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RIO DE JANEIRO
2018
OS SIGNOS DA CASA TIMORENSE NOS POEMAS “CASA SAGRADA” E “A CASA
E AS VACAS”, DE JOÃO APARÍCIO (2000)
RESUMO
O presente ensaio tem como objetivo apresentar uma breve reflexão sobre a simbologia do
espaço da casa na cultura e literatura timorense, refletindo, sobretudo, em relação ao aspecto
identitário e de elemento de corrupção das identidades nacionais. A casa, cuja simbologia já é
bem conhecida na cultura portuguesa, assume novas feições no contexto da cultura timorense,
tornando-se um signo líquido que ora representa a sacralidade identitária, ora simboliza um
objeto de corrupção e conspurcação das identidades. A casa sacral, úma lúlic, do poema Casa
Sagrada, e a casa objeto de corrupção, do poema A casa e as vacas, ambos da obra Uma casa
e duas vacas (2000), de João Aparício, põe em evidência duas significações de uma mesma
cultura, mas que se constituem como um elo num tempo em que as identidades e o próprio
nacionalismo timorense estava sendo posto à prova.
Introdução
Escrever sobre a simbologia da casa não é tarefa das mais fáceis como se poderia
pensar, mas requer um certo cuidado em relação às diversas significações do termo e, mesmo,
nas múltiplas definições de acordo com a cultura na qual se quer investigar o tema. No Timor
Leste, a casa possui uma representação particular na formação da vida familiar e comunitária,
funcionando como uma simbologia da nação. Isso porque a casa ilustra a própria vida de um
povo e de uma nação, ou seja, é uma construção que revela as características culturais da
presença de grupos familiares cuja história e significação ultrapassaram o espaço e o tempo
(PAULINO, 2012 p. 122).
Pensar a casa nos leva a rápida associação com questões arquitetônicas, lugar de
morada, espaço de habitação e de desenvolvimento das relações familiares. Entretanto, em
outras culturas, a casa ocupa um espaço outro, subjetivo, que ultrapassa os traçados de suas
paredes e da porta, fronteira entre o espaço público e o privado. A casa, nessas culturas, é
vista como espaço de formação e construção das identidades individuais e coletivas e “cenário
das questões-chave” para as relações do sujeito com sua própria história (SILVEIRA, 1999, p.
15).
As casas, igualmente, são objetos de cultura e de identificação pessoal uma vez que
quem as constrói já revela em si a sua imagem. Quando as constrói, o homem cultiva sua
própria a vida e é por isso que a casa é ponto de referência e origem de relações familiares, de
vizinhança e grupos comunitários de uma determinada nação. Elas são os locais das trocas, da
estabilidade e de um auto-reconhecimento entre os indivíduos que possibilita a construção de
um referencial que posiciona o sujeito no tempo e no espaço.
Tendo em vista esses aspectos citados, o presente ensaio busca refletir, sem com isso
esgotar os sentidos da casa na literatura timorense, sobre dois aspectos fundamentais da casa
em dois poemas da obra Uma casa e duas vacas (2000), do timorense João Aparício, quais
sejam, Casa Sagrada e A casa e as vacas. Os dois poemas abordam a casa a partir de dois
viesses complementares: o primeiro, aborda a casa a partir da construção das identidades,
sobretudo com relação a ideia de nação; o segundo, traz uma perspectiva da casa a partir de
aspectos de corrupção e, consequentemente, da conspurcação das identidades já referidas no
poema anterior.
Simbolicamente, a úma lúlic é um epicentro para todo o timorense, pois dentro dela
surgirá uma nova estrutura familiar dependente da sua ligação funcional e relacional com
outras úma lúlic que com ela formam uma comunidade, numa ligação de aproximação que
tem por base a unidade histórica e simbólica e que determina a apropriação do passado e o
exercício de um poder sobre a memória futura. Pode-se afirmar, no entanto, que a
representação simbólica de úma e úma lúlic reforça a imagem de uma nação e identidade de
um povo.
Segundo Ruy Cinatti (1965 p. 6):
As casas sagradas de cada dinastia espalhadas pelo país carregam todo poder
simbólico dos seus ancestrais. Por isso, elas são testemunho de uma identidade étnica e
constituem o pano de fundo da própria identidade nacional. A casa sagrada é o espaço da
identificação cultural dos timorenses, uma vez que foi a partir dela que se deu o poder entre as
etnias e também as relações de aproximação entre Timor e Portugal. (DURAND, 2012 p. 52).
Neste universo da casa sagrada há uma representação da herança étnica e uma
memória coletiva. Essa memória tem forte relação com um dos períodos mais tenebrosos para
o país, ou seja, o processo de independência do Timor Leste da Indonésia. Nesse período as
identidades foram colocadas a prova, sobretudo porque as forças locais se voltaram contra a
população causando muitas mortes e colocando “irmãos de nação” em campos opostos. Esses
aspectos podem ser vistos nos versos finais do poema e que deixam evidente essa questão.
