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Capítulo 1

ASPECTOS DE TEORIA PÓS-


COLONIAL

[A literatura] necessita conhecer-se como produto de um processo


histórico que [nela] depositou uma infinidade de traços sem
deixar inventário.
Gramsci ( 1985)

O ESTUDO DAS LITERAT U~S PÓS-COLONIAIS

Quando se repara que 193 nações e outros estados e entidades


observadores não-membros (como o Vaticano e a Palestina) integram a ONU,
questiona-se a validade dos termos 'colonialismo', 'pós-colonialismo' e 'crítica
pós-colonialista'. No período pós-guerra, especialmente nos anos 1960 e 1970,
parecia que o colonialismo se tornara algo do passado e que os povos das nações
independente s haviam encontrado o caminho para o desenvolvimento político.
Uma ilação do campo político para o campo literário poderia ser aceita.
Admitir-se-ia, então, que as literaturas dos povos independentes estariam livres
das manipulações coloniais que as degradaram e que daqui por diante teriam
posição estética própria. Sabe-se, todavia, que as raízes do imperialismo são
muito mais profundas e extensas. Durante o período de dominação europeia,
quando mais de três quartos do mundo estavam submetidos a uma complexa
rede ideológica de alteridade e inferioridade, os encontros coloniais aplicaram
um golpe duro na cultura indígena, considerada sem valor ou de extremo mau
gosto diante da suposta superioridade da cultura germânica ou greco-romana.
Portanto, o desenvolvimento de literaturas dos povos colonizados deu-se como
uma imitação servil de padrões europeus, atrelada a uma teoria literária unívoca,
essencialista e universalista.
• O PÓS -COLO NIALI SMO E A LI TER ATURA

.
A rupn,ra opc r;, tla pela literat , 1 ·, j e a apropriacão do idioma
ura pos-co onia ·
, 1
curnp cu para ucscnvolver a expressao - · ·
unagmat1va· na ficcão
, aconteceram
•·' pc.
· ,,::-· 1·nvcst1·gaçocs
- e re fl. exoes
- so bre o mecar · 0 do universo imperial o
nsm '
· · 1 d
m:rn1que1smo por e e a otado, a marnp · u laçao
- constan te do poder e a aplicacão
,
do fator desacreditador na cultura do outro. Talvez pelo fato de ter
sido O mais
extenso e o mais estruturado de todos, o império britânico propo
rcionou ao
crítico uma singular ocasião para ele poder analisar a literatura
escrita em
inglês por povos tão diversos, em circunstâncias geográficas e hi st
óricas tão
diferentes. Nestas últimas três décadas, centenas de livros foram public
adas sob
a rubrica do pós-colonialismo, especialmente pela editora britânica
Routledge.
Editaram-se várias revistas acadêmicas especializadas em pós-colonial
ismo para
a divulgação e a discussão das ideias inerentes ao tema. A editora Heine
mann
tem não apenas coleções de obras críticas sobre a experiência literár
ia pós-
colonial da África (o conceituado African Literature in the Twentieth
Century, de
O. R. Dathorne, abrangendo inclusive a literatura africana em portug
uês e em
francês), mas também publicou, no Reino Unido, a maioria das obras
literárias.
Por outro lado, os livros seminais de Fanon, Ngugi, Achebe, Memm
i, Said e de
outros teóricos continuam tendo várias edições, tal é o interesse sobre
os temas
pós-coloniais.

Referente à literatura de língua inglesa, esse fenômeno pode ser apreci


ado
de outro ângulo. Os prêmios literários britânicos mais cobiçados agraci
aram um
indiano (Salman Rushdie), um sul-africano Q. M. Coetzee), um nigeri
ano (Ben
Okri), um jáponês (Kazuro Ishiguro), um kittiano (Caryl Phillips) e um
cingalês
(Michael Ondaatje), enquanto o Prêmio Nobel de Literatura foi dado
a Nadine
Gordimer (1991), da África do Sul; Derek Walcott (1993), de Santa
Lúcia; V.S.
Naipaul (2001), de Trindade; J.M.Coetzee (2003), da África do Sul;
e Doris
Lessing (2007), de Zimbabue. Quando algum prêmio literário é recebi
do por
um autor inglês nascido na Inglaterra, a exceção prova a regra (IYER
, 1993).
Salvo raras exceções (entre as quais os trabalhos de Silviano Santia
go
e Lynn Mário T. Menezes de Souza), essa nova estética ainda não inform
ou a
literatura brasileira, que, de acordo com os princípios e definições arrola
dos mais
adiante, neste trabalho, poderia ser considerada pós-colonial. Por outro
lado, a
18
CAPITULO I ASPECTOS DE TEORIA PÓS-COLONIAL ■

Editora Ática publicou uma série de autores africanos e os livros ele Jameson,
enquanto Heloísa Buarque de Hollanda organizou a tradução de ensaios de
autores como Bhabha e Said. Poucos são os trabalhos sobre a literatura brasileira
do período colonial que tentam analisar as estratégias coloniais existentes
na literatura e os mecanismos de subversão pelos quais a imaginação poética
experimentou a subjetificação. Raríssimas vezes (por exemplo, os trabalhos das
feministas brasileiras) foi questionada a formação do cânone brasileiro em seus
privilegiados e excluídos. Tampouco parâmetros pós-coloniais foram adotados
para abordar as questões do idioma português e de sua apropriação na formação
da literatura após a independência política e, especialmente, no modernismo
e nos anos que o seguem. Os grandes silêncios e hiatos do indígena e do negro
escravo ou foragido, como também a dupla colonização da mulher, são dignos
de serem apreciados no contexto pós-colonial brasileiro.

A teoria pós-colonial

Autores tradicionais, definindo pós-colonialismo, usam o termo 'colonial'


para descrever o período pré-independência e os termos 'moderno' ou 'recente'
para assinalar o período após a emancipação política. Embora não haja um
consenso sobre o conteúdo do termo 'pós-colonialismo', Ashcroft, Griffiths e
Tiffin (1991) o usam para descrever a cultura influenciada pelo processo imperial
desde os primórdios da colonização até os dias de hoje. Muitas vezes esse termo
é ignorado ou não entendido como é descrito acima, porque certos grupos que
saíram do colonialismo têm como preocupação primária o nacionalismo cultural e
econômico e não querem sacrificar a especificidade de suas preocupações ao termo
geral 'pós-colonialismo' (SOUZA, 1986; ADAM; TIFFIN, 1991).

Outro conceito a ser considerado é o de literatura pós-colonial, que


pode ser entendida como toda a produção literária dos povos colonizados pelas
potências europeias entre os séculos 15 e 21. Portanto, as literaturas em língua
espanhola nos países latino-americanos e caribenhos; em português no Brasil,
Angola, Cabo Verde e Moçambique; em inglês na Austrália, Nova Zelândia,
Canadá, Índia, Malta, Gibraltar, ilhas do Pacífico e do Caribe, Nigéria, Quênia,
África do Sul; em francês na Argélia, Tunísia e vários países da África, são

19
■ O PÓS-COLONIALISMO E A LITERATURA

literaturas pós-coloniais. Apesar de todas as suas diferenças , csS,iR li tcrr1tur:I!,


originaram-se da "experiência de colonização, afirmando r1 tensão com u poder
imperial e enfatizando suas diferenças dos pressupostos do ccntru imr,crial"
(ASHCROFT; GRIFFlTHS; TIFFIN, 1991, p. 2).

A critica pós-colonialista é enfocada, no contexto citual, rnmo um;i


abordagem alternativa para compreender o imperialismo e suas ínflu ênci;L),
como um fenômeno mundial e, em menor grau, como um fenômeno loca lizado.
Essa abordagem envolve: um constante questionam ento sobre as relaçôcs cntn:
a cultura e o imperialismo para a compreensão da política e da cultura na <: rí.l
da descolonização; o autoquestionamcnto do crítico, porqu e solapa as próprias
estruturas do saber, ou seja, a teoria literária, a ::intropologia , a geografi a
eurocêntricas; engajamento do crítico, porque sua preocupação deve girar em
torno da criação de um contexto favorável aos marginalizados e aos oprimidos,
para a recuperação da sua história, da sua voz, e para a abertura das discussões
acadêmicas para todos; uma desconfiança sobre a possível instituci onalizaçã o
da disciplina e sua apropriação pela crítica ocidental, neutrali zando a sua
mensagem de resistência (PARRY, 1987).

