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Roberto Sidnei Macedo A Etnopesquisa Crítica e Multirreferencial Nas Ciências Humanas e Na Educação
Roberto Sidnei Macedo A Etnopesquisa Crítica e Multirreferencial Nas Ciências Humanas e Na Educação
humanas e na educação
Roberto Sidnei Macedo
Reitor
Naomar de Almeida Filho
Vice-Reitor
Francisco José Gomes Mesquita
EDITORA DA UFBA
Diretora
Flávia Garcia Rosa
CONSELHO EDITORIAL
Titulares
Antônio Virgílio Bittencourt Bastos
Arivaldo Leão Amorim
Aurino Ribeiro Filho
Cid Seixas Fraga Filho
Fernando da Rocha Peres
Mirella Márcia Longo Vieira Lima
Suplentes
Cecília Maria Bacelar Sandenberg
João Augusto de Lima Rocha
Leda Maria Muhana Iannitelli
Maria Vidal de Negreiros Camargo
Naomar Monteiro de Almeida filho
Nelson Fernandes de Oliveira
2ª edição
Salvador/2004
Nenhuma parte deste livro pode ser reproduzida, sejam quais forem os meios empregados, a não
ser com a permissão escrita do autor e da editora, conforme a Lei nº 9610 de 19 de fevereiro de
1998.
702 Kb ; ePUB
ISBN: 978-85-2320-935-3.
CDU: 165.5:167:37.02
EDUFBA
Rua Barão de Geremoabo, s/n Campus de Ondina
40170-290 Salvador Bahia
Tel: (71) 263-6160/6164
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www.edufba.ufba.br
Tanto nas ciências naturais como nas ciências humanas, o conhecimento mergulha na
ideologia, com ortodoxias, alegações gratuitas e rejeições cruéis logo que marginais e
desviantes se exprimem. Ao mesmo tempo, o espírito disciplinar leva a uma
compartimentalização da inteligência. Acredita -se que a fronteira disciplinar é uma
fronteira na realidade, que só é real tudo que se deixa formalizar ou modelar pelos
instrumentos lógico matemáticos, cortam-se as cabeças, os sexos e os membros a faca,
rejeita-se como dejeto, imundície, o que é manifestação de vida...
Edgar Morin
Sou grato
Às instituições que possibilitaram esta obra, notadamente à CAPES e ao CNPq, que a partir dos
meus primeiros estudos, forneceramme as condições materiais necessárias para edificá-los. À
minha família e aos meus amigos que me incentivaram e me acolheram nos muitos momentos de
desãnimo e decepção com a suave hipocrisia acadêmica e sua medíocre e sórdida política tecno-
burocrática. À minha filha Sílvia, um agradecimento especial e carinhoso por ter me mostrado a
fecundidade imaginária, estética e heurística da mitologia, e assim ampliado minha compreensão
sobre as complexas construções do Ser do homem. Sou extremamente grato, também, às colegas
e aos colegas professores Obdália Silva, Isolda Falcão, Sérgio Borba, Rita Dias e Joaquim
Gonçalves pelas apreciações ao mesmo tempo cuidadosas e francas sobre as minhas
indisciplinadas reflexões e narrativas.
Minha gratidão a todas as vozes que compuseram comigo estas reflexões formativas, e a todas as
pessoas que de algum modo possibilitaram a sua socialização.
Sou grato aos críticos que, por uma vigilãncia epistemológica fundada numa ética colaborativa,
tornaram e tornarão menos dramática minha eterna e necessária condição de incompletude e de
insuficiência, os considero parceiros nos caminhos aqui percorridos e na mobilização de outras
caminhadas.
Table of Contents / Sumário / Tabla de Contenido
Front Matter / Elementos Pré-textuais / Páginas Iniciales
Prefácio
Apresentação
Introdução - Pelos caminhos de Hermes...
Capítulo I - Reflexões e inspirações teórico-epistemológicas fundamentais para a
etnopesquisa crítica
A argumentação positiva da cientificidade
A inspiração e a argumentação fenomenológica
Existência e conhecimento
O ser-no-mundo e o ser-com
O modo fenomenológico de pesquisar
A natureza sócio-constitutiva da ação humana
Intersubjetividade e realidades múltiplas
A construção do outro
A construção social das realidades
O lugar da linguagem como ação
Cotidiano e cotidianidade
Contexto e lugar. Pertinências constitutivas
Os âmbitos da qualidade e sua dialética
Qualidade e quantidade. Uma relação mal construída
Uma epistemologia qualitativa
A hermenêutica. Um recurso e uma exigência
Por uma hermenêutica crítica
Micro x macro. Uma questão de relação
Representações sociais e imaginário
A emergência da subjetividade social
Multiculturalismo, etnopesquisa e educação
Relativização. Um conceito fundante
Por concluir: a filosofia multirreferencial e a questão do método
Capítulo II - Fontes acionalistas - semiológicas da etnopesquisa e suas implicações
educacionais
Ação e significado social
Interação simbólica. Gênese das ações
A "tradição de Chicago"
"Definição da situação". Uma noção seminal
"The fieldwork"
A vida social enquanto cena e a teoria do desvio
Etnometodologia e a compreensão dos etnométodos
O instituinte ordinário
Etnografia constitutiva e reflexiva em educação
História local e a multiplicidade histórica
A compreensão intensa e interna dos movimentos sociais
O sujeito como sistema sócio-cognitivo
A construção social das estruturas cognitivas
Construcionismo social e a "virada lingüística"
Etnopesquisa, método dialético e a nova sociologia da educação (NSE)
Teoria crítica, ação comunicativa e etnopesquisa
Algumas considerações conclusivas
Capítulo III - Métodos em etnopesquisa
Natureza etnográfica e clínica das etnopesquisas
A prática do trabalho de campo
O acesso ao campo de pesquisa
Estudo de caso. A busca da densidade significativa
A observação e a presença do olhar senso-analítico
As notas de observação
A observação participante. Pressupostos e prática
O campo das implicações objetais na pesquisa participante
Implicação e etnopesquisa. Exemplo concreto
A entrevista. Buscando o significado social pela narrativa
Particularidades da análise de entrevistas
O questionário aberto
Documentos como fonte de análise
História oral. Vozes que documentam
História de vida. Vivência e narrativa
Grupo nominal ou focal
As técnicas projetivas
Imagem na etnopesquisa
Análise construcionista
Dramaturgia social e o método de pesquisa etnocenológico
Diário de campo. Notas de existência e conhecimento
"Escuta sensível", conhecimento escolar e etnopesquisa
A propósito do método documentário de interpretação (MDI)
Análise e interpretação dos "dados" em etnopesquisa crítica
A análise de conteúdos
Etnopesquisa e o critério de pertinência ética e sócio-profissional
A escrita de uma etnopesquisa
A etnopesquisa crítica nos meios educacionais: extratos de exemplos
Etnopesquisa, condição feminina e educação
Etnopesquisa e a construção do objeto
O etnopesquisador. Principal "instrumento" da etnopesquisa
A etnopesquisa e seus vieses
Considerações conclusivas
Capítulo IV - Etnopesquisa crítica, currículo e formação docente
Sobre a crise da formação docente
Etnografia semiológica e formativa
A etnopesquisa e o estudo do currículo
Etnopesquisa-ação e etnopesquisa-formação
Etnopesquisa e pedagogia crítica
Algumas considerações conclusivas
Considerações conclusivas finais
Referências bibliográficas
Anexo 1
Anexo 2
Prefácio
Prefaciar uma obra não é nunca um tarefa qualquer, sobretudo porque requer uma interação
condizente com o seu tecido textual, o que significa, também, um estado de partilha do que se
oferece como obra. O prefaciar tem função de advertência do que vem a ser a obra no seu
intento. Significa apresentar a "face" do texto de forma pré-judicativa. O "pré" de "pre-fácio"
indica justamente "aquilo que antecede", o que já está posto, já está dado como condição
originante. Neste caso, o "pré" indica justamente a obra a partir da qual se procura mostrar o seu
"fazer" de forma correlata, mas nunca coincidente. O prefácio apenas anuncia a obra posta,
convida o leitor a embrenhar-se nas rotas do texto, a tornar-se seu cúmplice suspeito, a investigar
junto o que nele encontra-se dito, marcado e problematizado. O prefácio, portanto, é apenas um
esboço do que é o texto, sob o ponto de vista de quem o escreve. Fazendo uma analogia, o
prefácio se assemelha aos proclames de um determinado espetáculo. Para conhecer o que nele se
anuncia é preciso participar do espetáculo. É como convite ao leitor para que participe do
espetáculo da obra que escrevo este prefácio.
O livro de Roberto Sidnei Macedo "A Etnopesquisa Crítica e Multirreferencial nas Ciências
Humanas e na Educação" aborda questões da mais alta relevância no âmbito da pesquisa
epistemológica e crítica que tem por foco o saber propriamente humano, a ciência genuinamente
humana.
Diante dessa aporia entre "explicar" e "compreender", o que importa é o sujeito humano e sua
historicidade como ente-espécie. Não se trata, assim, de uma simples negação das ciências da
natureza, mas de uma fundação das ciências do espírito. O argumento de uma tal empresa é a
construção antropológica do conhecimento. O caminho é crítico-epistemológico e moral / ético
simultaneamente, e isto porque em primeiro lugar localiza o ser do homem a partir de uma
consciência interrogante e investigativa, tomando distância das representações já estabelecidas e
abrindo-se para o campo das possibilidades contextualmente oferecidas. Deste modo, o
fundamento possível para uma ciência humana de rigor não pode ser o mesmo das ciências da
natureza. A exatidão das ciências objetivas não pode ser o fundamento epistemológico das
ciências do homem, e é justamente o exercício da consciência crítica que assume a tarefa de
elucidar os limites, as possibilidades e as condições do conhecimento humano em todos os seus
âmbitos possíveis, prováveis, certos ou verossímeis.
Para as ciências do homem, o método deve brotar da investigação que por princípio interroga o
próprio conhecimento a partir do conhecedor, do conhecido e do conhecível. O método, portanto,
não é uma "explicação" dos fenômenos humanos, mas apenas uma "compreensão" dos mesmos.
Ora, compreender é algo próprio dos humanos, diz respeito ao modo de ser existencial, histórico
e circunstancial dos sujeitos-comuns. E se é buscando o seu próprio fundamento que as ciências
humanas vão procurar colocar-se em pé de igualdade com as ciências físico-matemáticas, a única
possibilidade criticamente admissível para a constituição de tais ciências é que elas abandonem
qualquer pretensão de exatidão e se limitem a "descrever" um determinado objeto
intencionalmente constituído, isto é, um determinado fenômeno da consciência-de-si, ou melhor,
da consciência transcendental, isto é, um fenômeno como consciência humana e produção de
sentido-significância-significado para o ser-sendo-com-historial. Deste modo, a possibilidade de
descrição do fenômeno humano em suas várias dimensões torna-se uma tarefa da crítica do
conhecimento. Partindo da própria subjetividade, a crítica do conhecimento interroga o próprio
ser-no-mundo. Entretanto, o que vem a ser uma tal subjetividade ?
Se a tarefa das ciências críticas - ou melhor, das ciências humanas que ultrapassaram a pretensão
de exatidão e se exercitam como atividade de rigor - é a investigação do próprio fenômeno
humano, um tal acontecimento só faz sentido para uma consciência que percebe, e tal
consciência estará sempre investida de uma situação histórico-existencial, será sempre um sujeito
do conhecimento, uma pessoa socialmente constituída, um pesquisador singularmente sensível,
dotado desta ou daquela potência. E porque a consciência da qual se fala é uma consciência-
corpo-vivente, o seu exercício crítico jamais poderá erigir-se em sistema acabado do
conhecimento universal, porque o seu campo objectual confunde-se com a própria ação humana
no seu acontecimento ontológico e epistemológico: o ato de compreender como condição da
intersubjetividade humana e como existência encarnada e histórico-simbólica (lingüística,
semiótica, habituária, expressiva, comunicante).
Em virtude de uma tamanha carga subjetiva, as ciências críticas não podem balizar-se nos
critérios de validade epistemológica que adotam posturas próprias para o tratamento e
investigação dos entes não dotados do modo de ser do homem. Por isto, a idéia de
"neutralidade", tão peculiar às ciências "positivas", é subsumida nas ciências críticas pela idéia
de "distanciamento fenomenológico", ou melhor, "suspensão fenomenológica". As implicações
disto são da maior importância epistemológica e as suas possibilidades são infinitas.
Nas ciências críticas, a aporia entre o "explicar" e o "compreender" pode ser interpretada como
inevitável, e mais do que uma simples aporia, pode ser tomada como uma proclamação de
independência das mesmas em relação às "ciências da natureza". A Etnopesquisa Crítica e
Multirreferencial é descendente desta proclamação de independência e vem contribuindo
fortemente na consolidação da epistemologia das ciências de rigor, mas não exatas.
Relevo a importância da problemática que constitui este livro de Roberto Sidnei. De maneira
ampla e instigante, o mesmo consegue acolher com perícia e pertinência vozes que se encontram
espalhadas em uma grande quantidade de obras seminais no campo da pesquisa qualitativa,
sobretudo aquelas de marca eminentemente fenomenológico-hermenêutica. A riqueza da sua
tematização é, a meu ver, o seu maior mérito. Neste sentido, trata-se de uma obra de grande
utilidade acadêmica, porque se constituiu a partir de um evidente esforço de investigação densa,
e tem como resultado sínteses conceituais e operativas complexas, oferecidas de forma clara,
circunstanciada e convincente.
Este livro, portanto, é indiscutivelmente atual. Mais do que nunca há, nos dias de hoje, um forte
retorno à filosofia como atividade de rigor. Assim, todas as ciências humanas estão procurando
correr atrás de uma fundamentação epistemológica própria e consistente, e a filosofia crítica
apresenta-se como âmbito a partir do qual uma epistemologia das ciências humanas encontra sua
autojustificação e validade. Neste ponto, a obra é bastante abrangente, percorrendo um processo
de autojustificação que se coloca no diálogo com as principais fontes, matrizes e vozes da
pesquisa fenomenológica e hermenêutica, em chave etnometodológica, da atualidade.
A complexidade do universo temático tratado neste livro poderia ter sido um grande obstáculo na
comunicação da obra, caso seu propositor não fosse possuidor de uma expressão escrita fluente e
correta. As sínteses conceituais operadas por ele são provenientes de um longo processo de
maturação e sedimentação vivencial, o que torna os argumentos usados próprios e apropriados, e
não meras repetições de máximas de conduta. O texto, portanto, é de fácil compreensão, apesar
de exigir do seu leitor um mínimo de cultura própria e já sedimentada e um máximo de atenção e
interesse pela continuidade de uma formação qualificada do pesquisador crítico.
Nesta obra, de modo claro, a complexidade da teoria crítica de última geração é apresentada de
forma compreensiva e sedutora, pois não deixa de lado o recurso ao estilo próprio e singular, o
que é um sinal indicativo de que a obra poderá ser lida com proveito pela comunidade à qual se
dirige, pois, como obra de criação singular, ela se apresenta como contribuição efetiva ao campo
das investigações etnometológicas praticadas institucionalmente, e poderá ser de grande auxílio,
sobretudo porque possui, também, uma intenção pedagógica fundamental: a de ser um livro-
formação, um instrumento metodológico da formação científica de uma nova geração de
pesquisadores críticos e atuantes na transformação social qualificada e na educação do cidadão
autônomo e consciente de seu papel soberano e interativo.
Regozijo-me, assim, com a publicação deste livro de Roberto Sidnei, porque nele vejo
estampado sinais do florescimento de novas possibilidades pedagógicas em nosso meio e país, no
sentido de um compromisso histórico inadiável, cujo foco são as gerações presentes e vindouras,
para as quais já não cabem mais as fôrmas rígidas do positivismo inafetivo, pois se impõe a
necessidade de novas criações e formas de educação capazes de acompanhar a inquietação e
complexidade do nosso tempo, sempre de maneira própria e apropriada, isto é, de maneira
autônoma, participativa e inventiva.
Para apresentar adequadamente o pesquisador Roberto Sidnei Macedo e seu trabalho é preciso,
simultaneamente, falar do GRIME (Grupo interinstitucional de estudos e pesquisas
multirreferenciais em educação) do qual o mesmo faz parte e vem, desde 1992, contribuindo
decididamente com sua produção. Aliás, para ambos, trata-se da instituição de um percurso e
uma concepção de pesquisa em educação, capaz de proporcionar significativa contribuição para
os profissionais da educação pensarem a si mesmos e a própria prática e, assim, produzirem uma
compreensão mais ampla de si como condição para significarem o que fazem.
Por que iniciar falando do GRIME? Porque tudo isto, creio, tem a ver com a etnopesquisa
proposta por Roberto. Senão, vejamos.
Pelo que pude entender, etnopesquisa não seria outra coisa senão uma pesquisa ao mesmo tempo
enraizada no sujeito observador e no sujeito observado. Enraizada no sentido etmológico, o de
dar conta das raízes, das ligações que dão sentido tanto a um quanto a outro. Para tanto, é
necessário, por parte do pesquisador, ousadia para se autorizar por caminhos metodológicos não
convencionais com o objetivo de apreender a complexidade e as filigranas próprias de cada
sujeito singular, tanto do pesquisador quanto do sujeito pesquisado e de seus entornos.
Assim tem caminhado o GRIME e o próprio Roberto. Enquanto o primeiro apresenta neste seu
surgimento uma história enraizada, estabelecendo ligações, reconhecendo a complexidade
inerente ao projeto de se organizar um grupo interinstitucional de pesquisa sem desconsiderar a
heterogeneidade e singularidade dos sujeitos pesquisadores e das instituições, Roberto Macedo
se volta para identificar e explicitar os pressupostos epistemológicos e possíveis estratégias
metodológicas para se produzir uma leitura enraizada, indexada, da realidade brasileira.
Trata-se de uma questão decisiva na formação de nossos educandos, a formação para a pesquisa,
que nem sempre é levada em consideração com a devida sofisticação e importância. Deveria ser
considerada como estratégia pedagógica na formação de nossos educandos para a escola e para a
vida se não separamos a formação de autores na escola e na academia da formação de autores
para a vida social, portanto, cidadãos. Nesta direção, conceitos como o de implicação e o de
contratransferência, além de outros exaustivamente abordados no texto de Roberto, tornam-se
indispensáveis para a formação de um pesquisador que se preocupa em desenvolver uma
compreensão de si como condição para atribuir, com alguma propriedade, sentidos à realidade
estudada, no caso as problemáticas da educação.
Para nós, profissionais da educação que participamos de seleção para ingressantes em programas
de pós-graduação e de concursos públicos, é extremamente comum nos depararmos com
discursos homogêneos quando se propõem discorrer sobre determinado tema. Tornam-se
passagem obrigatória chavões como visão crítica da realidade e referencial teórico-crítico.
Como se a criticidade fosse algo a ser colhida em alguma árvore ou comprada em algum
armazém, e não uma capacidade a ser desenvolvida como resultado de um caminho percorrido e
da forma como o foi.
Sobre tudo isso Roberto Sidnei Macedo irá tratar neste seu trabalho A etnopesquisa crítica e
multirreferencial nas ciências humanas e na educação. Ele apresenta um produto, uma
caminhada e um jeito de caminhar, caracterizadamente seus. Não necessariamente trata-se de
modelo para todos nós. Trata-se tão somente do caminho percorrido por Macedo para se
apropriar do conhecimento em prol de seu processo de se autorizar perante si mesmo, a academia
e a vida. Penso que a maior contribuição que o leitor poderá alcançar lendo o trabalho de Macedo
e, isso já não seria pouco, é exercitar a percepção dos percalços, das voltas, dos círculos, das
sinuosidades... presentes em qualquer processo de apropriação seja do autor estudado seja do
leitor. Principalmente porque, concordando com Castoriadis, penso que esta é a maior
contribuição que um autor poderá oferecer, deixar livre acesso ao leitor para o caminho tortuoso
e sempre inacabado de sua construção. Para este autor, "ao contrário da obra de arte, aqui não há
edifício terminado e por terminar, tanto e mais que os resultados, importa o trabalho de reflexão
e talvez seja sobretudo isto que um autor pode oferecer, se é que ele pode oferecer alguma coisa.
A apresentação do resultado como totalidade sistemática e burilada, o que na verdade ele nunca é
(...) só reforça no leitor a ilusão nefasta para a qual ele, como todos nós, já tende naturalmente,
de que o edifício foi construído para ele e doravante basta habitá-lo se assim lhe apraz. Construir
catedrais ou compor sinfonias não é pensar. A sinfonia, se existe sinfonia, deve o leitor criá-la
em seus próprios ouvidos." (CASTORIADIS,1982, p.12) .
Neste embalo, inúmeras outras questões ou desdobramento destas poderiam ser ditas, mas trata-
se tão somente de uma apresentação. Como tal, como forma de concluí-la, registro a satisfação
de acompanhar o movimento de Roberto ultrapassando fronteiras do saber, navegando nas águas
da Multirreferencialidade, num exercício contínuo de se apropriar e, em conseqüência,
resignificar conteúdos e práticas presentes no cotidiano das instituições educativas que compõem
o tecido de nossa realidade brasileira.
Henri Lefèbvre
Não sei como se chega a algum lugar compreensivamente sem caminhar os caminhos, suas
direções/sentidos, seus desvios, incertezas e irregularidades, inventando a experiência(método).
Por isso mesmo, procurei em Hermes o mito-deus, a inspiração metafórica para a satisfação de
um desejo e a realização de um projeto, que se consubstancia na necessidade percebida e
experimentada de se tematizar o método enquanto formação. Convenci-me a cada instante da
minha prática de pesquisador que metodologia não poderia ser uma prática automática, mas
problemática. Com isso, almejo a construção continuada de uma formação metodológica
ampliada e conectada a uma crítica social do seu uso, portanto, articulada à reflexões éticas e
políticas.
E por que, enfim, Hermes? Qual a pertinência em trazê-lo até o cenário dessas nossas
introdutórias reflexões metodológicas em etnopesquisa, educação e formação docente? Para
mim, o mito não é uma alternativa ao conhecimento científico, conhecimento científico e mito
são de natureza diferentes, entretanto, acredito que a ciência pode articular-se com as formas de
pensar míticas, sem precisar extingui-las enquanto atividade intelectual deformada ou inferior,
distante da verdade. Há no mito uma fecundidade para a compreensão das ações-nomundo, do
homem e seu imaginário sócio-histórico. Caminhemos então até Hermes... filho de Zeus e Maia,
a mais jovem das Plêiades, nasceu num dia quatro (número que lhe era consagrado), numa
caverna do monte Cilene, ao Sul da Arcádia. Apesar de enfaixado e colocado num vão de um
salgueiro, árvore sagrada, símbolo da fecundidade, da criação. Hermes, no mesmo dia em que
veio à luz, desligou-se das faixas, demonstrando sua natural inquietação, seu gosto pela liberdade
e seu poder de ligar e desligar, isto é, de aproximar-se e afastar-se.
Sábio dos caminhos e de suas encruzilhadas, não se perdendo nas trevas, o filho de Zeus e Maia
acabou por ser um deus psicopompo, quer dizer, um condutor de almas.
Para Mircea Eliade, são as faculdades espirituais do deus psicopompo que lhe explicam as
relações com as almas, pois sua astúcia e sua inteligência prática, a sua inventividade, o seu
poder de tornar-se invisível e de viajar por toda parte já anunciam os prestígios da sabedoria,
principalmente do saber hermético, que se tornarão mais tarde as qualidades específicas deste
deus.
Umas das qualidades mais enaltecidas de Hermes são suas relações com o mundo dos homens,
um mundo por definição aberto, em permanente construção; tem na astúcia, na inventividade, no
interesse pelas atividades dos homens, na psicopompia - uma forma de "pedagogia" - suas
principais características, tornando-se um deus extremamente dinâmico e complexo. Hermes
sabe e transmite, é inteligente e mundano, é sábio e convive com os mistérios da opacidade dos
saberes diretamente inacessíveis, um perito que não contorna a complexidade, um mediador do
conhecimento que resiste à compreensão. Como Perséfone, que vive a metade do tempo na
escuridão – como punição por haver desafiado um deus – e a outra metade na claridade do
glorioso esplendor da primavera, Hermes penetra no interior das trevas e no momento de retornar
à claridade traz consigo, impregna-se, do conhecimento adquirido no mundo da escuridão e das
opacidades, opera por competência adquirida em mundos contrastantes e, por isso, é capaz de
estabelecer, nestas relações complexas, conexões plurais.
Pelo dito, e considerando Hermes como parte do imaginário humano relacionado à ciência,
podemos verificar o quanto o edifício científico moderno negou as itinerâncias de Hermes, ao
afastar-se dos homens, do povo, ao dogmatizar-se. Tornando-se um saber desconectado, o
edifício científico moderno fragmentou-se, formando um corpus de conhecimento fraturado, uma
racionalidade descontextualizada, muito longe daquilo que o mito grego imaginara ser portador o
seu deus patrono da ciência, sedento de relações e conexões.
Mediador de saberes, Hermes não simboliza a neutralidade, luta contra as forças ctônicas porque
as conhece pelo trabalho de desvendamento das obscuridades.
De que lado estaria Hermes, tomando como objetos de reflexão a ciência "dura" e a construção
científica pós-formal? Para quem trabalharia um ex-ladrão de rebanhos que, enquanto deus,
elevou-se a condutor de almas? O que faria um sábio dos métodos (caminhos) que deliciava-se
em ficar em meio aos homens, experienciando a vida cotidiana e suas impurezas?
Parece-nos que o mais interessante nesse deus tão longevo, ofuscado pelas luzes, já que para
alguns faleceu, se é que faleceu, no século XVII, são suas relações com o mundo-vida, o mundo
dos homens.
Como Hermes, gostaria de ir construindo algum tipo de via, sem contornar obviamente a
complexidade dos homens em ação; gostaria de movimentar-me pelas estradas e mares nem
sempre pontos e portos seguros, até porque a incerteza, já nos sugere Morin, é algo certo entre os
homens.
Desta forma, ao adentrar no cerne mesmo da construção desta obra, ao mobilizar-me para
materializá-la, dois objetivos predominaram de imediato: proporcionar aos educadores uma
instrumentalização metodológica mais alargada e um exercício epistemológico pertinente e
relevante em etnopesquisa crítica. Objetivos que ancoraram numa implicação para mim
fundamental: a formação do professor -pesquisador de uma perspectiva ampliada, conectada e
criticamente fecunda.
Mas o que seria a etnopesquisa crítica? Que distinções justificariam esta denominação? Ademais,
como ela própria se justifica? Como se articularia com a formação do professor -pesquisador?
Antes de tudo, faz-se necessário afastar quaisquer vislumbres onde a etnopesquisa crítica possa
parecer mais uma receita universal em metodologia científica, forjando mais um modismo
maniqueísta. A própria forma de como esta visão epistemológica e de método aparece aqui
descarta toda e qualquer tentativa de um reducionismo metodológico, até porque as noções de
complexidade (Morin) e multirreferencialidade (J. Ardoino) são as pilastras epistemológicas que
mantêm viva, aqui, a fundação deste savoir-faire científico, tratado nesta obra fora de qualquer
escolástica teórico-metodológica.
Um dos pontos fundamentais que devemos destacar para compreendermos a etnopesquisa crítica
é que ela nasce da inspiração etnográfica, sua base incontornável, mas diferencia-se, quando
aprofunda-se na démarche hermenêutica de natureza sócio-fenomenológica e crítica, produzindo
conhecimento indexalizado. A etnopesquisa crítica se afirma também por aquilo que ela não é:
um fisicalismo metodológico, um quantitativismo nomotético, um objetivismo excludente, um
interpretacionismo acientífico ou uma pesquisa distanciada dos âmbitos da ética e da política.
Com sua preocupação etno (do grego ethnos, povo, pessoas), a etnopesquisa em geral volta-se
para o conhecimento das ordens sócioculturais em organização, constituídas por sujeitos
intersubjetivamente edificados e edificantes, em meio a uma "bacia semântica" (Durand)
mediada socialmente. Neste sentido, preocupa-se primordialmente com os processos que
constituem o homem em sociedade. Como ponto de partida, descrever para compreender é um
imperativo, daí a pertinência para os etnopesquisadores da noção antropológica de "descrição
densa" (Geertz), extremamente sensível ao caráter encarnado e polissêmico da existência dos
seres humanos e do dinamismo que aí se impõe. A descrição supõe, portanto, uma situação de
presença, longe da qual não há possibilidade de percepção fina e relacional do fenômeno, uma
presença que, ao articular-se com a tradição crítica em ciências humanas, supera de vez a visão
ingênua e o viés neutral sobre as interessadas e muitas vezes assincrônicas realizações dos
homens, incluindose aí a própria construção social da ciência.
O ator social não fala pela boca da teoria ou de uma estrutura diabólica, ele é percebido como
estruturante, em meio às estruturas que em muitos momentos reflexivamente o performam.
Assim, o significado social e culturalmente construído não se torna resto diurno esquecido na
conclusão de uma pesquisa, ele é trazido para o cenário ativo da construção do saber com tudo
aquilo que lhe é próprio: contradições, paradoxos, ambigüidades, ambivalências, assincronias,
insuficiências,transgressões, traições etc. Aliás, esta atitude de pesquisa tem uma conseqüência
democrática radical para o campo das pesquisas antropossociais e em ciências da educação mais
precisamente: trazer para a investigação vozes de segmentos sociais oprimidos e alijados, calados
pelos estudos normativos e prescritivos, legitimadores da voz da racionalidade
descontextualizada.
Os argumentos trazidos pelos etnopesquisadores críticos parecem desafiar muitas suposições nas
quais as ciências sociais positivistas se baseiam. A tradição da ciência que estes provêm
considera o significado e os sentidos centrais à vida social. O termo significado faz mais do que
sugerir a natureza simbólica da vida social e, a seu modo, assinala o fato de que a ação humana
não é tão constatável, previsível, tão determinada em seu desenrolar.
Segundo esta ontologia, ao estudarmos as realidades sociais, não estamos lidando com uma
realidade formada por " fatos brutos", lidamos com uma realidade constituída por pessoas,
relacionando-se através de práticas que recebem identificação e significado pela linguagem usada
para descrevê-las, invocá-las e executá-las, daí o interesse pelas especificidades
predominantemente qualitativas da vida humana.
Desta perspectiva, o que não se admite é que pelo esforço de construir conceitos de "segunda
ordem", se destrua a própria realidade investigada e a substitua por uma versão cientificizada e
abstrata. Isto significa adulterar conceitos e etnométodos usados pelos atores no decorrer de suas
vidas, a fim de torná-los cientificamente válidos e utilizáveis.
Sensível ao que chamou mundo-vida, a fenomenologia constitutiva, uma das bases filosóficas da
etnopesquisa, se propõe a descrevê-lo independente e anteriormente a qualquer explicação
científica. Os mundos-vivos pertencem a grupos históricos específicos; de uma posição histórica,
não poderia haver nenhum privilégio especial ligado a qualquer mundo vivo em particular.
A realidade é que o mundo humano altera-se com as inovações conceituais, e uma ciência moral
da vida humana não pode ser isenta de valores, constitui-se numa parte de uma espiral
hermenêutica de redefinições e interpretações de nossas opções fundamentais na vida (Hughes,
1980).
Preocupado com algumas reduções vindas com os sinais dos tempos pós-formais, ressalto que
uma ciência interessada nos significados socialmente construídos não dispensa o esforço da
razão – uma razão conectada obviamente —, da coleta cuidadosa de evidências, da exploração
dedicada e persistente, ideário de todo espírito científico curioso e seminal.
Como no mito de Hermes, o esforço deve se dar na direção de se fazer ciência relacional,
conectada, caminhante, humanizada e humanizante, sedenta de insigths socialmente pertinentes.
Este caminho começa a ser trilhado por mim, faz-se necessário pontuar, no âmbito das práticas
de pesquisa do NEPEC – Núcleo Temático de Ensino, Pesquisa e Extensão em Currículo,
Comunicação e Cultura — do Programa de Pós-graduação da FACED/UFBA e no Departamento
de Ciências da Educação da Universidade de Paris Saint-Denis. Tais vivências possibilitaram-me
edificar um aprofundamento e um alargamento formativo das orientações destes programas no
que concerne à visão de pesquisa e de formação, tomando as humanidades e o currículo como
campos de estudo básico. Investigação etnográfica-semiológica e análise crítica das situações
educativas, consubstanciam-se num exercício que dá feição às múltiplas démarches de pesquisa e
de estudos do NEPEC, por exemplo, tendo nas pesquisas e nas orientações sócio-
fenomenológicas da Professora Teresinha Fróes Burnham sua pedra fundamental. Prática
complexa e multirreferencial, esse Núcleo Temático se fez na ousadia, na esperança e no
enfrentamento visando rupturas com as intolerâncias e os maniqueísmos academicistas, sem
perder de vista a necessidade do rigor articulativo, da edificação ética e da implicação política
em ciência e em educação, aliás este é um forte processo identitário com a história formativa da
Universidade Paris Saint-Denis e seu Departamento de Ciências da Educação.
Esta é uma obra que nasce, portanto, de uma preocupação eminentemente científico-formativa,
ao pensar o método como possibilidade de formação que transcende em muito o ato simplório de
dominar, de forma não-reflexiva instrumentos de pesquisa. Filosofia, epistemologia, teoria e
tecnologia de pesquisa revelam-se à serviço do método e de uma formação docente que, na
pesquisa aplicada, nutre o desejo de se requalificar e se fortalecer em poder.
Foi a partir desta itinerância e de suas inspirações fundamentais, que arquitetei e exercito aqui a
construção do que denomino de uma etnopesquisa crítica e multirreferencial.
Capítulo I - Reflexões e inspirações teórico-
epistemológicas fundamentais para a etnopesquisa
crítica
Para que um discurso adquira validade, não pode ser apenas lógico.
Pedro Demo
Não pretendo aqui uma exegese formal de determinadas visões e reflexões filosóficas ou de
teorias enquanto referências. As idéias de reflexão e inspiração emanam, acima de tudo, da
necessidade de explicitar pressupostos e referências e do cuidado crítico com a pluralidade, a
abertura ao inacabado e à realidade empírica construída e reconstruída por seus atores; atenção
com a irremediável indexalidade-reflexibilidade e temporo-historicidade da ação humana e seus
sentidos, assim como a construção de uma vigília constante, no sentido da recusa da teoria que se
quer verdade única, perversa prática de pensar a realidade nossa de cada dia - incluindo a do
outro – fora de suas perspectivas.
Quando me refiro à inspiração teórica, por exemplo, quero dizer que aquele que trabalha com
vistas à produção do conhecimento precisa cunhar uma teoria enraizada, como querem Glaser e
Strauss (l967).
Esforço-me aqui pela pertinência e relevância jamais nascidas da vontade de fechamento, mas do
trabalho de articulação conseqüente, considerando sempre o caráter inacabado e insuficiente do
pensamento, no conjunto da pluralidade dos olhares que miram as práticas humanas,
interpretando-as.
Entendo, ademais, que contrario em alguns aspectos determinados princípios de teorias que
inspiram de forma predominante minhas referências, por não buscar nesta obra um exercício
rígido de legitimação de teorias e/ou métodos, muito mais de pertinência de olhares, num esforço
de conjugação conseqüente e não-lapidante.
Neste instante, lembro-me da poyesis conforme os antigos gregos, onde as coisas não podem ser
tomadas como dadas, mas dando-se. A poyesis é uma forma de raciocínio em que as sensações,
as opiniões e as percepções provisórias são instrumentos de reinvenção da realidade, via as
interações criadoras. Neste sentido, remete o sujeito cognoscente para a experiência... e não
apenas para a sistematização conceitual/ discursiva. Não há estranheza entre produto, processo e
produtor. As inspirações não emudecem a empiria, fundam um certo empirismo heterodoxo,
prenhe de sentidos e significados, daí a importância primordial para a etnopesquisa crítica de
uma etnografia semiológica, de uma endo-etnografia relacional.
Do posto destas inspirações, base dos argumentos objetivistas, nasce um tipo de voz avessa ao
que é insuficiente, ambíguo, contraditório, surpreendente: a voz da racionalidade
descontextualizada. Uma voz que ao cultivar o significado autoritário faz-se barbárie científica
ao não tomar cuidado com uma hegemônica e interessada versão rígida da noção de rigor, que à
semelhança das religiões sectárias, ao fechar-se, fanatizar-se, invariavelmente tornou-se uma
espécie de militarismo com potente poder de fogo.
Descartes, Comte, Bacon, Hobbes, Locke sedimentaram as bases do edifício científico moderno,
na medida em que arquitetaram e edificaram os fundamentos do pensamento objetivado sob um
controle rígido e visto como a resultante festejada de um império dos fatos. É neste veio que o
significado autoritário vem nos dizer que "contra os fatos não existem argumentos", e que as
regularidades devem virar norma, acabando por forjar rituais herméticos de prescrições calcadas
numa só verdade.
Ademais, este cultivo de ciência vai se ajustar de forma confortável com um tipo de sociedade
moderna prometéica seduzida pelo progresso produtivo, voltada para a utilidade e para a
explicação. O mito grego de Prometeu é compulsivamente produtivo, tal qual a lógica da
sociedade e da ciência modernas, sustentadas na racionalidade hiper-ativa e no finalismo.
É mergulhando na perplexidade desta forma "dura" de se fazer ciência que alguns atores
marginais à cena científica hegemônica da modernidade vêm nos falar criticamente de uma
prática científica que volta constantemente as costas à vida e ao que é vivenciado.
Ao deixar-se capturar pela lógica do fato objetivado, o sujeito do conhecimento moderno, pelo
culto ao neutralismo, criou uma cultura desmembrada das pautas éticas, políticas e estéticas
incontornavelmente vinculadas aos saberes antropossociais. Pautas que vão inspirar uma meta-
ciência capaz de refletir sobre si mesma e sobre o uso social dos seus métodos e produtos. Neste
sentido, uma epistemologia social recomenda e sugere a criação de um Ser da praxis científica
que, além de pensar o mundo e o mundo dos homens, imagina-se também parte indestacável
destes mundos; age sobre eles e com eles, por conseguinte, o seu saber e o seu fazer remetem-lhe
para dentro de um cultura científica e humana ao mesmo tempo.
Da minha perspectiva, a ciência que tem pretensamente o império da construção e solução dos
problemas humanos tem também uma natureza que cria problemas e, portanto, deve ser
questionada. Há à nossa disposição, afinal, uma história e uma política de sentido construídas
pela ciência, uma história e uma política de sentido que nos autorizam a falar de um objeto
legítimo e problemático a ser tematizado, questionado, como afirmei anteriormente. Os
frankfurtianos Adorno e Habermas já nos alertaram para o caráter venenoso do conhecimento
quantificável e tecnicista, se forem privados de uma reflexão libertadora.
Podemos dizer que a ciência inspirada na filosofia positivista cultiva um sonho, onde a paisagem
predominante é uma única visão de mundo, uma única teoria "verdadeira" e uma única regra do
jogo. Sonho extremamente sincrônico com a dominação social que historicamente esta ciência
oficial ajudou a forjar e sedimentar junto à burguesia de origem européia.
Por fim, faz-se necessário frisar que é este ethos absolutista de ciência que nos fez padecer
daquilo que o etólogo Konrad Lorenz chamou de imprinting – ordem irreversível que é impressa
no cérebro, observada em alguns animais -, tanto no que concerne ao caminho (método), quanto
no que se refere ao conhecimento acadêmico. Assim, podemos dizer que a ciência moderna se
esmerou em arquitetar e forjar imprintings, inspirada pela busca de uma verdade única a ser
seguida e intolerante à dialética e à dialógica dos saberes.
Este salto que Thomas Kuhn vem argumentar como uma ruptura de paradigmas não pode se dar,
por outro lado, sem uma reflexão cuidadosa, para que modismos reducionistas não venham a
ofuscar a dialogicidade e a dialeticidade das rupturas no âmbito do conhecimento. Não podemos,
em nome de um novo ethos de pesquisa, de um novo paradigma em termos do que seja a
construção do conhecimento do real, simplesmente esquecer do caráter histórico da edificação da
ciência; negar simplesmente, em nome do novo, por um festejo desvairado e irresponsável da
novidade não condiz com a dialógica, tão pouco com a dialética dos saberes, o já existente em
termos humanos não desaparece de uma forma irrefletida; a memória e sua especificidade
constitutiva sempre terá muito a dizer, ela cria e recria identidades. Nem ortodoxia, nem
vanguardismo que rejeita em bloco o passado nos parece pertinente. Pierre Weil nos alerta para o
fato de que em nome do novo muitas barbáries foram realizadas na história da humanidade. A
juízo deste autor, é a queda num certo reducionismo 'alternativo' que pode significar "alternativa
à destruição", eu acrescentaria alternativa a um assincronismo cego que não enxerga as
contradições que habitam em opacidade o interior da "onda". Uma consciência científica não
pode desprezar, em nome da novidade, do novo paradigma, a construção bachelardiana de
vigilância epistemológica, por exemplo, da filosofia do não, assim como a inquietação movente
da epistemologia social dos críticos frankfurtianos.
Enquanto educadores, não podemos esquecer, bem como deveríamos mobilizar, teoricamente, a
forma como as ideologias liberais alijadoras trazem e incorporam os modismos reformistas, e
com isso velam e escamoteiam autênticas possibilidades de se criar consciências científicas
emancipatórias. Desarticulados da história, da cultura e das pautas da justiça social, o
fundamentalismo do novo acaba fazendo o jogo do conservadorismo. Constato entre nós, por
exemplo, um culto alienado às intelegibilidades corporais e emocionais, ao auto-conhecimento
fechado no indivíduo, e à desconstrução irresponsável da racionalidade. Para mim, uma outra
fragmentação travestida de nova ruptura.
Parece-me que seria interessante afirmar, neste momento, inspirado por uma crítica da crítica que
a ciência morreu! Viva a ciência... Não seria esta uma forma de re-celebrar criticamente a
confiança na ação emancipatória do homem pelo conhecimento ampliado? Não foi este o canto
científico de libertação da barbárie monorreferencial medieval? Não foi esta a esperança dos que
diante da novidade iluminista resistiram e resistem em nome de uma ciência humana
comunicante e alerta face a inumanidade do cientificismo?
É preciso questionar-se sobre o real caráter revolucionário de algumas práticas em educação; por
exemplo, que em nome da crítica à ciência moderna, pregam e praticam tão somente uma espécie
de niilismo da razão e terminam por negar, mais uma vez, na história do conhecimento
educacional, o saber dialetizado e dialogicizado, comunicante, portanto. Em nome da
subjetividade, descreditam todo e qualquer conhecimento em objetivação, e em nome de uma
inteligibilidade corporal e afetiva tenta-se desalojar a razão por completo da ação, em nome da
intuição negligenciam o papel emancipador da estratégia, e assim por diante.
É fato que para um ethos científico ampliado, conectado e emancipador, é preciso desconstruir o
edifício científico moderno nas suas raízes, naquilo que fragmentária e alienadamente o
caracterizou, outrossim, temos de admitir que pode estar sendo forjado um certo totalitarismo do
"todo", um totalitarismo holístico. É aqui que se faz necessário um incessante canto dos
amanheceres, orquestrado por uma angústia do método, onde a disponibilidade para o
questionamento é uma infindável forma de vivificar o que aprendemos a nomear de real e de
verdade.
Posso afirmar, com uma certa tranqüilidade, que hoje, mais do que nunca, vivemos uma crise de
identidade no que concerne à própria concepção do que é científico. Convivia-se até pouco
tempo sem grandes indagações, com uma noção quase consensual de cientificidade. Os abalos
vivenciados não ultrapassavam o aparato lógico interno da própria ciência, inspirada nos ideários
aristotélicos e cartesianos.
Posso afirmar ainda, sem grandes problemas, que cientificidade significa, desta perspectiva,
precisão conquistada pela unicidade metodológica que começa historicamente pela idéia da
unidade metodológica entre as ciências antropossociais e as ciências naturais. Dá-se, a partir
deste ideário, o primado da homogeneização cientificista.
Construído este ideário, a cientificidade exige como condição do seu alcance um repertório de
posturas bem delimitadas: um discurso que se quer impessoal; um método universalista; rigoroso
controle de variáveis; fechamento em hipóteses pré-elaboradas; culto às generalizações e às
metanarrativas cíclicas; orientação categorial rígida para analisar as múltiplas realidades;
ausência de reflexão política em relação aos conteúdos e procedimentos inerentes à ciência;
afastamento de qualquer possibilidade de análise implicacional; culto a uma racionalidade
hermeticamente privilegiada e esvaziada de compromissos sociais, culturais, ecológicos e
existenciais; deificação da epistemologia em detrimento de outras formas de construção do saber;
intolerância face às transgressões intelectuais e metodológicas; disposição para construção de
corpus teóricos disciplinares e/ou condutas discipulares rígidas, que em geral se querem
oniscientes e onipotentes; indiferença face à necessidade do exercício de uma auto-ética e de
uma ética comunitária como componentes das relações científicas e humanas; rebaixamento
irônico daquilo que aparece como sensível; compulsão pelo ethos do progresso irrefletido; visão
monorreferencial e monossêmica da realidade; desconforto diante da natural dialeticidade e
dialogicidade do real; prontidão para o ataque imunológico sempre apontado para o que é
diferente, para o que significa ruptura; atração pelas certezas absolutas, pela explicação forjada
por uma racionalidade iluminada; gosto pelo procedimento analítico-fragmentário; forte
resistência em aceitar o valor heurístico e movente do acontecimento, do surpreendente, das
crises, dos paradoxos, das contradições, das insurgências e da inconclusividade; tendência em
aceitar o fato como verdade e os sentidos e significados como epifenômenos, sem valor para um
conhecimento sistematizável e operacionalizável em termos científicos.
Vista assim, a cientificidade passa a ser uma linguagem que marcha para um norte que se quer
dado e que, a despeito da subjetividade e da subjetivação incontornáveis, força o olhar para um
horizonte tão estéril quanto desencantador, porque minado pela rigidez e pelo medo da
transgressão intelectual.
