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Gontijo, R. A. G., & Morais, M. R. R. O homem feminino na atualidade pensado à luz da Psicanálise

O homem feminino na atualidade pensado à luz da Psicanálise

The Feminine Man in the Current Thought of Psychoanalysis

El hombre femenino en las noticias pensadas a la luz del Psicoanálisis

Rogéria Araújo Guimarães Gontijo1


Míria Raquel Rodrigues Morais2

Resumo

Este artigo é uma pesquisa teórica que visa a percorrer os estudos de Freud e Lacan acerca do
feminino. Desde os primórdios da Psicanálise, Freud discutiu a questão do feminino na histeria. Para o
autor, a falta do pênis – penisneid – na mulher tornou-se a marca da feminilidade ao abordar a
anatomia como destino para falar de sexualidade, considerando a anatomia como corte imbuído de
consequências na dinâmica psíquica do sujeito. Mais tarde, Lacan ampliou essa visão tratando a
questão em termos de significante. Para explicar isso, ele criou a tábua da sexuação, privilegiando os
diferentes modos de gozo para dizer também do que é ser homem ou ser mulher pelo olhar da
Psicanálise. Por meio deste estudo, ratificamos que o feminino aponta para a falta, no sentido de que
está associado à figura da mulher, mas a pergunta que perpassa esta investigação é: pode um homem
ser feminino? A resposta à indagação relaciona-se com o declínio do viril na atualidade. A nova
vestimenta que o homem utiliza diante do afrouxamento do modelo patriarcal é ser feminino ou
feminilizar-se.

Palavras-chave: Feminino. Homem. Sexuação.

Abstract

This article is a theoretical research that aims to go through Freud and Lacan’s studies about the
feminine. Since the beginning of Psychoanalysis, Freud discussed about the feminine in the hysteria,
and the lack of penis became a mark of femininity, considering the anatomy as a destiny to talk about
sexuality. Lacan expanded this vision by treating this question in terms of signifier.To explain that, he
created the “sexuation board”, approaching what it means to be man or woman by the
Psychoanalysis’s look. Through this study, we ratify that the female points to the lack, in the sense that
it is associated with the woman’s figure. But the main question that runs through this investigation is:
can a man be feminine? The answer to this question relates to the virile decline nowadays. The new
garment that man wears in the face of patriarchal loosening is to be feminine or to become yourself
feminized.

Keywords: Female. Man. Sexualization.

Resumen

1
Doutora em Psicologia pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Mestre em Psicologia pela
Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas). Especialista em Psicopedagogia clínica e
institucional e Educação Especial. Graduada em Psicologia pela Universidade do Estado de Minas Gerais
(Uemg), Unidade Divinópolis. E-mail: raggontijo@hotmail.com.
2
Graduada em Psicologia pela Universidade do Estado de Minas Gerais (Uemg), unidade Divinópolis. E-mail:
miriamorais.morais7@gmail.com.

Pesquisas e Práticas Psicossociais, 16(3), São João del-Rei, julho-setembro de 2021. e-3463
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Gontijo, R. A. G. & Morais, M. R. R., O Homem feminino na atualidade pensado à luz da psicanálise

Este artículo es una investigación teórica que tiene como objetivo analizar los estudios de Freud y
Lacan sobre lo femenino. Desde los albores del Psicoanálisis, Freud ha cuestionado el tema de lo
femenino en la histeria, y la falta del pene se ha convertido en el sello distintivo de la feminidad,
considerando la anatomía como el destino para hablar sobre la sexualidad. Lacan amplió este punto de
vista al tratar la cuestión en términos de significante. Para explicar esto, creó la tabla de la sexuación,
abordando lo que es ser hombre o ser mujer desde la perspectiva del Psicoanálisis. Pero la pregunta
que atraviesa esta investigación es: ¿puede un hombre ser mujer? La respuesta a la pregunta se refiere
al declive de los hombres hoy. La nueva prenda que usa el hombre ante el aflojamiento del modelo
patriarcal es ser femenina o feminizarse.

Palabras clave: Mujer. Hombre. La sexuación

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Introdução A partir das questões do estudo de


Freud sobre a feminilidade, mudou-se o
paradigma para pensar a questão sexual, e
No contexto da Psicanálise, o Lacan vem para enfatizar que não se trata
feminino sempre foi um tema importante e apenas da referência ao órgão genital como
que rendeu vários estudos. Freud, desde o diferença. Ao trabalhar pela via da
início de seu trabalho com as histéricas, linguagem, ele abre espaço para falar de
viu-se instigado com a sexualidade todos os movimentos sociais
feminina, desenvolvendo teorias no contemporâneos, e pensar como é esse
decorrer de toda a sua obra a respeito do feminino hoje é pensar na subjetividade de
desenvolvimento psicossexual da mulher e nossa época. É como se pudéssemos dizer
da diferença entre os sexos. que o atributo do feminino também sofre
Mais tarde, Lacan, ao estruturar o influência da cultura, da sociedade. Nesse
inconsciente como linguagem, trouxe sentido, faz-se importante para a clínica
alguns avanços nos ensinos freudianos, no psicanalítica pensar a atribuição do
que diz respeito à questão do feminino, feminino no homem atual para
sentenciando que a mulher não existe e entendermos essa nova configuração de
deparando-se com a falta de um homem.
significante que represente a mulher no Este trabalho se baseará, assim, no
campo da linguagem. método qualitativo de pesquisa, sendo
Pensando na subjetividade da nossa realizados estudo bibliográfico, revisão de
época, também nos vemos instigados com artigos e consulta a obras de Freud e de
essa questão. Contudo, de uma forma bem Lacan para análise apenas interpretativa.
precisa, referimo-nos às incidências do De início, será feito um percurso
feminino no homem atual. O que podemos pelas obras de Freud que contemplam a
perceber é que os homens estão se questão da sexualidade feminina e da
apresentando cada vez mais feminizados. feminilidade para entendermos suas
Conforme denomina Lesch (1983), a contribuições, que são primordiais ao
cultura do narcisismo caracteriza o cenário estudo desse tema. O pai da Psicanálise
hodierno, no qual é observado maior toma como base o complexo de castração e
interesse dos homens pela questão da o complexo de Édipo para pensar as
estética, da imagem e do corpo; mas, no consequências na vida psíquica do sujeito
que a feminilidade está associada à mulher, em relação à diferença anatômica entre os
pode um homem ser feminino? sexos.
As identificações do homem atual Depois, focaremos Lacan, quando ele
estão a vacilar, uma vez que o cenário da retorna à obra de Freud e reinterpreta o
família patriarcal mudou, e as termo anatomia, passando a dar
transformações decorridas dessa mudança significância pela via da linguagem. A
delineiam a posição do homem e da mulher reconfiguração do feminino no autor
na atualidade. Psicanalistas, como Santiago perpassa pelo conceito de falo como
(1998), Rosa (2008) e Bessa (2012), por significante estruturador da sexualidade e
exemplo, discutem a ideia do declínio do chega à tábua da sexuação, uma vez que
viril no mundo contemporâneo, que, por ele atribui sentido à significação fálica
sua vez, diz respeito, antes, ao declínio do como um modo de gozo, e, diante das
pai, que já fora retratado por Lacan em fórmulas da sexuação, podemos localizar o
meados do século passado. homem feminino.