Em primeiro lugar, até hoje, há dois livros importantes que traçam a


história dos pressupostos filosóficos da crítica pós-colonial, quais sejam, The
Empire Writes Back: Theory and Practice in Post-Colon ial Li teratures (1989), de
Bill Ashcroft, Gareth Griffiths e Helen Tiffin (atualizado em 2002) e White
Mythologies: Writing History and the West (1990), de Robert Young. O primeiro
analisa os pressupostos filosóficos, a teoria literária europeia, a hegemonia da
lingua inglesa e as estratégias políticas do império britânico. Os autores chegam
a vários princípios e questões que fundamentam o conceito de literatura pós-
colonial. Partindo de certas linhas filosóficas de Hegel e de Sartre, o segundo livro
aprecia a contribuição de críticos de renome mundial como Spivak e Bhabha
(BENSON; CONOLLY, 1994), embora sempre os considere criticamente, de
modo especial, na detecção de seus resquícios europeus (SLEMON, 1995). Em
segundo lugar, Orientalismo (1978) e Cultura e imperialismo (1993), de Edward
Said, ln Other Worlds (1987) e The Post-Colonial Critic (1990), de Gayatri Spivak,
como também Nation and Narration (1990), de Homi Bhabha, mudaram o

20
PÓS -COL ONIA L ■
CAP ITUL O I ASP ECT OS DE TEO RIA

ente eurocêntrica, formularam


eixo da ques t:i l, rdcr cnte tl critica exclusivam
riali smo /cultu ra e mostraram os
teorias para a :uuUise do relac iona men to impe
pós-coloniais autô nom os. Não
cam inhos para uma liter atura e estudos literários
~e pode negar, todavia, que a metodologia
desses autores tem muit o a ver com
muit o em voga rece ntem ente na
o pós- estru tural ismo e o desc onst rucio nism o
crítica liter ária euro peia .

resolvidas, com o a
Sem dúvi da, muit as questões aind a não foram
dores e as línguas indígenas; a
relação da língu a euro peia trazida pelos coloniza
ral híbr ida dent ro de uma mes ma
conv eniê ncia das traduções; a influ ênci a cultu
ativas ~rais) com a literatura;
cultu ra e fora dela; a pari dade da oratu ra (narr
ia das instituições (como as
os padr ões de valores estéticos; a impo rtânc
a; a revisão do câno ne literário.
univ ersid ades ) para a prod ução literária e crític
a crítica pós-colonial se
Desd e a sua sistematização n~s anos 1970,
o da literatura prod uzid a pelos
preo cupo u com a preservação e docu men taçã
s' e 'incu ltos' pelo imperialismo;
povos degr adad os com o 'selvagens', 'primitivo
cultural de povos colonizados;
com a recu pera ção das fontes alternativas da força
as pelo imperialismo e man tidas
com o reco nhec imen to das distorções produzid
pelo siste ma capitalista atual.
do inglês, o estu do dos
Vári os auto res perc ebem que, pelo menos no caso
e o desenvolvimento dos impérios
idio mas euro peus com o disciplinas acadêmicas
a. Ambos func iona ram com o
no sécu lo 19 part iram de uma únic a fonte ideológic
ção de valores. No últim o caso,
fatores utili tário s de prop agan da e de consolida
nos acadêmicos conf irma ram a
os valores, o estilo e os parâ metr os inculcados
cons eque nte degradação e total
supe riori dade da civilização europeia, com a
a, cons idera da inferior, primitiva
rejeição de qual quer manifestação cultu ral nativ
e selvagem, dign a de ser extirpada. A tempestad
e e Robinson Crusoé teste mun ham
a europeia, estu dada em seu
tais fatos, com o será disc utido adiante. A língu
port anto , rejeitava as 'distorções
padr ão culto , não adm itia concorrências e,
em. A sedução era tanta, que
não-canônicas' oriu ndas da periferia e da marg
nega ndo
muit os nativos com ecar am a merg ulha r nessa cultu ra. impo rtad a e,
.
'
a padr ão euro peia e a imit ar os
as suas origens, passaram a escrever na língu
coloniais britânicos, instigados
clássicos de sua liter atura . "Os adm inist rado res
21
• O PóS -C OLON IALIS MO E A LITER ATUH A

pdos missiün:1rios e pdo medo das i1,subordin:1(0«..:S nnt'iv:


1s, dcsl'nl1rirn1n 11111
:,liad o na litera tura inglesa p:ua apod-los em seu (1Jt1nu le
dos rn,rlvi..,s suh ll1H
prete xto de educ ação liberal" (VlSW ANA THA N, l987, P·
l7). /\ m·tilT :1li z 11 \':in
desse arcab ouço consp iratór io entre lingun, liter:1tt1rn e cultu
r:, n1i l1 . '.· Mcil dl'
ser realiz ada. No que diz respe ito à África, Ngugl ( 19726
) nn:dis:1 csst cst·ad o
de coisa . s em "On
the Abol ition of the English Oépa rtirn.: nt " ' cnqu:int:o
Dock er 0978), em "The Neoc oloni al Assu mptio n in thc
Univcrsiry Tcac hlng
of Engli sh", discu rsa sobre o Comm onwe alth em gernl.
Ngugi organ izou urn
prog rama em que o Depa rta1n ento de Ungu a lngles:1 fosse
~,bolid o e suh srituld o
por um Depa rtam ento de Litera tura e Língua Africanas, relati
vizando as fontes
literá rias europ eias e insist indo na tradição oral ou oratur
:1 corno "noss a raiz
prim ordia l". Dock er admi te que pouca descolonização acont
eceu nas naçôes
pós-c oloni ais, ou seja, o status canôn ico das litera turas
europ eias ainda está
firme .

O perigo enfren tado pelo estudo litedri o pós-colonial


é que ele pode ser descartado apl'.nas como uma
opçii.o
interessante. O desafio da literatura pós-colonial está de
fato
em que, desmascarando e atacan do pressupostos angloc êntrico
s
diretam ente, pode substituir a literatura inglesa pela li teratur
a
mundi al em língua inglesa (DOC KER, 1978, p. 30).

Emb ora haja muit a resistência, os quest ionam entos sobre os


press upost os
em que os estud os da língu a e da litera tura europeias estavam
funda ment ados já
surti ram efeito s consi deráv eis.

Dese nvol vime nto das literaturas pós-coloniais

A emer gênci a e o desen volvi ment o de litera turas pós-coloni


ais depe ndem
de dois fatores impo rtante s: (1) as etapas de conscientização
nacio nal e (2) a
asser ção de serem difere ntes da litera tura do centr o imperial.

A prime ira etapa envolve textos literários produ zidos por repre
senta ntes
do pode r colon izado r (viajantes, admi nistra dores, solda
dos e esposas de
admi nistra dores coloniais). Tais textos e repor tagen s,
com detal hes sobre

22
CAPITU LO I ASPECT OS DE TEORIA PÓS-CO LONIAL •

CL)srt ltl1es , fauna, flora e língua, dão ênfase à metrópo le em detrime nto da

colônia; privilegiam o centro em detrime nto da periferia. A pretensã o de


objetividade e a atomização dos objetos descritos esconde m o discurso imperial
(MELLO E SOUZA, 1993).

A segunda etapa envolve textos literários escritos sob supervisão imperial


por nativos que receberam sua educação na metrópo le e que se sentiam
gratificados em poder escrever na língua do europeu (não há consciência de ela
ser também do colonizador). A classe alta da Índia, os missionários africanos
e, às vezes, prisioneiros degredados na Austrália sentiram-se privilegiados em
pertenc er à classe domina nte, ou serem por ela protegidos, e produzi ram
volumes de poemas e romances.

Embora muitos dos temas (cultura mais antiga do que a europeia,


a brutalid ade do sistema colonial, a riqueza de seus costumes, leis, cantos e
provérbios) abordados por esses autores estivessem carregados de subversão,
sem dúvida não podiam e não queriam perceber essa potencialidade. Além
disso, a manuten ção da ordem e as restrições impostas pela potência imperial
não permitia m qualque r manifestação que pudesse indicar algo diferente dos
critérios canônicos ou políticos .

