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A etnopesquisa crítica e multirreferencial nas ciências

humanas e na educação
Roberto Sidnei Macedo

SciELO Books / SciELO Livros / SciELO Libros

MACEDO, RS. A etnopesquisa crítica e multirreferencial nas Ciências Humanas e na Educação


[online]. 2nd ed. Salvador: EDUFBA, 2004. ISBN 978-85-2320-935-3. Available from SciELO
Books <http://books.scielo.org>.
A etnopesquisa crítica e multirreferencial nas ciências
humanas e na educação

UNIVERSIDADE FEDERAL DA BAHIA

Reitor
Naomar de Almeida Filho

Vice-Reitor
Francisco José Gomes Mesquita

EDITORA DA UFBA

Diretora
Flávia Garcia Rosa

CONSELHO EDITORIAL

Titulares
Antônio Virgílio Bittencourt Bastos
Arivaldo Leão Amorim
Aurino Ribeiro Filho
Cid Seixas Fraga Filho
Fernando da Rocha Peres
Mirella Márcia Longo Vieira Lima

Suplentes
Cecília Maria Bacelar Sandenberg
João Augusto de Lima Rocha
Leda Maria Muhana Iannitelli
Maria Vidal de Negreiros Camargo
Naomar Monteiro de Almeida filho
Nelson Fernandes de Oliveira

Roberto Sidnei Macedo

A Etnopesquisa Crítica e Multirreferencial


nas Ciências Humanas e na Educação

2ª edição
Salvador/2004

© 2004 by Roberto Sidnei Macedo


Direitos para esta edição cedidos à Editora da Universidade Federal da Bahia.
Feito o depósito legal.

Nenhuma parte deste livro pode ser reproduzida, sejam quais forem os meios empregados, a não
ser com a permissão escrita do autor e da editora, conforme a Lei nº 9610 de 19 de fevereiro de
1998.

Macedo, Roberto Sidnei.

A Etnopesquisa crítica e multirreferencial nas ciências humanas e na


educação [livro eletrônico] / Roberto Sidnei Macedo. 2. ed - Salvador:
EDUFBA.

702 Kb ; ePUB

ISBN: 978-85-2320-935-3.

1.Educação - Pesquiza. I. Titulo.

CDU: 165.5:167:37.02

EDUFBA
Rua Barão de Geremoabo, s/n Campus de Ondina
40170-290 Salvador Bahia
Tel: (71) 263-6160/6164
edufba@ufba.br
www.edufba.ufba.br

Contra os que silenciam os caminhos ou simplesmente os prescrevem.

Às colegas e aos colegas do NEPEC/UFBA, pelo cuidado com a semeadura...

Serenos e longevos olhos que de longe ainda me cuidam...

Para Você, minha mãe.

Tanto nas ciências naturais como nas ciências humanas, o conhecimento mergulha na
ideologia, com ortodoxias, alegações gratuitas e rejeições cruéis logo que marginais e
desviantes se exprimem. Ao mesmo tempo, o espírito disciplinar leva a uma
compartimentalização da inteligência. Acredita -se que a fronteira disciplinar é uma
fronteira na realidade, que só é real tudo que se deixa formalizar ou modelar pelos
instrumentos lógico matemáticos, cortam-se as cabeças, os sexos e os membros a faca,
rejeita-se como dejeto, imundície, o que é manifestação de vida...

Edgar Morin

Sou grato

Às instituições que possibilitaram esta obra, notadamente à CAPES e ao CNPq, que a partir dos
meus primeiros estudos, forneceramme as condições materiais necessárias para edificá-los. À
minha família e aos meus amigos que me incentivaram e me acolheram nos muitos momentos de
desãnimo e decepção com a suave hipocrisia acadêmica e sua medíocre e sórdida política tecno-
burocrática. À minha filha Sílvia, um agradecimento especial e carinhoso por ter me mostrado a
fecundidade imaginária, estética e heurística da mitologia, e assim ampliado minha compreensão
sobre as complexas construções do Ser do homem. Sou extremamente grato, também, às colegas
e aos colegas professores Obdália Silva, Isolda Falcão, Sérgio Borba, Rita Dias e Joaquim
Gonçalves pelas apreciações ao mesmo tempo cuidadosas e francas sobre as minhas
indisciplinadas reflexões e narrativas.

Minha gratidão a todas as vozes que compuseram comigo estas reflexões formativas, e a todas as
pessoas que de algum modo possibilitaram a sua socialização.