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O feminino em Freud Nas meninas, o complexo de Édipo levanta


um problema a mais que nos meninos. Em
ambos os casos, a mãe é o objeto original, e
As descobertas de Freud sobre a não constitui causa de surpresa que os
sexualidade feminina são tomadas como meninos retenham esse objeto no complexo
base em toda discussão acerca dessa de Édipo. Como ocorre, então, que as
temática, o que ressalta sua importância meninas o abandonem e, ao invés, tomem o
para a Psicanálise. Para o autor, a pai como objeto? Perseguindo essa questão,
pude chegar a algumas conclusões capazes
sexualidade feminina era denominada de de lançar luz exatamente sobre a pré-história
“continente negro” (Freud, 1925- da relação edipiana nas meninas. (Freud,
1926/1996, p. 242), e seus estudos giravam 1925/1976, p. 312).
em torno da interrogação retomada por
André (1987): “afinal, o que quer uma Portanto, a partir dessa indagação,
mulher?”. Freud faz alguns apontamentos sobre a
A princípio, a obscuridade o levou pré-história do complexo de Édipo
muitas vezes a achar que o feminino, falando de sua importância para
desenvolvimento sexual das mulheres a situação edipiana da mulher e para a sua
poderia ser tomado de maneira semelhante vida sexual.
à dos homens. Contudo, esperava-se que Sabe-se que a descoberta pelas
fosse diferente, embora, naquele momento, crianças de sua zona genital se daria em
“o ponto do desenvolvimento em que algum momento do seu desenvolvimento
reside essa diferença não podia ser que Freud (1925/1976) questiona se não
claramente determinado” (Freud, estaria ligado à perda do seio materno.
1925/1976, p. 310). Posto assim, as meninas estariam
É somente em 1925, em “Algumas destinadas a perceber o seu clitóris, mas
consequências psíquicas da distinção também o pênis, seja do irmão, seja de
anatômica entre os sexos”, que Freud algum amiguinho, devido as suas grandes
(1925/1976) vai descartar a tese da proporções, e que, assim sendo, logo o
analogia, iniciando um estudo mais identificariam como “o correspondente
aprofundado sobre a sexualidade da mulher superior de seu próprio órgão pequeno e
ao explorar a fase pré-edipiana. Ele faz imperceptível” (Freud, 1925/1976, p. 313),
uma reavaliação de suas teorias sobre o e, daí em diante, seriam tomadas pela
desenvolvimento psíquico nas mulheres e inveja do órgão masculino – penisneid. É
condensa, nesse artigo, todos os esse o ponto crucial, de acordo com Freud
pormenores que vão dar sustento para seus (1925/1976), no que diz respeito ao
trabalhos posteriores sobre esse assunto. desenvolvimento psicológico feminino.
Freud (1925/1976) questiona-se Quando vê o pênis, a menina percebe
sobre o Édipo nas meninas no que tange ao logo que não o tem e é tomada pelo desejo
seu afastamento da mãe, entendendo que, de tê-lo, mas disso surgem algumas
ao compreender isso, descobrir-se-iam consequências. Ao ver-se castrada, cresce
nuances do desenvolvimento sexual da em si um sentimento de inferioridade que
mulher, pois se tinha muito claro os pode fazê-la vir a desprezar a si própria.
motivos pelos quais o menino tomava o pai Nesse sentido, ela passa a demonstrar
como um rival, uma vez que a mãe ciúmes e, a partir disso, a afrouxar sua
permanece sendo o seu objeto de desejo, relação de afeto com a mãe, ao acreditar
mas o que faz a menina abandonar a mãe e que esta ama mais os que têm o pênis.
tomar o pai como objeto era até então um Mas, a consequência mais importante de
ponto de interrogação. todas e que, por sua vez, irá abrir espaço
para o desenvolvimento de sua

