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PRODUÇÃO TEXTUAL

AULA 6

Prof. Jeferson Ferro


CONVERSA INICIAL

Olá, alunas e alunos.


Nesta aula, revisaremos alguns dos conceitos centrais para a elaboração
de textos jornalísticos. Nosso maior objetivo aqui é desenvolver sua capacidade
de avaliação crítica da linguagem, por isso o tema central será a ideia de revisão
textual.
Antes de mergulhar nele, porém, começaremos pelo gênero que é
marcado pela própria natureza reflexiva: a crítica. O texto crítico – como uma
resenha, por exemplo – é, antes de tudo, uma tomada de posição. Uma de suas
manifestações, a mais relevante para a prática jornalística, é seu uso como
método para analisar um objeto, em geral artístico – filmes, peças teatrais, shows
etc.
Em seguida, retomamos a crônica, esse gênero textual brasileiro por
excelência, e o conto, que pode ser visto como um exercício de contenção.
Vamos rever os dois gêneros, pontuar suas diferenças e articular similaridades,
retomando reflexões de outras aulas.
Nossa próxima parada é um mergulho no estilo opinativo – do qual o texto
crítico é parente. Será que o texto de opinião é menos objetivo quando
comparado aos demais gêneros jornalísticos?
No próximo tema, vamos retomar os conceitos de sinopse e argumento e
falar do copidesque – você sabe o que significa essa palavra? Esse profissional
é muito mais do que um simples revisor, e vamos descobrir por quê.
Por fim, buscaremos um pouco de inspiração no trabalho de grandes
escritores, a fim de saber como eles trabalham seus próprios textos em busca
da frase perfeita. Esperamos que, ao final da aula, seu senso crítico tenha ficado
um pouco mais apurado e você possa olhar para seus próprios textos de maneira
mais crítica. Vamos juntos nessa jornada de reflexão e prática!

CONTEXTUALIZANDO

Houve um tempo em que toda redação de jornal ou revista tinha um


valioso profissional: o copidesque. Esse ser iluminado era responsável por
“endireitar” todo texto que chegava torto à redação, para que só então, após
passar por suas mãos, ganhasse vida nas páginas impressas. Limpo, o texto
poderia finalmente encontrar seus leitores.
No mundo digital, a necessidade de se comunicar de forma cada vez mais
veloz e direta foi um verdadeiro meteoro na história desse “dinossauro”
profissional: extinguiu rapidamente seu lugar nas redações. Hoje, o copidesque
sobrevive quase exclusivamente nas editoras, onde seu trabalho ainda é
valorizado. Muitos campeões de vendas nas livrarias não sabem realmente
escrever. Por mais que esses autores tenham um bom conteúdo para transmitir,
é o tal do copidesque quem dá vida e sentido aos textos que leva o nome desses
autores na capa.
Para ser um jornalista de sucesso nos dias de hoje, é essencial possuir
autonomia na escrita. Isso significa que você deve ser capaz de produzir seus
conteúdos e revisá-los por conta própria, entregando um texto final perfeitamente
fechado para o veículo em que vai publicar. Desenvolver esse olhar crítico sobre
seu próprio texto não é tarefa das mais simples, pois requer prática e esforço.
Nesta aula, vamos centrar nossa atenção nessa prática.
Os temas abordados:

1. Como fazer uma crítica textual

2. Processos de revisão de textos literários: conto e crônica

3. Processos de revisão de textos opinativos

4. Processos de revisão e copidescagem de sinopse e argumento

5. O processo de autocrítica: cases literários

Saiba mais

Que tal conhecer um pouco mais sobre o universo da revisão textual?


Confira os links a seguir.
Disponível em:
<https://www.publishnews.com.br/materias/2010/09/14/59923-o-nobre-e-
inglorio-copidesque>. Acesso em: 21 jan. 2020.
Disponível em: <https://revisaoparaque.com/blog/diferentes-funcoes-
mesma-profissao-os-tipos-de-revisor-de-texto/>. Acesso em: 21 jan. 2020.

TEMA 1 – COMO FAZER UMA CRÍTICA TEXTUAL

Começaremos com uma reflexão sobre o exercício da crítica textual.


Mas o que é a crítica? Como ela se articula como discurso independente?
Qual sua importância para a prática jornalística?
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Michel Foucault, um dos filósofos mais importantes do século XX, liga o
pensamento crítico à emergência da razão (pensamento racional), que surge em
meados do século XV na Europa, em contraponto ao autoritarismo e à repressão
da Igreja Católica e do sistema feudal. As pessoas começaram a questionar o
determinismo religioso e aristocrático: “tenho que ser pobre a vida inteira porque
nasci pobre? Os nobres são nobres por direito de nascença?”. É por isso que o
filósofo francês define crítica como a “arte de não ser de tal forma governado”.
Isso quer dizer que toda crítica, quando manifestada em um exercício textual,
envolve um confronto ideológico, um exercício de dúvida e questionamento.
A crítica textual é o resultado do processo que se inicia com o crítico se
colocando diante de um objeto (seja um sistema de governo, um fato, um texto
ou uma obra de arte). Sua sensibilidade e capacidade de percepção irão produzir
toda uma relação de sentidos que pretende ressignificar e reconduzir a leitura
dessa obra, o que implica não se deixar levar pela superficialidade e pelo óbvio.
Se fosse dizer o que todo mundo já sabe e pensa sobre um determinado objeto
(um show, um livro, um filme etc.), qual seria o valor do texto crítico?
A definição de Foucault é um tanto generalista, o que facilita a sua
aplicação em diversos campos do conhecimento. A rigor, qualquer texto
jornalístico ou acadêmico é um exercício de crítica. Afinal, dado um determinado
objeto em questão, ele será colocado em perspectiva sob diferentes óticas.
Jornalismo é um ato crítico na medida em que busca sempre questionar algo –
em geral, sua pauta.
É, em parte, por isso que a crítica como postura diante do mundo se
confunde com a crítica como gênero textual, em geral aplicado às artes. Há,
claro, uma série de sobreposições entre um e outro. Mas, em parte pelas
transformações do conceito através do século XX, qualquer texto sobre um
objeto artístico com caráter opinativo publicado em jornal acabou por ser
considerado uma crítica.
A designação crítico, por outro lado, se tornou sinônimo de pessoa mal-
humorada e que não gosta de nada – você convidaria um crítico de qualquer
coisa para a sua festa de aniversário? Ainda que boa parte das críticas
publicadas em jornal seja de textos que se dedicam a rejeitar as propostas
artísticas sob análise, isso não quer dizer que a crítica tenha de ser
obrigatoriamente negativa, ou que seu trabalho seja apenas o de desconstruir o
objeto analisado. Note que apontamos como características da crítica a