Sou grato aos críticos que, por uma vigilãncia epistemológica fundada numa ética colaborativa,
tornaram e tornarão menos dramática minha eterna e necessária condição de incompletude e de
insuficiência, os considero parceiros nos caminhos aqui percorridos e na mobilização de outras
caminhadas.
Table of Contents / Sumário / Tabla de Contenido
Front Matter / Elementos Pré-textuais / Páginas Iniciales
Prefácio
Apresentação
Introdução - Pelos caminhos de Hermes...
Capítulo I - Reflexões e inspirações teórico-epistemológicas fundamentais para a
etnopesquisa crítica
A argumentação positiva da cientificidade
A inspiração e a argumentação fenomenológica
Existência e conhecimento
O ser-no-mundo e o ser-com
O modo fenomenológico de pesquisar
A natureza sócio-constitutiva da ação humana
Intersubjetividade e realidades múltiplas
A construção do outro
A construção social das realidades
O lugar da linguagem como ação
Cotidiano e cotidianidade
Contexto e lugar. Pertinências constitutivas
Os âmbitos da qualidade e sua dialética
Qualidade e quantidade. Uma relação mal construída
Uma epistemologia qualitativa
A hermenêutica. Um recurso e uma exigência
Por uma hermenêutica crítica
Micro x macro. Uma questão de relação
Representações sociais e imaginário
A emergência da subjetividade social
Multiculturalismo, etnopesquisa e educação
Relativização. Um conceito fundante
Por concluir: a filosofia multirreferencial e a questão do método
Capítulo II - Fontes acionalistas - semiológicas da etnopesquisa e suas implicações
educacionais
Ação e significado social
Interação simbólica. Gênese das ações
A "tradição de Chicago"
"Definição da situação". Uma noção seminal
"The fieldwork"
A vida social enquanto cena e a teoria do desvio
Etnometodologia e a compreensão dos etnométodos
O instituinte ordinário
Etnografia constitutiva e reflexiva em educação
História local e a multiplicidade histórica
A compreensão intensa e interna dos movimentos sociais
O sujeito como sistema sócio-cognitivo
A construção social das estruturas cognitivas
Construcionismo social e a "virada lingüística"
Etnopesquisa, método dialético e a nova sociologia da educação (NSE)
Teoria crítica, ação comunicativa e etnopesquisa
Algumas considerações conclusivas
Capítulo III - Métodos em etnopesquisa
Natureza etnográfica e clínica das etnopesquisas
A prática do trabalho de campo
O acesso ao campo de pesquisa
Estudo de caso. A busca da densidade significativa
A observação e a presença do olhar senso-analítico
As notas de observação
A observação participante. Pressupostos e prática
O campo das implicações objetais na pesquisa participante
Implicação e etnopesquisa. Exemplo concreto
A entrevista. Buscando o significado social pela narrativa
Particularidades da análise de entrevistas
O questionário aberto
Documentos como fonte de análise
História oral. Vozes que documentam
História de vida. Vivência e narrativa
Grupo nominal ou focal
As técnicas projetivas
Imagem na etnopesquisa
Análise construcionista
Dramaturgia social e o método de pesquisa etnocenológico
Diário de campo. Notas de existência e conhecimento
"Escuta sensível", conhecimento escolar e etnopesquisa
A propósito do método documentário de interpretação (MDI)
Análise e interpretação dos "dados" em etnopesquisa crítica
A análise de conteúdos
Etnopesquisa e o critério de pertinência ética e sócio-profissional
A escrita de uma etnopesquisa
A etnopesquisa crítica nos meios educacionais: extratos de exemplos
Etnopesquisa, condição feminina e educação
Etnopesquisa e a construção do objeto
O etnopesquisador. Principal "instrumento" da etnopesquisa
A etnopesquisa e seus vieses
Considerações conclusivas
Capítulo IV - Etnopesquisa crítica, currículo e formação docente
Sobre a crise da formação docente
Etnografia semiológica e formativa
A etnopesquisa e o estudo do currículo
Etnopesquisa-ação e etnopesquisa-formação
Etnopesquisa e pedagogia crítica
Algumas considerações conclusivas
Considerações conclusivas finais
Referências bibliográficas
Anexo 1
Anexo 2
Prefácio
Prefaciar uma obra não é nunca um tarefa qualquer, sobretudo porque requer uma interação
condizente com o seu tecido textual, o que significa, também, um estado de partilha do que se
oferece como obra. O prefaciar tem função de advertência do que vem a ser a obra no seu
intento. Significa apresentar a "face" do texto de forma pré-judicativa. O "pré" de "pre-fácio"
indica justamente "aquilo que antecede", o que já está posto, já está dado como condição
originante. Neste caso, o "pré" indica justamente a obra a partir da qual se procura mostrar o seu
"fazer" de forma correlata, mas nunca coincidente. O prefácio apenas anuncia a obra posta,
convida o leitor a embrenhar-se nas rotas do texto, a tornar-se seu cúmplice suspeito, a investigar
junto o que nele encontra-se dito, marcado e problematizado. O prefácio, portanto, é apenas um
esboço do que é o texto, sob o ponto de vista de quem o escreve. Fazendo uma analogia, o
prefácio se assemelha aos proclames de um determinado espetáculo. Para conhecer o que nele se
anuncia é preciso participar do espetáculo. É como convite ao leitor para que participe do
espetáculo da obra que escrevo este prefácio.

O livro de Roberto Sidnei Macedo "A Etnopesquisa Crítica e Multirreferencial nas Ciências
Humanas e na Educação" aborda questões da mais alta relevância no âmbito da pesquisa
epistemológica e crítica que tem por foco o saber propriamente humano, a ciência genuinamente
humana.

