medo da mulher: observações sobre a diferença específica no


medo sentido por homens e mulheres em relação ao sexo
oposto (1932)

Neste artigo, publicado 1932, ano em que ela se muda para Chicago, nos Estados
Unidos, (1991 [1932]) discute o pavor que homens tem de mulheres e sua possível

57
influência no conceito de inveja do pênis, marcadamente de caráter masculino. Ela retoma
as representações da mulher ao longo da história, como ser misterioso e perigoso, entre
outras representações da menstruação: "os homens jamais se cansam de cunhar
expressões para a violenta força com que se sentem atraídos pelas mulheres e,
paralelamente a este desejo, o medo de que por seu intermédio possam morrer ou ser
destruídos" (p. 132). Ela menciona as histórias de Lorelei e Ulisses, Sansão e Dalila,
Judite e Holofernes, Salomé e João Batista, a deusa Kali, entre outras, apontando como o
homem luta para se livrar de seu medo das mulheres o materializando no trabalho
artístico e científico, e também para o conflito entre o anseio pela mulher, e o medo dela,
como raiz da inclinação ao trabalho criativo nos homens. Para Horney, os homens
procuram lidar com esse medo a partir da negação e da defesa - a negação através do
amor e adoração; e a defesa através da degradação e rebaixamento das mulheres. Ela
defende a existência de um medo da vagina, observável na psicodinâmica de homens
homossexuais e heterossexuais, o que, em sua perspectiva, refuta a tese freudiana do
reconhecimento infantil de uma única genitália, a masculina.
Horney (1991 [1932]) identifica que esse medo muitas vezes se oculta por trás do
medo do pai, mais favorável à auto-estima do menino, e uma ameaça real, em oposição
ao desconhecido. Para a autora, "Se o homem adulto continua a ver a mulher como um
grande mistério, em que existe algum segredo que ele não pode adivinhar, este seu
sentimento, em última instância, só se pode relacionar a uma coisa nela: o mistério da
maternidade" (p. 139). Neste mesmo artigo, Horney enfatiza que não há razão para
assumir que o desejo fálico do menino de penetrar o genital de sua mãe é sádico - parte
de uma crítica sobre a equalização dos termos masculino - sádico, feminino - masoquista.
Aqui ela explora os modos através dos quais homens objetificam seu horror em serem
reabsorvidos pela vagina, conflito entre desejo e pavor.
Horney, nesse artigo, afirma que a angústia de castração masculina é oriunda de
seu pavor-desejo de tornar-se uma mulher, mais do que seu medo de perda do pênis. Em
sua proposta, é o homem que sente uma ferida psíquica, uma falta em comparação à
mulher em sua capacidade de sentir prazer, sem precisar se provar através de uma
ereção. Como formas de evitar o sofrimento causado pela cicatriz narcísica, Horney
identifica uma compulsão interna dos homens para provar sua masculinidade, a
degradação do objeto de amor e a diminuição do amor-próprio da mulher, o que a leva a

58
afirmar que essas características levam o homem médio a escolha de um tipo feminino
infantil, não-maternal e histérico.

2.2.9. A negação da vagina: uma contribuição para o problema das


angústias genitais específicas nas mulheres (1933)

Horney inicia seu artigo se referindo diretamente à concepção freudiana sobre as


especificidades do desenvolvimento sexual feminino - um artigo sobre o tema foi
publicado dois anos antes, e a conferência Feminilidade foi publicada no mesmo ano,
1933. Horney comenta a designação freudiana da fase fálica como a fase de primazia
genital para meninos e meninas, retoma sua teorização sobre sexualidade feminina, a
tese da semelhança original da tendência libinal nos dois sexos, e reforça o
reconhecimento de Freud da relevância da sexualidade infantil e das experiências infantis
no restante da vida do sujeito. Ela considera, também, que este deixou de compreender a
força do desejo de um filho.
Horney (1991 [1933]) se vale de sua observação clínica para questionar a validade
das afirmações freudianas: "Desde o início, senti dificuldade em harmonizar estas
impressões com a visão de Freud quanto à tendência masculina inicial da sexualidade
das meninas" (p. 148). Para a autora, Freud utiliza observações sobre manifestações de
determinadas meninas centradas no pênis, para demonstrar o quanto a vida pulsional da
menina está desde cedo dominada pelo desejo pelo pênis, visão da qual ela discorda.
Seus argumentos são de que também é possível observar meninos pequenos
expressando de alguma forma o desejo por possuir seios, ou ter um filho; que essas
manifestações não influenciam o comportamento como um todo, "um menino que deseje
veementemente ter seios, como a mãe, pode ao mesmo tempo comportar-se em geral
com a agressividade típica de um garoto" (p. 149); e a bissexualidade inata.
Contra a fundamentação freudiana acerca do desconhecimento da vagina, retoma
as observações de Josine Müller10, de que a vagina já era percebida e, inclusive, utilizada
pelas meninas em práticas masturbatórias desde muito cedo, tão frequentemente quanto
o clitóris. A partir de informações de sua clínica com mulheres, ela apresenta diferentes

10
Josine Müller (1884 - 1930), médica e psicanalista alemã, contemporânea de Horney, que publicou Uma
contribuição do problema do desenvolvimento libidinal da fase genital na menina, em 1932 (escrito em
1925). Neste texto, a partir de suas experiências clínicas com crianças, ela argumenta que desde o início a
vagina teria um papel importante no desenvolvimento da sexualidade feminina, procurando dar uma
positividade à feminilidade. Através de diferentes exemplos, ela demonstra que meninas pequenas
reconhecem a vagina, que seria então a sede original dos impulsos instintivos femininos (Prates, 2001).

59
dados como por exemplo sua observação de que "na masturbação genital, é mais comum
a escolha do clitóris do que a da vagina, ainda que as sensações genitais espontâneas
resultantes da excitação sexual sejam, em geral, mais frequentemente localizadas na
vagina" (p. 154), o que a leva ao questionamento sobre a possibilidade destas sensações
desde a infância.
Para Horney (1991 [1933]), as fantasias de penetração, sonhos ligados ao tema,
são argumentos a favor da existência e do grau de significância das excitações vaginais
infantis, que se expressa simbolicamente na brincadeira, no sonho e nas angústias.
Horney apresenta diferentes dados clínicos - desde relatos de orgasmos vaginais
acompanhados de frigidez, ao conteúdo de sonhos, angústias e fantasias de estupro, e à
angústia ligada à masturbação feminina - que a levam a hipotetizar que "desde o início a
vagina apresenta papel sexual próprio e adequado" (p. 155). Segundo Amorim e Belo
(2020):

Horney (1933) aponta para o recalcamento das sensações vaginais pelas mulheres
que se apresentam para a análise, mas mantém a posição de investigação
analítica, atentando-se para os sinais desse recalcamento, como os distúrbios
sexuais presentes nas mulheres e mesmo as fantasias de estupro, as quais indicam
forte angústia diante da consciência prévia da cavidade vaginal (AMORIM & BELO,
2020, p. 7).

Horney (1991 [1933]) se propõe também a relacionar esta questão à problemática


da frigidez, ligada à angústia relativa à destruição do corpo como retaliação pelos seus
próprios impulsos agressivos. Essa angústia genital feminina, segundo Horney, pode ser
proveniente da diferença de tamanho entre o pai e a menina, a visualização do sangue
menstrual e na reação às primeiras tentativas de masturbação vaginal: "muitas vezes,
tudo que se relaciona a vagina - o conhecimento da sua existência, sensações vaginais
as tendências instintivas - sucumbe diante de uma repressão inexorável" (p. 158). A
masturbação vaginal, portanto, antecede a clitoridiana, que será só depois desenvolvida,
dado que devido às angústias que gera na menina, a vagina, antes descoberta, é negada.
Considerando a centralidade da noção de desconhecimento da vagina para a
concepção freudiana de centramento no clitóris, de caráter fálico, e consequentemente
um sentimento de desvantagem por parte das mulheres, ela defende que a partir do
reconhecimento de que a menina experimenta de sensações vaginais, ela adquire senso
do caráter de seu papel sexual, e portanto torna-se "difícil responsabilizar a inveja
primária do pênis na intensidade postulada por Freud" (HORNEY, 1991 [1933], p. 158).

60
2.2.10. Fatores psicogênicos nos distúrbios funcionais femininos (1932)

Neste artigo publicado em 1932, Horney aborda a crescente discussão na literatura


ginecológica sobre o grau da influência dos fatores psíquicos nos distúrbios femininos. Ela
menciona experimentos como de Pavlov, que demonstram a relação entre manifestações
fisiológicas e estímulos psíquicos, porém questiona o uso deste tipo de método
experimental nos distúrbios mencionados, como cólicas menstruais, frigidez, vaginismo,
desregulações menstruais, presença de corrimentos, entre outros, dado a complexidade
emocional por trás destes fenômenos. Horney defende a particularidade da psicanálise
enquanto metodologia para investigar a relação entre determinadas forças emocionais e
um sintoma, tal como a dismenorreia, por exemplo.
A partir de sua experiência clínica, ela apresenta fatores emocionais que considera
essenciais para compreensão dos distúrbios funcionais femininos. Ela se detém sobre as
coincidências entre distúrbios psicosexuais e as disfunções do sistema genital feminino, e
indaga sobre sua regularidade. Segundo suas observações, ela afirma que não há uma
coexistência regular dos fatores fisiológicos e as mudanças emocionais, o que a leva a
um outro questionamento: há alguma correlação específica entre algumas atitudes da
vida psicossexual e alguns distúrbios genitais?
Horney considera que a diferença entre a psicologia masculina e feminina reside
no fato de que a sexualidade feminina está muito mais ligada à ternura, aos sentimentos e
aos afetos do que nos homens. Na maioria das mulheres, ela afirma, é possível identificar
uma unidade maior entre a sexualidade e a vida emocional, fator que ela atribui
possivelmente a fatores biológicos - a hostilidade se expressa em sua incapacidade de
dar e receber sexualmente. Horney utiliza casos clínicos para ilustrar a aversão ao papel
feminino presente em muitas de suas analisandas, como a inveja do irmão mais novo, ou
a relação conflituosa com a mãe. Ela relata a reatualização de conflitos infantis através da
transferência na prática analítica em casos de frigidez e a influência do medo da
masturbação.
Horney apresenta sua base para compreensão de distúrbio funcional menstrual: o
aumento da tensão libidinal é o equivalente psíquico daquilo que se processa nos órgãos
genitais fisicamente, um aumento que para algumas mulheres torna-se excessivo. Sob a
pressão deste excesso são revividas fantasias infantis, principalmente relacionadas a

61
sangramento, que geralmente carregam como conteúdo o ato sexual cruel. A partir do
caso clínico de uma paciente, relaciona a dismenorreia como sintoma conversivo relativo
a antigas fantasias infantis, e explicita a correlação específica de certos fatores
emocionais e distúrbios funcionais. Em suma, como coloca Amorim (2021), "para explicar
uma variedade de problemas que vão desde a frigidez e dificuldades na gravidez até as
dismenorreias, ela lança mão das fantasias inconscientes das mulheres de terem sido
‘arruinadas por dentro’ advindas dos desejos incestuosos e culpa masturbatória" (p. 70).