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feminilidade, conforme Freud (1925/1976) atribuindo uma importância ainda maior à


aponta, é o abandono da masturbação. A fase pré-edipiana nas mulheres. Freud
menina, uma vez decepcionada com seu (1931/1974) passa a considerar, com
clitóris, não se vê capaz de competir com efeito, a intensidade e a longa duração da
os meninos e prefere afastar-se da ideia de ligação da menina com a mãe na fase que
competição. antecede o Édipo feminino.
Dessa forma, Freud (1925/1976, p. Assim, Freud (1931/1974) começa a
318) conclui que o “reconhecimento da definir, mais nitidamente, pontos do
distinção anatômica entre os sexos força-a desenvolvimento feminino no que eles
a afastar-se da masculinidade e da diferem do masculino. O autor salienta,
masturbação masculina, para novas linhas antes de tudo, a questão da bissexualidade
que conduzem ao desenvolvimento da quanto à necessidade de não se ter dúvida
feminilidade”. É necessário que ela supere de que ela se dispõe mais claramente na
o quanto antes seu complexo de mulher, uma vez que esta possui duas
masculinidade para desenvolver-se na zonas sexuais – o clitóris e a vagina – e
feminilidade sem muitas dificuldades. que, em razão disso, sua vida sexual é
Logo, vem surgir, em lugar do desejo dividida em duas partes – a primeira, com
pelo pênis, o desejo de ter um filho, mais caráter masculino, marcada pela
precisamente um filho do pai, e é aí que ela masturbação do clitóris, e a segunda,
se volta para ele, tomando-o como seu especificamente feminina –, havendo,
objeto de amor, e a mãe como o de seu portanto, um processo de transição de uma
ciúme. Dá-se aqui a entrada em seu Édipo: fase para outra no desenvolvimento
a menina virou mulher. Vê-se, então, que o feminino, o que não acontece com o
complexo de castração vai inibir a homem, que possui apenas uma zona
masculinidade e incentivar a feminilidade. sexual principal – o pênis.
Assim sendo, ele entende que o Outra grande diferença, que está em
desenvolvimento sexual do homem e da paralelo a essa, relaciona-se com o
mulher são diferentes, e o são em encontro do objeto. A mãe é, tanto para o
decorrência das consequências psíquicas menino quanto para a menina, o primeiro
da diferença anatômica existente entre eles. objeto amoroso, em decorrência dos
A partir disso, há de se considerar, então, a cuidados recebidos por esta, porém, ao fim
importância do complexo de Édipo, os do desenvolvimento feminino, o pai, como
efeitos que dele surgem, no que concerne homem, deve tornar-se o novo objeto da
ao modo em que nele se é introduzido e menina, mas a maneira como a mudança
como ele é abandonado. O complexo de acontece, como ela é efetuada e as
castração vai introduzir a menina na possibilidades que se apresentam a esse
situação edipiana, enquanto irá fazer processo de desenvolvimento, é o que está
sucumbir a do menino, que é em investigação.
completamente destruída, resultando em Quanto ao complexo de Édipo,
seu superego. No entanto, um motivo para Freud, rejeitando agora completamente a
a destruição do complexo de Édipo analogia entre os dois sexos, descreve a
feminino fica em falta, pois a castração o situação do menino, em que a ameaça de
antecedeu e já produziu o seu efeito. castração advinda da visão do órgão
Contudo, em 1931, Freud apresenta feminino vai destruir seu Édipo, dando
um novo estudo, intitulado “Sexualidade lugar à criação de seu superego e ao
feminina”, em que traz novas observações desinvestimento da mãe, remanescendo,
que o fazem adotar um ponto de vista disso tudo, a depreciação da mulher como
específico sobre a sexualidade feminina, ser castrado. No caso da menina, conforme

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descobrira, o complexo de Édipo é apenas mãe? Qual é a natureza de seus objetivos


uma formação secundária, que advém do sexuais durante a época da ligação
reconhecimento de sua castração e exclusiva à mãe?” Desta, ele vai apontar,
inferioridade diante da visão do órgão então, a relação da atividade com a
masculino, que, por sua vez, a leva a passividade, que se faz interessante para
rebelar-se contra esse estado, e disso, compreender a questão da feminilidade. Os
conforme o autor coloca, vão surgir três objetivos da menina são tanto ativos como
saídas, a saber: repulsa geral à sexualidade; passivos, dependendo das fases libidinais
permanência na esperança de um dia ter o de seu desenvolvimento, e será, portanto, o
pênis, reivindicando sua masculinidade; e comportamento da criança a esse respeito
aceitação da feminilidade, tomando o pai que falará da sua masculinidade e
como objeto. feminilidade em sua sexualidade.
Partindo dessas considerações, Freud Na menina, suas primeiras vivências
(1931/1974) volta-se para os motivos pelos em relação à mãe são passivas, enquanto
quais a menina vai, então, se afastar da uma parte se manifestará de modo ativo,
mãe, trazendo à luz uma gama de como no brincar de bonecas, por exemplo.
fenômenos. A princípio, ele traz a questão Quando iniciada em sua fase fálica pela
do ciúme, principalmente com a chegada mãe ou cuidadora, mediante os cuidados de
de um novo irmãozinho. A criança, em sua higienização, também será tomada por
demanda de amor ilimitado, exige impulsos passivos – recebendo os cuidados
exclusividade e não se satisfaz de forma – e ativos – masturbação clitoridiana e
completa com o amor recebido da mãe, desejo de dar um filho para a mãe. O que
pela qual alimenta sentimentos hostis. acontece em específico nas meninas é que
Outro motivo, agora bastante específico, o afastamento da mãe culmina no declínio
vem do efeito do complexo de castração dos impulsos sexuais ativos que acabaram
sobre a menina, que, ao sentir-se por gerar frustrações, revelando-se
inferiorizada, culpa a mãe por não ter lhe irrealizáveis, e no aumento dos impulsos
dado o pênis e por trazer-lhe ao mundo passivos, muito importante no curso de seu
como mulher. A proibição da masturbação desenvolvimento, pois “a transição para o
também é motivo de rebelar-se contra a objeto paterno é realizada com o auxílio
mãe, por ser a pessoa que a iniciou nessa das tendências passivas, na medida em que
atividade com seus cuidados e também a escaparam à catástrofe. O caminho para o
que proíbe. Outro motivo colocado por desenvolvimento da feminilidade está
Freud (1931/1974) é o sentimento da agora aberto à menina” (Freud, 1931/1974,
criança de não ter sido amamentada o p. 215).
suficiente. Entretanto, para ele, nesse Retomando tais escritos anteriores,
momento, o fato real que justifica a Freud (1932-1933/1976) ainda apresenta,
hostilidade final da menina para com a mãe em seu artigo “Conferência XXXIII:
tem relação mais precisamente por ela ter feminilidade”, um pouco mais de
sido a primeira e a mais intensa ligação, observações sobre o enigma da natureza da
dando lugar para a ambivalência, em que feminilidade, afirmando que a Psicologia é
se considera que o amor dela sempre está incapaz de solucioná-lo. O enigma está
acompanhado pelo ódio, devido a sua para ele às voltas com a questão da
magnitude. bissexualidade feminina, em sentido à
Encontrados os motivos que levam mudança de zona erógena que é
ao afastamento da menina da mãe, surge, acompanhada da mudança de objeto que a
para Freud (1931/1974, p. 145), a seguinte menina tem de fazer em seu
questão: “O que é que a menina exige da desenvolvimento.