As Ciências Humanas, gestadas no ambiente da racionalidade moderna, tiveram as suas gêneses


vinculadas aos critérios e modelos oriundos das ciências físico-matemáticas. O desenvolvimento
de uma epistemologia crítica só se tornou possível graças à distância estabelecida em relação a
tal modelo. A esta forma de investigação chamou-se "ciência do espírito", usando uma expressão
de Dilthey. Tratava-se de esclarecer e especificar o âmbito propriamente humano da atividade
epistemológica, para o qual o "compreender" é o foco intencional e não o "explicar". A
compreensão é própria do comportamento humano, portanto, está sempre implicada com o
singular, com a consciência-aí – com a subjetividade. A explicação, por seu lado, é peculiar às
ciências da natureza, o que a torna sempre implicada com o "regular", o contínuo, com a
consciência-tipo (consciência em si, o conceito geral de uma série regular) – com a objetividade.

Diante dessa aporia entre "explicar" e "compreender", o que importa é o sujeito humano e sua
historicidade como ente-espécie. Não se trata, assim, de uma simples negação das ciências da
natureza, mas de uma fundação das ciências do espírito. O argumento de uma tal empresa é a
construção antropológica do conhecimento. O caminho é crítico-epistemológico e moral / ético
simultaneamente, e isto porque em primeiro lugar localiza o ser do homem a partir de uma
consciência interrogante e investigativa, tomando distância das representações já estabelecidas e
abrindo-se para o campo das possibilidades contextualmente oferecidas. Deste modo, o
fundamento possível para uma ciência humana de rigor não pode ser o mesmo das ciências da
natureza. A exatidão das ciências objetivas não pode ser o fundamento epistemológico das
ciências do homem, e é justamente o exercício da consciência crítica que assume a tarefa de
elucidar os limites, as possibilidades e as condições do conhecimento humano em todos os seus
âmbitos possíveis, prováveis, certos ou verossímeis.
Para as ciências do homem, o método deve brotar da investigação que por princípio interroga o
próprio conhecimento a partir do conhecedor, do conhecido e do conhecível. O método, portanto,
não é uma "explicação" dos fenômenos humanos, mas apenas uma "compreensão" dos mesmos.
Ora, compreender é algo próprio dos humanos, diz respeito ao modo de ser existencial, histórico
e circunstancial dos sujeitos-comuns. E se é buscando o seu próprio fundamento que as ciências
humanas vão procurar colocar-se em pé de igualdade com as ciências físico-matemáticas, a única
possibilidade criticamente admissível para a constituição de tais ciências é que elas abandonem
qualquer pretensão de exatidão e se limitem a "descrever" um determinado objeto
intencionalmente constituído, isto é, um determinado fenômeno da consciência-de-si, ou melhor,
da consciência transcendental, isto é, um fenômeno como consciência humana e produção de
sentido-significância-significado para o ser-sendo-com-historial. Deste modo, a possibilidade de
descrição do fenômeno humano em suas várias dimensões torna-se uma tarefa da crítica do
conhecimento. Partindo da própria subjetividade, a crítica do conhecimento interroga o próprio
ser-no-mundo. Entretanto, o que vem a ser uma tal subjetividade ?

Se a tarefa das ciências críticas - ou melhor, das ciências humanas que ultrapassaram a pretensão
de exatidão e se exercitam como atividade de rigor - é a investigação do próprio fenômeno
humano, um tal acontecimento só faz sentido para uma consciência que percebe, e tal
consciência estará sempre investida de uma situação histórico-existencial, será sempre um sujeito
do conhecimento, uma pessoa socialmente constituída, um pesquisador singularmente sensível,
dotado desta ou daquela potência. E porque a consciência da qual se fala é uma consciência-
corpo-vivente, o seu exercício crítico jamais poderá erigir-se em sistema acabado do
conhecimento universal, porque o seu campo objectual confunde-se com a própria ação humana
no seu acontecimento ontológico e epistemológico: o ato de compreender como condição da
intersubjetividade humana e como existência encarnada e histórico-simbólica (lingüística,
semiótica, habituária, expressiva, comunicante).

Em virtude de uma tamanha carga subjetiva, as ciências críticas não podem balizar-se nos
critérios de validade epistemológica que adotam posturas próprias para o tratamento e
investigação dos entes não dotados do modo de ser do homem. Por isto, a idéia de
"neutralidade", tão peculiar às ciências "positivas", é subsumida nas ciências críticas pela idéia
de "distanciamento fenomenológico", ou melhor, "suspensão fenomenológica". As implicações
disto são da maior importância epistemológica e as suas possibilidades são infinitas.

De certo modo, todas as chamadas metodologias qualitativas de pesquisa adotam a postura


"suspensiva", apesar da grande variedade de tipos metodológicos existentes. Isto acaba criando
uma espécie de consenso epistemológico entre as "ciências de rigor", apesar das evidentes lutas
intestinas que ocorrem entre as várias ciências irmãs, cada uma delas querendo ser melhor do que
as outras. Rigorosamente falando, os estudos de casos, tão comuns nas pesquisas ditas
qualitativo-descritivas, são um exemplo da inevitável abertura e inacabamento do conhecimento
humano, por mais que haja uma tendência para o aperfeiçoamento permanente do mesmo. Isto
significa, em palavras diretas, que nenhuma destas abordagens pode pretender edificar-se como
sistema geral para todas as ciências possíveis, o que seria um contrasenso imperdoável do ponto
de vista crítico. Daí a importância do conceito de "interação" que está implicada em toda
investigação rigorosa.