2.2.11. Conflitos maternos (1933)

Em Conflitos maternos, Horney (1991 [1933]) discute questões relativas à


maternidade e educação dos filhos. Ela apresenta a noção anteriormente aceita de
instinto materno, e a ênfase das pesquisas da época nos fatores emocionais da relação
entre mãe e filho, a partir da qual ela questiona “quais fatores emocionais que podem
perturbar a atitude desejada e de onde se originam?” (p. 173). A autora se detém em um
principal conflito, ligado à transmissão, ou seja, ao fato da relação da mãe com os pais se
refletir na relação com os filhos, que ela ilustra com exemplos clínicos. Para Amorim
(2021),

a autora discute a relação da mãe com sua família de origem e como esta influencia
seu comportamento com seus próprios filhos, considerando, portanto, a mãe como
um sujeito também dotado de desejos e inconsciente, capaz de transmiti-los
através de seus cuidados à prole (AMORIM, 2021, p. 70).

Horney apresenta e discute casos de fixação paterna em mulheres, nos quais


identifica conflitos que percorrem gerações familiares, como no caso de transferência ao
filho do amor sentido pelo pai, acompanhado também dos sentimentos hostis um dia
associados a ele - ambos recalcados. Outro fator que Horney (1991 [1933]) considera um
complicador em casos de fixação paterna, tendo em vista a questão da transmissão, é a
ocorrência de rivalidade, ciúme e competição entre mãe e filha, como ela coloca: "quando
a situação edipiana da própria mãe causou sentimento de rivalidade excessivamente
forte, pode assumir formas grotescas e começar logo no início da infância da filha" (p.
176).
Horney apresenta outras influências das conflitivas da mãe com os próprios pais, e
afirma que seu objetivo com o artigo foi "de esclarecer como as crianças podem expressar

62
de forma bastante direta antigas imagens, incentivando assim compulsivamente as
mesmas reações emocionais que um dia estiveram presentes" (p. 178). Seus esforços
vão no sentido de conhecer melhor e transmitir os disfarces em que se apresentam os
fatores patogênicos - para ajudar a identificá-los mais facilmente na prática analítica - e
orientar as crianças e melhorar as condições em que são educadas, defendendo a análise
do conflito materno, apesar de reconhecer a dificuldade de garantir isso em larga escala.

2.2.12. A supervalorização do amor: estudo de um tipo feminino comum


atualmente (1934)

Artigo publicado em 1934, no mesmo ano em que Horney se muda para Nova York,
devido aos conflitos vividos no Instituto de Chicago, que haviam se acirrado devido às
suas divergências com a teoria freudiana (Garrison, 1981). Harold Kelman (1991) enfatiza
como, nesse artigo, Horney faz uso explícito de tipologias e metodologias sociológicas e
antropológicas para discorrer sobre a supervalorização do amor na cultura ocidental. Ao
problematizar o ceticismo corrente ligado à iniciativa das mulheres de ampliarem suas
atividades e independência, Horney critica o ideal patriarcal de feminilidade, que toma a
mulher como aquela cujo único objetivo é ser amada por um homem, a quem admira,
serve, e até imita. Essa visão, segundo Horney, erroneamente infere, a partir do
comportamento externo, a existência de uma disposição inata, algo que para ela é
culturalmente determinado, não um dado imutável de ordem biológica. A autora considera
compreensível que, do ponto sociológico,

As mulheres que hoje obedecem ao impulso para o desenvolvimento independente


de suas habilidades só possam fazer ao custo da luta contra a oposição externa e
das resistências internas criadas por intensificação do ideal tradicional da função
feminina exclusivamente sexual (HORNEY, 1991 [1934], p. 182).

Ela observa as influências externas e internas operando de forma mútua e


recíproca, atuando como um único campo em movimento, portanto o tipo feminino
descrito por ela neste artigo se constitui tanto por fatores culturais, quanto por
determinadas demandas pulsionais. Através da discussão de alguns casos clínicos,
Horney aponta para a restrição determinada pela cultura das possibilidades de satisfação
pulsional das mulheres em sua época, algo que remete ao ideal patriarcal de feminilidade.
Em sua perspectiva, essa restrição promove um superinvestimento das relações

63
amorosas e sexuais, que, segundo sua observação, passam a ser buscadas de forma
compulsiva a despeito de frustrações, tornando-se centrais para a economia psíquica de
suas pacientes (Amorim, 2021).
Ao analisar estes casos, Horney questiona quais eram as especificidades deste
afeto nelas, e identifica a presença de maneira frequente de rivalidade com outra mulher
ou menina pela atenção de um homem, pai ou irmão, e a sensação de ter sido preterida,
que se expressava também na transferência. Horney (1991 [1934]), em referência ao
trabalho de Melanie Klein, sugere que esta rivalidade é formação secundária, agravada
durante o Édipo, da agressividade inicialmente dirigida à mãe: "as fantasias de
masculinidade não representam o agente dinamicamente efetivo, mas são apenas
expressão de tendências secundárias que tem suas raízes na rivalidade com as
mulheres" (p. 199).

Nesse sentido, ela reforçava sua tese de que um posterior complexo de


masculinidade não estaria vinculado primariamente à inveja do pênis, mas à fuga
dos conflitos femininos que, devido a determinações culturais e relacionais, adquiria
determinada forma específica. (AMORIM, 2021, p. 72)

Amorim (2021) reconhece, ainda, que neste artigo, está presente a crítica à teoria
da libido de Freud que ela irá aprofundar futuramente, de que ela mascara os aspectos
relacionais e culturais do desenvolvimento psíquico. Horney (1991 [1934]) conclui o artigo
afirmando que dos exemplos apresentados, o tipo de mulher descrito é resultado de
forças individuais, de impedimentos neuróticos particulares, e que "sua frequência se
explica pelo fato de que, devido a fatores sociais, bastam dificuldades relativamente
ligeiras para conduzir as mulheres a esse tipo de feminilidade" (p. 210).

2.2.13. O masoquismo feminino (1935)

Artigo apresentado pela primeira vez em 1933 em um encontro da American


Psychoanalytic Association, e publicado em 1935. Em O masoquismo feminino, Horney
confronta algumas hipóteses derivadas da teoria freudiana que considera inconsistentes -
como a de maior ocorrência do masoquismo em mulheres devido à uma essência
feminina, ou por considerar o masoquismo feminino como consequência da diferença
sexual anatômica, citando diretamente os psicanalistas Sandor Rado e Helene Deutsch.
Amorim (2021) aponta como nesse texto Horney enfatiza o caráter político das

64
teorizações, e a possibilidade do discurso científico reforçar ideologias opressoras para as
mulheres:

A influência exercida nas mulheres por estas ideologias é materialmente reforçada


pelo fato de que aquelas que apresentam estes traços são as que os homens
escolhem com mais frequência. Isto implica que as possibilidades eróticas das
mulheres dependam de sua conformidade à imagem daquilo que constitui sua
'verdadeira natureza' (HORNEY, 1991 [1935], p. 227-228).

Ela coloca como seus objetivos do ensaio a contribuição para determinação dos
fatores biológicos e culturais do masoquismo, para a revisão dos dados psicanalíticos e
utilização da psicanálise para investigação de uma possível relação do masoquismo com
os condicionamentos sociais. Horney concorda que há satisfação masoquista em
mulheres, mas procura discutir sua gênese e frequência. Ela discute principalmente a
validade da extensão da explicação de toda a experiência sexual feminina a partir da
noção do desejo de masculinidade e inveja do pênis, como considera que o fazem Rado e
Deutsch. Ao apresentar também as proposições de outros psicanalistas da época, como
Klein, Lampl-de Groot, Jones, além de Deutsch e Rado, Horney relaciona a falha da
psicanálise em explicar questões da psicologia feminina à desconsideração de fatores
culturais e sociais, ou seja, a exclusão de mulheres que vivem em diferentes culturas. Ela
oferece algumas diretrizes para antropólogos continuarem procurando informações sobre
a presença de tendências masoquistas em homens e mulheres, de forma a fundamentar a
concepção masoquista do papel feminino sustentada pela psicanálise em todas as
circunstâncias sociais.
Para Horney, a tarefa da psicanálise nessa investigação seria a de suprir o
antropólogo de dados psicológicos, considerando que as tendências e satisfações
masoquistas são inconscientes, portanto acessíveis apenas através do processo analítico.
Enquanto indícios das manifestações masoquistas nas funções femininas, ela aponta a
frequência de distúrbios na menstruação, na gravidez e no parto, e a representação de
degradação ou exploração das mulheres na relação sexual. Sobre a observação da
frequência de manifestações masoquistas comparativamente entre homens e mulheres,
ela constrói detalhadamente sua descrição de pacientes com tendências masoquistas, e
resume em cinco principais pontos aos quais o antropólogo deve se atentar para
observação: inibições na expressão de exigências; visão de si como alguém inferior, de

65
forma a exigir considerações baseadas nisso; dependência emocional em relação ao
outro sexo; tendências à submissão; e uso do desamparo como forma de cortejar.
Enquanto fatores causais que predispõe o surgimento do masoquismo feminino,
ela menciona o bloqueio de formas de liberar a sexualidade e comunicação; a restrição ao
número de filhos; a consideração da mulher enquanto ser inferior; dependência
econômica de homens e família; a limitação a certas esferas da vida; e a competição
sexual entre mulheres. Horney (1991 [1935]) faz a ressalva de que "nenhum fator é
responsável sozinho pelo desvio do desenvolvimento, mas sim uma concatenação de
fatores" (p. 227). Em resumo, ela afirma que alguns autores exageram na
supervalorização da importância de fatores anátomo-fisiológicos-psíquicos no problema
do masoquismo feminino, e que este não pode ser relacionado apenas a esses fatores,
devendo considerar também o importante condicionamento pela organização social e
cultural. Sobre o masoquismo, portanto, para ela é uma característica da neurose, tida
como resultado de conflitos nas relações entre indivíduos, e não como um fenômeno
primariamente sexual. Como aponta Prates (2001), os fatores de ordem cultural são aqui
novamente convocados por Horney para explicar uma incidência clínica.