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avaliação e a hierarquização das obras, vício muito presente em textos que
apenas evocam o título de crítica – “esse filme é melhor do que o anterior” etc.
O jornalismo opera em uma lógica de autoalimentação, na corda bamba
entre interesse público e interesse do público. Se algo é popular, se torna notícia.
Mas, ao mesmo tempo, ao se tornar notícia, se torna popular. Por isso a arte,
mais notadamente a música, a literatura e o cinema, foram alvos de tantos e
tantos ensaios críticos publicados em jornais ao longo do século XX. As
manifestações artístico-culturais é que mais atraíram o público e, portanto,
ganharam a honra de serem vistas sob o viés crítico.
A crítica de arte, portanto, não deve ser um mero exercício vazio de
rabugice, mas um importante instrumento tanto para criar pontes de contato
entre as obras e o público quanto para instruir o leitor e trazer a ele novos
conceitos que o levem a desenvolver sua percepção artística, para longe da
alienação. É diferente de colocar a arte como um alvo, ou um inimigo. Pelo
contrário. Trata-se de trazê-la para mais perto das pessoas. Para isso, é óbvio,
é preciso que quem escreve crítica procure se aprofundar sobre o assunto, pois,
como já dissemos, de nada vale escrever sobre o óbvio.
É a crítica que eleva o cinema ao status de arte, por exemplo, quando a
revista alemã Neue Zürcher Zeitung publica um texto sobre a primeira versão de
Quo Vadis, de 1913. É a crítica francesa que reabilitará o cinema clássico
hollywoodiano, conferindo a nomes como John Ford e Alfred Hitchcock o título
de autores, além de ter sido a faísca que desencadeou a Nouvelle Vague. É
impossível medir o impacto dos escritos de Pauline Kael para o cinema
hollywoodiano dos anos 1970 (a Nova Hollywood) ou o de Paulo Emílio Salles
Gomes para o Cinema Novo brasileiro. Isso para ficar apenas no cinema, a
grande arte do século XX. A arte se alimenta da crítica e vice-versa, em um
movimento contínuo e perpétuo.
Em linhas gerais, podemos dizer que o texto de crítica sobre um filme ou
livro deve entregar ao leitor algumas informações básicas: sinopse,
contextualização da obra e avaliação de seus elementos estético-estilísticos.
Frequentemente, jornalistas culturais podem aproveitar um filme, por exemplo,
para discutir temas maiores, produzindo um texto que vai além disso. Leia a
seguir trechos da coluna de Michel Laub (Folha de S.Paulo, 28/03/2014),
jornalista cultural e escritor, sobre o filme O Grande Hotel Budapeste, do cineasta
Wes Anderson:

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Ironia e horror no hotel

Hipóteses para explicar o sucesso dos filmes de Wes Anderson: 1) porque


eles são bons; 2) porque são bons ao imitar algo que não seria “bom” segundo
os parâmetros correntes; 3) porque percebemos a sutileza do item 2 fingindo que
estamos tratando do 1, e nossos amigos fazem o mesmo, e essa piada interna
em cima da piada externa nos faz sentir inteligentes e cultivados.

“The Grand Budapest Hotel”, seu mais recente trabalho, embaralha um


pouco as explicações. É a reação 3, a princípio, que nos faz acompanhar com
interesse as peripécias mirabolantes de um concierge (Ralph Fiennes), seu
ajudante (Tony Revolori), idosas lúbricas e uma família cheia de vilões num país
fictício entre o que parecem ser as duas guerras mundiais. (...)

O resultado é uma comédia ambígua, com toques crescentes de amargor


à medida que se aproxima do desfecho. Em outros títulos de Anderson, a
nostalgia era uma espécie de jogo entre cínicos charmosamente afetados.
Agora, o contexto em que se passa a trama exige mais que um fascínio paródico
por roupas, cores, figuras humanas e convenções narrativas de um mundo que
não existe mais. (...)

Como ser “camp” ao mostrar o impacto do horror histórico na vida


privada? É uma pergunta que Wes Anderson parece se fazer em “The Grand
Budapest Hotel”. Nas cenas derradeiras, ao preferir a abordagem direta à
proteção das piscadelas de olho, sua resposta não deixa de ser inédita: a
melancolia que fica quando sobem os créditos é —palavra talvez nunca usada
numa crítica ao diretor— emocionante.

LAUB, M. Ironia e horror no hotel. Folha de S.Paulo, 28 mar. 2014. Disponível


em: <http://www1.folha.uol.com.br/colunas/michellaub/2014/03/1432227-ironia-
e-horror-no-hotel.shtml>. Acesso em: 23 dez. 2019.