Fenomenologicamente falando, toda pesquisa qualitativa haverá de fazer as contas com a


dinâmica do campo intencional de sua descrição. Este campo é sempre um acontecimento-
dinâmico, porque atua a partir de inter-relações efetivas e operantes, demarcadoras de campos
semióticos ativos, isto é, pulsivamente constituídos. Como seria, então, possível uma pesquisa
qualitativa fora da dinâmica da interação entre o pesquisador e o pesquisado?

Nas ciências críticas, a aporia entre o "explicar" e o "compreender" pode ser interpretada como
inevitável, e mais do que uma simples aporia, pode ser tomada como uma proclamação de
independência das mesmas em relação às "ciências da natureza". A Etnopesquisa Crítica e
Multirreferencial é descendente desta proclamação de independência e vem contribuindo
fortemente na consolidação da epistemologia das ciências de rigor, mas não exatas.

De forma bastante consolidada, a problemática e a gênese da Etnopesquisa crítica e


multirreferencial apresentada por Roberto Sidnei neste livro não teria sido possível sem as
contribuições da fenomenologia e da hermenêutica do Dasein, apesar de manter em relação a
estas uma independência processual inerente ao exercício de qualquer ciência de rigor. O caso é
que na perspectiva fenomenológica e hermenêutica, a investigação do fenômeno humano
encontra-se aberta ao acontecimento implicado do ser-no-mundo-com, o que além de pressupor o
que já está predeterminado, lida, de forma privilegiada, com a dimensão de projeto que
caracteriza o homem-sendo-no-mundo-com, o que nunca é, mas sempre está-sendo
ultrapassagem.

Relevo a importância da problemática que constitui este livro de Roberto Sidnei. De maneira
ampla e instigante, o mesmo consegue acolher com perícia e pertinência vozes que se encontram
espalhadas em uma grande quantidade de obras seminais no campo da pesquisa qualitativa,
sobretudo aquelas de marca eminentemente fenomenológico-hermenêutica. A riqueza da sua
tematização é, a meu ver, o seu maior mérito. Neste sentido, trata-se de uma obra de grande
utilidade acadêmica, porque se constituiu a partir de um evidente esforço de investigação densa,
e tem como resultado sínteses conceituais e operativas complexas, oferecidas de forma clara,
circunstanciada e convincente.

Este livro, portanto, é indiscutivelmente atual. Mais do que nunca há, nos dias de hoje, um forte
retorno à filosofia como atividade de rigor. Assim, todas as ciências humanas estão procurando
correr atrás de uma fundamentação epistemológica própria e consistente, e a filosofia crítica
apresenta-se como âmbito a partir do qual uma epistemologia das ciências humanas encontra sua
autojustificação e validade. Neste ponto, a obra é bastante abrangente, percorrendo um processo
de autojustificação que se coloca no diálogo com as principais fontes, matrizes e vozes da
pesquisa fenomenológica e hermenêutica, em chave etnometodológica, da atualidade.

A complexidade do universo temático tratado neste livro poderia ter sido um grande obstáculo na
comunicação da obra, caso seu propositor não fosse possuidor de uma expressão escrita fluente e
correta. As sínteses conceituais operadas por ele são provenientes de um longo processo de
maturação e sedimentação vivencial, o que torna os argumentos usados próprios e apropriados, e
não meras repetições de máximas de conduta. O texto, portanto, é de fácil compreensão, apesar
de exigir do seu leitor um mínimo de cultura própria e já sedimentada e um máximo de atenção e
interesse pela continuidade de uma formação qualificada do pesquisador crítico.

Nesta obra, de modo claro, a complexidade da teoria crítica de última geração é apresentada de
forma compreensiva e sedutora, pois não deixa de lado o recurso ao estilo próprio e singular, o
que é um sinal indicativo de que a obra poderá ser lida com proveito pela comunidade à qual se
dirige, pois, como obra de criação singular, ela se apresenta como contribuição efetiva ao campo
das investigações etnometológicas praticadas institucionalmente, e poderá ser de grande auxílio,
sobretudo porque possui, também, uma intenção pedagógica fundamental: a de ser um livro-
formação, um instrumento metodológico da formação científica de uma nova geração de
pesquisadores críticos e atuantes na transformação social qualificada e na educação do cidadão
autônomo e consciente de seu papel soberano e interativo.

Regozijo-me, assim, com a publicação deste livro de Roberto Sidnei, porque nele vejo
estampado sinais do florescimento de novas possibilidades pedagógicas em nosso meio e país, no
sentido de um compromisso histórico inadiável, cujo foco são as gerações presentes e vindouras,
para as quais já não cabem mais as fôrmas rígidas do positivismo inafetivo, pois se impõe a
necessidade de novas criações e formas de educação capazes de acompanhar a inquietação e
complexidade do nosso tempo, sempre de maneira própria e apropriada, isto é, de maneira
autônoma, participativa e inventiva.

Dante Augusto Galeffi


FACED-UFBA
Salvador, 07 de agosto de 2000
Apresentação
Por diversos caminhos poderia iniciar falando do trabalho de Roberto Sidnei Macedo. Aquele
pelo qual opto é o da pesquisa, seus métodos, do pesquisador, sua formação e suas estratégias de
produção de sentidos. Portanto, ao me referir ao pesquisador Roberto, falo também do
pesquisador em geral, com quem Macedo pretende dialogar, e refiro-me ainda à pesquisa como
dimensão pedagógica de formação e produção do conhecimento.