A terceira etapa envolve uma gama de textos, a partir de certo grau de


diferenciação, até uma total ruptura com os padrões emanados da metrópole.
Evident emente, essas literaturas dependi am da ab-rogação do poder restritivo e
da apropriação da linguag em/escrita para fins diferentes daqueles para os quais
outrora foram usadas. Quando o nigeriano Amos Tutuola escreveu The Palm
Wine Drinkard (1952), Dylan Thomas e outros críticos ingleses estranharam
a linguagem e o estilo desse novo romance africano (BENSON; CONOLLY,
1994; SAMPSON, 1979; PHELPS, 1984). Os críticos ingleses logo perceberam
o nascimento do romance pós-colonial em Things Fall Apart (1958), no qual
Chinua Achebe ridiculariza o administrador colonial que deseja escrever um
livro sobre os costumes primitivos dos selvagens do alto rio Níger quando o autor
já havia exposto a complexidade de costumes, religião, hierarquia, legislação e
provérbios da tribo dos lgbos em Umuofia.

23
■ O PÓS -CO LON IALI SMO E A LITE
RATURA

Deslocamento e linguagem

Um a das características da socieda


de colonizada é O deslocamento.
Rel acio nan do linguagem e desloca
mento, Ashcroft, Griffiths e Tif fin
(1995)
dist ing uem três categorias de socieda
des pós-coloniais:

Col ôni as de povoadores: na Améric


a espanhola, no Brasil, nos ES t ados
Un ido s da América, Can adá , Austrál
ia, Nova Zelândia, a terra foi ocu pad
a por
col ono s eur ope us que conquistaram
e deslocaram as populações indígen
as.
Cer ta mo dal ida de de civilização eur
opeia foi transplantada e os descenden
tes
de eur ope us, mes mo após a independê
ncia política, mantiveram O idio ma não
-
ind íge na. Se no início os colonos inqu
estionavelmente consideravam que o
seu
idio ma era apr opr iad o para express
ar a complexa realidade do lugar ocu
pad o,
os escritores mais recentes iniciara
m uma série de que stio nam ent os
a esse
resp eito .

Soc ied ade s invadidas: na Índ ia e na Áfr


ica, com suas civilizações díspares
em vár ios estágios de desenvolvime
nto, as populações foram colonizadas
em
sua terr a. Por tan to, os escritores nati
vos já possuíam suas respostas milena
res
e seu mo do de ver, em bor a fossem
marginalizados pelos colonizadores.
Às
vezes, o idio ma eur ope u substituía
o idioma do escritor; às vezes, ofer
ecia-
lhe um a opo rtun ida de para que seus
escritos fossem mais divulgados e lido
s.
Em am bos os casos, o idio ma eur
opeu causava certa amb igu ida de no
texto
esc rito .

Soc ied ade s dup lam ent e invadidas:


as sociedades prim ord iais dos
ind íge nas das ilhas do Car ibe fora
m com ple tam ent e ext erm ina das
nos
prim eiro s cem ano s após o des cob
rim ent o. A pop ula ção atu al das Índ
ias
Oci den tais veio da África, Índ ia,
Ásia, Ori ent e Mé dio e da Eur opa
através
do des loc am ent o, do exílio ou
da escravidão. De tod as as soc ied
ade s
col oni zad as, talvez a soc ied ade car
ibe nha ten ha sido a que mai s sofr
eu
os efe itos dev asta dor es do proces
so colonizador, em que
O idio ma e a
cul tura dom ina nte s foram imposto
s e as cul tura s de povos tão diverso
s
ani qui lad as.

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-
C APITULO I ASPECTOS DE TEORIA PÓ S-C OLONIAL ■

Colonialismo e feminismo

Há estreita relação entre os estudos pós--coloniais e o femini smo. Em


primeiro lugar, há uma analogia entre patriarcalismo / feminismo e metrópole /
colônia ou colonizad or/ colonizado. "Uma mulher da colônia é uma metáfora
da mulher como colônia" (DuPLESSIS, 1985, p. 46). Em segundo lugar, se o
homem foi colonizado, a mulher, nas sociedades pós--coloniais, foi duplament e
colonizada. Os romances de Jean Rhys, Doris Lessing, Toni Morrison e Margaret
Atwood testemunh am essa dialética. Portanto, o objetivo dos discursos pós,
coloniais e do feminismo é a integração da mulher marginalizada à sociedade.
De modo semelhante ao que aconteceu nas reflexões do discurso pós,colonial,
no primeiro período do discurso feminista a preocupação consistia na
substituição das estruturas de dominação. Essa posição simplista evoluiu para
um questionam ento sobre as formas e modos literários e o desmascar amento dos
fundament os masculinos do cânone. Nesses debates, o feminismo trouxe à luz
muitas questões que o pós,colonialismo havia deixado obscuras; por outro lado,
o pós,colonialismo ajudou também o feminismo a precaver,se de pressupostos
ocidentais do discurso feminista.

Petersen (1995) observa que em muitos países do Terceiro Mundo há o


dilema sobre o que é necessário empreender primeiro: a igualdade feminina
ou a luta contra o imperialismo presente na cultura ocidental. Em Things Fall
Apart, o personagem Okonkwo é castigado não porque bateu em sua mulher,
mas por ter batido nela numa semana considerada sagrada (ACHEBE, 1986).
Petersen (1995, p. 254) resolve a questão com uma citação de Ngugi: "Nenhuma
libertação cultural sem a libertação feminina". A opinião de Buchi Emecheta
é oposta à de Achebe. A força literária da autora nigeriana consiste em sua
"autêntica perspectiva feminista, sua focalização na exploração da mulher e a
sua luta pela libertação" (BENSON; CONOLLY, 1994). Efetivamente, a dupla
colonização causou a objetificação da mulher pela problemática da classe e
da raça, da repetição de contos de fada europeus e da legislação falocêntrica
apoiada por potências ocidentais. Entre outras, a mais eficaz estratégia de
descolonização feminina concentra,se no uso da linguagem (experiência de

25
• O PÓ S - C OLO NIA LI SM O
E A LI r E RA fUR J\

-. -rrc n )
~1: . 11ng
. u1s, -r·c
\' ~b t''.'.: pcritnc'n r:H;:10
" (ASHC ROTT; GRIFFlTH
1 ·~
· S·' TIFFI""1
t\l,
1~N"': fü.,N Nl C l, 1998c) .

A dic oto mi a sujeito-objeto

A op res são , o silêncio e a repres


são das soc ied ade s pó s-c olo nia
is dec orr em
de um a ide olo gia do sujeito.
Sa rtre discursa sob re a conS t
ruç ão do ser corno
suj eit o em rel açã o ao ou tro e,
po rta nto , enfatiza a car act erí stic
a da rec ipr oci dad e.
At rav és da per cep ção do pró
pri o ser-objeto par a o Ou tro dev
e-se com pre end er
a pre sen ça do ser-sujeito dele,
afirma Sa rtre (1997). Essa rec
ipr oci dad e per mi te
as rel açõ es mú tua s ent re ser
O e O ou tro . Am bo s po de m vo lun
tar iam en te ter a
fun ção de ob jet o par a Ou tro
O . Nas sociedades pós-coloniais,
po rém , o sujeito
e o ob jet o pe rte nc em inexorav
elmente a um a hie rar qu ia em
qu e o op rim ido é
fix ado pel a sup eri ori dad e mo
ral do do mi nad or. É a dia lét ica
do suj eit o e do
ou tro , do do mi na do r e do sub
alt ern o. A língua cor tad a do pe
rso na ge m Friday
no rom an ce Foe (1986), de J.
M. Coetzee, é o sím bo lo do col
on iza do mu do po r
ato vo lun tár io do colonizado
r.
Os crí tic os ten tam expor os
processos qu e tra nsf orm am o
col on iza do
nu ma pes soa mu da e suas est
ratégias par a sair dessa posição.
Sp iva k discursa
sob re a mu de z do suj eit o col
on ial e, con seq uen tem ent e, da
mu lhe r sub alt ern a.
"O suj eit o sub alt ern o nã o tem
ne nh um espaço a par tir do qu
al ele po ssa falar",
sen ten cia Sp iva k (1995, p. 28)
. Bh ab ha (1984) afi rm a qu e o
sub alt ern o po de
falar, e a voz do nat ivo po de
ser rec up era da através da par
ód ia, da mí mi ca e
da tát ica ch am ad a sly civility
(cortesia dissimulada), qu e am
eaç am a aut ori dad e
col on ial . Po r ou tro lad o, a val
ida de da posição dessas teo ria
s foi qu est ion ada
po r Be nit a Pa rry ( 1987, p. 29)
, alegando qu e po der iam ser um
a má sca ra par a a
do mi na ção neo col on ial , um a
das "forma[s] metamorfoseada[s]
do imperialismo".
A au tor a co mp art ilh a a op ini
ão de Fa no n (1990) e Ngugi (19
86), qu e provaram
co mo "o col on iza do po de ser
reescrito na história" (PARRY,
1987, p. 39). Se a
de sco lon iza ção sem pre é um
fen ôm eno vio len to (FA NO N,
1990), o colonizado
fala qu an do se tra nsform a nu
m ser po liti cam ent e con sci ent
e qu e enf ren ta o
op res sor co m an tag on ism o se
m cessar.