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Portanto, Freud (1932-1933/1976) dotada de disposição bissexual” (Freud,


vai detalhar ainda mais as duas tarefas que, 1932-1933/1976, p. 144), detalhando a sua
segundo ele, sobrecarregam o transição do clitóris para a vagina –
desenvolvimento da menina e reforçar o primeira tarefa que realiza em sentido à
papel do complexo de castração. No feminilidade – e os motivos que põem fim
entanto, o autor, primeiramente, levanta o à poderosa ligação da menina com a mãe e
problema da bissexualidade, defendendo a que resultam na mudança objetal, sua
ideia de que, em termos anatômicos, segunda tarefa desenvolvimental.
“aquilo que constitui a masculinidade ou a Para Freud, a descoberta da castração
feminilidade é uma característica apresenta-se como determinante na
desconhecida” (Freud, 1932-1933/1976, p. menina, pois faz nascer a inveja do pênis,
141), sugerindo que homem e mulher não que deixará “marcas indeléveis em seu
são posições estabelecidas pela anatomia, desenvolvimento e na formação de seu
pois a única coisa que o homem e a mulher caráter, não sendo superada, sequer nos
têm de específico são seus produtos casos mais favoráveis, sem um extremo
sexuais: o espermatozoide e o óvulo. Fora dispêndio de energia psíquica” (Freud,
isso, ambos têm em si partes do aparelho 1932-1933/1976, p 154).
sexual do outro, mesmo que atrofiado, e, Na concepção freudiana,
assim sendo, masculino e feminino se compreende-se a feminilidade, então,
misturam no indivíduo. Em termos como um desenvolvimento longo e difícil,
psicológicos, chama a atenção para que pelo qual a menina está destinada em
não se confunda feminilidade com função de sua condição sexual, mas
passividade e masculinidade com engloba vários aspectos de ordem
atividade, pois, psicologicamente, homens psicológica oriundos de sua experiência
e mulheres também são seres bissexuais, sexual infantil, que, por sua vez, está
uma vez que ambos podem ter entrelaçada na ligação intensa com a mãe,
comportamentos ativos e passivos, não característica desse período. Seu caminho
estando especificamente relacionados ao se faz quando, por determinadas
feminino ou ao masculino. No entanto, ele circunstâncias, das quais se considera o
considera como característica psicológica reconhecimento da falta do pênis a mais
da feminilidade a preferência por fins importante, a menina culpa a mãe pelo
passivos. ocorrido e dirige a esta sentimentos hostis,
A partir disso, Freud (1932- afrouxando seu relacionamento com ela.
1933/1976) atribui outra característica Como uma saída disso, volta-se para o pai
essencialmente feminina, o masoquismo, na esperança e no desejo de ter o pênis,
que, no caso, advém da supressão da que logo é substituído pelo desejo de ter
agressividade nas mulheres, em um filho do pai ou, mais precisamente, de
decorrência de imposições constitucionais apenas ter um filho, no que este assume o
e sociais. Ele considera, também, a lugar do órgão desejado e confere-lhe toda
presença do masoquismo nos homens, uma condição especial.
falando de traços femininos neles. Isso nos
faz pensar que, assim como na postulação Com muita frequência, em seu quadro
da bissexualidade constitucional, Freud já combinado de “um bebê de seu pai”, a
ênfase é colocada no bebê, e o pai fica em
nos permite adentrar na discussão sobre o segundo plano. Assim, o antigo desejo
feminino no homem. masculino de posse de um pênis ainda está
Assim, Freud empenha-se novamente ligeiramente visível na feminilidade
com as peculiaridades da mulher, sobre alcançada desse modo. Talvez devêssemos
como ela se desenvolve “desde a criança identificar esse desejo do pênis como sendo,

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par excellence, um desejo feminino. (Freud, que está em jogo é a presença ou a