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Somos os herdeiros da luz,
Porque nascemos da única úma lúlic,
A nossa vida foi feita para amar,
Não para matar um ao outro.
A antepenúltima estrofe resume de forma bastante precisa o papel da casa como uma
metáfora para a nação. Ao se referir à úma lúlic como um espaço onde todos os timorenses
nasceram o que se está querendo dizer é que o Timor Leste é a casa sagrada que deve ser
respeitada por todos e que foi violada pela colonização. A casa nesse sentido é uma categoria
cultural de importância fundamental. Enquanto entidade física e como categoria cultural ela
tem a capacidade de proporcionar a unidade nacional e, consequentemente, a identificação
com o espaço no qual todos estão circunscritos.
João Aparício, no poema “A casa e as vacas” (2000 p. 12-13), traz à tona a reflexão
sobre outro aspecto significante da simbologia da casa (úma) para sua poesia e,
consequentemente, para a literatura em língua portuguesa do Timor Leste: a casa, objeto
concreto, enquanto moeda de troca e corrupção, e, a casa, como fórmula abstrata de
conspurcação das identidades nacionais. Esses dois signos estão umbilicalmente interligados
uma vez que é justamente a utilização da casa para corromper que desencadeia o processo de
conspurcação da identidade nacional. Isso porque, conforme visto anteriormente, a casa
timorense é um objeto sagrado e em última instância carrega em si todo o simbolismo da
nação, ancestralidade e das identidades dos timorenses.
Acerca dessas considerações, as duas primeiras estrofes ilustram com riqueza de
detalhes esse processo de corrupção das identidades nacionais e conspurcação da úma lulic.
Note-se, nas primeiras linhas do poema há um claro apontamento à venda da alma em troca de
uma casa e duas vacas, senão vejamos:
Só por isso
Voltaste as costas à nossa casa,
Correndo atrás de outra
Que se nutre de mortes humanas e
Despejando bostas na morada de Deus?
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Porventura a alma é vendível?
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É importante situar a razão pela qual o poeta utiliza essa construção metafórica da casa
e das vacas para ilustrar o processo de corrupção da alma. Durante o processo decisório, por
meio de um plebiscito no Timor Leste, no qual seria decidido se o país se tornaria
independente da Indonésia, as forças militares e os chefes das milícias pró-integração
ofereciam como recompensa uma casa e duas vacas para aqueles que traíssem seus pares e
votassem a favor da integração do país. É por essa razão que ao iniciar o poema o autor relata
a corrupção da identidade individual nacional em relação à coletiva do sujeito que vendeu sua
própria alma e traiu seus compatriotas em troca do prêmio oferecido.
A casa, nesse sentido, assume em primeira instância o papel de objeto concreto e
físico, uma moeda de troca, como forma de corromper àqueles que violassem a casa sagrada
em prol da integração ao país colonizador. Em segunda instância, a casa é também elemento
de violação e corrupção identitária já que o indivíduo traidor abdica de sua identidade
nacional coletiva para se beneficiar de uma promessa que este nem mesmo sabe se será
cumprida.
O questionamento feito por Aparício ao longo do poema mostra toda a decepção com
esse indivíduo que se sujeito a trair sua nação em prol de seu benefício próprio. O poeta dá a
entender, inclusive, o prazer provisório que tal recompensa pode trazer para a vida desse
sujeito corrompido ou que se pretende deixar corromper. Tal como o ópio, a casa e as vacas
são uma cortina de fumaça para o aprisionamento de uma casa (nação) que quer se fazer livre
e que espera que seus moradores lhe abram as portas e janelas para a liberdade.
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Quando a promessa
Vácua e fatal, tiver chegado,
Prepara-te para chorar tua desgraça.
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Como essa promessa é o ópio!
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Olha! A casa é morta, roxa e fria,
Lá vêm as duas vacas,
Estrangeiras entre os rouxinóis,
Magras e sem leite.
Palavras finais
BIBLIOGRAFIA
FOX, James, (ed.). Inside Austronesian Houses: Perspectives on domestic designs for living.
Camberra: ANU, 1993.
MARCOS, Artur. Timor Timorense: com suas línguas, literaturas, lusofonia. Lisboa:
Colibri, 1995.
PAULINO, Vicente. A casa como espaço familiar e espaço social: um estudo semiótico do
espaço. In NEGRO, Francesca (org.). Público privado: o deslizar de uma fronteira, Ribeirão:
Húmus, 2012 (pp.119-134).
SILVEIRA, Jorge Fernandes da. (org.) Escrever a casa portuguesa. Belo Horizonte: Ed.
UFMG, 1999.
SOUSA, Lúcio Manuel Gomes de. As casas e o mundo: identidade local e nação no
património material/imaterial de Timor-Leste. In Etnografia - Acta do III Congresso
Internacional, Cabeceira de Basto, 2007 (pp. 196-227)