É necessário pontuar que, no que se refere aos âmbitos qualitativos da realidade humana, este
ethos de ciência nunca se esgotou, até porque esteve sempre vazio da possibilidade de
compreender estes âmbitos.
Aloyilson Pinto
Fenômeno vem da palavra grega fainomenon – que deriva do verbo fainestai – e significa o que
se mostra, o que se manifesta, o que aparece. É o que se manifesta para uma consciência, que, na
fenomenologia, é intencionalidade, é o estar voltado para... atentivamente. Pha, semelhante a
phos, significa luz, brilho, o que pode se manifestar, tornar-se visível. Refere-se, portanto, a
qualquer coisa que se faça presente, seja ela um ruído, um perfume, uma lembrança, qualidade
ou atributo que, ao ser experienciado, possa ser descrito por aquele que vivencia (Esposito,1995).
Da perspectiva fenomenológica, a ação de educar não pode ser conhecida apenas a partir de
julgamentos contidos num arcabouço teórico a ela referente, mas, principalmente, a partir
daquilo que é construído na manifestação do próprio fenômeno. Percebo a educação, portanto,
enquanto cuidado com o ser-do-outro, onde a construção da autonomia cidadã é a finalidade
irremediável.
Creio que quando as idéias são entendidas e são apropriadas de forma encarnada por aqueles que
procuram entendê-las, edifica-se uma abertura e o fenômeno da educação tende a se mostrar.
O que a educação é, qual o seu savoir-faire, são questões que vivem longe de serem
compreendidas pelos paradigmas normativos. Subjacente a estes paradigmas, existe um modo
particular de ver o mundo. Este ethos se volta para os atos de hierarquizar coisas e pessoas, de
acordo com padrões pré-estabelecidos, almejando uma regulação sobre elas (Rezende, 1990;
Martins & Bicudo, 1983; Martins, 1992), vocação histórica das "tecnologias do eu", das
narrativas mestras e das pedagogias ortopédicas.
A crença dos paradigmas normativos está pautada no processo de idealização inerente ao fazer
da ciência, englobando a idéia de cálculo, exatidão e norma, abstraindo as imperfeições
percebidas nos dados do mundo sensível e a generalização daquilo que esses dados possam
apresentar de comum, essência do pensamento nomotético.
Faz-se necessário pontuar que a fenomenologia não nasce como método, dentro da tradição
prescritiva ou normativa, mas como uma das mais fortes e radicais críticas ao ethos científico
moderno.
Assim, faz-se necessário frisar que a ênfase dá-se no olhar e não no julgamento do que é real ou
verdadeiramente real.
Embora o pesquisador fenomenólogo não inicie sua investigação com hipóteses armadas, ele
necessita de uma percepção sensibilizadora concernente ao que olhar, ao que ouvir, ao que
apreender...
É importante pontuar que, em seus últimos trabalhos, Husserl fala de uma fenomenologia
construtiva, o que vai conferir à fenomenologia uma dinamicidade muito mais próxima da
complexidade e diversidade das ações humanas.
Existência e conhecimento
A idéia de existência perpassa o pensamento filosófico, tornando-se evidente nas propostas de
Schelling, e se desenvolve posteriormente com Kierkegaard.
Assim, a possibilidade que o homem tem de integrar suas percepções constitui sua propriedade
inerente e decorre do seu poder cognitivo e de sua competência interpretativa. Essa cognição
permite a cada homem perceber de forma pessoal e singular e apropriar-se do conhecimento de
maneira especial em meio à multiplicidade das realidades sócio-culturais e suas mediações. Isto
quer dizer que o conhecimento se apresenta como sendo específico para aquele que conhece,
como uma dependência da sua contextualidade relacional.
A concepção de conhecimento como sendo dependente do ser que conhece está ligada a uma
idéia importante e que perpassa toda sua referência à subjetividade. A de veicular que aquilo que
é conhecido só pode ser segundo um meio adequado ou apropriado em relação à coisa conhecida.
Esta concepção visa libertar o homem das ataduras de que a verdade só pode ser compreendida
em termos dos objetos externos, como preconizou o positivismo lógico.
O ser-no-mundo e o ser-com
Os fenomenólogos nos dizem que consciência é sempre consciência de alguma coisa, não deve
haver, portanto, sujeito sem mundo, nem deverá haver mundo sem sujeito no sentido
fenomenológico.
Para Heidegger, a constituição existencial resulta da condição de abertura para a existência. Esta
abertura pode ser vivida a priori como afeto, ser tocado sensivelmente; em segundo lugar, como
compreensão, e, em terceiro, como expressão. Estes aspectos são chamados por Heidegger de
existencialias.
Está expressa no discurso heideggeriano uma recuperação da imaginação proposta por
Kierkgaard, como sendo natureza ontológica do homem o Ser que fala, pensa, simboliza; bases
epistemológicas incontornáveis das correntes construcionistas e semiológicas nas ciências
antropossociais.
Eigenwelt, ou o mundo pessoal, pressupõe uma consciência de si mesmo, uma relação consigo
próprio, como indica a praxiologia do self interacionista em G. Mead. Não se trata de uma
experiência subjetivista, interna, reduzida a um solipsismo egológico, mas de uma experiência
que permite ao Ser ver o mundo real da sua perspectiva. É a forma de atribuir o significado que
as coisas têm para o Ser enquanto prática de sentidos.
Ao tentar descrever a estrutura básica de toda experiência vivida como um aspecto do trabalho da
sócio-fenomenologia, dois outros mundos emergem: o Mitwelt, isto é, o mundo das pessoas ao
redor, e o Umwelt, o mundo das entidades que rodeiam os indivíduos.
Em oposição às soluções dadas pela ciência "normal", buscam-se as soluções na densa descrição
da experiência e sua natural complexidade, até porque, aqui, a busca da essência única é uma
prática incompatível.
Onde quer que o Ser esteja presente, haverá realidade, mesmo a mais esquizofrênica, isto porque
a própria, existência humana, seja ela qual for, é estar-no-mundo. Questiona-se, assim,
radicalmente, a dicotomia cartesiana sujeito-objeto e adentra-se profundamente na perspectiva do
Erlebnis, o mundo das vivências totais, não reduzidas ao ratio (dimensões referentes ao cálculo,
de onde originou a palavra racional). Acrescente-se ainda uma abertura sensível ao campo da
phronesis, isto é, um alargamento articulativo que transcende as construções epistemológicas da
academia, interessando-se fortemente pelas formas de como as pessoas constroem a vida
cotidianamente, idéia-força do projeto etnometodológico.
Nesta direção, aponta-se para uma preocupação com o Ser social. O individual e o social não se
apresentam enquanto categorias, mas idéias práticas.
Ser-no-mundo, no que se refere à educação, por exemplo, é viver a realidade da sala de aula, dos
livros, do material escolar, dos professores, técnicos, funcionários, diretores e do currículo
enquanto fenômeno significativo da vida escolar. Ademais, o aluno com o qual nos defrontamos
é um Ser reflexivo, que se preocupa consigo, com as formas de responder às situações vividas
com seus outros. A propósito, Sartre nos diz que quando Husserl se preocupou em refutar o
solipsismo, ele quis chegar a esse objetivo mostrando que o recurso ao outro é condição
indispensável para constituição de um mundo. Para Husserl, o mundo tal como ele se revela à
consciência é intermonádico, potente fonte de inspiração para que Schutz, valorizando as
interações cotidianas dos atores sociais, pudesse construir as elaborações fundantes da sua sócio-
fenomenologia.
Joel Martins
De início, faz-se necessário frisar que a fenomenologia se opõe de modo direto ao positivismo,
sem, entretanto, rejeitar a intenção de rigor com que o positivismo interpela a realidade. Neste
ponto, a fenomenologia se faz também como uma prática científica e rigorosa de conhecer a
realidade.
É preciso também falar de uma fenomenologia que ao conceber o real como perspectival, não
passa a pregar um vazio em termos de um a priori perceptivo. Ao se perceber o fenômeno, tem-
se que há um correlato e que a percepção não se dá num vazio, mas em um estar-como-
percebido. Ir-às-coisas-mesmas é a experiência fundante do pensar e pesquisar fenomenológico,
faz parte do seu rigor. Por outro lado, ao mergulhar nas coisas-mesmas, o fenomenólogo realiza
um trabalho de desvencilhamento dos seus preconceitos para abrir-se ao fenômeno – époche -,
isto é, realiza um esforço no sentido de compreender o mais autenticamente possível,
suspendendo conceitos prévios que possam estabelecer o que é para ser visto.
Outrossim, não se cultiva, aqui, a ingênua percepção de que o pesquisador não tenha
experiências prévias; constitui-se, nestas experiências, o que a tradição fenomenológica
denomina de pré-reflexivo, uma trajetória que a posteriori, na pesquisa, vai se constituir em
intensa reflexibilidade, campo dos estudos implicacionais que falaremos mais adiante.
É significativo que seja destacado que a percepção do fenômeno é sempre um processo de co-
percepção, há uma região de co-percebidos. Sujeitos e fenômenos estão no mundo-vida com
outros sujeitos, co-presenças que percebem fenômenos (Bicudo, 1994). Nestes termos, a co-
participação de sujeitos em experiências vividas permite partilhar compreensões, interpretações,
comunicações, conflitos etc. Habita neste processo incessante de interação simbólica a esfera da
intersubjetividade, a instituição intersubjetiva das realidades humanas.
Quanto à essência do fenômeno pesquisado, jamais pode ser entendida como pureza última e
definitivamente dada, até porque isto não existe, mas, como queria Husserl, o alcance do
autenticamente vivido, das raízes daquilo que é vivenciado. A essência (eidos) de que trata a
fenomenologia não é idealidade abstrata dada a priori, separada da práxis, mas ela se mostra no
próprio fazer reflexivo. Esclarece-nos Bicudo (1994) que, " ao desvendar a essência, a
consciência, em um movimento reflexivo, realiza a experiência de percebê-la, abarcando-a
compreensivamente...". Neste momento, realiza-se o movimento da redução fenomenológica,
procedimento de aproximação do fenômeno pesquisado, onde, por um processo de inclusão e
exclusão de conteúdos, dá-se a objetivação do que se pretende conhecer a seu respeito.
De uma forma peculiar, a fenomenologia vai se utilizar também do conceito de a priori enquanto
histórico-vivido e de categorias enquanto grandes regiões de generalidades compreendidas e
interpretadas no âmbito do estudado e das reflexões do pesquisador. Entretanto, essas duas
noções não correspondem ao a priori kantiano, tão pouco ao que Aristóteles entendia por
categoria enquanto determinação do Ser do ente. Tanto em Kant como em Aristóteles, estas
noções perdem em historicidade, em movimento; portanto, algo que a fenomenologia
hermenêutica não pode perder de vista.
Como em todo processo interativo, o discurso é sempre compreendido por outrem, que lhe
atribui significações. Neste veio, o discurso, ao dar-se à significação, o faz como uma obra, isto
é, dentro de um tipo de codificação num paradigma no qual é compreendido. Para Esposito
(1995), o discurso se doa como composição e guarda um estilo próprio, portanto é trabalho
humano e, como tal, é práxis e techne, isto é, criação e construção como produção sapiente
historicizada. Partindo desta compreensão, as novas linguagens que surgem da hipermídia, não
podem situar-se imunes à crítica ideológica, nem fora nem acima da historicização necessárias ao
implemento do círculo existencial-hermenêutico.
Ademais, enquanto uma prática de pesquisa que se quer rigorosa, a pesquisa fenomenológica ao
ver que o fenômeno se ilumina diante de si, reconhece que o pesquisador está ligado ao sujeito
pesquisado por uma relação dialética entre o seu horizonte conceitual e a experiência do sujeito,
onde, através da intersubjetividade, da coexistência, estabelece os seus resultados.
Sintetizando de forma pertinente o modo fenomenológico de pesquisar, Esposito (1994) nos diz
que ao se basear na estrutura prévia da compreensão, no pré-reflexivo e na ontologia, "o modo de
investigação fenomenológico tem como objetivo fazer com que o ser ou a coisa interrogada se
revele, sendo que as chaves para o acesso à compreensão não podem ser buscadas na
manipulação e no controle, mas, sim, na participação e na abertura". É a sabedoria que se quer
alcançar por um processo incessante de interpretação.
Com Rezende (1994), temos a compreensão fenomenológica pertinente de que "as correntes
quentes do vivido trazem um saudável bafejar de fragilidade; uma episteme menos resoluta, mais
complacente, que integra as incertezas e as formas precárias e, portanto, holísticas". Nesta
perspectiva, o modo fenomenológico de pesquisar nos dá uma fecunda possibilidade de
ultrapassagem do modo formalista de conhecer as complexas realidades humanas e educacionais
por conseqüência.
Por outro lado, é de bom alvitre marcar o modo fenomenológico de pesquisar como uma forma
de construção de um certo olhar que, ao mirar criticamente o modo de conhecer da metafísica,
atinge intencionalmente a tradição ocidental de forjar o conhecimento.
É interessante pontuar que Descartes reconhecera tais inseguranças, mas nunca como
ontológicas, o ideário cartesiano visou sempre o distanciamento dos paradoxos, das incertezas
como possibilidade do conhecimento científico, jamais como condição.
Neste veio, Husserl aprofundou suas reflexões na medida em que considerou toda manifestação
experiencial ligada inexoravelmente às finalidades destas experiências. Neste sentido, o
maniqueísmo implementado pelos inatistas e ambientalistas tem em Husserl uma definitiva
superação. Os objetos nem estariam na cabeça das pessoas nem num mundo não habitado, se
constituiriam por atos volitivos da consciência num processo histórico e intersubjetivo. Merleau-
Ponty nos diz que Husserl rompe definitivamente com o logicismo e o psicologismo através de
sua teoria da redução fenomenológica.
A conseqüência natural das conclusões expostas por Meham são, na realidade, o reconhecimento
de que os trabalhos, sobretudo do último Husserl, instigam inspirações extremamente
conseqüentes para o estudo do ato educativo na sua constituição social.
Entre nós, resta ainda um certo sectarismo infértil, onde psicologismo e sociologismo lutam pela
conquista de espaços, e as obras de Schutz e Mead, por exemplo, constituem ainda edifícios
teóricos pouco compreendidos, até mesmo distorcidos.
Vê-se claramente que as elaborações fenomenológicas sociais de Schutz nada têm de egológicas,
o Self constrói-se no seio das interações cotidianas, onde a intersubjetividade é condição
incontornável para o trabalho incessante de atribuição de sentidos e construção de significados
socialmente mediados (Schutz, l985).
P. Pharo (1985) nos convida a refletir sobre a idéia simples, tanto em Schutz como em
Wittgenstein, no sentido de que a compreensão realiza-se correntemente na vida ordinária, e deve
incitar-nos a começar a inventariar os meios mais evidentes desta forma de compreender, antes
de se arriscar nas interpretações que devem suas justificações a grandes dispositivos teóricos,
relativos às estruturas da sociedade e do psiquismo.
Schutz nos alerta enfaticamente para o corriqueiro hábito do uso de categorias homogeneizadoras
das realidades humanas, apontando para a natural pluralidade, singularidade e dialogicidade do
convívio humano no âmbito das "reciprocidade das perspectivas", que não excluem, é bom frisar,
compreensões de construções a partir das dissonâncias cognitivas, das crises e/ou conflitos.
A construção do outro
O outro que fala e pensa, meu objeto, portanto, não fala e pensa como eu. Se não, não seria
meu objeto. Mas devo falar e pensar como ele, pois eu digo e penso alguma coisa, na
verdade, daquilo que ele diz e pensa. Se não, não seria o meu objeto, nem o seu, nem o de
ninguém. Sem este jogo de diferença e de identificação não teria ciência sobre aquilo que
quero conhecer .
Esta citação do pensamento de Marie-Jeanne Borel mostra que a "invenção do outro" pelos
estudos da cultura é, em realidade, um trabalho contínuo de mediação sobre a identidade e a
diferença. Sintetizando anos de estudos antropológicos e de superação do evolucionismo
hierarquizante, Kilani (1994) coloca-se a refletir, "que inventar o outro é se compreender a si
mesmo como vivo num mundo onde se pode, por contraste com o outro, desenhar os seus
contornos."
Da perspectiva acima construída, a cultura, cenário de onde emerge o outro, não é uma entidade
independente daqueles que a representam, ou uma força autônoma que é exercida sobre as
mentes dos indivíduos.
Faz-se necessário, por conseguinte, desfazer-se de uma concepção reificada de cultura, para
repensá-la enquanto força que age e que também é resultante de ações. É necessário, também, se
desfazer da concepção supra-orgânica da cultura, como uma realidade que projeta-se acima dos
atores sociais e guia suas ações. Em realidade, a cultura é um conjunto de interpretações que as
pessoas compartilham e que, ao mesmo tempo, fornece os meios e as condições para que estas
interpretações aconteçam.
As pessoas, com efeito, podem compartilhar símbolos, mas elas não compartilham,
forçosamente, o conteúdo desses símbolos. Deste ponto de vista, o outro na cultura e nas culturas
é incontornável enquanto co-construtor de diferenças e processos identitários. Ademais, a
construção do outro se dá num processo de negociação onde cultura e identidade cultural estão
em uma contínua efervescência, como espaços inscritos e como história de atores sociais dentro
de uma temporalidade.
Entretanto este outro, a minha diferença, para ser visto como tal pelos estudiosos da cultura, pelo
discurso antropológico, nem sempre apareceu enquanto alteridade afirmada. Por muito tempo foi
diluído num caldo de etnocentrismo no qual a resultante, em muitas vezes, foi o seu ofuscamento
em escalas de valores e avaliações autocentrados e de intenso conteúdo depreciativo. Quanto
maior a diferença em relação às culturas dominantes, maior o sentimento de estranheza e às
vezes de repugnância. Selvagens, monstros, animais, criaturas estranhas, rudes, faziam parte de
um discurso antropológico onde o outro é sempre visto da perspectiva da cultura que o observa,
o descreve, o interpreta e o explica.
Kilani (1994), tomando os referenciais da época da renascença e da tradição ocidental, nos revela
que a descobertas e o desejo do outro foram marcados pela fascinação da novidade e por sua
inscrição no extraordinário, no bizarro, ou mesmo na anomalia e na monstruosidade. O viajante
da renascença, descobria sobre seu caminho mulheres e homens nus, canibais ferozes e estranhas
criaturas híbridas, nos conta Kilani. Ademais, na idade média e na renascença, a fronteira entre
"eles" e "nós" era representada por uma linha que separava a cultura e a natureza, o homem e o
monstro, o cristão e o idólatra.
Antropólogos do peso de Franz Boas e Radcliffe-Brown vão construir caminhos definitivos para
que a diferença se afaste do significado autoritário e a noção de tempo não represente um
universal a ser imposto a um contexto onde ele não existe.
O tempo produzido na sociedade do "eu ", que em geral o evolucionismo fez linearização
histórica, passa a ser relativizado e os estudos das culturas retira as amarras de uma compreensão
presa às perspectivas alheias ao contexto e às experiências que regulam e fazem a mediação das
ações e significados produzidos pelos atores. É nestes termos que viajar, ir morar, experimentar a
existência passa a ser incontornável para os estudos sincrônicos da antropologia agora
interessada na construção do outro.
Articulando a importância da história como uma das fontes de conhecimento, mas ao mesmo
tempo pluralizando-a, Lévi-Strauss vem nos perguntar sobre qual história o discurso histórico
quer veicular. É aqui que a história afetada pelo reconhecimento do outro torna-se múltipla.
Guimarães Rocha nos diz que quando Radcliffe-Brown desamarra a antropologia da história,
abre um "imenso espaço para que a sociedade do outro se mostre tal como ela é. Neste sentido, a
hierarquia deixa de ser a règle d'or da compreensão da alteridade.
O que é importante ressaltar é que para conhecer como o outro experimenta a vida, faz-se
necessário o exercício sensivelmente difícil de sairmos de nós mesmos. Há que desdobrar-se,
revirar-se, suspender preconceitos (Gadamer), criticar a si próprio, abrir-se a uma certa violação
de habitus sagrados e solidificados da sociedade do "eu".
Acrescente-se, nesta caminhada relativista, que ao se tornar a voz mais contundente em termos
da démarche interpretacionista, Clifford Geertz vai buscar convencer os estudiosos da vida
humana que seus estudos pertencem a uma ciência interpretativa dos sentidos e significados que
os seres humanos atribuem à sua existência, muito ao gosto do que Dilthey já elaborara e
defendia de forma tenaz. Necessário é, neste processo de olhar o outro da sua perspectiva, uma
"descrição densa" da experiência do outro e do "eu".
As culturas são verdades relativas aos atores e atrizes sociais, " são versões da vida, teias,
imposições, escolha de uma política de sentidos e significados que orientam e constroem nossas
alternativas de ser e de estar no mundo" (Guimarães Rocha, 1985).
É desta visão, acrescida de uma politização da relação de poder exercida no contato da sociedade
do "eu" com a sociedade do outro, que a crítica pós-formal vem dizer de uma visão às vezes
alijadora, às vezes bárbara, de se perceber o outro – note-se o outro na e da educação – com uma
visão monocular onde carências, déficits, insuficiências marcadoras são o ponto de partida e de
referência. Foi aqui que a prática da desreferencialização do outro fez-se norma, foi aqui que a
lavagem cerebral agiu sutilmente em forma de violência simbólica (Bourdieu) nos espaços
escolares. Subordinação inferiorizante passou a ser uma prática necessária e significativa para a
condição do aprender. Neste contexto, aluno e professor foram transformados consciente ou
inconscientemente em "idiotas culturais" ou "idiotas especializados" (Garfinkel, 1976; Demo,
1985) pelos discursos representativos de uma sociedade do "eu" sustentada pelos ideários do
ethos liberal colonizador no currículo.
Para o etnopesquisador crítico dos meios educacionais, o outro é condição irremediável para a
construção de conhecimentos nos âmbitos das práticas educativas. Ao estabelecer a diferença, o
outro vai mostrar ao etnopesquisador que nem tudo é regularidade, norma, homogeneização, e
que ao traçarem uma "linha dura" para a compreensão do ato educativo, as ciências da educação
perderam de vista a multiplicidade instituinte. Por outro lado, já vislumbra-se que "a invenção do
outro" da perspectiva das ciências da educação começa a incomodar, desalojar e desconstruir.
Este é um anúncio significativo. Os estudiosos não-evolucionistas da cultura sabem disto e
sabem também que há muito para ser mobilizado em termos da destruição dos fundamentalismos
e intolerâncias.
Após a expulsão do sujeito/ator das teorizações antropossociais, dá-se um recalque que se traduz
num aparecimento reduzido a epifenômeno, ou mesmo a um sub-produto do estruturalismo.
De fato, a realidade enquanto construção social não emerge em função de leis naturais ou
históricas abstraídas da atividade humana, mas pela ação daqueles que lutam e negociam para dar
uma certa forma social às orientações culturais que eles valorizam. Não temos dúvida que as
estruturas existem e devem ser estudadas, mas é a ação humana inserida na sua temporalidade
que constitui o ingrediente básico de qualquer construção de obras-no-mundo. Assim, tenho a
convicção de que os novos paradigmas da compreensão do homem em sociedade terão na noção
forte de construção social das realidades uma aliada fecunda em termos epistemológicos e
metodológicos, face o status heurístico e a força teórica desta noção, ainda muito pouco
explorada.
Da perspectiva dos nossos pressupostos no que concerne à linguagem como atividade, o trabalho
sobre o discurso torna-se, assim, um momento necessário da construção de uma teoria acionalista
em ciências do homem. Assim, E. Veron nos diz que dar conta da noção de motivo ou de
finalidade, enquanto categoria da inteligibilidade do social, importa em perguntar qual é o modo
de existência dos motivos ou das finalidades nos discursos; importa, segundo este autor,
compreender a natureza da produção do motivo e da finalidade nos atos de linguagem.
Neste sentido, a linguagem é uma atividade, é também, e por isso mesmo, uma competência. No
que concerne ao discurso, é um fenômeno social e constitui um dos vínculos mais importantes de
produção de sentidos no interior de uma sociedade, com uma importante função de a constituir
ideologicamente. É a partir deste entendimento que se conclui que o conceito que nos pode servir
para compreender as bases da constituição da inteligibilidade do social outro não é senão o de
sistema ideológico tal como foi esboçado por Marx. O que equivale a dizer que essa lógica
natural que habita tanto o discurso como a ação é o próprio trabalho da ideologia sobre as
matérias significantes. A propósito, as descrições etnometodológicas mostram bem que esse
trabalho está na base das operações de atribuição de sentido aos objetos e aos comportamentos, e
também na base da própria definição do indivíduo como membro de uma sociedade, isto é, na
base da constituição dos processos identitários.
A partir desta lógica, a significação de uma palavra ou de uma expressão deve impregnar-se de
fatores contextuais tais como a biografia do locutor, sua intenção, daí a heterogeneidade natural
do sentido; não há, assim, homogeneidade semântica, bem como a linguagem natural não tem
sentido independentemente das suas condições de uso e enunciação (Veron, 1980).
Neste mesmo veio, P. Pharo (1984) argumenta que a indexalidade da linguagem se liga a todas
as expressões da linguagem ordinária, portanto, o sentido, enquanto ocorrência de palavras-tipos,
não é jamais redutível, pura e simplesmente, à significação objetiva das palavras e das
expressões.
Para pesquisadores interessados nos sentidos locais das expressões dos atores sociais, o mundo é
sempre conceitualizado, tematizado, tudo para o homem tem um nome, e a linguagem tem um
irremediável caráter constitutivo. Daí o lugar privilegiado dos atos de linguagem, e da polissemia
advinda do exercício cotidiano de comunicar-se.
Faz-se necessário também enfatizar que a linguagem representa e constitui poderes. Marx nos
ensinou que, se se souber olhar bem, todo produto traz os traços do sistema produtivo que o
engendrou. Esses traços lá estão como marcas, mas nem sempre visíveis facilmente. Uma análise
radical pode torná-las à vista: o que consiste em postular que a natureza de um produto só é
inteligível em relação às regras sociais de seu engendramento.
Coerente com esta visão, Foucault nos apresenta uma noção de poder, onde não o identifica nem
como uma instituição, tão pouco como uma estrutura, e nem de longe uma potência de que
alguns estariam dotadas, seria um nome que se dá a uma situação estratégica complexa, numa
dada sociedade. Estratégias estas não existentes fora do conjunto de significantes que as
constituem. Esta é uma semiose que Peirce descreveu como infinita.
Desta forma, quanto mais complexa uma sociedade, tanto mais complexa a semiose que a
atravessa. Assim, o ideológico enquanto conjunto não neutro de sentidos e o poder estão por toda
parte enquanto chaves da inteligibilidade do campo social.
Rejeitando a idéia que a realidade pode ser reduzida a elementos simples, ou que a linguagem
pode ser considerada como nomenclatura, Wittgenstein desenvolve a idéia de que o quadro de
emprego da linguagem é indispensável à compreensão da simplicidade ou da complexidade de
um objeto, particularmente das experiências de um interlocutor-auditor e das coordenadas que
ele utiliza quando considera o objeto em questão.
Cotidiano e cotidianidade
Há algum tempo, Brecht dizia: "...examinai, sobretudo, o que parece habitual...não aceiteis o
que é de hábito como coisa natural..."
Mas é a partir da década de 50 que a questão da vida diária, das ações cotidianas, passam a
representar um tema de interesse e a atrair diversas correntes do pensamento social, voltando-se
para este campo como um lugar rico e fecundo em questões sociais.
Outrossim, até esta época mais densamente, o cotidiano é decomposto em parcelas definidas e
cada parcela operacionalmente mensurável constitui uma unidade fundamental para se verificar a
ação global. O roteiro dessa verificação e do conjunto de atos é dado por uma descrição bem
precisa de indicadores e da medição engenhosa da freqüência com que eles ocorrem pela sua
duração e pela sua intensidade; isto autoriza a traçar uma trajetória e uma constante, e a chegar a
uma generalização. O cotidiano e suas ações são, necessariamente, fragmentos de tempo e de
espaço fisicamente delimitados, passíveis de uma mensuração. É uma porção de vida que se
repete, e que define sempre o idêntico, o repetitivo, o constante, e por esta via posso captar a
repetição, medir ou descrever a ação. O comportamento e o cotidiano, em suma, são
considerados como uma síntese cristalizada e inconsciente de estruturas normativas que já foram
inculcadas e que regem as condutas ou as motivações dos atores sociais e explicam a reprodução
e a estabilidade da ordem social, muito ao gosto dos herdeiros metodológicos de Durkheim
(Chizzotti, 1992). Causalidade, quantificação e academicismo são as bases epistemológicas desta
perspectiva.
Assim, a simplicidade da vida não interessa nem atrai a ciência formal. Tal fato insinua uma
característica marcante das ciências sociais até hoje: o desprezo pela vida do dia-a-dia, a forma
de olhar de cima para baixo, a reificação e imbecilização das questões do homem comum. No
formalismo científico, o homem "comum" é tão sem importância que mal parece acontecer. Não
passa de um figurante sem voz (Demo, l985).
Ao tomar a questão da classe social como exemplo, Demo (1985) comenta que o nível macro
parece alojar numa respectiva classe todos aqueles que sofrem mais-valia. Para o autor, todavia,
isto tem pouco a ver com os níveis micro, onde o proletariado não é média. De acordo com esta
elaboração, ao lado desta generalização máxima, é mister ver o fenômeno de perto, conviver com
ele, especificar como é a mais-valia na pele da empregada doméstica, do migrante, do menor
trabalhador, do trabalhador informal, do trabalhador negro etc.
A valorização do cotidiano possui uma certa sabedoria que se consubstancia na crença de que,
para que uma mudança seja profunda, é necessário partir da intimidade das coisas; para entrar na
intimidade das coisas, é preciso partir delas, conviver com elas; então podemos distinguir as que
não interessam, e, a partir de dentro, montar o caminho da transformação mais relevante e
pertinente, dentro da radicalidade que não desreferencializa, não arrasa. Estamos, é bom frisar,
empanturrados de indigestas verborréias teóricas e de propostas milagreiras que ao longo da
história do conhecimento e da educação fizeram apenas legitimar a voz da racionalidade
descontextualizada, escamoteando a construção de consciências conectadas e/ou relacionais
nestes campos da atividade humana.
A ciência formal não quer ver "les savants de l'interieur", com suas religiosidades, sua
experiência adquirida na prática histórica da comunidade, suas assincronias, suas soluções que
emergem da necessidade de viver e compreender a vida. Prefere perder estes aspectos intensivos
da vida, lapidando os fenômenos vitais avaliados como uma espécie de banalidade desprezível.
O que é interessante indagar-se é: que política de sentido está por traz deste ethos que considera
lixo, algo que penetra e perpassa tão intensa e profundamente na qualidade de vida?
Do nosso lugar de educador, consideramos que, para apagar as marcas do "beijo da morte" que a
ciência normal plantou no conhecimento acadêmico, ao desconectá-lo dos saberes da vida, far-
se-á necessário um currículo conectado com a cotidianidade, porquanto educação é de alguma
forma ciência, mas também arte e sabedoria.
Existe, efetivamente, um conhecimento empírico cotidiano que não pode ser dispensado. São
saber-fazer, saber-dizer, saber-viver, todos tão diversos e múltiplos que a monorreferência
objetivista preferiu ignorar, considerá-los, no máximo, epifenômenos, banalidades de um mundo
sem valor científico e sem status de verdade.
Faz-se necessário frisar que a cotidianidade é relacional, não se consubstancia num corte
abstrato, tem sentido apenas no contexto de uma gestalt social, num processo histórico, porque
também temporal. O cotidiano enraiza-se na história e vice-versa.
Neste veio, a escola e seus diversos contextos de relações são os cenários privilegiados das
pesquisas educacionais, onde as categorias cotidiano e cotidianidade têm um status
epistemológico significativo.
O mais importante no conjunto das abordagens das pesquisas que inserem-se na cotidianidade é
o movimento recente "das mentalidades" que faz reaparecer o sujeito face as estruturas e aos
sistemas, a qualidade face a quantidade, o vivido face ao instituído. Relacionando e conectando
estas perspectivas, a "abordagem" do cotidiano em pesquisa – até porque, paradoxalmente,
abordagem significa se manter nos entornos - remetenos, inexoravelmente, ao mundo da
complexidade. É no cotidiano e na cotidianidade que as contradições, os paradoxos, as
ambigüidades, as insuficiências, os inacabamentos, as necessidades, as rotinas e os conflitos
apresentam-se como faces inerentes à especificidade humana. Nos diz Ecléa Bosi que a
verdadeira mudança política dá-se a perceber no interior, no concreto, no miúde, acrescentando
que uma resolução que não comece e não acabe transformando o cotidiano não merece
empenho. Em termos de formação docente, é da vida cotidiana escolar que brotam as formas de
produção do conhecimento extremamente significativas para pensar e repensar a prática
pedagógica, mediadas por valores e conhecimentos dos atores pedagógicos implicados. É através
da vida cotidiana escolar que se concretiza a praxis educacional enfim, onde começam e
terminam a ações instituídas e instituintes do fazer da educação.
Malinowski foi, talvez, o pioneiro na utilização do conceito de contexto, concebido por este
autor como o conjunto de todos os elementos que formam uma cultura, tecido relacional e
conjuntamente.
Uma outra perspectiva importante é elaborada por Silva e Silva (1986), quando chama a atenção
para o fato de que as investigações de características temáticas, que partem do universo
vocabular das populações, devem voltar-se para a percepção local da realidade e sua relação com
perspectivas mais gerais. Neste sentido, o objeto é apanhado na sua densidade local, mas também
no seu movimento e na sua transformação, de modo a superar o dado para atingir os nexos de
relação que se encontram em permanente movimento e que, portanto, se recriam e se
transformam na sua temporalidade.
Dentro desta visão, à medida que os atores se comunicam, falam; constroem em conjunto a
pertinência do contexto e escolhem os elementos de que têm necessidade no imediato. É no
fenômeno da reflexividade que evidencia-se o caráter dinâmico dos contextos, na medida em que
estes são constituídos e se constituem nos âmbitos das relações instituinte/instituído.
Em realidade, a necessidade de contextualização é uma das bases de desconstrução da ciência
formal e nomotética. Clama-se, pós-formalmente, por um olhar ideográfico e conectado naquilo
que o grand écrit barbaramente negligenciou, servindo, por conseqüência, ao poder do
colonialismo intelectual que ainda povoa as práticas e os estudos na e sobre a escola.
Historicamente, a palavra mestra virou as costas às identidades e às alteridades dos vários
contextos humanos, cultivou e cultuou perversamente o saber monorreferencial e excludente.
Nestes termos, cotidiano, cotidianidade, contexto e lugar, são conceitos mediadores férteis para
uma démarche metodológica em etnopesquisa crítica, particularmente nos meios educacionais.
É bom frisar que os contextos não são equivalentes aos meios físicos; eles são construídos por
pessoas. Pessoas em interação servem de ambiente uns para os outros, assim, o contexto é uma
construção onde a intersubjetividade é condição incontornável.
No que se refere à noção de lugar e tomando a natureza das relações modernas, teria o processo
de globalização acabado com o lugar e suas especificidades espaciais e temporais? Não haveria
mais espaço para o enraizamento? "Colocar os pés no chão" não mais seria uma recomendação
válida? A inspiração "Terra", cantada por Caetano Veloso, é agora apenas uma abstração
sentimental? Situar é uma bobagem ou um anacronismo epistemológico?
Estaríamos presenciando uma eliminação do tempo? Em realidade, não se trata disto, entretanto,
é substancial sua diminuição, como conseqüência de uma tecnologia fundada na velocidade e na
ampliação espacial da informação que não deve ser confundida com o fenômeno sempre
encarnado da comunicação.
Assim, definido a partir do sujeito que se revela nas formas de apropriação pelo corpo, o lugar se
completa pela fala, troca alusiva a algumas senhas, na convivência e na intimidade cúmplice dos
locutores. No lugar, encontramos as mesmas determinações da totalidade sem com isso
eliminarem-se as particularidades. Cada sociedade produz o seu espaço, determina os ritmos, os
modos de apropriação. O lugar, portanto, guarda o âmbito prático-sensível, real e concreto.
Desta forma, o lugar é a base da reprodução da vida e deve ser analisado na relação habitante-
identidade-lugar. As relações que os indivíduos mantêm com os espaços habitados se exprimem
todos os dias nos modos de uso, nas condições mais banais, no secundário, no acidental. É, em
realidade, o espaço possível de ser apropriado, vivido e significado.
Na opinião de Alessandri Carlos (1996), o processo de reprodução das relações sociais que vem
ocorrendo hoje não invalida o fato de que o lugar aparece como distinção do espaço onde se
pode apreender o mundo moderno, "uma vez que o mundial não suprime o local enquanto lugar
da vida".
Neste sentido, a análise do lugar implica a idéia de uma construção, tecida nas relações sociais
que se realizam no plano do vivido, o que garante a constituição de uma rede de significados e
sentidos que são tecidos pela história e pela cultura que produz a identidade homem-lugar.
Assim, os autores que habitam esta temática afirmam inexoravelmente que a natureza social da
identidade, do sentimento de pertencer, liga-se aos lugares habitados, marcados pela presença,
criados pela história, marcados, remarcados, nomeados, ressignificados. Ademais, o lugar é um
espaço presente construído como uma totalidade com suas ligações e conexões mutantes. Mas
isto só pode ser entendido se se transcende a idéia do lugar enquanto fato isolado, o que faz,
segundo Alessandri Carlos, com que a vida de relações ganhe impulso na articulação entre
próximo e distante.
Para Santos (1995), o lugar permite ao mundo realizar a oportunidade de uma história que, ao se
realizar, muda, transforma, determina a ação, é onde os homens estão juntos vivendo, sentindo,
pensando, pulsando, e que têm a força da presença do homem, mesmo que o moderno imponha o
efêmero.
Podemos verificar também com Heidegger que o habitante, o mortal, só existe pelo seu
enraizamento, sua adesão a um terroi, um lugar de origem, uma referência familiar. Neste
sentido, o vivido tem um caráter espacial local. Liga-se ao habitar um espaço produzido.
Por conseqüência, o espaço não é para o vivido um simples quadro, a atividade prática vai
modificando constantemente os lugares e os seus significados, marcando e renomeando,
acrescentando traços novos e distintos que trazem valores novos, presos aos trajetos construídos
e percorridos (itinerâncias). Podemos falar, portanto, de uma territorialidade movente, cambiante.
De forma encarnada enquanto citadino, posso dizer que o lugar na polis pode ser o anonimato ou
a liberdade, o reencontro e o amor; a perdição, o pecado e a penitência; é a vida como a morte; é
o teatro da vida e o simulacro; é a opacidade e a resistência, bem como a verdade nua e crua.
Enfim, a etnopesquisa sem lugar perde sua força hermenêutica e criativa, formando, neste
sentido, um paradoxo irremediável. Tal perspectiva de pesquisa deve emergir sem concessões do
mundo cultural, tecido no âmago das indexalidades dos espaços ocupados: os lugares, os
contextos. Desta perspectiva, a escola jamais pode ser avaliada enquanto instituição
epifenomênica, é locus indispensável para a compreensão da concretude das políticas e ações
educacionais.
Assim, para o olhar qualitativo é necessário conviver com o desejo, a curiosidade e criatividade
humanas; com as utopias e esperanças; com a desordem e o conflito; com a precariedade e a
pretensão; com as incertezas e o imprevisto. Acredita-se, desta forma, que a realidade é sempre
mais complexa que nossas teorias e não cabe em um só conceito. É interessante frisar que o olhar
qualitativo não estranha as sutilezas paradoxais da cotidianidade, convencido do grande valor
epistemológico do fenômeno estar.
Na emergência qualitativa, aparece mais o intensivo que o extensivo, sem, entretanto, cair na
negação maniqueísta deste último.
Como nos conta Demo (1985), o intensivo tem mil faces. Aparece e desaparece. Reflui e se
esgueira. Toda felicidade tem uma pitada de amargura, como toda amargura pode ser prenúncio
de alegria. "Há o que é bom e dói, como há o que dói e é bom. Possui estruturas éticas, mas é
capaz de imoralidades". Isto nos mostra bem o quanto tal especificidade qualitativa não se
enquadra em qualquer linguagem binária e/ ou digital, como gostariam alguns quantitativistas
compulsivos. Aqueles que Sorokin chama de arautos da quantofrenia.
Esta realidade intensiva, fugaz e sutil, que muito nos escapa, porquanto somos muito
direcionados pelo habitus das lógicas newtonianas-cartesianas-ptolomáicas, esta realidade que
tentamos cercar de todos os lados e some, porque mais passamos do que ficamos, conecta-se
com a dialética, porque, segundo Demo, já aprendeu a viver atônita, pede a angústia do método
face a grande interrogação que é o homem e suas realizações.
Nos âmbitos da qualidade habitam objetos jamais tocáveis pelo fisicalismo, pela simples
mensuração, portanto, persona não grata dos behavioristas lógicos, que vêm nestes âmbitos
eminentemente reflexivos a negação do conhecimento preciso e onipotente.
É preciso alertar que a fratura ingênua entre qualitativo e quantitativo não cabe numa reflexão
epistemológica complexa, avessa aos maniqueísmos e reduções que o formalismo nos deixou de
herança. O que é interessante ficar claro é que a visão qualitativa em ciências do homem se
consubstancia numa certa resistência histórica às reduções matematizantes que a lógica dura
impôs ao conhecimento das realidades antropossociais; não significa, em nenhuma hipótese, uma
rejeição pura e simples em relação ao mundo das dimensões, até porque fazem parte também da
totalidade movente do Ser-no-mundo.
Marli André (1995) nos diz de forma pertinente que mesmo quando se reportam "dados" de
depoimentos, entrevistas e de observações, é conveniente que se expressem os resultados
também em números. Segundo esta autora,
é muito mais interessante e ético dizer que "30% dos entrevistados consideram uma
proposta autoritária, do que afirmar genericamente que alguns professores consideraram a
proposta autoritária.
Neste caso, ainda segundo Marli André, o número ajuda a explicitar a perspectiva qualitativa.
Neste sentido, sugere a autora que deixemos as denominações qualitativo e quantitativo para
caracterizar técnicas de coleta de "dados", ou para designar um tipo de "dado" obtido.
Tenho consciência que alguns recursos quantitativos e a conclusão a que chegam, são
incompatíveis com a tradição hermenêutica da etnopesquisa, entretanto, a dificuldade não se
reduz simplesmente ao recurso ao número, mas ao tipo de mecanismo que utiliza o número como
fonte de explicação. Alguns caminhos do cálculo das correlações e algumas estreitezas dos
procedimentos experimentais não podem conviver com os procedimentos de uma pesquisa onde
interpretar imerso no contexto e na cultura são recomendações irremediáveis. Por outro lado, esta
questão é muito mais um debate epistemológico do que metodológico, e que me parece já vem
sendo superado quando se trata do uso das dimensões nos estudos compreensivos.
Desta perspectiva, o conhecimento não se produz só pelo que se afirma, pois não representa uma
cadeia de verificações, mas que se legitima pela produção mesma em sua capacidade de manter
sua continuidade e congruência através das contradições, dos erros e das negações. São, em
realidade, momentos de estimulação para a produção teórica, até porque a presença do real na
construção teórica não aparece por verificações lineares que se acumulam, mas pela riqueza da
própria construção teórica que permite explicar formas cada vez mais complexas do real, as quais
emergem ante o conhecimento de formas muito diversas. A conseqüência desta démarche
epistemológica é a compreensão de que o conhecimento não se dá por processos de indução e
dedução tão somente, bem mais por formas ativas de produção que não se encaixam numa lógica
de ordem regular que defina regras fixas e universais a seguir. Outrossim, é possível, mesmo
dentro de uma perspectiva da epistemologia qualitativa, que existam momentos onde a indução e
a dedução apareçam valorizadas para a construção da informação.
Rey (1997) forja a noção de "lógica configuracional " para dar conta dos complexos processos
de construção que estão na base da produção do conhecimento na epistemologia qualitativa.
Segundo Rey, a configuração como processo construtivo é personalizada, dinâmica,
interpretativa e irregular, o que permite expressar a própria natureza contraditória, irregular e
diferenciada que o processo de produção do conhecimento tem.
Como conseqüência, o círculo hermenêutico nos sugere que toda compreensão do mundo
implica na compreensão da existência e reciprocamente (Heidegger). Essa antecipação é a pré-
compreensão a partir da qual poderá desenvolver-se uma explicitacão compreensiva.
São os textos de Martin Heidegger, Hans–Georg Gadamer e Paul Ricoeur que mais densamente
deram lugar de destaque à hermenêutica. No conjunto plural desses pensamentos, o leitor,
observador ou intérprete, é colocado no centro da temática hermenêutica. Aparece aqui, com
força, a necessidade de compreendermos nosso tempo, lugar e cultura, como perspectivas para
dialogarmos com o texto. A existência é sempre temporal e, como tal, nós e o autor somos
interpretados dentro de uma temporalidade. Parte-se, assim, do princípio de que há sempre
interpretação. De que não há sentido sem interpretação. Estabilizada ou não, mas sempre
interpretação (Orlandi, 1996). Faz-se necessário alertar, ainda, que não há sentido em si, daí a
natural opacidade da linguagem e sua natural incompletude; desta perspectiva, a interpretação é
incontornável.
Como seres-no-mundo, estamos encharcados de cultura, portanto, é mister lidar com a natureza
ontológica do ser e a natureza epistemológica do conhecer, assunto caro a uma hermenêutica
relacional. Uma conseqüência natural desta inserção hermenêutica de cunho relacional é a
certeza de que o conhecimento é aquilo que criamos interativamente, dialogicamente,
conversacionalmente, no âmago da nossa cultura e de todas as indexalidades sociais nas quais
estamos implicados.
Torna-se, assim, ilusão objetivista pensar em conhecer a totalidade do mundo-vida. Projeto que a
psicologia infantil tanto fomentou, imbuindo-se de uma tarefa que, acima de tudo,
consubstanciou-se em barbarismo adultocêntrico. O veio estigmatizador, defectológico e
controlador que tantos educadores seguiram inspirou Liliane Lurçat a argumentar sobre
"L`impossible connaissance totale de l`enfant".