2.2.14. Mudanças de personalidade nas adolescentes (1935)

Apresentado em um encontro da American Orthopsychiatric Association em 1934,


publicado no ano seguinte, em 1935, neste artigo Horney discute suas observações
clínicas da análise de algumas mulheres neuróticas adultas. Segundo ela, apesar de em
todos os casos observados os conflitos se iniciarem na infância, as mudanças de
personalidade ocorrem durante a adolescência, coincidindo com o início da menstruação.
Horney (1991 [1935]) afirma que “as mudanças de personalidade, ao contrário dos
sintomas neuróticos, vão se desenvolvendo aos poucos, e isto também ajuda a disfarçar e
ocultar a verdadeira associação” (p. 231). Horney considera quatro principais tipos de
mudanças de adolescentes nessa fase - que reconhece não darem conta de toda a
variabilidade, mas se referem diretamente à sua própria experiência clínica -, e procura
explicitar a psicodinâmica envolvida nas similaridades e diferenças que observa entre
elas.
No primeiro, a menina é absorvida em atividades sublimatórias e desenvolve
aversão à esfera erótica; no segundo, a menina é absorvida pela esfera erótica e perde

66
interesse e capacidade para o trabalho; no terceiro a menina torna-se emocionalmente
desconectada e não consegue colocar sua energia em qualquer coisa; ou, o quarto e
último tipo, ela desenvolve tendências homossexuais. Ela descreve de forma mais
aprofundada cada um dos tipos, considera suas diferenças e similaridades, mas identifica
um traço em comum: uma insegurança na auto-confiança feminina, e o fato de que se
elas não evitam o papel feminino como um todo, elas se rebelam contra ele, ou o
exageram de maneira distorcida - Horney afirma que, nesses casos, há muito mais culpa
ligada à sexualidade do que elas mesmas reconhecem.
Outro ponto em comum é o antagonismo com tanto homens, quanto mulheres, mas
de formas diferentes - ela considera a existência de uma hostilidade destrutiva velada na
relação destas com outras mulheres -, a defesa contra a masturbação, e também a
atitude desconfiada e desafiadora voltada para a analista mulher. Horney entende essa
atitude como respostas defensivas com relação às próprias fantasias destrutivas voltadas
a outras mulheres, que ela observa expressa na relação transferencial, marcada pela
hostilidade e desconfiança, as quais ela remete ao medo de retaliação defensiva. Ela
sintetiza a psicodinâmica observada:

Resumindo os fatos esquematicamente, vemos que se forma um ciclo vicioso:


ciúme e rivalidade em relação à mãe ou à irmã; impulsos hostis vividos nas
fantasias; culpa e medo de ser atacada e punida; hostilidade defensiva; medo e
culpa reforçados (HORNEY, 1991 [1935], p. 237) .

Sobre os conflitos em comum entre os grupos, Horney comenta que eles


representam várias maneiras de evitar a angústia, e se detém na psicodinâmica de cada
um dos tipos. A solução de cada um deles depende, em sua visão, não da livre vontade
das garotas, mas sim de suas experiências infantis e a reação, ou a solução, dadas a
elas. Sobre tratamento e profilaxia com relação às possíveis atitudes apresentadas, ela
afirma que a última seria efetiva apenas de iniciada no primeiro dia de vida, e o
tratamento de dificuldades mais brandas ela associa a circunstâncias de vida favoráveis.
Ela considera a possibilidade de mudança entre um e outro grupo a partir da puberdade, e
comenta as possibilidades profiláticas no início da vida: através da educação para
coragem e resiliência, ao invés de enchê-las de medos. Mesmo assim, Horney atenta
para as soluções singulares de cada menina, o que afeta o valor dessa sua fórmula.

67
2.2.15. A necessidade neurótica de amor (1936)

Palestra concedida na Deutsche Psychoanalytische Gesellschaft (Sociedade


Psicanalítica Alemã), em 1936, e publicada em 1937, baseada na sua publicação A
personalidade neurótica de nosso tempo, também de 1937. Nela, Horney discute um
fenômeno que ela observa nas neuroses de seu tempo, em maior ou menor grau:
necessidade neurótica por amor, um aumento da necessidade de ser amado, estimado,
reconhecido, acompanhada de um aumento de sua sensitividade à frustração dessas
mesmas necessidades. Ela compreende que a diferença entre a necessidade por amor
tida como normal - comum -, e a neurótica, é de que enquanto comumente as pessoas
consideram importante ser amado e reconhecido, no neurótico isso se dá de forma
compulsiva e indiscriminada. Uma de suas principais manifestações dessa necessidade
neurótica é, segundo Horney, a supervalorização do amor, tema discutido em um artigo de
dois anos antes. Horney distingue, enquanto principais características do fenômeno, a sua
insaciabilidade, sua busca pela incondicionalidade, sua extrema sensibilidade à rejeição -
real ou imaginada -, todas essas, observações que remete à sua experiência clínica e
dados obtidos por meio da transferência.
Horney enfatiza os sacrifícios que o sujeito neurótico é capaz de aceitar em função
de ser amado, aceito e valorizado. À sua dificuldade dificuldade de receber justamente
isso, Horney remete à sua própria incapacidade de amar, sendo o amor considerado por
ela a capacidade dar espontaneamente de si à pessoas, causas ou ideias, ao invés de
reter tudo para si mesmo, de uma maneira egocêntrica. Horney aponta a incapacidade do
neurótico desse amor como decorrente de sua ansiedade, suas angústias e atitudes
hostis reprimidas, sua insaciabilidade, seu temor à rejeição, real ou imaginária, e também
menciona seu medo da dependência. Horney discute também alguns modos do neurótico
tentar obter satisfação: chamar atenção para seu próprio amor, apelar para pena e
ameaças.
Ela apresenta as duas explicações correntes, uma de Ferenczi sobre o traço
infantil deste tipo de característica, e a de Freud. A necessidade neurótica de amor era
considerada por Freud como uma expressão de uma fixação na mãe, e o que Horney
critica é que a concepção freudiana não esclarece questões relativas aos fatores
dinâmicos que sustentam ao longo da vida uma atitude adquirida na infância, ou que
tornam impossível abrir mão de uma atitude infantil. Nesse texto ela questiona a teoria da

68
libido freudiana, pois considera pouco comprovada a atribuição do conceito de fenômeno
libidinal à acrescida necessidade neurótica por amor. O fenômeno da insaciabilidade da
necessidade de amor do neurótico representaria, em termos da libido, a expressão da
regressão. E se questiona, seria essa necessidade por amor acrescida do neurótico um
fenômeno libidinal?
Horney (1991 [1937]) apresenta algumas explicações possíveis e entende que para
compreender o fenômeno em sua totalidade, é preciso considerá-lo como uma das formas
de proteger-se da angústia, uma tentativa de atenuar uma angústia básica exagerada. Na
análise, a necessidade de amor aumenta ao passo que o sujeito é pressionado por algum
tipo de angústia: "Vi na minha experiência que é muito mais fácil atingir o âmago dos
problemas reais de angústia quando se analisa a necessidade de amor do paciente como
tentativa de se proteger da angústia" (p. 253). Horney afirma que a associação entre
angústia e necessidade exagerada de amor, ajuda a compreender melhor o complexo de
Édipo - Freud o caracteriza como fenômeno filogenético, e ela se questiona se as reações
infantis que o caracterizam já não seriam causadas pela angústia, portanto, questiona a
hipótese de determinação filogenética, e o faz também através de dados de pesquisas
etnológicas. Aqui, ela também utiliza argumentos etnológicos e sociológicos para
sustentar suas observações.
Horney não questiona a existência do Édipo, mas questiona até que ponto é um
fenômeno universal, e até que ponto é causado pela influência de pais neuróticos. Ela
aborda sua concepção de angústia básica exagerada - sentimento de impotência em meio
a um mundo hostil e avassalador inconsciente, que se apresenta na consciência sob a
forma de diferentes medos, mas todos eles derivados de um subjacente aumento da
angústia básica. Horney menciona que existem alguns caminhos de defesa principais
contra a ansiedade básica em nossa cultura: a necessidade neurótica de amor; a
submissão; a compulsão pelo poder; o afastamento dos outros; o acúmulo de posses
como manifestação do desejo de ser independente dos outros - todas tentativas de
reprimir esses sentimentos, e tornar-se totalmente invulneráveis. Para Horney, em suma:

Vemos com bastante frequência que o neurótico não escolhe exclusivamente uma
dessas maneiras; tenta atingir seu objetivo de apaziguar a angústia por diferentes
meios, às vezes até bem opostos. Isto é o que o leva a conflitos insolúveis. Em
nossa cultura, o conflito neurótico mais importante é o que existe entre o desejo
compulsivo e inadvertido de ser o primeiro em qualquer circunstância e a
necessidade simultânea de ser amado por todos (HORNEY, 1991 [1937], p. 256).

69
3. ANÁLISE

Considerando os objetivos desta pesquisa - de aprofundar a discussão sobre a


sexualidade em psicanálise a partir da aproximação entre reflexões de Karen Horney e a
psicanálise freudiana -, neste capítulo as colocações de Horney sobre sexualidade
feminina, apresentadas no capítulo 2, serão discutidas e analisadas a partir de um diálogo
com aquilo que é proposto por Freud, desenvolvido no capítulo 1. Para isso, serão
apresentados os principais apontamentos críticos e reflexões feitas por ela a partir da
sexualidade feminina tal qual proposta por Freud, e identificados a quais pontos se
referem, com enfoque nessa relação e em suas diferenças. Ao mesmo tempo em que
essa análise procura aprofundar o diálogo entre Horney e Freud, há também o objetivo de
apresentar e dar a conhecer a obra de Horney, que é pouco difundida no meio
psicanalítico brasileiro. Assim, pretende-se contribuir no sentido do reconhecimento de
sua contribuição histórica nas discussões sobre sexualidade em psicanálise, e na
intersecção do campo com feminismos e estudos de gênero, tão relevante atualmente. A
partir da leitura dos quinze artigos de Psicologia feminina (1991), apresentados de
maneira detalhada no capítulo 2.2., foi possível identificar alguns pontos centrais
abordados por Karen Horney em suas proposições sobre sexualidade feminina em
psicanálise, que serão desenvolvidos conjuntamente a seguir, considerando sua relação
com a teoria freudiana. A saber: a crítica ao referencial masculino adotado pela
psicanálise na elaboração de conceitos e formulações fundamentais sobre a sexualidade
feminina, como de inveja do pênis e primazia fálica, entre outros; a construção de um
outro modelo para sexualidade feminina, que, se posicionando criticamente à Freud,
enfatiza a representação da vagina, a anatomia feminina e a maternidade, e portanto se
apoia na Biologia; e a reivindicação da consideração de fatores sociais e culturais para a
compreensão dos fenômenos psíquicos da sexualidade feminina, e da clínica psicanalítica
com mulheres.