O texto é, mais do que uma simples crítica do filme, uma reflexão sobre O
Grande Hotel Budapeste em relação ao conjunto da obra de seu diretor, Wes
Anderson. Para isso, ele parte de seu estilo peculiar, que envolve a evocação de
um tipo particular de humor (envolvendo a ideia de uma outra autora, o camp de
Sontag) e a subsequente quebra desse paradigma interno. Ao colocar todo o

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cinema do autor em perspectiva, ele é capaz de extrair uma leitura única e
particular da obra que não está pairando na superfície do filme.
Laub lança mão de sua erudição sem alienar ou desrespeitar o leitor.
Quando usa o conceito do camp, por exemplo, toma o cuidado de explicá-lo
dentro de um contexto amigável, apontando que é uma questão complexa ao
mesmo tempo que oferece uma definição que atenda aos seus propósitos.
O resultado é um texto que amplia as relações de sentido criadas por Wes
Anderson em seu filme. Explica a maturidade do diretor e mostra como ela foi
alcançada, justificando as escolhas estéticas como éticas (no caso, a
ambientação do entreguerras). A crítica de Laub não se preocupa em dizer se o
filme é bom ou ruim, nem mesmo em colocá-lo em uma escala hierárquica. A
preocupação está em colocar O Grande Hotel Budapeste em perspectiva, o que
o autor faz brilhantemente.

Leitura complementar

Crítica de cinema
1. Blog do jornalista e estudioso de cinema Luiz Gustavo Vilela. Aqui o
autor publica suas análises dos filmes e séries que vêm chamando maior
atenção do público brasileiro. Disponível em: <http://cronicodecinema.com/>.
Acesso em: 21 jan. 2020.
2. Site que reúne textos de diversos analistas sobre os filmes do momento.
Disponível em: <http://cinemacomrapadura.com.br/cat/criticas/>. Acesso em: 21
jan. 2020.

TEMA 2 – PROCESSOS DE REVISÃO DE TEXTOS LITERÁRIOS: CONTO E


CRÔNICA

Leitura complementar

Para aprofundar seu conhecimento sobre a relação entre ficção e


jornalismo, acesse, na biblioteca virtual, o livro Jornalismo literário, de Felipe
Pena, e leia o capítulo A ficção jornalística.

Neste tema, vamos retomar dois gêneros textuais já bastante discutidos


ao longo desta disciplina: o conto e a crônica. Ambos são formas que literatos
brasileiros dominaram com maestria, configurando boa parte de nossa
excelência literária, e têm uma história de publicação em jornais diários (até hoje

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a Revista Piauí reserva espaço para contos ou trechos de romances), ainda que
o último, a crônica, tenha uma presença muito maior no jornalismo.
Retomando a discussão sobre a crônica e o conto, por partes:
1. A crônica é o gênero textual típico brasileiro. Ensaístico por natureza,
costuma possuir características narrativas e descritivas. Guarda relação
com o cotidiano na medida em que se posiciona no limite entre o
jornalismo e a literatura. Publicado em blogs, jornais e revistas, mas
também frequentemente organizado em antologias literárias.

2. Do ponto de vista jornalístico, a crônica tem menos compromisso com os


fatos e as informações e mais com os “afetos”. O cronista imprime sua
subjetividade ao texto. A vida ordinária, que ganha uma perspectiva
ampliada pelo olhar de quem a observa, costuma ser o tema das crônicas.

3. A tradição prega que o texto de uma crônica seja leve, com frases simples
e diretas. O que não quer dizer que seja simplista, já que as relações
sociais do dia a dia, objeto de análise das crônicas, podem ser bastante
complexas.

4. O conto é um gênero literário mais tradicional, caracterizado pela narrativa


curta, que concentra sua ação em um único núcleo. A definição exata do
que é o conto fica um pouco fugidia por conta de outro gênero, a novela,
que se coloca entre o conto e o romance em matéria de escopo e
extensão.

5. A diferença central entre um conto e uma crônica está na relação com o


factual, com o acontecimento. A crônica sempre irá se debruçar sobre algo
que aconteceu ou está acontecendo, uma observação do cotidiano que o
autor traz à nossa atenção, enquanto o conto não tem necessariamente
essa preocupação e pode “viajar na fantasia”. A crônica trata do ponto de
vista específico do autor, que parece conversar com o leitor. Já o conto
permite ao foco narrativo maior liberdade, podendo ser em terceira
pessoa, construído apenas por diálogos etc.

Um dos aspectos mais importantes sobre a escrita do conto é a economia


de espaço. Como se trata de uma narrativa curta, o autor tem de ser preciso e
econômico. Esse aspecto fica mais claro quando vemos como alguns autores
trabalharam com isso. Observe as primeiras linhas de um conto do autor norte-
americano Ernest Hemingway:
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Um gato à chuva

Apenas dois americanos estavam hospedados no hotel. Eles não


conheciam nenhuma das pessoas com quem tinham cruzado pelas escadas, no
movimento de “entra e sai” do quarto. Estavam hospedados no segundo andar,
num apartamento que ficava de frente para o mar e também de frente para a
praça e o monumento de guerra. Havia enormes palmeiras e bancos verdes na
praça. Quando o tempo estava bom havia sempre um pintor com o seu cavalete
por lá. Os artistas gostavam das formas das palmeiras e das cores brilhantes
dos hotéis, de frente para os jardins e para o mar. Italianos vinham de longe para
ver o monumento de guerra.

HEMINGWAY, E. Um gato à chuva. O Conselheiro Acácio, 23 dez. 2008.


Disponível em: <https://conselheiroacacio.wordpress.com/2008/12/23/um-gato-
a-chuva-ernest-hemingway/>. Acesso em: 23 dez. 2019.

