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AULA 6
CONTEXTUALIZANDO
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avaliação e a hierarquização das obras, vício muito presente em textos que
apenas evocam o título de crítica – “esse filme é melhor do que o anterior” etc.
O jornalismo opera em uma lógica de autoalimentação, na corda bamba
entre interesse público e interesse do público. Se algo é popular, se torna notícia.
Mas, ao mesmo tempo, ao se tornar notícia, se torna popular. Por isso a arte,
mais notadamente a música, a literatura e o cinema, foram alvos de tantos e
tantos ensaios críticos publicados em jornais ao longo do século XX. As
manifestações artístico-culturais é que mais atraíram o público e, portanto,
ganharam a honra de serem vistas sob o viés crítico.
A crítica de arte, portanto, não deve ser um mero exercício vazio de
rabugice, mas um importante instrumento tanto para criar pontes de contato
entre as obras e o público quanto para instruir o leitor e trazer a ele novos
conceitos que o levem a desenvolver sua percepção artística, para longe da
alienação. É diferente de colocar a arte como um alvo, ou um inimigo. Pelo
contrário. Trata-se de trazê-la para mais perto das pessoas. Para isso, é óbvio,
é preciso que quem escreve crítica procure se aprofundar sobre o assunto, pois,
como já dissemos, de nada vale escrever sobre o óbvio.
É a crítica que eleva o cinema ao status de arte, por exemplo, quando a
revista alemã Neue Zürcher Zeitung publica um texto sobre a primeira versão de
Quo Vadis, de 1913. É a crítica francesa que reabilitará o cinema clássico
hollywoodiano, conferindo a nomes como John Ford e Alfred Hitchcock o título
de autores, além de ter sido a faísca que desencadeou a Nouvelle Vague. É
impossível medir o impacto dos escritos de Pauline Kael para o cinema
hollywoodiano dos anos 1970 (a Nova Hollywood) ou o de Paulo Emílio Salles
Gomes para o Cinema Novo brasileiro. Isso para ficar apenas no cinema, a
grande arte do século XX. A arte se alimenta da crítica e vice-versa, em um
movimento contínuo e perpétuo.
Em linhas gerais, podemos dizer que o texto de crítica sobre um filme ou
livro deve entregar ao leitor algumas informações básicas: sinopse,
contextualização da obra e avaliação de seus elementos estético-estilísticos.
Frequentemente, jornalistas culturais podem aproveitar um filme, por exemplo,
para discutir temas maiores, produzindo um texto que vai além disso. Leia a
seguir trechos da coluna de Michel Laub (Folha de S.Paulo, 28/03/2014),
jornalista cultural e escritor, sobre o filme O Grande Hotel Budapeste, do cineasta
Wes Anderson:
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Ironia e horror no hotel
O texto é, mais do que uma simples crítica do filme, uma reflexão sobre O
Grande Hotel Budapeste em relação ao conjunto da obra de seu diretor, Wes
Anderson. Para isso, ele parte de seu estilo peculiar, que envolve a evocação de
um tipo particular de humor (envolvendo a ideia de uma outra autora, o camp de
Sontag) e a subsequente quebra desse paradigma interno. Ao colocar todo o
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cinema do autor em perspectiva, ele é capaz de extrair uma leitura única e
particular da obra que não está pairando na superfície do filme.
Laub lança mão de sua erudição sem alienar ou desrespeitar o leitor.
Quando usa o conceito do camp, por exemplo, toma o cuidado de explicá-lo
dentro de um contexto amigável, apontando que é uma questão complexa ao
mesmo tempo que oferece uma definição que atenda aos seus propósitos.
O resultado é um texto que amplia as relações de sentido criadas por Wes
Anderson em seu filme. Explica a maturidade do diretor e mostra como ela foi
alcançada, justificando as escolhas estéticas como éticas (no caso, a
ambientação do entreguerras). A crítica de Laub não se preocupa em dizer se o
filme é bom ou ruim, nem mesmo em colocá-lo em uma escala hierárquica. A
preocupação está em colocar O Grande Hotel Budapeste em perspectiva, o que
o autor faz brilhantemente.
Leitura complementar
Crítica de cinema
1. Blog do jornalista e estudioso de cinema Luiz Gustavo Vilela. Aqui o
autor publica suas análises dos filmes e séries que vêm chamando maior
atenção do público brasileiro. Disponível em: <http://cronicodecinema.com/>.