Nos artigos que compõem Psicologia feminina (1991), publicados entre 1923 e
1937, e principalmente em suas primeiras obras da década de 20, Karen Horney critica
abertamente o referencial e os parâmetros masculinos adotados nas construções teóricas
de psicanalistas de sua época sobre sexualidade feminina. Ela se detém sobre questões
relativas a essa temática desde seu artigo inicial sobre o complexo de castração em

70
mulheres, publicado em 1923, dez anos depois do início de sua atuação como psiquiatra,
e quatro anos de atuação abertamente como psicanalista.
Devido a seu tensionamento de alguns atravessamentos da lógica patriarcal nas
teorizações freudianas, em um contexto no qual os movimentos e lutas feministas
contestavam a hierarquização dos sexos e defendiam a igualdade de direitos, Horney
costuma ser mencionada como a primeira psicanalista a introduzir críticas feministas na
psicanálise, apesar de não se posicionar abertamente dessa forma (Amorim, 2021; Silva,
2021). Interessante observar, como indicam Rosa e Welmann (2020), que o interesse de
Horney pelo estudo da sexualidade feminina parece não ter sido motivado exatamente
pelas lutas e movimentos por direitos das mulheres daquela época, e sim por sua própria
experiência clínica. Para Amorim (2021) "o percurso de Horney com suas pacientes
mulheres levou-a a observar alguns aspectos da teoria psicanalítica que não apenas não
se encaixavam em suas observações clínicas, mas também reforçavam a ideologia
patriarcal da feminilidade" (p. 74).
Em A fuga da feminilidade (1926), por exemplo, Horney discute a unilateralidade
das pesquisas em psicanálise, centradas apenas em meninos e homens, através da
relação entre a noção de inveja do pênis e a formação das neuroses nas mulheres. Em
seu comentário sobre as proposições freudianas acerca da fase fálica, do reconhecimento
infantil apenas do genital masculino, e do caráter fálico do clitóris nas meninas, Horney
aponta para uma perspectiva masculina utilizada presente nesse tipo de construção
teórica, e, assim, questiona seu valor para o conhecimento acerca do desenvolvimento
feminino. Na mesma publicação, ela compara diretamente as proposições psicanalíticas
do desenvolvimento feminino e as teorias infantis de meninos sobre meninas, por
exemplo; assim como enfatiza as limitações e possíveis consequências do fato de apenas
homens escreverem sobre o tema.
Amorim (2021) argumenta que, dessa forma, ao problematizar as implicações do
referencial masculino da psicanálise, Horney aponta para a dimensão política da teoria
psicanalítica, ao mesmo tempo que a insere dentre as instituições modificadoras da
cultura e, dessa forma, constituidoras de subjetividades. Horney foi, provavelmente, a
primeira a sugerir que:

O fato de a psicanálise ser um produto da especulação masculina implicaria


impasses incontornáveis: a teoria freudiana da feminilidade seria um prolongamento
de teorias sexuais infantis masculinas. Assim, haveria uma posição política – ou

71
pré-teórica – subjacente, que contamina inevitavelmente a perspectiva masculina.
Essa crítica, com suas variantes, constituiu um dos tropos fundamentais da crítica
feminista a Freud (IANNINI e TAVARES, 2016, p. 211).

Em seus primeiros textos, Horney atribui o referencial masculino da psicanálise no


tratamento da sexualidade feminina, ao caráter patriarcal da sociedade. Sendo assim,
conceitos centrais para o pensamento freudiano são relativizados, e até mesmo
abandonados. No contexto de efervescência dos debates em torno da sexualidade
feminina nas sociedades psicanalíticas da época, a intenção de Horney parece ser a
construção de sua própria teoria sobre sexualidade feminina a partir da psicanálise
(Amorim, 2021). Nesse período, Horney se torna, segundo Prates (2001), uma das
maiores opositoras às proposições freudianas acerca da sexualidade feminina e
feminilidade, com foco principal na crítica à noção de inveja do pênis.
Em sua argumentação, Horney se volta criticamente para as concepções teóricas
de inveja do pênis, da fase fálica da sexualidade infantil, do complexo de castração
feminino e complexo de masculinidade, e também de masoquismo feminino - com foco
principal no conceito de inveja do pênis, e na proposição do complexo de castração como
fase normal do desenvolvimento feminino. Ambos, inveja do pênis e complexo de
castração, não são tomados por ela como eventos típicos do desenvolvimento da
sexualidade feminina e entendidos como eventos de ordem constitucional, como
propunham Freud e Abraham, mas sim como resultado de experiências particulares
(Prates, 2001).
Na leitura de Person e Ovesey (1999), em seus trabalhos iniciais sobre
sexualidade feminina e feminilidade, Horney discorda das proposições freudianas em três
principais pontos, que estão inter-relacionados. O primeiro é o motivo da menina
abandonar a mãe pelo pai, pois, para Freud, a menina se volta ao pai procurando o pênis
que lhe foi negado pela mãe, enquanto Horney atribui a escolha do objeto heterossexual à
feminilidade inata, fundada na noção biológica do sexo feminino e na consciência da
vagina, e não na frustração pela falta de um pênis. A reivindicação de uma feminilidade e
escolha de objeto heterossexual inatas estava ligada à Biologia e à consciência que a
menina tem de sua vagina, o que se relaciona ao segundo ponto identificado pelos
autores, que é a a natureza da consciência genital do sexo feminino.
Horney sustentava que a menina tinha consciência da vagina, enquanto Freud se
centrava no caráter fálico do clitóris e explicava sua renúncia a ele como consequência da

72
inveja do pênis: “Na visão de Horney, a principal preocupação da menina era com o que
ela possuía, não com o que ela não tinha” (PERSON & OVESEY, 1999, p. 129). Segundo
os autores, a gênese da inveja do pênis é o terceiro ponto de discordância entre Freud e
Horney. Embora concorde com Freud acerca da inveja do pênis nas meninas e na análise
de mulheres adultas, Horney explica suas origens de maneira diversa - esta inveja não
era a causa da menina se voltar ao pai, e sim resultado de uma fuga defensiva de desejos
libidinais edípicos. Prates (2001) acrescenta que outros pontos fortemente criticados por
Horney em Freud são o masoquismo feminino, que ela tematiza diretamente em um artigo
de 1935, e o narcisismo manifesto na importância que as mulheres dão à perda de amor,
tematizado em 1934.
O debate direto com a teoria freudiana passa a ser construído desde sua primeira
publicação, em 1923, primeiramente apresentada no 7º Congresso Internacional de
Psicanálise, de 1922, e que pode ser considerada uma resposta às proposições de
Abraham sobre o complexo de castração feminino, defendidas no Congresso
Internacional de Psicanálise do ano anterior, e citadas por ela. Em Formas de
manifestação do complexo da castração feminino (1921), texto considerado por Freud
insuperável em Sexualidade feminina (1931), Abraham argumenta que o desejo de
possuir um pênis estaria sempre presente nas mulheres, devido ao fato da menina
relacionar a ausência de pênis à castração, a partir da fantasia de anteriormente ter
possuído um pênis, que lhe foi retirado. Nessa perspectiva, o genital feminino seria visto
como uma ferida que simboliza essa perda, e o sentimento de ter sido escamoteada a
levaria a um desejo de vingança com relação aos homens. Para Abraham, as
possibilidades que se apresentariam seriam, então: o desenvolvimento normal, com a
sublimação deste desejo; a incapacidade de adaptação completa ao papel feminino; ou a
homossexualidade (Amorim, 2021).
Em A gênese do complexo de castração nas mulheres (1923), Horney
problematiza a centralidade da inveja do pênis enquanto sustentação do complexo de
castração nas mulheres. Ela questiona a afirmação de Abraham de que as mulheres se
sentem em desvantagem por razões genitais, e, assim, recusa a atribuição de uma
superioridade natural ao pênis (Prates, 2001). Horney argumenta que o complexo de
castração nas mulheres não deve ser compreendido como resultado natural da diferença
anatômica, mas como resultante de outros fatores, particulares da vivência infantil da
menina, especialmente da relação entre pai e filha.

73
A partir de observações sobre casos clínicos, Horney conclui que a inveja do pênis
é um evento secundário e complicador do desenvolvimento da mulher, e que o seu
sentimento de desvantagem estaria mais baseado nas possibilidades de gratificação
social que os meninos adquirem durante a infância, em comparação às meninas. Assim,
Horney reconhece a ocorrência da inveja do pênis, mas propõe seu caráter de formação
secundária, relativizando sua importância psíquica na constituição da feminilidade, em
comparação à proposição de Freud. Em suma, sua crítica se volta, principalmente, para

"o fato de a etiologia de todos os sintomas neuróticos das mulheres ser atribuída a essa
inveja. Embora reconheça que o fenômeno apareça na clínica, atribui sua existência, ao
contrário de Abraham, a fatores culturais e não constitucionais" (PRATES, 2001, p. 50).
Importante observar como Freud publica A organização genital infantil no início do
ano de 1923, ano seguinte à apresentação de Horney no Congresso de Psicanálise, e,
em 1925, dois anos depois, publica Algumas consequências psíquicas da diferença
anatômica entre os sexos, de forma que este artigo de 1925 pode ser lido como uma
possível resposta ao de Horney. Nele, Freud parece desconsiderar as contribuições
apresentadas pela autora sobre os complexos de castração e de masculinidade em sua
publicação, apesar de ter presidido a mesa na qual ela primeiro o apresentou. Em sua
publicação de 1925, Freud apenas menciona seu trabalho apenas superficialmente,
conjuntamente às de autores como Abraham e Deutsch, que possuem aproximações com
a teoria freudiana da feminilidade, enquanto Horney apresenta uma proposta mais
contundente, de reformulação das proposições freudianas (Amorim, 2021).
Em um primeiro momento de suas considerações sobre a diferença sexual,
principalmente em seus textos na década de 2011, Freud apresenta o complexo de Édipo
na menina como o contrário do menino, pois enquanto o complexo de Édipo do menino
sucumbe ao complexo de castração, o da menina é possibilitado e introduzido por ele.
Nesse momento de sua obra, é significativa a relevância da diferença sexual anatômica
no entendimento da posição feminina e masculina, no que ele aponta o complexo de
Édipo como fenômeno fundamental no desenvolvimento da sexualidade, e a primazia
fálica como ponto crucial para a estruturação sexual de ambos os sexos. A função fálica
opera como organizadora da sexualidade feminina, à medida que será pelo desejo de ter

11
Através de publicações como A organização genital infantil: uma interpolação na teoria da sexualidade
(1923), Dissolução do complexo de Édipo (1924) e Algumas consequências psíquicas da diferença
anatômica (1925).