26
CAPITUL O I ASPECTO S DE TEORIA PÓS-COLONIAL ■

H:i rres teorias sobre a reversão do colonizado-objeto em sujeito dono


d~ sua história e da sua capacida de de reescrever sua história. JanMoha mmed
( L985) afirma que o autor da literatura pós-colonial deve dedicar-se à produção
de estereótipos negativos do colonizad or e de imagens autêntica s do colonizado.
Desse modo, criará um mecanism o que foi produzid o inversa mas eficazmente
na era colonial. Bhabha (1983) recusa a polaridad e colonizador-colonizado e
reconhec e que a alteridad e é "a sombra amarrada " do sujeito, porque ambos
se construír am. Esse hiato entre o sujeito e o objeto, o território da incerteza,
é aproveita do pelo autor pós-colonial para reconstru ir seus personag ens pós-
coloniais. O hibridism o pós-colonial, com sua subversão da autoridad e e a
implosão do centro imperial, constrói o novo sujeito pós-colonial. O guianens e
Wilson Harris (1973) fala do sujeito colonizado como alguém que tem muitas
facetas, o eu e o outro. A procura desse eu composto é a nova identidad e pós-
colonial. A violência (o desmemb ramento do sujeito) é seguida pela fragment ação
e pela reconstru ção do vazio a partir do qual as culturas são liberadas da dialética
destrutiv a da história: A chave de tudo isso é a imaginação, o único e antigo
refúgio de pessoas oprimida s pela política de dominaç ão e de subserviê ncia
(SOUZA, 1994).
Com exceção da teoria simplista de JanMoha mmed, as outras duas
tentam mostrar a possibilidade de ser do sujeito pós-colonial. Este subverte
radical e internam ente a noção de eurocent rismo e constrói a alteridad e como
sujeito.

Ah-rogação e apropriação

Na era colonial, a literatura na colônia estava sob o controle direto


da classe dominan te, que emitia parecer sobre a forma literária e controlav a
a publicaçã o e distribuiç ão do texto. Portanto , tais textos surgiram dentro
do contexto do poder restritivo e limitador , testemun hando esse fato.
Consequ entemen te, a existência de literatura s fora do eixo eurocênt rico
dependia da ah-rogação desse poder restritivo, como também da apropriaç ão
da escrita para usos distintam ente novos. A ab-rogação é a recusa das categorias
da cultura imperial, de sua estética, de seu padrão normativ o e de uso correto,

27
• O PÓS-COLONIALISMO E A LITERATURA

.~ . . . ·f
ht'm (orno d~ :-li:\ e.xicrencrn de fixar o s1g111 ica do das palavras. É um momento
du descoloni:acào do idioma europeu. A apropn•a,cão é um "processo pelo qual
b

. . · so da experiência da cultura
ú 1d1oma é apropriado e obrigado a carregar O pe

marginalizada'' (ASHCROFT; GRIFFITHS; TIFFIN, 1991 , P· 3s). Como 0


1·d·toma e• um instrumento ideologicamen .
te carre gado ' o autor pós-colonial
_
:sempre se encontra numa verda dena . -
tensao en tre os polos da abrogacão
· do
·d· ·
l toma casnço recebid • o da metrop , o 1e e da apropri· cão que submete o idioma
a,
a uma versão popular, atrelado ao lugar e às circunstâncias históricas. Seja em
sociedades monoglotas (Argentina), seja em diglotas (Índia, África, populações
indígenas no Brasil) ou poliglotas (ilhas do Caribe), o autor pós-colonial emprega
as duas estratégias. Ele "arrebata o idioma, o recoloca numa situação cultural
específica e ainda mantém a integridade daquela alteridade (a escrita) que
historicamente foi empregada para manter O homem pós-colonial nas periferias
do poder, da autenticidade e mesmo da realidade" (ASHCROFT; GRIFFITHS;
TIFFIN, 1991, p. 77).

O cânone colonial

A desmistificação da formação e da constituição do cânone ocidental


é algo recente e, em parte, deve-se ao desenvolvimento das literaturas pós-
coloniais. O julgamento da excelência do idioma e da complexidade da obra
literária produzida e consagrada pelo centro começa a ceder às investigações
sociais e políticas que privilegiaram certas obras e certos autores enquanto
descartaram outros (obras e autores). Não somente a ligação entre cânone
O
literário e o poder é um fato indiscutível, mas também sua utilização para fixar a
superioridade do colonizador, degradar o 'primitivismo' do colonizado e relegar
à periferia qualquer manifestação cultural e literária oriunda da colônia.

A tentação dos públicos metropolitanos em geral tem sido decretar


que esses livros, e outros similares, não passam de exemplos de
uma literatura nativa escrita por 'informantes nativos' em vez
de contribuições contemporâneas ao saber. A [sua] au~oridade
tem sido marginalizada porque, para os estudiosos profissionais
ocidentais, parecem escritas de fora para dentro (SAIO, 1995,
p, 321).

28
CAPITULO I ASPECTOS DE TEORIA PÓS-COLONIAL ■

A nudez dos povos indígenas, descrita em todos os documentos


coloniais, é metonímia da suposta incapacidade dos povos pós-coloniai s
de emergir com sua literatura e produzir obras de arte iguais às europeias.
Com esses pressupostos, a literatura europeia fixa-se como essencial,
indiscutível, influenciando e impondo estilos e padrões literários. Por
outro lado, a literatura pós-colonial é fixada como tributária, dependente,
imitativa.

Max Dorsinville (1974) diz que o relacionamento entre sociedades


dominantes e dominadas produz a configuração do cânone literário. Na
'Austrália, a literatura dos aborígenes é considerada periférica diante da
literatura australiana em inglês, que, por sua parte, já foi considerada
periférica no contexto da literatura inglesa. A pouca repercussão da
literatura brasileira no contexto mundial deve-se à sua suposta derivação da
literatura portuguesa, que, por sua parte, sempre foi considerada tributária
da francesa. Embora o Canadá atual não possa ser considerado um país em
desenvolvimento, houve um tempo em que a canonicidade de sua literatura
foi nula devido à alegada dependência do modelo britânico e, depois,
estadunidense. Apesar disso, e no que concerne a essas duas literaturas,
pode-se afirmar com Margaret Laurence que os autores pós-coloniais
tiveram o grande trabalho "de descobrir sua voz e escrever o que realmente
pertence a eles, mesmo enfrentando o imperialismo cultural esmagador"
(HUTCHEON, 1995, p. 134).

É interessante mencionar a situação da literatura dos Estados Unidos


da América para analisar melhor o modelo dominante-dominado de
Dorsinville. A literatura estadunidense foi considerada tributária até o século
19. A transformação do país nos séculos 19 e 20, de uma posição política
periférica para a de dominante, contribuiu para a assimilação de parâmetros
europeus. Consequências disso foram a produção de obras canônicas e o
exercício de grande influência nas outras literaturas. O crescente poderio
político e econômico dos Estados Unidos e sua capacidade de dominação
influenciaram a seleção das suas obras canônicas e as equipararam ao cânone
literário europeu.

29
Descolonização

Effl. Lc'-5 1.!., rnH KS- 1<' 1d 1.