Hemingway é tão famoso por sua literatura quanto pelas histórias de vida.
Reza a lenda que o escritor americano foi certa vez desafiado em um bar a contar
uma história em poucas palavras – o que, no fundo, é a essência de um conto.
Daí acabou se tornando um expert em narrativas curtas e rápidas. O que temos
nesse texto comprova a tese: uma sequência de frases curtas, diretas, com
raríssimos adjetivos e advérbios, por exemplo. É como se tudo fosse informação
na história, não há nada sobrando. Assim, o narrador nos mantém em suspenso,
aguardando o que vai acontecer logo em seguida.
Como exercício, avalie dois textos – um conto e uma crônica – a partir dos
critérios que estabelecemos aqui. Crônica: o autor “conversa” com o leitor;
comenta assuntos cotidianos; expressa sentimentos e ideias; tem humor? Conto:
a narrativa cria uma expectativa logo no começo; como o narrador se posiciona
(primeira ou terceira pessoa); concentra-se em um acontecimento; tem poucos
personagens; tem um final impactante?

TEMA 3 – PROCESSOS DE REVISÃO DE TEXTOS OPINATIVOS

O texto opinativo é um gênero bastante difundido em blogs e redes


sociais. É importante lembrar que um texto opinativo não é contrário a um texto
objetivo. Afinal, uma das formas de perceber a objetividade está em deixar claro

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ao leitor que aquelas informações são escritas por uma pessoa com determinada
visão de mundo.
O aspecto central aqui é que um texto jornalístico, em sua definição
clássica, vai tentar balancear diversos pontos de vista, eventualmente até
mesmo o do próprio autor, buscando uma aproximação com uma realidade
objetiva (por mais fugidio que seja o conceito de realidade objetiva). O texto
opinativo por excelência, por outro lado, poderá usar esses mesmos pontos de
vista para corroborar o pensamento do autor sobre um determinado tema. Leia
os dois primeiros parágrafos da coluna da jornalista Eliane Brum, reproduzidos
a seguir:

É política sim, Geraldo

O Brasil no final de 2015: a bacia do Rio Doce foi destruída, e a lama


avança sobre o oceano; o presidente da Câmara dos Deputados, Eduardo
Cunha (PMDB), um homem investigado por crimes de lavagem de dinheiro e
corrupção, que escondeu contas na Suíça, dá início ao processo que pode
resultar no impeachment da presidente Dilma Rousseff (PT), depois de constatar
que deputados petistas votariam contra ele no Conselho de Ética, numa ação
que pode cassar seu mandato; a Polícia Militar do Rio de Janeiro dispara 111
tiros e fuzila cinco jovens negros porque passeavam de carro à noite; as
brasileiras não podem engravidar porque há um surto de microcefalia causado
por vírus transmitido pelo Aedes aegypti e aquelas que estão grávidas foram
condenadas a viver em pânico diante do zumbido de um mosquito; o governador
de São Paulo, Geraldo Alckmin (PSDB), autoriza a PM a jogar bombas de gás e
a bater em estudantes de escolas públicas.

Obscenidade é a palavra que chega mais perto, mas é fraca demais para
representar o Brasil atual. E também ela fracassa. Procuram-se palavras que
deem conta do excesso de real da realidade. A crise de representação assumiu
proporções inéditas. E o ano ainda não acabou.

BRUM, E. É política sim, Geraldo. El País, 15 dez. 2015. Disponível em:


<http://brasil.elpais.com/brasil/2015/12/07/opinion/1449493768_665059.html>.
Acesso em: 23 dez. 2019.

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A estrutura textual não poderia ser mais objetiva. O primeiro parágrafo é
uma coletânea de fatos amplamente noticiados pela mídia nacional ao longo de
2015. Todas essas informações são repassadas para dar suporte à opinião da
colunista, que é a de que o país chegou a um patamar ainda inédito de acúmulo
de calamidades, que passam por diversas instâncias e esferas.
Seria possível contestar a argumentação de Brum usando o mesmo
modelo, escolhendo uma série de fatos noticiados em 2015 para indicar que esse
é um bom momento para o país, com oportunidades únicas surgindo? Em tese,
sim – essa é uma estratégia frequentemente utilizada pelos políticos. Alguém
poderia argumentar, por exemplo, que a Lava Jato está limpando o Congresso,
que os problemas ambientais que estamos vivendo são as dores do progresso
econômico e que vamos superá-los etc. Nesse sentido, o texto opinativo prova
que a informação em si é neutra, mas pode ser inclinada para qualquer direção,
dependendo da intenção de quem escreve.
O texto de Brum ainda demonstra elegância ao evitar fazer uma afirmação
categórica de que o Brasil vai mal por conta dos fatos elencados. Ela opta, ao
contrário, por trabalhar a ideia de que não há palavras para definir o mal-estar
que se sente ao diagnosticar o estado das coisas levando para uma crise de
representação. O processo argumentativo leva à opinião, inevitável, de que
estamos em um péssimo momento.
Portanto, podemos dizer que há dois aspectos fundamentais a serem
verificados em um texto opinativo: 1) a opinião do autor está clara?; 2) há
argumentos convincentes para embasar a opinião defendida? Com relação à
argumentação, uma boa estratégia é partir de fatos inquestionáveis – no texto
de Brum, por exemplo, ela cita uma lista grande deles, sem fazer qualquer
comentário apreciativo: os fatos falam por si próprios. Como o objetivo desse tipo
de texto é convencer os outros de um determinado ponto de vista, partir de fatos
com os quais seu leitor não pode discordar é uma ótima abordagem. Porém,
tome cuidado: lembre-se de que pessoas que não concordam com você podem
ler seu texto. Por isso, é de bom tom respeitar os que pensam diferente, sem
menosprezá-los com palavras agressivas – isso faria com que você perdesse
totalmente a capacidade de influenciá-las. Grande parte dos “textos de opinião”
que circulam pelas redes sociais hoje são “pregação para convertidos”, ou seja,
estão mais preocupados em ridicularizar os que pensam diferente do que em

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efetivamente construir uma argumentação para influenciá-los a mudar de
opinião.
Vejamos agora um outro exemplo, o texto Em busca da honestidade
intelectual (Gazeta do Povo, 12.08.2014), de Rogério Galindo (reproduzido
abaixo com autorização do autor):

