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UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO - UERJ

CENTRO DE EDUCAÇÃO E HUMANIDADES


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO STRICTO SENSU EM LETRAS
DOUTORADO EM ESTUDOS DE LITERATURA

LUIS CARLOS ALVES DE MELO

TRABALHO AVALIATIVO DE DISCIPLINA

DISCIPLINA: PROSA NARRATIVA

“Representações da família portuguesa: conflitos de gênero, classe sociais e classes


etárias (séculos XIX – XX) ”

Profa. Dra. Cláudia Amorim


Prof. Dr. Sérgio Nazar David

RIO DE JANEIRO
2018
OS SIGNOS DA CASA TIMORENSE NOS POEMAS “CASA SAGRADA” E “A CASA
E AS VACAS”, DE JOÃO APARÍCIO (2000)

RESUMO

O presente ensaio tem como objetivo apresentar uma breve reflexão sobre a simbologia do
espaço da casa na cultura e literatura timorense, refletindo, sobretudo, em relação ao aspecto
identitário e de elemento de corrupção das identidades nacionais. A casa, cuja simbologia já é
bem conhecida na cultura portuguesa, assume novas feições no contexto da cultura timorense,
tornando-se um signo líquido que ora representa a sacralidade identitária, ora simboliza um
objeto de corrupção e conspurcação das identidades. A casa sacral, úma lúlic, do poema Casa
Sagrada, e a casa objeto de corrupção, do poema A casa e as vacas, ambos da obra Uma casa
e duas vacas (2000), de João Aparício, põe em evidência duas significações de uma mesma
cultura, mas que se constituem como um elo num tempo em que as identidades e o próprio
nacionalismo timorense estava sendo posto à prova.

Palavras-chave: Casa. Corrupção. Identidades. Literatura timorense.

Introdução

Escrever sobre a simbologia da casa não é tarefa das mais fáceis como se poderia
pensar, mas requer um certo cuidado em relação às diversas significações do termo e, mesmo,
nas múltiplas definições de acordo com a cultura na qual se quer investigar o tema. No Timor
Leste, a casa possui uma representação particular na formação da vida familiar e comunitária,
funcionando como uma simbologia da nação. Isso porque a casa ilustra a própria vida de um
povo e de uma nação, ou seja, é uma construção que revela as características culturais da
presença de grupos familiares cuja história e significação ultrapassaram o espaço e o tempo
(PAULINO, 2012 p. 122).
Pensar a casa nos leva a rápida associação com questões arquitetônicas, lugar de
morada, espaço de habitação e de desenvolvimento das relações familiares. Entretanto, em
outras culturas, a casa ocupa um espaço outro, subjetivo, que ultrapassa os traçados de suas
paredes e da porta, fronteira entre o espaço público e o privado. A casa, nessas culturas, é
vista como espaço de formação e construção das identidades individuais e coletivas e “cenário
das questões-chave” para as relações do sujeito com sua própria história (SILVEIRA, 1999, p.
15).
As casas, igualmente, são objetos de cultura e de identificação pessoal uma vez que
quem as constrói já revela em si a sua imagem. Quando as constrói, o homem cultiva sua
própria a vida e é por isso que a casa é ponto de referência e origem de relações familiares, de
vizinhança e grupos comunitários de uma determinada nação. Elas são os locais das trocas, da
estabilidade e de um auto-reconhecimento entre os indivíduos que possibilita a construção de
um referencial que posiciona o sujeito no tempo e no espaço.
Tendo em vista esses aspectos citados, o presente ensaio busca refletir, sem com isso
esgotar os sentidos da casa na literatura timorense, sobre dois aspectos fundamentais da casa
em dois poemas da obra Uma casa e duas vacas (2000), do timorense João Aparício, quais
sejam, Casa Sagrada e A casa e as vacas. Os dois poemas abordam a casa a partir de dois
viesses complementares: o primeiro, aborda a casa a partir da construção das identidades,
sobretudo com relação a ideia de nação; o segundo, traz uma perspectiva da casa a partir de
aspectos de corrupção e, consequentemente, da conspurcação das identidades já referidas no
poema anterior.