Isto é, sobre aquele que pensa e tem métodos, para ser mais pertinente, que elabora e mobiliza
etnométodos.
Por conseguinte, sem esta primeira ruptura, seria inviável uma teoria crítica, mesmo se tratando
de uma teoria que prescreva uma intervenção no real. A questão é que o construtivismo
racionalista pensou esta primeira ruptura como a única.
Urge, a partir desta inquietação, uma segunda ruptura, que tomando a primeira como aquela que
torna possível a teoria crítica, vem possibilitar que a crítica se torne prática.
Em superando a separação entre senso comum e ciência, uma hermenêutica crítica transforma-os
numa nova forma de conhecimento que, segundo Santos, será simultaneamente mais reflexivo e
mais prático, mais democrático e mais emancipador. É aqui que a hermenêutica crítica afirma o
caráter irremediavelmente contextual do conhecimento, aliás, o seu caráter duplamente
contextual, na medida que é indexalizado tanto pela comunidade científica quanto pela
sociedade. Daí ser dotada também de duas práticas: a científica e a social.
Neste momento é que não se pode afirmar uma visão única da hermenêutica fenomenológica
face a transformações que seu uso social e sua história envidaram. Aqui também sua itinerância
terá que ser historicizada e contextualizada.
Sendo assim, a hermenêutica crítica é uma das fontes de inspiração para uma etnopesquisa crítica
na medida que contém a possibilidade democrática e emancipatória de que a crítica seja também
prática, jamais crítica e prática messiânicas, até porque, parafraseando Santos, "num mundo sem
heróis, declarar a fraqueza não é sinal de fraqueza".
Inspirada em Gadamer, Espósito pontua que a elaboração da situação hermenêutica, "ao colocar-
se no horizonte de uma interrogação genuína, significa pôr-se frente à tradição". Neste sentido,
omitir ou desprezar o horizonte histórico de onde fala a tradição é equivocar-se sobre os
conteúdos por ela transmitidos, conclui a autora. É com Gadamer, justamente, que vamos
verificar a idéia de que nossa consciência passeia pelos horizontes históricos, isto é, que nos
movemos e vivemos neste horizontes.
É certo que as pesquisas voltadas para o âmbito da qualidade têm um apreço coerente pela
pertinência do detalhe, da minúcia, do local, demandando, por conseqüência, um aporte proximal
forte do processo de investigação. Isto não quer dizer, por outro lado, desprezo por outras
perspectivas da existência humana em sociedade.
É com Wilson (1985), na tradição das etnopesquisas da Escola de Chicago, que podemos
verificar uma forte intenção de superar esta fratura epistemológica arbitrária. Wilson considera
que a interação e a estrutura social estão entrelaçadas, não sendo possível apreender-se
separadamente estrutura e indivíduo. Desta perspectiva, a interação e a estrutura social são
interdependentes, assim como a estrutura social constitui um recurso para interação e é
reproduzida pela interação. Podemos verificar, também em Bourdieu, a crença segundo a qual a
estrutura social dissimula-se nas interações.
Wilson mostra, em seus estudos, que os indivíduos, na gestão das suas atividades cotidianas e em
sua linguagem, apelam constantemente para a estrutura social, que é um recurso indispensável
para o desenrolar das trocas e compreensão mútua. Assim, os indivíduos recriam a sociedade em
cada nova interação, são obrigados, aliás, a se apoiar em uma ordem social relativamente estável
e comum que, ao mesmo tempo, edificam construtivamente. Neste sentido, a sociedade é
reproduzida pela interação, mas também por determinações exteriores e impositivas.
Neste sentido, os termos micro e macro devem ser relativizados, apreendidos num continuum, até
porque não se pode desprezar a natureza relacional das realidades humanas enquanto totalidades
dinâmicas, que têm no seu amplo caráter interativo o cerne da sua emergência. Para Cicourel
(1979), nossas atividades sociais cotidianas comportam vários níveis de complexidade e
integram dados microssociais, tanto quanto macrossociais. Para este autor, as diferenças que se
estabelecem devemse ao fato de que pesquisadores escolhem situar-se em um dos dois níveis de
complexidade das relações entre os homens e utilizam estratégias para seccionar, ignorando o
outro, quando sempre é possível articular os dois níveis num todo complexo mais ampliado.
A conseqüência natural desta posição é que não se pode mesmo numa abordagem
predominantemente micro, deixar de se dar conta do fato de que as interações se desenrolam
num quadro social molar, do mesmo modo que as macro-abordagens não podem ignorar os
microprocessos.
Com efeito, se a pesquisa que se apoia nos quadros microssociais faz referências tácitas a
quadros sociais mais amplos, inversamente o estudo macrossocial das organizações, ou
movimentos históricos, refere-se indiretamente às microatividades de que é feita a vida social
(Coulon,1992). Nestes termos e à guisa de exemplo, podemos chamar a atenção de como os
microacontecimentos da sala de aula e da escola são transformados em macroinformações que
vão posteriormente forjar os destinos escolares.
Apesar da relação parte-todo não corresponder de forma absoluta à relação micro-macro, por
haver uma densidade e uma implicação filosófica bem mais complexa na primeira relação,
considero pertinente e relevante um maior aprofundamento dialético da relação micro-macro,
trazendo para o âmago deste aspecto relacional dos fenômenos sociais a natureza complexa e
seminal em termos epistemológicos da interação que estabelecem as partes com o todo e vice-
versa.
Pascal dizia que só poderia compreender um todo caso conhecesse, especificamente, as partes, e
só poderia compreender as partes se conhecesse o todo. Este é um percurso onde não cabem
linearidades, significa, acima de tudo, movimento, relação e interação dialetizantes. Aliás, para
Morin, as relações todo-partes devem ser necessariamente mediadas pelo termo interação. Neste
sentido, Morin nos sugere termos indissolúveis, que remetem um ao outro, como sistema, que
exprime a unidade complexa e o caráter fenomenal do todo, assim como o complexo das relações
entre o todo e as partes; interação, que exprime o conjunto das relações, ações e retroações que
se efetuam e se tecem num sistema; organização, que exprime o caráter constitutivo dessas
interações, isto é, aquilo que forma, mantém, protege, regula, rege, regenera-se, e que dá idéia de
sistema a sua coluna vertebral (Morin, 1996). Daí, segundo este autor, a natureza bem mais
movente e dialetizante da noção de organização em relação à noção de estrutura que nos remete
de forma bem mais simplificada à idéia de ordem.
Desta forma, sendo fundante das instituições humanas, o imaginário é um campo fértil para o
etnopesquisador que, armado com dispositivos finos para a escuta e para o olhar sócio-
culturalmente sensíveis, percebe nas linguagens constitutivas da cultura e da sociedade um
subsídio significativo, para a compreensão/explicitação de construções em vida. A educação,
enquanto criação sócio-imaginativa instituída e instituinte, é área de extrema fecundidade para
estudos teóricos e aplicados, levando em conta tanto o fenômeno das representações sociais,
quanto do imaginário socialmente fundante. Nesta abordagem de natureza híbrida, habita uma
prática onde fronteiras antes demarcadas e defendidas com armas intolerantes e arbitrárias são
articuladas, desaguando numa contribuição ímpar para o encontro do homem-ser-pleno. A
modernidade científica tratou de perdê-lo ao especializar-se em conhecer fragmentando,
segmentando, via os apartheids cientificistas que produziu e ainda produz. A prática pedagógica
vai reproduzir este ethos de forma competente e dolorosa, num cartesianismo que teima em
separar aquilo que no homem é totalização em curso...
É no seio da história das epistemologias qualitativas que percebe-se um resgate e uma afirmação
da subjetividade enquanto âmbito significativo para se compreender pela pesquisa a
especificidade da ação humana em sociedade. Ao superar o egologismo dos primeiros estudos
fenomenológicos, ao sensibilizar-se face à natureza híbrida de alguns campos da análise da
realidade humana, o encontro do sócio-cultural com o individual vai revolucionar a abordagem
da ação humana ao romper com este maniqueísmo secular.
Entendo que o alcance teórico do tema da subjetividade, que implica no desenvolvimento de uma
representação complexa, irredutível a qualquer intento de relação isomórfica com suas diversas
formas de expressão, nos conduz a uma concepção construtiva e interpretativa da produção do
conhecimento.
Desde Sartre, com suas influências fenomenológicas e marxistas, vamos verificar a sedimentação
da idéia de que não é possível pleitear-se o tema teórico da subjetividade sem uma representação
dialética ou histórica, como já elaborara a psicologia sócio-histórica e a recente epistemologia da
complexidade.
Por conseguinte, analisar o social a partir das relações implica em defini-lo desde uma
perspectiva subjetiva, porquanto a comunicação humana não é simplesmente um ato de
transmitir ou compreender, mas representa um momento de configuração subjetiva do vínculo
com o outro (Rey, 1997).
É determinante para aqueles que trabalham com a noção de uma subjetividade social a
compreensão de que em nível deste fenômeno todo fato, toda atividade que se produz, pode ser
significativo na configuração do atual. Na sociedade, como na subjetividade, o tempo não
representa uma perspectiva cumulativa, previsível forma absoluta desde seus momentos
anteriores. Há uma permanente reestruturação qualitativa do atual, donde o constituído passa de
forma permanente a novas formas de organização e de sentido.
A consideração teórica de uma subjetividade social, tema aliás já pleiteado no conceito de self
em George Mead, conduz o âmbito do sujeito a uma referência obrigatória nos estudos do social.
Refletindo sobre esta temática no seio das preocupações relativas ao currículo, Burnham (1996)
procura, via a afirmação de uma subjetividade construída socialmente, mostrar o quão necessário
se faz incluir o tema da subjetividade para trazer o sujeito por inteiro para o campo de estudo do
currículo e das ciências humanas. Tomando a obra de Castoriadis como referência, Burnham
reafirma a incontornável socialização da psique e argumenta em favor da dupla postura de
sujeito-objeto no que concerne à existência deste próprio sujeito; sujeito que, segundo esta
autora, " se separa de si mesmo para se conhecer melhor, refletindo sobre si próprio como
objeto do conhecimento humano". Desta perspectiva, o sujeito humano deixa de ser mero objeto
do currículo para se constituir num co-construtor deste mesmo currículo, transformando-se no
que chamo de um ator do currículo e/ou um autor do currículo. Aqui, intencionalidade e
reflexividade são as perspectivas fundantes mediadas pela imaginação, perspectivas, faz-se
necessário afirmar, na maioria das vezes descartadas, porquanto, para mim, o currículo entre nós
tem medo de tudo aquilo que represente prática imaginativa. Em geral, o currículo se quer peça
complicada, nunca complexa, dado que pleitear os âmbitos da complexidade na escola é fator de
possível desalojamento de poderes. Poderes que, entre nós, representam historicamente, a
iniquidade e a exclusão educacionais. É tomando o seu próprio pensamento como perspectiva e o
pensamento do outro como possibilidade, sempre que a afirmação do sujeito vem reafirmar a
subjetividade socialmente constituída no campo do currículo.
A partir do ethos multicultural, olhares novos vêm sendo lançados sobre questões que se referem
aos processos sócio-culturais, como a construção de referências de identidades, o significado das
vivências culturais, os diversos modos de ser e agir que os diversos grupos constroem no interior
da escola e as múltiplas relações e ressignificações que os sujeitos estabelecem no seu contato
com o mundo. Desta perspectiva, a etnopesquisa conecta-se com o multiculturalismo ao incluir
nos fundamentos da pesquisa novas temáticas, como a relação educação e cultura, diversidade
etnocultural, relação de gênero, compreensão de mundos alijados do pensamento científico dito
"nobre", campos onde a especificidade cultural faz resistência face à tendência alijante e
hierarquizante da cientificidade normativa, histórica e confortavelmente articulada ao domínio de
classe, a regulação dos estados e aos poderes intolerantes que têm no conhecimento uma das
fontes e/ou instrumentos de ação.
Entendemos que ao falarmos de sujeitos sócio-culturais, diversidade étnica e cultura e escola,
estamos dando visibilidade ao fato de que professores/professoras, alunos/alunas, pais/mães
vivenciam diferentes processos sócio-culturais. São homens e mulheres, adultos e crianças que
pertencem a uma classe social, a uma cultura, a uma religião, cultivam valores morais,
existenciais, cultuam tradições e constroem preconceitos. Há, por exemplo, nos cenários
educacionais mais do que aprendizagem técnica, sujeitos aprendizes e professores que ensinam.
Densificam-se nestes cenários de identidades culturais em movimento, afirmações e
transformações que apontam para identificações, conflitos, conchavos, consensos, insurgências
etc.
A educação, portanto, ocorre nos mais diferentes espaços, cenários e situações sociais; é um
complexo de experiências, relações e atividades que brotam no âmbito de uma estrutura material
e simbólica da sociedade num certo tempo histórico. Mobiliza-se nesta gestalt as instituições
políticas, a família, a vizinhança, o bairro, o mundo cotidiano difuso e contraditório do trabalho,
os movimento sociais etc. É nesta teia institucional que os etnopesquisadores encontram os
principais subsídios para apreender pela pesquisa minuciosa, pela escuta tolerante, a
multiplicidade cultural, tornando-se a etnopesquisa necessariamente, um fino approche
multirreferencial e complexo, porque idiográfico e relacional.
No que concerne à filosofia educativa que poderia mediar esta visão ampliada de cultura e
pesquisa, poderíamos vislumbrar algumas possibilidades: desenvolver uma empatia para com os
seres humanos, compreendendo a diversidade, as similitudes, as diferenças e as
interdependências; conhecer as razões dos conflitos; desenvolver um compromisso em não
tolerar preconceitos e discriminações; favorecendo a solidariedade e o respeito aos direitos
humanos; valorizar o significado das realizações de indivíduos e de grupos distintos; e ao
internalizar normas morais dentro da sociedade, saber que o pluralismo não se basta, num
cenário social onde a iniquidade nasce da própria base estrutural das relações sociais. Planta-se
aqui uma outra possibilidade em termos de pesquisa em ciências da educação, dentro de uma
concepção pós-formal: a etnopesquisa crítica, que, em afirmando a irremediável pluralidade da
emergência humana, a articula com a tradição crítica, avessa ao domínio iníquo e a voz da
racionalidade descontextualizada. Giroux, Apple, MacLaren, Kincheloe, Freire, Ardoino entre
outros, cultivam esta consciência conectada, sensíveis que são, ao fato simples e insuperável de
que pesquisa, ciência e educação têm a ver com a vida e sua qualidade. Estes autores são brotos e
ramos de um savoir-faire científico educacional, que entende ser a atividade de pesquisar uma
atividade, entre outras, que tem o homem e seu bem estar como meta principal; em termos
críticos, estão conscientes das ingenuidades, equívocos e alienações engendradas pelas
promessas iluministas. Dialética e dialogicamente as ressignificam, denunciando e anunciando
no próprio seio da construção científica que uma das certezas hoje é a necessidade urgente de
desconstruir e reconstruir uma ciência e uma educação que nós mesmos inventamos, crentes,
ademais, que é preciso recriar tais criaturas que, perigosamente, há muito escaparam das ações
conscientes, e o pior, da dignidade ética e social.
Vemos como o adultocentrismo de nossa cultura leva-nos a uma grande ignorância sobre o
universo idiossincrático da infância e da juventude. Como nos sugere Santomé (1998), meninos e
meninas desconhecem porque o são, qual é o significado desta etapa de vida, quais os seus
direitos e deveres. É comum surgir aqui um notável sentimentalismo onde crianças e jovens são
considerados ingênuos, inocentes, desprotegidos, imaturos, incompletos etc e, portanto, suas
preocupações e interesses não podem ser consideradas "sérias". É notório como esses adjetivos
desqualificantes atingem predominantemente entre nós, pobres, negros, trabalhadores, índios,
mulheres e crianças.
Faz-se necessário pontuar, ademais, que quaisquer estudos que contemplem a infância não
podem prescindir de sua concretude. Isto é, embasar-se em concepções que levem em conta a
inserção da criança no seu contexto social, político e cultural. Somos uma sociedade cultural e
socialmente diversificada, colonizada, economicamente dependente, com terríveis desigualdades
sociais, portanto, excludente. Convivemos com preconceitos raciais e sexuais notórios. Desta
forma, nossa infância não pode ser concebida a partir de padrões que ignorem tais aspectos.
Demanda-se aqui pela construção de estudos contextualizados e pela conseqüente destruição do
universalismo que permeia a abordagem da infância brasileira. É necessário, por conseguinte,
desmistificá-la, desreificá-la, não percebê-la enquanto uma invariante na história (Macedo,
1991).
É fato o caráter autocentrado das concepções das elites quando abordam a cultura "popular". Em
geral, não são capazes de compreender como possível e viável o que está fora dos seus próprios
limites de racionalidade. Neste sentido, Marilena Chauí chama à atenção como a classe
dominante passa a exercer seu domínio tanto no plano material, quanto no plano espiritual (das
idéias), formando um ethos de cultura extremamente autocentrado e de caráter iníquo.
Por outro lado, faz-se necessário pensar a cultura no plural, e que se parta de uma concepção não
normativa e dinâmica. Por conseguinte, interpretar o significado das culturas implica em
reconstruir, em sua totalidade, o modo como o grupos se representam, as relações que os definem
enquanto tais na sua estruturação interna e nas suas relações com outros grupos e com a natureza
nos termos e a partir dos critérios de racionalidade desse grupo (Abrantes, 1985).
É a partir do pensamento antropológico de Franz Boas que o conceito de cultura perde seu
caráter evolucionista e passa a ser relativizado. Foi ele que primeiro percebeu a peculiaridade das
culturas humanas. Foi com Boas que se começou a perceber que cada grupo produzia, a partir de
suas condições cronotópicas, ou seja, históricas, climáticas, lingüística, uma cultura caracterizada
por ser única e específica.
A nosso juízo, quando um significado de um ato é visto não na sua perspectiva absoluta, mas no
contexto onde aparece, estamos relativizando. Quando vemos que as verdades da vida são menos
uma questão de essência das coisas e mais uma questão de posição, estamos relativizando
(Guimarães, 1985).
Tomando o pensamento deste autor, relativizar é ver as coisas do mundo como uma relação
capaz de ter tido um nascimento, capaz de ter um fim e uma transformação. Ver as coisas do
mundo como a relação entre elas. Ver que a verdade está mais no olhar do que naquilo que é
olhado. É não transformar a diferença em hierarquia, em superiores e inferiores ou em bem e
mal, mas vê-la na sua dimensão de riqueza por ser diferença.
(...) o ator social existe e troca mensagens dentro de um código fundamental que temos em
comum. Este código é a cultura. Neste sentido cada cultura atribui significados, sentidos,
destino próprios, seja ao seu tempo, ao seu corpo, a sua morte e sexualidade. Tal como um
código, a cultura fala da existência. Ela simboliza esta existência segunda as regras do seu
jogo. Sendo entendida como um sistema de comunicação que dá sentido à nossa vida, as
culturas humanas constituem-se de conjuntos de verdades relativas aos atores sociais que
nela aprenderam porque e como existir. As culturas são versões da vida; teias, imposições;
escolhas de uma política dos significados que orientam e constroem nossas alternativas de
ser e de estar no mundo (Guimarães,1984:88).
Apresentar a prática de relativizar como uma prática fundamental para a etnopesquisa não
significa, em hipótese alguma, fazer uma ciência relativista pura e simples, não significa uma
ausência interpretativa e avaliativa, até porque o etnopesquisador dos meios educacionais trata de
objetos interessados, ideologizados, portanto, onde, ademais, permeiam relações de poder,
muitas vezes poder de vida e de morte. Um outro ponto a ser esclarecido é que a etnopesquisa
crítica dos meios educacionais não é uma antropologia, inspira-se, bebe densamente na fonte dos
seus conceitos e recursos metodológicos; ao tratar do ato educativo, por outro lado, a
etnopesquisa crítica dos meios educacionais apropria-se do olhar cuidadoso de todo educador,
incluindo-se no rol das tecnologias inerentes às ciências da educação, e diferenciando-se
conseqüentemente, de uma simples aplicação dos princípios antropológicos à educação. É
necessário pontuar que o próprio ato de relativizar já se consubstancia numa etapa significativa
de ruptura face ao colonialismo intelectual que caracteriza a ciência moderna e as intervenções
que inspira, especialmente nas políticas educacionais. Equivalência antropológica, alteridade
existencial e desigualdade social precisam de uma articulação ao mesmo tempo heurística e
crítica na prática de pesquisar o fenômeno da educação, e o ato de relativizar é começo
irremediável para um etnopesquisador crítico dos meios educacionais, que entende ser a primeira
ruptura com o barbarismo cientificista a rejeição face ao núcleo fascista contido nas atitudes e
práticas etnocêntricas.
Como exemplo das elaborações que exercitamos até o momento, temos o estudo John Ogbu
(1974;1978), etnopesquisador americano de origem nigeriana, que tomou como problemática de
pesquisa o "fracasso escolar" das crianças americanos pertencentes a minorias étnicas, em geral
atribuído a pretensos déficits sócio-culturais (cultural deprivation) e ao meio ambiente
depauperado das famílias (background).
Os estudos em etnopesquisa de Ogbu num bairro massivamente povoado por negros e mexicanos
chegaram a conclusões totalmente diferentes daqueles que afirmam as teses dos handcaps.
Contrariamente ao que afirmam estas teses, Ogbu mostra que os pais e as crianças das minorias
étnicas atribuem uma grande importância à escola, que permitirá acesso a um bom meio e uma
melhor condição social. De outra parte, quando "trabalham duro", estas crianças alcançam o
sucesso escolar. Ogbu chega à conclusão que o problema fundamental não é o de saber porque as
crianças não alcançam o sucesso escolar (expondo seus déficits), mas porque eles não trabalham
o suficiente na escola, sabendo-se que eles próprios e seus familiares atribuem grande
importância ao sucesso escolar. O deslocamento da problemática é radical: Ogbu nos diz que as
crianças que pertencem às minorias historicamente sub-organizadas aprendem com seus pais que
podem se sair bem na escola, mesmo numa sociedade racista, sem obter uma recompensa sob a
forma de um bom trabalho e de uma boa situação social. A falta de trabalho e de espírito de
competição das crianças das minorias étnicas é também uma adaptação às limitadas chances de
se beneficiar de sua educação. Argumenta ainda Ogbu que esta adaptação ao fracasso escolar é
reforçada pelo comportamento da classe média e dos professores, que interpretam a vida das
classes populares em termos de déficits, impondo a estas classes uma relação do tipo patrão e
cliente, negando-lhes a autonomia e o discurso legítimo no campo educativo. Por conseguinte, o
autor conclui que o fracasso das crianças das minorias étnicas não é um fenômeno individual,
mas uma adaptação coletiva que se transmite de uma geração a outra. Apesar de passar por
condutas individuais, o fracasso escolar é uma adaptação coletiva a uma relação social de
subordinação no campo educativo, no mercado de trabalho e na sociedade por inteira, apesar de
não ser individualmente uma condição fatal.
É tomando como pista as investigações de Ogbu que Bernard Charlot vem desenvolvendo
estudos sobre as relações sociais envolvendo saberes, em cenários que chama de "zone
d'éducation prioritaire" localizadas nos iníquos subúrbios parisienses.
Faz-se necessário alertar que a especificidade da inspiração multirreferencial não está na prática
da complementaridade, da aditividade, tampouco da obsessiva necessidade do domínio absoluto,
mas da afirmação da limitação dos diversos campos do saber, da tomada de consciência da
necessidade do rigor fecundante, da nossa ignorância enquanto inquietação. Desta perspectiva,
faz-se clara oposição às racionalidades simplificadoras, unificantes, redutoras. Uma filosofia
multirreferencial, numa visão do Novo Espírito Científico, da Scienza Nueva, entende que a
multirreferencialidade em todas as suas formas é a condição sine qua non da seminalidade
criativa do pensamento científico. Gilbert Durand (1993), em seu artigo "Multidisciplinaridades
e Heurística", nos mostra, de maneira pertinente, que a criação científica foi acima de tudo
resultante de uma significativa história multirreferencial, tomando as implicações intelectuais e
profissionais dos sujeitos que, na história da humanidade, contribuíram com suas invenções e
descobertas. É importante, ademais, como este autor mostra o papel preponderante das
pedagogias tecnocientíficas, que optaram por uma prática mutilante, mesmo tendo a sua
disposição o fato de que físicos como Niels Bohr procuraram em campos longínquos da física
teórica suas inspirações, como, por exemplo, na filosofia, na psicologia etc. Para Durand, uma
inspiração científica plural, pela sua fecundidade heurística, é um verdadeiro movimento
fundador contra "as anemias da descoberta", "os ostracismos universitários conservadores que
não percebem que todo paradigma começou por ser um paradoxo" (Durand,1993). Neste
sentido, é urgente a eliminação dos "obstáculos epistemológicos" consubstanciados na
passividade monorreferencial e na tautologia analítica que barra todo salto heurístico.
Faz-se necessário, portanto, encarar a alteridade não como erro, mas como necessária a uma
insubstituível "filosofia do não", que esteve sempre presente nos incessantes procedimentos
polêmicos, e que sempre inspiraram esta revolução incessante que se chama ciência, por mais
que as rotinas acadêmicas tenham estabelecido a ausência da contestação e da transgressão
fundantes como norma. J. Ardoino nos incita também a uma certa traição em relação aos
cânones do modernismo científico.
Deste entendimento, tem-se que o marco teórico de uma pesquisa seja flexível, que considere o
conjuntural e se alimente das diferenças, constitua-se num instrumento que permita transcender
as auto-suficiências, até porque a auto-suficência, ao deparar-se com as resistências e
tempestades humanas, não envergam, acabam por quebrar. Paradoxalmente, são feitas de
fragilidades, pois nunca aprenderam as estratégias da flexibilidade necessárias às emergências.
Para uma filosofia multirreferencial, portanto, o Ser complexo jamais pode significar Ser
complicado, aquele que se decompõe para iluminar-se. Reconhecer-se numa dura linguagem
cibernética-experimental é coisificar-se e matar por compulsão calculista a existência
imaginativa, que implica também em mistério, para manter-se oxigenada. Ser complexo é
considerar o projeto sempre de uma perspectiva inconclusa, e a obra como produto de um
imaginário sempre em devir. Nas práticas científicas e acadêmicas – contínuas entradas na vida
para a filosofia multirreferencial – a complexidade alicia a inquietação teórica, semeia a angústia
do método, a prudência e o cuidado científicos, e mantém aceso o anseio do rigor fecundo,
construído na tolerância articulativa com as epistemologias e o mundo da phronesis, numa
dialogicidade autêntica e esperançosa de que a verdade possa, em algum momento, abrir o seu
caminho.
É justamente neste veio inspirador que o etnopesquisador crítico encontra sua fonte de
fundamentos, é por estes caminhos filosóficos e teórico-epistemológicos que trilham, fazendo
uma ciência que definitivamente não ignora a vida, até porque, do contrário, perderia o oxigênio
da sua própria atividade vital: compreender profunda, detalhada e relacionalmente os seres vivos
e suas obras; e a educação é, fundamentalmente, uma delas.
Construir esta reflexões, vistas por mim como inspirações fundantes para o etnopesquisador,
marcou o meu anseio há muito cultivado, face ao vazio epistemológico e político que
comprometedoramente criva nossas formações acadêmicas, mais especificamente a formação
dos nossos educadores e seus métodos de trabalho e pesquisa.
Capítulo II - Fontes acionalistas - semiológicas da
etnopesquisa e suas implicações educacionais
O mistério da vida me acusa a mais forte emoção. É o sentimento que suscita a beleza e a
verdade, cria a arte e a ciência. Se alguém não conhece esta sensação ou não pode mais
experimentar espanto ou surpresa, já é um morto-vivo e seus olhos se cegaram.
Albert Einstein
Assim, para Parsons, nós partilhamos valores que posteriormente irão governar enquanto
fenômeno social destacado do ator. Nesta lógica, temos todos uma tendência a nos
conformarmos às regras da vida cotidiana. Interiorizadas, estas regras passam a se constituir em
regulador interior das ações.
Tais questões, podemos verificar, estão contidas na caracterização enfatizada por Weber quanto à
ação social: uma ação é social quando um ator social atribui um certo significado à sua conduta
e, por meio deste significado, relaciona-se ao comportamento de outras pessoas. A interação
social ocorre quando as ações são reciprocamente orientadas em direção às ações de outros. As
ações orientam-se reciprocamente porque os atores interpretam e fornecem um significado tanto
ao seu próprio comportamento quanto ao de outros, e não de forma mecanicista, através de
estímulos e respostas.
O ponto importante daqui é a noção de significado e sua relação com o tipo de conhecimento do
qual necessitamos ou que podemos ter a fim de compreender e explicar os fenômenos sociais.
Assim, falar em significado é começar a assimilar o fato extremamente importante de que os
seres humanos, podemos dizer, possuem uma subjetividade complexa e variada, refletida nos
artefatos e instituições sociais nas quais eles vivem. Em termos antropossociais, nos referimos a
isto como cultura.
A ação deriva da idéia de um ator, especificamente um ator humano. Um ator é diferente de uma
variável causal porque pode-se dizer que ele ou ela efetua uma escolha – perspectiva política -, é
responsável – perspectiva ética –, louva - perspectiva estética.
A conclusão desta colocação sugere enfaticamente um tipo de relação muito diferente entre ação
e sua descrição, e as regras ou motivos que, poderíamos dizer, governam aquela ação. Em
primeiro lugar, ela afirma que as ações e sua descrição são conceitualmente vinculadas a razão e
motivos, não sendo passíveis de descrição como se fossem separadas e independentes. Ao
contrário, ação e descrição se informam mutuamente. Em realidade, "conceitos intencionais" ou
"conceitos de ação" pressupõem que estes são os meios mais importantes através dos quais os
membros da sociedade constroem deliberadamente seu mundo social.
Conforme Hughes (1980), o termo significado faz mais do que sugerir a natureza simbólica da
vida social, assinala o fato de que a ação não é tão previsível, tão determinada, em seu
desenrolar, quanto o objeto de estudo inanimado da ciência natural.
Neste sentido, Schutz diz que a realidade social é o conjunto dos objetos e dos acontecimentos
do mundo cultural e social, vivido pelo pensamento do senso comum, emergindo num mundo de
numerosas relações de interação. É o mundo dos objetos culturais e das instituições sociais nas
quais nascemos, onde nós nos reconhecemos. Para Schutz, desde o começo, nós, os atores, em
meio aos cenários sociais, vivemos o mundo como um mundo às vezes de cultura e de natureza,
não como um mundo privado, mas intersubjetivo, isto é, que nos é comum, que nos é dado ou
que é potencialmente acessível a cada um de nós; e isto implica na intercomunicação e na
linguagem.
A partir deste entendimento, dois postulados são tomados como formadores do eixo norteador
para a compreensão da noção de ação, de uma perspectiva sócio-fenomenológica: todo ator deve,
quando ele age, colocar necessariamente em obra procedimentos de compreensão e de
interpretação pelos quais ele dá, permanentemente, um sentido às atividades ordinárias em que
ele se insere; a ação social é uma realização prática, isto é, produto deste trabalho de
interpretação que deve informar os atores para agir, assegurando esta continuidade das relações
de troca, que fundam a possibilidade de uma ação.
Portanto, para esta perspectiva, não é possível apreender os fatos sociais como coisas, como
queria Durkheim, tão pouco apreender a ação como algo consolidado aprioristicamente, como
compreendia Parsons, no seu projeto teórico macro-sociológico e anti-fenomenológico. A
competência interpretativa é especificidade humana e, como tal, não há ação social sem
significado. Como expressa-se H. Garfinkel, "somos seres condenados a fabricar sentidos".
É interessante pontuar que acordar um lugar central para a ação e para o significado social é
cultivar, por conseqüência, a noção de sujeito, que consubstancia-se no desejo do indivíduo em
tornar-se um ator, de criar uma história pessoal. Outrossim, a idéia de sujeito não deve conduzir
jamais alguém a negligenciar as condições sociais ou interpessoais de seu reconhecimento. Neste
sentido, deve ser articulado o universo da instrumentalidade com o universo das identidades.
Como conseqüência, a compreensão da sociedade não pode se dar através do que se chama
determinismo social, mas, através das perspectivas de uma ciência social da liberdade, cuja idéia
de sujeito é a chave principal.
Para Morin, uma grande parte, a parte mais importante, a mais rica, a mais ardente da vida social,
é construída pelas relações intersubjetivas. Da perspectiva deste autor, é necessário mesmo dizer
que o caráter intersubjetivo das interações no seio da sociedade é de importância capital.
Ademais, é necessário reconhecer que todo sujeito é potencialmente não somente ator, mas autor,
capaz de computação/cognição/ escolha/decisão... a sociedade é um jogo de
afrontamento/compreensão entre indivíduos/sujeitos, entre nós e eus. Morin (1995), insiste na
necessidade de se conceber o sujeito como aquilo que dá unidade e invariância a uma pluralidade
de personagens, de caracteres, de potencialidades.
De acordo com Mead, o comportamento humano não é uma questão de resposta direta às
atividades dos outros, mas envolve uma resposta às intenções dos outros, não somente às suas
presenças. Estas intenções são transmitidas através de gestos que se tornam símbolos, isto é,
possíveis de serem interpretados. Quando os gestos assumem um sentido comum, ou seja,
quando eles adquirem um elemento lingüístico, podem ser designados de "símbolos
significantes".
Aqui, a relação dos seres humanos entre si surge do desenvolvimento de sua habilidade de
responder a seus próprios gestos. Esta habilidade permite que diferentes seres humanos
respondam da mesma forma ao mesmo gesto, possibilitando o compartilhar de experiências, a
incorporação em si do comportamento. O comportamento é, pois, social e não meramente uma
resposta aos outros. O ser humano responde a si mesmo da mesma forma que outras pessoas lhe
respondem e, ao fazê-lo, imaginativamente compartilha a conduta dos outros.
A ação, invariavelmente, ocorre em relação a um lugar e a uma situação, logo, a ação em si é
feita à luz de uma situação específica, a ação é construída através da interpretação da situação,
consistindo, a vida grupal, de unidades de ações. É do âmago destas argumentações que surge a
noção fértil de definição da situação, pedra fundamental da construção sócio-simbólica.
De acordo com Blumer, são três as premissas básicas do interacionismo simbólico: o ser humano
age com relação às coisas na base dos sentidos que elas têm para eles. Estas coisas incluem todos
os objetos, instituições e as atividades que o indivíduo desenvolve na vida cotidiana; o sentido
destas coisas é derivado, ou surge da interação social que alguém estabelece com seus
contemporâneos; estes sentidos são manipulados e modificados através de um processo
interpretativo usado pela pessoa ao tratar as coisas que ela encontra.
Assim, a sociedade humana ou a vida em grupo é vista como consistindo de pessoas que
interagem, isto é, pessoas em ação que desenvolvem atividades diferenciadas que as colocam em
diferentes situações. O princípio fundamental é que os grupos humanos existem em ação e
devem ser vistos em termos de ação. É através deste processo de constante atividade que
estruturas e organizações são estabelecidas. Logo, a vida do grupo necessariamente pressupõe a
interação entre os membros do grupo ou, em outros termos, a sociedade consiste de indivíduos
interagindo uns com os outros (Haguette,1987 ; Coulon, 1992; Lapassade, 1991; Meham, 1987).
Esta compreensão da ação humana se aplica tanto para a ação individual, como para a ação
coletiva, e, neste ponto, a ação conjunta pode se constituir em objeto de estudo, não perdendo o
caráter de ser construída através de um processo interpretativo, quando a coletividade enfrenta
situações nas quais age. Apesar do seu caráter distintivo, a ação conjunta tem sempre que operar
através de um processo de formação. Esta decorrência de ações permite ao indivíduo partilhar
sentidos comuns e pré-estabelecidos sobre expectativas de ações dos participantes e,
conseqüentemente, cada participante é capaz de orientar seu próprio comportamento à luz destes
sentidos.
Conseqüentemente, não são as regras que criam e sustentam a vida em grupo, mas é o processo
social de vida grupal que cria, mantém e legitima as regras. Concluise, deste modo, que as
instituições representam uma rede que não funciona diabólica e automaticamente, por causa de
certa dinâmica interna ou sistema de requerimento; funciona porque pessoas, em momentos
diferentes, fazem alguma coisa, como um resultado da forma como definem situações na qual
atuam.
Desta forma, os interacionistas procuram não esquecer que a pesquisa científica e cada ato de
pesquisa individual constituem, eles também, um caso específico de interação. Em conseqüência
disto, não há lugar, como recomenda Blumer (1969) para "conceitos definicionais" fixados de
uma vez por todas, deve-se cultivar "conceitos sensibilizadores", noções aproximadas que
sensibilizem os aspectos importantes da realidade, dentro de cada caso estudado, e que poderão
ser modificados no bojo mesmo do ato de pesquisa. A teoria social, portanto, é construção jamais
acabada, é um processo contínuo de descoberta de uma teoria enraizada no real, como querem
Glaser e Strauss (1987).
Para Woods (1990), uma abordagem interacionista, apoiada na démarche etnográfica e centrada
no aspecto qualitativo, permite compreender como as relações sociais mudam, como as pessoas
mudam, como mudam suas visões de mundo.
Tomando a escola como seu principal objeto de análise via uma abordagem etnográfica, Woods
capta como nas relações face-a-face as pessoas no interior da instituição escolar, de dentro dos
complexos mecanismos de construção de sentidos, tornam o fenômeno humano das práticas
educacionais possível. Para este autor da etnografia escolar britânica, não há determinismo
cultural total. Certos alunos, segundo Woods, podem desenvolver uma grande engenhosidade
para atualizar seus interesses pessoais em flagrante oposição às pressões institucionais.
É a partir destas constatações que autores da pedagogia crítica imbuíram-se de estudar, na escola,
o que chamam de mecanismos de resistência. Apple, Giroux, MacLaren, são os exemplos mais
próximos. O método interacionista deseja abrir a Black Box, e, abrindo-a, captar o movimento
incessante das interações constitutivas; estudando in situ, em ato, de dentro, a produção das
ações que edificam as instituições na sua precária e relativa ordenação.
A "tradição de Chicago"
É notória a influência da chamada Escola Sociológica de Chicago na prática de investigação dos
etnopesquisadores. Voltada basicamente para as pesquisas empíricas, a Escola de Chicago é
herdeira do pragmatismo enquanto filosofia social da democracia, onde, em termos educacionais,
o filósofo J. Dewey é um dos seus maiores expoentes, e do interacionismo simbólico de Mead.
No bojo desses princípios, a sociologia de Chicago vai elaborar uma série de conceitos e técnicas
de campo fundamentais para legitimação do seu itinerário, como o de definição de situação,
marginalidade, desorganização social, atitude e aculturação. No que tange aos recursos de
pesquisa, pode-se destacar a observação in situ, às vezes com participação (pesquisa
participante), história de vida, análise de documentos oficiais e pessoais, narrativas e entrevistas.
Com Thomas e Znaniecki, Park e Burgess, a tradição de Chicago prepara seu terreno e vê
fecundar sua plural identidade na diversidade das formas de abordar seus temas/problemas
preferidos. Advindos às vezes de uma prática jornalística, os estudos pontualísticos eram
naturalmente flexíveis e intensamente diversificados na sua forma de apreensão do objeto de
pesquisa. A densidade da descrição, o detalhismo, a proximidade do campo, faziam emergir um
objeto extremamente rico em minúcias, dando-lhe um sentido de plenitude e vida, ausentes nas
construções que eram forjadas nas elucubrações saídas dos estudos estatísticos.
Comentando sobre a dinâmica das origens da Escola de Chicago, Breslau (1988) ressalta o
aparecimento das primeiras cadeiras universitárias destinadas a pesquisadores em ciências
sociais.
Park, por exemplo, marginal em relação ao meio universitário, era destacado pela sua
repugnância face à postura dos universitários e suas pretensões em compreender o mundo social
olhando-o do alto. Neste sentido, constrói uma démarche anti-positivista, ao mesmo tempo
privilegiando o conhecimento direto do fenômeno social. Desde a chegada de Park à
Universidade de Chicago, em 1914, elabora-se uma certa redefinição das ciências sociais que
rompe com as estratégias que consistiam em colocar em relevo a distância em relação aos
objetos-processos pesquisados.
O naturalismo de Park, em particular, o conduz a uma concepção micro das ciências sociais, da
crise e a da dimensão política como luta. Tal situação, ao invés de transformar Park num
pensador pessimista, eleva-o a uma perspectiva de realismo otimista, porquanto, para este
cientista social, o conflito aparece como condição de emancipação. O que se abstrai da noção de
crise em Park é uma passagem necessária, um processo natural do fenômeno de mudança. Da
perspectiva dos estudos de Park, toda tensão crísica implica em mudança, e é com sua análise do
que seria a cidade que podemos perceber bem a dinâmica de suas elaborações no que concerne à
inserção do conflito e da crise na conviviabilidade. Park vê a cidade como, acima de tudo, um
estado de espírito, um conjunto de costumes e de tradições, de atitudes e de sentimentos
organizados, transmitidos pelas tradições. A cidade não é simplesmente um mecanismo material
e uma construção artificial, está implicada nos processos vitais das pessoas que a compõem: é
um produto da natureza, particularmente, da natureza humana. Para Park, a cidade seria um tipo
de sistema psico-sócio-físico através do qual os interesses privados e políticos encontram uma
expressão não somente coletiva, mas conflitualmente organizada.
Tal posicionamento de Park, ao mesmo tempo naturalista e político, nos leva a colocá-lo no rol
daqueles que certamente contribuem para as argumentações em torno dos movimentos sociais,
fenômeno que Touraine concebe como o objeto predominante da ciência social, enquanto ciência
dinâmica, que deve encontrar "dentro da história, o ator social".
Em termos dos movimentos sociais por educação no Brasil, inspirações ancoradas nas
percepções da Escola de Chicago, como aquelas de Park, ajudariam a responder algumas
questões ainda nebulosas: quem são e quais as expectativas dos atores sociais concretos destes
movimentos? Como constituem e interpretam suas ações, via suas próprias vozes? Qual a
natureza das interações que estabelecem com outros âmbitos institucionais?
Nem sempre as definições entre o ator e o grupo social encontram-se sem geração de conflitos;
divergências são naturalmente esperadas na emergência contraditória da existência social face à
pluralidade das histórias de cada um. Neste veio, Coulon (1992) comenta que Thomas, insistindo
sobre a necessidade dos pesquisadores recolherem, junto aos atores sociais, narrativas de
primeira mão, autobiografias, cartas e outras fontes, gostaria que eles tivessem acesso à maneira
como estes definiam suas situações. Captar definições de situações estabelece uma certa ruptura
com algumas práticas teórico-filosóficas de argumentar apenas via princípios, para a partir daí
entender a realidade humana.
"The fieldwork"
Parece-me que um dos grandes saltos qualitativos que a tradição dos estudos sociais de Chicago
arquitetou foi que em captando as construções in situ dos fenômenos sociais (o trabalho de
campo), instrumentalizou-se de modo a, concretamente, não perder o "trem" dos movimentos
sociais nos labirintos que percorrem e nos pontos onde se abastecem de forma e conteúdos
indexais.
Chapoulie (1984) reporta-se a E.C. Hughes e, numa outra perspectiva, a H. Blumer, como os
principais divulgadores da utilização da observação in situ como meio de investigação, às vezes
por suas publicações, ou mesmo via as aulas que ministravam na Universidade de Chicago. A
tradição do estudo de campo (the fieldwork) exercitada pela tradição de pesquisa de Chicago,
jamais encerrou-se num empirismo sem alma, pretende apanhar o ator social em ato, vendo-o
como sujeito.
Ao tecer comentários sobre o pensamento de G. Mead, Blumer argumenta que é necessário levar
em consideração o papel do ator e ver seu mundo do seu ponto de vista. Nas palavras de Blumer,
esta abordagem teórico-metodológica contrasta com o dito objetivismo, que vê o ator e sua ação
destacada e exterior. O ator age no mundo em função da maneira como ele vê, e não como
aparece a um observador estranho (Blumer, 1996).
Peneff (1990) discorre que Park concebia a aprendizagem em ciências sociais segundo duas
etapas: descobrir de início o mundo exterior antes de colocá-lo sob o crivo de uma análise;
possibilitar uma experiência direta com a diversidade da sociedade. Park incessantemente
convidava seus alunos a sair do mundo estreito em que eles viviam para experienciar e tomar
consciência da diversidade e da forma, às vezes estranha, dos modos de vida e dos
comportamentos que eles iriam estudar. Para Park, a biblioteca era fundamental, mas articulada
com o campo.
Parecem-me pertinentes a esse respeito os comentários de Louis Quéré, quando faz distinções e
aproximações entre Goffman e Garfinkel, no sentido de que a resultante de suas elaborações vem
caracterizar a opção empírica da tradição de Chicago. Para Quéré, é significativo colocar em
evidência as orientações que os dois autores compartilham, em particular uma desconfiança face
às construções teóricas apriorísticas, bem como em relação à análise conceitual tomada como um
fim em si mesma; uma orientação que se poderia traduzir em palavras de ordem tais como: se
nós queremos compreender como a sociedade se organiza, é necessário observar os
comportamentos menores, as ações recíprocas de importância pouco enfatizada; é necessário
apreender os detalhes dos acontecimentos, tratando os dados como fenômenos em si, em vez de
utilizá-los para exemplificar teorias para ilustrar argumentos ou mesmo para testar a validade de
hipóteses explicativas deduzidas de uma teoria. Tal démarche prescreve uma observação
empírica minuciosa, orientada por uma teoria apropriada dos acontecimentos sociais e das
práticas sociais. Pode-se denominar o recurso metodológico do estudo de campo como uma
prática que aponta para um empirismo heterodoxo.