1932-1933/1976, p. 158, grifos do autor). ausência do pênis, que fica investido como
valor, ou seja, fica investido de valor fálico
Partindo dessas considerações, Freud na constituição do masculino e do
(1932-1933/1976) faz alusão a feminino.
peculiaridades psíquicas que acredita ser Assim sendo, a significância do falo,
atributos da feminilidade, como o para Freud, se referia ao órgão genital
narcisismo, a vaidade física e a vergonha. masculino como significação fálica, como
O narcisismo refere-se à maior necessidade uma função simbólica que se possibilita a
da mulher de ser amada do que de amar. A equivalência fálica entre termos: bebês,
vaidade física é vista como uma fezes, dinheiro, por exemplo. Ele usava o
compensação por sua inferioridade sexual. termo “pênis” para se referir ao falo, e,
A mulher ressalta seus encantos para embora não se deva confundi-los, não se
compensar a falta original do pênis. Por pode ignorar a articulação entre esses
fim, a vergonha é “considerada uma termos como decorrência das
característica feminina par excellence, consequências psíquicas. De acordo com
contudo, mais do que se poderia supor, Bonfim e Costa (2014), relaciona-se o falo
sendo uma questão de convenção, tem, à sexualidade devido a sua
assim acreditamos, como finalidade a supervalorização pelos antigos como
ocultação da deficiência genital” (Freud, símbolo da fecundidade. O objeto fálico –
1932-1933/1976, p. 162, grifos do autor). pênis ereto – era visto como um objeto
Nesse momento, tais apontamentos poderoso, perpetuador da vida, sendo
de Freud sobre o feminino nos levam às comum utilizar a sua imagem em joias,
contribuições de Lacan, que, embora muros, tigelas, sinos, etc. Freud, por sua
também não faça esgotar o estudo acerca vez, não desconsiderou tal valor atribuído a
da temática que continua no lugar de ele no mundo antigo, “muito
enigma, traz alguns avanços. possivelmente porque em sua clínica tenha
encontrado eco de sua importância”
O falo: do órgão ao significante (Bonfim & Costa, 2014, p. 231).
Entretanto, conforme as mesmas autoras
Freud, em suas construções teóricas nos trazem, “de modo mais apurado, o que
sobre a sexualidade, enaltece, até certo é sustentado como elemento organizador
ponto, em seus estudos, a primazia genital, da sexualidade não é o órgão genital
no que concerne ao desenvolvimento da masculino, mas a representação psíquica
sexualidade infantil, ou seja, pensa essa imaginária e simbólica construída a partir
questão considerando as consequências desta região corporal do homem” (Bonfim
psíquicas da percepção das diferenças dos & Costa, 2014, p. 231).
órgãos genitais do homem e da mulher. No Lacan vem, então, nos dar respaldo a
entanto, em seu artigo “A organização essa questão, pois, partindo das
genital infantil”, de 1923, ele vai reiterar considerações de Ferdinand Saussure sobre
que o que está presente, na verdade, é uma a linguagem, e ao fazer um retorno à obra
primazia do falo, função que não deve ser de Freud, e deste falar que “o inconsciente
confundida com o pênis, enaltecendo é estruturado como uma linguagem”, vai
apenas o órgão. O autor alega que, para introduzir no campo psicanalítico, entre
ambos os sexos, apenas um órgão é outros, os termos significante e significado,
considerado, simbolizado, ou seja, trata-se signos linguísticos que vão tratar de um
do órgão masculino, pois é o único que conceito psíquico – significado – que se
desempenha um papel. Nesse sentido, o

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liga a uma imagem acústica – impressão Lacan (1957-1958/1999) coloca dos três
psíquica, representação, significante. tempos do Édipo, tempos lógicos.
Assim, Lacan (1958/1998) vai Essa passagem é importante porque
ampliar a ideia de Freud sobre o falo, Lacan (1957-1958/1999) introduz o
tirando toda a centralidade da anatomia e significante Nome-do-Pai como o operador
passando a dar significância pela via da da trajetória edipiana, abordando a função
linguagem. paterna como simbólica e, por isso,
operando metaforicamente. Não se trata,
O falo é aqui esclarecido por sua função. Na necessariamente, da presença paterna, mas
doutrina freudiana, o falo não é uma de um significante que substituirá outro
fantasia, caso se deva entender por isso um
efeito imaginário. Tampouco é, como tal,
significante – o Nome-do-Pai substituirá o
um objeto (parcial, interno, bom, mau etc.), Desejo da Mãe, desejo sem lei, caprichoso
na medida em que esse termo tende a prezar –, e essa operação possibilitará a
a realidade implicada numa relação. E é significação fálica para o sujeito: “Em
menos ainda o órgão, pênis ou clitóris, que outras palavras, o pai como aquele que é
ele simboliza. E não foi sem razão que Freud
extraiu-lhe a referência do simulacro que ele
culturalmente portador da lei, o pai como
era para os antigos. Pois o falo é um investido pelo significante do pai, intervém
significante, um significante cuja função, na no complexo de Édipo de maneira mais
economia intersubjetiva da análise, levanta, concreta, mais escalonada, por assim
quem sabe, o véu daquela que ele mantinha dizer” (Lacan, 1957-1958/1999, p. 194).
envolta em mistérios. Pois ele é o
significante destinado a designar, em seu
No primeiro tempo do Édipo, a
conjunto, os efeitos de significado, na criança encontra-se assujeitada à mãe, ou
medida em que o significante os condiciona seja, seu desejo é o desejo da mãe. A
por sua presença de significante. (Lacan, criança identifica-se com o objeto que
1958/1998, pp. 696-697). supõe ser o objeto de desejo da mãe,
aquele que lhe falta, que é exatamente o
Portanto, para Lacan, o falo é um falo: “Se o desejo da mãe é o falo, a
significante. A importância de colocá-lo criança quer ser o falo para satisfazê-lo”
nesse lugar diz respeito justamente ao fato (Lacan, 1958/1998, p. 700).
de que muitas confusões significativas na O pai entra como mediador dessa
teoria analítica quanto ao papel do objeto relação no segundo tempo do Édipo,
fálico, inclusive no que concerne à questão ditando a lei para a mãe – a proibição do
da mulher, eram frequentes antes. Cabe incesto. Ele intervém no desejo da mãe,
ressaltar que, embora houvesse prevalência privando-a de seu objeto – a criança
do falo na obra de Freud, ele não o identificada com o falo. Se for ele quem
representou como um atributo significante, supostamente o tem, esse é o seu lugar de
como Lacan o fez em sua extensão do direito e, assim, ao apresentar-se como
termo. tendo direito à mãe, frustra a criança de ter
Desse modo, faz-se necessário a mãe como seu objeto, ou seja, ela agora
considerar a relação entre o falo e a tem um rival e impede a mãe de reabsorver
castração, pois o falo vai operar junto com o objeto. Cabe à mãe, nesse momento,
o conceito de castração, sendo tomado reconhecer a palavra do pai como lei para
como o significante do desejo e de sua lei, ela e, dessa forma, direcionar seu desejo a
e não porque o pai supostamente porta o ele para que assim a criança se confronte
falo. Para se pensar nisso, podemos também com a lei e a simbolize, cabendo a
ampliar a ideia dos escritos freudianos, no ela aceitar ou não essa privação feita à mãe
que diz respeito à mítica de Freud em pelo pai.
relação ao Édipo, e introduzir ao que