Para apresentar adequadamente o pesquisador Roberto Sidnei Macedo e seu trabalho é preciso,
simultaneamente, falar do GRIME (Grupo interinstitucional de estudos e pesquisas
multirreferenciais em educação) do qual o mesmo faz parte e vem, desde 1992, contribuindo
decididamente com sua produção. Aliás, para ambos, trata-se da instituição de um percurso e
uma concepção de pesquisa em educação, capaz de proporcionar significativa contribuição para
os profissionais da educação pensarem a si mesmos e a própria prática e, assim, produzirem uma
compreensão mais ampla de si como condição para significarem o que fazem.

Em 1998, por ocasião da publicação de dois trabalhos da responsabilidade do grupo com a


presença e participação do professor Roberto Macedo, na última página do livro
Multirreferencialidade nas ciências e na educação já colocava o que chamei de meandros de um
processo. Naquela ocasião, dizia que "tudo começou com a vinda ao Brasil do professor Renè
Barbier, em agosto de 1992, idéia do Sérgio Borba. Continuou com as vindas dos professores
Alain Coulon, em maio de 1995, e Jacques Ardoino, em novembro do mesmo ano. A primeira
conseqüência agradável dessas presenças entre nós foram as publicações dos trabalhos de Alain
Coulon (Etnometodologia; Etnometodologia e educação e Escola de Chicago, pelas Editoras
Vozes e Papirus) e, agora, o número especial da Revista Pratiques de Formation-analyses sobre
a abordagem multirreferencial, sem contar o livro do Sérgio Borba, publicado em 1997
(Multirreferencialidade na formação do professor-pesquisador: da conformidade à
complexidade) e o trabalho coletivo, também lançado nesta ocasião juntamente com a presente
tradução (Reflexões em torno da abordagem multirreferencial, pela Editora da UFSCar). A
segunda conseqüência tem sido o envolvimento e a rede de pessoas e instituições que foram se
aglutinando ao redor desse projeto coletivo neste momento representadas pelas cinco instituições
que estão possibilitando a vinda do professor Jacques Ardoino em setembro/outubro deste ano de
1998. São elas: Universidades Federais de São Carlos, Bahia, Alagoas e Brasília, e PUC de Porto
Alegre" (Barbosa, 1998, p.206).

Resumidamente, é assim que nasce o GRIME. Um grupo de pesquisadores e de formação


continuada, pois, todos nós, alguns tendo tido a oportunidade de freqüentar a Universidade de
Paris para realização de seus estudos de doutorado e outros, sem terem saído do país,
autorizaram-nos a iniciar, em nossos Programas de Pesquisa e Pós Graduação, uma caminhada
no sentido do exercício da prática multirreferencial e da formação de outros pesquisadores.

Desse processo prazerosamente produtivo, além da presente publicação e também de outros


trabalhos nesta perspectiva de publicação, é preciso que se registre o número significativo de
dissertações e teses já produzidas, para um grupo decididamente jovem com muito para ser feito
no sentido da organização política, científica e pedagógica, e de maior definição operacional na
perspectiva da produção e divulgação de seu trabalho.

Por que iniciar falando do GRIME? Porque tudo isto, creio, tem a ver com a etnopesquisa
proposta por Roberto. Senão, vejamos.

Pelo que pude entender, etnopesquisa não seria outra coisa senão uma pesquisa ao mesmo tempo
enraizada no sujeito observador e no sujeito observado. Enraizada no sentido etmológico, o de
dar conta das raízes, das ligações que dão sentido tanto a um quanto a outro. Para tanto, é
necessário, por parte do pesquisador, ousadia para se autorizar por caminhos metodológicos não
convencionais com o objetivo de apreender a complexidade e as filigranas próprias de cada
sujeito singular, tanto do pesquisador quanto do sujeito pesquisado e de seus entornos.

Assim tem caminhado o GRIME e o próprio Roberto. Enquanto o primeiro apresenta neste seu
surgimento uma história enraizada, estabelecendo ligações, reconhecendo a complexidade
inerente ao projeto de se organizar um grupo interinstitucional de pesquisa sem desconsiderar a
heterogeneidade e singularidade dos sujeitos pesquisadores e das instituições, Roberto Macedo
se volta para identificar e explicitar os pressupostos epistemológicos e possíveis estratégias
metodológicas para se produzir uma leitura enraizada, indexada, da realidade brasileira.

Trata-se de uma questão decisiva na formação de nossos educandos, a formação para a pesquisa,
que nem sempre é levada em consideração com a devida sofisticação e importância. Deveria ser
considerada como estratégia pedagógica na formação de nossos educandos para a escola e para a
vida se não separamos a formação de autores na escola e na academia da formação de autores
para a vida social, portanto, cidadãos. Nesta direção, conceitos como o de implicação e o de
contratransferência, além de outros exaustivamente abordados no texto de Roberto, tornam-se
indispensáveis para a formação de um pesquisador que se preocupa em desenvolver uma
compreensão de si como condição para atribuir, com alguma propriedade, sentidos à realidade
estudada, no caso as problemáticas da educação.