Uma das tarefas de um curso de Jornalismo é a de ensinar o aluno a ter


uma relação honesta com a informação. Por um lado, a ciência da comunicação
não pode pregar a existência de “verdades” que possam ser apreendidas pelo
repórter. Virou clichê na profissão a afirmação de que a imparcialidade absoluta
do jornalista é impossível: a própria escolha dos temas, o modo de abordá-los e
a seleção dos entrevistados (entre centenas de outros pontos), tudo isso impede
o jornalismo de ser “neutro”. Jornalismo, em grande medida, é hierarquização e
interpretação – nada mais distante de uma objetividade fria.
No entanto, a discussão passa também pelo outro excesso possível. Se
não há uma verdade universal e definida a ser apreendida, corre-se o risco do
relativismo (toda abordagem se equivale) e pode-se cair no proselitismo. Este
segundo perigo é grave e passa despercebido na maior parte dos debates. Há
uma tendência em parte dos veículos (e dos professores) de comunicação a
afirmar que o melhor a se fazer é, no mínimo, revelar ao leitor qual o ponto de
vista de quem produz a notícia. Avisar o leitor de que somos humanos e “temos
lado”. Nada contra. Mas não é a única opção.
A ideia aqui é de que, visto que a neutralidade completa é absurda e
impossível, tentá-la só pode ser uma farsa – uma fraude contra a própria
inteligência ou contra a boa-fé do leitor. O jornalismo que se diz neutro só pode
ser tolo (na melhor das hipóteses) ou mentiroso (na pior). Não haveria salvação
fora do texto abertamente opinativo ou que, pelo menos, exponha claramente a
quem o leia (ou assista, ou ouça) qual a posição de seu autor. Mas isso deixa de
lado a hipótese interessante de que podemos buscar um ponto de equilíbrio.
Em última instância, a neutralidade é impossível? Em última instância,
responderia Paulo Francis, estaremos todos mortos. Enquanto estamos vivos, o
melhor é buscar soluções. E, se não temos como capturar o incapturável,
podemos claramente lutar para sermos fiéis àquilo que nos parece ser uma
versão honesta dos fatos. A opção pela declaração contínua de nossas posições,
embora justa, não é a única válida se quisermos jogar limpo com o público.

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É possível dizer de maneira digna que, embora saibamos que não temos
como ser máquinas inumanas, estamos fazendo o melhor que podemos para
compreender os fatos de maneira ampla, tentando deixar de lado nossos
preconceitos, tentando colocar nosso intelecto para trabalhar em favor de um
jornalismo que conte versões intelectualmente honestas dos fatos, sem deturpá-
los. O pior dos mundos seria desconfiar da razão e da nossa capacidade
interpretativa a ponto de só crermos naquele que se diga militante.
Até porque, em muitas vezes, o discurso da militância serve muito mais
para encobrir outra praga do jornalismo, o da deturpação dos fatos para que eles
caibam em uma ideologia. Está na moda: desde que avisado de que essa é a
linha do veículo, o leitor estaria autorizando repórteres, colunistas e blogueiros a
buscar os argumentos mais torpes e enviesados para defender certas posições.
Eis uma tarefa interessante para o professor de Jornalismo de hoje.
Enfrentar um mundo em que a “verdade” definitiva não existe sem incentivar os
alunos a caírem no cinismo ou na irrelevância. Como em toda ciência social, no
jornalismo temos também de reconhecer nossos limites de compreensão do
mundo, sem nunca nos furtarmos de tentarmos chegar à realidade dos fatos e
de expô-los de maneira honesta a quem nos lê.

GALINDO, R. Em busca da honestidade intelectual. Gazeta do Povo, 12 ago.


2014. Disponível em: <https://www.gazetadopovo.com.br/opiniao/artigos/em-
busca-da-honestidade-intelectual-ec24pxig6itw9r3shdx5fxpou/>. Acesso em: 23
dez. 2019.

Perceba como o texto de Galindo é um belo exemplo de argumentação


equilibrada: ele parte de opiniões consensuais, sobre as quais não há debate
(como a responsabilidade do jornalismo com a honestidade da informação, algo
que ninguém negaria), para ir, passo a passo, se aproximando da ideia que
pretende defender. Ao longo do caminho, ele dá espaço a opiniões que diferem
da sua, até que, por meio de uma pergunta (“em última instância, a neutralidade
é impossível?”), engaja o leitor na sua tese. De forma muito hábil e sutil, o texto
constrói uma argumentação sólida em defesa de uma ideia, resumida no último
parágrafo.

Dicas básicas: texto de opinião

1. Qual é a opinião que você defende? Por quê?

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2. Lembre-se: seu leitor pode não partilhar de suas crenças, portanto, é
preciso argumentar.
3. Pense em seus argumentos: eles são puramente opinativos ou têm uma
fundamentação factual?
4. Seu texto respeita a opinião diversa, ou pretende convencer o leitor “a
marteladas”?

TEMA 4 – PROCESSOS DE REVISÃO E COPIDESCAGEM DE SINOPSE E


ARGUMENTO
Agora, vamos discutir a revisão e copidescagem de sinopse e argumento.
A primeira coisa que faremos é retomar os conceitos de sinopse e argumento, já
abordados nas aulas passadas.

Saiba mais

Relembrando o que já vimos na unidade anterior:


Sobre o argumento: <http://www.infoescola.com/cinema/argumento-
cinematografico/>. Acesso em: 21 jan. 2020.
Sobre a sinopse: <http://www.roteirosonline.com.br/sinopse.htm>. Acesso
em: 21 jan. 2020.