, 1·t1.)ol' ) ,k Fr,rnr. E11wn (l9~ 1-l 96l ).
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:1. cXi:-r~n1.:ia de' urn con jun to de text
o~
dif ere nàa dos da lite ratu ra rnetr0polir
an,1. e çarant>ri:ado:- pela cul tura exis tent
e
dep end e da des col oni :açüo. Para cert
o$ :n1rores, 1.'I term o dcsloloni~aç<lo signific
aa
rec upe raç ão dos idio mas e culturns pré-
colcn'liai:-. Ngu gi ( \98 6) e Hu gga n 099
5)
con sid erar n o col onialis mo com o um
a fase hist órica e que o ren asc ime nto
da
cul tur a ind ígen a out ror a flor esc ente
anu lará tod os os mal efíc ios que info rma
ram.
a cul tura n o per íod o pós-colonial. Por
ouao lado, Wil liam s ( 1969) afir ma que
os traç os da hist ória jam ais pod em ser
apagados ou ign ora dos . A cul tura híb
rida
e sinc réti ca dos poYos pós-coloniais
é fator positivo e um a vancagen-1 da
qual
rec ebe a sua ide ntid ade e força.

Rea lme nte , a Índ ia e a Africa têm


possibilidades de d ese nvo lver um a
cul tur a e um a Uterarura com moldes
pré-coloniais. Apó s 1970, o que nia
no
Ng ugi escreve exc lusi vam ente no idio
ma Gik uyu e os rom anc es d os nigeria
nos
Ach ebe e Tur uol a são e,xemplos típi
cos de ora nira (a trad ição ora l african
a),
em bor a esc rito s em inglês. Mo vim ento
s sem elha ntes sur gira m na Au strália
e
na No va Zel ând ia. Parece, por ém,
que há um equívoco qua ndo se iden
tifica
a des col oni zaç ão com a reco nsti niiç
ão da cul tura pré -co lon ial. A cult
ura
eur ocê ntri ca é tão pro fun da que a pro
duç ão de um rom anc e em líng ua ind ígen
a
ain da con stit ui um text o cul tura lme
nte sincrético. Nos ano s 1970, hou ve
um
deb ate ent re essas dua s cor ren tes, esp
ecia lme nte refe ren te à Afr ica e ao Car
ibe .
Chi nw eiz u, em Toward.s the Decolonizat
ion of African Liternture (1983), e Brathw
aice
con den ava m a sub serv iên cia a técn
icas literárias oci den tais e def end iam
a
vol ta a raízes afri can as com o o fato r
mais imp orta nte da ide ntid ade ; por
ourro
lad o, o nig eria no Soy ink a e os cari
ben hos Har ris e Wa lco tt fora m favo
ráveis
ao sinc reti smo e à plu rali dad e culn
iral (BE NS ON ; CO NO LLY , 1994).
Os
trab alh os de Tod oro v (1991) e Said
(1995), ana lisa ndo os enc ont ros colo
ni:lis
30

1
_j
ÇAPlTlJLO I A S PECTOS DE TEORIA PÓ S- COLONIAL •

lí rcr{iríoi, rcfor1,; nt,t.;ii !~"> cur(>pcu (.'. ;.JCJ outro, e os clituJos de Jarne~op, Bhahha e
Spí-vitk (BENSON; CONOLLY, 1994) i,; ob rc o ímpacto J a íd eologí a na formação
Ju i,uícíw w lm1íal, Jcbatcm form.,-11~ pel_an quain a r, ubjetífícação Jo colonizado
podcr:11,1; r.mrw r rcalíuaJ -.;. j,Hnaí1, i'í e pode ei;queccr que a J ei;colonizaçào é o
prnà:rí!') O (Jf)C),.;ícíon íi,i-a Ç(Jnt:ra a domínaçào., "uma verd adeira criação de homens
novos 1. .. 1 nfto ,.; e ori14ín;1nJo de algum poder sobrenatural, purque o objeto qu e
foí colw, íza,J o to rna-1,c r c~sua Jurante o mes mo processo em qu e se liberta"
(FANON, 1990, p. 252).

A reinterpretação

Até certo ponto, toJa,5 aJi literaturas nacionais desenvolveram o seguinte


es4uem~. para chegar a .ser co nsideradas corn o tal: ( l) a imitação de um padrão
domína ntc e: sua aA
c;i;ím ílaçào ou intcrnalização; (2) a rebelí.ão, quando tudo
o qu e foi excluído pel.o padrão domínante começa a ser valorizado. Embora
haja críti ca a esse modelo (TlFFlN, 1988), pode-se dizer que a formação e a
consolí<lação das líteratura.s pói;-coloni.aí.s se dão na subversão, ou seja, a resposta
ao centro, formul.ada na famosa frase de Rushdie "The Ernpire writes back to
the centre". A estratégia <las Iíteratura.s dominadas é dupla: (1) uma tomada
J e pCJsíção nací.on.alLc;ta, quand o a líteratura pós-colonial assegura a si mesma
um a posição determinante e central, e (2) quando questiona a visão europeia
e eurocên.trica do mundo, desafiand o a sistematização de polos antagônicos
(dumínador-domínado) para regulamentar a realidade.

A primeira estratégia consiste na reinterpretação de obras do cânone


europeu. O exemplo de A tempestade (1611) é muito significativo. Embora desde
meados do século 19 houvesse indícios de uma interpretação pós-colonial dessa
peça de Shakespeare (ASHCROFT; GRIFFITHS; TlFFIN, 1991), a apropriação
deu-se princípalmente com os caríbenhos George Lamming (em seus romances
Natíves of My Person e Water wíth Berries, ambos de 1971 e a coleção de ensaios
The Plea.sures of Exile, de 1960), Aimé Césaire (Une tempéte: d'apres La tempéce
d.e Shakespeare - adaptatíon pour un théatre négre) e outros (BRYDON, 1984). A
rel ação entre Próspero e Calibã é considerada o paradigma das relações centro-
marge m ou a realidade pós-colonial. Enquanto a dominação da realidade, a

31
• O PO S- COLON
I .\\..I SM O E A U ER ATU RA

.
lm guag em. a ar ru ga- no -·a ::, a rossc de territó
... • - rio alheio executadas
- por p .
~o metifurns do dom r~ P'ttei
ínio coloni:ado r. a su
bm.Í5sã o to rç:ada. o
Clstii:_;o, â
reLt'd_,ill
,-
a e o u-: - o d" lm·ou
0
~
ao ~
em para amaldicoar pe rte

·
nc em ao colonizado C
~l ·L. -
(BON1'11Cl, 1993b)_ <111t_rã

Na mama linha, en co nt
r~ e o ro m an ce ap ar en
te m en te in óc uo \i ansfi
Park (1814), de Jane dd
Austen. que, atraxés
de urna estratégia de
colonial , poderá re wl leitura p~
ar certos fatores ou tro
ra ocultos. As bases ec
familias abastadas e da onômicas das
sociedade afluente ing
lesa, m ud as e em-oltas
são fatores demmciam em silencio
es do tráfico de escraY '
os e do lucro au fe rid
escraYo em An tig ua , o do tra balho
engendrados po r Sir Th
o mas Be rrr am , o tio da
Fa nny. A afirmação protagonista.
de Yasmine Goonerarne
em se u discurso "H ist
an d Litera11 'fictions' orical 'truths'
" (apud AS HC RO FT
; GRIFF1THS; Tl f" IT
193) , de que a leitura \ , 1991 , p.
e reinterpretação pó K
ol oniais do romance
privilegiar esses silên poderão
cim e torná~los os an
úncios m ais im po rta
re al m en te abre camin nt es do texto,
hos noYos. Além de m
encionar o silêncio de
(1995) faz semelhante Austen, Said
critica no caso de Ca m
us. ~o caso da literatu
An ch ie ta , na peça Na ra bras ileira ,
festa de Soo Lo urenço (1
587), tra nsfe re o Welc
eu ro pe u sobre demon anschammg
ologia , alteridade e mar
ginalização ao indígena
polariza a dicotomia co brasileiro ,
loni.zador-<:oloni.zado e
justifica a objetificaçio
(BON N IC I, 1996c) . do nativo