Para nós, profissionais da educação que participamos de seleção para ingressantes em programas
de pós-graduação e de concursos públicos, é extremamente comum nos depararmos com
discursos homogêneos quando se propõem discorrer sobre determinado tema. Tornam-se
passagem obrigatória chavões como visão crítica da realidade e referencial teórico-crítico.
Como se a criticidade fosse algo a ser colhida em alguma árvore ou comprada em algum
armazém, e não uma capacidade a ser desenvolvida como resultado de um caminho percorrido e
da forma como o foi.

É necessário recuperar o movimento da vida, do sujeito, do próprio conceito e, também, da


apropriação dos conceitos. Certamente não são os conceitos, as teorias, os autores em si, por
mais brilhantes que sejam, que darão ao aprendiz, de "mão beijada", a chave milagrosa capaz de
torná-lo crítico perante si mesmo e a realidade que o cerca. Alienação ou desalienação está mais
no modo como nos apropriamos do conhecimento do que em si, propriamente dito, acima do
bem e do mal da vida cotidiana. Hoje se impõe como necessidade rearticular epistemológica e
metodologicamente o saber sistematizado com o saber do homem comum. Se para Garfinkel o
cidadão não é um idiota cultural (Coulon, 1995), e para Santos Boaventura (1996) hoje se impõe
a realização de um movimento inverso ao de até então, o conhecimento científico se
direcionando ao encontro do senso comum, seguramente o desafio será darmos conta da tensão
resultante não da separação, mas da religação do que estava separado. Tensão esta criadora de
espaços instituintes de procedimentos autorizantes no sentido da formação de sujeitos produtores
de sentidos e que se reconheçam enquanto tal.

Sobre tudo isso Roberto Sidnei Macedo irá tratar neste seu trabalho A etnopesquisa crítica e
multirreferencial nas ciências humanas e na educação. Ele apresenta um produto, uma
caminhada e um jeito de caminhar, caracterizadamente seus. Não necessariamente trata-se de
modelo para todos nós. Trata-se tão somente do caminho percorrido por Macedo para se
apropriar do conhecimento em prol de seu processo de se autorizar perante si mesmo, a academia
e a vida. Penso que a maior contribuição que o leitor poderá alcançar lendo o trabalho de Macedo
e, isso já não seria pouco, é exercitar a percepção dos percalços, das voltas, dos círculos, das
sinuosidades... presentes em qualquer processo de apropriação seja do autor estudado seja do
leitor. Principalmente porque, concordando com Castoriadis, penso que esta é a maior
contribuição que um autor poderá oferecer, deixar livre acesso ao leitor para o caminho tortuoso
e sempre inacabado de sua construção. Para este autor, "ao contrário da obra de arte, aqui não há
edifício terminado e por terminar, tanto e mais que os resultados, importa o trabalho de reflexão
e talvez seja sobretudo isto que um autor pode oferecer, se é que ele pode oferecer alguma coisa.
A apresentação do resultado como totalidade sistemática e burilada, o que na verdade ele nunca é
(...) só reforça no leitor a ilusão nefasta para a qual ele, como todos nós, já tende naturalmente,
de que o edifício foi construído para ele e doravante basta habitá-lo se assim lhe apraz. Construir
catedrais ou compor sinfonias não é pensar. A sinfonia, se existe sinfonia, deve o leitor criá-la
em seus próprios ouvidos." (CASTORIADIS,1982, p.12) .

Neste embalo, inúmeras outras questões ou desdobramento destas poderiam ser ditas, mas trata-
se tão somente de uma apresentação. Como tal, como forma de concluí-la, registro a satisfação
de acompanhar o movimento de Roberto ultrapassando fronteiras do saber, navegando nas águas
da Multirreferencialidade, num exercício contínuo de se apropriar e, em conseqüência,
resignificar conteúdos e práticas presentes no cotidiano das instituições educativas que compõem
o tecido de nossa realidade brasileira.

Joaquim Gonçalves Barbosa


UFSCAR-GRIME
São Carlos-SP, 27 de agosto de 2000
Introdução - Pelos caminhos de Hermes...
Para encontrar alguém ou alguma coisa, é preciso sair ao encontro(...)

Revelar a riqueza escondida sob a aparente pobreza do cotidiano, descobrir a profundeza


sob a trivialidade, atingir o extraordinário do ordinário, esse é o desafio...

Henri Lefèbvre

Não sei como se chega a algum lugar compreensivamente sem caminhar os caminhos, suas
direções/sentidos, seus desvios, incertezas e irregularidades, inventando a experiência(método).
Por isso mesmo, procurei em Hermes o mito-deus, a inspiração metafórica para a satisfação de
um desejo e a realização de um projeto, que se consubstancia na necessidade percebida e
experimentada de se tematizar o método enquanto formação. Convenci-me a cada instante da
minha prática de pesquisador que metodologia não poderia ser uma prática automática, mas
problemática. Com isso, almejo a construção continuada de uma formação metodológica
ampliada e conectada a uma crítica social do seu uso, portanto, articulada à reflexões éticas e
políticas.