ÚMA LÚLIC: a casa como signo da identidade nacional

A identidade dos timorenses é construída a partir da “Úma”, palavra em tétum que


significa casa. As úma lulic são as denominações dadas ao que eles entendem por casas
sagradas (úma = casa + lúlic = sagrada). Estes espaços físicos são fundamentais e representam
metaforicamente o mito da fundação da nação timorense, ou uma metáfora arquitetônica de
conotação histórica que produz e estabelece a identidade nacional timorense. Deve-se
aproveitar estes espaços consideráveis como uma possibilidade para reivindicar as diferenças,
e, ao mesmo tempo, reafirmar a memória coletiva partilhada desde o início, há muitos
séculos. É por isso que em Timor Leste existem as casas que evidenciam contatos culturais
entre grupos étnicos diferenciados.
A casa ou casa sagrada é o espaço de memória e das identidades dos timorenses, onde
se podem arquivar os objetos sacralizados; é veículo privilegiado da memória coletiva, que
apesar de ser um conceito antigo, hoje, se traduz numa imagem da sua história recente como
um elo fundamental da constituição da memória histórica de um povo ou de um grupo social
que interagem plenamente num espaço físico. A úma lúlic, portanto, é fórmula identitária do
povo timorense e é considerada como metáfora do conceito moderno de nação. O significado
de casa na perspectiva timorense desempenha um papel decisivo na afirmação da identidade
dos povos da região.
Tal aspecto pode ser vislumbrado com a devida clareza no poema que compõe a obra
Uma casa e duas vacas (2000), do poeta timorense João Aparício. Trata-se da composição
Casa Sagrada (p. 11), poema que coincidentemente abre a composição do artista e que aborda
a significação da casa como um espaço de construção das identidades nacionais. Já nas
primeiras estrofes do poema já é possível se observar o caráter identitário da composição que
se faz referência ao termo “casa sagrada” na língua pátria do Timor, o tétum.

Ao princípio vivias na úma lúlic,


A morada de Maromak
Luz que liga o Povo e a brisa do mar.

Simbolicamente, a úma lúlic é um epicentro para todo o timorense, pois dentro dela
surgirá uma nova estrutura familiar dependente da sua ligação funcional e relacional com
outras úma lúlic que com ela formam uma comunidade, numa ligação de aproximação que
tem por base a unidade histórica e simbólica e que determina a apropriação do passado e o
exercício de um poder sobre a memória futura. Pode-se afirmar, no entanto, que a
representação simbólica de úma e úma lúlic reforça a imagem de uma nação e identidade de
um povo.
Segundo Ruy Cinatti (1965 p. 6):

(...) a estrutura da habitação revela o simbolismo cósmico: a casa é a imagem do


mundo, a sua cobertura é o céu, o pilar ou poste principal é assimilado ao ‘eixo do
mundo’ que sustenta o imenso teto celeste e desempenha um papel ritual importante.
É na sua base que têm lugar os sacrifícios em honra do ser supremo, Maromak. Toda
a construção e inauguração de uma moradia equivalem a um começo, a uma nova
vida. Para que a obra dure e ‘viva’ deve ser animada, deve receber ao mesmo tempo
uma vida e uma alma.

As casas sagradas de cada dinastia espalhadas pelo país carregam todo poder
simbólico dos seus ancestrais. Por isso, elas são testemunho de uma identidade étnica e
constituem o pano de fundo da própria identidade nacional. A casa sagrada é o espaço da
identificação cultural dos timorenses, uma vez que foi a partir dela que se deu o poder entre as
etnias e também as relações de aproximação entre Timor e Portugal. (DURAND, 2012 p. 52).
Neste universo da casa sagrada há uma representação da herança étnica e uma
memória coletiva. Essa memória tem forte relação com um dos períodos mais tenebrosos para
o país, ou seja, o processo de independência do Timor Leste da Indonésia. Nesse período as
identidades foram colocadas a prova, sobretudo porque as forças locais se voltaram contra a
população causando muitas mortes e colocando “irmãos de nação” em campos opostos. Esses
aspectos podem ser vistos nos versos finais do poema e que deixam evidente essa questão.

E agora, irmã milícia,


Queres apagar a luz,
Essa misteriosa iluminação,
Que nunca foi apagada.

..................................................
..................................................
..................................................
Somos os herdeiros da luz,
Porque nascemos da única úma lúlic,
A nossa vida foi feita para amar,
Não para matar um ao outro.