A vida social enquanto cena e a teoria do desvio
É com Erving Goffman que se organiza um corpus de elaborações consistentes e intrigantes
sobre a concepção da vida em sociedade enquanto uma cena. Influenciado por W.L. Thomas e,
principalmente, pelo interacionismo simbólico de G. H. Mead, Goffman tem na sua obra " A
representação do eu na vida cotidiana" o batismo de uma contribuição valiosa à interpretação da
ação dos indivíduos em interação. A originalidade de Goffman prende-se ao fato de ter criado
um modelo de dramatização através do qual descreve e interpreta as atividades dos atores sociais.
Faz-se necessário frisar que Goffman, pelo menos em sua obra, não se preocupou com a forma
como os homens tentam modificar as estruturas perniciosas da sociedade, mas apenas com a
forma como eles se dinamizam nesta. Por outro lado, os objetos de estudo eleitos por Goffman
trazem em si a marca de práticas que, de uma perspectiva ética, necessitam de uma desreificação
profunda. Exemplo disto são os seus trabalhos sobre hospitais de doenças mentais, onde ele
constrói o conceito de instituição total, através da qual analisa a modificação e quase destruição
do self em internos sob a pressão das rotulações (labelling) e das regras administrativas. No caso
deste tipo de estudo, Goffman afasta-se da dramaturgia social e exercita o uso da " teoria do
rótulo" anteriormente arquitetada por H.S. Becker em seus estudos sobre o comportamento
desviante. Assim sendo, o ato desviante não pode ser somente compreendido em termos do
comportamento dos desviantes, mas através de uma análise sociológica que admite que qualquer
ato social envolve relações interpretativas, logo, o processo de interação dos desviantes com
aqueles que lhe são próximos deve ser significativamente considerado (Haguette 1987). Becker
procura mostrar, conforme o interacionismo, que o mundo social, o mundo das significações, é
construído nas interações sociais, e procura indicar aqueles indivíduos que estão estigmatizados,
socialmente marcados, etiquetados que são, em geral, os marginais, os bandidos, os que estão
numa situação em que esses marginais são, agora, considerados indivíduos de comportamento
"desviante" e, portanto, merecedores de sanção. Todo seu estudo mostra que os atos
considerados "desviantes" ou marginais não passam de conseqüências de regras bem-sucedidas
de sanção contra pessoas que devem ser consideradas como indivíduos estigmatizados,
criminosos, bandidos, e que devem permanecer etiquetados no meio social (Chizzotti, 1992).
Becker vai mostrar que esta etiqueta é uma construção social.
Foi pela voz de Aaron Cicourel, na primavera de 1987, durante um curso sobre etnometodologia
e sociolingüística, na FACED/UFBA, que tomei conhecimento do pensamento de Garfinkel.
Meu interesse se intensificou a partir da afirmação forte de que "o ator social não é um idiota
cultural". A minha intuição indicava que imbricada àquela afirmação emergia uma fecunda
elaboração teórica em relação, principalmente, à condução do sujeito social para as discussões
que situam o homem em sociedade. Cansava-me, já naquela época, digerir modelos e
elaborações sempre reivindicando para si o conhecimento absoluto de um real sem sujeito. Nos
seminários, predominava a palavra mestra, porta-voz fiel das grandes teorias, mesmo aquelas
que se auto-afirmavam críticas e modificionistas. O ator social, em geral, não tinha voz nem vez
diante de posturas teóricas que se queriam quase sempre narcísicos faróis do mundo. Os
trabalhos de base empírica tinham, em geral, a tarefa de achar no empírico justificativas para as
teorias cultuadas, os sujeitos falavam pela boca das elaborações teóricas. As entrevistas abertas,
de inspiração fenomenológica, as narrativas e biografias, funcionavam, em última análise, como
legitimadoras de alguma corrente de pensamento.
No contato acadêmico com Cicourel, a exigência de ir a campo ver e falar com os atores sociais,
seus repetidos e diversificados relatos de histórias de campo, ficavam para mim ainda num nível
nebuloso em termos de valor heurístico e científico. Aos poucos, na prática de pesquisa,
compreendi a intenção e a direção apontada: os etnométodos que emergem das práticas
cotidianas, dos processos interacionais que não se enquadram jamais na noção de constância do
objeto e que são, em última instância, os organizadores das ordens sócio-culturais.
Inquietava-me, à época, a ausência arquitetada do ator social, o silêncio a ele imposto. Vê-lo
expressar-se e valorizar esta expressão nos contextos educacionais e nas minhas produções de
pesquisador direcionou-me para âmbitos tão fecundos quanto complexos no que se refere às
problemáticas do ato educativo.
Então, qual é o objeto privilegiado de Garfinkel? Segundo ele, as pessoas, as suas vidas
ordinárias; as pessoas que conhecem e que atualizam métodos para definir suas situações de
ação, para ordenar suas atividades, para tomar suas decisões, para exibir condutas racionais,
regulares, típicas. Da perspectiva de Garfinkel, os pesquisadores em ciências sociais concebem o
homem em sociedade como um idiota desprovido de julgamento, um idiota cultural que produz a
estabilidade da sociedade agindo conforme as alternativas de ação pré-estabelecidas e legítimas
fornecidas pela cultura. Para Garfinkel, na base deste modelo há o fato de que os cientistas
sociais tratam como epifenômeno as racionalidades do senso comum. Neste sentido, tais
racionalidades são, no máximo, consideradas subsídios fomentadores de um conhecimento visto
enquanto verdade única.
Assim, em "Le domaine d'objet de l'éthnométhodologie", Garfinkel nos diz do seu objeto de
estudo: os procedimentos intersubjetivamente construídos que as pessoas, na sua cotidianidade,
empregam para compreender e edificar suas realidades. Para este autor, quando se faz
conhecimento social, "profano" ou profissional, toda referência ao mundo real, mesmo
concernente aos acontecimentos físicos ou biológicos, é uma referência às atividades organizadas
da vida cotidiana. Trata-se, portanto, de um fenômeno fundamental para a ciência social, quando
analisa as atividades do dia-a-dia enquanto métodos dos membros (aqueles que dominam a
linguagem natural) para tornar essas mesmas atividades visivelmente racionais e reportáveis para
todos os fins práticos.
O próprio Garfinkel nos relata que o termo etnometodologia foi empregado para referir-se à
investigação das propriedades racionais das expressões indexais e de outras ações práticas,
enquanto realizações contingentes e contínuas das práticas organizadas e engenhosas da vida de
todos os dias (Garfinkel, 1985). A partir destas elaborações, vê-se aparecer uma série de termos,
que junto a outros mais, vão constituir o corpus teórico da etnometodologia e que transformar-
se-ão em idéias-força desta forma de ver o social se fazendo. Vão representar o encorpamento do
projeto de Garfinkel e os elementos de densidade da sua argumentação.
Do lugar desta perspectiva, as práticas sociais devem ser olhadas localmente, isto é, jamais de
forma descontextualizada. Para que se tornem visíveis estas práticas, é necessário que as conheça
de dentro e o conhecimento profundo das atividades consubstancia-se naquilo que Garfinkel
chamou de "competência única". Propondo o estudo do saber cotidiano e rejeitando os
preconceitos analíticos da superioridade do saber das ciências humanas sobre aqueles do senso
comum, a obra de Garfinkel resulta num programa de estudos que tem por centro de interesse a
constituição imanente do saber. Há uma insistência para que a análise da ação não se dê
independentemente das práticas e dos contextos das atividades sociais que os produzem e os
mantêm. No que se refere às noções nucleares da etnometodologia, já no início dos seus escritos
de "Studies in Ethnometodology", Garfinkel frisa que seus estudos tratam das atividades práticas,
das circunstâncias práticas e do raciocínio sociológico prático, como assuntos de estudos
empíricos. Emerge assim a noção de prática que toma em Garfinkel um sentido mediador forte
em termos teóricos, entretanto, como o termo se originou, ainda permanece numa aura de
indefinição. H. Meham (1982) nos diz que as origens do conceito de "prática" em
etnometodologia são obscuras, isto é, não são bem estabelecidas. Meham tenta uma analogia
com o conceito de práxis em Marx, entretanto, coloca suas diversidades quando, segundo ele, em
Marx, práxis é uma linha de conduta guiada por uma reflexão consciente e orientada para um
objetivo político. A partir do raciocínio de Meham, um dos herdeiros da tradição de estudos
etnometodológicos, a atividade orientada e que compreende a ligação entre reflexão e ação, entre
o pensamento e o ato é certamente uma característica da noção de prática de interações,do
método dos membros e dos procedimentos interpretativos.
Deste ponto de vista, praticar a vida social é literalmente trabalhar sua construção, sua
manutenção e sua modificação. A prática vai constituir assim a vida social, não é um reflexo
pobre de uma situação ideal, compreende as idéias das pessoas e a aplicação que fazem estas
pessoas desses ideais em situações sociais concretas. Da perspectiva de Meham, a noção de
trabalho precisada pela utilização deliberada do termo "fazendo" permite-nos apreender o sentido
mutuamente constitutivo e fluido das práticas de interação.
Neste sentido, o conceito de prática aproxima-se mais daquele de poyesis, que significa
produção, fabricação do próprio existir humano, individual e social, objetivo e subjetivo.
Vasquez (1977), ao trabalhar as diferenças entre práxis e poyesis, afirma que o trabalho é uma
atividade poética, levando em conta o trabalho do artesão, indo ao encontro das elaborações de
Meham de prática em etnometodologia enquanto "faisant".
No que se refere à indexalidade das ações, esta noção nos envia à constatação de que a vida
social se constitui, basicamente, através da linguagem do dia-a-dia. Ao reelaborar o pensamento
etnometodológico, A. Coulon observa que a indexalidade se consubstancia em todas as
determinações que ligam a uma palavra, a uma situação. Neste veio argumentativo são
pertinentes as elaborações filosóficas de Wittgenstein, quando afirma que a linguagem está
irremediavelmente ligada ao contexto de sua produção, assumindo uma natural incompletude,
porquanto a intenção generalizada não tem guarida onde a homogeneidade semântica e o
purismo das formas de falar e se expressar são totalmente descartados.
Nos diz Garfinkel, em resumo, que as propriedades racionais das expressões indexais e das ações
indexais são uma realização contínua das atividades organizadas da vida de todos os dias. No que
concerne à reflexibilidade, reafirma-se por esta via a natureza descritiva e constitutiva da
realidade social. As descrições do social passam a ser partes constitutivas daquilo que é descrito.
À propósito, quando o poeta gaúcho Mário Quintana era interrogado sobre sua poesia, em geral
respondia: "a minha poesia...a minha poesia sou eu". Neste sentido, as descrições são sempre
encarnadas, isto é, elas portam a própria "matéria" daquele que narra. Enfim, elas se encarnam na
pessoa que descreve. O que a noção de reflexibilidade evidencia é que, no processo de ação
social, se constitui e se é constituído.
Para os etnometodólogos, a competência social dos membros nasce no seio de uma determinada
comunidade, e a escola é uma delas, a cultura ali criada indexaliza as ações. Neste sentido,
normas, regras e valores são sempre uma interpretação local, pontual, pois é na escola que se
criam e se recriam incessantemente. Procurando mostrar como as desigualdades são construídas
e mantidas no dia-a-dia das relações escolares, os etnometódologos entram na lógica das ações
cotidianas "não documentadas", desvelando procedimentos de exclusão nem sempre visíveis,
nem sempre comunicados: um mundo de ações tácitas que as relações cristalizadas ao longo da
história da instituição escolar mantêm reificadas, isto é, naturalizadas. É um impensado
extremamente importante para a compreensão do "currículo real " Perrenoud (1994), o currículo
que mostra a vida escolar se fazendo profunda e detalhadamente.
Tomando este conjunto de elaborações e os temas sobre o ato educativo que a etnometodologia
vem abordando, vemos com interesse particular a formação escolar da criança, considerando,
principalmente, as noções de infância que emergem dos diversos programas educacionais
infantis, assim como o que se entende como socialização desta própria criança. Refletindo sobre
esta questão, Coulon nos diz que o contexto institucional, isto é, os mecanismos tácitos que
regem a vida dos nossos estabelecimentos escolares, é determinante não somente de
aprendizagens, mas também da socialização em geral. Segundo este autor, esta hipótese
interacionista nos convida a revisar nossas teorias sobre a socialização da criança, porquanto os
alunos desempenham um papel ativo na organização social das atividades escolares e o status
social é certamente a resultante de interações complexas e contínuas entre as capacidades
individuais, a primeira socialização da criança, o capital cultural da família e sua capacidade em
transformar comportamentos escolares operatórios, que se tornarão a base das interpretações
institucionais encontradas na escola.
Nesta mesma direção, ressalto o artigo intrigante de Robert Mackay, " Conceptions of Children
and Models of Socialization", onde, à luz de um argumento etnometodológico, o autor demonstra
como a criança em geral é reificada pelos modelos teóricos normativos, levando articulistas
como J-M Brohm (1984) e M-S Trouzeau (1986) a identificar nas elaborações de Mackay um
rompimento definitivo com as concepções asfixiantes das abordagens que apreendem a criança
enquanto uma invariante na história.
Etnometodologia e educação fundam um encontro tão seminal quanto urgente face à inércia
compreensiva fundada pelas análises "duras". Pelo veio interpretacionista, os etnometodólogos
interessados no fenômeno da educação buscam o tracking dos etnométodos pedagógicos, isto é,
uma pista através da qual tenta compreender uma situação dada, bem como praticam a filature,
ou seja, o esforço de penetrar compreensivamente no ponto de vista do ator pedagógico, nas suas
definições das situações, tendo como orientação forte o fato de que a construção do mundo social
pelos membros é metódica, se apoia em recursos culturais partilhados, que permitem não
somente o construir, mas também o reconhecer.
O instituinte ordinário
Para H. Meham (1982), o construtivismo social toma como axioma básico o fato de que as
estruturas sociais e as estruturas cognitivas se edificam e se situam nas interações entre as
pessoas. Conceber as instituições como coisas prontas que num dado momento começam a
funcionar e, inevitavelmente, moldam/formam as ações das pessoas, significa aceitar, de alguma
forma, que as estruturas sociais (humanas) são vazias desta própria humanidade, uma construção
extra-humana. Por outro lado, enxergar a atividade, a ação mutante, constitutiva da vida em
sociedade, parece-nos encontrar a concreticidade do homem ator/ sujeito na sua primordial
condição: de construtor rotineiro das suas instituições. Assim, analisar a instituição sem analisar
as atividades que a constituem significa reificá-la, apreendê-la pseudoconcretamente, perder seu
caráter processual, senão vital. É significativo reafirmar que, na realidade, são os membros da
vida social ordinária que produzem a ordem social.
Podemos verificar em Castoriadis, por exemplo, a observação de que há o social instituído, mas
este pressupõe sempre o social instituinte. Esta elaboração articula-se com aquelas da
etnometodologia empenhadas em mostrar como as estruturas se estruturam, num projeto
obstinado de desreificação e de desconstrução de pseudoconcreticidades, não por argumentos
prenhes de argumentos (mera teoria teorizada), mas por reflexões encarnadas por estudos
concretos e contextualizados. Esta perspectiva instituinte não só se opõe à análise sistêmica de
"entrada e saída", como reafirma a riqueza e a significatividade das construções que acontecem
no seios da instituições.
Para a etnometodologia, são as práticas cotidianas que produzem uma realidade. Outrossim,
sendo a prática descritível, nem sempre será descrita. Há, em realidade, uma potencialidade
descritiva enquanto especificidade humana (accountability), bem como as narrativas podem
conter elementos tácitos e opacos, tornando o mundo da linguagem extremamente complexo.
Como exemplo de prática instituinte, A. Ogien (1985), na sua tese de doutorado "Positivité de la
Pratique", mostra-nos como esta prática se organiza em instituição. Ogien descreve a lógica das
práticas de um serviço de psiquiatria, demonstrando que é a prática dos membros do serviço,
constituída pela linguagem natural, que possibilita a edificação do tipo de atendimento. Esta
linguagem natural é, em realidade, o resultado de um amálgama de uma linguagem especialista,
de uma linguagem administrativa, e de um falar ordinário das pessoas. As práticas de cuidado
médico, segundo Ogien, não são deduzíveis da leitura de um manual de psiquiatria, nem de
circulares ministeriais. São, ao contrário, o resultado de negociações constantes entre membros
do serviço. Para os autores que trabalham com a denominada análise institucional interna, são
estas práticas que devem ser estudadas por aqueles que estão interessados numa análise concreta
e não reificada. São tais acontecimentos ordinários que produzem as realidades sociais num
mundo relacional. Garfinkel parte do princípio de que todo quadro social, toda situação social se
auto-organiza (self-organize) em função do caráter inteligível de suas próprias práticas; que toda
instituição organiza suas atividades enquanto cenário de atividades práticas, inteligíveis e
descritíveis. Em realidade, aparece aqui uma clara recomendação para uma política de pesquisa
que tem o instituinte ordinário como inspiração, na medida em que as estruturas sociais das
atividades da vida cotidiana fornecem contextos, objetos, fontes, justificações, temas, problemas
etc, para as investigações e seus resultados.
Trata-se de uma démarche de pesquisa onde o fundamental é a descrição das atividades sociais
estruturantes, que criam os fatos sociais objetivos e instituintes do mundo da educação. Tais
estudos constitutivos operacionalizam o princípio interacionista segundo o qual as estruturas
sociais são realizações sociais. Neste sentido, em vez do pesquisador se fixar no instituído,
procura compreender o instituinte que o produz.
Para Meham, o termo etnografia constitutiva evita dois erros de interpretação contidos na noção
de microetnografia, antes atribuídos à etnografia constitutiva. Para este autor, o termo micro não
corresponde ao seu projeto que é de estabelecer elos entre os níveis micro e macro, mostrando,
em patamares variados de análise, como se constrói uma estrutura; é fato, que a expressão
microetnografia já tinha sido utilizada em estudos de campo que não levavam em consideração a
interação que serve para a construção dos modelos descritos. Os estudos da etnografia
constitutiva, portanto, funcionam a partir da hipótese interacionista de que as estruturas são
construções sociais.
Resta entender como uma máquina que perdeu seu maquinista consegue percorrer caminhos
imprevistos e tortuosos, objetivar desejos e intenções, produzir projetos, transformar-se movida
por fascínios banais. Aqueles que inventaram a história autoritariamente unificadora
escamoteiam a multiplicidade movente dos homens em vida. A conseqüência é que a tarefa de
homogeneização das histórias termina por "fazer água" por todos os lados. Aos poucos, afunda-
se, tomada de surpresa por irrupções históricas dotadas de uma tal dinâmica que aqueles que
descansam no " berço esplêndido" de uma história perfeitamente previsível padecem, sem cessar,
de sobressaltos face aos "espetáculos do mundo".
Este tipo de raciocínio nos conduz ao esforço de penetrar na complexidade dos conjuntos de
pensamentos que ligam homens de todas as condições a diferentes elementos que, como se sabe,
podem também ser considerados como outras formas de ser. Em termos metodológicos, as
abordagens do tipo monográfica podem reconstituir a especificidade de cada via social e
histórica, através do entrecruzamento das histórias no interior das formações sociais. Aqui, as
histórias orais assumem um lugar de destaque com toda sua diversidade e multiplicidade de
sentidos. Deste ponto de vista, toda história é, de uma certa maneira, uma história local,
acontecendo no interior de um espaço. O fenômeno da indexalidade trabalhado pela
etnometodologia nos mostra que toda narrativa é realizada a partir de um contexto que banha e
impregna aquele que narra.
Considero, assim, que a história unificadora sofreu do mal teorizante, deu-se à tarefa de moldar
"realidades múltiplas", imobilizar idiossincrasias dos coletivos sociais, ensacar visões de mundo
distintas, subsumidas por definições macro-incorporadoras que, no domínio da argumentação
erudita, facilmente e de longe tudo explicou. Trata-se, por outro lado, de interrogar recorrências
simbólicas observáveis nas diferentes escalas do mundo, construídas num incessante
compartilhar de sentidos.
Pharo nos incita a afastar as visões idílicas do historicismo universal e a repensar as
características fundamentais da ligação histórica, entendida como a relação que as múltiplas
histórias constroem umas em relação às outras. Ao afirmar que nenhuma ocorrência simbólica
existe isoladamente, este autor reafirma que toda construção de sentidos é relacional, isto porque
os símbolos que permitem a edificação de sentidos – os conceitos, as palavras, os gestos, os
ritos... - não se formam por geração espontânea, mas por interações que se consubstanciam em
desvios e remodelagens em relação àqueles que lhes precederam.
H.S. Becker (1986), dissertando sobre os trabalhos biográficos realizados no seio da tradição
sociológica de Chicago e sua importância científica, nos apresenta uma construção interessante,
onde relaciona biografia e mosaico científico. Citando Robert Park como o grande inspirador
destes estudos, Becker argumenta que em artigos sobre a natureza da cidade, sobre o papel da
comunidade na vida social, Park formulava um projeto geral sobre a vida urbana à medida que
realizava, com seus estudos, um mosaico compreensivo. A partir da leitura do trabalho de
Becker, percebe-se como se produzia uma certa história da cidade, onde biografias múltiplas
eram entrelaçadas e a cada peça juntada relacionalmente enriquecia-se mais o conjunto, "o
quadro", como se refere Becker. No mesmo argumento, Becker nos convida a pensar
relacionalmente, mostrando que cada peça do seu mosaico está relacionada ao seu contexto e
contêm em si este contexto. Um estudo de uma universidade, por exemplo, pode sugerir
hipóteses sobre as características da cidade, do estado e da região, sobre a origem social dos
alunos, sobre as experiências de classe dos estudantes. O estudo de um hospital psiquiátrico ou
de uma prisão fará surgir, igualmente, hipóteses sobre as características das famílias cujo
membros terminaram por freqüentar estas instituições.
Do pensamento de Mead, podemos extrair que o processo social não é apenas um jogo
imaginário de forças invisíveis ou a resultante de uma interação de múltiplos fatores sociais, mas
um processo possível de ser observado de interações simbolicamente mediatizados.
R. Barbier e J-L Legrand (1990), refletindo sobre a utilização das histórias de vida na instituição
educativa, chegam à pertinente conclusão de que é por estas histórias de vida cruzadas que uma
autêntica existencialidade coletiva e institucional poderá ser compreendida, onde pessoa,
interação, significado, imaginário, organização e instituição, jamais podem ser analisadas como
epifenômenos sociais. A multiplicidade histórica os resgata, e o faz dando-lhes o dinamismo
inerente ao ato de viver socialmente.
Tentando reforçar a sua preocupação maior com o caráter indexal dos movimentos sociais, no
sentido de se ter acesso às realizações práticas, L. Quéré elabora um raciocínio extremamente
fecundo. Segundo o autor, o movimento social não deve ser apreendido como um objeto dado,
ali, sob nossos olhos, que temos que categorizar ou explicar em termos simplesmente de causas,
de objetivos, de sentido, mas como processo que se organiza do interior, sob a base de um saber
e de um saber-fazer ordinário de seus atores, como uma produção conjunta e relacional, tendo
como parte integrante a elaboração passo-a-passo de sua própria inteligibilidade, de sua própria
analisibilidade e de sua própria objetividade. Ou ainda, como um fenômeno que se auto-eco-
ordena, e, em se fazendo, exibe uma ordem ou uma configuração que lhe confere sua identidade
e sua determinação, mediadas pelo trabalho prático dos atores implicados e não por
categorizações que o subsume numa classe de equivalência munida de propriedades
discriminantes. Neste sentido, os movimentos sociais são analisados tendo uma forma e uma
atividade que também tem sua gramática, gramática esta completamente dependente das
atividades significantes dos atores em movimento.
Em resumo, ir ver, descer até as bases das construções, apreender sua dialogicidade, encharcar-se
dos sentidos que brotam das relações entre pessoas, urge enquanto démarche metodológica para
uma real compreensão de um movimento social, em geral edificado num processo complexo de
interações eivadas de lutas comuns e assincronismos que, entre nós, em meio às ações populares,
fundam a todo momento utopias, objetivam conquistas, elaboram ganhos, desventuras e perdas.
Desta perspectiva, um movimento social consubstancia-se numa itinerância no sentido atribuído
por Barbier, onde um conjunto relacional de vidas historicamente construídas projetam e
executam um certo trajeto de coletivos sociais, movidos por significados relativamente comuns.
Entre nós, o conhecimento concreto destas itinerâncias oportuniza compreender construções
educacionais acima de tudo processuais e que desvelam a todo momento as suas inerentes
contradições.
Como Piaget, estes pesquisadores fizeram valer a tese construtivista; entretanto, ultrapassaram o
sentido solipsista da construção, indo em direção ao plano interpessoal e intersubjetivo como um
plano fundante.
No pensamento de Gurwitsch (1964), experiências ulteriores podem revelar que a coisa material
apresenta propriedades e qualidades diferentes daquelas que o processo tinha permitido
estabelecer até ali. Tal revisão tem um efeito retroativo, reorganizando a primeira impressão para
que ela se adeque à experiência perceptiva presente da coisa. Em retornando ao ponto de vista de
onde a coisa aparecera anteriormente, sua emergência será agora co-determinada pelas
experiências perceptivas subseqüentes. Tal interpretação significa que o processo de percepção é
indeterminado, incompleto e sempre sujeito à revisão. Tanto para Husserl quanto para
Gurwitsch, o objeto, no seu estado completo, não é nem uma propriedade que lhe é inerente, nem
uma categoria a priori. Ao contrário, se realiza no ato intencional de percepção.
Em síntese, as propriedades de um objeto não são inerentes às coisa, mas relativos a diferentes
experiências. A atitude constitutiva em relação à percepção não significa que os observadores
tratem os objetos como se eles fossem incompletos ou sem propriedades. Significa que os
observadores constituem os objetos como completos por meios prospectivos e por meios
retrospectivos, dando significações a acontecimentos não clarificados precedentemente.
Para Meham (1982), estes atos constitutivos fazem do nosso mundo esta ligação relativamente
estável, objetiva, necessária e permanente que nós conhecemos. O processo de construção, tal
como descrevem os fenomenólogos constitutivos, superando o plano egológico, contribui de
maneira importante para o desenvolvimento de uma teoria que religa as estruturas sociais e
cognitivas em interação. Esta ruptura com o Zeitgeist solipsista, conservando os temas dinâmicos
e construcionistas dos fenomenólogos constitutivos, eliminou os chamados preconceitos mentais
e subjetivos.
Autores como Goffman, Garfinkel e Cicourel, por exemplo, começaram a falar de um mundo
social, no que concerne à sua ordenação, através da noção de "práticas de interação". Tais
atividades de interação, chamadas às vezes de "métodos dos membros" ou "propriedades
interpretativas", são, em realidade, processos que se desenrolam entre as pessoas. São atividades
sociais que implicam em ações humanas jamais devinculadas de uma elaboração cognitiva
construída entre pessoas. Podemos, portanto, qualificar estas práticas como naturalmente
constitutivas.
Como nos ensina Bakhtin, todas as vozes individuais são abstraídas dos diálogos. Funda-se,
através desta virada contextualista, uma compreensão da atividade cognitiva a partir da cultura,
da experiência social, dos coletivos sociais, preocupada com ações situadas e sentidos
indexalizados, posição também partilhada pela noção talhada por Bruner (1997) de atos de
significação, vinda no bojo do que chama de a revolução cognitiva.
Ademais, para compreender o que se faz e o que se produz num determinado tempo e lugar,
devemos olhar o contexto, já que nada tem significado fora do contexto. Devemos ver as coisas
em seu contexto e também devemos ver o que elas fazem a esses contextos. Sempre atuamos
desde e para contextos (Schnitman, 1996).
De acordo com Barnett Pearce (1994), o construcionismo social associa-se a cinco idéias
fundamentais: o mundo social consiste em atividades; os seres humanos têm uma capacidade
inata para implicar-se nos espaços discursivos da vida social; as atividades sociais se estruturam
segundo certas regras acerca do que devemos fazer. Do posto desta perspectiva, não somos
considerados seres epistêmicos, somos seres sociais, porque nos orientamos mais pelas regras do
vínculo social do que pelas regras do conhecimento; o mundo social não é uma realidade
ontológica na qual estamos depositados; é, em realidade, uma trama de ações, ou seja, vivemos
em um mundo que construimos permanentemente. O que tomamos como conhecimento do
mundo não é um produto da indução nem da comprovação de hipóteses gerais, está radicalmente
indexalizado à história, à cultura e ao contexto. Aqui está a natureza cronotópica do
construcionismo social.
O que fica claro dentro das elaborações construcionistas é que a linguagem não é mapa nem
espelho de outros domínios, é parte de uma totalidade que constitui e é constituída. A relação
entre a linguagem e outros domínios da realidade humana é uma relação complexa, constituída
em múltiplas formas nas complexas interrelações das estruturas das diferentes formas de
subjetividade definidoras do sentido do social, dentro das quais a linguagem, assim como os
processos simbólicos em geral, têm um importante lugar. Linguagem e discurso são os
ingredientes fundamentais para a compreensão da realidade, sua dialética e história. Foucault já
sentira a força heurística desta posição.
Se olharmos o cenário de legitimação e produção das práticas educacionais entre nós e alhures,
se afinarmos nossos ouvidos para ouvir os discursos da educação e seus poderes, temos que
admitir a pertinência do potencial teórico do construcionismo social, principalmente, como um
dos panos de fundo para a etnopesquisa crítica. Aliás, temos que admitir, ainda, que o que hoje
se chama dentro do contrucionismo social de "virada linguística", tem como objeto privilegiado
um tipo de atividade humana que há muito já demonstrou o seu poder. Nós, educadores, sabemos
muito pela prática o que é linguagem, sabemos o quanto pode e o quanto não pode, e o seu papel
para a compreensão das transformações e para a própria transformação em curso.
Ressaltando que os homens agem em termos de suas interpretações, de suas condições externas e
de suas intenções para com elas, a fenomenologia que fundamenta fortemente a etnopesquisa
deixa um vazio significativo no momento de analisar os mecanismos particulares pelos quais
uma determinada estrutura social impõe limites aos seus membros. Tem dificuldades de
explicitar como ou porque certas características repressivas da sociedade continuam a existir. As
questões ideológicas e a problemática da falsa consciência constituem-se num nó de difícil
resolução para o fenomenólogo. Além disso, a sócio-fenomenologia tem pouco a dizer sobre o
conflito estrutural numa sociedade e quase nada argumenta sobre o entendimento dialético da
mudança histórica e as condições materiais de existência que, embora socialmente produzidas,
tornam-se objetificadas, portanto, não podem simplesmente ser racionalizadas. Priorizando a
intersubjetividade ao desreificar os sistemas de pensamento e as ações que lhes configuram, a
abordagem sócio-fenomenológica carece de articulações, onde a desreificação prática deve fazer-
se mais potente pelas vias das relações sociais, para ser mais preciso, pela via da práxis (Sarup,
1986). Outrossim, deve-se pontuar que as bases teóricas da sócio-fenomenologia (Schutz,
Merleau-Ponty, Weber) não negam a estrutura e sua capacidade de regulação e constituição da
realidade social; o que há é um privilégio dado à ação instituinte, o que proporciona alguns
vazios significativos a serem preenchidos, e uma resistência ao marxismo e ao estruturalismo de
feições mecânicas e hiperdeterministas, na tentativa de interpretar a história à margem da ação
humana.
É aqui que um marxismo sensível à existência torna-se pertinente e relevante para proporcionar
uma etnopesquisa implicada e engajada com as transformações das práticas iníquas, e uma praxis
solidária, vinculada a uma ética comunitária.
Lefèbvre observa que, antes de Marx, Descartes, Kant e Comte, já haviam contribuído para a
formulação do método dialético, mas, a todos, escapara a importância da descoberta do elemento
contraditório, das contradições: o positivo e o negativo, o proletariado e a burguesia, o ser e o
não-ser. Hegel a descobriu e Marx, sensibilizado por questões sociais concretas da sociedade
capitalista, o concretizou e o aprofundou.
Para Marx, o método não dispensa a apreensão, em si mesmo, de cada objeto. O método é um
guia, um caminho, uma orientação para o conhecimento de cada realidade. É preciso, portanto,
apreender as contradições peculiares, o seu movimento interno, a sua qualidade, as suas
transformações e irrupções; o método deve subordinar-se ao conteúdo, ao objeto, à matéria
estudada; permitir-se-á, assim, abordar eficazmente o estudo, captando o aspecto mais geral desta
realidade, nunca substituindo a pesquisa científica por uma construção abstrata (Lefèbvre, 1974).
Na crítica a Ludwig Feuerbach, Marx mostra o quanto o método dele não considerava o mundo
enquanto processo, enquanto matéria engajada num desenvolvimento incessante.
É neste momento que, em suas Teses sobre Feuerbach, mostra que a dialética dogmatizada vira
sectarismo, mistificação.
dirigir-se à própria coisa; apreender o conjunto das conexões internas da coisa, de seus
aspectos; apreender os aspectos e momentos contraditórios, ou seja, apreender a coisa como
totalidade e unidade dos contrários; analisar os conflitos internos das contradições, o
movimento, a tendência; compreender que o real é relacional, uma interação insignificante
em determinado momento pode tornar-se relevante em outro; captar as transições, em geral,
trazem um componente crísico esclarecedor das contradições; não esquecer de que o
processo de conhecimento que vai do fenômeno à essência menos profunda à mais
profunda, é infinito, incessante; penetrar profunda e relacionalmente no conteúdo estudado,
apreendendo conexões e o movimento; fazer do pensamento um processo contínuo de
retomada e superação.
Faz-se necessário pontuar que Marx nunca esqueceu a perspectiva de classe que orientou as suas
pesquisas, estava aí o âmago das suas preocupações desreificantes e transformadoras. Ademais, o
corte entre Marx e seus predecessores é um corte de classe no interior da história da ciência.
Numa sociedade de classe, portanto nas suas raízes uma sociedade iníqua, é impossível fazer
ciência de forma imparcial, neutra ou desengajada.
De uma perspectiva epistemológica, o método dialético trata de uma proposta científica que se
contrapõe à concepção de conhecimento como algo definitivo, neutro, fechado e inflexível.
Contrapõe-se aos esquemas pré-estabelecidos e ao dogmatismo. Não é um ativismo, nem uma
improvisação desvairada, entende que a realidade social se cria e se recria num incessante
movimento. O objeto é visto na sua historicidade, na sua transformação, indo das partes ao todo
e vice-versa, do singular ao universal, da aparência à essência. O contexto e as ações contextuais
são fundamentais para vitalizar o método dialético, que jamais pode ser visto pelo ângulo de um
manual de instrução de pesquisa ou qualquer receita metodológica.
É a partir do marxismo libertário da obra de Sartre, com sua ênfase no engajamento e na ação
libertária, que nasce a fonte de inspiração articuladora onde etnopesquisa e método dialético
formam um encontro de autêntica feição multirreferencial. No primeiro, afirma-se o sujeito, seu
universo subjetivo e sua ação instituinte. No segundo, a dinâmica social apreendida e vivida por
uma praxis transformadora, que não contenta-se em tematizar a construção social pela
consciência separada das condições objetivas da vida em sociedade, isto é, a sua materialidade.
Neste sentido, a crítica aponta sempre para a compreensão radical e a transformação estrutural,
no seio daquilo que foi o principal objeto das reflexões de Marx, a sociedade capitalista e suas
relações de produção e contradições.
Quanto à pertinência da aproximação entre etnopesquisa e o método dialético, temos que as duas
abordagens, apesar de cultivarem pressupostos diferenciados, partilham alguns objetivos
semelhantes: a luta para superar a distância entre especialistas e os leigos; os intelectuais e as
massas e as formas mental e física de atividade. Estes são aspectos comuns tanto à abordagem
fenomenológica quanto à marxista. A idéia de que somos todos filósofos e intelectuais é também
uma noção marxista exposta na obra de Gramsci, bem como a noção de desreificação prática
(Sarup, 1978).
Tendo como seus principais representantes Michael Young, Basil Bernstein, G. Esland, N.
Keddie, a NSE entende que os saberes escolares são selecionados e distribuídos segundo
modalidades que deverão ser analisadas, apontando para sua desreificação. É um convite para
uma contínua elaboração de uma sociologia crítica dos saberes escolares e do currículo.
A.Coulon (1995) ressalta que uma das características marcantes da NSE é, com efeito, sua
vontade de analisar os processos escolares internos, dependentes das interações dos atores do
próprio interior do sistema escolar. Segundo Coulon, esta posição de pesquisa permite descobrir,
por exemplo, que os professores desempenham um papel mais importante do que, habitualmente,
lhes é reconhecido nos mecanismos de seleção e exclusão. Neste aspecto, o ator pedagógico
passa a ser quem julga e tem um papel instituinte na estruturação do contexto educacional.
Uma crítica da crítica pode ser vislumbrada também, a partir deste encontro, como por exemplo,
a desconstrução do que veio de um marxismo mecanicista, como o culto ao intelectual
messiânico, a uma dialética fortemente teleológica, a história logicamente previsível, onde a
dialogicidade, as interações, os assincronismos, a cotidianidade, pouco têm a dizer, e portanto,
não figuram como entidades do mundo dos humanos em sociedade.
Em Adorno, por exemplo, a razão instrumental é identificada com o positivismo defendido pelas
elaborações de Popper e o círculo de Viena, do qual faz parte o primeiro Wittgenstein. Sem
negar a competência intelectual destes opositores, Adorno salienta que a utilização da razão
instrumental pelo positivismo moderno gera, necessariamente, sua contestação, podendo levar à
sua autodestruição, na medida em que o positivismo não permite questionar as bases nas quais
funda-se sua lógica, achando nesta possibilidade um exercício de pura metafísica. Ao naturalizar
os processos sociais iníquos da sociedade capitalista, a produção científica advinda do
positivismo moderno não se percebe como saber interessado que tem uma moral e implicações
políticas e econômicas.
Ao analisar a dialética adorniana, Freitag (1986) assinala que o conceito de teoria, ao remeter a
um futuro melhor, remete, automaticamente, à dimensão da prática. Entretanto, a prática
positivista se reduz à prática do cientista limitado explicitamente à sua área de especialização. Da
mesma forma nos diz Freitag no que concerne ao conceito de crítica. Enquanto a crítica significa,
para Popper, a falsificação de uma hipótese dada, através de dados empíricos que demonstram o
contrário ou devido à descoberta de erros lógicos no processo dedutivo, a crítica significa, para
Adorno e os teóricos frankfurtianos, a aceitação da contradição e o trabalho permanente da
negatividade, presentes em qualquer processo de conhecimento.
Inspirados na afirmação de Nietzsche, de que "não é a vitória da ciência que é a marca distintiva
do século dezenove, mas a vitória do método científico sobre a ciência", os teóricos de Frankfurt
dizem que a supressão da ética na racionalidade positivista elimina a possibilidade de autocrítica,
ou, mais especificamente, de questionamento de sua própria estrutura normativa. "Os fatos ficam
separados dos valores, a objetividade solapa a crítica, e a noção de que a essência e a
aparência podem não coincidir se perde na visão positivista de mundo" (Giroux, 1986). Há,
neste ethos, uma celebração do mundo dos fatos e um culto à coleta e classificação de "dados".
Categorias históricas fundamentais para as ciências antropossociais como consciência,
autoconsciência, subjetividade e objetividade, aparência e essência, contradição, são
negligenciadas e vistas como epifenômenos.
É meu objetivo, nesta elaboração, refletir a Escola de Frankfurt, mostrando sua pertinência
teórica para uma prática em etnopesquisa crítica. A partir deste aspecto, faz-se necessário
enfatizar a importância do chamado terceiro momento da elaboração do pensamento desta
"Escola", naquilo que foi a edificação teórica da ação comunicativa em Habermas.
Não permanecendo apenas nos âmbitos de uma teoria crítica da racionalidade instrumental,
Habermas cessa sua identificação plena com as posições de Adorno e Horkheimer, partindo para
a construção de uma teoria da sociedade como alternativa à teoria sistêmica.
Habermas cria em sua teoria da ação comunicativa a elaboração de um novo conceito de razão,
que nada tem em comum com a visão instrumental, mas que também transcende a visão
kantiana, de certa forma assimilada por Horkheimer e Adorno, ou seja, de uma razão subjetiva e
autônoma. Ao contrário, a razão comunicativa se constitui socialmente nas interações
espontâneas, na intersubjetividade, adquirindo maior rigor no que Habermas denomina de
discurso.
Desta forma, na ação comunicativa o interlocutor suscita uma pretensão de validade quando se
refere a fatos, normas e vivências, e existe uma expectativa que seu interlocutor possa, se assim o
quiser, contestar essa pretensão de validade de uma maneira fundada (Freitag, 1986).
Freitag sintetiza esta elaboração dizendo que "esta visão de dentro da sociedade permite
compreendê-la a partir do cotidiano de seus atores, de suas vivências e experiências
partilhadas" (Freitag, 1986:61).
Quanto à objetividade das relações sociais, obtém-se quando o compartilhar relacional dos atores
sociais chega a vivências comuns que constituem sua memória e suas histórias coletivas. A
objetividade seria uma construção a partir de um coletivo social.
Vê-se, portanto, que em Habermas, como em Marx, uma ressignificação crítica da razão, e um
apontar dialético para uma nova racionalidade.
Já como uma ponte para o nosso próximo capítulo, podemos notar que a pluralidade teórico-
metodológica, que arquitetam os mentores do acionalismo interpretacionista, presenteia a tantos
quantos queiram entrar no âmago das problemáticas educacionais, com um instrumento prenhe
de possibilidades, para ir ao encontro compreensivamente de construções encarnadas. A
indicação irremediável de ir a campo para presenciar e captar os significados das práticas, as
recomendações insistentes de se mergulhar nas interações, emergindo com a noção de mundo
construído, de construções intersubjetivas, o entendimento de que a ordem social não pode ser
constituída senão por sujeitos/atores concretos, dotados de uma inteligibilidade culturalmente
mediada, mobilizam para o processo de conhecimento das realidades educacionais uma
démarche científica que entendo ser a possibilidade única de um verdadeiro encontro com as
artes, as obras e os universos simbólicos nelas imbricados, e que, cotidianamente, edificam-se
nos âmbitos das realizações educacionais. Compõem este corpus teórico-epistemológico
fundamentos de recursos pertinentes para entrar num mundo e numa vida que muito se sabe, mas
pouco se conhece. Em termos investigativos, foram tocados, na maioria das vezes, por
epistemologias e metodologias que os abordaram de forma en passant, face ao domínio histórico,
nos meios acadêmicos, da inspiração macroestrutural e tecno-funcionalista, fascinados pelos
grandes estudos nomotéticos e normativos. As abordagens acionalistas vêm, em realidade,
neutralizar o beijo da morte plantado pelas práticas de pesquisa academicistas em relação às
construções vitais do dia-a-dia. Ao ausentar-se da vida escolar, as ciências da educação
construíram uma amnésia onde a escola foi subsumida num estruturalismo sem alma e
imobilizador, retirando da cena educacional, de uma forma abstrata, aqueles que autenticamente
arquitetam e edificam o fenômeno educacional e, portanto, a própria instituição escolar.
Capítulo III - Métodos em etnopesquisa
Na ausência do outro, o homem não se constrói homem.
Vygotsky
Os pesquisadores são seres humanos que estudam problemas humanos de maneira humana.
Rodwell
Concordando com Cicourel, uma das primeiras tarefas do cientista social é clarificar o conteúdo
de sua linguagem dissertativa e explicar a teoria que dá feição e dinamiza seus instrumentos e os
chamados dados da sua pesquisa, fazendo uma espécie de desnudamento das inspirações que
orienta suas ações de pesquisador.
No que se refere aos recursos metodológicos aqui referidos, à medida em que minhas
inquietações com relação às produções teóricas que discorriam sobre a questão educacional
foram surgindo, bem como com relação à minha própria prática, inquietações emergiram da
necessidade de busca que tinha de respostas às minhas próprias indagações: qual a abordagem
mais conseqüente para minhas inspirações e práticas em emergência? Qual a maneira mais
pertinente de captar as realidades educacionais que desafiava-me enquanto necessidade de
compreensão?
Queria um instrumental que, sem perder de vista as perspectivas dos indivíduos em atividade,
mediasse a apreensão desse âmbito também em relação ao contexto simbólico/ institucional e
cultural por eles construídos. Um dos pressupostos básicos que veio nortear esta minha
caminhada é que uma ciência empírica pressupõe a existência de um mundo empírico disponível
para observação, estudo e análise. Este mundo empírico deve representar sempre o ponto central
de preocupação do pesquisador, o ponto de partida e o ponto de chegada da ciência empírica.
Entretanto, é necessário que não se confunda esta posição com outras de corte positivista. Ao
contrário delas, esta postura se aproxima e aceita um dos postulados fenomenológicos de que o
mundo da realidade existe somente na experiência humana e que ele aparece sob a forma de
como os seres humanos vêem este mundo.
Segundo esta forma de compreender a pesquisa, a tarefa do estudo científico deve, acima de
tudo, levantar compreensivamente o véu que cobre a área ou a vida das pessoas e dos grupos que
alguém se propõe a estudar. Isto só pode ser efetuado mediante uma aproximação com a área, e
de uma escavação profunda através de um estudo cuidadoso (Haguette, 1987). A propósito,
Blumer(1969) reforçou esta posição indagando como pode alguém aproximar-se da área e
escavá-la. Não é uma questão simples a de aproximar-se de determinada área e olhar para ela,
ressalta o autor:
É um trabalho exaustivo que requer uma ordem elevada de tentativa cuidadosa e honesta;
imaginação criativa e disciplinada; recursos e flexibilidade no estudo; uma ponderação de
resultados e uma constante disposição para testar e reorganizar as visões e imagens da área.
Podemos afirmar, com Blumer, que os métodos, em etnopesquisa, lutam pelo respeito à natureza
do mundo empírico habitado por homens, e pela organização de procedimentos metodológicos
que reflitam este respeito ou mesmo esta sensibilidade.
tem o contexto como sua fonte direta de dados e o pesquisador como seu principal
instrumentos; supõe o contato direto de pesquisador como seu principal instrumento; supõe
o contato direto do pesquisador com o ambiente e a situação que está sendo investigada; os
dados da realidade são predominantemente descritivos, e aspectos supostamente banais em
termos de status de dados são significativamente valorizados.