E por que, enfim, Hermes? Qual a pertinência em trazê-lo até o cenário dessas nossas
introdutórias reflexões metodológicas em etnopesquisa, educação e formação docente? Para
mim, o mito não é uma alternativa ao conhecimento científico, conhecimento científico e mito
são de natureza diferentes, entretanto, acredito que a ciência pode articular-se com as formas de
pensar míticas, sem precisar extingui-las enquanto atividade intelectual deformada ou inferior,
distante da verdade. Há no mito uma fecundidade para a compreensão das ações-nomundo, do
homem e seu imaginário sócio-histórico. Caminhemos então até Hermes... filho de Zeus e Maia,
a mais jovem das Plêiades, nasceu num dia quatro (número que lhe era consagrado), numa
caverna do monte Cilene, ao Sul da Arcádia. Apesar de enfaixado e colocado num vão de um
salgueiro, árvore sagrada, símbolo da fecundidade, da criação. Hermes, no mesmo dia em que
veio à luz, desligou-se das faixas, demonstrando sua natural inquietação, seu gosto pela liberdade
e seu poder de ligar e desligar, isto é, de aproximar-se e afastar-se.

Trata-se de uma divindade voluntariamente mundana, gostava de misturar-se ao povo, tornando-


se, juntamente com Dionísio, o menos olímpico dos imortais. É o deus das estradas, vive a
mostrar caminhos; para os gregos, é quem regia as estradas, porque andava com incrível
velocidade e pelo fato de caminhar com sandálias de ouro; se não se perdia na noite, era porque
transformara-se num conhecedor de roteiros.

Sábio dos caminhos e de suas encruzilhadas, não se perdendo nas trevas, o filho de Zeus e Maia
acabou por ser um deus psicopompo, quer dizer, um condutor de almas.

Para Mircea Eliade, são as faculdades espirituais do deus psicopompo que lhe explicam as
relações com as almas, pois sua astúcia e sua inteligência prática, a sua inventividade, o seu
poder de tornar-se invisível e de viajar por toda parte já anunciam os prestígios da sabedoria,
principalmente do saber hermético, que se tornarão mais tarde as qualidades específicas deste
deus.

Umas das qualidades mais enaltecidas de Hermes são suas relações com o mundo dos homens,
um mundo por definição aberto, em permanente construção; tem na astúcia, na inventividade, no
interesse pelas atividades dos homens, na psicopompia - uma forma de "pedagogia" - suas
principais características, tornando-se um deus extremamente dinâmico e complexo. Hermes
sabe e transmite, é inteligente e mundano, é sábio e convive com os mistérios da opacidade dos
saberes diretamente inacessíveis, um perito que não contorna a complexidade, um mediador do
conhecimento que resiste à compreensão. Como Perséfone, que vive a metade do tempo na
escuridão – como punição por haver desafiado um deus – e a outra metade na claridade do
glorioso esplendor da primavera, Hermes penetra no interior das trevas e no momento de retornar
à claridade traz consigo, impregna-se, do conhecimento adquirido no mundo da escuridão e das
opacidades, opera por competência adquirida em mundos contrastantes e, por isso, é capaz de
estabelecer, nestas relações complexas, conexões plurais.

Pelo dito, e considerando Hermes como parte do imaginário humano relacionado à ciência,
podemos verificar o quanto o edifício científico moderno negou as itinerâncias de Hermes, ao
afastar-se dos homens, do povo, ao dogmatizar-se. Tornando-se um saber desconectado, o
edifício científico moderno fragmentou-se, formando um corpus de conhecimento fraturado, uma
racionalidade descontextualizada, muito longe daquilo que o mito grego imaginara ser portador o
seu deus patrono da ciência, sedento de relações e conexões.

Mediador de saberes, Hermes não simboliza a neutralidade, luta contra as forças ctônicas porque
as conhece pelo trabalho de desvendamento das obscuridades.

De que lado estaria Hermes, tomando como objetos de reflexão a ciência "dura" e a construção
científica pós-formal? Para quem trabalharia um ex-ladrão de rebanhos que, enquanto deus,
elevou-se a condutor de almas? O que faria um sábio dos métodos (caminhos) que deliciava-se
em ficar em meio aos homens, experienciando a vida cotidiana e suas impurezas?

Parece-nos que o mais interessante nesse deus tão longevo, ofuscado pelas luzes, já que para
alguns faleceu, se é que faleceu, no século XVII, são suas relações com o mundo-vida, o mundo
dos homens.

Estariam os etnopesquisadores inspirando-se na itinerância deste personagem da mitologia


grega? Como se situariam ressignificando pós-formalmente os caminhos (métodos) de Hermes?
Estariam resgatando a seminalidade de suas sábias atividades caminhantes?

Como Hermes, gostaria de ir construindo algum tipo de via, sem contornar obviamente a
complexidade dos homens em ação; gostaria de movimentar-me pelas estradas e mares nem
sempre pontos e portos seguros, até porque a incerteza, já nos sugere Morin, é algo certo entre os
homens.

Desta forma, ao adentrar no cerne mesmo da construção desta obra, ao mobilizar-me para
materializá-la, dois objetivos predominaram de imediato: proporcionar aos educadores uma
instrumentalização metodológica mais alargada e um exercício epistemológico pertinente e
relevante em etnopesquisa crítica. Objetivos que ancoraram numa implicação para mim
fundamental: a formação do professor -pesquisador de uma perspectiva ampliada, conectada e
criticamente fecunda.

Mas o que seria a etnopesquisa crítica? Que distinções justificariam esta denominação? Ademais,
como ela própria se justifica? Como se articularia com a formação do professor -pesquisador?