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Nesse ponto, a criança depara-se, O que Lacan (1957-1958/1999) nos


então, com a questão do ser ou não ser, “to mostra é que o falo possibilita o sujeito se
be or not to be o objeto do desejo da mãe” posicionar perante seu desejo, e essa
(Lacan, 1957-1958/1999, p. 197, grifos do posição vai depender de como ele lida com
autor). O sujeito precisa escolher. Quando a castração, de como ele a subjetiva. Nesse
a mãe volta o seu desejo, o seu olhar para o sentido, o falo é, para o autor, o
pai, a criança é destituída do lugar de ser o significante estruturador da sexualidade,
falo, pois, ao voltar o olhar para o pai, ela pois introduz o sujeito em sua posição
mostra para a criança que ela não é mais o sexual, unindo sexualidade e linguagem.
centro das atenções da mãe; a criança tem “Dito de outra forma: sexuar-se é
a mãe, mas a mãe não é só dela. Seu desejo inscrever-se no plano simbólico a partir da
está voltado para um outro lugar, que é o castração, que indica ao sujeito a
pai que supostamente tem o que ela deseja. pertinência a um, e só um sexo. Homem ou
Nesse sentido, a criança percebe que o pai mulher” (Kehl, 2008, p. 260). Nessa
tem algo que ela não tem e que faz a mãe ir lógica, o menino se identificaria com o pai
em sua direção, constatando que algo como possuidor do pênis, guardando um
também falta à mãe e que ela – a criança – título de direito à virilidade, e a menina
não é suficiente para completá-la. reconheceria o homem como aquele que o
Dessa forma, a criança é, portanto, possui e, sabendo onde ele está, sabe onde
desalojada do lugar de ser o falo para a deve ir buscá-lo, mesmo não sendo o
mãe, e é ao ser desalojada dessa posição homem necessariamente o portador do
que o terceiro momento se estabelece, cuja falo, o pai atua como representante do
problemática será ter ou não ter o falo, atributo fálico (Lacan, 1957-1958/1999).
possibilitando à criança o acesso à Como já vimos em Freud, o desfecho
significação fálica que a situa na partilha do complexo de Édipo na mulher traz
dos sexos. Isso porque, no terceiro tempo, alguns impasses, demonstrando-se
o pai intervém como aquele que realmente insuficiente para dar conta da sexualidade
tem. Ele tem de dar provas disso e “é por feminina. Em Lacan, ocorre o mesmo. A
intervir como aquele que tem o falo que o saída da menina do Édipo a estrutura como
pai é internalizado no sujeito como Ideal sujeito desejante. Contudo, sua questão
do eu” (Lacan, 1957-1958/1999, p. 201). O identificatória fica por resolver. Isso
pai, acedido ao lugar de detentor do falo, porque ambos desenvolveram a situação
leva a criança a confrontar-se com a edípica de acordo com a lógica fálica, ou
questão da castração, que será atravessada seja, concernente à operação simbólica da
à medida que a identificação com o pai é castração, que possibilita a saída pelo viés
feita, e é aí que o complexo de Édipo da estrutura neurótica, colocando em
declina. questão a falta de um significante que
represente a mulher no campo da
Há no Édipo a assunção do próprio sexo linguagem, assim como o falo representa
pelo sujeito, isto é, para darmos os nomes às os homens. Nesse sentido, “se há somente
coisas, aquilo que faz com que o homem
assuma o tipo viril e com que a mulher
um significante da sexuação e este produz
assuma um certo tipo feminino, se reconheça o homem, podemos dizer que ao nível
como mulher, identifique-se com suas inconsciente o Outro sexuado não existe”
funções de mulher. A virilidade e a (Bonfim & Costa, 2014, p. 242). Isso leva
feminização são os dois termos que Lacan a dizer que “a mulher não existe”,
traduzem o que é, essencialmente, a função
do Édipo. (Lacan, 1957-1958/1999, p. 171).
um de seus aforismos. Dessa forma, a
significação causada pela metáfora paterna,
portanto, não confere à mulher o seu lugar

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de mulher, ficando-lhe um resto que não sejam “homens”, estão situados do lado
passa pela função fálica. mulher. Assim, ele vai articular a diferença
Assim sendo, no decorrer de sua sexual por meio da lógica do todo fálico e
obra, Lacan vai desenvolvendo do não-todo, não consistindo em uma
proposições explicativas quanto à divisão divisão entre dois sexos, mas entre dois
do sujeito na sexualidade e, em modos de gozos – o fálico e o suplementar
consequência disso, vai tentando elucidar a –, que vão depender de como o sujeito irá
questão da feminilidade, e será no se situar diante da função fálica, pois, de
Seminário 20: mais, ainda que o autor irá acordo com Bessa (2012, p. 80), “há uma
nos apresentar a tábua da sexuação, na qual função de gozo ligada à castração e ela
ele busca delimitar dois modos de gozo, determina um modo de gozar particular
para além das identificações edípicas. para cada sujeito”.
Como exemplo, os místicos, mesmo que

Figura 1. Tábua da sexuação

Fonte: Lacan (1972-1973/1985, p. 105)

Dessa forma, temos na representação horda primitiva, aquele que gozava de


da figura as fórmulas propostas por Lacan todas as mulheres e foi descrito por Freud
(1972-1973/1985) para expressar (1913-1914/1976) em “Totem e tabu”. Pela
diferentes modos de gozo, o todo e o não- lógica, é necessária uma exceção para que
todo, de acordo com sua inscrição na uma regra seja válida. Assim, o Pai da
função fálica, cabendo ressaltar, mais uma horda é o que fundamenta a castração de
vez, que não é a questão anatômica que vai todos os outros elementos desse conjunto.
falar da posição sexual de um sujeito, mas, Estar totalmente submetido à função fálica
sim, a forma como ele irá lidar com a implica que seu gozo é fálico e está ligado
castração, com o falo, uma vez que fora ao objeto a, assumindo a forma de fetiche e
inserido na linguagem. Portanto, trata-se de sendo acessado por meio da fantasia.
posições subjetivas que cada ser falante Do lado direito, por sua vez, escreve-
poderá ocupar em face da sexualidade. se que não há nenhuma mulher que não
Temos, assim, do lado esquerdo o lado seja castrada, ou seja, não há a exceção, e
Homem e, do lado oposto, o lado Mulher. escreve-se, também, que nem tudo em uma
O que se escreve do lado esquerdo é mulher está assujeitado à função fálica.
que todos os sujeitos posicionados desse Nesse sentido, ela é não-toda castrada. Se
lado estão inscritos na função fálica, ou não há a exceção, não se permite nenhuma
seja, submetidos à lei, à castração, com universalidade. Cada uma, à sua maneira,
exceção de um. Há um que escapa à lei e está referida ao falo, mas não-toda. Há algo
que não cumpre a função fálica: o Pai da na mulher que não passa pela castração, e