74
um falo que se processará o acesso à feminilidade, mas apenas se o desejo por ter um
falo for substituído pelo de ter um filho do pai, que marca a entrada da menina no Édipo.
Em suma, a feminilidade só poderia ser alcançada pela mulher a partir do seu sentimento
de inveja do pênis, que faz com que a menina entre na triangulação edípica, e inicie seu
longo caminho em direção à feminilidade. A feminilidade se torna derivada da castração, e
a falta fálica incita a mulher a se voltar para o amor de um homem. Nota-se como, nesse
período, para Freud, o acesso à feminilidade ainda está muito ligado à questão
reprodutiva – a possibilidade de gerar um filho, associando fortemente a posição da
mulher à posição de mãe (Verceze e Cordeiro, 2019).
De maneira geral, em meio à controvérsia quanto à primazia fálica na estruturação
sexual, que marcou os debates psicanalíticos de 1920 e 1930, os argumentos de Horney
constroem uma posição bastante distinta da de Freud (Bonfim, 2011). Em A fuga da
feminilidade (1926), e Feminilidade inibida (1927), por exemplo, posteriores aos artigos de
Freud sobre o tema na década de 1920, Horney argumenta que o papel extremamente
relevante das mulheres no processo reprodutivo é ignorado nas elaborações freudianas, e
defende uma expressão psíquica do potencial anátomo-biológico das mulheres para
maternidade. Em sua crítica ao sentimento de inferioridade decorrente da percepção da
diferença anatômica nas mulheres, e à suposta superioridade biológica ligada à posse do
pênis, ela argumenta a favor de uma superioridade biológica feminina, relativa a seu papel
na reprodução. Como argumenta Prates (2001): “Horney não concorda com a afirmação
de que a inveja do pênis é a causa da insatisfação feminina com seu sexo, pois considera
a estrutura anatômica feminina de grande importância para o seu desenvolvimento” (p.
49).
Em A fuga da feminilidade (1926), Horney procura demonstrar que a organização
psíquica de meninas não se dá exclusivamente em razão da inveja do pênis, e separa
duas fontes de material clínico sobre o complexo de masculinidade. A primeira é advinda
da observação de meninas pequenas, que possuem uma inveja do pênis que ela
considera primária, ligada à observação dos privilégios do menino na relação com o
erotismo uretral e o onanismo. A segunda é da clínica de mulheres adultas, nas quais se
observa o poder dinâmico da inveja do pênis, mas enquanto uma formação secundária,
que carrega tudo aquilo que fracassou no desenvolvimento da feminilidade, portanto não
ligada à inveja do pênis primária.

75
Ela propõe o termo inveja do pênis primária para o fenômeno infantil, associado às
desvantagens da menina no que diz respeito a seus impulsos escopofílicos, onanistas e
de erotismo uretral em comparação com os meninos; e secundária, para o desejo de ser
homem relatado por mulheres adultas, que implica em um afastamento da feminilidade,
que não depende exclusivamente da inveja primária do pênis, mas também de uma
ansiedade genital feminina (Amorim, 2021). Ela introduz pela primeira vez a possibilidade
da ocorrência de sensações vaginais durante o desenvolvimento genital da menina, que
considera, nesse momento, de difícil precisão. Para a autora, a ocorrência de fantasias
edípicas de meninas sobre a penetração forçada durante a infância, e o medo de uma
ferida interna, são indicadores de que a vagina possui papel na organização genital
infantil da mulher, assim como o clitóris. A ansiedade genital feminina, que remete às
fantasias de penetração, advinda da culpa pelos desejos incestuosos pelo pai, levaria a
menina a se refugiar em um papel masculino fictício de maneira mais expressiva do que a
inveja do pênis.
Importante recuperar a posição freudiana sobre o complexo de masculinidade, que
tem relação com o complexo de Édipo, e uma das três possíveis saídas da mulher frente
à castração. A primeira, a feminilidade, na qual há o abandono da masturbação
clitoridiana e renúncia à atividade, alinhada à posição masculina, portanto a passividade
se torna dominante, e ocorre uma virada em direção ao pai, movida inicialmente pelo
desejo de obter dele um pênis, que depois é deslocado para ter um filho. A segunda, a
renúncia geral da vida erótica, na qual a descoberta da castração materna faz a menina
abandonar a mãe como objeto de amor, ou seja, faz com que a menina ressignifique sua
falta de pênis como uma falta com relação à mãe. Finalmente, a terceira, o complexo de
masculinidade, no qual mantém atividade clitoridiana, se identifica com a mãe fálica e com
o pai (Freud, 1931; 1933).
Horney procura enfatizar a necessidade de uma revisão da teoria sobre
feminilidade e sexualidade feminina, e demonstrar alguns desdobramentos possíveis de
uma mudança de perspectiva. Como é o caso de sua problematização acerca da
centralidade atribuída pela teoria freudiana à diferença genital anatômica, ao passo que
outras diferenças biológicas, como a reprodução, são menosprezadas. Iannini e Tavares
(2018) apontam como A Feminilidade, texto freudiano de 1931, parece ser uma resposta
ao tipo de proposta de Horney, principalmente acerca da relação entre a inveja do pênis e
complexo de castração nas mulheres.

76
Os autores consideram que este texto pode ser lido como um prolongamento
daquilo que havia sido esboçado em Algumas consequências psíquicas da distinção
anatômica entre os sexos (1925), principalmente devido à mencionada repercussão e
recepção crítica entre psicanalistas, principalmente da vertente inglesa, na qual é
localizada a produção de Horney. O texto de 1931 demonstra que Freud estava atento a
esse debate, pois nele reconhece a importância da fase pré-edípica, e também comenta
os trabalhos de autores que o criticam, sem abrir mão de suas prerrogativas: não existe
uma fase fálica exclusiva das meninas, e o falo tem papel central em ambos os sexos
(Cossi, 2016).
No artigo de 1931, Sobre sexualidade feminina, Freud menciona a produção de
Abraham, Deutsch, Fenichel, Klein e Lampl-De Groot, além de Horney, e reconhece que
seu próprio trabalho é apenas uma das contribuições ao tema. Strachey (2016) destaca o
tipo de tratamento que ele dá à apresentação desses trabalhos, como se fossem
produções que surgiram espontaneamente, e não como reações a seu artigo de 1925, ao
qual ele não faz nenhuma referência ao longo do texto. Freud se posiciona criticamente
frente ao trabalho de Horney, que considera reduzir a importância dos impulsos libidinais
primordiais da criança, em favor de processos de desenvolvimento posteriores. Ele
argumenta que, em Fuga da feminilidade (1926), Horney considera que a inveja primária
do pênis é muito superestimada, e atribui a intensidade do empenho por masculinidade
exibido depois a uma inveja do pênis secundária, utilizada pela garota para defender-se
dos impulsos femininos, em especial da ligação feminina ao pai. Ele discorda, colocando
que

Sem dúvida, é correto que existe oposição entre a ligação ao pai e o complexo da
masculinidade — trata-se da oposição geral entre atividade e passividade,
masculinidade e feminilidade —, mas isso não nos dá direito a supor que um é
primário e o outro deve sua força apenas à defesa. E se a defesa contra a
feminilidade se mostra tão enérgica, de onde pode ela retirar sua força se não do
empenho por masculinidade, que teve sua primeira expressão na inveja do pênis
por parte da menina e, por isso, merece receber tal denominação? (FREUD, 1931,
p. 220).

Ou seja, como coloca Amorim (2021), para Freud, ao propor que o ‘complexo de
masculinidade’ não era determinado unicamente pela inveja primária do pênis, Horney
estaria reduzindo a importância dos primeiros impulsos libidinais, lhes relegando a um
papel de apenas direcionamento da libido. Para a autora, no entanto:

77
Horney não estava minimizando a importância das primeiras experiências infantis.
Na verdade, o que a autora sugere é que tais experiências, longe de serem
concebidas como um todo organizado e dotado de sentido estabelecido – como a
inveja do pênis levando ao complexo de masculinidade -, eram muito mais parciais
do que os psicanalistas acreditavam e que se misturavam a aspectos culturais
muito mais cedo do que Freud estava disposto a admitir (AMORIM, 2021, p. 99)

Em Feminilidade (1933), que mantém forte relação com o texto de 1931, Freud
mais uma vez reafirma sua teoria final do desenvolvimento feminino. Ao final deste texto,
Freud menciona as contribuições de algumas autoras na construção das ideias
apresentadas: Ruth Mack Brunswick, Jeanne Lampl-de Groot, Helene Deutsch. Embora
não mencione Horney, é possível notar que Freud faz algumas afirmações que remetem
às proposições da autora em seus artigos da década anterior, tais como: de que “há
também alguns relatos isolados de sensações vaginais precoces, mas não poderia ser
fácil distingui-las de sensações no ânus ou no vestíbulo; de qualquer maneira, não podem
ter muita importância” (FREUD, 1933, p. 271); ou que a frigidez sexual da mulher ainda
era um fenômeno mal compreendido, sem mencionar as contribuições de Horney sobre o
tema em 1927; ou mesmo que

não se pode duvidar muito da importância da inveja do pênis (...). Em vários


analistas, porém, nota-se uma inclinação a diminuir a importância daquela primeira
onda de inveja do pênis na fase fálica. Eles opinam que o que se acha dessa
atitude na mulher seria, no principal, uma formação secundária que surgiu por
ocasião de conflitos posteriores, mediante regressão àquele impulso da primeira
infância (FREUD, 1933, p. 281).

Freud (1933) discorda dessa perspectiva, considerando que esse argumento


aponta para a questão do quanto as atitudes consideradas patológicas advém das
fixações da primeira infância, e o quanto advém de vivências posteriores. Ele afirma que
são, em geral, complementares, e que, “quanto à inveja do pênis, favoreço decididamente
a preponderância do fator infantil” (1933, p. 281). Amorim (2021) considera que nessa
publicação Freud desmente12 as observações de Horney em artigos anteriores, e chama
atenção para o fato dela publicar, no mesmo ano, A negação da vagina (1933).
Em contraposição à primazia fálica freudiana, e na tentativa de evitar assumir um
ponto de vista masculino para discutir a sexualidade feminina, tal como criticava em seus

12
Em sua tese, Karen Horney, o feminismo e a feminilidade: um desmentido na história da psicanálise,
Amorim (2021) faz uso de conceituações ferenczianas sobre o trauma para sustentar que a obra de Horney
pode ser lida como um desmentido na história da psicanálise, devido à sua ausência na transmissão sobre
os debates em torno da sexualidade feminina, e na intersecção entre psicanálise e feminismos, apesar da
relevância de suas contribuições.