A segunda estratégia
refere-se à reescrita, ou
seja, "a retomada de
literárias do câ no ne obras
l...] para a reesrrururação das
'realidade s' europeias
te rm os pós-coloniais. em
A finalidade não é a rev
ersão da or de m hierár
in ter ro ga r os pressupo quica , mas
sto s filosóficos sobre
os quais tal or de m es
(ASHCROFT; G Rl ff tava baseada"
iT H S; T lf fiN, 1991,
p. 4). Exemplos clássico
são os romances Wide s da reescrita
Sargasso Sea (1966) , da
escritora do m in ic an a
(1890-1979) a pa rti r Jean Rhys
de Jane Eyre (1847), de
Ch ar lo tte Br om e (18
Foe (1986), do escritor su 16-1855) , e
l-africano J.M. Coetzee
(n. 1940), a pa rti r de
Crusoé, de Daniel De Robinson
foe (1994), origi.naria
mente publicado em
Sargasso Sea desenvolve líl 9. \Vide
os eventos do romance
de Br om e sobre a espo
de Mr. Rochester tranc sa 'crioula'
ada no só tão. Antoinett
e narra sua história de
pr at ic ad a pelo seu m espoliação
arido in glês na fazenda
dela no Caribe. A de
gradação e
32
CAPITULO I ASPECTOS DE TEORIA PÓS-COLONIAL •

submissão forçadas de Antoinette por seu marido, até sua deportação para
Thornfield Hall, tornam-se o fator emblemático de encontros coloniais. O
incêndio da mansão mostra a resposta da mulher 'colonizada' diante da
arrogância e domínio do europeu (BONNICI, 1994; ABRUNA, 1988). Em Foe,
o narrador não é mais o inventivo e prático Robinson Crusoé, mas uma mulher
inglesa chamada Susan Barton. Desterrada numa ilha, ela encontra um pacato
e desanimado Cruso e seu escravo, o africano Friday. Cruso morre durante a
viagem de volta à Inglaterra. Na metrópole, Susan tem dois problemas: transmitir
a sua narração da estada na ilha a um elusivo escritor Mr. Foe e arrancar do
mudo Friday a sua história. Ambas as tarefas tornam-se quase impossíveis: a
primeira por causa da pretendida manipulação da história por Mr. Foe e a
segunda pela incompreensão do europeu diante de singulares manifestações
'literárias' empreendidas por Friday. O romance avança na problemática posta
pelo romance original e discute o silêncio do colonizado, a possibilidade de fala
após uma história de brutalidades cometidas pelos europeus, o relacionamento
entre o colonizador e o colonizado, as modalidades não-canônicas d'e fala e
escrita, a manipulação da história pelo europeu e a subversão gentil (o conceito
de sly civility, discutido por Bhabha) do subalterno (BONNICI, 1995).

A análise da obra literária sob o enfoque da teoria pós-colonialista pode


ser uma tarefa difícil, porque implica uma metánoia no leitor e no crítico.
Pode inclusive subverter noções importantes da teoria literária e criar um mal-
estar quando se faz a comparação tipicamente ocidental (porque hierárquica)
entre a literatura de uma ex-colônia e as principais literaturas europeias.
Vivendo num país como o Brasil, cuja literatura tem muito pouca projeção
na literatura mundial, porque sempre foi considerada tributária (KOTHE,
1997), e, no caso específico do autor deste trabalho, ensinando as literaturas
de nações colonizadoras no idioma do colonizador, a análise pós-colonialista
pode privilegiar uma prática estratégica. Ela favorece a escolha de textos de
origem pós-colonial, escritos por autores que experimentaram a degradação
e, às vezes, o aniquilamento de sua cultura pelo colonialismo, para investigar
a resposta de cada um diante da arrogância colonial ainda existente. Oferece
também a oportunidade de resgatar textos que o poder colonial suprimia e fazia
sumir (porque subvertiam a ordem colonial por ele estabelecida), de analisar

33
1

• O PÓS-COLONIALISMO E A LITERATURA

... , tlrkns e ir('rnin,s 1wlus


textos sob uma nova perspectiva e recuperar :1speLl1J: -i :-ili .,
, . . , .', , (l\\\Sll'll lll li l11lí111d 11 d11
quats os autores, superando conveniêncws huLllltl 11 t.is,
colonização e da alteridade.
. , ,
A mvestigação literaria pós-wlo111altst:1 l .. iv•is prrspcrl iv:is 11111'11
:t m: IH '·
. .
ltteratur .. , .. , . ,•\ dHkuhl;Hk l'llt :ll·l'it:1r
as que, ernbora ntttdam ente pus-rnlon1.1ts, tclll
. _
essa sttuação. São literaturas já maduras, cumu :, l11. ·lkirn n111s rrlv,.:1,dns :,
:1:-; '
._
postçao tn.6utária e cujos autores rnio ~,parecl'.nl na list··, 'r-int'
· · ' -1nirn' dr 'Tltl'
~
w,
, 1:1.,· l 111 y (H) nilll!llll 'l' hit',
western Canon, de Harold Bloom. Corno o a1T1c:11H ..
de eoetzee, elas tem, metodo
. s propno, . s par:1 ht· 1:11. e. um . 1-.,r ' :1 s11n hisn\rh1. ()
mergu 1110 a. nau nautrag
, a da repro duz avo Ita :1s
, pto . 1.-11m jl ,~." 11•s d·, hist\'1 ri:1 p:1r:1 L]ltl:
- •

· ·to pos-co
O SUJet · loma
· l representa do na 1·1ter:1tur,1 11.. .'.L·ttl)''I'••
........ ·., vn, e :issitn possa
u

narrar e anunciar as suas experiências como o uutrn.

CULTURA E DESCOLONIZAÇÃO DA MENTE

A situação da cultura num país que teve a experiência da colonizaçr\O


sempre foi um tema com merecido destaqu e em qualquer discuss:,n. O assunto
se torna mais polêmico quando se discute a descolonizaçi'lo da cultura. A partir
de noções dialéticas do binário imperialismo-coloni:ilismo, muitos autores
colocam a cultura nacional no contexto da libertaçfo dos µuvus wlonizados
para tentar analisar a sua verdadeira face e as consequências por da engendradas
na luta anticolonial. Discute-se também não somente a função da literatura
ocidental dentro da perspectiva imperialista, mas també1n o papel da literatura
nacional para o povo colonizado.

A análise de romances pós-coloniais de autores africanos dentro da


perspectiva acima faz que o leitor comece a perceber a novidade. Já foi
mencionada a polêmica ·em torno da publicação de The Pal.m Wine Drinkard.
Alguns críticos britânicos (como Dylan Thomas) não compreenderam
0
alcance ideológico e o espírito crítico sob a nova linguagem (PHELPS, 1984).
Os romances sucessivos, especialmente de Chinua Achebe e Wole Soyinka,
reforçam essa nova tendência. Os provérbios das tribos nigerianas que

34
CAPITULO I AS PECTO S DE TEOR IA PÓS - COLONIAL•

povoam os romances, os rituais rdigi osos e a estn1tur,1 civil dei sociedade, que
formam o arcabo uço ela narrntiva e o substrato histórico, revelando aspectos
cio iníci o da colonização, indi cam uma tentativa Je resgate da civilização
que os europeus diziam não ter existido. Para cssn finalidade, comparam-se
as teorias propostas por Frantz Fan<m (1925-J961) e Ngugi wa Thiong'o (n.
1938) sobre o tema ela cultura no contexto da desco lonização, da luta para a
libertação nacional e cio surgimento ela literatura naci onal.

Em seu livro Les damnés de la terre ( 1961, em tradução brasileira, Os


condenados da terra, 2005), Frantz Fanon cli.scute as implicações culturais
oriundas do colonialismo e, consequentemente, as implicações ela luta
anticolonialista sobre a cultura do povo colonizado. Fanon propõe um
esquema em três fases experimentadas durante a ocupação colonial. A "fase
de assimilação" acontece quando,

1... 1 o
intelectual nativo rea lmente demonstra haver assimilado
a cultura do poder colonizador. Seus escritos correspondem
exatamente, ponto por ponto, aos temas e às formas literárias do
país colonizador. Sua inspiração é europeia e facilmente pode-
se ligar essa obra às tendências definidas na literatura do país
colonizador (FANON, 1990, p. 178-1 79).

Na segunda fase, chamada 'fase cultural nacionalista', o intelectual nativo


lembra sua identidade autêntica e reage contra as tentativas dos colonizadores de
obrigá-lo a assimilar a cultura europeia. Todavia, sua rejeição não é bem-sucedida
e suas tentativas de recuperar e reintroduzir as antigas tradições indígenas se
reduzem a uma romantização de épocas passadas, corrigidas pelas tradições
filosóficas e convenções estéticas elaborados do ponto de vista do colonizador.
"Acontecimentos passados das épocas distantes de sua infância surgirão das
profundezas de sua memória; antigas lendas serão reinterpretadas à luz de uma
estética emprestada e à luz do ponto de vista de um mundo descoberto sob
outro céu" (FANON, 1990, p. 179).