Acesso em: 21 jan. 2020.
2. Site que reúne textos de diversos analistas sobre os filmes do momento.
Disponível em: <http://cinemacomrapadura.com.br/cat/criticas/>. Acesso em: 21
jan. 2020.
Leitura complementar
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a Revista Piauí reserva espaço para contos ou trechos de romances), ainda que
o último, a crônica, tenha uma presença muito maior no jornalismo.
Retomando a discussão sobre a crônica e o conto, por partes:
1. A crônica é o gênero textual típico brasileiro. Ensaístico por natureza,
costuma possuir características narrativas e descritivas. Guarda relação
com o cotidiano na medida em que se posiciona no limite entre o
jornalismo e a literatura. Publicado em blogs, jornais e revistas, mas
também frequentemente organizado em antologias literárias.
3. A tradição prega que o texto de uma crônica seja leve, com frases simples
e diretas. O que não quer dizer que seja simplista, já que as relações
sociais do dia a dia, objeto de análise das crônicas, podem ser bastante
complexas.
Hemingway é tão famoso por sua literatura quanto pelas histórias de vida.
Reza a lenda que o escritor americano foi certa vez desafiado em um bar a contar
uma história em poucas palavras – o que, no fundo, é a essência de um conto.
Daí acabou se tornando um expert em narrativas curtas e rápidas. O que temos
nesse texto comprova a tese: uma sequência de frases curtas, diretas, com
raríssimos adjetivos e advérbios, por exemplo. É como se tudo fosse informação
na história, não há nada sobrando. Assim, o narrador nos mantém em suspenso,
aguardando o que vai acontecer logo em seguida.
Como exercício, avalie dois textos – um conto e uma crônica – a partir dos
critérios que estabelecemos aqui. Crônica: o autor “conversa” com o leitor;
comenta assuntos cotidianos; expressa sentimentos e ideias; tem humor? Conto:
a narrativa cria uma expectativa logo no começo; como o narrador se posiciona
(primeira ou terceira pessoa); concentra-se em um acontecimento; tem poucos
personagens; tem um final impactante?
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ao leitor que aquelas informações são escritas por uma pessoa com determinada
visão de mundo.
O aspecto central aqui é que um texto jornalístico, em sua definição
clássica, vai tentar balancear diversos pontos de vista, eventualmente até
mesmo o do próprio autor, buscando uma aproximação com uma realidade
objetiva (por mais fugidio que seja o conceito de realidade objetiva). O texto
opinativo por excelência, por outro lado, poderá usar esses mesmos pontos de
vista para corroborar o pensamento do autor sobre um determinado tema. Leia
os dois primeiros parágrafos da coluna da jornalista Eliane Brum, reproduzidos
a seguir:
Obscenidade é a palavra que chega mais perto, mas é fraca demais para
representar o Brasil atual. E também ela fracassa. Procuram-se palavras que
deem conta do excesso de real da realidade. A crise de representação assumiu
proporções inéditas. E o ano ainda não acabou.
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A estrutura textual não poderia ser mais objetiva. O primeiro parágrafo é
uma coletânea de fatos amplamente noticiados pela mídia nacional ao longo de
2015. Todas essas informações são repassadas para dar suporte à opinião da
colunista, que é a de que o país chegou a um patamar ainda inédito de acúmulo
de calamidades, que passam por diversas instâncias e esferas.
Seria possível contestar a argumentação de Brum usando o mesmo
modelo, escolhendo uma série de fatos noticiados em 2015 para indicar que esse
é um bom momento para o país, com oportunidades únicas surgindo? Em tese,
sim – essa é uma estratégia frequentemente utilizada pelos políticos. Alguém
poderia argumentar, por exemplo, que a Lava Jato está limpando o Congresso,
que os problemas ambientais que estamos vivendo são as dores do progresso
econômico e que vamos superá-los etc. Nesse sentido, o texto opinativo prova
que a informação em si é neutra, mas pode ser inclinada para qualquer direção,
dependendo da intenção de quem escreve.
O texto de Brum ainda demonstra elegância ao evitar fazer uma afirmação
categórica de que o Brasil vai mal por conta dos fatos elencados. Ela opta, ao
contrário, por trabalhar a ideia de que não há palavras para definir o mal-estar
que se sente ao diagnosticar o estado das coisas levando para uma crise de
representação. O processo argumentativo leva à opinião, inevitável, de que
estamos em um péssimo momento.