Com relação à ordem de detalhamento e quantidade de informação,


questão central para a conceituação, basta lembrar o seguinte:

sinopse > argumento > roteiro

A sinopse é uma visão bem geral da história, que deixa claro qual é o
motor da trama, seus principais acontecimentos, personagens e ambientação.
Já o argumento vai detalhar o desenvolvimento da trama, incluindo personagens
secundários e descrevendo todas as etapas da narrativa, totalizando algo como
10% da extensão de um roteiro.
O argumento não é um roteiro completo. Só terá o esqueleto da narrativa,
sem falas dos personagens ou maiores detalhes. Estará lá apenas o que for
essencial para a trama andar. Já o roteiro é o texto que irá se transformar em
imagem, som e ação: tudo o que vai nele de alguma forma aparecerá na tela.
A palavra copidesque surge do bom e velho aportuguesamento de
expressões do inglês – neste caso, copy desk. Há um correspondente nacional,

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mas os jornalistas tradicionalmente chamaram o processo de revisão jornalística
de copidesque. Vejamos, então, uma definição do termo:

Copidescagem

Tratamento que uma notícia recebe de um redator depois de ser entregue


pelo repórter à sua editoria. Vai desde a simples titulagem e uma ou outra
adequação de vírgulas, até a total reestruturação do texto, em função de uma
redução no espaço para publicação ou de decisão editoriaI de ressaltar aspectos
não destacados pelo repórter.

Disponível em:
<http://dicionariodejornalismo.blogspot.com.br/2010/08/copidescagem.html>.
Acesso em: 21 jan. 2020.

A copidescagem, afinal, é isso: a revisão jornalística de um texto, que


implica muito mais trabalho do que simplesmente retirar as vírgulas que estão
entre sujeitos e predicados ou corrigir a acentuação de acordo com as novas
normas ortográficas, mesmo que isso também faça parte do processo. A
copidescagem vai além da revisão de língua portuguesa e começa com a
observação das normas editoriais.
Lembre-se, já discutimos por aqui a questão de como o texto jornalístico
está sujeito aos ditames editoriais. O mesmo jornalista poderá escrever de forma
radicalmente diversa em veículos diferentes por conta do que o manual prega. E
uma das funções do copidesque é assegurar que uma reportagem esteja dentro
dessas normas específicas.
Mas, talvez, a função central de um copidesque seja a da verificação de
fatos. Para ilustrar melhor como funciona essa função, vale a pena ler o trecho
abaixo do obituário de Adam Sun, lendário checador do jornalismo brasileiro,
publicado na Revista Piauí:

Acabou a gargalhada

(...) empregou-se na Veja como checador. A função era recente e rara, e


Adam contribuiu muito para defini-la e incrementá-la. A checagem é um ofício
paradoxal: se bem-feito, ele não aparece. Cabe ao checador conferir todas as
informações aferíveis numa reportagem, artigo ou ensaio. Ele verifica grafias,
datas, distâncias, cálculos e citações por meio de outras fontes, escritas ou não.

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Além disso, também afere a lógica interna de certos dados, ou do cruzamento
de dados. Uma pessoa não pode sair de Maceió, por exemplo, e chegar ao Rio
uma hora depois. Um homem não pode medir três metros de altura; 1 milhão de
reais não equivale a 2 milhões de euros.
Os checadores trabalhavam sobretudo de madrugada, conferindo as
últimas reportagens antes de serem enviadas para a gráfica. Adam logo se
destacou e foi promovido a chefe do setor. A ele cabia a conferência das
reportagens mais sensíveis, justamente as feitas na última hora, com maior
possibilidade de conterem erros.
Nessas horas, Adam não gargalhava. Nem falava, quase. Trabalhando
contra o tempo, velozmente, compulsava, quieto e concentradíssimo,
enciclopédias, almanaques, dicionários, recortes de jornais e revistas, cadernos
de anotações de repórteres. Não havia ainda a internet, e tudo tinha que ser
checado em papel, manualmente.

ACABOU a gargalhada. Revista Piauí, 26 nov. 2008. Disponível em:


<https://piaui.folha.uol.com.br/materia/acabou-a-gargalhada/>. Acesso em: 23
dez. 2019.

“A checagem [como o copidesque é chamado na redação da Piauí] é um


ofício paradoxal: se bem-feito, ele não aparece”. Essa talvez seja a mais
interessante forma de pensar sobre a copidescagem: lembrar que seu destino é
a invisibilidade. Ou seja, existe para que o leitor não a perceba.
E daí a importância central do copidesque no processo de construção de
sinopses, argumentos e roteiros. Cada uma dessas estruturas será trabalhada
em uma dinâmica de ampliação em relação à seguinte e, por isso, precisa ser
revista com atenção e cuidado. Portanto, se há uma regra para o processo de
revisão desse conjunto específico de textos, podemos dizer que os três textos
devem ser “cotejados”, ou seja, comparados, lidos lado a lado, para que se possa
perceber se há alguma discrepância entre eles.

Saiba mais

Este texto, de José Miguel Wisnik, discute a proposta de se produzir


versões facilitadas de Machado de Assis para o público leigo, a fim de facilitar
seu acesso à leitura dos clássicos. Trata-se de um artigo de opinião que discute
o tema da revisão simplificadora, e que o autor, ironicamente, chamou de
Machado copidescado.
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Disponível em: <http://oglobo.globo.com/cultura/machado-copidescado-
12513915>. Acesso em: 21 jan. 2020.

TEMA 5 – O PROCESSO DE AUTOCRÍTICA: CASES LITERÁRIOS

Inspiração ou expiração: o que conta mais para que alguém se torne um


bom escritor? Por mais diversas que sejam as opiniões de escritores do mundo
todo, e de várias épocas, é mais ou menos consensual entre eles e elas que o
produto final de qualquer desafio da escrita é resultado de um processo
trabalhoso de reescrita e revisão. Ainda que a inspiração e a criatividade sejam
a matéria-prima do processo de criação literária, é difícil entregar um bom texto
sem antes fazê-lo passar por um processo cuidadoso de revisão. Você não
acredita? Acesse o link a seguir e veja imagens de correções feitas em seus
próprios textos por alguns dos maiores autores da literatura universal:

Disponível em: <http://revisaoparaque.com/blog/incriveis-revisoes-em-


originais-de-autores-que-voce-ja-leu/>. Acesso em: 21 jan. 2020.