Há também a fase nacional, a fase de luta, ou a 'fase revolucionária e


nacionalista'. Nesse estágio, "o intelectual nativo, após ter-se entranhado com
o povo e no povo, começa a inflamar o povo [... ] Torna-se o despertador do

35
• O Pó~•GúLôNl í\l i~Mí) C A LI TE RATURA

i,m\1'' ~FAN~ )N, I\J9l\ p, 171)), Ness0 L'Stl1gl(), rfn li zn-se também o contato de
\ln\ ~nrn1k fl\lllh'I\) ,,.1 ~ t·s
,k nnth',,s l'liff\ HS l\' ll 1lll!\l .. dn opressão colonial, e tal fat
e 0

,\,nt\'I l'l l\1, ,, nr:1 umn d(' lnlWl'!Hl,~l\Çf\1'


- l 1H C() f1S.l-' icntirncfl()
, 1
e da expressão cultural
e

l' li l\'1':\rhl,

\_"1t' n,TH\ 1,, çnm 1~


,,,n,,n, n 1rm I',,,~,
,,, ,·,·rdndcira
,., ' ,
rnnsiste numa reafinnacão
(\i\1-ur:,I. lss\, SiJJni'ltçn que' n s1wrg1linh:nto dns gl1\ri:1s do passado em textos
litl'rt\dns (\institui 1trn 11\t'i'nnisrl\\, de ddesn 11rili zndn pelos intelectuais nativos
pnra ''st' :ifasrnr~n-1 dn ntlr 11 rn ,whknrnl nn q11nl rodeis sentem o risco de serem
tnt>rgulhnd0s'' (FAN ON, 199(\ p. lnS). Fanon prossegue dizendo que, "já que
lns int~kçnmis nntiv,,sl p,,,b·in1r1 perder s11n vidn e, portanto, ficariam perdidos
1,._ii:\ntt' d1;' Sl'\l pn,·1 \ ~SSL'S hnn-1cns [... 1 dccidirnm, mais uma vez, renovar sem cessar
o cnntn.to c,,m t1 t~'t\f1' ,~1dturnl mni~ pritnitivn e rnais pré-colonial pertencente à
vidn dt Sl'U p(w1," (FANON, 1990, p. 169).

fo nnn ~sri\ cnnscknte das li1nitações dessa fi.xaçào retrospectiva no que


diz respêim às mudan ças necessárias parn a vida dos colonizados. "Estou pronto
a conceder que, na vida pn\tica, n existê ncia no passado de uma civilização
asteca n,10 1nucbn\ ern nadn a dieta do mexicano de hoje" (FANON, 1990, p.
t68).

A ênfase sobre n cultura naci onal é uma reação e uma estratégia diante
da negnçfo dn culrura e das atividades culturais engendrada pelo poder colonial
qu1.: atingiu todos os povos colonizados. A dominação colonial existiu para
convencer ns na tivos de que a proposta colonial nada mais era do que banir
a escuridão da inexistência da cultura na sun vida e esclarecê-los sobre a única
culturn, :1 europeia, que eles, quisesse1n ou não, teriam de assimilar. "O nativo
que decide combater as rnentiras coloniais luta no continente inteiro" (FANON,
1990, p. 172). Porém se as pessoas de cultura africana insistem mais na cultura
continental (por exemplo, a africana) do que na cultura nacional (por exemplo,
a nigeriana), essa atitude pode levá-las a um beco sem saída, Lutar por "uma
cultura nacional significa, em primeiro lug·-u lutar pat··\ l'b t - J acão
aL1ude ponto estratégico Lllle torn·1 po " 1 ,1
e e e a I er açao
'
d
1 11 e. ' <
1 ºª 1

-1 .- ssive a construçào e uma cu tura 11


(FANON, 1990, p. 187).

36
CAPITULO I ASPECTOS DE TEORIA PÓS-COLONIAL ■

Por fim, Fãnon dá alguns indícios para a reestruturação da cultura nacional:


(a) o escritor ou intelectual tem necessidade de ver e compreender claramente 0

povo (o objeto de sua poética), através de um processo de autoimersão cultural;


(b) a ação cultural jamais pode ser separada da luta maior da libertação nacional,
o que implica que a cultura nacional deve estar a serviço da libertação nacional;
(c) o escritor ou intelectual nacionalista deve se preocupar com o passado, a fim
de que "se abra o futuro, que é um convite à ação e a base para a esperança"
(FANON, 1990, p. 187).

Ngugi: a descolonização da cultura

A posição anticolonialista e a estatura pós-colonial de Ngugi residem não


somente na sua obra ficcional, mas também num conjunto de publicações (fruto
de debates e conferências) em que aparecem suas tendências anti-imperialistas
oriundas de suas leituras de Fanon e dos clássicos socialistas. É importante
ressaltar que a obra ficcional de Ngugi (de modo especial os romances The River
Between, A Grain of Wheat e Petals of Blood) acompanha sua complexa obra de
teoria estética anti-imperialista e seu engajamento na luta para uma autêntica
cultura africana.

Imbuído de uma experiência de lutas, Ngugi atribui ao período de


resistência dos Mau-Mau (1952-1956) contra o colonizador britânico no Quênia
um fator revelador: a reação violenta do poder colonial e os ataques infligidos
por ele contra a cultura dos nativos provocaram a reação dos Mau-Mau. Tal
reação foi cultural, porque "[os lutadores] redescobriram as antigas canções -
embora jamais as tivessem esquecido - e as reestruturaram para as necessidades
da luta. Criaram também novas canções e danças com novos ritmos quando as
antigas não eram adequadas" (NGUGI, 1972a, p. 30).

Essa experiência faz que Ngugi defina a cultura como:

[... ] a totalidade da arte [do povo colonizado], sua ciência e todas


as suas instituições sociais, incluindo seu sistema de crenças e
ritos ... [Esses] valores são frequentemente expressos através das
canções populares, danças, contos, pinturas, esculturas, ritos e
ceremônias (NGUGI, 1972a, p. 4).

37
1

• O PÓS-COLONIALISMO E A LITERATURA

Segue-se que a libertação nacional e a redenção da cultura são dois polos


que constituem causa e efeito. "A libertação política e econômica é a condi.ção
essencial para a libertação cultural, para a verdadeira liberdade do espírito
criativo e da imaginação cio povo". Invocando O relacionamento linguístico
entre Próspero e Calibã, Ngugi afirma que "a língua carrega a cultura e a cultura
carrega através da 'oratura' ('oralidade' não expressa todo o significado desta
palavra) e da literatura o conjunto de valores pelos quais nós nos percebemos
e percebemos nosso lugar no mundo". A única conclusão válida, portanto,
é a descolonização da cultura, que, segundo Ngugi (1986, p. 15-16), significa
a recuperação das línguas e das culturas pré-coloniais. Várias soluções foram
encaminhadas para tal fim: Soyinka, Harris e Walcott favorecem o sincretismo
cultural; Bhabha e Spivak insistem na ideologia que envolve os encontros
coloniais; Brathwaite, Chinweizu e Ngugi defendem o retorno às raízes africanas
para a recuperação da identidade perdida (ASHCROFf; GRIFFITHS; TIFFIN,
1991). Portanto, a posição de Ngugi consiste num movimento de afastamento
radical dos sistemas europeus. Escrevendo em língua Gikuyu desde 1982, Ngugi
(1986) tenta descolonizar a cultura através de seus romances escritos a partir
das colônias, na língua nativa e com toda a potencialidade da libertação pós-
colonialista.

A recuperação da cultura e da literatura africanas acontece através


de 'oratura', ou seja, a contraparte equivalente da tradição escrita ocidental
('literatura'). Seguindo o exemplo de Tutuola e Achebe, Ngugi recupera a
narrativa da tradição oral africana e a desenvolve na continuação da arte popular
de contar. Quebra-se, portanto, a forma do romance convencional (europeu) e
surge a poética do romance africano (BONNICI, 1996a).