Portanto, podemos dizer que há dois aspectos fundamentais a serem
verificados em um texto opinativo: 1) a opinião do autor está clara?; 2) há
argumentos convincentes para embasar a opinião defendida? Com relação à
argumentação, uma boa estratégia é partir de fatos inquestionáveis – no texto
de Brum, por exemplo, ela cita uma lista grande deles, sem fazer qualquer
comentário apreciativo: os fatos falam por si próprios. Como o objetivo desse tipo
de texto é convencer os outros de um determinado ponto de vista, partir de fatos
com os quais seu leitor não pode discordar é uma ótima abordagem. Porém,
tome cuidado: lembre-se de que pessoas que não concordam com você podem
ler seu texto. Por isso, é de bom tom respeitar os que pensam diferente, sem
menosprezá-los com palavras agressivas – isso faria com que você perdesse
totalmente a capacidade de influenciá-las. Grande parte dos “textos de opinião”
que circulam pelas redes sociais hoje são “pregação para convertidos”, ou seja,
estão mais preocupados em ridicularizar os que pensam diferente do que em
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efetivamente construir uma argumentação para influenciá-los a mudar de
opinião.
Vejamos agora um outro exemplo, o texto Em busca da honestidade
intelectual (Gazeta do Povo, 12.08.2014), de Rogério Galindo (reproduzido
abaixo com autorização do autor):
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É possível dizer de maneira digna que, embora saibamos que não temos
como ser máquinas inumanas, estamos fazendo o melhor que podemos para
compreender os fatos de maneira ampla, tentando deixar de lado nossos
preconceitos, tentando colocar nosso intelecto para trabalhar em favor de um
jornalismo que conte versões intelectualmente honestas dos fatos, sem deturpá-
los. O pior dos mundos seria desconfiar da razão e da nossa capacidade
interpretativa a ponto de só crermos naquele que se diga militante.
Até porque, em muitas vezes, o discurso da militância serve muito mais
para encobrir outra praga do jornalismo, o da deturpação dos fatos para que eles
caibam em uma ideologia. Está na moda: desde que avisado de que essa é a
linha do veículo, o leitor estaria autorizando repórteres, colunistas e blogueiros a
buscar os argumentos mais torpes e enviesados para defender certas posições.
Eis uma tarefa interessante para o professor de Jornalismo de hoje.
Enfrentar um mundo em que a “verdade” definitiva não existe sem incentivar os
alunos a caírem no cinismo ou na irrelevância. Como em toda ciência social, no
jornalismo temos também de reconhecer nossos limites de compreensão do
mundo, sem nunca nos furtarmos de tentarmos chegar à realidade dos fatos e
de expô-los de maneira honesta a quem nos lê.
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2. Lembre-se: seu leitor pode não partilhar de suas crenças, portanto, é
preciso argumentar.
3. Pense em seus argumentos: eles são puramente opinativos ou têm uma
fundamentação factual?
4. Seu texto respeita a opinião diversa, ou pretende convencer o leitor “a
marteladas”?
Saiba mais
A sinopse é uma visão bem geral da história, que deixa claro qual é o
motor da trama, seus principais acontecimentos, personagens e ambientação.
Já o argumento vai detalhar o desenvolvimento da trama, incluindo personagens
secundários e descrevendo todas as etapas da narrativa, totalizando algo como
10% da extensão de um roteiro.
O argumento não é um roteiro completo. Só terá o esqueleto da narrativa,
sem falas dos personagens ou maiores detalhes. Estará lá apenas o que for
essencial para a trama andar. Já o roteiro é o texto que irá se transformar em
imagem, som e ação: tudo o que vai nele de alguma forma aparecerá na tela.
A palavra copidesque surge do bom e velho aportuguesamento de
expressões do inglês – neste caso, copy desk. Há um correspondente nacional,
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mas os jornalistas tradicionalmente chamaram o processo de revisão jornalística
de copidesque. Vejamos, então, uma definição do termo:
Copidescagem
Disponível em:
<http://dicionariodejornalismo.blogspot.com.br/2010/08/copidescagem.html>.
Acesso em: 21 jan. 2020.
Acabou a gargalhada
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Além disso, também afere a lógica interna de certos dados, ou do cruzamento
de dados. Uma pessoa não pode sair de Maceió, por exemplo, e chegar ao Rio
uma hora depois. Um homem não pode medir três metros de altura; 1 milhão de
reais não equivale a 2 milhões de euros.