Pois é, há muita expiração no trabalho da escrita, não é mesmo? É bom


saber disso porque significa que a escrita não se resume a uma questão de dom.
Ela depende muito de trabalho e concentração. Mas, afinal de contas, como
podemos saber se um texto está bem escrito?
Quando escrevemos, as ideias geralmente parecem claras em nossa
mente, por isso a tendência natural é pensar que elas também estarão claras no
papel. Todavia, isso nem sempre é verdade. Você já teve a experiência de ler
algo que você mesmo escreveu, algum tempo antes, e de não entender o que o
texto significava? O distanciamento do texto nos possibilita enxergá-lo mais
como leitores do que como escritores. Esse é, na verdade, um dos grandes
segredos da escrita: quem escreve precisa desenvolver a capacidade de
enxergar seu próprio texto como um leitor.
O escritor português José Saramago, ganhador do Nobel de Literatura,
tem uma técnica preferida: após escrever, leia seu texto em voz alta. Ele fala de
seu processo de escrita na entrevista que você acessa no link a seguir:

Disponível em: <https://novaescola.org.br/conteudo/950/jose-saramago-


ideias-claras-escrita-clara>. Acesso em: 21 jan. 2020.

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O que dissemos sobre a revisão da escrita até aqui vale para qualquer
tipo de texto. No caso do texto literário, há mais um aspecto a se considerar, pois
esse tipo de texto não deseja apenas transmitir uma informação, de maneira
objetiva e racional. O texto literário está intimamente ligado à esfera da estética.
Você está lembrado dos contos que trabalhamos nessa unidade? Lembra-se de
como o estilo de Edgar Allan Poe é muito diferente do estilo de Machado de
Assis, por exemplo? O texto literário é construído de forma a causar certos
efeitos no leitor, a sugerir sentimentos, dúvidas etc. Assim como cada um de nós
tem uma forma de expressão oral particular – voz, entonação, escolha das
palavras etc. –, cada escritor desenvolve uma forma de escrever também
particular. Isso vale para certas categorias de textos jornalísticos, mas no caso
da literatura é absolutamente essencial. Um escritor deve ter dicção própria. E
como se chega a ela?
Dalton Trevisan, contista curitibano, é um caso exemplar da busca
incansável pela forma perfeita de um texto. Vários de seus contos são reescritos
e republicados ao longo dos anos, revelando o processo de aperfeiçoamento de
sua escrita. A seguir, tomamos emprestada do professor Carlos Alberto Faraco
uma análise do conto Uma vela para Dario, publicada no livro Estilística e
discurso. Ao comparar trechos de duas versões do conto, publicadas com 20
anos de diferença entre elas, é como se assistíssemos à mecânica de revisão
textual do autor. Leia e compare os três primeiros parágrafos das duas versões:

1972 (Cemitério de elefantes)

Dario vinha apressado, o guarda-chuva no braço esquerdo e, assim que


dobrou a esquina, diminuiu o passo até parar, encostando-se à parede de uma
casa. Foi escorregando por ela, sentou-se na calçada, ainda úmida da chuva, e
descansou na pedra o cachimbo.
Dois ou três passantes rodearam-no e indagaram se não se sentia bem.
Dario abriu a boca, moveu os lábios, mas não se ouviu resposta. Um senhor
gordo, de branco, sugeriu que devia sofrer de ataque.
Ele reclinou-se mais um pouco, estendido agora na calçada, e o cachimbo
tinha apagado. Um rapaz de bigode pediu ao grupo que se afastasse e o
deixasse respirar. E abriu-se o paletó, o colarinho, a gravata e a cinta. Quando
lhe retiraram os sapatos, Dario roncou feio e bolhas de espuma surgiram no
canto da boca.

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[...]

1992 (Em busca de Curitiba perdida)

Dario vem apressado, guarda-chuva no braço esquerdo. Assim que dobra


a esquina, diminui o passo até parar, encosta-se a uma parede. Por ela
escorrega, senta-se na calçada, ainda úmida de chuva. Descansa na pedra o
cachimbo.
Dois ou três passantes à sua volta indagam se não está bem. Dario abre
a boca, move os lábios, não se ouve resposta. O senhor gordo, de branco, diz
que deve sofrer de ataque.
Ele reclina-se mais um pouco, estendido na calçada, e o cachimbo
apagou. O rapaz de bigode pede aos outros que se afastem e deixem respirar.
Abre-lhe o paletó, o colarinho, a gravata e a cinta. Quando lhe tiram os sapatos,
Dario rouqueja feio, bolhas de espuma surgem no canto da boca.
[...]

Comparando-se as duas versões, percebe-se uma clara intenção do autor


em “enxugar o texto”, em dizer a mesma coisa usando menos palavras, de forma
mais concisa e direta. Há menos preposições, os verbos mudam do pretérito, na
primeira versão, para o presente, na versão mais atual, as frases ficam mais
curtas.
Faraco entende esse processo de revisão estilística, que se manifesta em
toda a obra do autor, como uma “obsessão perfeccionista em busca da poética
da elipse”. Sem mudar o conteúdo do texto – os fatos narrados continuam os
mesmos –, o autor muda a forma de contar, como se quisesse aperfeiçoar sua
“voz”. Esse é o longo processo de escrita e reescrita literária.

Saiba mais

Gostaria de ler mais depoimentos de escritores sobre seu processo de


criação? O link a seguir tem um conteúdo muito interessante.
Disponível em: <http://papodehomem.com.br/a-rotina-diaria-de-13-
grandes-escritores-e-o-que-eles-fazem-para-continuar-escrevendo/>. Acesso
em: 21 jan. 2020.