78
contemporâneos, Horney buscou aquilo específico da mulher (Iannini e Tavares, 2018).
Luce Irigaray (2017) entende as proposições de Horney enquanto uma inversão da
perspectiva freudiana do desenvolvimento sexual feminino, na qual a interpretação da
relação que a mulher estabelece com seu sexo é expressivamente modificada. Horney
defende primeiramente o reconhecimento da vagina no desenvolvimento sexual infantil
em seu artigo A fuga da feminilidade (1926), mas discorre sobre o tema de forma mais
aprofundada em A negação da vagina (1933).
Seus principais argumentos são suas observações clínicas da ocorrência de
fantasias de penetração em pacientes mulheres, e as observações de Josine Müller, que
apontam para a ocorrência de sensações vaginais em meninas pequenas, que indicam
que a vagina já era percebida e utilizada em práticas masturbatórias desde muito cedo,
tão frequentemente quanto o clitóris - o que vai contra a fundamentação freudiana acerca
do desconhecimento da vagina e da primazia fálica. Tanto Müller, quanto Horney,
consideram que ocorre uma posterior negação da vagina, enquanto uma defesa dos
ataques inconscientes contra a mãe, tomada como rival nesse momento. Nessa
perspetiva, se considera que o interesse libidinal da menina é dirigido desde o início, ao
pai, e a sensibilidade da vagina seria recalcada devido ao temor da possível punição
pelas fantasias com o pai. Assim, ao contrário daquilo que propõe Freud, a fase fálica na
menina seria secundária e não teria como destino, necessariamente, a inveja do pênis
(Prates, 2001). Horney afirma:

a hipótese de sexualidade primária fálica traz consigo importantes consequências


para toda a nossa concepção de sexualidade feminina. Se admitirmos que existe a
sexualidade primária vaginal, especificamente feminina, a hipótese anterior, se não
for excluída, será, no mínimo, tão drasticamente restrita que estas consequências
tornam-se bastante problemáticas (HORNEY, 1991 [1933], p. 158).

Em A negação da vagina (1933), Horney comenta as proposições reafirmadas por


Freud em seu texto de 1931, como a primazia fálica e a fase fálica do desenvolvimento
sexual, a partir de suas próprias observações clínicas. Ela afirma: "Desde o início, senti
dificuldade em harmonizar estas impressões com a visão de Freud quanto à tendência
masculina inicial da sexualidade das meninas" (p. 148). A masturbação vaginal, em sua
perspectiva, antecede a clitoridiana, que será só depois desenvolvida, dado que devido às
angústias que gera na menina, a vagina antes descoberta, é posteriormente negada.

79
Horney aponta que é a angústia genital ligada ao conhecimento da existência da vagina,
que a leva a sucumbir à repressão.
Considerando a centralidade da noção de desconhecimento da vagina para a
concepção freudiana de centramento no caráter fálico do clitóris - e consequentemente
um sentimento de desvantagem por parte das mulheres -, Horney defende que a partir do
reconhecimento de que a menina experimenta sensações vaginais, ela adquire senso do
caráter de seu papel sexual, o que torna difícil responsabilizar a inveja primária do pênis,
tal como o fez Freud. Nessa argumentação, ela acaba por afirmar a diferença sexual em
bases biológicas, atreladas ao papel na reprodução.
Ela critica novamente a centralidade da inveja do pênis na constituição do
psiquismo das mulheres, mas, neste momento, a partir da contraposição à noção de
inveja da maternidade, que desempenharia, de acordo com suas observações, um papel
mais importante no desenvolvimento sexual masculino do que era reconhecido até então.
Para Amorim (2021), em sua reformulação da teoria sobre sexualidade feminina, Horney
procura compreender desenvolvimento sexual da menina em seus próprios termos, e não
enquanto paralelo ou negativo do masculino, o que é expresso a partir de sua inclusão da
zona vaginal, e também da dimensão relacional e cultural em suas teorizações. Segundo
a autora,
Ela propõe novas formas de entender-se tanto o Complexo de Édipo feminino na
infância até suas reverberações na vida adulta, dando outro sentido aos sintomas
apresentados por mulheres a partir dessa nova perspectiva de análise, somada à
observação dos efeitos do androcentrismo nas mulheres (AMORIM, 2021, p.
72-73).

Amorim e Belo (2020) apontam como, ao mesmo tempo, nesse artigo, Horney já se
encontra mais próxima de concepções consideradas mais culturalistas. Em diferentes
artigos de Psicologia feminina (1991), desde A gênese do complexo de castração (1923),
as construções teóricas de Horney tem como marca a articulação de fatores culturais na
determinação do que se entende por sexualidade feminina, juntamente à crítica à sua
sustentação em referenciais e parâmetros masculinos. É bastante significativa a
relevância atribuída por Horney à dimensão relacional e, principalmente, à influência de
fatores culturais e da estrutura social no desenvolvimento psíquico ao longo de toda sua
obra, aspecto pelo qual esta é mais reconhecida. Em diferentes artigos, ela estabelece
diálogos com autores da Sociologia, como Georg Simmel, e também da Antropologia,
como Margaret Mead, para construção de argumentos a favor da importância da

80
consideração dos fatores exógenos, culturais e sociais no desenvolvimento psíquico e
sexual feminino.
Irigaray (2017) aponta como a partir de 1932, Horney se afasta ainda mais do
embate com as teses freudianas, e se liga mais aos determinantes socioculturais para
explicar os caracteres ditos específicos da sexualidade feminina. A ida da Alemanha para
os Estados Unidos, no ano de 1932, que levou ao encontro com outra cultura e outros
campos de conhecimento, como o momento a partir do qual Horney passou a dar cada
vez mais relevância para o lugar da cultura na constituição psíquica e para a diferença
sexual. Sayers (1992) argumenta que até o momento de sua mudança para os Estados
Unidos, Horney encarava a identificação da mulher com a maternalização, e a inveja dela
nos homens, como essencialmente inatas. A partir desse momento chamou particular
atenção para a pressão social sobre os pais e seus efeitos nocivos para os filhos.
Em 1934, Horney saiu de Chicago e se mudou para Nova York, e em maio de 1935
foi eleita membro da Sociedade Psicanalítica de Nova York. Sayers (1992) aponta que
Horney, no mesmo período, também aceitou o convite para lecionar na Nova Escola de
Pesquisas Sociais, que havia aberto recentemente uma Universidade no Exílio para
acadêmicos alemães ameaçados pelo regime nazista, como Paul Tillich, Hannah Arendt,
onde também outros psicanalistas já haviam sido professores visitantes, como Adler,
Rank e Ferenczi. Sua participação neste instituto multidisciplinar de estudos em Ciências
Sociais pode também, segundo Silva (2021), ter influenciado os rumos de sua produção.
Em suas considerações em O masoquismo feminino (1935), por exemplo, fica
explícito o uso que Horney faz de fatores de ordem social e cultural para explicar aquilo
que observava em sua clínica (Prates, 2001). Ela explora a temática do masoquismo
feminino, proposto e discutido por Freud principalmente em O problema econômico do
masoquismo (1924), e retomado em Feminidade (1933), a partir da consideração do
caráter cultural, social, e também da singularidade do fenômeno, reafirmando mais uma
vez a interação entre psiquismo e fatores socioculturais.
Em O masoquismo feminino (1935), Horney confronta hipóteses derivadas da
teoria freudiana, como a de maior ocorrência do masoquismo em mulheres devido à uma
essência feminina, ou a do masoquismo feminino como consequência da diferença sexual
anatômica. Ela afirma que alguns autores, como Sandor Rado e Helene Deutsch,
exageram na supervalorização da importância de fatores anatômicos, fisiológicos e
psíquicos no problema do masoquismo feminino, e que este não pode ser relacionado

81
apenas a esses fatores, mas também à incidência da organização social e cultural.
Horney procura estimular a pesquisa de antropólogos sobre o masoquismo feminino, e
assim oferece algumas diretrizes para que possam procurar informações sobre a
presença de tendências masoquistas em homens e mulheres em diferentes culturas, de
forma a fundamentar a concepção masoquista do papel feminino sustentada pela
psicanálise em todas as circunstâncias sociais. Ela relaciona, ainda, a falha da psicanálise
em explicar questões da psicologia feminina à desconsideração de fatores culturais e
sociais, ou seja, à exclusão de mulheres que vivem em diferentes culturas.
Horney oferece aos antropólogos dados psicológicos obtidos através do processo
analítico, por meio do qual se tornam acessíveis as tendências e satisfações masoquistas
inconscientes. Ela aponta listas, tanto de indícios de manifestações masoquistas nas
funções femininas, quanto na comparação entre homens e mulheres, assim como elenca
os fatores causais que predispõem o surgimento do masoquismo em mulheres. Enquanto
indícios das manifestações masoquistas nas funções femininas, ela aponta a frequência
de distúrbios na menstruação, na gravidez e no parto, e a representação de degradação
ou exploração das mulheres na relação sexual. Sobre a observação da frequência de
manifestações masoquistas comparativamente entre homens e mulheres, ela resume em
cinco principais pontos: inibições na expressão de exigências; visão de si como alguém
inferior, de forma a exigir considerações baseadas nisso; dependência emocional em
relação ao outro sexo; tendências à submissão; e uso do desamparo como forma de
cortejar. Enquanto fatores causais que predispõe o surgimento do masoquismo feminino,
ela menciona o bloqueio de formas de liberar a sexualidade e comunicação; a restrição ao
número de filhos; a consideração da mulher enquanto ser inferior; dependência
econômica de homens e família; a limitação a certas esferas da vida; e a competição
sexual entre mulheres.
Em sua argumentação, é possível observar aquilo que Sayers (1992) indica, que
Horney, nesse período,

continuava a adotar as ideias de Freud - pelo menos no tocante à associação livre,


à transferência, à contratransferência e assim por diante. Ao mesmo tempo,
complementava-as com uma atenção voltada para defesas caracterológicas (...). A
essa altura [1935], ela insistia em começar a terapia a partir desses traços de
caráter, e não de suas supostas causas infantis inconscientes (SAYERS, 1992, p.
110).