Praticando uma ciência social dos fatos miúdos e muitas vezes obscuros do dia-a-dia, a descrição
etnográfica(a escrita da cultura), não consiste somente em ver, mas fazer ver, isto é, escrever o
que se vê, procedendo à transformação do olhar em linguagem, exigindo-se uma interrogação
sobre a relação entre o visível e o dizível ou, mais exatamente, entre o visível e o
lizível(Laplatine, 1996). O pesquisador etno é uma pessoa que chega totalizado e totalizando-se
para realizar seu fieldwork; não deixa em seu bureau suas convicções, sua itinerância, como
estudioso de fenômenos humanos, bem como defronta-se arduamente enquanto sujeito/pessoa
com suas próprias observações, pondo em evidência suas implicações, consubstanciadas nas suas
motivações, perspectivas e finalidades. Compreende que para suspender preconceitos é
necessário tê-los explícitos.
Assim, a ciência social requer sempre arte na observação e análise, e a observação de campo é
mais que uma etapa preparatória para as grandes pesquisas estatísticas. Constitui-se, na realidade,
como quer Junker, uma parte introdutória à ciência social. Junker entende que é...
Aqui, a informação é o registro da vida ao vivo, que, entre alguns pesquisadores de campo, por
vezes é descuidadosamente denominada de "dados crus".
Para Junker, os dados são elementos sistematicamente traduzidos e servem para se acessar as
raízes do conhecimento nas ciências sociais.
Atender a um ritmo determinado por um prazo acadêmico nem sempre é compatível com os
adiamentos constantes de um encontro marcado com um líder comunitário, que no limite das
suas atribuições, está mergulhado em compromissos tão importantes quanto urgentes. Tão pouco
com a falta de tempo de uma professora comunitária da favela, que entre aulas e tarefas de
planejamento escolar, tem que correr para casa para verificar se seu filho recém-nascido está
bem, ou se o outro, em idade de conquista de espaços, não caiu morro abaixo ou dentro do
mangue com maré cheia. Na realidade, o trabalho de campo de inspiração qualitativa é uma certa
aventura pensada sempre em projeto, e que demanda constantes retomadas. Não lida com objetos
lapidados nem com a procura de regularidades.
A depender dos objetivos e do relacionamento previsto do pesquisador com aqueles com quem
ele trabalha, o método de campo requer um grande dispêndio de tempo para aproximar-se
daqueles para quem podemos não ser familiares. Assegurar e manter as relações com pessoas
com quem temos uma pequena afinidade pessoal, fazer copiosas notas daquilo que normalmente
parecem ser acontecimentos mundanos do cotidiano, incorrer às vezes em certos riscos pessoais
no trabalho de campo e, ainda, se isto não for suficiente, semanas e meses de análises que se
seguem ao trabalho de campo, é, na realidade, a rotina do etnopesquisador. Para autores como
May(1993), entretanto, pesquisadores que estão preparados e dispostos a viver esta aventura
pensada podem verificar que este é um método que mais recompensa, ao produzir fascinantes
insights nas vidas e nas relações sociais das pessoas e, muitas vezes, contribui para preencher as
lacunas entre a compreensão das pessoas sobre estilos alternativos de vida e os preconceitos que
a diferença e a diversidade encontram.
Nos estudos de campo, os fatores não-oficiais assumem grande importância, ao contrário das
pesquisas que valorizam os dados substantivos. Neste sentido, para se obter dados que
caracterizam a complexidade dos grupos, organizações e instituições em educação, por exemplo,
as informações não-oficiais terão grande importância. Elas facilitam o entendimento real dos
procedimentos burocráticos quase sempre reificados, bem como questões como a posição do
observador em relação aos atores a serem estudados; os meios de acesso e como ele afetará suas
relações com os sujeitos; como se realizou o contato inicial. Estas são situações cruciais para o
entendimento das conclusões do estudo.
Desta forma, se é correto supor que as pessoas, na sua vida cotidiana, ordenam seu meio,
atribuem significados e relevância a objetos, fundamentam suas ações sociais em racionalidades
do senso-comum, não se pode fazer pesquisa de campo ou usar qualquer outro método de
pesquisa nas ciências antropossociais sem levar em consideração o princípio da interpretação
contextualizada. Em realidade, as pesquisas de campo de inspiração qualitativa desempenham
uma verdadeira " garimpagem" de expressões e sentidos, e estão interessadas, acima de tudo,
com o vivido daqueles que os instituem.
Uma vez que o projeto de uma etnopesquisa esteja pronto e socializado o suficiente- muitas
vezes já no meio social onde se realizará o estudo- faz-se necessário ter acesso ao campo
propriamente dito. Este é um momento ao qual poucos se detêm como deveriam, enquanto
reflexão metodológica. A fecundidade dos resultados de uma etnopesquisa vai depender e muito
do tipo de acesso conquistado. É fundamental a disponibilidade das pessoas para informar,
deixar-se observar, participar ativamente da pesquisa, e até mesmo para co-construir o estudo
como um todo.
Sabemos, a partir da idéia simples, mas significativa, que a realização de um estudo em
etnopesquisa dos meios educacionais necessita do acesso minucioso e denso no meio social
escolar e seus atores, assim como do acesso à cotidianidade natural das situações onde se dá a
prática pedagógica.
Há que se construir uma confiança recíproca, pouco importando o quanto o pesquisador seja
familiar ou não em relação aos sujeitos do estudo. É necessário estabelecer claramente, desde o
início, que a pesquisa visa compreender a situação como ela se apresenta, e que as pessoas
jamais serão incomodadas ou prejudicadas nos seus afazeres e relações, exceto se houver uma
demanda vinda dos membros do grupo envolvido na pesquisa.
Mesmo com o processo de confiança construído, isto não exime o pesquisador de ser tentado ou
seduzido pelos diversos interesses ideológicos e de toda ordem, que permeiam as instituições e
relações educativas. Saber transitar enquanto pesquisador interessado em ouvir entre estas
seduções é uma sabedoria necessária para que "as portas não se tranquem" definitivamente, por
rejeições ou transferências nada desejáveis para um etnopesquisador dos meios educacionais.
Parece-nos importante salientar que antes mesmo do acesso ao campo de pesquisa, é necessário
se construir vínculos com pessoas capazes de mediar encontros, viabilizar o acesso, assim como
trabalhar os possíveis choques culturais que poderão existir nos primeiros contatos. Informar-se
em detalhe sobre o contexto da pesquisa nunca é uma recomendação insignificante no que se
refere à construção de uma etnopesquisa.
Numa das últimas pesquisas que realizei, o acesso foi construído via as lideranças da instituição
pesquisada (sem com isso firmar quaisquer compromissos ideológicos com pessoas específicas),
assim como a estada em campo ficou condicionada a uma contra-partida de trabalho efetivo
numa área de necessidade comunitária, durante todo o tempo que eu permaneci pesquisando.
Sensibilidade cultural, franqueza e compromisso ético são ingredientes fundamentais para o
saber chegar e o saber sair numa pesquisa de campo.
Assim, o estudo de caso tem por preocupação principal compreender uma instância singular,
especial. O objeto estudado é tratado como único, ideográfico(especial, singular) mesmo
compreendendo-o enquanto emergência molar e relacional, isto é, consubstancia-se numa
totalidade composta de, e que compõe outros âmbitos ou realidades. Desse modo, a questão
sobre o caso ser ou não típico, isto é, empiricamente representativo de uma população
determinada torna-se inadequado; o objeto não é recortado por uma amostragem com
preocupações nomotéticas, já que cada caso é tratado como tendo um valor próprio. Além disso,
em face da inerente flexibilidade dos estudos pontuais, da abertura que cultiva face ao inusitado,
os casos estudados vão constituir teorias em ato, impregnadas dos aspectos inerentes à
temporalidade da emergência complexa das "realidades vivas".
Faz-se necessário ressaltar que em muitas etnopesquisas onde mais de uma realidade é estudada
pontualmente, lança-se mão do denominado estudo sobre casos ou multicaso. Preocupados em
resguardar a natureza ideográfica e relacional destes estudos, evita-se a mera comparação,
construindo-se, por outro lado, relações contrastantes e totalizações onde o movimento é a
principal característica.
Faz-se necessário frisar, ainda, que o processo de observação não se consubstancia num ato
mecânico de registro. Apesar da especificidade da função do pesquisador que observa, ele está
inserido num processo de interação e de atribuição de sentidos. Goffman(1983) nos diz que
quando um indivíduo chega à presença de outros, estes, geralmente, procuram obter informações
a seu respeito ou trazem à baila as que já possuem. É com base nas evidências apreendidas que
começa o processo de definição da situação e o planejamento das linhas de ação. À medida que a
interação progride, ocorrerão, sem dúvida, acréscimos e modificações no estado inicial das
informações.
No que se refere aos períodos de participação, em algumas pesquisas pode ser interessante haver
diversos períodos curtos de observação para verificar mudanças havidas num determinado
programa ou no seu dinamismo ao longo do tempo. Em outros estudos, pode ser mais adequado
concentrar as observações em determinados momentos, digamos no início ou no final de cada
período ou sub-período escolar. Um exemplo interessante é o estudo de S. Ball "Initial
Encounters in the Classroom and Process of Establishment", citado por Coulon(1993), quando o
autor demonstra que seu objeto de investigação dependeu muito do período escolar onde as
observações se deram.
Em geral, o processo de registro dos dados é visto como maçante, entretanto, para Lofland e
Lofland(1984), se falta ao pesquisador um laço emocional em relação à pesquisa, a qualidade do
projeto(e mesmo sua conclusão) pode estar arriscada. Para estes autores, isto não está assegurado
somente pelo comprometimento, mas também pela qualidade das observações do pesquisador,
das notas de campo e das habilidades analíticas.
As notas de observação
No que se refere às notas de campo, muitos pesquisadores preferem, além de utilizar pequenos
blocos de notas, usar folhas pautadas com largas margens dos lados para suas anotações. Tais
margens permitem que sejam destacadas observações particulares sobre aquilo que seja de
interesse, escrever notas analíticas, ou anotações para o próprio pesquisador sobre um evento ou
relação que se quer investigar com mais profundidade, ou, ainda, outras leituras sobre o tema que
tenha sido observado, ou que tenha surgido de suas observações.
Para Lofland & Lofland(1984), uma anotação particular e um sistema de arquivo para as notas
são importantes. Por exemplo: palavras-chave para despertar a memória; marcas diferentes para
citações, indicando citações textuais ou parafraseadas; tópicos e eventos em arquivos individuais;
tópicos teóricos para o próprio pesquisador, além de qualquer dado suplementar, na forma de
documento, literatura ou pesquisas sobre o assunto.
Bruyn(1966) denomina de "adequação subjetiva" o método pelo qual o pesquisador avança sua
compreensão das anotações realizadas durante a observação, bem como para validar a pesquisa.
Para isso, apresenta seis indicadores para se alcançar esta "adequação".
O tempo seria o primeiro indicador. Assim, quanto mais tempo o observador despender com o
grupo, maior será a adequação alcançada. É o tempo que vai dizer sobre o quão profundamente,
por exemplo, as pessoas se sentem a respeito de certos assuntos. É o tempo que vai dizer sobre o
quanto, em uma cultura, é preciso para que uma influência de fora se torne parte significativa das
vidas das pessoas etc. Um outro indicador é o lugar. No lugar, atualizam-se as ações, dá-se o
pulsar cotidiano da vida das pessoas que edificam as práticas.
E, finalmente, tem-se o que Bruyn chama de consenso social. Uma espécie de pattern que o
pesquisador extrai a partir dos sentidos que permeiam e perpassam as práticas dentro da cultura.
Esta habilidade é ajudada por se estar por um bom tempo exposto à cultura, anotando, sob
condições as mais diversas. Como nos indica Hughes, os etnopesquisadores atingem a
compreensão quando eles conhecem as regras da cena social e como são construídas e mantidas.
Chega-se, assim, por um processo interpretativo, à natureza da ordem social estabelecida, e
estabelecendo-se.
É importante reafirmar que em todo este processo impõe-se uma constante reflexão sobre os
caminhos e os resultados obtidos durante a investigação. Neste sentido, a disponibilidade para a
retomada é uma regle d'or das observações em etnopesquisa.
Neste veio, o campo da subjetividade na ciência não pode ser considerado um mero
epifenômeno, tampouco o das ideologias são, em todos os momentos da produção científica,
produtores de critérios determinantes dos resultados alcançados. É aqui que o distanciamento
arbitrário entre sujeito e objeto representou um verdadeiro processo político de apartheid na
história do conhecimento científico. Neste sentido, o envolvimento deliberado do investigador na
situação da pesquisa é não só desejável, mas essencial, por ser esta forma a mais congruente com
os pressupostos da OP. Entretanto, esta posição não pode ser unilateral, a população pesquisada
tem que se envolver na pesquisa, de forma que pesquisadores e pesquisados formem um corpus
interessado na busca do conhecimento: o conhecimento é gerado na prática participativa que a
interação possibilita. Trata-se de um processo mutuamente educativo pela pesquisa, na medida
em que o saber do sensocomum e o saber científico se articulam na busca da pertinência
científica e da relevância social do conhecimento produzido. Assim, a OP torna-se um
instrumento significativo para se realizar a transformação do modelo de submissão da ciência aos
diversos domínios iníquos, a quem há muito vem servindo.
Os pressupostos da OP asseguram que a ciência social não é detentora de valores absolutos por
ser produzida por homens situados historicamente. Desta perspectiva, seus postulados são tão
dinâmicos quanto a própria realidade mutante que ele estuda e explicita, isto é: que os cânones
do método científico formal – neutralidade, objetividade, validade, confiabilidade, poder de
generalização, comprovação, refutação etc. – não são necessários nem suficientes para definir a
cientificidade do método. Assim é que praticantes da OP argumentam que a linha demarcatória
entre ela e a pesquisa formal não está nem na capacidade de produzir mudanças, nem na
capacidade de produzir conhecimentos, mas na capacidade de solucionar problemas de grupos
sociais com demandas sociais relevantes.
No que se refere à própria noção de participação, três elementos constitutivos brotam como
fundamentais: o processo de investigação, de educação e de ação(Haguette, 1987). Permeia aí a
idéia de que a separação entre sujeito e objeto da pesquisa, cultivado pelos paradigmas
normativos, não é exercitada, uma vez que a distância entre os dois é vista como prejudicial à
própria geração de conhecimento. A intervenção do pesquisador no meio é condição também
irremediável do conhecimento, assim como a visão da população sobre a própria pesquisa. Desta
forma, a participação é uma ação reflexiva conjunta que, ademais, na OP da pesquisa-ação,
transforma-se também num processo orgânico de mudança, cujos protagonistas são os
pesquisadores e a população interessada na mudança. Isto implica também numa verdadeira
prática multirreferencial em ciências antropossociais, na qual a sociologia, a psicologia, a
história, a antropologia, a economia e a geografia se articulam na ação do pesquisador.
É bom que se diga que, ao fazer etnopesquisa, o engajamento é usado e compreendido como uma
vantagem. É com Hammersley e Atkinson(1983) que fica afirmado o fato de que se tornar parte
do mundo social que estudamos não é uma matéria de compromisso metodológico, é um fato
existencial. É neste veio que etnopesquisadores têm esboçado, freqüentemente, suas próprias
biografias no próprio processo de pesquisa(Macedo, 1984; 1995). Aqui, o próprio equipamento
cultural é utilizado de forma reflexiva para compreender a ação social em seu contexto. Por
conseguinte, Hammersley e Atkinson(1983) enfatizam o fato de que em vez de nos
empreendermos em tentativas de eliminar os efeitos do pesquisador, deveríamos começar por
compreendê-los.
No que se refere à prática da OP enquanto tecnologia de pesquisa, é a partir dos estudos de Adler
e Adler que observa-se a distinção de três tipos de implicação em relação ao campo de pesquisa.
Para estes autores, emergem da prática de OP a participação periférica, a participação ativa e a
participação completa. Vê-se que esta tipologia constitui uma síntese entre os estudos sociais de
Chicago de uma parte, e orientações mais recentes saídas das sociologias ditas californianas: a
sociologia existencial e a etnometodologia, de outra.
O caráter "periférico" desse primeiro tipo de implicação encontra sua origem, muitas vezes,
numa escolha de ordem epistemológica: alguns pesquisadores estimam que uma implicação mais
intensa tende a bloquear o distanciamento necessário à possibilidade de análise.
Uma outra fonte de implicação periférica dá-se pelo fato de que o pesquisador não deseja
participar de certas atividades do grupo estudado, como, por exemplo, atividades de grupos de
delinqüentes.
Outros, por questões-limite como a pertença a segmentos de idade, sexo, etnia, religião, classe
social etc, preferem não participar das atividades centrais dos grupos estudados. Intervêm às
vezes problemas relativos a sistemas de valores antagônicos ou mesmo rivais. Peskin(1984), por
exemplo, ao estudar um grupo cristão fundamentalista, limitou-se a participar de atividades não
centrais em face da sua religião e de suas origens judaicas. Alguns grupos delinqüentes podem
identificar psicólogos, sociólogos, educadores, como inimigos, barrando por completo o acesso
às suas práticas. Em alguns casos, estudantes elegem o grupo de professores como uma cultura
hostil, privando os professores de qualquer possibilidade de estudo sobre seus problemas ou
questões escolares.
Durante meus estudos de doutorado, tive a oportunidade de vivenciar este tipo de observação
participante, quando ao chegar a uma escola comunitária de subúrbio para realizar minha
pesquisa, fiquei durante um ano atuando como orientador psicopedagógico e consultor
pedagógico da instituição, a partir da negociação de acesso à escola com líderes comunitários e
pedagógicos. Tal condição facilitou ao extremo a compreensão das atividades cotidianas da
escola, mesmo não sendo um membro originário da comunidade.
Quanto à observação participante completa (OPC), pode se dar enquanto pertencimento original
e por conversão. No primeiro caso, o pesquisador emerge dos próprios quadros da instituição e
dos segmentos da comunidade, recebendo destes a autorização para realizar estudos em que a
realidade comum é o próprio objeto de pesquisa. Na participação que implica em conversão, o
pesquisador é originalmente de fora da situação pesquisada. Adler e Adler fazem referência a
Carlos Castanheda que seguindo as orientações etnometodológicas de Garfinkel, deixa-se
converter por um pajé yaqui, bem como Benetta Jules-Rosette, também orientada por Garfinkel,
ao estudar os Bapostolos da África, vive intensamente sua religiosidade para compreendê-la.
Tornar-se membro, no sentido etnometodológico, é o objetivo primeiro, isto é, apropriar-se e
viver profundamente o mundo da "linguagem natural" dos sujeitos do contexto original.
Uma das questões cruciais inerentes às pesquisas participantes é o acesso ao campo de pesquisa.
Faz-se necessário um trabalho hábil, honesto e franco de persuasão e de relação de confiança
onde, em geral, problemas éticos estão envolvidos e deverão, com cuidado, ser abordados por
pesquisadores e pesquisados. Conflitos institucionais em geral estão presentes, seduções
acontecem no dia-a-dia, manipulações por grupos rivais da instituição podem ocorrer. Neste
sentido, o pesquisador deve preparar-se para entender e tolerar com sensibilidade as naturais
resistências das realidades humanas ao conhecimento científico. Seus paradoxos, suas
contradições e ambivalências fazem parte, enfim, da especificidade do que é humano; é realidade
integrante e importante da pesquisa.
Por outro lado, a natural flexibilidade no campo da observação na etnopesquisa dá ao
pesquisador um meio efetivo de abordar, de uma forma um tanto quanto tranqüila, a
dinamicidade das realidades humanas. O trabalho de campo assume, em geral, um contínuo
processo de reflexão e mudança de foco de observação, o que permite ao pesquisador
testemunhar as ações das pessoas em diferentes cenários. Tal flexibilidade permite, ademais, que
objetivos, questões e recursos metodológicos sejam retomados, assim como as articulações com
a teoria, dependendo da dinamicidade e das orientações que surgem do movimento natural da
realidade investigada. Assim, a flexibilidade no ato de pesquisar é uma das condições para a
autenticidade e o sucesso de uma pesquisa, onde a observação participante seja um recurso
significativo.
No domínio das ciências antropossociais, a produção do saber exige que o pesquisador elabore
um trabalho de elucidação da sua relação com seu objeto de pesquisa. Aqui reside uma das
características da revolução epistemológica que instaura uma nova relação entre o pesquisador e
o processo de construção objetal. Uma nova subjetividade na produção do conhecimento, diria.
A implicação sempre foi repudiada pelo espírito científico como um resíduo da subjetividade,
contrariando um ideal de objetividade, vista sempre como um parasita a ser eliminado na medida
do possível. A implicação sempre foi um desconforto presente no exercício da racionalidade
científica de inspiração objetivista. Diferentemente desta visão formalista, em alguns âmbitos
ditos pós-formais, os processos implicacionais, ao invés de serem expurgados, são reconhecidos
como conteúdo e fonte de análises significativas, porquanto "dado" integrante e constitutivo dos
fenômenos humanos, objeto desejável de análise face à intensidade existencial que traz para a
análise do conhecimento. A implicação constitui, assim, um modo especial de conhecimento,
onde ela própria se torna parte integrante.
Um dos pontos importantes da implicação reside na ruptura que estabelece com a concepção
positivista de pesquisa, que não avalia a subjetividade enquanto elemento constitutivo do objeto
pesquisado. Assim, a análise das implicações corresponde a um esforço de elucidação das
condições de produção, dos mecanismos, dos procedimentos, dos objetivos e das finalidades.
Aqui, a pesquisa não se pretende um fruto de um observador fechado, mas um co-produto no
qual o observado participa ativamente. Neste veio, a conseqüência é o aparecimento no mundo
das implicações objetais de uma implicação metodológica, literária, pedagógica, institucional,
libidinal etc. Para R. Barbier(1977), a implicação se dá em três níveis: o nível psicoafetivo,
histórico-existencial e estruturo-profissional. Em meio às pesquisas onde a observação é
fundamental, estes três níveis se interpenetram e agem um sobre o outro. Barbier percebe a
implicação como um engajamento pessoal e coletivo do pesquisador na e pela práxis científica,
em função de sua história familiar e libidinal, de suas posições passadas e atuais na relação de
produção e de seu projeto sócio-político. Portanto, um elemento constitutivo do processo de
conhecimento.
Escreve Morin(1991) que isto que nós sabemos do mundo não é o objeto subtraído de nós, mas o
objeto visto e observado, co-produto para nós. Para Morin, nosso mundo faz parte de nossa visão
de mundo, a qual faz parte de nosso mundo. Isto é, que o conhecimento, por mais físico que seja,
não pode ser dissociado de um sujeito conhecedor, enraizado numa cultura e numa história. O
processo implicacional seria, portanto, uma realidade incontornável, por mais positivista e
estrutural que seja a análise.
Em conseqüência destas posições, vários epistemólogos críticos nos mostram que a distinção
entre contexto de justificativa e contexto de descoberta deve ser abandonada: o que há, segundo
tais visões, é imbricação, implicação entre o que se passa quando do processo de pesquisa e o
que se passa quando da construção dos resultados.
É interessante pontuar, entretanto, que faz-se necessário evitar, por um esforço de rigor
científico, por uma certa vigilância epistemológica, a fusão indistinta e permanente do sujeito e
do objeto, dificultando o próprio exercício da produção do conhecimento específico. Por uma
fusão amalgamada, submete-se o objeto construído a um esquecido epistemológico
subordinando-o a uma mera vivência não-analítica, não-hermenêutica, muito próximo do
fenômeno no qual estudiosos da cultura e da sociedade, ao não conseguirem elaborar o processo
científico de interpretação e objetivação, transformam-se, simplesmente, em "nativos", ocupados
apenas com a contemplação e a vida cotidiana, ou, como alguns adeptos, um tanto quanto
desvairados da pesquisa-ação, que terminam por transformá-la em pura militância
modificacionista.
Em realidade, a implicação é também formação em ato, e integra um campo onde com ela deve-
se não perder a dialética aproximação/distanciamento enquanto condição necessária à
cientificidade seminal. Neste sentido, o distanciamento enquanto um dos pólos do movimento de
entrada e saída do objeto é um momento importante para a construção do conhecimento em
ciência. Há um momento onde certa "descontextualização" do objeto faz-se necessária para que o
texto científico possa brotar. Por outro lado, faz-se necessário reafirmar que em qualquer ato
criativo, produto incontornável da curiosidade humana, existe uma ordem implícita e uma
política de sentidos que nasce das implicações vitais do criador. Tal "dado" é real tanto quanto o
sujeito sempre o foi. Neste sentido, a observação participante e sua démarche científica vêm
afirmar a inegável verdade de que pesquisador e pesquisados, suas artes e obras existem porque
implicam numa ação de sujeitos, Sapiens Sapiens desejosos, capazes de optar, portanto políticos,
atribuidores de significados, desta forma, seres morais. Por conseqüência, pesquisadores e
pesquisados, todos, são sujeitos que pensam, refletem sobre sujeitos, e é aí que brota a fantástica
e complexa relação de produção do saber das ciências antropossociais e das ciências da
educação. São campos naturalmente resistentes a qualquer simplificação por mais que isto se
justifique em nome dos cânones científicos secularizados.
Implicação e etnopesquisa. Exemplo concreto
Era um dado que eu não conseguia descolar do processo de produção, ao mesmo tempo em que
não entendia porque teria que ser omitido, como era de praxe nas pesquisas normativas.
É a partir desta primeira experiência que pensar o processo implicacional na prática de pesquisa
transformou-se em mim não mais num efeito prático, mas na necessidade também de refleti-lo
enquanto pauta epistemológica e objeto de reflexão em termos de método. Nos meus trabalhos
acadêmicos de mestrado e doutorado, na medida que aprofunda-se verticalmente o olhar em
relação às minhas análises, vê-se claramente se constituindo aquilo que denomino de um analista
por inteiro, portador de uma história, de desejos e formações.
Neste veio, retomo aqui um extrato do meu processo implicacional em relação às minhas
atividades de pesquisador descritas na minha tese de doutorado, como forma de uma
exemplificação formativa neste campo revolucionário e ainda polêmico da construção do
conhecimento acadêmico: a implicação...
O que desejo expor nesse momento teve sua fonte de inspiração na maneira implicada de
lidar entre mim e meu objeto de trabalho e de pesquisa – a criança em escolarização –
transformada agora em assunto desta tese, enquanto um estudo de programas de educação
pré-escolar concretos de uma perspectiva compensatória e comunitária.
É neste momento histórico que uma formação em psicologia edificada num cenário
tecnicista e violento na Universidade de Brasília (meados da década de 70), desnuda-se por
uma reflexão político-epistemológica profunda.
Nesta direção, encontro-me construindo uma noção fundante das minhas concepções e
práticas futuras; o sujeito instituinte, após a desconstrução da concepção fisicalista do
indivíduo desprovido de subjetividade e de sentido, mecânica resultante dos fatores
ambientais; da mesma forma me inquietava a concepção não menos mecânica do homem
enquanto massa amorfa diluída nas formações coletivas...
Foi nesta ambiência que comecei a construir as primeiras reflexões no âmbito do mestrado,
tendo como objeto de estudo a pré-escola pública na sua perspectiva compensatória...
Ao refletir sobre o ato educativo como objeto de pesquisa, S. Mollo-Bouvier(1986) atenta para o
fato de que a educação edifica-se no processo de reconstrução mental do real pelo sujeito,
atividade que é, às vezes, fonte e produto da comunicação. A consideração da representação
assegura a mediação entre as idéias e os âmbitos do implícito, religando-o às condições
psicossociológicas que o formam e o informam. As representações colocam assim, em
comunicação, diferentes códigos, diferentes níveis de comportamento, diferentes grupos,
diferentes instâncias da sociedade. Elas são indissociáveis da linguagem enquanto expressão
local, contextual. Pode-se, assim, explicitar diferenças, mas também filiações entre
representações e práticas a partir da análise dos discursos na e sobre a educação. A linguagem
revela, veicula e cria representações cujas formas e significações estão inseridas no contexto
social de sua produção e de seu uso. A linguagem nasce socialmente com aquilo que ela exprime.
Ela não é nem falsa, nem verdadeira, portanto, constante objeto de análise para o
etnopesquisador. É seu uso social que lhe dará status de verdade ou mentira. Até porque, como
elabora Bakhtin, "cada sentido terá sua festa de ressurreição" (Bakhtin, 1985), e em toda ação
humana existe uma política de sentido. Em educação, certas práticas não são discursos, mas os
discursos sustentam, orientam e justificam a prática. Faz-se necessário frisar, também, que a
prática freqüentemente resulta de uma produção do discurso. Mollo-Bouvier chama à atenção
para o fato de que o discurso constitui ainda, significativamente, parte da atividade do professor
e do aluno.
É necessário pontuar que o primeiro manual de fieldwork elaborado e utilizado pelos sociólogos
de Chicago descrevia conversas espontâneas, como uma das técnicas essenciais da abordagem
antropológica em ciências sociais.
Apesar deste caráter "não diretivo" da entrevista etnográfica, há necessidade que se entenda que
este tipo de recurso metodológico pode parecer não comportar nenhuma espécie de estruturação,
mas, em realidade, o pesquisador deve elaborar uma estratégia pela qual ele conduz sua
entrevista. Assim, a entrevista não-estruturada é flexível, mas também é coordenada, dirigida, e,
em alguns aspectos, controlada pelo pesquisador, porquanto trata-se de um instrumento com um
objetivo visado, projetado, relativamente guiado por uma problemática e por questões de alguma
forma já organizadas na estrutura cognitiva do pesquisador. Neste sentido, recomenda-se a
realização de um roteiro flexível, onde a informação inesperada possa ser incluída.
Não podemos esquecer que a natureza da condução de uma entrevista vai depender muito dos
pressupostos que o pesquisador traz para o ato de pesquisar. Alguns etnopesquisadores
consideram que segundo la règle d'or da observação participante, tornar-se "membro" da
situação que eles estudam seria significativo para uma maior efetividade da entrevista.
Um outro aspecto importante, no sentido de desreificar o momento da entrevista como uma mera
coleta de informações, é que no próprio desenrolar da entrevista podem acontecer redefinições de
identidades tanto do pesquisado quanto do pesquisador, podem haver mudanças de objetivos da
pesquisa e pessoais. Pat Sikes descreveu para Peter Woods o caso de uma professora que teria
mudado sua vida e redefinido sua personalidade, descobrindo em si uma vocação para a pintura,
a partir de entrevistas que possibilitaram uma tal redefinição do seu self. Humphrey, citado por
Lapassade(1991), mostrou como sua vida foi profundamente modificada a partir de entrevistas
com pais bissexuais numa pesquisa universitária.
Uma outra característica marcante da entrevista é que os sujeitos envolvidos na pesquisa podem
ser submetidos a várias entrevistas, não só com o objetivo de se obter mais informações, mas
também como um meio de apreender as variações de uma situação estudada, muito comum nos
meios educacionais.
Após a transcrição das fitas e o registro das notas, pode-se começar o processo propriamente dito
de análise. Outrossim, faz-se necessário salientar que não se pode esperar que num processo de
análise de entrevistas, pretensos conceitos educacionais bem formulados, formas de ação bem
articuladas, purismos teóricos, vão brilhar e saltar aos olhos do pesquisador, como num toque de
mágica do processo de entrevistar. Ao contrário, o esforço hermenêutico é indispensável. A
realidade humana é uma construção de sujeitos, lembremos; uma pesquisa é uma construção do
pesquisador, não podemos esquecer...
Com as transcrições em mãos, dá-se o momento de se elaborar algum senso analítico a partir dos
"dados" coletados. Começa aqui o processo de codificação. Codificar pode ser definido como um
sentido geral de categorizar os dados. Um código é o produto das análises do corpus empírico,
levando em consideração os objetivos da pesquisa, suas questões fundamentais e os interesses
teóricos do pesquisador. Longe de serem noções rígidas, os códigos devem estar disponíveis para
modificações constantes e trocas, dependendo dos dados da entrevista.
Ainda da perspectiva de May(1993), a análise de uma entrevista pode não apenas examinar
motivações e razões, mas procurar verificar estes âmbitos em termos de identidade social, e
como estas identidades e razões se constituem nos cenários sociais investigados.
O que é interessante pontuar é que a análise de entrevistas pode ser um longo processo. Por outro
lado, perseverança, perspicácia teórica, atenção fina ao detalhe e socialização das dificuldades de
interpretação com outros estudiosos da área parecem se constituir em relevantes recursos para se
chegar a bom termo no estudo pela entrevista de uma "dada" realidade. Novamente, aqui, são a
disponibilidade e a competência interpretativa do pesquisador, sua experiência com o método e o
seu objeto, que vão dar o tom principal da fecundidade heurística de uma entrevista.
O questionário aberto
Historicamente, o questionário é um recurso de pesquisa vinculado às pesquisas quantitativas
com claro interesse nomotético, isto é, a partir de um tratamento estatístico das respostas obtidas
numa amostra, generalizar suas conclusões. Por outro lado, na medida em que elaboram-se
questões abertas no questionário e tem-se o cuidado para que estas questões surjam indexalizadas
ao contexto do estudo, o questionário pode ser útil às etnopesquisas, porquanto em alguns
momentos a entrevista em profundidade torna-se um instrumento de difícil realização por vários
motivos, verbi gratia, uma indisponiblidade do informante que, por motivos vários, não pode ou
se recusa a ser entrevistado. Em outros momentos, a aplicação de um questionário se dá porque o
pesquisador está interessado em alguns dados pessoais dos sujeitos que participam da pesquisa,
como nome, data de nascimento, local de moradia, profissão etc.
Recomenda-se que as perguntas dos questionários abertos sejam em pequeno número, até porque
os respondentes terão que argumentar suas respostas, muitas vezes justificá-las, contextualizá-las
e explicitá-las. Ademais, as perguntas elaboradas devem ser claras, precisas, bem próximas ao
contexto de vida do respondente. Devem, assim, apontar para os assuntos nucleares do problema
da pesquisa. Um estudo exploratório antes da realização de um questionário aberto é sempre
recomendável.
a) estudo das perguntas em equipe, depois de detida análise dos objetivos da pesquisa; b)
revisão do questionário aberto por outros especialistas no tema; aplicação do questionário a
uma pequena amostra intencional; formulação definitiva do questionário.
Assim, como em toda orientação em etnopesquisa, o questionário aberto faz parte de ecologia de
recursos de estudo que se retroalimentam, na busca de uma maior riqueza de "dados". Respostas
a um questionário aberto podem levar à necessidade de entrevistas semi-estruturadas,
observações mais minuciosas, filmagens etc. Quanto à análise de um questionário aberto,
seguem-se as mesmas orientações dos outros recursos metodológicos em etnopesquisa. O
tratamento é eminentemente hermenêutico, podendo-se lançar mão de algumas elaborações
quantitativas quando se tratar de expressar "dados" objetivos fornecidos pelo respondente, como
profissão, salário, número de filhos, número de filhos na escola etc. Pode-se tomar como recurso,
também, a classificação de respostas por categorias ou por respondentes, dependendo das
questões e respostas que aparecem. Podem emergir neste processo de tratamento e análise pontos
comuns, conflitos, vazios, que vão dar ao pesquisador significativas informações sobre a situação
analisada.
Faz-se necessário pontuar que, como em qualquer opção por um recurso metodológico em
etnopesquisa, é a situação de pesquisa — a temática, a problemática, o objeto de pesquisa — que
irá orientar a utilização de qualquer técnica.
É no surgimento do que se chama "La Nouvelle Histoire" representada pelas obras de Lucien
Febvre, Marc Bloch, Jacques Le Goff e outros, influenciados pela etnologia de Marcel Mauss,
principalmente, que o documento, em sua especificidade, toma importância enquanto fonte de
dados. Daí a necessidade de se desenvolver análises a partir de textos até então desprezados –
textos que atestam humildes realidades cotidianas – os ditos etnotextos.
Citando Jean-Noel Luc, Eric Plaisance(1993) sugere que o corpus dos textos oficiais é uma fonte
importante para o pesquisador em ciências da educação. Apesar das zonas de sombra
ideológicas, em geral estes documentos oferecem definições significativas sobre políticas
educacionais.
Ademais, os documentos têm a vantagem de ser fontes relativamente estáveis de pesquisa, o que
facilita sobremaneira o trabalho do pesquisador interessado na qualidade das práticas humanas e
com a fugacidade destas.
Na última pesquisa que realizei num programa de educação infantil comunitário, cartazes de
parede foram extremamente importantes para a apreensão da cultura educacional do programa. A
natureza dos chamamentos, das demandas, dos encontros acadêmicos e comunitários, dos ídolos
cultuados, dos avisos para o exercício da religiosidade, dos temas anunciados de seminários, das
problemáticas a serem discutidas, das frases escritas, refletindo questões políticas gerais e do
próprio fazer pedagógico(Macedo, 1995).
Havia, neste contexto, três reivindicações fortes: contra a história antiga, a anterioridade milenar;
contra a história oficial, uma história "vista de baixo"; contra a ficção da objetividade, uma
ciência engajada. Trebitsch(1994) escreve que no cerne do contra-discurso elaborado pela
história oral(HO) no decorrer dos anos 60, há, em primeiro lugar, a vontade de derrubar o
interdito estabelecido pela história crítica do século XIX, que expulsa a tradição oral do campo
científico em proveito de fontes escritas. A HO opõe a esse veto uma dupla questão acerca da
legitimidade e, sobretudo, da anterioridade milenar. Convoca o pai da história, Heródoto, que foi
o primeiro a realizar o seu inquérito, com o olho e o ouvido, com a observação direta e o
testemunho. Em seguida vem Tucídides, com sua técnica de cruzamento dos testemunhos, e
Políbio, com sua crítica dos "ratos de biblioteca".
Da perspectiva desta obra, nos interessa apenas contextualizar este recurso de pesquisa em
ciências sociais como uma preliminar da apresentação de sua potencialidade técnica para a
etnopesquisa, até porque o cenário teórico da HO é vasto e implica em múltiplas apreensões no
campo da historiografia.
Em geral, pode-se dizer que tudo que é oral, gravado e preservado pode ser considerado
conteúdo de uma HO. Neste sentido, os discursos, as conversas telefônicas, as conferências ou
qualquer outro tipo de comunicação humana que pode ser gravada, transcrita e preservada como
fonte primária para o uso futuro da comunidade científica poderia ser denominada de HO. Desta
forma, não se gravam apenas lembranças do passado, mas as reflexões e opiniões daqueles cujas
vidas estão implicadas com alguma atividade ou instituição de interesse do pesquisador. Aqui a
memória assume dinamicidade na interação entre o passado e o presente, fugindo ao aspecto
estático do documento escrito.
Faz-se necessário destacar, tomando aqui uma preocupação mais técnica, que a escolha de um
informante dentro da tradição da HO não pode ser aleatória, ou seja, não pode obedecer aos
parâmetros da amostragem probabilística. Seria extremamente paradoxal com seus pressupostos
e bases epistemológicas. Poderíamos dizer que, neste caso, a "amostra" deverá ser intencional,
partirá da escolha do especialista ou da sugestão dos participantes. Biográfica ou temática, a HO
escolhe seu objeto pelo método de consistência interna obtido via a experiência do pesquisador
e/ou dos participantes de uma prática social qualquer. Para o primeiro caso, incluir-se-ão os
personagens que, ao longo de suas vidas, desempenharam um papel relevante na prática
estudada; no segundo, o nível de implicação não precisa ser tão profundo, apesar da relevância
da vivência comprovada.
Em suma, a HO, enquanto recurso para a etnopesquisa, veio estabelecer-se como uma contra-
instituição metodológica, na medida em que deixou desconfortável a voz da racionalidade
oficial, ao trazer, pelo sentido político da sua emergência, a necessidade de escutar outras vozes,
que compuseram, ao longo da plural e iníqua existência humana, um manancial histórico quase
ou nunca documentado.
Minha vida intelectual é inseparável de minha vida...Não sou daqueles que têm uma
carreira, mas dos que têm uma vida. No entanto, não quis revelar tudo da minha vida, e não
quis revelar o mais íntimo de mim mesmo. Há, seguramente, neste livro, incessantes
evocações de vida, incessantes interferências da alma e da carne. Mas, inevitavelmente,
faltarão nele muita alma e muita carne...Passei ao largo dos amores, ainda que não tenha
podido viver sem amor...Por isso, os amigos aparecerão como figurantes, os amores ficarão
invisíveis, ainda que o amor e a amizade sejam o mais importante da minha vida...
Desta forma, longe de refletir o social de forma mecanicista, o indivíduo o assimila e o acomoda
numa linguagem construcionista, portanto o mediatiza e o retraduz, projetando-o numa dimensão
diferente, a dimensão da subjetividade.
Neste sentido, a história de vida, nada tem a ver com uniformidade e linearidade. Na prática da
história de vida, atores ignorados e/ou excluídos econômica e culturalmente adquirem a
dignidade e sentido de finalidade ao rememorar a própria vida, contribuindo pela valorização da
sua "linha de vida" para a formação de outras gerações. Conseqüentemente, o recurso da história
de vida nos meios educacionais é mais uma contribuição para o rompimento com o baixo
mimetismo cognitivo, o abstracionismo teórico e o colonialismo intelectual que, a serviço de um
saber capturado por uma ética burguesa nomotética, praticaram e praticam uma epistemologia e
uma metodologia excludentes.
O observador que trabalha interessado na "linha de vida" dos atores sociais, ao fazer com que as
pessoas confiem nas lembranças e interpretações, em sua capacidade de colaborar para escrever a
história, possibilita a aquisição de um sentimento de estima e de valor social. Um sentimento de
identidade, de pertencer a um determinado lugar e a uma determinada época, num mundo em que
a desreferencialização é processo que tende a avançar por diversas vias e interesses. Pela própria
história, lança-se vida para dentro da história.
Vida social e a vida dos atores pedagógicos implicados numa prática educacional são os
subsídios da história de vida enquanto recurso metodológico da etnopesquisa crítica nos meios
educacionais. Na sua história de vida, o ator pedagógico vai encarnar reflexivamente um tempo
social conectado a outros tempos sociais, em que ele, o ator pedagógico, é uma das sínteses
possíveis destes tempos, afinal,como nos diz um dos provérbios árabes: "nos parecemos mais
com nosso tempo do que com nossos pais".
É necessário, ainda, que o(s) mediadore(s) conheça(m) seu métier, isto é, que ele formule de uma
maneira pertinente e concisa para o grupo o tema-objeto da pesquisa e suas questões.
É interessante frisar que neste tipo de recurso qualitativo faz-se necessário um certo domínio de
técnicas não diretivas de entrevista, diria mesmo, uma certa atitude que consiste em demonstrar
tolerância às ambigüidades, paradoxos, contradições, insuficiências, impaciências, compulsões,
até mesmo sentimentos de rejeição ao tema tratado ou sua metodologia. Neste sentido, saber
ouvir, interromper, fazer sínteses, reformulações, apelos à participação, apelos a complementos,
à distensão, à maior objetividade, seriam habilidades recomendáveis.
Enfim, o recurso do grupo nominal é um instrumento ideal para a constituição das tipologias
qualitativas em etnopesquisa, outrossim, seu caráter público inibidor recomenda possíveis
aprofundamentos em nível de entrevistas individuais, dependendo da pertinência tomada a partir
da problemática pesquisada. Enquanto técnica eminentemente grupal, o grupo nominal é
extremamente válido para tratar com os objetos da pesquisa em educação, afinal de contas, a
prática pedagógica se realiza enquanto prática grupal em todas as suas nuances.
As técnicas projetivas
Os pesquisadores que elegem como fundamental nos seus estudos a apreensão de sentidos e
significados, isto é, colocam a subjetividade e seu dinamismo como uma especificidade
importante da ação humana, sabem de algumas dificuldades encontradas para a coleta de
informações a partir destes níveis da experiência. Por exemplo, entre as crianças de tenra idade, é
extremamente difícil, em alguns momentos, entrar no mundo de suas significações, face ao
natural adultocentrismo que a comunidade humana cultiva e cultua, levando a uma brutal
opressão e recalque das vivências infantis.
As técnicas projetivas são variadas e comportam numerosas variantes. De uma maneira geral,
uma técnica projetiva utiliza a projeção, isto é, um recurso psicossociológico onde o sujeito
percepciona o meio ambiente e responde-lhe em função de suas vivências, perspectivas, desejos,
ideologias etc. Diz-se, por exemplo, que La Fontaine projetou nos animais das suas Fábulas
sentimentos e raciocínios antropomórficos. Neste sentido, entende-se que um fato psicossocial é
deslocado e localizado no exterior. Desta perspectiva, todo ato de interpretar traz consigo
projeções. Portanto, os métodos projetivos repousam sobre uma concepção da expressão
humana, considerando-se que todas as construções imaginárias e imaginativas dos indivíduos e
dos grupos portam a marca do seu mundo de significação, da sua estrutura afetiva, que da nossa
perspectiva estão sempre indexalizadas na cultura e no tipo de sociedade que habita, mesmo que
não conscientes. Estariam aí representados parte do mundo das opacidades, do sabido não
conhecido, do inconsciente político-cultural, dos arquétipos e do habitus que em muitos
momentos nos orientam num nível de consciência pouco evidente.
Como objetos de projeção podem ser utilizados desenhos dos atores interpretados por eles
próprios, opiniões sobre uma obra de arte representativa de uma problemática local, sobre uma
peça ou performance, sobre uma música, sobre uma oração, sobre um curso, sobre uma poesia ou
qualquer expressão literária. São, em realidade, materiais pertinentes para o etnopesquisador,
interessado que é na densidade simbólica da vida.
Como todo recurso em etnopesquisa, haverá sempre um lugar para a invenção metodológica,
para a capacidade de improvisação e de transformação do plano de pesquisa. Lapassade nos fala
de uma certa bricolage metodológica necessária, porquanto a realidade pede uma constante
abertura ao inusitado, ao imprevisto, aos desvios e "ruídos" inesperados, sem jamais
desvencilhar-se da vigilância que o rigor científico nos recomenda. Valorizar nas ciências
antropossociais e da educação os âmbitos da qualidade, jamais, em hipótese alguma, significa a
banalização irresponsável do labor científico.