Ngugi sabe que as correntes colonizadoras ainda existentes, de modo


especial no ensino, também precisam ser quebradas. Além de realçar O papel
da literatura africana na formação de uma consciência nacional, Ngugi reflete
sobre a representação depreciativa da África por autores britânicos, como
Elspeth Huxley, Rider Haggard e Rudyard Kipling. Essas forças colonizadoras
se perpetuam na vida africana através das instituições estrangeiras e dos seus
interesses. Limitando-se à área cultural no já mencionado "On the Abolition

38
CAPITUL O I ASPECTO S DE TEORIA PÓS-COLONIAL ■

rhc English Departm ent" (1972), Ngugi coloca propostas concretas contra
0 1·

a preponde rância da obra literária (britânica) no currículo, da indústria


cinematográfica com seus conceitos de vida american a e dos meios de
comunica ção instalados por interesses ocidentais. Não é à toa que ele afirma:
"Um fator central da vida atual no Quênia é a luta encarniça da entre as forças
culturais que represen tam interesses estrangeiros e aquelas que represent am os
interesses nacionais" (NGUGI , 1986, p. 42).

Nesta época de capitalismo global, parece que a solução para a


descolonização constante e coerente da cultura nos países que foram
submetid os à colonização consiste na denúncia de inautenti cidade (retratado
por Fanon pela expressão pele negra, máscaras brancas) em nível de instituições
culturais e na recusa de ser subaltern o em nível de literatura. Segundo os três
autores discutidos acima, o despertar nacional e a conscientização anticolon ial
se baseiam naquilo que o colonizador mais tentava extirpar, porque ele sabia
que a cultura constituí a a única força aglutinadora da sociedade. Se a cultura
ocidenta l "cangava nossas mentes para as declinações em latim / E a língua de
Shakespeare / Nada nos dizia sobre nós mesmos / Nada havia, nada mesmo,
sobre nós" (SENIOR , 1985, p. 26), a literatura pós-colonial, respaldada nas
teorias sobre a cultura, oferece ao ex-império um conjunto de narrativas parn
provar que jamais houve o vazio cultural e que jamais os países colonizado.,
estiveram numa "longa noite de selvageria". O subaltern o foi substituí do pdú
sujeito porque "a descolonização traz um novo ritmo à existência, introdu:i do
por homens novos; com ela chegam também uma nova linguagem e unu fü'l\~l
humanid ade" (FANON, 1990, p. 36).

A contribuição de Fanon e de Memmi

O tema da "descolonização da mente" (NGUGl , 1986, p. 285),jú tfü'l'\dlmmh,


na questão da libertação nacional, poderia ser aprofundado se ~1nalisnrnll\' :l
contribuição teórica de Fanon e de Albert Memmi. A importân dn d:l t\.'l,rin pl\,-
colonialista reside no fato de que o Ocidente jamais analisou sutkil'ntt·nwntl' l'
problema do imperialismo. Michel Foucault, em cuja b:1g,\!.!l'tn ,.- ucxistl'tn rkgd.
Marx, Nietzsche, Freud e Sartre, e que analisa a probk•m,\tic l d:1 i1rn,l,ili::1(,':\1J l'

39
l'd de social e
■ o PÓS-COLONIALISMO E A LITERATURA
- afasta da rota i a
1 .. 1 ocidental, .se 1 , . ossi,vel
. ma cu tUtcl der", à qua e imp
do continamento no siste •
. ·d . 1 "microfísica dopFo icault, contemporaneo
. . . .
aprox11na-se do md,v,duo absot v1 pe
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arece que oL , .
tanto, p . , I forta lece o prestigio da
resistir (FOUCAULT, 1977, p. 26). Pot . ador irres1sttve e
1
de Fanon, representa o movimento co ontzc
cultura ocidental e do sistema que a contém. teoria crítica da Escola
. _
·1· b. a dom · 1nac ao, a • I' ta e a práxis
Apesar de sua ana 1se so te ' . ·, • icia ..
ant1-1rnpena is _ E _
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de Frankfurt não diz nada sobre a teSi.stei í sa essa< pos1 cao. xcec ao
b as ( 1986) comes '
·

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nista do coloniza do. Ha erm


oposicio
W ·II' ns os teóricos ranceses e
1 181
d . ·d
feita a Deleuze, Todorov, Derrida e Raymon
'

- . . o· d sse silêncto do oci ente, as


,ante e
analo-saxoes stlenc1am sobre tal assunto. d · 111 posicão de destaque.
º , a qwr e ·
teorias expostas no livro de Fanon, portanto
ambos nasceram
.
togra f·ta dos d01s· autores e, seme li1an te num só caso··
A6
pertencentes à classe média,
e viveram sob a marca do colonialismo. Embora
ram pelos colonizados. Frantz
geralmente seduzida pelos colonizadores, opta
medicina na França e se
Fanon nasceu em Martinica em 1925, estudou
seu primeiro livro. Qua ndo
especializou em psiquiatria. Aos 27 anos, publicou
lta contra os franceses, decidiu
foi lotado num hospital na Argélia, durante a revo
e observações o ajud aram a
tomar o partido dos 'rebeldes'. Suas experiências
lution Algérienne. No começo de
escrever Les damnés de la terre e L'an V de la Révo
compromissos de trabalho
1961, descobriu que estava com leucemia, mas os
. Ainda em 1961, foi levado a
não permitiram que procurasse cura imediata
morreu, aos 36 ano s de idade.
Washington, mas em dezembro do mesmo ano
licados num vo lume mti · ·tu Iado
Após sua morte, seus escritos teóricos foram pub
publ' d o sim · l
O pensamento teórico de Frantz Fanon. Em 1967 ' foi ica u tane ame nte
em Londres e em Paris Peau noire, masques blancs.
'd
Diferente foi a trajetória de Albert Mem mi,. nasci O em 1920 na Tunísia.
.
e rom anci sta tunisino e autor de estudos soc 10 . l' .
Torn ou-s ogicos sobre a opressão
h . . d
umana. Embora nascido num bairro pobre d e JU eus em Túnis, estu dou num a
, . . . . . .
escola secun dana dmg1da por fran ceses F
. o1 um Judeu entre muçu Imanos, um
árabe entre europeus, morador de gueto entre burgueses ,
. ' um evol ué (evoluído
na cultura francesa) num amb·tente trad·tc1o E
nal · ssas ten - · d
. . aut b· ' f· soes aJu aram-no a
pro d uz1r o pnmeiro romance 0 10gra 1co L
, a statue de sel (1953). Após a
40
C /\ P I 1 U LO 1 /\ S PEC ros D E TEO RIA PÓ S - CO LONIAL •

publ1 ç.1( 1n \k t\ ~m l 195 5), mud ou para a França, em 1956. Subsequ entemente ,
puhli\'()ll L · scorfJio n ou la con[e.ssion imagina ire ( 1969), Le désert ( 1977), Le pharaoh
l lq~~) e uma coleção de poemas intitulada Le mirliton du ciel ( 1989). Sua obra
:soc iológica mais influente foi Portrait du colonisé précédé du portrait du colonisateur
(1957) (MERRlAM,WEBSTER, 1995).

Le portrait

É necessário que se diga que Portrait, de Memmi, jamais teve a


repercussão universal que goza Les damnés de la terre, de Fanon. De modo
simples, Memmi explora a divisão entre colonizado r e colonizado e, seguindo
Sartre, analisa as patologias do relacionam ento amo,subalt emo a partir de um
olhar existencialista. A obra de Memmi tem a disposição política de levar a
sério as alternativas ao imperialismo, ou seja, a existência de outras culturas e
sociedades. Portrait consiste em três capítulos: retrato do colonizador, retrato
do colonizado e conclusão. Enquanto Memmi concebe o projeto colonialista
que cria o colonizado r e o colonizado como uma situação doentia (MEMMI,
1967), Fanon o vê como um sistema perverso que classifica as pessoas, objetifica
o outro, aniquila a cultura não,europeia. Consequen temente, as conclusões de
Memmi são imbuídas de um sentimento de fracasso. "Nós apenas queríamos que
[a Europa] reconhecesse nossos direitos[ ... ] Queríamos uma simples conciliação
nas nossas relações com a Europa. Gradualme nte percebemos que tal esperança
foi em vão" (MEMMI, 1967, p. 145). Porque Memmi trata o colonialismo sob o
enfoque idealista, as reações dos nativos colonizados por ele cogitadas são mais
brandas e quase ingênuas. Quando propõe a revolta e a rebelião (MEMMI,
1967, p. 150,151) para efetivar a libertação, tal proposta não tem a acuidade e a
profundeza que se encontram em Les damnés de la terre.

Os condenados da terra

Os condenados da terra é uma obra híbrida, compreend endo gêneros tão


diversos como o ensaio, a ficção, análise filosófica, relato de casos psicológico s.
alegoria nacionalista, transcendê ncia visionária da história. A partir de uma

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