82
Em suas considerações sobre a influência de fatores sociais e culturais no
desenvolvimento sexual e psíquico feminino, Horney também tematiza instituições e
circunstâncias culturais que, em sua concepção, contribuem para a manutenção de
determinada identidade feminina, como a monogamia - que ela discute O ideal
monogâmico, de 1927 -, ou o casamento - Os problemas no casamento, de 1932. Em O
ideal monogâmico (1927), por exemplo, Horney procura explicar o ciúme pela via do
desejo infantil de incorporação do objeto - desejo de monopólio do pai e da mãe -,
atribuindo maior desejo do que os meninos, devido à realização parcial na amamentação,
não vivida pelas meninas em relação ao pai. Em Os problemas no casamento (1932),
Horney aponta para incompatibilidade entre a instituição do casamento e a monogamia,
de um lado, e, por outro, a dinâmica pulsional inconsciente, ao mesmo tempo em que
discute como as questões inconscientes condicionam a opção pela monogamia, bem
como a escolha de parceiros.
De maneira semelhante, em A desconfiança entre os sexos (1931), Horney
investiga as razões psicológicas da desconfiança nas relações e no casamento, o que ela
associa à hostilidade, e à intensidade dos afetos, o que leva a projetá-los no parceiro. Ela
aborda a maneira com que os conflitos da infância afetam o relacionamento na vida
adulta, e sugere a existência de uma desconfiança dos homens em relação às mulheres
calcada no ressentimento e na inveja, relativos ao papel da mulher na reprodução,
expresso em defesas contra a ameaça da invasão feminina dos seus domínios, que leva
à tendência a desvalorizar a gravidez e o parto e a enfatizar excessivamente o genital
masculino.
É importante apontar, tal como sustentam Amorim e Belo (2020), que Horney,
apesar de apresentar uma perspectiva crítica sobre relacionamentos amorosos,
casamento e monogamia, e sobre a influência dessas instituções e da dimensão social e
cultural na dinâmica psíquica feminina, frequentemente utiliza argumentações com base
em biologizações heteronormativas, que tomam a feminilidade e a masculinidade como
inatas. Amorim (2021) considera que, apesar de seus questionamentos sobre hierarquia
sexual, Horney não questiona o dualismo presente em seus termos, e, alinhada à tradição
dos movimentos de lutas feministas de sua época, vai no sentido de afirmar a positividade
do feminino segundo suas diferenças, como a gravidez e o aparelho sexual. A autora
aponta para a importância de atentar, na leitura de Horney, para esse tipo de abordagem

83
essencialista, que baseia sua concepção de feminilidade em um corpo hetero e cis, e
assim deixa à margem outras formas de subjetivação.
Garrison (1981) considera que o trabalho de Horney sobre sexualidade feminina
está fundado sob duas suposições que se tornaram bastante questionáveis. A primeira é
um princípio de heterossexualidade primária inata, com bases biológicas, o que não está
presente em Freud, por exemplo. A segunda é sua crença no desejo inato de mulheres
pela maternidade, para a autora um ponto no qual Horney se apoia em um determinismo
biológico para a construção de seus argumentos. Horney se vale também da Biologia
para ir contra a noção de inveja do pênis, pois, em sua contestação da tese freudiana de
que a vagina é desconhecida pela menina até a puberdade, e sugestão de que ela
desempenha um papel sexual no desenvolvimento infantil, Horney retoma uma certa
naturalização e paralelismo da sexualidade.
Em seus artigos sobre a feminilidade, principalmente aqueles publicados após
Sobre sexualidade feminina (1931), de Freud, Horney enfatiza a importância psíquica dos
processos fisiológicos e da anatomia feminina do ponto de vista clínico, tal como em A
tensão pré-menstrual, de 1931, Fatores psicogênicos nos distúrbios funcionais femininos,
de 1932, e A negação da vagina, de 1933. Em seu artigo de 1931, por exemplo, a autora
argumenta a favor do reconhecimento dos processos fisiológicos específicos do aparelho
genital feminino como decisivos na economia libidinal de mulheres; e também discorre
sobre a correlação entre algumas atitudes da vida psicossexual e alguns distúrbios
genitais, assim como apresenta sua base para compreensão de distúrbio funcional
menstrual (Amorim, 2021). Horney oferece a hipótese de que as diferentes tensões
sentidas pelas mulheres são diretamente promovidas pelo processo psicológico de
preparação para a gravidez. Quando estas tensões estão presentes, a mulher se antecipa
em conflitos envolvendo o desejo por uma criança, que Horney defende como biológico,
instintual e primordial, em meio à sua construção de sua crítica de que a maternidade
representa um problema mais relevante para o psiquismo da mulher do que Freud
assume.
Amorim (2021) destaca como, apesar dos esforços de Horney, entre outros
autores, para revisão da teoria da sexualidade feminina, Freud realizou apenas algumas
reformulações em suas proposições, e manteve seu posicionamento sobre a constituição
da mulher em relação ao homem. Pode-se dizer que do debate em torno da sexualidade
feminina na década de 1920, preponderaram as ideias freudianas expressas em

84
Sexualidade feminina, de 1931: “A inveja do pênis foi a resposta final de Freud à questão
da constituição da feminilidade, apesar de Horney ter seguido com suas publicações
sobre a constituição feminina até 1935” (p. 73).
Dentre as possíveis razões para subalternização em que são colocadas as
contribuições de Horney, dentre outras psicanalistas, Amorim e Belo (2020) reconhecem a
composição majoritariamente masculina dos meios psicanalíticos da época, ao mesmo
tempo em que também apontam para o caráter polêmico e conflitivo das proposições de
Horney sobre a teoria freudiana clássica, tais como a negação da vagina, o caráter de
formação secundária da inveja do pênis e o complexo de castração, e o enfoque
culturalista de suas explicações. Como coloca Luce Irigaray (2017):

Freud permanecerá sempre desfavorável às tentativas de Karen Horney, Melanie


Klein e Ernest Jones de elaborar hipóteses sobre a sexualidade feminina um pouco
menos dominadas pela 'inveja do pênis'. Não há dúvida de que ele enxergava aí,
além da situação desagradável de se ver criticado pelos seus alunos, o risco de que
fosse posto em xeque o complexo feminino de castração, tal como ele havia
definido (IRIGARAY, 2017, p. 60).

Dee Garrison (1981) afirma que as provocações de Horney são um ato corajoso,
que impulsionou a teoria psicanalítica, no entanto, considera um tanto irônico que
algumas feministas procurem em sua obra as evidências das origens sociais da
feminilidade, considerando sua análise atrelada à Biologia, e no fato de deixar de
questionar os propósitos políticos e econômicos dos papéis masculino e feminino. No
mesmo sentido, Larissa Silva (2021) argumenta que:

por mais que tenha feito questionamentos revolucionários para a psicanálise,


contudo, Horney também se sustentou em noções essencialistas e normativas para
algumas proposições, principalmente aquelas datadas do início da década de 1920.
É o caso, por exemplo, de sua afirmação de que a feminilidade específica partiria
de um desejo pelo pai enquanto genitor do sexo oposto, o que aporta consigo
atravessamentos cisheteronormativos (SILVA, 2021, p. 39).

Enquanto para Silva (2021), a crítica de Karen Horney à psicanálise não a leva a
abandoná-la, e sim tem como intuito a construção de outras perspectivas dentro do
campo, que pudessem abrir mão de premissas baseadas em preconceitos sociais, na
leitura de Bonfim (2011), em sua tentativa de trazer para a psicanálise discussões sobre
aspectos sociais e culturais, as construções de Horney muitas vezes vão contra a própria
psicanálise. Para a autora, elas chegam ao ponto de desconsiderar a lógica inconsciente,

85
e assim se distanciam do campo psicanalítico, se aproximando mais de teorias
culturalistas.
Após a publicação dos artigos de 1935 - O masoquismo feminino e Mudanças de
personalidade nas adolescentes -, Horney mudou o enfoque de sua argumentação e
deixou de se centrar na temática da sexualidade feminina. Ela gradativamente
desenvolveu uma nova perspectiva em relação à neurose, não mais se atendo apenas às
questões de gênero, mas sim buscando considerar os efeitos culturais no
desenvolvimento dos mais diversos tipos de adoecimento (Garrison, 1981). Publicou
Cultura e Neurose (1936), A personalidade neurótica do nosso tempo (1937), que obteve
ainda algum sucesso no meio psicanalítico de Nova York. A partir da publicação Novos
rumos da psicanálise (1939), Horney rompeu de maneira mais profunda com o
pensamento freudiano, o que gerou grandes críticas e conflitos com a sociedade
psicanalítica, e a levou a ser demovida do Instituto Psicanalítico de Nova York, em 1941.
Suas últimas publicações foram em 1942, Self-analysis; três anos depois, em 1945, Our
Inner Conflicts; e em 1950, Neurose e desenvolvimento humano.

86
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A obra de Karen Horney sobre o tema da sexualidade feminina em psicanálise é


vasta. Inclui diversos artigos escritos ao longo de treze anos, em um período no qual a
autora viveu tanto na Alemanha, em Berlim - onde participou ativamente dos círculos
psicanalíticos da época, de Congressos Internacionais de Psicanálise, e da criação da
Policlínica de Berlim -, quanto em Chicago e Nova York, nos Estados Unidos. Sua ênfase
em questões relativas à sexualidade feminina, oriundas de indagações a partir da própria
clínica com mulheres, assim como suas proposições críticas à produção freudiana sobre a
mesma temática, atravessaram grande parte de sua obra, desde a primeira publicação
em 1923 até 1935, sendo sua morte em 1952.
Foi possível observar, ao longo da realização da pesquisa e análise, o intenso
diálogo que Horney estabelece com Freud, e o quanto os textos de ambos se
referenciaram direta e indiretamente, assim como foram publicados praticamente nos
mesmos anos, ao longo de uma década. A partir de uma aproximação dos discursos
sobre sexualidade feminina em Freud e Horney, esta pesquisa procurou destacar suas
semelhanças e diferenças em meio aos debates sobre essa temática nas décadas de
1920 e 1930. Com isso, buscou-se reconhecer as contribuições de Karen Horney nesse
contexto, que são pouco difundidas no Brasil, e localizá-las historicamente em relação às
primeiras articulações entre a psicanálise e os movimentos feministas, naquela época.
Diante da leitura de quinze de seus artigos em Psicologia Feminina (1991), centrados em
temáticas ligadas à sexualidade feminina e femilidade, em contraposição à leitura de
textos freudianos sobre a mesma temática, foi possível, tal como observa Silva (2019),
"reparar nas torções que Karen Horney produz a partir da leitura de Freud, partindo
muitas vezes do mesmo conceito, ou fenômeno, para produzir uma explicação
metapsicológica completamente diversa (p. 38).
As principais proposições críticas de Horney à Freud, identificadas a partir de uma
leitura exegética dos textos dos dois autores e discutidas na análise, estão centradas: na
crítica ao referencial masculino adotado pela psicanálise na elaboração de conceitos e
formulações fundamentais sobre a sexualidade feminina, como de inveja do pênis e
primazia fálica, entre outros; a construção de um outro modelo para sexualidade feminina,
que, se posicionando criticamente à Freud, enfatiza a representação da vagina, a
anatomia feminina e a maternidade, e portanto se apoia na Biologia e em noções inatas