Neste tipo de visão de pesquisa, o objeto pode e deve, em muitos momentos, formar e informar o
método, e este, ao abrir-se, apreende um mundo de imagens estruturadas por hábitos, costumes,
tradições, visões de mundo, de extrema importância para uma démarche de pesquisa que não se
contenta com a explicação factual e/ou correlacional.
Na minha pesquisa de doutorado, por exemplo, utilizei o desenho comentado como fator de
projeção dos significados que as crianças atribuíam às suas experiências na escola, uma vez que
percebi uma tendência construída, onde as crianças tendiam a querer, nas suas narrativas diretas,
"agradar" aos adultos, em realidade, por um respeito submisso. Por esta via, foi possível perceber
como um denso imaginário veio à tona, bem como temáticas e problemáticas normalmente
recalcadas, mas vividas e simbolizadas intensamente. Aqui, a expressão, o ponto de vista, é
definido como posição do sujeito em situação, na sua relativa opacidade ontológica, levando em
conta a sua condição de Ser-no-mundo e de Ser-com-o-mundo.
Entra neste exercício hermenêutico o mundo metafórico no qual todos nós estamos imersos, visto
que, em muitos momentos, a metáfora vai nos dizer muito mais que o duro objeto das definições
operacionais cultivadas pelos behavioristas de plantão.
Imagem na etnopesquisa
Em "Fenomenologia do Ato Criador", Aranha(1995) nos diz que
ir às imagens formadas é uma interiorização que, obviamente, desvela novos atos, novas
dimensões de um existir reflexivo. Inspirada em Merleau-Ponty, para esta autora, um ato de
conhecimento visual, por exemplo, é um desvelar da consciência, uma descoberta de um
novo sentido sobre a experiência que foi vivida... desvelamento de novos horizontes que
originam novos sentidos que, então, refundam aquilo que já foi visto ou experienciado.
No que concerne ao conhecimento em nível da criação visual, Aranha argüi sobre a necessidade
de desvelar a consciência fenomenológica, "dirigir o ato à experiência que se alojou como
sentido e que criou o estado de consciência visto, a tensão visual, a imagem".
A dificuldade desta caracterização aponta para a primeira e maior especificidade do texto não-
verbal, porque, por assim dizer, nele não encontramos um signo, mas signos aglomerados sem
convenções: traços, tamanhos, cor, contraste, textura, sons, palavras, ao mesmo tempo juntos e
difusos.
O não-verbal não substitui o verbal, é bom que se diga, mas convive com ele, ou seja, as palavras
ou frases que nele podem aglomerar-se perdem sua hegemonia logocêntrica para apoiar-se ou
compor-se com o visual, sonoro, numa nivelação e transformação de todos os códigos.
Ao incorporar-se à realidade, os textos não-verbais não se impõem à observação, senão por uma
operação mental específica: esta operação é a leitura. Assim, a característica plurissígnica do
texto não-verbal gera sua segunda característica estrutural, ou seja, insere-se no espaço da página
onde é escrito e que, concomitantemente, transforma o próprio espaço em linguagem,
caracterizando-o como manifestação privilegiada do não-verbal.
Ferrara(1998) nos diz que estudar a organização do não-verbal, as mudanças funcionais das suas
articulações, a circulação de seus signos, compreender o papel dos seus usuários ou receptores,
sua relação com o processo institucional ou cultural onde se insere, sua contextualização ou
descontextualização, sua semantização ou ressemantização é, ao mesmo tempo, estudar o espaço
como linguagem, como representação da prática cultural que lhe é inerente. Para este autor,
estudar o espaço como página onde se emite e se recebe um texto não-verbal supõe estudá-lo
como extensão daquela mesma prática representativa, ou seja, nele se escreve a história sucessiva
de um modo de pensar, desejar, desprezar, escolher, relacionar, sentir etc. A percepção da escola
e sua rede de relações, por exemplo, construída através de "fragmentos" da sua imagem, leva os
interessados em sua compreensão à surpresa que rompe com o hábito do uso. Um exemplo
significativo desta constatação foi a experiência estética experimentada pelo artista plástico
Christe, que ao cobrir com extensos tecidos monumentos importantes da história da humanidade
e descobri-los após algum tempo, possibilitou olhares diferenciados face aqueles símbolos
históricos, já um tanto quanto mumificados pelo uso, ou ofuscados pela percepção cotidiana.
Reacendendo significados, este artista revitalizava a história crivada na obra, bem como a
história dos seus autores e dos seus tempos.
O processo de interpretação das imagens construídas pode desenvolver-se a partir das seguintes
perspectivas escolares: características físico-contextuais e estágio atual e sua transformação; a
memória e a história ambiental; o espaço público institucionalizado e espontâneo; a relação entre
espaço público e privado; o ambiente escolar nas suas microlinguagens.
Neste processo, o vídeo flagra a dinamicidade ambiental e serve de elemento de contraste com a
posterior documentação fotográfica. De certa forma, a leitura não-verbal, nos seus limites, obriga
o leitor a retomar a lógica do verbal para operacionalizar-se, embora imponha, como linguagem,
não a hegemonia sígnica, mas o emaranhado de índices-fragmentos. Isto é, o texto não-verbal
opera com resíduos desconexos de múltiplas linguagens, mas sua leitura aprende, com a leitura
do verbal, a necessidade de operar logicamente, daí a necessidade de geometrizar os "resíduos"
sígnicos, compará-los e flagar convergências e divergências(Ferrara, 1988).
Apreendem-se formas, volumes, cores, movimentos, que adquirem, num primeiro momento,
estruturas frásicas e significantes, mas compõem, em um segundo momento, flashes de
concretização semântica. À lógica do significado verbal substitui-se o flash semântico, o
instantâneo do significado.
Para Ferrara, a percepção deste instante semântico é básico para a concretização da leitura, mas
depende, por comparação e contraste, da capacidade do analista de decodificar o significado
verbal, ou seja, a experiência de decodificação verbal permite apreender o significado relacional
que se vislumbra, num rápido índice sígnico, numa passageira associação de imagens. Há,
portanto, que distinguir, no não-verbal, o texto da leitura.
Temos que, no texto verbal, o referente se textualiza, isto é, fixa a apreensão de um tempo; no
não-verbal, o referente é enfaticamente contextual, sofre o impacto de um ritmo que não se deixa
fixar e deve ser ele próprio considerado linguagem.
Ademais, o texto não-verbal supõe uma recepção que ousa ultrapassar os limites da alfabetização
verbal para acreditar na sua possibilidade de ver, através de fragmentos informacionais, um texto
que não é outra coisa senão o reflexo de outros textos, inclusive verbais, já armazenados na
memória e veiculados pelos sentidos. É, antes de tudo, a capacidade do cérebro humano de
processar informações através da interação sensível do universo que o cerca(Ferrara, 1988).
Mas a grande discussão foi mesmo a câmera de vídeo; percebi que, no seu imaginário eu
viria filmá-las com um grande equipamento, como um repórter de TV, auxiliada por alguém
e por luzes. Felizmente, tive a idéia de levar para a reunião minha pequena "handcam"; ao
vê-la, o grande problema praticamente desapareceu, apenas uma professora falou que, de
qualquer forma, não gostava nem de fotos, que nunca tinha sido filmada e que ficava
constrangida. Garanti a todos que mostraria os resultados das filmagens, mesmo para as
crianças. Uma das professoras perguntou por quanto tempo eu permaneceria em sala; na sua
opinião, as filmagens não poderiam ser longas, porque isso poderia incomodar o
desenvolvimento normal das aulas... acordamos que, a cada vez, eu demoraria 15 minutos
em sala. Insisti sobre a necessidade delas realizarem suas tarefas sem se ocupar com a
minha presença, sem planejar nada de especial para o momento das observações e,
sobretudo, não corrigir as crianças porque estavam sendo filmadas... Era certo que uma
pessoa estranha, que portava uma filmadora, chamaria a atenção das crianças, de forma
nenhuma habituadas a práticas semelhantes... Quanto a este ponto, expliquei que filmaria
alguns dias em horários livres, o que, no meu entender, favoreceria a uma certa habituação
das crianças com o equipamento e, ao mesmo tempo, com minha presença... Voltei à escola
para, num movimento inicial, fazer algumas filmagens; cheguei na hora do recreio e me pus
num canto do pátio a filmar, enquanto as crianças se dirigiam à cantina... corriam ou
simplesmente, andavam por ali, em pequenos grupos... permiti que eles manuseassem a
câmera... se tornou um verdadeiro acontecimento dentro da escola. Após uma semana de
observação livre, eu e meu equipamento já pertencíamos ao ambiente da escola. Após esta
fase que chamei de 'habituação', que implicava numa mútua familiarização entre mim e a
escola, pude então começar a fazer filmagens dentro das salas de aula... procurava me
localizar na classe de tal forma que eu pudesse visualizar, ao mesmo tempo, a professora, a
atividade em curso e, evidentemente, a escola.
Deste procedimento prático de construção de imagens, Sampaio apreende o que chamou de "a
simbologia do espaço escolar". Segundo o estudo desta autora, nada pode sugerir a ludicidade
característica da infância, a provocação de sua curiosidade, de sua expressão corporal intensa nas
escolas estudadas. Nestes termos, conclui: "a escola é pensada enquanto prédio, enquanto
concepção de arquitetura, para receber alunos".
O que Sampaio mostra, via os recursos das lentes de sua câmera, é uma verdadeira política da
quietude, visando uma aprendizagem reduzida ao racional. Pela linguagem dos corpos em
interação e articulados às outras linguagens escolares, a autora chega à conclusão que, na prática
pedagógica, perpassa um imaginário onde aprender é muito mais quietude do que movimento no
espaço da educação infantil que estudou.
Sampaio, MacLaren, Meham, são exemplos que evidenciam, nos seus estudos da escola, o
quanto o uso da imagem para a etnopesquisa é um recurso extremamente fértil, principalmente
na compreensão dos múltiplos rituais que a escola constrói nos seus espaços vitais.
Em termos de uma etnopesquisa, é bom frisar que o vídeo ou mesmo a entrevista gravada não
devem substituir a observação participante. Estes meios não obtêm o equivalente ao que a
presença do pesquisador no campo é capaz de obter em termos de observação. Poisson(1990) nos
fala, por exemplo, que em verificando seqüências filmadas em campo, teve a impressão de que
estava assistindo a uma peça, só que filmada e apresentada na televisão. Tal impressão se dá
porque o vídeo focaliza certos aspectos e omite uma grande parte da realidade globalmente
vivida pelo conjunto das pessoas que estão presentes no meio onde se faz o registro das ações.
Análise construcionista
Bakhtin nos diz do caráter dialógico da fala individual e, ao afirmá-lo, nos diz também da
natureza sócio-histórica, interativa e constitutiva da linguagem. Aliás, vimos isto já como um
fundamento do construcionismo, na medida em que a linguagem aparece ali como uma mediação
fundamental e um instrumento incontornável.
Deste modo, uma análise construcionista teria nas interações naturais, na dialogicidade, na
comunicação, os subsídios fundamentais para a compreensão de realidades, sendo a linguagem a
mediação fundante.
Pearce ainda nos diz, inspirado na teoria dos sistemas, que um sistema é a melhor explicação de
si mesmo. Portanto, situar o jogo e a partir de dentro do jogo é uma premissa básica do
construcionismo social. Isto quer dizer que, se desejamos compreendê-lo, devemos fazê-lo a
partir da organização de sua composição interna organizada. É na configuração produzida pelos
diálogos, na interação, que os construcionistas implementam a compreensão da constituição das
realidades, vendo na comunicação o processo fundante desta constituição.
Perseguindo esta via de recomendação para uma análise construcionista, avaliei pertinente
exemplificar este recurso metodológico tomando como subsídio o estudo que fiz da obra de
Jorge Amado "Capitães de Areia", vista de uma perspectiva do romance de formação (Macedo,
1997). Para alguns autores como Coulon (1987) e Pujade-Renaud(1986), a literatura apreende
uma fração do real reelaborando-o, reinterpretando-o de forma indexal e ativa. Partilha desta
opinião Sigmund Freud, quando considera que a ficção elabora uma verdade que muitas vezes
escapa à pesquisa em ciências humanas. A obra literária, em geral, preserva a dialogicidade,
condição irremediável para uma análise construcionista que, de preferência, pratica uma
hermenêutica movente. Faz-se necessário lembrar, entretanto, que a análise construcionista é
possível em qualquer situação humana, desde quando a comunicação esteja presente.
Os capitães da areia eram crianças pobres, desgarradas das suas famílias, e com histórias
diferentes que, em busca de concretizar objetivos imediatos e sonhos às vezes inacessíveis,
reuniam-se por acaso num velho trapiche, transformado em lar coletivo. Convivendo na
cotidianidade extremamente contraditória da cidade de Salvador, esse grupo garantia sua
sobrevivência, amava, projetava o futuro, lutava, roubava e fazia devoções a santos de fé;
arrependia-se, conflitava-se, brincava, sonhava, enfim, constituía significados e concretizava
ações.
Jorge Amado faz emergir uma concepção de infância não-reificada. Não há linearidade nem
pseudoconcretizações nas suas interpretações. A criança é um ser-no-mundo, num contexto que
forma e é formado por ela. Seus personagens infantis incessantemente agem interpretando, num
processo de interação e de comunicação que se move e vai configurando realidades e destinos.
Documento pujante da vida de um determinado grupo de crianças, onde as barreiras do
moralismo e da reificação são do início ao fim ultrapassadas, "Capitães da Areia" é publicado
pela primeira vez em 1937, logo após a instalação da ditadura do Estado Novo. Amado vê toda a
sua obra queimada em praça pública, sob a acusação de ser um manifesto comunista e imoral,
portanto, subversivo. Por este fato, vê-se de imediato o caráter instituinte da sua construção
literária. A natureza reflexiva do seu livro é demonstrada pelo barbarismo da reação que o
instituído desenha e implementa. Atentemos para a densidade e a pertinência construcionista
destes diálogos:
Pedro Bala, enquanto sobe a ladeira da Montanha com o Professor, vai pensando que não
existe nada melhor no mundo que andar assim, ao azar, nas ruas da Bahia...Moças se
debruçam nas janelas dos casarões antigos e ninguém pode saber se é uma costureira que
romanticamente espera casar com um noivo rico ou se é uma prostituta que o mira de um
velho balcão, enfeitado de flores em pobres latas.
- Quê!
- Tem vez que me topo pensando... - e Professor mira o cais lá embaixo, os saveiros
parecem brinquedos, os homens miúdos carregando sacos nas costas.
- Por quê? – Pedro fala, está espantado – Tu não vê que tudo é mesmo uma beleza! Tudo
alegre...tem mais cores que o arco-íris.
- Se eu tivesse tido na escola como tu diz, tinha sido bom. Em um dia ia fazer muito quadro
bonito. Um dia bonito, gente alegre andando, rindo, namorando, assim como aquela gente
de Nazaré, sabe? Mas cadê escola? Eu quero fazer um desenho alegre, sai o dia bonito, tudo
bonito, mas os homens saem tristes, não sei não...Eu queria uma coisa alegre.
- Quem sabe se não é melhor mesmo fazer uma coisa como tu faz? Pode até dar mais
bonito, mais vistoso.
- Que é que tu sabe? – Que é que eu sei? A gente nunca andou em escola...eu tenho vontade
de fazer a cara dos homens, a figura das ruas, mas nunca tive na escola, tem um bocado de
coisas que eu não sei...
- Tu já deu uma olhada na escola de Belas Artes? É um belezame rapaz. Um dia andei de
penetra, me meti numa sala. Tava tudo vestido de camisão, nem me viram. E tava pintando
uma mulher nua...Se um dia eu pudesse...
Pedro Bala ficou pensativo. Olhava o professor como que pensando. Logo falou com um ar
muito sério:
- Tu sabe o preço?
- Que preço?
- Um dia tu ainda bota um bocado de pintura numa sala da Rua Chile, mano. Sem escola
sem nada. Nenhum destes bananas da escola faz uma cara como tu...tu tem jeito...
- E tu faz o meu retrato, hem ! Bota o nome embaixo, não bota? Capitão Pedro Bala, macho
valente...
Tomou a atitude de um lutador, com um braço estirado. Professor riu, Bala também riu,
logo o riso se transformou em gargalhada. E só pararam de gargalhar para aderir a um grupo
de desocupados que se reunira em torno de um tocador de violão Amado(1991).
Vimos que o Professor projeta em sua pintura a tristeza de não poder ir à escola; interpreta
comentando sua melancolia, melancolia que aparece nos rostos das pessoas que pinta, apesar da
beleza do cenário. Por outro lado, Pedro Bala valoriza a competência natural do professor, e em
sua fala verifica-se um desprezo, eivado de revolta, face àqueles que tiveram o "privilégio" de
passar pela escola. Mesmo atingindo os escolarizados com a sua ira, gostaria de ver o Professor
na escola, percebe o valor individual e social de um processo de escolarização.
O Professor apreende certa incompletude da sua competência e entende que a escola o faria
melhor enquanto pintor. Sente a escola como uma instituição distante.
Diante da tristeza do Professor e de suas motivações, Pedro Bala reage diferente, reafirma as
regras dos Capitães da Areia: "Nenhum destes bananas da escola faz uma cara como tu...tu tem é
jeito..." Contrapõe-se àquele outro mundo que o exclui, fazendo questão de contrariá-lo; pensa
em estratégias inerentes às ações dos "Capitães da Areia", no sentido de forjar condições para o
Professor estudar.
Assim, ficção e realidade misturam-se para nos fornecer uma compreensão encarnada do que foi
a infância pobre de Salvador num dado contexto histórico e refletida por um dos seus segmentos,
onde a escola emerge como uma utopia distante e um alvo de revide social.
Amado mergulha nos labirintos das tramas e jogos do grupo de crianças descrito e, sem
sistematizar nenhum conceito definitivo de infância, tão pouco nenhuma metafísica abstrata a
respeito da existência do grupo, elabora uma densa construção de sentidos indexais e reflexivos.
A forma pela qual as crianças constroem significados, produzem estratégias e regras de conduta,
é exuberante. A diacronia-sincronia das ações brota nas tramas das negociações no dia-a-dia
daquele mundo, em que crianças e adultos, em interação incessante, imersos na cultura do lugar,
colados à realidade que fabricam, convivem na contraditoriedade e pluralidade do cotidiano de
Salvador, movendo-o e dando-lhe feições. A narrativa produzida ao mesmo tempo em que
desreifica a infância, evidencia, através das instituições pedagógicas que se mostram, a
construção da exclusão, por intermédio da violência física e/ou simbólica, em uma sociedade que
cultiva e cultua um ethos e uma ética de assistência desreferencializadora, jamais uma ética da
compreensão, como elabora Morin.
Assim, ao mesmo tempo que mostrei, por uma análise construcionista, a pertinência da obra de
Jorge Amado para pensarmos a infância pobre do nosso contexto, vimos o quanto este tipo de
recurso pode instigar os atores pedagógicos a olharem para lados opacos da produção do
conhecimento e da sociedade, ofuscados pela metanarrativa "dura" que habita a escola, suas
interpretações e práticas.
A análise construcionista vem nos mostrar que o universalismo e a reificação com que a infância
é apreendida entre nós impede que sejam vislumbrados aspectos importantes da história vivida
pelos diversos segmentos infantis em formação.
Para uma compreensão mais apurada de um método etnocenológico abstraído das idéias de
Goffman, faz-se necessário analisarmos alguns conceitos nucleares de sua dramaturgia social.
Neste sentido, representação tem a ver com toda atividade de um indivíduo que se passa num
período caracterizado por sua presença contínua diante de um grupo particular de observadores, e
que tem sobre estes alguma influência. Como conseqüência deste conceito mais amplo,
depreende-se a noção de fachada, significando a parte do desempenho do indivíduo ao definir
situações para os que observam a representação. Há, neste conjunto, ou mesmo nesta gestalt, o
cenário, compreendendo o pano de fundo que vai constituir o suporte contextual do desenrolar
da ação executada diante, dentro ou acima dele. Em realidade, ao representar um papel, o ator
social define e redefine constantemente situações, reproduz, mas também cria, trazendo à cena e
ressignificando presentemente situações e cenas do passado recente ou remoto, ou mesmo
mobilizando sentidos projetados a partir de uma intencionalidade vinda das possibilidades de um
certo devir.
Ademais, temos que pontuar que segundo a dramaturgia social de Goffman, quando um
indivíduo se apresenta diante de outros, seu desempenho tenderá a incorporar e exemplificar os
valores oficialmente reconhecidos pela sociedade, até mesmo mais do que o comportamento do
indivíduo como um todo.
Goffman argumenta que, na medida em que uma representação ressalta os valores oficiais
comuns da sociedade em que se processa, podemos considerá-la, à maneira de Durkheim e
Radcliffe-Brown, como uma cerimônia, um rejuvenescimento e reafirmação expressivos dos
valores morais da comunidade. Além disso, tanto quanto a tendência expressiva das
representações venha a ser aceita como realidade, aquela que é no momento aceita como tal,terá
algumas das caraterísticas de uma celebração.
É a partir do jogo das aparências e das expectativas que também podemos ter acesso a âmbitos
que costumamos chamar da verdade: elas fazem parte deste conjunto constitutivo e compõem a
gestalt do que denominamos real. Neste sentido, Goffman vai proporcionar o retorno dramático
do intérprete, que enquanto unidade da interação, se auto-eco-organiza na e pela representação
dos seus papéis na presença de outros enquanto ator social.
Neste sentido, fica explícito que o propósito da etnocenologia é o de contribuir para um melhor
conhecimento da natureza do homem, participando da elaboração de uma teoria geral do
"espetacular humano"(Pradier, 1988), e que sua hipótese fundamental parte do princípio de que a
atividade espetacular humana é um traço fundamental da espécie, sustentado pela unidade do
corpo/pensamento, e que este traço constitui o espaço central a partir do qual se organizam
formas múltiplas nos campos os mais diversos da vida dos indivíduos e dos coletivos sociais. Em
resumo, para Pradier, a etnocenologia é o estudo etnolingüístico do campo lexical das práticas
espetaculares, bem como do campo semântico deste espetacular; dos tipos de práticas
espetaculares tal como são definidos pelos autoctones; das aprendizagens dos performers e dos
participantes e/ou espectadores; da função e do status dos performers; dos materiais utilizados;
das práticas associadas e da criação espetacular.
Num estudo de forte componente heurístico, onde a preocupação da autora é com aspectos
ecológicos-educacionais da relação homem x animal, Santos(1997) utiliza-se do método de
pesquisa etnocenológico(sem sistematizá-lo) para a edificação de uma leitura compreensiva desta
relação num cenário de uma feira livre nordestina. Localizando seu estudo no âmbito da
etnozoologia, Santos descreve de forma fina todo um imaginário que eclode da relação homem x
animal num contexto comercial e predominantemente rural, mas que atualiza outras conexões,
em níveis do conhecimento zoológico, das questões sociais da saúde e educação ambiental.
Ato primeiro:
(...) A briga do teiú com as cobras Chiquita e Paloma. Essa é Paloma e essa é Chiquita, uma
salamandra. São venenosas muito perigosas...Vocês sabem que teiú não tem veneno, é um
bicho frouxo, não é de nada! Mas se ele encontrar uma bicha perigosa (se referindo às
serpentes) e morde ele, ele sai correndo pro mato e cava a terra e encontra a batata-de-teiú e
come. Aí, sim! Ele fica brabo e volta pra brigar até matar a cobra. Batata-de-teiú cura até
veneno de jararaca... É como diz nosso senhor Deus da Bíblia... (Faz citação do texto
bíblico de maneira rápida e confusa).
As frases são ditas com intensa expressão corporal. Pega uma fralda, faz cara de emocionado e
fala sobre trechos de sua história de vida.
Baianos e baianas, eu trago pra vocês uma coisa maravilhosa e acredite em mim pelo suor
que enxugo na fralda da minha neta: eu já bebi muito....e o que me salvou foi este remédio...
Os transeuntes aglomeram-se, alguns fazem sinal afirmativo com a cabeça, concordando com a
apresentação. O homem 2 continua:
Depois de descrever toda a representação envolvendo os personagens, onde a tensão da briga das
cobras e do lagarto era a finalidade última para possibilitar a compra dos remédios anunciados
(briga esta nunca concretizada, conforme a descrição detalhada da autora), a autora constrói as
interpretações daí advindas. Mostra a utilização econômica dos animais, o imaginário quanto às
serpentes e seus significados simbólicos, onde a dramatização de seus perigos vai credibilizar a
fala dos vendedores de produtos, vendidos sem nenhum controle sanitário e/ou fiscal.
Com este estudo, procura responder questões sobre a conexão homem-animal no contexto
estudado, estabelecendo conexões e relações no que se refere a esta temática de interesse para os
educadores ambientais e etnozoólogos, hoje mobilizados com questões relacionadas à
preservação e ao entendimento da relação histórica homem-natureza e a questão da
sustentabilidade como tema pedagógico.
O caráter seminal do estudo de Santos está na apreensão do dinamismo das interações, que ao
pulsarem em contexto, em rituais muitas vezes frenéticos, fornecem, de forma extremamente
indexalizada, significativos indicadores e ancoragens semiológicas de temáticas e problemáticas
sociais importantes. Tomando, ao mesmo tempo, inspirações etnocenológicas e
etnometodológicas, as análises engendradas pela autora nos fornecem um exemplo significativo
de método para apreendermos e compreendermos de uma perspectiva interacionista,
hermenêutica e holística o aspecto constitutivo da encenação social na vida cotidiana. De uma
perspectiva epistêmica, é uma realidade que está aí e que constitui uma série de desafios
cotidianos a serem compreendidos.
Em realidade, a prática do diário de campo permite melhor nos situarmos nos meandros e
nuances em geral descartados(nem por isso pouco importantes) da instituição pesquisa, naquilo
que são suas características explícitas e tácitas. Atinge o habitus objetivista cravado no
inconsciente acadêmico, que termina por determinar procedimentos e conclusões de estudos.
Entretanto, o mundo das implicações, apesar de permanecer no campo do não-dito, jamais pode
ser alijado do contexto da produção científica. É neste instante que o diário de campo tem uma
função de extremo significado heurístico.
Nestes termos, ao construir o seu diário de campo, o pesquisador reafirma definitivamente seu
status de ator/autor, entra, por conseqüência, numa elaboração e numa construção do sujeito e do
objeto, bem como passa por um trabalho elaborativo sobre aquilo que nos constitui tanto em
nível do imaginário quanto do real. Portanto, ao narrar despojada e minuciosamente seu vivido
de pesquisador, o sujeito se performa também, daí a pertinência formativa do diário de campo,
que, aliás, em alguns centros formadores, toma feições que transcendem a pesquisa, transforma-
se num instrumento generalizado de auto-formação.
Assim, ao elaborar o seu diário, o pesquisador, como nos sugere Morin, constitui-se num sujeito
entre outros sujeitos, se humaniza, se dialetiza, ao aceitar a lógica do inacabamento - da
alteração, portanto -, que qualquer teoria coerente do sujeito deve exercitar.
Além de ser utilizado enquanto um instrumento reflexivo para o pesquisador, o gênero diário é,
em geral, utilizado também como forma de conhecer o vivido dos atores pesquisados, quando a
problemática da pesquisa aponta para a apreensão dos significados que os atores sociais dão à
situação vivida. Diria que, é um instrumento de grande relevância para acessar os imaginários
envolvidos na investigação, pelo seu caráter subjetivo, intimista.
Coulon(1985) nos mostra com o exemplo da sua pesquisa a constituição do que chamou de
"inteligência institucional" e como os diários de estudantes revelaram o processo de afiliação à
instituição universitária no início das suas carreiras.
Para Lourau, o diário de campo ultrapassa seu quadro técnico de coleta de informações; é,
freqüentemente, também um diário de pesquisa. O texto institucional se mostra, não somente
oferece seu quadro de referência, mas orienta, implicitamente, a observação, informa os dados
que se coleta, excluindo outros. Às vezes, muito íntimo, o diário registra a temporalidade
cotidiana de uma investigação que engloba o projetoprocesso científico, que muitas vezes lhe
escapa(Lourau, 1994).
torna-se uma prática regular de escrita de um texto nosso, com o objetivo de uma maior
competência de escrita e de articulação dos nossos espaços de reflexão, um dispositivo que
coloca a nu nossas relações, e que, assim, nos ajuda a compreendê-las em profundidade.
Um olhar historicizado e crítico sobre o conhecimento que faz a mediação dos currículos
destinados à formação no âmbito das ciências antropossociais encontrará um tipo de saber
dotado de uma aura de verdade absoluta. Uma verdade insofismável, que deverá ser aprendida
sem contestações, até porque já foi legitimada por um imaginário de ciência infalível.
Ademais, este conhecimento percebido como uma correspondência perfeita do real, é distribuído
como se não houvesse nenhuma contestação sobre seu caráter mesmo de cientificidade. Aqui, em
termos curriculares, o científico significa o que não pode ser problematizado, até mesmo
tematizado, o que está objetivado, instituído, o que só uma refutação de caráter empirista pode
contradizer.
Cultivando e cultuando, até mesmo celebrando, apenas o que é norma, prescrição, este saber
legitima compulsivamente a racionalidade instrumental que o engendrou. Formas de
inteligibilidades out siders são ofuscadas, desencorajadas e até mesmo alijadas em definitivo.
Por conseguinte, assiste-se a uma banalização do saber acadêmico e da própria forma de acesso a
este saber, onde vê-se, de maneira imbecilizante, uma hipervalorização das funções mnemônicas,
ao se lidar com o conhecimento científico na escola.
Está claro para mim que esta prática, apesar de hegemônica, não acontece sem que se descubra,
mesmo em níveis de um entendimento impressionista, que trata-se de uma forma de apartheid.
Daí nascem resistências que, mesmo dialética e dialogicamente significativas, enquanto um tipo
de filosofia cotidiana do não, não bastam face à potente ideologização histórica que permeia a
arquitetura e a edificação destes saberes. As resistências carecem ainda de organicidade crítica e
de uma percepção fina do movimento do real.
Funda-se, nestes âmbitos do saber e do fazer escolar, o que Freire denominou de uma
"pedagogia da resposta", que avança, no máximo, para um ouvir caridoso e ritualístico, sem
nenhum compromisso com o que chamo de uma empatia majorante, jamais humanismo
pegajoso, adocicadamente neutro.
É neste rumo que o conceito de "escuta sensível ", forjado por Barbier, faz-se pertinente. É a
partir desta fonte de inspiração que podemos vislumbrar uma escuta dialética e dialógica, uma
empatia dialética e dialógica, uma autêntica ausculta, porque visceral.
Esta escuta, em realidade, pode ser fundamento de uma forma de ser, de uma postura. Uma
postura de escuta que aceita a premissa fenomenológica existencialista básica de que todos têm o
direito de ser compreendidos, um tipo de compreensão que não exclui, mas que não se abstém do
julgamento e de uma filosofia compreensiva do não.
O que se percebe é que a prática do significado autoritário pela ciência e seus distribuidores,
afirmou, sem sequer ouvir, ver e compreender; explicou, sem sequer explicitar ou qualificar suas
justificativas pela "autorização" daqueles que agem atribuindo sentidos e significados à vida.
Estamos numa sociedade onde o poder econômico de base capitalista faz-se voz unívoca e
validada, impõe-se, portanto, pelo culto à unicidade, é ágil e tem uma capacidade admirável de
cooptar diferenças e ofuscar linguagens incômodas. Numa sociedade embevecida pelo consumo,
o poder econômico elabora uma sedução muitas vezes irresistível, onde, ao mesmo tempo,
reprime, alija, mas também seduz. Vejamos, por exemplo, o papel da mídia televisiva neste
engendramento. Como conseqüência, podemos detectar assincronismos como o cultivo, por
alijados e oprimidos, de práticas opressoras usadas pelos agentes do domínio iníquo, ou mesmo a
legitimação destas práticas pela via dos procedimentos de cooptação. Experienciamos uma
ciência e uma academia dotadas de potentes tendências corporativas e imunológicas, que, a
qualquer aproximação com o diferente, com o assincrônico, fecha-se e ataca de forma virulenta,
visando incorporar, por homogeneização, ou destruir por alijamento e negação da fala.
Consciente destes mecanismos, o etnopesquisador crítico quer ouvir sensivelmente para relatar
em profundidade, até porque a crítica sem aprofundamento, que ofusca a voz do seu sujeito-
objeto de análise, é no mínimo leviandade. Pensar sobre o que se faz e saber sobre o que se
pensa, é tarefa primordial de um etnopesquisador, assim como relatar desvelando é uma forma
de exercitar um certo poder. Por isso, escutar sensivelmente é prática fundante em etnopesquisa.
Ademais, é importante frisar "que a sensibilidade é, certamente, individual, mas, igualmente e
simultaneamente, social "(Barbier, 1993).
Barbier nos diz, ainda, que para se falar em escuta é necessário empregar uma sorte de dialética
negativa. Ou seja, afirmar aquilo que ela não é. E uma das assertivas que a escuta traz para o
campo da pesquisa é que há sempre o que se escutar, por mais que o tema esteja exaustivamente
questionado, e que alguém em algum lugar afirme que não há mais o que saber.
A crença nesta assertiva tornou-se um norteamento fundante para o etnopesquisador. Não saber
escutar sensivelmente é um decreto de morte para um estudo que se quer etnopesquisa, e que tem
na ação comunicativa um dos subsídios insubstituíveis.
A nosso juízo, a "escuta sensível" passa a ser não só um dispositivo significativo para se fazer
etnopesquisa crítica e multirereferencial dos meios educacionais, mas uma forma de ser
radicalmente humanizante.
O MDI é, na realidade, um recurso que todo e qualquer ator social coloca em ato para
compreender reciprocamente e compreender o próprio mundo cotidiano. Vê-se que, no MDI, a
reflexibilidade e a indexalidade estão na raiz dos procedimentos pelos quais interpretamos
continuamente o mundo.
Assim, uma das primeiras tarefas na análise dos dados de uma etnopesquisa é o exame atento e
extremamente detalhado das informações coletadas no campo de pesquisa. Este ato constitui a
primeira etapa do processo de análise e de interpretação. Os grandes eixos daquilo que emergirá
da análise e da interpretação podem, por assim dizer, estar contidos em germe nas questões
formuladas já na elaboração do projeto de pesquisa, projeto este que deve estar calçado, numa
experiência prévia e significativa, com a temática e com o objeto de estudo a ser analisado.
Após um certo tempo de imersão em campo, tempo que pode variar segundo a problemática do
objeto pesquisado e/ou de suas especificidades de contexto, o pesquisador deve indagar-se sobre
a relevância dos seus "dados", tomando, mais uma vez, como orientação, suas questões
norteadoras e outras intuições saídas do contato direto com o objeto pesquisado. Tal reflexão
aponta p ara o recurso que denomina-se saturação dos "dados", indicativo da suficiência das
informações e da possibilidade do início das análises e interpretações finais do conjunto do
corpus empírico. Este momento jamais é visto como momento estanque, pois é possível retornar-
se várias vezes ao campo à procura de maior densidade e detalhamento.
No começo, estas unidades devem ser tomadas exatamente como propostas pelos sujeitos que
estão descrevendo os fenômenos, empregando os seus etnométodos. Posteriormente, o
pesquisador transforma estas expressões em expressões próprias do discurso que sustenta o que
está buscando. Finalmente, obtêm-se a síntese das unidades significativas que vêm das várias
fontes de informações e dos vários sujeitos da investigação. Aqui, pluralidade, densidade,
detalhamento e contextualização são recursos que, se articulados, dão a "medida" da
confiabilidade das etnopesquisas. A existência no mundo é precisamente aquilo que deve ser
compreendido, conceitualizado e teorizado nesta perspectiva.
Faz-se necessário pontuar que a interpretação em etnopesquisa é, sem dúvida, uma atividade
extremamente exigente em termos intelectuais. Convoca-se, em geral, uma grande capacidade de
mobilização para refletir, fora de formalidades paradigmáticas, desaguando num espírito crítico e
de aguçada curiosidade face a realidades à primeira vista avaliadas como por demais banais e
óbvias. Há, portanto, que imbuir-se de uma imaginação metodológica que ultrapasse a mera
descrição e interpretação sumárias, produto de simples constatações. À medida que a leitura
interpretativa dos "dados" se dá - às vezes por várias oportunidades – aparecem significados e
acontecimentos, recorrências, índices representativos de fatos observados, contradições
profundas, relações estruturadas, ambigüidades marcantes. Emerge aos poucos o momento de
reagrupar as informações em noções subsunçoras – as denominadas categorias analíticas - que
irão abrigar analítica e sistematicamente os sub-conjuntos das informações, dando-lhes feição
mais organizada em termos de um corpus analítico escrito de forma clara e que se movimenta
para a construção de uma peça literária compreensível e heuristicamente rica.
Algumas operações cognitivas são comuns na análise e interpretação dos "dados" obtidos a partir
de uma etnopesquisa: distinção do fenômeno em elementos significativos; exame minucioso
destes elementos; codificação dos elementos examinados; reagrupamento dos elementos por
noções subsunçoras; sistematização textual do conjunto; produção de uma meta-análise ou uma
nova interpretação do fenômeno estudado.
Desde que amplas noções subsunçoras pareçam corresponder à realidade pesquisada, em face da
densidade de dados e acontecimentos que figuram e são subsumidas por estas noções, emerge o
momento de estabelecer relações e/ou conexões entre as noções subsunçoras e seus elementos. É
neste momento que se inicia o esforço de organização e síntese, que vai ter seu momento final
nas considerações conclusivas. É o momento também de estabelecer totalizações relacionais com
contextos e realidades históricas conectadas com a problemática analisada; construir tematizando
as respostas às questões formuladas quando da construção da problemática da pesquisa; elaborar
meta-análises onde poderão brotar novas análises, novos conceitos, compondo um tecido
argumentativo pertinente e fecundo em termos da construção do conhecimento visado.
Por mais que este último aspecto pareça uma tarefa difícil para aqueles que se iniciam na vida
científica, face à exigência de certa competência teórico-metodológica, defendemos sempre a
necessidade de ousar, de aventurar-se na construção de conhecimentos fecundos, até porque
considero que não há mais lugar na academia, por absoluto empanturramento e enfastiamento,
para o conhecimento requentado, bem como, aos poucos, a resistência é cada vez maior face o
colonialismo intelectual e suas nefastas conseqüências formativas. Ademais, é bom frisar, não se
pode abster-se do rigor – diferente da rigidez esterilizante disseminada no conhecimento
acadêmico -, outrossim, este rigor não pode deixar de revisitar incessantemente a curiosidade, a
inventividade e a transgressão intelectual.
J. Ardoino, chega a falar em traição no que concerne aos cânones da ciência monorreferencial
moderna.
É bom frisar que a competência do etnopesquisador crítico dos meios educacionais se estabelece
ao ultrapassar de longe o savoir-faire meramente técnico e/ou utilitarista em ciências da
educação.
Uma outra questão significativa emerge da função que a teoria tem nos estudos de feição
etnográfica e semiológica. Pratica-se, em realidade, um empirismo heterodoxo: apesar da
recomendação de ir a campo ver, a teoria não é vista como uma limitação heurística, a teoria
entra no cenário das análises como uma inspiração aberta à retomadas. Ao nos defrontarmos com
a realidade, temos que compreender que esta não cabe num conceito, é preciso construir um
certo distanciamento teórico, a fim de edificarmos, durante as observações, uma disponibilidade
face aos acontecimentos em curso. Ao concluir a coleta de informações, as inspirações teóricas
são retomadas fazendo-as trabalhar criticamente no âmbito das interpretações saídas do estudo
concreto. Neste encontro, tensionado pelos saberes já sistematizados e "dados" vivos da
realidade, nasce um conhecimento que se quer sempre enriquecido pelo ato reflexivo de
questionar, de manter-se curioso.
Neste sentido, teoria e empiria engendram um diálogo que tende a vivificar, vitalizar o
conhecimento. Teoria e empiria se informam e se formam incessantemente. Angustiar-se no
método e na teoria é condição sine qua non para mergulharmos nos fenômenos humanos,
realizando, por esta via, um empirismo com alma e uma teoria enraizada e encarnada.
Preocupados com a validação dos seus estudos, um procedimento cada vez mais utilizado entre
os etnopesquisadores é a confrontação das suas interpretações conclusivas com as opiniões dos
atores implicados na situação pesquisada. Esta espécie de validação não se refere somente aos
atores diretamente implicados, outros atores que vivenciaram significativamente a situação ou
indiretamente, têm um papel interessante neste momento ao avaliarem as conclusões saídas do
estudo. Aqui não só os resultados são socializados, mas também o método seguido e o próprio
processo da investigação, que deverão estar documentados no próprio estudo.
Neste veio, Erickson(1986) insiste sobre a pertinência dos "dados" e sobre a consistência que
deve existir entre as questões da pesquisa e a coleta destes. Com esta preocupação, Erickson cita
algumas dificuldades que podem levar à desqualificação de uma etnopesquisa: insuficiência de
provas; o pesquisador não obteve evidências o bastante para garantir certas asserções; falta de
diversidade no estabelecimento de provas: ausência de provas apoiadas sobre "dados" obtidos a
partir de fontes variadas; erro de interpretação: o pesquisador não compreendeu os aspectos
chaves da complexidade da ação ou os significados atribuídos pelos atores aos acontecimentos e
ações.
Para alguns etnopesquisadores, uma das primeiras providências para se evitar estas dificuldades
é o cuidado com a duração das observações e com a necessária proximidade do pesquisador com
os atores e seu contexto.
O que se retira das preocupações de rigor cultivadas pelas etnopesquisas é que esta prática de
investigação demanda uma sedimentada formação na prática, supervisionada por pesquisadores
experientes, face a impossibilidade do uso de receitas e da demanda por uma bricolage e uma
angústia metodológica incessantes, capitaneadas pela necessidade de invenção e criatividade ao
longo do próprio processo de pesquisa.
A análise de conteúdos
Algumas peculiaridades são importantes na análise de conteúdo. Uma delas é que se trata de um
meio para estudar a comunicação entre atores sociais, enfatizando a análise dos conteúdos das
mensagens.
Uma outra peculiaridade que convêm salientar é que a análise de conteúdo é um conjunto de
recursos metodológicos. Conceituação, codificação, categorização são recursos de análise
incontornáveis quando se lança mão deste tipo de procedimento interpretativo. É importante
ainda salientar que o domínio do método de análise do conteúdo não dispensa, em hipótese
alguma, a inspiração teórica, que deverá ficar evidenciada nos referenciais que fundamentam
qualquer estudo.
Não queremos com estas reflexões alimentar uma recaída conteudista, consubstanciada na
análise reduzida, onde se esteriliza narrativas, destacando-as das suas indexalidades e dos
significados produzidos em contexto, portanto.
É interessante salientar que ao nos depararmos com uma ação comunicativa, visando uma análise
de conteúdo, temos que considerar a natureza efêmera e fugaz do fenômeno da significação. Ele
pode mostrar-se simplesmente como indicativo, demandando um esforço interpretativo radical
em direção ao mundo tácito ou subjacente da vida simbólica, sempre crivada de interesses e
ideologias. Nesse sentido, o conteúdo pode ser manifesto ou latente. Nesse último caso,
principalmente, o pesquisador postula que a significação real e profunda do material analisado
reside além do que é expresso. Trata-se de descobrir o sentido velado, em opacidade, das
palavras, das frases e das imagens que constituem o material analisado. Assim, o dito e o não-
dito na análise de conteúdo são apreendidos numa gestalt onde figura e fundo devem ter a
mesma importância analítica.
Nessa ótica, analisar um conteúdo de forma pertinente implica em tornar-se membro, como
recomendam os etnometodólogos, quer dizer, "encharcar-se" ou fazer parte da linguagem natural
praticada por uma comunidade. Portanto, destacar fragmentando o conteúdo da comunicação do
contexto onde se dá, com o objetivo de analisá-lo, é uma prática arbitrária e inconcebível para
uma etnopesquisa, seria um paradoxo insuperável.
Em termos práticos, algumas etapas são geralmente especificadas num processo de análise de
conteúdo. Verifica-se, entretanto, que este processo assemelha-se ao próprio processo de análise
dos "dados" em etnopesquisa face a sua natureza hermenêutica.
Bardin(1997) especifica três etapas básicas no trabalho com a análise de conteúdos: pré-análise,
descrição e interpretação inferencial. Entretanto, por esforço didático, avaliamos interessante
ressaltar de forma mais detalhada o caminho normalmente trilhado pela AC:
Na etapa a), dá-se a leitura em diversos momentos do corpus recolhido, onde se obtém uma visão
do conjunto deste corpus, assim como, das suas diversas particularidades e dificuldades a serem
superadas; pressentir os tipos de unidades informacionais a serem utilizadas pelas classificações
posteriores; apreender particularidades amplas do material, que se constituirão em temas ou
noções subsunçoras significativas do corpus empírico coletado. É, em realidade, uma primeira
familiarização com o material, uma sorte de pré-análise, para, em se destacando uma idéia do
sentido geral e certas idéias mediadoras centrais, se conseguir uma orientação do conjunto da
análise subseqüente.
Quanto à etapa c), é a fase de reorganização do material pela qual são reagrupados em noções
subsunçoras, ou temas mais amplos. Cada noção subsunçora é uma sorte de denominador comum
no qual se organiza todo o conjunto de enunciados. Por conseqüência, a noção subsunçora
provém predominantemente do corpus analisado, a partir de reagrupamentos sucessivos dos
enunciados, baseando-se sobre a semelhança dos sentidos emergentes. Aqui as noções são
mutáveis dependendo da natureza decidida do material analisado. Assim, o nome de cada noção
subsunçora e sua definição devem sempre ser revistos, especificados e diferenciados, basilando-
se em critérios suficientemente claros. Recomenda-se ademais, que as noções subsunçoras seja
exaustivas e em número limitado, coerentes, claramente definidas, o mais possível homogêneas,
fecundas, mutuamente exclusivas.