A antepenúltima estrofe resume de forma bastante precisa o papel da casa como uma
metáfora para a nação. Ao se referir à úma lúlic como um espaço onde todos os timorenses
nasceram o que se está querendo dizer é que o Timor Leste é a casa sagrada que deve ser
respeitada por todos e que foi violada pela colonização. A casa nesse sentido é uma categoria
cultural de importância fundamental. Enquanto entidade física e como categoria cultural ela
tem a capacidade de proporcionar a unidade nacional e, consequentemente, a identificação
com o espaço no qual todos estão circunscritos.

Signos da corrupção: a casa como objeto conspurcação das identidades

João Aparício, no poema “A casa e as vacas” (2000 p. 12-13), traz à tona a reflexão
sobre outro aspecto significante da simbologia da casa (úma) para sua poesia e,
consequentemente, para a literatura em língua portuguesa do Timor Leste: a casa, objeto
concreto, enquanto moeda de troca e corrupção, e, a casa, como fórmula abstrata de
conspurcação das identidades nacionais. Esses dois signos estão umbilicalmente interligados
uma vez que é justamente a utilização da casa para corromper que desencadeia o processo de
conspurcação da identidade nacional. Isso porque, conforme visto anteriormente, a casa
timorense é um objeto sagrado e em última instância carrega em si todo o simbolismo da
nação, ancestralidade e das identidades dos timorenses.
Acerca dessas considerações, as duas primeiras estrofes ilustram com riqueza de
detalhes esse processo de corrupção das identidades nacionais e conspurcação da úma lulic.
Note-se, nas primeiras linhas do poema há um claro apontamento à venda da alma em troca de
uma casa e duas vacas, senão vejamos:

Tu, que eras da casa sagrada,


Vendeste tua alma ao monstro,
À troca de casa e vacas.

Só por isso
Voltaste as costas à nossa casa,
Correndo atrás de outra
Que se nutre de mortes humanas e
Despejando bostas na morada de Deus?
...............................................................
Porventura a alma é vendível?
...............................................................

É importante situar a razão pela qual o poeta utiliza essa construção metafórica da casa
e das vacas para ilustrar o processo de corrupção da alma. Durante o processo decisório, por
meio de um plebiscito no Timor Leste, no qual seria decidido se o país se tornaria
independente da Indonésia, as forças militares e os chefes das milícias pró-integração
ofereciam como recompensa uma casa e duas vacas para aqueles que traíssem seus pares e
votassem a favor da integração do país. É por essa razão que ao iniciar o poema o autor relata
a corrupção da identidade individual nacional em relação à coletiva do sujeito que vendeu sua
própria alma e traiu seus compatriotas em troca do prêmio oferecido.
A casa, nesse sentido, assume em primeira instância o papel de objeto concreto e
físico, uma moeda de troca, como forma de corromper àqueles que violassem a casa sagrada
em prol da integração ao país colonizador. Em segunda instância, a casa é também elemento
de violação e corrupção identitária já que o indivíduo traidor abdica de sua identidade
nacional coletiva para se beneficiar de uma promessa que este nem mesmo sabe se será
cumprida.
O questionamento feito por Aparício ao longo do poema mostra toda a decepção com
esse indivíduo que se sujeito a trair sua nação em prol de seu benefício próprio. O poeta dá a
entender, inclusive, o prazer provisório que tal recompensa pode trazer para a vida desse
sujeito corrompido ou que se pretende deixar corromper. Tal como o ópio, a casa e as vacas
são uma cortina de fumaça para o aprisionamento de uma casa (nação) que quer se fazer livre
e que espera que seus moradores lhe abram as portas e janelas para a liberdade.
..............................................................
..............................................................

É isso a casa que vais habitar?


São essas as vacas que esperas?
Que homem és?
Ou que herói vamos nos proclamar?

Quando a promessa
Vácua e fatal, tiver chegado,
Prepara-te para chorar tua desgraça.

.............................................................
Como essa promessa é o ópio!
............................................................
............................................................
Olha! A casa é morta, roxa e fria,
Lá vêm as duas vacas,
Estrangeiras entre os rouxinóis,
Magras e sem leite.