87
de feminilidade e heterossexualidade; e, finalmente, na desconsideração de fatores
sociais e culturais para a compreensão dos fenômenos psíquicos da sexualidade
feminina, e da clínica psicanalítica com mulheres.
Horney compartilhou com outros autores contemporâneos a problematização
acerca da sexualidade feminina, da primazia fálica e da diferença sexual, lembrando que,
como comentado anteriormente, o período das décadas de 1920 e 1930 foi marcado pela
intensa discussão nos meios psicanalíticos sobre essa temática. Para Lacan, foi um
período de furor na psicanálise, e, possivelmente, um dos momentos mais férteis na
história psicanalítica (Bonfim, 2011). Karen Horney, Melanie Klein, Helene Deutsch,
Jeanne Lampl-De Groot, Marie Bonaparte - uma primeira geração de mulheres analistas -
contribuíram, através de suas experiências clínicas e publicações, além de sua
participação em congressos e debates das sociedades de psicanálise, para importantes
transformações e avanços na teoria psicanalítica. Como é o caso da mudança de ênfase
da paternidade para a maternidade, que se expressa no reconhecimento por Freud da
relevância fundamental da fase pré-edípica na constituição psíquica, na década de 1930.
Ao mesmo tempo, no mesmo período das décadas de 1920 e 1930, os
movimentos feministas já apresentavam importantes reivindicações e conquistavam
mudanças nos contextos sociais e culturais europeus e norte-americanos, o que
atravessou a psicanálise. No contexto das reivindicações de movimentos e lutas
feministas da época de Horney, havia crescente contestação com relação à
hierarquização dos sexos, em defesa de igualdade de direitos sociais e políticos. De
forma sintética, pode-se considerar que uma primeira geração de movimentos feministas,
referente à virada do século XIX ao XX, é marcada pelas reivindicações ligadas à
cidadania, ao direito ao voto, e à igualdade social em relação aos homens; em um
segundo momento, do início do século XX, até meados dos anos 1980, muitos
movimentos têm como enfoque a marca da diferença, das especificidades da mulher e do
feminino; e, mais atualmente, a partir dos anos 1990 em diante, torna-se expressiva a
demanda dos movimentos e correntes feministas por legitimação de outros modelos de
identidade, práticas sexuais e relações de parentesco (Lago, 2010; Cossi, 2020).
A partir do processo de análise, foi possível notar que as críticas e proposições de
Horney sobre sexualidade feminina se articulam às reivindicações de movimentos
feministas de sua época, e também posteriores, apesar da autora não se posicionar
abertamente dessa forma (Amorim, 2021). Como coloca Silva (2021): “Karen Horney foi a

88
principal representante, nessa época, de uma psicanálise que poderia entrar em diálogo -
e não apenas em oposição - com as discussões insurgentes a partir desse
atravessamento” (p. 25). Horney procurou demonstrar a positividade da feminilidade a
partir de sua anatomia, tanto a partir da consideração da vagina para além da ausência do
pênis, quanto criticando a supervalorização do genital masculino e a desconsideração da
maternidade. Sua argumentação parece ir no sentido da afirmação de uma feminilidade
específica, que, embora não deduzida de um referencial masculino, se encontra
embasada em perspectivas biologizantes, que acabam por essencializar a feminilidade.
Nesse sentido, é possível entender sua obra em relação às questões desenvolvidas por
movimentos feministas de primeira e também de segunda onda, embora ela se localize
historicamente mais próxima à primeira (Silva, 2021).
Garrison (1981) aproxima a produção de Horney das tendências de movimentos
feministas após a década de 20 do século XX, que - enquanto a geração anterior defendia
o ingresso na vida social, pública, e produtiva através do trabalho, em oposição à
maternidade e ao casamento -, defendiam o direito à realização em ambas as esferas.
Para a autora, ela representa um grupo dentro do feminismo norte-americano, das
décadas de 1920 a 1960, que limitava suas reivindicações à coexistência do amor
heterossexual e do trabalho, deixando de reconhecer outros possíveis ganhos e
mudanças estruturais a serem conquistadas; em suma, assumiam que o progresso para
as mulheres se daria de maneira inidividualista, através de uma lógica de esforço
individual.
Silva (2021) e Amorim (2021), em leituras mais atual da obra de Horney,
identificam que a ampliação das perspectivas de leitura da sexualidade em psicanálise a
partir do diálogo com diferentes autores e áreas de conhecimento, tais como Sociologia,
Antropologia e Filosofia, assim como o apontamento em relação aos atravessamentos da
cultura patriarcal, e de perspectivas centradas em um referencial masculino, na teoria
psicanalítica - como faz Horney ao longo de sua extensa produção sobre sexualidade
feminina e a diferença sexual nas décadas de 1920 e 1930 - são ferramentas para
discussões atuais no campo das intersecções entre psicanálise, feminismos e estudos de
gênero.
Ao mesmo tempo, a discussão acerca da diferença sexual, o falo e o complexo de
castração na teoria psicanalítica avançou também ao longo dos últimos cem anos,
principalmente a partir da leitura da obra freudiana proposta por Lacan, que procura

89
dissolver a relação entre o falo e o pênis. Na teorização de Horney, falo e pênis parecem
ser compreendidos literalmente enquanto sinônimos, um fator que se tornou muitas vezes
um incômodo, e que também provocou dúvidas na leitura dos artigos de Psicologia
Feminina (1991). Em sua crítica ao modelo freudiano, a argumentação de Horney se
centra nas diferenças anatômicas e biológicas, em uma concepção de feminino,
feminilidade, sexo e gênero, significativamente mais restrita - no sentido de sua cis e
heteronormatividade - em comparação às perspectivas atuais. Apesar de suas
contribuições teóricas e clínicas, e sua importância histórica nos debates entre
feminismos e psicanálise, não se pode perder de vista as limitações de sua obra, sua
reprodução de essencialismos e de normatividades, que são passíveis de crítica
atualmente devido aos avanços do pensamento feminista.
Como discute Prates (2001), a obra de Lacan apresenta uma diferença radical de
posição frente à questão da feminilidade, em relação aos demais pós-freudianos, como
Jones, Deutsch, Klein, Horney, entre outros. Sua preocupação de um retorno a Freud,
com relação a essa temática, diz respeito à retomada da radicalidade da desconexão
entre sexualidade humana e o âmbito instintual, um movimento contrário ao que estes
psicanalistas pós-freudianos estavam fazendo. Bonfim (2011) afirma que "talvez o ponto
de maior equívoco tenha sido a maneira como o falo foi apreendido no discurso freudiano,
fazendo com que a referência fálica fosse entendida absolutamente como equivalente ao
pênis" (p. 67).
Em concordância, Prates (2001) argumenta que devido ao fato de recorrerem à
Biologia para fundamentar a concepção psicanalítica de sexualidade, e assim não
distinguirem o pênis da noção psicanalítica de falo, o grupo de pós-freudianos no qual se
insere Horney, em geral, não consegue resgatar o verdadeiro papel do complexo de
castração na sexualidade humana, tal como propõe a leitura de Lacan: "o passo teórico
que Horney não pôde realizar foi o de desconectar o conceito de falo do órgão peniano,
passo fundamental para compreensão da inveja do pênis” (p. 55). Segundo a autora, é
diante das dificuldades de assimilação da dissimetria sexual, implicada na proposição
freudiana sobre a sexualidade e a castração, que muitos autores da época, como Horney,
procuraram, em contraposição, retomar um paralelismo biologizante entre as
sexualidades masculina e feminina. Ao mesmo tempo em que, no Seminário 5, em uma
lição na qual tematiza as propostas de Horney e Helene Deutsch sobre o complexo de
castração, Lacan afirma que:

90
O que quer que se possa pensar das formulações a que a Karen Horney chegou,
tanto na teoria quanto na técnica, ela foi, incontestavelmente, uma criadora no
plano clínico, desde o começo de sua carreira. Suas descobertas preservam todo o
seu valor, independente do que ela possa haver deduzido delas de mais ou menos
fraco no tocante à situação antropológica da psicanálise (LACAN, 1999 [1958], p.
304).

Apesar da relevância de sua obra para os primeiros enlaces entre psicanálise e


feminismos, dos intensos debates gerados por seus textos nos círculos psicanalíticos de
sua época - que foram comentados por Freud, Abraham, Deutsch, Rado, entre outros -, e
da popularidade de suas aulas em diferentes instituições, tanto na Alemanha quanto nos
Estados Unidos, a obra de Horney foi, assim como a de muitas psicanalistas mulheres
dessa época, pouco transmitida. Assim, como aponta Silva (2021), o que acaba criando é
uma percepção de que não existiam outras posições que divergissem de Freud acerca da
sexualidade feminina em psicanálise, até as produções feministas em diálogo com Lacan
nas décadas de 1970 e 1980. No entanto, como observa a autora, ao analisarmos as
produções de autoras contemporâneas à Freud, como de Horney, notamos a amplitude
das discussões e a multiplicidade de abordagens sobre o tema da diferença sexual já
naquele período. Nesse sentido, é relevante o conhecimento da história em sua
multiplicidade, também aquelas que não são difundidas, não só para produzir furos nos
discursos mais cristalizados sobre gênero e psicanálise, mas também contribuir para esse
campo de discussões e debates (Silva, 2021).
Assim, com o objetivo de aprofundar a discussão sobre a sexualidade em
psicanálise, a partir da aproximação entre reflexões de Karen Horney e a psicanálise
freudiana, esta pesquisa se desenvolveu no sentido da investigação das contribuições de
Karen Horney sobre diferença sexual e feminilidade no início da psicanálise, considerando
sua relação com os primeiros enlaçamentos entre psicanálise, gênero e feminismos.
Apesar das ressalvas com relação às limitações de sua obra para uma leitura
contemporânea da diferença sexual, ela é historicamente relevante para o campo
psicanalítico e para discussão acerca das sexualidades em psicanálise, sendo pioneira
nas intersecções do campo com feminismos e estudos de gênero, de extrema relevância
atualmente.
Portanto, como perspectiva para futuras pesquisas, parece interessante a
possibilidade de uma aproximação das teorizações de Horney com o debate desenvolvido
posteriormente entre autoras feministas da segunda metade do século XX, e a teoria

91
lacaniana. No sentido de investigar a relação entre as concepções consideradas
feministas no interior da psicanálise nas primeiras décadas do século XX, e os
desenvolvimentos posteriores, aliados à leitura lacaniana de Freud, principalmente na
década de 1960. Outro possível caminho é uma maior aproximação dos discursos sobre
sexualidade feminina em psicanálise em diferentes momentos históricos, no sentido de
uma maior aproximação com os debates contemporâneos, algo que não foi desenvolvido
aqui devido às limitações do recorte desta pesquisa.

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