Por último, na etapa d), dá-se o momento onde emergem os conteúdos significativos a partir de
um arranjo tecido no esforço interpretativo, formando um corpus de argumentos capaz de elevar
a compreensão a uma densidade e a âmbitos de pertinência não percebidos por um olhar não
analítico e/ou desinteressado. Desprende-se da situação um conjunto de significados em geral
não vistos por uma leitura meramente constatatória de exposição de idéias ou mesmo
verificacionista. Numa linguagem metafórica, diríamos que o analista de conteúdo quer, em
geral, alcançar a alma e a carne do corpus comunicativo coletado. Trabalha desvelando sentidos
e significados que habitam a teia comunicativa, que se escondem e se revelam, dependentes que
são dos valores, ideologias e interesses do ser social. Desta perspectiva, a análise de conteúdo
passa a ter um significado de peso no conjunto das técnicas praticadas pela etnopesquisa,
principalmente se se cultiva os pressupostos e princípios da sócio-fenomenologia de feição
crítica.
Por fim, alguns indicativos sobre o estudo de textos são importantes, principalmente porque, na
análise de conteúdo, o texto é um subsídio que predomina: quem produz o texto lida com idéias
do seu tempo e da sociedade em que habita; a existência e suas condições fazem surgir as
concepções, idéias, crenças e valores; o texto assimila as ideologias da época, mas também tem
seu papel instituinte, de estabelecimento de rupturas e contradições. Não é apenas o mundo que
cria a linguagem, a linguagem é uma potente criadora de mundos, faz-se necessário frisar. Neste
sentido, há nos conteúdos de um texto um vivo processo instituinte que, numa pesquisa, deve
tornar-se objeto do esforço interpretativo.
De fato, o savoir-faire científico que as luzes nos deixaram como herança tem marcas de um
cinismo que, por mais que se justifique, não apagará os sinais de sua perversidade e de suas
difíceis opções éticas e políticas. O mundo está denso de exemplos de como a ciência formal
edificou-se. Capturada pela burguesia europocêntrica e masculina, o fazer científico criou um
edifício de racionalidades extremamente insensível à diversidade das demandas humanas, à
miséria galopante, diria, à própria vida. Excludente, afundou-se numa clausura academicista de
notória opção por uma epistemologia não solidária.
Do meu ponto de vista, o fazer científico não se justifica, a não ser por uma praxiologia
includente. A seminalidade de uma ciência avalia-se na medida de sua pertinência e relevância
humanizantes.
Por conseguinte, dois princípios éticos são comumente citados: o pesquisador deve informar aos
sujeitos, desde a fase de entrada no campo de pesquisa, sobre os objetivos da sua pesquisa, sobre
as atividades que ele espera realizar, sobre os riscos que pode implicar a participação do sujeito
na pesquisa; assim, o pesquisador deve proteger o quanto possível os sujeitos contra os riscos
psicológicos ou sociais, para isso deve procurar obter o máximo de informação sobre a
ambiência onde pesquisa e discutir cuidadosamente a proteção das informações.
A prática da etnopesquisa nos recomenda alguns procedimentos para estabelecer uma relação de
confiança e de colaboração, que podem nortear um trabalho neste campo de investigação social.
Uma certa isenção de julgamento face aos sujeitos da pesquisa: os membros têm uma tendência
para assumir que os objetivos da pesquisa são de avaliar suas concepções e ações; a
confidencialidade: em campo, o pesquisador não deve jamais comentar com outros sujeitos
assuntos retirados da sua pesquisa que impliquem em dificuldades psicossociais; a implicação: o
pesquisador deverá tentar implicar os sujeitos diretamente na pesquisa, a fim de formular
conjuntamente questões, colher "dados" e construir em parceria interpretações conclusivas.
Erickson comenta que os métodos comuns às pesquisas qualitativas são intrinsecamente
democráticos. Neste sentido, a passagem de uma abordagem compreensiva para uma abordagem
de intervenção que provoque as modificações desejadas jamais se consubstancia num obstáculo
epistemológico e metodológico, desde quando se mantenham claras as implicações evidentes, os
limites e possibilidades dos conhecimentos construídos e das possíveis ações a partir deles. Em
educação, por exemplo, uma implicação dos professores em nível do conjunto da pesquisa pode
ajudar a constituir uma via interessante de aperfeiçoamento e conduzir a uma valorização do
professor enquanto profissional.
É interessante entender que a capacidade de analisar sua prática e de articular esta reflexão por si
e pelos outros pode ser considerada como uma habilidade essencial em um professor. Está
contido num dos veios do próprio significado de formação e de sua característica intersubjetiva.
É possível se afirmar que a pesquisa em educação não pode se contentar com uma validade
interna em nível da coerência lógica e do refinamento do discurso teórico. Ela deve, igualmente,
dar conta das demandas e/ou exigências dos objetos educacionais, isto é, das problemáticas
educativas e das pessoas que as vivem, tanto a partir do próprio processo de pesquisa quanto dos
resultados em si. Por conseguinte, cada vez mais uma mera estética argumentativa formal perde
terreno para o critério da pertinência sócio-profissional, principalmente nos cenários formadores,
sem, entretanto, relegar a segundo plano as conquistas do rigor científico. Em síntese, faz-se
necessário praticar, em ciência, aquilo que denomino de rigor fecundo e implicado.
Nos campos formativos, a validade de uma pesquisa não pode se definir pela pureza formal ou
estética, sob pena de reforçarmos o estéril hermetismo científico e as catedrais dos especialistas
afeitos às tecnocracias insensíveis, valores que não se adequam à tradição da etnopesquisa
crítica. Portanto, o processo interpretativo das etnopesquisas pelos seus pressupostos, pela
cosmovisão que alimentam, caminham na direção de uma validação pelas vias da pertinência
sócio-profissional, principalmente, nos cenários educativos escolares.
Tomando ainda a questão da ética na produção do conhecimento, temos que nas raízes da
etnopesquisa está contido um princípio básico e um ponto de partida: descrever para
compreender. Entretanto, o processo de compreensão na prática da pesquisa não se encontra fora
de uma epistemologia social e de uma ética comunitária.
Vemos em Morin, por exemplo, que a ética da compreensão exige argumentar, refutar, em vez
de excomungar e lançar anátemas. Desta perspectiva, a compreensão impede os barbarismos,
mas não impede a condenação moral, já que, segundo este autor, favorece o julgamento
intelectual. No pensamento de Morin, uma auto- ética da compreensão deve articular-se a uma
ética comunitária que a precede e a transcende. Aqui, o significado atinge uma forma pública e
comunal. Em vez de privada e autista, parte-se da premissa de que todos têm o direito de serem
compreendidos, sem estarem, por outro lado, imunes ao julgamento crítico da auto-ética e da
ética comunitária (Macedo, 1997).
Tal ética comunitária deságua, por conseguinte, numa prática solidária e na solidariedade como
religião. E aqui Morin ironiza de uma forma extremamente ética: "Alguns sociobiólogos
sustentam até que haveria um gene da solidariedade. Não acredito, mas este gene não me
incomoda..."
Os etnopesquisadores dos meios educacionais não devem também se incomodar com este
suposto gene. Devem constituir, na prática, um universal similar, até que um dia se transforme,
quem sabe, num ideário de invariante sociobiológica, a serviço de uma pesquisa socialmente
pertinente, relevante e emancipatória.
A escrita de uma etnopesquisa
Não, não é fácil escrever. É duro como quebrar rochas. Mas voam faíscas e lascas como
aços espelhados.
Clarice Lispector
Uma das orientações primeiras na escrita de uma etnopesquisa, face à diversidadade, densidade e
detalhismo dos "dados", é disciplinarse na organização destes "dados" e evitar digressões. Neste
sentido, uma das recomendações é manter-se atento e focalizado no objeto e nas questões
fundamentais do estudo. Wolcott (1990) nos recomenda per-guntar-se continuamente: "isto é
realmente um estudo do quê? Concordando com Wolcott, eu acrescentaria uma outra indagação,
para mim incontornável: o que tenho de responder face às questões fundamentais da minha
problemática? O que se vê, nestas recomendações, é uma constante preocupação com a
organização do pensamento, para a produção de um texto que se movimente claro, coerente e
organizado.
É comum que as emoções não sejam expurgadas da redação de uma etnopesquisa; não se pode
negar que os afetos movem em muito as análises; não consigo imaginar um pesquisador
desprovido de afeto em relação ao seu objeto de estudo. Mesmo sabendo da complexidade desta
relação, ela é inevitável. Outrossim, é necessário tomar-se consciência de que as emoções, por si
só, não podem guiar um processo de construção do conhecimento, faz-se necessário aprender a
dialetizar de forma cuidadosa o movimento de aproximação e distanciamento do objeto
investigado, numa vigília constante ao imperativo de cientificidade da pesquisa. Uma pesquisa
não é um romance, tão pouco um poema; existem especificidades epistemológicas e
metodológicas que devem ser vistas com bastante cuidado para que se preserve o lugar da
cientificidade, por mais que as inspirações que fundamentam a etnopesquisa desconstruam
alguns rituais da ciência "dura". Aspirar um processo de objetivação na construção do
conhecimento não pode ser desprezado pelo fato das etnopesquisas cultivarem a flexibilidade e a
sensibilidade.
É a partir dos trabalhos de etnógrafos da educação clássicos, como Wolcott, Smith, Erickson,
Burgess, Hammersley, Jacob e Woods, que alguns princípios tornaram-se lugar comum na
redação de um relatório em etnopesquisa. Um dos mais importantes princípios que regem a
escrita deste tipo de pesquisa é a clareza. Neste sentido, ser preciso, metódico e científico não
significa linguagem hermética, ou seja, de difícil acesso. O esforço aponta para a direção de uma
escrita compreensível, que não fique distante da possibilidade da comunidade utilizá-la, num
processo de socialização mais ampla do conhecimento educacional. Simples e diretas, as idéias
devem ser organizadas e corretamente comunicadas, assim como devem estabelecer conexões
entre o saber novo e os conhecimentos correntes e reconhecidos. Assim, estaríamos coerentes
com um outro princípio básico: a consistência.
Um outro princípio que insistimos ser seguido junto aos alunos de pós-graduação é que nas suas
monografias, dissertações e teses, haja uma referência fundamentada e bem elaborada sobre os
recursos metodológicos utilizados para que o leitor possa retraçar com clareza os pressupostos e
os caminhos percorridos pelo pesquisador. Isto não significa hipertrofiar metodologicamente um
relatório de estudo.
Por concluir, entendo que escrever emerge da arte de ver, perceber e traduzir em palavras e
frases aquilo que a imaginação constitui. Ademais, faz-se necessário afirmar, aqui, a natureza
heurística da metáfora e a sua contribuição significativa para a justeza da descrição. Torna-se
pertinente, por este veio argumentativo, nos inspirarmos naquilo que Hess(1995) nos diz a
respeito do processo de escrever, para ele,
Desta perspectiva, tornar-se um escritor, num sentido amplo, é constituir-se na narrativa escrita, é
criar um estilo e um processo identitário comunicativo muito longe do ato simplório de apenas
colocar no papel algo percebido.
O caso "Antônia se recusa a falar" fez parte de uma pesquisa conduzida por mim durante a
construção da minha dissertação de mestrado, que estudou um programa de orientação
compensatória de educação infantil, num bairro "periférico" de Salvador. Foram utilizados os
recursos qualitativos inerentes à etnopesquisa crítica e, por via das ações pedagógicas
envolvendo a performance de Antônia, uma aluna de 5 anos, desvelou-se uma série de
etnométodos representativos do modus operandis e da percepção de educação que a instituição
cultivava. Em verdade, o caso Antônia fez parte de um corpus empírico bem mais amplo,
compondo o que nas pesquisas de campo denomina-se processo de triangulação.
Faz-se necessário informar que a pesquisa de que o caso Antônia fez parte foi construída por
uma participação observadora, porquanto o pesquisador fazia parte da própria equipe pedagógica
enquanto psicólogo do programa investigado(este autor).
Antonia é uma menina pobre, moradora da periferia de Salvador, tem cinco anos, olhos vivos e
sorriso largo. Sua família, apesar de pauperizada, a mantêm bem cuidada. Como com todos os
alunos do programa pré-escolar, a família de Antônia procurava uma formação de melhor
qualidade, num programa que nascera subsidiado, acreditando nos princípios da educação
compensatória e seus pressupostos – a pobreza fabrica alunos e famílias deficitárias, que
compensados nos seus déficits por ações educacionais ampliadas, superarão tais déficits e,
assim, evitar-se-á o fracasso escolar destes alunos.
Numa tarde de terça-feira, fui procurado pela assistente social e coordenadora do programa,
relatando-me que Antônia, há um mês, não tinha pronunciado sequer uma palavra em sala de
aula, apesar do esforço da professora, da coordenadora pedagógica e dos próprios pais de
demovê-la desta atitude. Pensei, a princípio, tratar-se de um processo de autismo, face à forma
radical em que se apresentava sua incomunicabilidade.
Um desligamento do programa também poderia acontecer, pois seu aprendizado era quase nulo,
enquanto outras crianças aguardavam vagas, situação crônica em termos de educação infantil
pública na Bahia.
Antônia não pronunciava nenhuma palavra, não cantava, não rezava, não participava das
cantigas de roda nem empenhava-se nos rituais cotidianos; não cumprimentava, não dava tchau
para a professora, nem boas vindas aos visitantes, cantando para eles, tão pouco relatava as
vivências do seu cotidiano extra-classe.
A professora colocara-me que desistira de insistir para Antônia falar. Percebi que começara um
certo isolamento por parte da professora.
Percebi que alguns dos seus coleguinhas já a designavam de "doidinha". Nestes momentos, as
feições de Antônia fechavam-se e ela se afastava.
Já batemos, já aconselhamos, deixamos de castigo, sem resultado. Ela vem tagarelando até a
porta da escola, ao entrar, não pronuncia uma palavra. A professora já deixou de lado, a
coordenadora já falou que se ela continuar assim, ela pode ser desligada. A vizinha já
aconselhou rezar ela(sorrisos), quem sabe, tem que vê, né! Pode ser algum olhado...
Após termos indagado sobre os antecedentes de Antônia, os pais relataram que Antônia não
queria ir para uma escola fora do seu bairro, entretanto, eles insistiram, e, no primeiro dia de
aula, Antônia entrou na escola aos berros. Eles tiveram de arrastála, pois já estavam atrasados
para o trabalho. A partir deste dia, Antônia vivia pedindo aos pais para estudar em outra escola
do bairro dela.
A escola aqui é melhor, lá é muito pobre, as professoras não são formadas, é muito ruim...
Conversando com a professora, ficava clara a decepção diante das tentativas, e a solução já não
mais estava nas suas avaliações. Comentava, vez por outra:
Acho que pra esta só escola especial, aqui não temos condições de lidar com o problema
dela...
Num dos meus dias de trabalho, ao chegar cedo à escola, encontrei os pais de Antônia
esperando-me. Na conversa com os mesmos, pediram-me para mediar a possibilidade de deixar
um irmão e um primo com Antônia na escola, pois na sexta-feira passada foram apanhá-la no
fim da tarde e ela conversou com os mesmos no parque da própria escola.
Será que a coordenadora vai deixar? Acho que Deus ajudou nós...
Os pais de Antônia conseguiram que a menina tivesse o primo e o irmão no parque. O fato é que
Antônia timidamente conversava com seus pequenos parentes, os lábios quase não se abriam, o
olhar era fugaz, sorria timidamente, às vezes sentava-se no meio dos dois, alguns "sim" ou "não"
eram balbuciados com outros colegas, que pouco atentavam para o fato inusitado que ali
brotava. Revendo uma das frases que surgira nas minhas conversas com os pais, comecei a
compreender Antônia:
Ela parece que tem medo desse ambiente aqui... não sabemos porquê... nosso bairro lá é
muito diferente... achamos que aqui é muito estranho pra ela...
A partir deste episódio, apenas implementou-se a estratégia dos pais de Antônia. Ao fim do
último semestre, Antônia já era considerada uma criança normal nas avaliações do programa...
O que se percebe é que esta aluna, como muitas das camadas populares, na sua subjetividade,
vivenciava um processo de escolarição/ruptura, onde via-se, a todo momento, sendo definida
pela institucionalização do desvio. Definição esta que não se produz mecanicamente e fora das
relações concretas, que no dia-a-dia da escola negociam decisões.
Na relação com seus pais, com a professora e colegas, Antônia construía sua contestação, com
seus recursos e os recursos que avaliou mais eficazes.
Não falar significava não querer ficar, querer outra coisa, Antônia constrói sua capacidade de
negociação calando-se, é sua forma de protestar, de afirmar-se.
No silêncio, Antônia afirma sua presença, sua existência única, e que naquele momento marca
com uma certa desordem a instituição.
Antônia fala uma outra linguagem. Urgente, a escola precisa de uma leitura segura para suas
resoluções, objetivas e eficazes. Para Antônia, a exclusão é a saída desejada: poderia voltar a
permanecer imersa na cultura do seu bairro, nas escolas do seu distante subúrbio. Antônia faz-
se quase opacidade, só a cotidianidade e o caráter indexal das suas expressões fornecem a via
de compreensão da sua itinerância escolar.
... também para o estranho...a cultura do novo grupo tem sua história peculiar, e esta história
lhe é até mesmo acessível. Mas nunca se tornou parte integrante de sua biografia, como
aconteceu com a história do seu grupo. Somente os modos de vida de seus próprios pais e
avós podem se tornar, para qualquer pessoa, elementos de seu estilo de vida. Túmulos e
reminiscências não podem ser transferidos ou conquistados. O Estranho, portanto, se
aproxima do outro grupo como um recém-chegado, no sentido literal do termo. Na melhor
das hipóteses, poderá querer e ser capaz de compartilhar o presente e o futuro com o novo
grupo, em experiências vividas e imediatas, mas sempre permanecerá excluído do seu
passado. Do ponto de vista do grupo abordado, ele é um homem sem história.
Schutz(1944:502).
Retomando as interpretações de Schutz sobre "O estranho", algo análogo pode acontecer com
várias "Antônias", alunos da periferia que no espaço/tempo escolar vivenciam rupturas afetivas,
cognitivas e negações sociais, sendo levados a convocar formas de enfrentamento que às vezes
aprofundam mais ainda as distâncias diante das expectativas escolares. Vimos que em nome de
uma adaptação, de uma socialização com características a-críticas, fabricavam-se mecanismos
de definição, designação e de exclusão.
Faz-se necessário pontuar que a itinerância de Antônia jamais pode transparecer um exemplo
de passividade diante das pressões institucionais, apesar do poder notório da escola em excluir
e marcar destinos escolares e sociais. É bom que se frise também que o processo de adaptação
jamais pode ser considerado um simples mimetismo, sem desconhecer, é claro, a potente ação
do instituído na escola...(Macedo,1995: 290-296).
Após a construção das noções subsunçoras da pesquisa, o "caso Antônia" foi selecionado para
análise dentre outros que fizeram parte do corpus empírico, constituindo-se numa fonte
significativa para a compreensão das ações educativas do programa compensatório de educação
infantil investigado, seus pressupostos e sua dinâmica curricular. Obviamente, várias outras
fontes de informação foram utilizadas de acordo com os recursos da etnopesquisa. O que é
importante mostrar, dentro de uma das tradições deste tipo de pesquisa, é como, por uma
itinerância de uma existencialidade interativa, por suas ações, pode-se ter acesso à compreensão
de um fenômeno social ou de uma instituição social. Parte da história da vida escolar de Antônia
representou para a pesquisa um momento fundamental para a compreensão in situ da ação
curricular compensatória, bem como, ao relacioná-la com as teorias liberais que a inspiram,
pode-se ampliar por uma abordagem pontual, contextualizada, o conjunto do conhecimento sobre
o ideário da educação compensatória entre nós. Woods chama isto de uma "teorização fundada".
O estudo da prática pedagógica de Janice fez parte da pesquisa da tese de doutorado, defendida
no Departamento de Ciências da Educação da Universidade de Paris VIII, onde, utilizando os
recursos inerentes à etnopesquisa crítica, pesquisei dois programas públicos de educação infantil,
sendo um compensatório(de onde fez parte "O caso Antônia") e outro, comunitário, as duas
possibilidades pedagógicas públicas disponíveis em educação infantil na Bahia, à época da
pesquisa (entre 1987 e 1994), e que mostrou-me as profundas contradições das políticas, dos
pressupostos e das práticas para a educação da criança em nosso contexto. Mais adiante,
mostrarei as considerações conclusivas deste estudo como exemplo de uma síntese de um
relatório conclusivo em etnopesquisa crítica, onde as perspectivas compensatória e comunitária
em educação infantil são refletidas, a partir do estudo edificado.
Ao chegar, acomodei-me num canto da sala de aula para não perturbar o trabalho diário de
Janice com seus alunos. Ao mesmo tempo, tinha o gravador sempre à minha disposição, e
procurava observar discretamente as tarefas e interações na sala de aula.
As crianças vão chegando e bebendo o mingau que já estava na mesa. Era uma segunda-feira,
Janice propõe um desenho livre sobre o fim de semana.
Ao começar a tarefa com lápis cera e papel ofício, entra Nadson atrasado e trazendo um siri
amarrado pela poan com um barbante. As crianças olham curiosas. Janice levanta-se e dirige-
se até Nadson.
Nadson sai, entretanto amarra o siri em frente à porta da sala, que permenece aberta por causa
do calor intenso(a escola é uma velha fábrica desativada e invadida pelos moradores). Algumas
crianças saem para ver o siri. Janice reclama:
As crianças vão e voltam diversas vezes pra ver o siri. Janice começa a demonstrar impaciência,
pois as crianças a todo momento saem pra ver o crustáceo.
Janice fica um tempo em silêncio, olha alguns papéis, arruma algumas coisas no armário,
resolve chamar Nadson. Pensei na possibilidade de uma punição.
Nadson sai com ar de apreensão, pega o siri e o traz pendurado no barbante, entregando-o a
Janice. Janice pendura o crustáceo numa das paredes de madeira da sala e argumenta:
J – Vocês queriam ver o siri, né? Então está aqui... hoje nós vamos falar sobre este animal do
mar, tá certo?
Uns levantam e olham de longe. Outros chegam perto e tocam o animal que abre as poans para
mordê-los. Nadson, junto a seu bicho, conta como conseguiu pegá-lo.
J - Vocês sabiam que o siri tem bastante sustança para o crescimento de vocês? Pois tem...tem
cálcio e ajuda no crescimento de vocês.
- Agora eu vou escrever a palavra Siri no quadro e vocês vão tentar copiar...está certo?
- Quem quiser desenhar, aproveite o papel e desenhe também...depois cada um vai contar uma
história de siri...
As crianças correm para as carteiras e começam a tarefa. As atenções concentram-se ora no siri
pendurado, ora na palavra escrita. A movimentação é intensa, entretanto, voltada para a tarefa.
J - Vocês sabiam que a poluição e o lixo estão acabando com os peixes, os mariscos, inclusive os
siris?
- É preciso a gente ter cuidado com o lixo...muitas vezes a gente aqui não tem comida em casa, e
se não fosse o mar, a gente ficava com fome.... Se acabarem os animais do mar, muita gente vai
ter que pedir comida nas ruas...
As crianças começam a se arrumar para sair, são quase 11:30 da manhã. (Macedo,1995: 302-
308).
Ao entrar na sala de Janice, vários trabalhos dos alunos estavam pendurados na parede. Neles
estava escrita a palavra "LIXO" com feijões colados.
Pesquisador – E esses trabalhos, Janice, como foram feitos?
J – O tema do lixo, a gente trabalhou assim com eles: a gente abordou o que era o lixo...eles
colocaram que o lixo não servia pra nada, entende? Que o lixo trazia doenças...e aí a gente
separou o lixo que tinha proveito para a agricultura e o lixo reciclável para a indústria...o
papelão, o papel, o plástico, as latas, aquilo que a gente pode transformar... aí fizemos um
teatro sobre o menino que anda no lixo e o menino que não anda no lixo...eles disseram que o
menino que anda no lixo pega vermes... doenças.
Então, neste diálogo que a gente teve, entrou também o problema do entulho daqui de Novos
Alagados...a gente está com o problema do aterro, que os ecologistas são contra, e é uma coisa
urgente pra nós.
Na pesquisa, a gente saiu e identificou o lixo, separamos o que nos interessava e jogamos na
lixeira o resto.
J – São trabalhos com o tema para eles terem contato com a palavra "lixo", e também trabalho
com a coordenação motora, utilizando a mesma palavra do tema gerador. Estes eu trabalhei
com feijões.
J – Vêm da Secretaria da Educação, a gente compra, existem doações,... a cola, por exemplo, a
gente faz aqui mesmo...a gente pega farinha de trigo ou farinha de mandioca mesmo, a gente aí
faz a cola. De início tinha cola, agora a escola está sem condições de adquirir...
Pesquisador – Ok... Segunda-feira volto aqui para acertarmos melhor a reunião com os
pais.'(Macedo,1995: 380-390).
Aquela expressão que já me era familiar, alertava-me que algo de anormal acontecera na sala
de aula de Janice. Demorei-me um pouco e fui discretamente à sala. Encontrei Janice com o
semblante fechado e transpirando muito. A porta da sala estava fechada, fato incomum.
J – Aqui, professor, a professora tem autonomia pra tomar decisões, não é como na escola
pública e na particular que qualquer coisinha manda-se pra fora da sala, para a direção ou
para o orientador, e a professora se vê livre... eu não vejo elas como educadoras, são, como
Vera disse, dadeiras de aula...aqui eu armo e desarmo o meu barraco... (sorri ligeiramente).
Roupa suja se lava em casa...eles sabem que eu sou assim... precisam aprender a não confundir
liberdade com bagunça, escola com a rua...
As crianças estavam sentadas sem nenhuma tarefa, enquanto Antônio estava de cabeça
baixa...as crianças conversavam em voz baixa, quase susurravam... Senti que minha presença
não deixava Janice à vontade, saí. Por muito tempo a porta da sala ficou fechada, um fato raro.
No primeiro extrato deste bloco, que denominei " A aula inesperada", vimos como diante de um
ato inusitado de um dos seus alunos, Janice tenta organizar as tarefas inicialmente propostas e
no próprio desenrolar destas, muda sua estratégia, incorporando na sua aula este momento
inesperado.
Por alguns instantes, Nadson desestabiliza sua aula, com o siri amarrado a um barbante, face
ao intenso interesse despertado nos seus colegas. Aquele era um fato mais importante para os
alunos do que a proposta de aula que seria desenvolvida.
Janice pensa, resiste, enquanto busca uma saída pedagógica, uma estratégia diante do evento,
do acontecimento arrebatador para seus alunos. Termina por incorporar o acontecimento ao
seu objetivo pedagógico.
Toma o inusitado nas mãos, assimila a disposição motivacional dos alunos, articula com sua
preocupação formadora.
Trabalha a palavra "siri" e as suas letras, esclarece detalhes sobre o animal marinho e seu
ambiente, problematiza a sua existência e de outros animais no seio da comunidade.
Em conversa à parte, Janice comenta que pra ela, trabalhar assim torna-se mais fácil e
recompensador.
Percebi como num momento pedagógico de certa maneira "dramático", por conter uma ruptura
numa certa ordem que se construía, edifica-se um outro instante, um outro significado para a
aula. Janice abre-se à pressão da construção motivacional dos seus alunos, possibilita a
negociação que tacitamente, a partir deles, já apontava para um outro objetivo. Faz do seu
programa uma estratégia para facilitar a "brecha" pedagógica.
Há na sua concepção de pedagogia do ensino infantil, quando diz que prefere trabalhar
articulada com as expectativas dos seus alunos, a noção de que o sentido lúdico naquela
realidade educacional impregna toda a prática. Sabiamente o incorpora.
A presença do siri na sala de aula tratava-se para as crianças de um fato vivo, com o qual elas
brincavam no seu cotidiano à beira-mar, estava contido o gosto diante do aspecto
lúdico/perigoso que representa o siri para as crianças. Observar os seus movimentos, tocá-lo
rapidamente para não ser mordido, ter o prazer de prendê-lo apesar da sua agressividade,
representava, acima de tudo, movimento lúdico.
Janice exerce a sua "escuta sensível" e deixa que a abertura à pluralidade das ações tempere
sua prática pedagógica. Não abre mão da sua condição de professora, entretanto move-se com o
grupo, articula, conjuga, completa.
No extrato que denominei "Um tema gerador", o método de Janice novamente vem à tona.
Janice me explica que nem sempre o tema gerador é proposto pela criança, ela também propõe
a partir da discussão com suas colegas e as pessoas da comunidade.
Explica que procura ouvir seus alunos, complementa seus comentários, constrói peças de teatro,
pesquisa nas ruas, problematiza o tema.
No que se refere ao extrato que denominei "Janice desarmou o barraco", é significativo o que
representa esta expressão na comunidade, trata-se de um momento de decepção, raiva, um certo
descontrole, que caracteriza a condição de um favelado que, expulso do seu local de moradia,
tem que desarmar a sua casa, o seu barraco. O contrário significa um processo de conquista,
construção, satisfação. Fui à procura deste significado na prática pedagógica de Janice.
Encontrei uma pessoa fechada, ofegante, agitada, fato incomum no seu dia-a-dia com as
crianças. Não escondia a decepção em relação aos seus alunos, e fora dura no sentido de
afirmar o espaço da escola como um espaço que tem limites de tolerância a determinados
comportamentos, preocupação que nutre em relação a outros aspectos da escola comunitária
que avalia tolerante em excesso. Com isso, Janice marca aquele espaço de forma
irreconciliável, pune severamente seus alunos com a retirada de programas de lazer. Deixa-os
sentados sem tarefa, parece querer que aquele momento se prolongue, enquanto momento
impregnado de frustrações, arrependimentos e fadiga, ressaltando a conduta inadequada de
Antônio ao separá-lo dos colegas.
Janice justifica suas atitudes ao mesmo tempo que critica um certo descompromisso dos
professores das escolas públicas oficiais, que, segundo ela, são "dadeiros de aula", e não
educadores; diante dos problemas da sala de aula, os transferem para a Direção ou para os
Serviços de Orientação.
Em resumo, a prática pedagógica que emerge na sala de aula de Janice, longe de refletir um
purismo pedagógico calcado na inspiração comunitária, toma feições e é temperada com a sua
idiossincrasia enquanto professora. Ao mesmo tempo, o conjunto dos seus métodos, dos seus
etnométodos, melhor dizendo, aponta nitidamente para uma inspiração que, entre nós, costuma-
se denominar uma pedagogia popular, na qual acredita e está implicada na condução da sua
classe de ensino infantil (Macedo,1995: 409-418).
Com este bloco de observações sobre a prática pedagógica de Janice, adentrei pontual,
significativa e relacionalmente em vários aspectos que caracterizavam a educação infantil
comunitária na E.P.N.A., até porque a professora Janice desempenhava um papel significativo na
escola e suas orientações curriculares, assim como no que se referia às ações pedagógicas
caracterizadas como uma "pedagogia em movimento". Janice consubstanciava-se num ator
pedagógico de extrema representatividade para a compreensão das ações educacionais ali
desenvolvidas.
- Não, eu não sou daqui, eu sou Sergipana, mas eu me criei aqui...praticamente eu não tenho
nem pai nem mãe, fui por muito tempo menina de rua, aí uma família me criou...com oito anos
vim morar aqui...Mas eu queria sempre trabalhar com crianças, com crianças como eu fui,
pobre...mas na pré-escola, é um momento importante demais, porque eu via as mães saírem
para trabalhar, lavar roupa, ficavam aquelas crianças sem cuidado, sem alimentação...Ter
contato com a escola, nada...eu achava que naquele tempo que a mãe estava trabalhando,
estava mariscando, fazendo qualquer coisa, eu podia ajudar a construir o futuro das crianças
com a aprendizagem na escola, entendeu? Por isso que decidi me dedicar ao pré-escolar...
- Em primeiro lugar, a escola só pega uma professora que vive aqui no dia-a-dia, que conheça
as crianças, não se vai em outros bairros recrutar para trabalhar com as crianças, a gente tem
uma orientação pedagógica, apesar de que, a gente na comunidade já tem l6 anos de
experiência e pode passar nossa experiência para outras pessoas... A gente trabalha
basicamente com as orientações de Paulo Freire, a vida da criança é muito importante para
nós... às vezes a gente está com uma aula preparada em conjunto sobre os meio de transportes,
mas daqui a pouco tem um acidente, o menino caiu na maré, faleceu... eles vão para o enterro,
aí a gente vai trabalhar aquele assunto que a gente conviveu, entendeu? A gente está sempre
preparada para trabalhar bem o que é a vida concreta deles, da nossa, aliás(sorrisos). Muitos
deles, professor Roberto, já fazem cálculos, pois são eles que vão comprar as coisas nas vendas,
nas barracas...,às vezes vendem coisas na rua pra ganhar um dinheirinho pra ajudar em
casa...eu uso muito isto pra exercitar a matemática... às vezes, a gente imita, faz teatro, um é o
dono da venda, o outro é o empregado, um é o comprador e o outro o viajante...e assim eles vão
estudando a matemática...depois disso, eu ponho no papel pra ver como eles fazem... às
vezes,mando medir a canoa do pai, ver que canoa é a maior, a menor... mando medir a rua da
gente e comparar com as ruas do centro da cidade... é assim,... agora eu aproveito e a gente
reflete porque as ruas da gente são pequenas, finas e feitas de pontes de madeira enfiadas na
lama...isto eu não deixo passar nunca...
- Eu acho que no início do ano, tudo bem, mas no segundo semestre devia modificar um pouco,
porque... eu não entendo direito... esse negócio de idade, a criança tem um saber, a idade... não
importa que ele tenha 5 anos, por que ele tem cinco anos é obrigado a ficar na sala do pré? Eu
acho assim: se tem 5 anos e ele tem capacidade de pegar um aprofundamento, ele vai... fazer o
contrário é uma perversidade... olhando as nossas necessidades aqui, as necessidades por
conhecimento das nossas crianças...
(Reflete por um certo momento) - Olha... a escola pública, apesar do ensino não ser bom pra
nós, porque as professoras são de outra realidade, não são sensíveis à vida das crianças de
favela, encontram tudo prontinho, não fazem pesquisa, já tem no livro descartável tudo pronto...
em um ponto a escola do governo é boa, para a organização da criança, ela tem obrigações com
ela própria, ela tem um horário cobrado, tem que se vestir e se cuidar...eu acho que dá mais
responsabilidade ao aluno, entendeu? E aos pais também...E a escola d'agente aqui, a escola
comunitária, ela é muito...os pais e os meninos entram na escola com os cabelos lá em cima,
entendeu? A escola comunitária é muito boa porque ela trabalha dentro da necessidade dos
alunos, dos pais, não se omite diante das dificuldades da comunidade, é uma ação coletiva...mas
eu acho que ela tira um pouco a responsabilidade da criança e dos pais...
- Você acha que o trabalho de pré-escolarização que você faz ajuda a criança?
- Ajuda, ajuda bastante! A gente percebe muita diferença, tem criança que chega aqui na escola
nos primeiros meses, não tem sentido a escola pra eles Chega lá, senta, ele não brinca, não
conversa, não desenha, nada...com o tempo, a gente começa o diálogo, a convivência, ele passa
a participar de tudo, entendeu? Eu acho que ajuda bastante no desenvolvimento dele no
momento e para o futuro na escola, como eu disse ao senhor... Eu tenho certeza que a pré-escola
deveria ser um direito para todas as crianças e não só para quem pode pagar... isso porque eu
percebo com os meus próprios filhos, eu vejo a diferença...o desempenho da criança que passa
pelo pré e aquela que não passa. Eu já vi isto, professor...eu já fui professora do
aprofundamento e senti na carne a diferença..." (Macedo, 1995: 430-444).
- Eu agora vou falar... minha turma também é igual a de Nilzete. É importante a pré-escola
porque pega a criança numa fase que ela quer conhecer tudo, quer sentir tudo. Na minha sala,
por exemplo, a gente faz uma rodinha e a gente conversa sobre tudo, sobre o bairro, sobre a
família, sobre a escola, sobre a cidade, eu converso muito com meus alunos, a gente tem que
estar preparada para enfrentar esta fase...
- Eu, por exemplo, conheço as crianças que não passaram pela pré-escola. Eles têm um
desenvolvimento muito diferente daqueles que passaram pelo pré...estes têm uma facilidade
muito maior...
- A criança quando chega aqui na escola não sabe quase nada sobre a escola e o que se faz
nela...Então, a partir do momento que ela começa a rabiscar algumas coisas, mostrar em casa
suas aprendizagens, os pais ficam alegres, já acompanham em casa, tem pais aqui que
acompanham na sala. Aí as mães ficam curiosas e até se interessam para estudar também, ou
retornar, depois de ter deixado de estudar.
- Quero dizer que o atendimento das crianças aqui começou em 1977, primeiro com a Creche
Casulo, através da necessidade que o bairro tinha de ter uma assistência melhor para as
crianças, depois veio a pré-escola, uma outra necessidade...porque os pais e a própria
Associação perceberam o tempo que os meninos e meninas perdiam sem aprender nada,
brincando na rua...para só entrar na escola com sete anos, imaginem o tempo perdido para se
desenvolver na escolarização...a gente via os filhos dos barões se alfabetizarem, com seis anos,
e os nossos filhos só aos sete anos e olhe lá!
- Eu quero voltar à importância da pré-escola, eu acho que se houver uma boa pré-
escolarização, as coisas na alfabetização são bem mais tranqüilas, fica um processo, uma
continuidade, um desenvolvimento. Só quem alfabetiza é que sabe o que é, ao mesmo tempo,
num só ano, desenvolver as habilidades e entregar, no fim do ano, a criança alfabetizada...,não
é fácil não...
É marcante nos depoimentos das professoras das pré-escola e séries iniciais da E.P.N.A a
importância que dão à pré-escolarização enquanto um momento de aprendizagem que, ademais,
é preciso valorizar-se face aos seus efeitos no "desenvolvimento" da criança e para sua
escolarização futura. Há uma notória preocupação com o tempo que a criança pobre perde fora
da escola, preocupação esta construída na observação atenta à escolarização dos filhos das
famílias das classes privilegiadas(os barões).
Vê-se como a noção de "desenvolvimento" está colada ao sentido de aprender progredindo, isto
é, aprender mais coisas, saber mais, saber expressar-se em sala de aula, dominar o manuseio de
um lápis, de um papel, enfim, dominar as tarefas e posturas valorizadas e esperadas pela escola.
Há, também, uma clara valorização da educação infantil como um momento de preparação para
a alfabetização e escolarização como um todo..
Nota-se que o objetivo da guarda não vem à tona com ênfase entre as professoras. A concepção
de educação infantil constrói-se enquanto momento pedagógico importante em si mesmo e na
relação com a escolarização... este significado edificou-se em muito pela pressão dos pais ao
longo da história do programa, segundo as professoras.
Vê-se, portanto, por estes diálogos, o significado dado pelo corpo docente pré-escolar e das
séries iniciais da E.P.N.A, quanto à pré-escolarização das crianças da comunidade. Comentam,
avaliam, criticam e afirmam o que para elas é importante enquanto prática pedagógica,
constroem e reconstróem comentando a realidade que objetivam na cotidianidade das suas
ações educacionais comunitárias em termos de educação infantil...(Macedo,1995: 450-460).
Este extrato demonstra, de forma sintética, "dados" e procedimento analítico de um evento, onde
o subsídio são interações organizadas via um seminário co-construído por interesses conjuntos
dos atores da escola pesquisada e o próprio pesquisador, enquanto participante do programa
comunitário de educação infantil. Trata-se de um recurso significativo, para aqueles que, no
âmbito das etnopesquisas críticas dos meios educacionais, valorizam os processos interativos
como fonte de compreensão das práticas pedagógicas cotidianas.
Os 'dados' ora analisados referem-se à tabelas que mostram o estudo de acompanhamento nas
séries iniciais das crianças assistidas pelo programa de educação compensatória desde 1983...
O que se verifica, por exemplo, é que na primeira turma atendida durante um ano de ensino pré-
escolar, tomando sua performance na primeira série, o fenômeno da evasão se apresenta de
forma mais intensa nesta série(tabela I:B). A alfabetização e a segunda série não apresentam
tantas dificuldades para estes alunos. Na tabela 1:C, onde visualizam-se os 'dados' globais do
acompanhamento, chama-nos à atenção a proporção de alunos 'descontínuos' de 53,8%
(repetentes e evadidos), que é mais elevada do que a dos 'aprovados contínuos', 46,1%.
Portanto, mais da metade dos alunos são 'descontínuos'. Outrossim, considerando o estudo até o
momento, pode-se verificar que 76,9% dos alunos egressos do programa permanecem no
colégio, os denominados 'ativos'(aprovados contínuos mais os repetentes).
Pode-se verificar, desta forma, que no grupo que ingressou no colégio em 1984, assistido pelo
programa durante o ano de 1983, a 'descontinuidade' é bastante significativa, revelada pelo
índice de repetência e evasão.
Quanto ao segundo grupo, assistido durante dois anos pelo programa compensatório, pode-se
verificar, como no grupo anterior, que é na primeira série que acontece o maior número de
repetências e evasões(tabela 2:B). Note-se que na tabela 2:C a proporção de 'aprovados
contínuos', 58,8%, é maior que os descontínuos 4l,1%. Os ativos ficam em torno de 70%. É
significativo no acompanhamento desse grupo a proporção de evadidos, quase 30%.
No que se refere ao terceiro grupo estudado, que iniciou a alfabetização em 1986, verifica-se já
neste período um número expressivo de repetentes e evadidos(tabela 3:B). Caso se confirmem as
tendências dos grupos anteriores, onde na primeira série se verificou um significativo índice de
repetentes e evadidos, este grupo poderá apresentar uma proporção significativa de
'descontínuos', já que na alfabetização esse fenômeno já se dá de forma notória.
Na tabela 4, onde todos os dados globais estão agrupados, com todas as séries e turmas, pode-
se verificar que a proporção de 'aprovados contínuos' é maior do que a de 'descontínuos'; note-
se, no entanto, que a proporção de 'descontínuos' é cerca de 41,8%, distanciando-se pouco da
metade proporcional.
Com esses 'dados', verifica-se que a evasão e a repetência dos alunos advindos do programa é
considerável, o que significa que 41% dos alunos atendidos pelo programa tiveram grandes
dificuldades em ultrapassar com seus backgrounds escolares a escolarização proposta pelo
colégio. No entanto ao se verificar a proporção de ativos(aprovados contínuos mais repetentes),
detecta-se que apesar das dificuldades, uma proporção expressiva, 78,2%, continua resistindo à
seletividade, vivenciando a escolarização das séries iniciais.
O que é importante enfatizar a partir destes dados é que o programa compensatório ficou longe
de cumprir e justificar suas metas no que concerne à erradicação da evasão e da repetência das
crianças pobres na escola...o que remete as análises destes fenômenos para formas muito mais
complexas do fracasso escolar... "(Macedo,1988: 63-67). Vide Anexo 2.
Tendo como principal objetivo a análise de dois programas pré-escolares, marcados pela
diferença, pelo conflito de ideários e por complexas contradições, a pesquisa, na sua
verticalidade, emerge desnudando o percurso de superações epistemológicas, práticas e
assincronismos do seu ator/autor; seus atos falhos e suas implicações enquanto pesquisador. O
que nas pesquisas não-hermenêuticas fica em opacidade, no processo implicacional deste estudo
aparece enquanto inquietante dialética encarnada do colonialismo intelectual, intensamente
vivenciada por seu autor.
A abertura a uma visão relacional do objeto de pesquisa com níveis ditos macros, privilegiando
as construções locais dos atores pedagógicos, a flexibilidade, em considerando visões estéticas
ou mítico-poéticas da realidade, elaboram uma investigação de característica eminentemente
hermenêutica.
Por uma "descrição densa"(Geertz), por uma abordagem clínica e crítica, busquei a
característica intensiva, pontual, temática e relacional do objeto analisado, seu caráter
autenticamente qualitativo. Considerei, ademais, a incontornável capacidade ou competência
interpretativa de todos os atores pedagógicos implicados, via entrevistas abertas, história de
vida, análise de documentos, análise construcionista, grupo focal, observação de movimentos
públicos, observações de aulas e análise de expressões escritas e estéticas. Através destes
recursos, cheguei à "rede de significados"(Martins,1995) dos currículos propostos e vivenciados
pelos dois programas.
Minhas buscas levaram-me às significativas iniciativas das comunidades dos bairros pobres de
Salvador, os programas pré-escolares comunitários, nascidos das inspirações educacionais
populares e suas articulações organizacionais e institucionais, que brotam em face das políticas
públicas iníquas no que concerne à educação infantil.
Percebi, então, que se desvelava diante de mim uma perspectiva educacional nascida no seio
das contradições históricas e fundamentais da sociedade brasileira e do contexto baiano,
particularmente, no que concerne ao atendimento infantil na escola pública.
Impregna-se nos argumentos norteadores das práticas uma noção de infância que se quer
universal, idealizada, uma invariante na história, facilmente "penetrável" e objetivamente
socializável. Vê-se como a diferença é tornada defeito numa abordagem francamente
ortopédica, isto é, interessada em "consertar" déficits.
O currículo que se institui quer saber sempre da vida dos seus sujeitos-alunos, constrói-se,
predominantemente, a partir deles, e movimenta-se com eles; torna-se um corpo híbrido e
movente de conhecimentos; desconstrói a todo momento, o poder do "está escrito"; daí a força
da oralidade nas relações e construções pedagógicas.
Pelo desenho livre, pelo jornal de classe, pelo teatro pedagógico, pela expressão incentivada e
fustigada, vivida e vivenciada, aproxima-se a criança do mundo letrado; a leitura na escola
começa com a leitura do mundo: inspiração paulofreiriana.