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isso implica-lhe um mistério, um algo a atualidade, não estamos tomando-o,


mais, que Lacan vai definir como gozo necessariamente, posicionado do lado
suplementar: “É justamente pelo fato de Mulher. Não se trata, porventura, do
que, por ser não-toda, ela tem, em relação homem que se assume não-todo e que, por
ao que designa de gozo a função fálica, um isso, teria acesso a um gozo suplementar
gozo suplementar” (Lacan, 1972- ou feminino. Estamos, contudo, falando do
1973/1985, p. 99). homem que, embora posicionado do lado
Bessa (2012) nos diz que o gozo Homem, configura-se em uma
feminino traz em si uma demanda de amor. identificação feminina, cuja questão, a
É um gozo direcionado ao Outro, ao amor problemática que se tem e que o configura
do Outro, e que não se experimenta apenas assim, diz respeito ao apagamento da
no ato sexual, não se tratando de um gozo exceção paterna, do pai potente que
localizável em um órgão ou objeto, pois garante ao filho a sua virilidade. Fala-se,
não toca o objeto a, como no lado portanto, do declínio do viril tão pertinente
masculino. É um gozo que exige que o na atualidade, declínio do masculino
parceiro fale e que fale palavras de amor, construído pelo modelo patriarcal. Nesse
“porque a mulher goza por amor” (Bessa, sentido, o feminino seria uma das
2012, p. 97). É um gozo do qual nada sabe identificações possíveis ao homem diante
falar; ela apenas o experimenta. da vacilação da potência do pai que
Nesse sentido, quem se posiciona do embaraça a transmissão simbólica do falo.
lado esquerdo do gráfico está todo O sujeito envereda-se, então, ao ideal
submetido à função fálica e seu gozo é materno; ele quer ser o falo, configurando-
fálico, e quem se posiciona do lado direito se, assim, a feminização como uma
está não-todo inserido na função fálica e identificação com a mãe.
seu gozo é não-todo fálico – para além do São homens ao modelo do pequeno
gozo fálico, tem-se o gozo suplementar. Hans, conforme Lacan fizera menção em
Segundo Santana (2014, p. 2), “cada sua releitura do caso em 1957. Homens
ser falante pode assumir uma posição ou que, em decorrência da inoperância paterna
outra das fórmulas, dependendo do marcada pelo declínio do viril, não
momento ou das circunstâncias da vida, integram uma posição sexual masculina,
podendo bascular nessas posições de forma assumindo, assim, uma posição
inconsciente ou mesmo fazendo considerada passiva, mesmo que, em Hans,
semblante”. Assim, uma mulher pode se a inoperância paterna se dê porque a mãe
posicionar do lado Homem na tábua, da não ratifica o lugar atribuído ao pai.
mesma forma que um homem pode se
posicionar do lado Mulher. Mas, de acordo Na medida em que Hans não completa o
com Lacan (1972-1973/1985, p. 98), percurso significante da castração, devido a
uma inoperância paterna, ele não chega a
“quando um ser falante qualquer se alinha integrar a sua masculinidade. Por essa razão,
sob a bandeira das mulheres, isto se dá a a sua vida amorosa fica marcada pela
partir de que ele se funda por ser não-todo identificação feminina; isso se manifesta em
a se situar na função fálica”, mesmo uma posição passiva, em certo estilo
quando provido dos atributos da masculino que é o da geração de 1945, ou
seja, o daqueles encantadores rapazes que
masculinidade. esperam que as iniciativas venham das
damas. (Lacan, 1956-1957/1995, citado por
O homem feminino Rosa, 2008, p. 439).