Os checadores trabalhavam sobretudo de madrugada, conferindo as
últimas reportagens antes de serem enviadas para a gráfica. Adam logo se
destacou e foi promovido a chefe do setor. A ele cabia a conferência das
reportagens mais sensíveis, justamente as feitas na última hora, com maior
possibilidade de conterem erros.
Nessas horas, Adam não gargalhava. Nem falava, quase. Trabalhando
contra o tempo, velozmente, compulsava, quieto e concentradíssimo,
enciclopédias, almanaques, dicionários, recortes de jornais e revistas, cadernos
de anotações de repórteres. Não havia ainda a internet, e tudo tinha que ser
checado em papel, manualmente.
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O que dissemos sobre a revisão da escrita até aqui vale para qualquer
tipo de texto. No caso do texto literário, há mais um aspecto a se considerar, pois
esse tipo de texto não deseja apenas transmitir uma informação, de maneira
objetiva e racional. O texto literário está intimamente ligado à esfera da estética.
Você está lembrado dos contos que trabalhamos nessa unidade? Lembra-se de
como o estilo de Edgar Allan Poe é muito diferente do estilo de Machado de
Assis, por exemplo? O texto literário é construído de forma a causar certos
efeitos no leitor, a sugerir sentimentos, dúvidas etc. Assim como cada um de nós
tem uma forma de expressão oral particular – voz, entonação, escolha das
palavras etc. –, cada escritor desenvolve uma forma de escrever também
particular. Isso vale para certas categorias de textos jornalísticos, mas no caso
da literatura é absolutamente essencial. Um escritor deve ter dicção própria. E
como se chega a ela?
Dalton Trevisan, contista curitibano, é um caso exemplar da busca
incansável pela forma perfeita de um texto. Vários de seus contos são reescritos
e republicados ao longo dos anos, revelando o processo de aperfeiçoamento de
sua escrita. A seguir, tomamos emprestada do professor Carlos Alberto Faraco
uma análise do conto Uma vela para Dario, publicada no livro Estilística e
discurso. Ao comparar trechos de duas versões do conto, publicadas com 20
anos de diferença entre elas, é como se assistíssemos à mecânica de revisão
textual do autor. Leia e compare os três primeiros parágrafos das duas versões:
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[...]
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TROCANDO IDEIAS
Fórum literário
Como ao longo desta aula praticamos alguns gêneros literários, que tal
construirmos um fórum para partilhar nossos textos? O texto só ganha vida
quando encontra um leitor, não é mesmo?
Escolha um texto seu, desenvolvido anteriormente, do qual tenha gostado
especialmente, dentre estas três possibilidades: conto, crônica, argumento.
Publique-o no fórum. Em seguida, leia textos dos colegas e comente-os.
NA PRÁTICA
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FINALIZANDO
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liberdade ao autor, que poderá empregar focos narrativos distintos. Todavia, é
preciso lembrar que a crônica também pode empregar linguagem literária, como
as figuras de linguagem e até mesmo diálogos, o que aponta para uma forma
híbrida entre jornalismo e ficção.
Na revisão sobre textos opinativos, discutimos como é importante
construir a argumentação com fatos e dados. Vimos também que os fatos podem
ser utilizados para construir argumentações diferentes, e a sua organização é
que constrói o sentido.
Em aulas anteriores, revisamos os conceitos de sinopse e argumento,
dois gêneros de textos que dão vida a produtos audiovisuais, e trabalhamos esse
conceito na prática jornalista. Vimos como a copidescagem vai além da simples
revisão de linguagem, sendo uma prática que implica grande responsabilidade
sobre o texto por verificar informações, dados, citações e, quando necessário,
envolver a reescrita do texto.
Por fim, falamos sobre a autocrítica literária, ou seja, sobre a habilidade
de um autor em analisar criticamente seus próprios textos. Vimos como o
processo de refinamento estilístico está intimamente ligado ao fazer literário e
como é preciso desenvolver a capacidade de olhar para o próprio texto como
leitor.
Assim, encerramos nosso trabalho nesta disciplina com um
aprofundamento do olhar sobre o texto. Esperamos que você tenha se tornado
um leitor mais consciente e um escritor mais qualificado. Não esqueça: o único
caminho para tornar-se um bom escritor é a prática constante. Por isso, leia,
escreva, reescreva e ouça a opinião de outras pessoas sobre seus textos sempre
que possível.
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REFERÊNCIAS