É aqui que se edifica uma das suas principais contradições e que atinge de frente a intenção
maior das práticas educacionais comunitárias: a requalificação do ato educativo, seriamente
comprometida pela extrema pobreza de recursos. No seio destas dificuldades, destes
comprometimentos, surgem dúvidas e contestações entre seus atores sobre aspectos
significativos da identidade do programa, diria mesmo assimilações pedagógicas paradoxais,
quando procuram algumas aproximações com pedagogias normativas e/ou prescritivas.
Uma "ilusão fecunda" os move,(as move predominantemente), a luta por uma educação pré-
escolar pública popular. Com este objetivo, reinterpretam a forma como a pré-escola pública
oficial compreende a criança que atende.
Por outro lado, via práticas alternativas, o estudo mostra a possibilidade sendo construída, no
âmago mesmo das contradições em processo.
Este estudo quis compreender, por uma etnopesquisa crítica e multirreferencial, através de uma
teorização encarnada, uma problemática curricular onde as questões tematizadas perpassam
todo um processo hermenêutico sobre a infância e a educação escolar. Ademais, o próprio
estudo, no seu processo, vai provocar significativas transformações em nível do pensamento e
da prática educativa do seu autor, face a dialeticidade e a dialogicidade implicacionais entre
sujeito e objeto, possibilitado pelas etnopesquisas de natureza reflexiva...(Macedo,1995: 720-
735).
Para este etnógrafo dos meios educacionais, graças à etnopesquisa, as mulheres puderam, de
alguma maneira, se apropriar da realidade social que lhes escapava até então. De mais, a
pesquisa de orientação qualitativa parece ser um meio significativo para permitir às mulheres que
se expressem mais livremente na presença de etnopesquisadoras enquanto atrizes e autoras
sociais sensíveis à condição histórica da mulher em sociedade.
Esta nova condição tem como efeito o desenvolvimento de conhecimentos em ciências humanas
antes recalcados, por uma ciência que praticou e pratica um sexismo de uma forma muito mais
explícita do que se imagina. Os temas e as problemáticas em geral privilegiadas pelas mulheres
cientistas e politicamente engajadas, não são necessariamente os mesmos eleitos pelos homens,
há uma feição e uma preocupação onde a condição histórica e presente da mulher de alguma
forma são pleiteadas.
É justamente com os diversos movimentos feministas que pode-se ver surgir uma ciência
impregnada do ethos feminino, que vem trabalhando cada vez mais densamente para abalar
velhas crenças patriarcais, emergindo daí perspectivas novas para pensar o social e o cultural,
diria mesmo a opção de vida da sociedade moderna. Nestes termos, uma outra racionalidade
seria cultivada, muito próxima da razão comunicacional habbermasiana.
Tomando a docência e sua formação entre nós como exemplo, nasce em meio ao que Tomaz
Tadeu da Silva(1995) compreende como o pensamento educacional brasileiro inflexivelmente
machista e patriarcal, apesar do magistério ser uma atividade predominantemente feminina.
É aqui que uma epistemologia social da qual já falamos tem um papel de desreificação e de
desconstrução fundamentais. Não estaria o objetivismo duro, o universalismo bárbaro, a
neutralidade cínica, sob a égide de uma razão autocentrada, machista? Não poderia ser a
etnopesquisa crítica e multirreferencial com seu ethos solidarista, inclusivo, comunitarista,
sedento de conexões e articulações, aberto ao acontecimento, intencionalmente emancipatória,
um instrumento interessante para o fortalecimento de uma inteligência feminina inquiridora e
inventiva, mas também poderosa o necessário para emancipar-se e emancipar? Por essas e outras
questões é que Rubim(1997), ironicamente, reinventou e ressignificou um "Maquiavel para as
mulheres", ao construir com sua obra uma "Princesa" bela, sensual, inteligente, perspicaz e
empreendedora, capaz de construir estratégias próprias à forma feminina de ver o mundo, uma
atriz social crítica e ressignificada pela forma feminina de ser.
Parece-me que a etnopesquisa é mais um recurso para se decretar uma falência absolutamente
necessária no fazer científico e no fazer educacional sexista: a falência do colonialismo bárbaro
que historicamente se estabeleceu, quando os homens descobriram o cínico e confortável habitus
da utilização das mulheres para os seus projetos iníquos, como aliás foi o que aconteceu e ainda
vem acontecendo nos meios educacionais.
Emergem desta perspectiva alguns eixos norteadores que avalio fundamentais para se chegar a
um bom termo na condução de uma etnopesquisa.
Entretanto, à medida que vai se apropriando de si mesmo, sua pesquisa experimenta o gosto
pela autêntica descoberta de sua subjetividade. Como num espelho, vê sua imagem (aquela
que nunca a ele fora revelada), exposta como se não fora sua. Examina-a em cada detalhe;
um ajuste aqui, outro acolá, aproxima-a da imagem de seus desejos. É todo um processo de
construir-se e, nesse construir-se, aos poucos, revelar-se.
Como se daria então a construção de um objeto de uma etnopesquisa? Interesse, desejo de saber,
inquietações sobre algum aspecto da realidade experienciada de alguma forma, um estudo
exploratório inicial cuidadoso, vão desaguar naquilo que considero a "alma" de uma pesquisa, o
que lhe dá vida e norteamento: sua problemática e suas questões fundamentais.
Para quem tem experiência de pesquisa, sabe que cumprida esta etapa, justificativas, objetivos,
métodos etc. emergem como uma mera conseqüência do cuidado com a coerência e a pertinência
adquiridas no compromisso com a competência de pesquisar, como produto de uma formação
bem solidificada nos âmbitos da preparação do pesquisador.
Seria de bom alvitre, também, que após a construção do objeto de pesquisa, o projeto fosse
socializado entre pessoas interessadas na temática, no sentido mesmo de submetê-lo à apreciação
da pertinência de sua constituição. Uma etnopesquisa crítica não visa satisfazer uma curiosidade
ou uma preocupação individualista inconseqüente. Tal postura recomenda inclusive que a
problemática e questões, e os demais componentes do projeto sejam socializados no meio escolar
pesquisado (Poisson, 1990), até porque a aceitação de um projeto de pesquisa pelas pessoas que
serão envolvidas, através de uma estada prolongada do pesquisador em campo, possibilita uma
caminhada investigativa muito mais fecunda e participativa.
Costumo desconstruir tal expectativa, convencendo-lhe de que é a sua competência teórica, sua
experiência com o objeto de estudo e sua acuidade criativa com o método que o transformará
num bom etnopesquisador. Trabalhar bem uma etnopesquisa demanda sempre uma certa dose de
ousadia curiosa e inventiva, porquanto, se há uma característica marcante nesta forma de fazer
pesquisa, é a sua natureza aberta à complexidade dos fenômenos humanos. Inteligência que não
aprendeu a desconstruir a maneira digital e binária de raciocinar na investigação dos fenômenos
humanos está fadada ao fracasso, ou à mediocridade ao implementar uma etnopesquisa. Tais
requisitos tornam-se incontornáveis quando tem-se, por exemplo, como objeto de pesquisa, a
prática educativa. Multifacetada, multimediada, multirreferencial, contraditória, ideologizada, a
prática educativa é, em verdade, uma construção hipercomplexa, longe de ser compreendida por
tecnologias retilíneas de pesquisa, e/ou procedimentos algorítmicos.
Marli André(1995) nos fala, por exemplo, que em sendo o pesquisador o principal instrumento
de coleta e análise dos "dados" de uma pesquisa etnográfica, "haverá momentos em que sua
condição humana será altamente vantajosa, permitindo reagir imediatamente, fazer correções,
descobrir novos horizontes". Por outro lado, esta mesma condição humana, por ser
ontologicamente insuficiente, bio-degradável, poderá levar ao erro, a deixar de ver e
compreender pontos chaves da situação pesquisada; envolver-se demais e perder o necessário
distanciamento para que possa emergir o fazer da ciência é uma dificuldade de extrema limitação
à construção e sistematização do conhecimento científico.
É interessante pontuar também uma preocupação mencionada por Marli André(1995) a partir das
recomendações de Merriam(1988) no que concerne à capacidade de escrever uma pesquisa
etnográfica. A autora ressalta
que muitas vezes o trabalho de campo é conduzido com todo cuidado, os "dados" obtidos
são ricos, significativos, mas o pesquisador não consegue pôr em palavras aquilo que
observou, ouviu e sentiu.
Da nossa perspectiva, a habilidade para a escrita de uma etnopesquisa precisa ser abordada entre
nós a partir de uma retomada muito mais ampla: a dificuldade histórica da maioria dos nossos
estudantes em expressar-se pela escrita. Neste sentido, faz-se necessário atinar que a questão do
método ultrapassa a competência do metodólogo, como se expressou Becker a respeito da
complexidade deste savoir-faire. Neste caso, necessário se faz uma preparação/conscientização
mais ampla e aprofundada sobre a criação pela escrita.
Pelo dito, cada vez mais me convenço da necessidade urgente de se formar em profundidade
aquele que é o principal instrumento da etnopesquisa, o etnopesquisador, principalmente porque,
reafirmo, a etnopesquisa é necessariamente uma prática complexa e de rupturas claras com os
cânones da pesquisa convencional.
Ademais, é preciso que o etnopesquisador entenda que ele não pode abrir mão da sua condição
de pesquisador. Este perigo advém do fato de que etnopesquisadores extremamente implicados
com seu objeto de pesquisa confundem pesquisa com militância ou meio de defesa por
identificação transferencial, após, muitas vezes, a sua conversão aos ideais do grupo pesquisado.
Alguns chegam a inventar, a partir do seu imaginário identificado, informações que em absoluto
saíram de uma verdadeira pesquisa. Mergulhar no contexto, vivenciá-lo densamente é tão
importante quanto o processo de afastamento para que o conhecimento científico possa construir-
se. O diálogo aqui deve ser permanente, visando uma legitimação comunitária, mas nunca
confusão populista, onde, em geral, abre-se mão da especificidade do fazer científico. Ciência
solidária sempre, entretanto, não é possível chamar-se de ciência qualquer conhecimento
produzido só na prática da solidariedade.
São pertinentes, neste sentido, as elaborações de Haguette(1987), quando sintetiza alguns vieses
e suas conseqüências em termos de distorções e erros numa pesquisa de inspiração qualitativa.
Esses também são motivos pelos quais defendo uma formação sedimentada no método,
principalmente em se tratando das etnopesquisas que, muito mais que outras abordagens
investigativas, lida com âmbitos extremamente complexos do ser-do-homem. Neste sentido,
demandam um pesquisador formado em profundidade, ultrapassando de longe o mero
instrumentalizar-se com técnicas. Precisa-se, aqui, de uma formação crítica bem fundada nas
chamadas humanidades e nos variados recursos metodológicos inerentes à etnopesquisa.
Considerações conclusivas
Na medida em que concebemos método enquanto caminho refletido, percebido necessariamente
por uma reflexão epistemológica fincada no seu uso social, isto implica em escolha, em opção
sobre a pertinência deste caminho. Da mesma forma, escolher e optar demanda um processo de
interpretação da pertinência e da relevância, e que ao mesmo tempo forma uma opinião, a
constitui. Tal incursão reflexiva na prática da pesquisa nos leva a compreender o quão esta
construção tem de alma e de carne, isto é, o quão impregna-se de existencialidade, como já
elaborara Heidegger.
Não foi nossa intenção, como se verifica, esgotar ou fazer uma exegese dos argumentos
metodológicos contidos nos âmbitos da etnopesquisa. Meu esforço foi de nunca desvincular o
método do referencial teórico-epistemológico, aliás, método é teoria em ato. Pretendi, refletindo-
os, fazê-los assunto de formação, evitando, ademais, tropeçar e cair no Zeitgeist – espírito do
tempo – da abstrata dicotomização tão recorrente entre método e teoria. Neste sentido, venho
reafirmar teimosamente a necessidade de refletir o método na pesquisa enquanto potencial
formativo para a prática compreensiva e transformadora de nós, professores, tão afeitos ao
imprinting científico e ao baixo mimetismo pedagógico. Vislumbro nesta via a possibilidade real
de uma formação do professor-educador enquanto intelectual e pesquisador, sem a aura
assombrosa que paira diante desta possibilidade. Pensar implicadamente a própria prática e a
prática dos parceiros é possibilidade alvissareira de uma reflexiva transformação na prática e pela
prática.
Capítulo IV - Etnopesquisa crítica, currículo e
formação docente
Nous avons cet avantage de sentir autour de nous un espace immense, mais aussi un vide
immense...
Nietzsche
No que concerne às questões envolvendo o entendimento do que venha a ser a prática docente, a
nosso juízo, é preciso afirmá-la como especificidade que deve resistir a toda investida de
pulverização e de descaracterização, em nome de uma suposta prática de ensino de forte
conteúdo heurístico, mas que termina por destituir da docência as complexas competências
necessárias ao exercício de um bom professor. Falar de professor- pesquisador significa, de
início, afirmar o professor que, continuamente inquieto, forma-se também pela dúvida,
questionando o conhecimento e a realidade que se lhe apresenta enquanto desafio. É aqui que
emerge a postura de pesquisa e a necessidade de instrumentalização, visando o fortalecimento na
requalificação das práticas e o poder pelo domínio do saber relevante. Sabe-se que ensino e
pesquisa nutrem-se mutuamente; outrossim, há uma preocupação predominante quando fala-se
de docência como um ponto de partida: a competência do professor onde a pesquisa aparece
como uma das fontes de revitalização contínua.
A partir dali comecei a construir a convicção de que pesquisa é muito uma atitude diante da vida,
implica em nutrir o espírito curioso da nossa especificidade existencial, o sentimento ético-
acadêmico de inacabamento, de liberdade para autorizar-se, alterar-se, bem como de que o
habitus do baixo mimetismo incrustado no ensino, e do imprinting incrustado no fazer científico,
vem instituindo solidamente no ethos formativo dos nossos professores uma visão deformada e
colonizada do que é a ação de ensinar e o fenômeno aprender. É notório o desconforto face à
curiosidade e à transgressão intelectual nos meios formativos da docência.
Foi como me senti, mensageiro do demo, arauto do inferno, pregador da discórdia, quando,
em certo momento de inquietação acadêmica, propus ao Departamento de Educação da
minha Faculdade que os alunos produzissem e defendessem um trabalho monográfico
orientado, ao final do curso de Pedagogia, onde fossem incentivados, principalmente,
trabalhos que versassem sobre temas contextuais, através de uma prática fundamentalmente
etnográfica e problematizadora.
Movido pela insatisfação por ver a universidade brasileira sendo marcada pelo mimetismo
acadêmico, transformada em verdadeiros cartórios que legitimam cada vez mais o imobilismo
iníquo da nossa sociedade, formando/moldando especialistas encasulados, parti para a persuasão
sobre meus pressupostos e propósitos.
Diante da proposta, colegas declaravam-se incrédulos a possibilidade, por não acreditarem nas
condições cognitivas e no backgraund escolar dos alunos, outros sentiam-se ameaçados diante da
ruptura formativa contida na proposta e alguns, mesmo sutilmente, edificavam algumas das
várias perversões acadêmicas que nós do métier bem conhecemos.
Quanto aos alunos, reproduziam a seus modos, as posturas dos professores, sugeriam que a
proposta não fosse incorporada ao currículo e ficasse em nível de uma adoção pessoal de
cada aluno interessado em pesquisa. Outros profetizavam que a proposta viraria, a
posteriori, uma espécie de adorno ou enfeite do currículo, já que o objetivo da maioria era
formar-se o quanto antes, e não colocar mais pedras no caminho... Macedo(1991:10-16).
No mesmo veio destas nossas inquietações, a crítica da crítica fazse pertinente. É preciso que o
poderoso fenômeno da moda sofra uma também potente desconstrução, até porque fazer
pesquisa hoje nos meios formativos já sinaliza um certo modismo, alavancado pelo projeto
modernoso do neoliberalismo perversamente competitivo que nos atinge em cheio.
A propósito, Antônio Nóvoa(1998) nos diz que em pedagogia "a moda significa quase sempre a
vontade de mudar para que tudo fique na mesma". Neste mundo tão etéreo, é preciso se cultivar
um certo ceticismo saudável, uma certa vigilância crítica em relação ao que está sendo proposto.
Inspirar-se, portanto, na passagem bíblica que nos recomenda: "examinai tudo..." seria um
primeiro e importante passo para uma atitude de pesquisa nos meios educacionais.
Uma das conseqüências de uma formação inspirada por alguns dos princípios aqui exercitados é
uma valorização autêntica da experiência e do vivido enquanto reflexões seminais para a
teorização da prática. Segundo Pinto(1995), utilizamos uma pedagogia predominantemente
falada. Para este autor, é preciso colocar os atores pedagógicos de imediato na situação a
conhecer, "contrariando o princípio da preparação ao acontecimento, do conceito antecipado à
existência, do referencial teórico prévio ao problema a investigar".
Faz-se necessário frisar que exercitar uma endo-etnografia na escola não deve ter apenas o
interesse fechado na pesquisa. É um recurso para todos os fins práticos da formação, da auto-
eco-organização dos formadores e formandos. P. Woods nos alerta que não devemos supor que o
professor e os alunos ensinam e aprendem simplesmente, devemos, segundo este autor, nos
questionar: o que se passa nesta sala? Como ela se constitui a partir do conjunto das relações
pedagógicas e suas diversas nuances? Integrando aí nossas interpretações, as interpretações dos
alunos e de todos os atores e atrizes do cenário pedagógico, direta ou indiretamente implicados.
Tais análises descritivas incluiriam tanto a rotina da prática como as crises e os conflitos onde o
distanciamento descritivo proporcionaria retomadas formativas. Neste sentido, a prática
etnográfica na escola daria ao currículo uma base de fomento para o verdadeiro significado de
um currículo em "estado de fluxo"(Sarup, 1986), aberto às construções cotidianas dos seus atores
e atrizes e sensível à análise crítica das pressões institucionais.
No que concerne ao incentivo para que alunos elaborem etnografias das suas vivências
educacionais, via diversos recursos disponíveis – diários, autobiografias, descrições pontuais
etc., – considero uma oportunidade ímpar para provarem da sua competência interpretativa, da
sua condição de teóricos do dia-a-dia escolar, de atores e autores pedagógicos, na medida em que
podem construir pertinentes teorias encarnadas, de profundo valor pedagógico, face à
indexalidade dos escritos, densos de características cronotópicas (históricas, geográficas,
culturais).
Deve-se estar sempre alerta para o fato de que o ato formativo requer, até para ser coerente, uma
constante reflexão sobre si mesmo, sob pena de transformar-se em meras práticas receitadas e
petrificadas que, em muitos momentos, transformam-se em atos esquizofrenizados face à
fragmentação que transportam em nível do saber e do fazer.
Tomando este aspecto que comentamos, dá-se no ato formativo a perda de um momento fecundo
em termos do processo ensino-aprendizagem: o aprender por mimese, processo de identificação
ativa e de extrema mobilização afetiva, ética e cognitiva.
Sem querer propor mais uma panacéia pedagógica, podemos apontar a endo-etnografia como
uma prática metodológica motivante e de reais possibilidades para tornar o ato educativo bem
mais reflexivo nos seus aspectos formativos, muitas vezes ofuscado pelo desenvolvimento de
uma cultura latente, não revelada, nem por isso menos importante. Enganam-se aqueles que
imaginam uma determinação cultural total. Enganam-se aqueles que acreditam que as receitas
teóricas são simplesmente transplantadas em total acordo com seus autores e propagandistas. Há
uma densidade teórica contida nos etnométodos disponíveis para confrontações, articulações,
negações e recriações na cultura escolar. Não teorizadas por absoluta intolerância face à
competência interpretativa do ator-social-teórico-da-cotidianidade, esta cultura tem a sua vida
relegada a uma espécie de esquecido social.
Com as políticas neoliberais que avançam junto ao crescimento da nova direita, o fabricante
deste tipo de cultura rica em estratégias e conhecimentos heuristicamente significativos é
reduzido cada vez mais a um agente de consumo. Um consumidor-cliente afogado nas manobras
do custo-benefício, "bem atendido" na medida em que pode representar lucro e apenas lucro.
Podemos dizer que o currículo tem carne e alma, isto é, é movido concretamente por uma visão
de homem e de mundo, bem como auto-eco-organiza-se mediado por estas instâncias.
É possível, neste momento, fazer-se uma síntese da relação etnopesquisa e o estudo do currículo.
O etnopesquisador, pelos seus pressupostos e prática de pesquisa,vê o currículo de acordo com o
que P. Perrenoud chama de "curriculo real", onde são fundamentais, para esta visão, as
instâncias do sujeito, da cotidianidade e do poder. Uma metáfora fundante, aí, é que o currículo
tem vida, e se move, conseqüentemente. Por conseqüência, é feito de encontros, interações e
acontecimentos, mesmo que lastreado por um rol seletivo e organizado de conhecimentos, em
geral instituídos por uma intelligentsia e um establishement, que a história vem mostrando serem
avessos à socialização democrática do conhecimento e à criação de condições e espaços para a
inventividade emancipatória.
Tomando Jackson(1968) como inspiração, via o seu livro Life in Classrooms, onde identifica o
currículo oculto às rotinas cotidianas, Eggleston(1977) distinguiu sete tipos de aprendizagens que
favorecem regularmente o funcionamento da escola, sem que isto figure nos objetivos oficiais do
ensino. Tentemos resumi-los esquematicamente, à guisa de uma exemplificação mais livre das
idéias de Eggleston:
- aprende-se a regular as fronteiras das interação, numa relação sutil com os âmbitos do
público e do privado.
Em realidade, esta lista sistematizada por Eggleston, sem nenhuma intenção de exaustividade,
forma aquilo que Coulon(1991) chamou de uma "inteligência institucional", construção contínua
e criadora de habitus, só apreendida a partir da aceitação de que o currículo real mora na
cotidianidade das relações, na cultura escolar. Emerge aqui uma prioridade em termos de âmbito
para o estudo do currículo: os âmbitos do cotidiano. Para o etnopesquisador interessado no
campo do currículo, a cotidianidade das ações educativas é um dispositivo incontornável para o
entendimento concreto do dinamismo deste campo. Considerando este aspecto da cotidianidade
como significativo para uma praxis de educadores radicais, Giroux & MacLaren(1995)
argumentam sobre como o discurso do cotidiano torna-se uma valiosa forma de crítica, uma vez
que esclarece como o poder e o saber interagem para desvalorizar o capital cultural dos grupos
subordinados. Para estes autores, este discurso também é útil para o desenvolvimento de uma
linguagem da possibilidade, criando, dessa forma, uma pedagogia radical capaz de envolver o
discurso do cotidiano por meio da dinâmica da confirmação, do questionamento e da esperança.
Para Giroux & MacLaren, o conhecimento do "outro" é destacado não apenas para que sua
presença seja celebrada, mas também para que se faça a necessária interrogação crítica das
ideologias que contém, dos meios de representação que utiliza e das práticas sociais subjacentes
que confirma. Nestes termos, concordam que o discurso da vida cotidiana também aponta para a
necessidade de os educadores verem a escola como esferas culturais e políticas ativamente
engajadas na produção da voz e na luta pela voz. Aqui, a voz da escola, do professor e do aluno,
vão dizer dos poderes que configuram a ação pedagógica. Para se entender e se interrogar os
múltiplos e variados significados que compõem os discursos da voz do estudante, por exemplo, é
preciso valorizar e absorver, no sentido bakhtiniano, as linguagens polifônicas que os alunos
trazem para as escolas, mais precisamente o conjunto de práticas comunicativas tanto escritas
quanto faladas adotadas por determinados segmentos sociais (H.Giroux & P. MacLaren, 1985).
No caso da voz docente, deve-se compreender e questionar a política de sentidos e o sentido
político da sua prática cotidiana, questionando, inclusive, os seus modos de mediação das vozes
discentes. No que se refere à voz da escola, é mister esforçar-se para captar as particularidades
históricas e relacionais desta instituição que interessadamente ordena, comanda e fabrica
conceitos e ações mediadores.
Pode-se depreender destas elaborações que é preciso escutar o cotidiano escolar para ouvir suas
diversas vozes, articuladas a âmbitos e esferas institucionais mais largas, mas que se atualizam
nas práticas cotidianas.
H. Giroux & P. MacLaren, mais uma vez são chamados para construir conosco esta síntese.
Segundo o pensamento destes dois autores, o modo pelo qual indivíduos e grupos mediatizam as
formas culturais apresentadas por forças estruturais e ao mesmo tempo nelas se situam "é em si
mesmo uma forma de produção e precisa ser interrogada por métodos de análise conexos,
porém diferentes entre si". Tomando a realidade escolar como reflexão, é nesta trilha que
encontraremos o currículo real e toda sua densidade em termos de possibilidade de uma
compreensão em profundidade e multirreferencializada da sua dinâmica.
Nos afastaríamos, assim, das tradicionais avaliações onde apenas padrões e critérios externos são
levados em conta pela sua pretensa objetividade. Os significados buscados, vivenciados,
conflituados e tensionados no seio da complexa instituição curricular, em geral ficam de fora,
repetindo-se, assim, a promiscuidade e a orgia do mimetismo avaliativo, pautadas na noção
estandartizada de currículo.
Etnopesquisa-ação e etnopesquisa-formação
Falar de uma etnopesquisa-ação nos conduz a um campo onde a academia concretamente sai dos
seus muros e age em termos de uma intervenção com a comunidade. Na relação etnopesquisa e
ação, assume-se como principal objetivo da pesquisa a solidariedade e a ética comunitárias. Nem
pesquisa desinteressada, nem modificacionismo bárbaro cabem nesta relação, mas uma
compartilhada produção do conhecimento visando pertinência e relevância sócio-comunitárias
que, de início, partem claramente em busca do conhecimento, para que a pesquisa, enquanto
etapa fundamental, não se dissolva no predominante interesse de intervenção. Em termos de
prática científica, é necessário que se garanta tal princípio, sob pena de não se estar autorizado
para se falar de pesquisa enquanto prática específica.
Apesar da pesquisa-ação ter surgido a partir de uma perspectiva de intervenção externa, onde o
expert em geral propõe ou negocia com a sua pesquisa uma intervenção em uma dada realidade,
o que denomino de etnopesquisa-ação, tem predominantemente um caráter construtivo que vem
de dentro do campo pesquisado. Desta perspectiva, o especialista deverá estar implicado à
situação a ser conhecida e transformada.
Por outro lado, historicamente, a pesquisa-ação, desde o seu inventor, o antropólogo americano J.
Collier, caracteriza-se por uma ação transformadora especializada. O próprio Collier propunha
que as descobertas do tipo etnológica sobre os índios das reservas americanas fossem utilizadas
em benefício de uma política favorável a estes índios.
Como nos sugere Lapassade(1983), essa primeira origem da noção indica já o que foi a
"essência" da significação clássica da pesquisa-ação. Desta perspectiva, a pesquisa-ação é, antes
de tudo, a obra de um expert, especialista em ciências sociais que vem de fora de uma situação
dada e se propõe a fazê-la evoluir a partir de um diagnóstico concernente à situação estudada.
Entretanto, é com Kurt Lewin que a expressão pesquisa-ação se consolida e se faz conhecida em
todo o mundo acadêmico, tornando-se um conceito clássico.
As primeiras intervenções ilustrando a pesquisa-ação lewiniana têm a ver com a mudança das
atitudes e dos comportamentos em certos setores da atividade social(preconceitos, hábitos etc).
Lewin chega, inclusive, a sistematizar as fases de uma pesquisa-ação: sua planificação, aplicação
de uma primeira etapa do plano de intervenção, com a observação dos efeitos e, a posteriori, a
planificação de uma nova etapa de ação, a partir dos resultados obtidos na fase precedente. A
partir deste movimento cumulativo, uma espiral é formada entre prática, observação e teorização.
Entretanto, no final dos anos 50, nos Estados Unidos, a pesquisa-ação entrou numa fase de
declínio. É o momento do apogeu da sociologia estrutural-funcionalista parsoniana e do
empirismo das grandes enquetes por questionários.
É somente nos anos 60 que a hegemonia da sociologia standard começa a deixar brechas por
absoluta fadiga heurística e explicativa. Para o renascimento de correntes em ciências sociais
inspiradas nas produções da Escola de Chicago. Neste contexto, onde brotavam inúmeros tipos
de contestação nos Estados Unidos e Europa, da reivindicação de sociedades alternativas, é que a
pesquisa-ação lewiniana renasce, notadamente no setor educativo, ao lado de correntes como o
interacionismo simbólico e a etnometodologia.
A partir dos anos 80, vê-se desenrolar na França e na Inglaterra, principalmente, práticas que vão
designar-se de pesquisa- ação, mas que não podem mais atribuir-se os significados da pesquisa-
ação desenvolvida por Lewin.
A pesquisa-ação que se desenvolveu a partir de Lewin era, antes de tudo, uma pesquisa e uma
ação de experts especialistas, outrossim, o que se chama de a nova pesquisa-ação nasce da
necessidade dos atores sociais implicados intervirem enquanto pesquisadores co-partícipes. Em
muitos casos, faz-se o que Lapassade(1983) chama de uma "análise interna" das suas próprias
práticas. A emergência dessas novas orientações no campo do currículo é, em geral, atribuída a
Lawrence Stenhouse.
É a partir de Stenhouse que a pesquisa-ação, como um trabalho apenas de experts, se não foi
abolida, vai ser relativizada e criticada por posições de base sócio-fenomenológica e marxistas-
libertárias.
Com esta orientação, pesquisas-ação foram desenvolvidas na França, a partir de 198l, no âmbito
do CRESAS-INRP (Institute National de Recherche Pédagogique). Os resultados destas
pesquisas foram apresentados, comentados e discutidos durante o colóquio "Recherches
Impliquées, Recherches-actions: le cas de l'éducation", realizado em outubro de 1986, em Paris.
Predominaram orientações diferenciadas da pesquisa-ação britânica, mais voltada para o
interacionismo simbólico e a etnometodologia. Como um exemplo da tendência que se
desenvolve na França em termos de pesquisa-ação, tem-se a obra de René Barbier(1985) "A
Pesquisa-ação na Instituição Educativa", onde o autor inspira-se predominantemente nos
princípios do marxismo libertário sartriano e nos fundamentos da Análise Institucional Francesa,
que tem seu maior reseau no Departamento de Ciências da Educação da Universidadse de Paris
Saint-Denis.
Neste sentido, é o conhecimento "prático" que será valorizado, conhecimento este forjado no seio
da comunidade envolvida na pesquisa e na transformação.
No que concerne à validade dos dados, é a discussão coletiva que os legitimará, é o aval
comunitário vindo de participantes observadores que os autorizará enquanto autenticidade
científica para aquela realidade a ser conhecida e transformada. O exame dos "dados" tem por
função redefinir a problemática inicial, o objeto da pesquisa e a ajudar a encontrar novas
soluções.
Tratando-se da análise e interpretação dos "dados", são as discussões envidadas pelo grupo de
pesquisadores implicados que lhe dará corpo e legitimação. Os passos são os mesmos da
pesquisa clássica, entretanto, pratica-se o que posso denominar de uma hermenêutica
coletivizada, é o coletivo social empenhado em conhecer em profundidade que vai fazer emergir
os resultados, e os pontos onde a intervenção se dará, que tomará para si o processo decisório
que a pesquisa indica. Neste momento, é importante o processo que se denomina de feedback,
ou seja, a comunicação dos resultados ao grupo interessado ou à comunidade, ou à instituição
concernente.
Tal procedimento se repete na apresentação dos resultados da pesquisa, é numa discussão grupal
ou comunitária que os resultados são apresentados, surgindo daí as chamadas estratégias da ação
formativa.
Faz-se necessário pontuar que no veio deste tipo de pesquisa-ação que denominei de
etnopesquisa-formação, desenvolve-se uma prática onde o pesquisador propõe de forma
colaborativa uma proposta de pesquisa e intervenção, só que, sob o crivo também das decisões
comunitárias. Este tipo, action research, nasce de uma diversidade das inspirações lewinianas
nos Estados Unidos, assim como das preocupações, principalmente do Departamento de Ciências
da Educação da Universidade de Paris Saint-Denis quanto à educação continuada.
Carr e Kemmis(1983) enumeram uma série de razões que irão justificar a pesquisa-ação nos
meios educacionais. Para estes autores, os professores já não se contentam com o pesquisador do
tipo consultor, vindo do exterior; os atores pedagógicos estão cada vez mais conscientes da
inutilidade sócio-educacional de um certo número de pesquisas em educação distanciadas das
necessidades reais do processo educacional, onde o pesquisador assume dentro dos meios
educacionais uma simples postura de observador.
Agora há um interesse forte pelos problemas inerentes ao campo do currículo e suas ações, e pela
inteligência prática, em oposição à inteligência técnica ou instrumental; um profundo interesse
dos educadores pelos tipos de avaliação de orientação qualitativa, avaliação iluminativa,
democrática, o método de estudo de caso e etnografia da prática escolar, todos acentuando a
necessidade de se levar em conta o ponto de vista, as perspectivas dos atores pedagógicos; citam
o "accountability movement", que politizou os atores pedagógicos, especificamente os
professores, levando-os a uma crítica das suas condições de trabalho, na medida em que são
demandados a prestarem conta, por seus relatórios, à sociedade e ao poder institucional, num
contexto onde a avaliação das práticas é cada vez mais valorizada; de onde a solidariedade
crescente do meio docente face às críticas públicas da escola desenvolvidas num contexto de
mutação da instituição educativa, associada ao aumento da escolarização; a tomada de
consciência cada vez mais alargada do problema da crise da instituição educativa e do fracasso
das formas de pesquisa que tentam compreendê-la e transformá-la.
Carr e Kemmis tomam a noção de "prática" como uma ação informada e implicada, um
fundamento acionalista de extrema importância para a etnopesquisa-formação. Prática enquanto
práxis, referindo-se à noção marxiana tal como é elaborada por J. Habermas, uma referência
fundamental destes autores. Dizem ainda os autores: "uma práxis que é necessário compreender
num contexto histórico, uma ação que é informada por uma "teoria prática" e que, em retorno,
informa e transforma esta teoria numa relação dialetizada". Neste sentido, práxis designa uma
ação associada a uma estratégia, em resposta a um problema colocado concretamente, numa
situação em que o autor está implicado. O significado que pode-se apreender deste
posicionamento é que os problemas são problemas que só podem ser solucionados fazendo-se
algo. São, portanto, problemas práticos.
A pesquisa-ação dos meios educacionais, tal como concebem Carr e Kemmis, tem como objetivo
desenvolver entre os educadores-pesquisadores uma sorte de distância crítica em relação aos
sentidos e significados que governam habitualmente as práticas.
iniciar uma pesquisa a partir do propósito de sua própria esfera de ação constitui uma
situação paradoxal: é ao examinar de perto esta prática que os atores tomam distância em
relação a ela. É ao trazer uma interrogação sistemática sobre um aspecto particular que os
fatores em jogo e suas articulações podem ser esclarecidos...Sua atividade é precisamente a
condição que permite que esses jogos de força apareçam, que sejam sociais, ideológicos,
psicológicos ou políticos, e que apareçam não enquanto abstrações ou enquanto conteúdos a
priori formalizados, mas enquanto realidades concretas...
Mais uma vez, é fundamental pontuar que ludidez, rigor e priorização na produção do
conhecimento não podem ser descartados em nome de uma mera descrição das implicações ou
de alguma transformação prática ao realizar o que Kohn denomina de "Pesquisa pelos Práticos" e
o que Ardoino caracterizou de "A implicação como modo de produção dos conhecimentos".
É nesta discussão da interface entre pesquisa e ação que nos parece habitar a relação entre
etnopesquisa e pedagogia crítica.
Neste campo de interrelações, o que nos parece importante pontuar é que cognição e ação são
duas faces de um mesmo fenômeno: a atividade humana.
O descaramento crísico em que se encontra o saber científico moderno já aponta para alguns
nortes: um deles é o de que não há mais lugar para as fraturas epistemológicas, para o intelectual
messiânico e para o intelectual interessado apenas na ciência abstrata; para a esquizofrenização
entre pensar e agir, ou para a hipervalorização da mudança não-compartilhada, mesmo sabendo-
se que em alguns momentos, far-se-á necessário o conflito e a ruptura no seio do esforço pela
construção co-participada. Afinal, cohabitam entre nós cosmovisões e práticas radicalmente
incompatíveis com ações autenticamente humanizantes e emancipatórias.
Etnopesquisadores preocupados com uma pedagogia crítica, reaprendem, num certo sentido, os
caminhos que eles têm que tomar para ver o mundo em torno deles; despertam, segundo
Kincheloe (1997), de um sonho modernista, com sua paisagem não examinada do conhecimento
e construção de consciência não imaginativa. Uma vez despertos, educadores-etnopesquisadores
começam a ver as escolas como criações humanas com sentidos, limites e possibilidades, não se
satisfazem em perceber os indicativos do fenômeno, querem interpretá-los radicalmente, com o
compromisso de fazer ciência com consciência(Morin).
Biografia e cognição são conectados, forjando a possibilidade que etnopesquisadores críticos dos
meios educacionais se tornem pesquisadores deles próprios, sempre no processo de ser mudado e
mudando-se, de ser conscientizado e conscientizando-se.
Neste veio, a pesquisa deixa de ser um privilégio de poucos iniciados, transforma-se numa
prática cotidiana a serviço de uma percepção educativa eminentemente democrática, porque
resistente aos estereótipos e simplificações tão caras à pedagogia da resposta, nunca preocupada
em escutar, compreender, explicitar e mudar conectadamente, conjuntamente.
A partir destas elaborações e tomando a vida da escola como incontornável para entender sua
existência social, considero o encontro etnopesquisa e pedagogia crítica – como, aliás, já
perceberam autores como Giroux, Apple, MacLaren e os representantes da Nova Sociologia da
Educação britânica -, um ato seminal para alcançar um novo saber sobre a escola, mobilizando
uma nova prática, menos abstrata, mais pertinente e socialmente mais relevante. Surge, nesta
junção, portanto, uma autêntica contra-instituição ao mesmo tempo científica e pedagógica.
Entendo, assim, que a vida na educação ainda tem muito por ser compreendida e mobilizada
teoricamente, até porque o significado autoritário mostra sinais evidentes de vida, apesar da
falência em alguns contextos das suas perversas orgias.
Considerações conclusivas finais
Nossos alunos se foram corrompendo à medida que nossas ciências e nossas artes
avançaram para uma certa perfeição...
J.J. Rousseau
Ao esforçar-me para concluir esta obra, quero expressar mais uma preocupação inquietante, em
meio às muitas que aqui brotaram: a de que não se avalie a etnopesquisa crítica e
multirreferencial como uma panacéia metodológica ou como o cultivo de um pólo monolítico em
termos epistemológicos.
No cerne mesmo das elaborações aqui exercitadas, está o gosto pelo aprofundamento e pela
articulação intelectualmente responsáveis, pelo rigor fecundante e pela angústia do método. Quer
dizer, o desejo de fazer ciência aberta e comunicante, uma scienza nueva, segundo Morin,
consciente da sua ontológica insuficiência e bio-degradação, como bio-degradável é o sujeito
humano.
Para nós, é urgente que o educador se familiarize com um modus operandis de pesquisa onde
três âmbitos fundamentais sejam ativados: a visão pluralista crítica, a ação política em
movimento e a implicação moral, âmbitos estes escamoteados pelas elaborações do edifício
científico moderno.
São estas as concepções que me fizeram propor, tematizando e problematizando, esta figura do
estudioso dos meios educacionais de percepção contextualista, interpretacionista e crítica,
denominado aqui de pesquisador etno, crítico e multirreferencial, que, ressignificando
modernamente as inspirações que edificaram o mito de Hermes, revitaliza o seu espírito curioso,
astuto e ao mesmo tempo afeito à compreensão dos incessantes espetáculos do mundo dos
homens. Inspirado em Hermes, o pesquisador etno-crítico atento à densidade, ao detalhe, à
diversidade, à contradição, viaja sem miopias aos mundos "menores", resistentes, banais e
obscuros, até então olhados, equivocadamente, pela intelligentsia normativa e prescritiva como
meros lixos sociais, conteúdos pouco nobres para uma análise científica ofuscada pelo interesse
fechado em figuras retilíneas e de fácil encaixe.
Henri Lefèbvre nos falou da necessidade de sair ao encontro; Gaston Bachelard, do nosso poder
de acordar as fontes; Blumer, inspirado em Mead, nos recomendou compreender os fenômenos
humanos interativos e escavar as àreas, como fez a inquietação foucaultiana; Marx incitou-nos ao
desvelamento das reificações capitalistas e do barbarismo social que ele engendra; Nietzsche,
Morin e Ardoino descofiaram dos fatos em si e fechados em si; Dilthey e Heidegger rebelaram-
se contra a expulsão do sujeito e da coexistência, bem como Weber, Schutz e Garfinkel
recomendaram-nos caminhar interpretando compreensivamente a cotidianidade e a coexistência;
Habermas, do lugar da tradição crítica da Escola de Frankfurt, nos aponta a fecundidade
emancipatória da comunicação e o caráter venenoso da razão instrumental; Vygotsky mostrou-
nos o processo de individuação como socialização dos processos cognitivos superiores; e Freire,
do seio da nossa cultura e das nossas lutas, falou-nos de uma educação desafiadora, movida por
uma pedagogia do ato amoroso que assim como compreende, denuncia, anuncia e transforma.
Não estaria esta poética da compreensão, da crítica e da co-transformação por sujeitos sociais
curiosos e partícipes, caminhando dialogicamente, backtinianamente, ao lado de Hermes
ressignificado, reconhecido? Do meu lugar de educador, foi este o meu esforço, inspirado pelas
problemáticas da minha cotidianidade e dos meus tempos, que me tocam incessantemente na
alma e na carne, que me fizeram por um labor educativo, crítico e científico de inspiração
radicalmente democrática, um etnopesquisador dos meios educacionais implicado, eivado de
inquietações e apaixonado sem culpas pela ação dialógica de educar, para mim, na sua
"essência", irremediável processo de emancipação co-construída.
Este livro expressou e sintetizou a busca e o conhecimento de caminhos, onde interesse e opção
foram os impulsionadores predominantes. Onde querer ir e qual a opção a fazer nortearam as
caminhadas traçadas e retraçadas em muitos momentos. A dúvida de Alice(a do País das
Maravilhas) muitas vezes me habitou, quando foram muitos os momentos em que me perguntei
qual seria o caminho e como caminhar para trilhar ou para chegar, defrontei-me muitas vezes
também com as respostas dadas pelo gato Cheshire, que insistia em dizer a Alice que sua saída
dependia do lugar onde ela queria ir. Na insistência de Alice em querer encontrar qualquer
caminho, o gato recomendou-lhe continuar caminhando.
Portanto, caminhar em pesquisa é preciso, como também é preciso vislumbrar onde chegar e o
que encontrar. Henri Levèbvre e o gato Cheshire têm razões que talvez certas razões que pregam
o niilismo metodológico e práticas monolíticas de pesquisa desconheçam.
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Anexo 1
Variantes da Etnopesquisa nos Meios Educacionais
Etnopedagogia – Burger
TABELA 1B
APROVADOS CONTÍNUOS, REPETENTES E EVADIDOS POR
SÉRIE/ANO.
Série / Aprovados (A) (B) (C)
ano Contínuos Nº de Nº de Repetentes Evadidos R2 ou
Alunos (R2) Tr.
Alfa ( 1984) 13 - 1
A
1 Série (1985) 12 3 2
2A Série (1986) 7 1 -
A
3 Série (1987) 6 ** **
**
Nota: = Ano letivo em processo
TABELA 2B
APROVADOS CONTÍNUOS, REPETENTES E EVADIDOS POR
SÉRIE/ANO.
Série / Aprovados (A) (B) (C)
ano Contínuos Nº de Nº de Repetentes Evadidos R2 ou
Alunos (R2) Tr.
Alfa ( 1984) 17 - 2
A
1 Série (1986) 15 2 3
A
2 Série (1987) 10 ** **
Nota: ** = Ano letivo em processo
TABELA 3B
APROVADOS CONTÍNUOS, REPETENTES E EVADIDOS POR
SÉRIE/ANO.
Série / Aprovados (A) (B) (C)
ano Contínuos Nº de Nº de Evadidos R2 ou
Alunos Repetentes Tr.
Alfa ( 1986) 16 3 2
1A Série (1987) 11 ** **
Nota: ** = Ano letivo em processo
TABELA 1C
NÚMERO E % DE APROVADOS CONTÍNUOS, REPETENTES,
ATIVOS, EVADIDOS E "DESCONTÍNUOS".
Categorias Número %
APROVADOS CONTÍNUOS (A) 6 46,1
REPETENTES (B) 4 30.7
ATIVOS (A+B) 10 76,9
EVADIDOS (C) 3 23,0
"DESCONTÍNUOS" (B+C) 7 53,8
TABELA 2C
NÚMERO E % DE APROVADOS CONTÍNUOS, REPETENTES,
ATIVOS, EVADIDOS E "DESCONTÍNUOS".
Categorias Número %
APROVADOS CONTÍNUOS (A) 10 58,8
REPETENTES (B) 2 11,1
ATIVOS (A+B) 12 70,5
EVADIDOS (C) 5 29,4
"DESCONTÍNUOS" (B+C) 7 40.5
TABELA 3C
NÚMERO E % DE APROVADOS CONTÍNUOS, REPETENTES,
ATIVOS, EVADIDOS E "DESCONTÍNUOS".
Categorias Número %
APROVADOS CONTÍNUOS (A) 11 68,7
REPETENTES (B) 2 11,1
ATIVOS (A+B) 14 87,5
EVADIDOS (C) 2 12,5
"DESCONTÍNUOS" (B+C) 5 31,2
TABELA 4 C
TOTAIS EM NÚMEROS ABSOLUTOS E EM % DE APROVADOS
CONTÍNUOS, REPETENTES, ATIVOS, EVADIDOS E
"DESCONTÍNUOS" DE TODAS AS TURMAS.
Categorias Número Total % Total
(46) (100%)
APROVADOS CONTÍNUOS (A) 27 58,6
REPETENTES (B) 9 19,5
ATIVOS (A+B) 36 78,2
EVADIDOS (C) 10 23,3
"DESCONTÍNUOS" (B+C) 19 40,8