Em contrapartida, para falar do Santiago (1998), a respeito de Hans,


homem feminino que se configura na enfatiza que, embora o menino se interesse

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por meninas – o que legaliza sua viril como modo de fazer apelo ao amor”
heterossexualidade –, não parece “ocupar (Guimarães, 2005, p. 72).
uma posição que, aos olhos do analista, Por esse ângulo, podemos dizer que
possa ser caracterizada como viril. Ao o homem, para dar conta da mulher atual,
contrário, tal posição é explicitamente que se constitui fálica, feminiliza-se, pois
qualificada como passiva, ou mesmo como ela o destitui do seu poder fálico. Ele usa
uma evidência clínica do declínio do viril” do feminino como uma forma de lidar com
(Santiago, 1998, p. 131). essa questão. Usa da expressão do
Partindo por outra via, podemos feminino para ser homem, e faz isso para
pensar também o homem feminilizado suturar, esconder a castração, ao mesmo
como outro sufixo que diz respeito à tempo em que a escancara.
configuração do feminino no homem, mas Assim, temos, quanto às incidências
como expressão, no que consideramos a do feminino no homem atual, um homem
feminilidade uma expressão do feminino. sexuado masculino, mas que se posiciona
Guimarães (2005), ao levantar uma de maneira feminina diante da fragilização
discussão acerca da máscara da da identificação com um pai inoperante, e
feminilidade contemporânea, referindo-se um homem que faz semblante do feminino
às mulheres que estão cada vez mais perante as mulheres fálicas da atualidade.
deixando de lado a questão do amor – que, Com o declínio do viril, o homem teve de
como vimos, fala de seu gozo –, em usar uma nova roupagem para se
detrimento das conquistas alcançadas nos apresentar para as mulheres, para estar
mais variados campos, como o jurídico e o diante das mulheres, tornando-se feminino
econômico, aponta, como consequência ou feminilizado.
disso, a feminilização do homem – uma Portanto, a contribuição lacaniana de
súplica ao amor das mulheres. A autora diz pensar os modos de gozo pela tábua da
que ele sexuação, destitui o binarismo de gêneros e
permite transitar pela lógica do todo e não-
formula esta súplica pela via do semblante, todo fálico, no qual ratifica a ideia de que o
utilizando tão sabiamente estratégias homem, mesmo portando um órgão, não
próprias à histeria. Vestindo uma nova
roupagem do homem pós-moderno faz
necessariamente se inscreve na posição
surgir o homem “metrossexual”, que tenta se masculina. A masculinidade e a
feminilizar com os adereços estéticos feminilidade são atribuições do modo de
propostos pelas histéricas contemporâneas, gozo do sujeito.
que fazem desse homem o seu novo Já em Freud (1937-1939/1975), foi
brinquedo. E, se deixando assim se fazer de
feminilizado, sustenta um apelo ao
observado que homens e mulheres têm em
romantismo. Súplica muda desse homem tão comum a “recusa da feminilidade”, ou
fragilmente dependente do amor de uma seja, esse continente negro como um
mulher. (Guimarães, 2005, p. 70). enigma perante a castração torna-se um
impasse na vida psíquica dos seres
Dessa forma, ela defende que essa humanos no que diz respeito à resposta ao
tem sido a estratégia que alguns homens da atributo fálico. Hodiernamente, com a
atualidade vêm utilizando para conseguir queda do falocentrismo, o homem busca
fazer laço de parceria com as histéricas: novas ferramentas fálicas para resolver
“Ele já se apresenta como castrado, esse impasse. Daí, a sua posição passiva
destituído de qualquer potência fálica que identificada ao feminino.
lembre de perto alguma sombra daquilo
que as histéricas feministas definem como Considerações finais
machismo. Cultivam, assim, o declínio do

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Este estudo procurou compreender as a apropriação da significação fálica pelo


vicissitudes do feminino na Psicanálise sujeito está relacionada à questão
para pensarmos a configuração do homem diagnóstica, ao modo como ele opera e ao
atual, que se supõe cada vez mais seu modo de gozo.
feminizado, apontando de que forma isso
pode se apresentar. Assim, buscou-se Referências
traçar um caminho que, apropriando-se das
contribuições de Freud e Lacan sobre o André, S. (1987). O que quer uma
feminino, tornou possível considerar que mulher?. Rio de Janeiro: Zahar.
uma pessoa, quanto a sua sexualidade, se Bessa, G. L. P. (2012). Feminino: um
posiciona não enquanto à anatomia, mas conjunto aberto ao infinito. Belo
enquanto a sua forma de lidar com a Horizonte: Scriptum.
castração, ou seja, com o falo. Bonfim, F., & Costa, A. (2014). Um
Dessa forma, podemos considerar percurso sobre o falo na Psicanálise:
que, em relação a isso, no que tange à primazia, querela, significante e objeto
dinâmica do contemporâneo, marcada pelo a. Ágora: Estudos em Teoria
declínio do viril em consonância com o Psicanalítica, 17(2), 229-245.
afrouxamento do modelo patriarcal, o Recuperado em 2 setembro, 2018, de
homem atual sofre consequências na http://www.scielo.br/scielo.php?script
integração da posição sexual masculina, =sci_arttext&pid=S1516-
podendo apropriar-se do feminino como 14982014000200005.
uma saída para ser homem hoje, em nossa Freud, S. (1974). Sexualidade feminina. In
cultura. S. Freud. Obras Psicológicas
De maneira inversa, ao apropriar-se Completas de Sigmund Freud: Edição
do feminino, o homem está colocando em Standard Brasileira (Vol. XXI). Rio
jogo as coordenadas do que está de Janeiro: Imago. (Original publicado
acontecendo na atualidade e que precisam, em 1931).
com efeito, ser interpretadas na clínica, Freud, S. (1975). Análise terminável e
pois cabe ressaltar que tudo isso não é interminável. In S. Freud. Obras
vivido por ele sem angústia e sem demais Psicológicas Completas de Sigmund
desdobramentos. Assim, é necessário que Freud: Edição Standard Brasileira
as demais singularidades do homem hoje, (Vol. XXIII). Rio de Janeiro: Imago.
seus sintomas contemporâneos, sejam (Original publicado em 1937-1939).
contemplados em estudos posteriores. Freud, S. (1976). A organização genital
Nesse sentido, poderíamos pensar, infantil. In Obras Psicológicas
mais além ainda, a partir deste estudo, os Completas de Sigmund Freud: Edição
relacionamentos atuais e como essas Standard Brasileira (Vol. XIX). Rio
transformações afetam os relacionamentos de Janeiro: Imago. (Original publicado
amorosos, pois são mudanças que atingem em 1923).
ambos os lados. Freud, S. (1976). Algumas consequências
Este trabalho contribui, portanto, psíquicas da distinção anatômica entre
para pensarmos as atuais configurações dos os sexos. In S Freud. Obras
modelos de homem e mulher que vão Psicológicas Completas de Sigmund
chegar ao consultório e suas implicações Freud: Edição Standard Brasileira
na vida psíquica dos sujeitos. Saber atribuir (Vol. XIX). Rio de Janeiro: Imago.
sentido ao feminino, à significação fálica, é (Original publicado em 1925).
importante nos atendimentos clínicos, pois Freud, S. (1976). Conferência XXXIII:
pode interferir no diagnóstico, uma vez que feminilidade. In S. Freud. Obras

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ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Santiago, J. (1998). Sintomas
Editor. (Original publicado em 1972- contemporâneos no masculino. In
1973). Relatórios das Escolas/AMP. Belo
Horizonte: Cultura.

Recebido em: 28/8/2019


Aceito em: 16/8/2021

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