Ao final do poema, o poeta demonstra toda a podridão envolvida em objetos de


corrução ao se referir a casa como “morta”, “fria” e “roxa”. Tal como um cadáver, essa casa
objeto de corrupção e de conspurcação das identidades nacionais não tem chances de trazer
prosperidade alguma para aquele que lhe pertença, pois, sendo objeto de ganância, enganação
e corrupção, ela será sempre uma mancha irremovível e que dificilmente lhe trará frutos
futuros. A própria referência às vacas “estrangeiras entre os rouxinóis, magras e sem leite”, é
simbólica para representar toda a enganação que há por trás dessa oferta espúria e imoral.

Palavras finais

A casa é uma estrutura artificialmente construída cujo principal objetivo é a


constituição de espaço para a habitação de indivíduos ou conjunto de indivíduos no tempo, de
modo que estes estejam protegidos das condições naturais do clima e servir de espaço de
refúgio contra violações externas. Sendo assim, a casa é entendida como a estrutura que, para
além de se apresentar como espaço onde se constitui a família, ou espaço de moradia, se
define como uma construção cultural de uma dada sociedade.
A ideia de casa está tradicionalmente associada à existência de família, de tal maneira
que a palavra costuma ser usada com este significado, porque a origem de certos grupos
sociais começa nela, isto é, a família é uma unidade fundamental de uma sociedade, enquanto
a casa corresponderia à unidade fundamental de uma cidade. A casa ou úma, surge como
metáfora da ideia de nação e como matriz da identidade cultural do povo timorense. A casa é
o principal elemento identitário e o elo mais forte da cadeia de interações sociais. O espaço de
habitação é, para os timorenses, um espaço sagrado.
A casa, no contexto dos poemas Casa Sagrada e A casa e as vacas, da obra Uma casa
e duas vacas (2000), de João Aparício, revelam dois aspectos importantes sobre os signos da
casa timorense. O primeiro deles diz respeito ao caráter identitário e nacional do espaço que a
casa representa. Essa casa já não é mais um simples simbolismo de uma estrutura sólida de
concreto, madeira, barro etc., mas passa a contém um valor subjetivo no sentido da
representatividade das identidades de toda uma nação.
Em segundo lugar, a casa pode ser entendida de duas maneiras: uma em sua forma
concreta, estrutural, e, outra, em sua forma abstrata. Como forma concreta a casa se refere ao
objeto imóvel, a moradia, que pode ser objeto de troca e, como nesse caso, de corrupção dos
nacionais timorenses. Como forma abstrata, a casa representa a ideia de identidade
corrompida e violação da casa sagrada. Isso porque, como pode-se constatar anteriormente, a
casa para os povos timorenses possui uma relação com as memórias, com a ancestralidade e
pertença muito fortes, de modo que violar a casa é na verdade violar a nação.
Esses dois aspectos da casa estão intrinsicamente interligados e representam apenas
duas vertentes da representatividade dos signos da casa timorense. Como já dissemos ao
início, não foi nossa intenção esgotar as possibilidades de se pensar a casa no contexto da
literatura do Timor Leste, mas tão somente apontar para que a casa pode ser tanto elo nacional
e objeto sacral, como visto no poema Casa Sagrada, como também pode ser um objeto de
corrupção e conspurcação da identidade nacional, como visto no poema A casa e as vacas.

BIBLIOGRAFIA

APARÍCIO, João. Uma casa e duas vacas. Lisboa: Caminho, 2000.

BACHELARD, Gaston. A Poética do espaço. São Paulo: Martins Fontes, 2000.

CINATTI, Ruy. Tipos de casas timorenses e um rito de consagração. Lisboa: Junta de


Investigações do Ultramar, 1965.
DURAND, Frédéric. História do Timor-Leste: da pré-história à actualidade. Lisboa: Lidel,
2012.

FOX, James, (ed.). Inside Austronesian Houses: Perspectives on domestic designs for living.
Camberra: ANU, 1993.

MARCOS, Artur. Timor Timorense: com suas línguas, literaturas, lusofonia. Lisboa:
Colibri, 1995.

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espaço. In NEGRO, Francesca (org.). Público privado: o deslizar de uma fronteira, Ribeirão:
Húmus, 2012 (pp.119-134).

SILVEIRA, Jorge Fernandes da. (org.) Escrever a casa portuguesa. Belo Horizonte: Ed.
UFMG, 1999.

SOUSA, Lúcio Manuel Gomes de. As casas e o mundo: identidade local e nação no
património material/imaterial de Timor-Leste. In Etnografia - Acta do III Congresso
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