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TROCANDO IDEIAS

Fórum literário
Como ao longo desta aula praticamos alguns gêneros literários, que tal
construirmos um fórum para partilhar nossos textos? O texto só ganha vida
quando encontra um leitor, não é mesmo?
Escolha um texto seu, desenvolvido anteriormente, do qual tenha gostado
especialmente, dentre estas três possibilidades: conto, crônica, argumento.
Publique-o no fórum. Em seguida, leia textos dos colegas e comente-os.

NA PRÁTICA

Resenha crítica – painel sobre o Oscar


Que tal construir um painel de resenhas sobre a premiação do Oscar?
Encontre uma lista da última premiação. Escolha um dos filmes premiados e
escreva uma resenha para ele, em um texto crítico que tenha entre 500 e 600
palavras. Compartilhe seu texto com os colegas. Além de escrever seu texto,
comente os textos dos colegas.

Saiba mais

Acesse, na biblioteca virtual, O texto sem mistério: leitura e escrita na


universidade e leia o capítulo Resenha. Acesse também Os melhores filmes
novos – 290 filmes comentados e analisados.

FINALIZANDO

Nesta aula, revisitamos gêneros textuais trabalhados anteriormente,


percorrendo um caminho guiado pelo princípio da revisão textual que foi desde
a noção de texto crítico à de autocrítica literária.
Refletimos sobre o texto de crítica a partir do princípio de tomada de
posição, ou seja, posicionar-se criticamente sobre um objeto implica assumir
uma posição intelectual. Do ponto de vista do jornalismo, um texto crítico precisa
construir pontes entre o objeto e o leitor, contextualizando-o para promover a
reflexão crítica, e não apenas limitar-se a emitir um julgamento de valor.
Sobre o conto e a crônica, pensamos na questão do ponto de vista de
quem escreve. Na crônica, há um enfoque bastante personalista, partindo de um
fato ou informação concreta sobre o mundo. Já no conto, a ficção dá maior

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liberdade ao autor, que poderá empregar focos narrativos distintos. Todavia, é
preciso lembrar que a crônica também pode empregar linguagem literária, como
as figuras de linguagem e até mesmo diálogos, o que aponta para uma forma
híbrida entre jornalismo e ficção.
Na revisão sobre textos opinativos, discutimos como é importante
construir a argumentação com fatos e dados. Vimos também que os fatos podem
ser utilizados para construir argumentações diferentes, e a sua organização é
que constrói o sentido.
Em aulas anteriores, revisamos os conceitos de sinopse e argumento,
dois gêneros de textos que dão vida a produtos audiovisuais, e trabalhamos esse
conceito na prática jornalista. Vimos como a copidescagem vai além da simples
revisão de linguagem, sendo uma prática que implica grande responsabilidade
sobre o texto por verificar informações, dados, citações e, quando necessário,
envolver a reescrita do texto.
Por fim, falamos sobre a autocrítica literária, ou seja, sobre a habilidade
de um autor em analisar criticamente seus próprios textos. Vimos como o
processo de refinamento estilístico está intimamente ligado ao fazer literário e
como é preciso desenvolver a capacidade de olhar para o próprio texto como
leitor.
Assim, encerramos nosso trabalho nesta disciplina com um
aprofundamento do olhar sobre o texto. Esperamos que você tenha se tornado
um leitor mais consciente e um escritor mais qualificado. Não esqueça: o único
caminho para tornar-se um bom escritor é a prática constante. Por isso, leia,
escreva, reescreva e ouça a opinião de outras pessoas sobre seus textos sempre
que possível.

LEITURA OBRIGATÓRIA DA DISCIPLINA

Acesse, na biblioteca virtual, Jornalismo cultural, de Daniel Piza, e leia o


capítulo que fala sobre crítica: Contraclichê. Acesse, também, Reescrevendo o
próprio texto (p. 227), do livro Práticas de escrita para o letramento no ensino
superior, de Schirley Horácio de Gois Hartmann e Sebastião Donizete
Santarosa.

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REFERÊNCIAS

ABREU, A. S. Curso de redação. São Paulo: Ática, 2004.

ASSUMPÇÃO, M. E.; BOCCHINI, M. O. Para escrever bem. Barueri: Manole,


2002.

CORREA, V. L. et al. Teorias do texto. Curitiba: InterSaberes, 2013.

FARACO, C. A. As reescrituras de Dalton Trevisan: exercícios estilísticos?. In:


HENRIQUES, C. C. (Org.). Estilística e discurso. São Paulo: Elsevier, 2011.

GOLDSTEIN, N.; IVAMOTO, R.; LOUZADA, M. S. O texto sem mistério: leitura


e escrita na universidade. São Paulo: Ática, 2009.

GOTLIB, N. B. Teoria do conto. São Paulo: Ática, 2006.

HARTMANN, S. H. de G.; SANTAROSA, S. D. Práticas de escrita para o


letramento no ensino superior. Curitiba: Ibpex, 2013.

LIMA, R. E.; SANTANA, R. Decálogos da crítica em tempos de crise do juízo. In:


ENCONTRO DE ESTUDOS MULTIDISCIPLINARES EM CULTURA, 6., 2010,
Salvador. Anais... Salvador, 2010. Disponível em:
<http://www.cult.ufba.br/wordpress/24741.pdf>. Acesso em: 23 dez. 2019.

PENA, F. Jornalismo literário. São Paulo: Contexto, 2006.

PIZA, D. Jornalismo cultural. São Paulo: Contexto, 2010.

SALVADOR, A.; SQUARISI, D. Escrever melhor: guia para passar textos a


limpo. São Paulo: Contexto, 2008.

SOARES, E. P. A arte de escrever histórias. Barueri: Manole, 2010.

TERRA, E. A produção literária e a formação de leitores em tempos de


tecnologia digital. Curitiba: InterSaberes, 2015.

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