Antes de tudo, faz-se necessário afastar quaisquer vislumbres onde a etnopesquisa crítica possa
parecer mais uma receita universal em metodologia científica, forjando mais um modismo
maniqueísta. A própria forma de como esta visão epistemológica e de método aparece aqui
descarta toda e qualquer tentativa de um reducionismo metodológico, até porque as noções de
complexidade (Morin) e multirreferencialidade (J. Ardoino) são as pilastras epistemológicas que
mantêm viva, aqui, a fundação deste savoir-faire científico, tratado nesta obra fora de qualquer
escolástica teórico-metodológica.

Um dos pontos fundamentais que devemos destacar para compreendermos a etnopesquisa crítica
é que ela nasce da inspiração etnográfica, sua base incontornável, mas diferencia-se, quando
aprofunda-se na démarche hermenêutica de natureza sócio-fenomenológica e crítica, produzindo
conhecimento indexalizado. A etnopesquisa crítica se afirma também por aquilo que ela não é:
um fisicalismo metodológico, um quantitativismo nomotético, um objetivismo excludente, um
interpretacionismo acientífico ou uma pesquisa distanciada dos âmbitos da ética e da política.

Com sua preocupação etno (do grego ethnos, povo, pessoas), a etnopesquisa em geral volta-se
para o conhecimento das ordens sócioculturais em organização, constituídas por sujeitos
intersubjetivamente edificados e edificantes, em meio a uma "bacia semântica" (Durand)
mediada socialmente. Neste sentido, preocupa-se primordialmente com os processos que
constituem o homem em sociedade. Como ponto de partida, descrever para compreender é um
imperativo, daí a pertinência para os etnopesquisadores da noção antropológica de "descrição
densa" (Geertz), extremamente sensível ao caráter encarnado e polissêmico da existência dos
seres humanos e do dinamismo que aí se impõe. A descrição supõe, portanto, uma situação de
presença, longe da qual não há possibilidade de percepção fina e relacional do fenômeno, uma
presença que, ao articular-se com a tradição crítica em ciências humanas, supera de vez a visão
ingênua e o viés neutral sobre as interessadas e muitas vezes assincrônicas realizações dos
homens, incluindose aí a própria construção social da ciência.

No processo de construção do saber científico, a etnopesquisa crítica não considera os sujeitos do


estudo um produto descartável de valor meramente utilitarista. Entende como incontornável a
necessidade de construir junto, traz, irremediavelmente e interpretativamente, a voz do ator
social para o corpus empírico analisado, e para a própria composição conclusiva do estudo, até
porque a linguagem assume aqui um papel co-constitutivo central.

O ator social não fala pela boca da teoria ou de uma estrutura diabólica, ele é percebido como
estruturante, em meio às estruturas que em muitos momentos reflexivamente o performam.

Assim, o significado social e culturalmente construído não se torna resto diurno esquecido na
conclusão de uma pesquisa, ele é trazido para o cenário ativo da construção do saber com tudo
aquilo que lhe é próprio: contradições, paradoxos, ambigüidades, ambivalências, assincronias,
insuficiências,transgressões, traições etc. Aliás, esta atitude de pesquisa tem uma conseqüência
democrática radical para o campo das pesquisas antropossociais e em ciências da educação mais
precisamente: trazer para a investigação vozes de segmentos sociais oprimidos e alijados, calados
pelos estudos normativos e prescritivos, legitimadores da voz da racionalidade
descontextualizada.

A noção de objeto entra definitivamente no mundo-vida dos humanos. Ativamente, o


pesquisador mostra as inteligibilidades do senso comum e com elas constrói suas compreensões.

Os argumentos trazidos pelos etnopesquisadores críticos parecem desafiar muitas suposições nas
quais as ciências sociais positivistas se baseiam. A tradição da ciência que estes provêm
considera o significado e os sentidos centrais à vida social. O termo significado faz mais do que
sugerir a natureza simbólica da vida social e, a seu modo, assinala o fato de que a ação humana
não é tão constatável, previsível, tão determinada em seu desenrolar.

Fornecer razões, justificações, explicações, efetuar descrições/ narrativas, são atividades


visceralmente sociais, e, conseqüentemente, tornam a vida social o que esta é (Hughes, 1983).

Segundo esta ontologia, ao estudarmos as realidades sociais, não estamos lidando com uma
realidade formada por " fatos brutos", lidamos com uma realidade constituída por pessoas,
relacionando-se através de práticas que recebem identificação e significado pela linguagem usada
para descrevê-las, invocá-las e executá-las, daí o interesse pelas especificidades
predominantemente qualitativas da vida humana.

Assim, o ponto de partida recomendável para as etnopesquisas é aquilo que chamamos de


construtos de "primeira ordem" usados pelos membros de uma sociedade. Entretanto, estes
construtos de "primeira ordem" são considerados inadequados pela análise formal, para uma
ciência da vida social. Comumente vagos, ambíguos em significado, são considerados
absolutamente impróprios enquanto conceitos científicos precisos.

O que é interessante ressaltar em relação ao ethos normativo em pesquisa é o fato de que a


ciência social depende, para sua autenticidade, de significados e entendimentos existentes dentro
da cultura, dentro do senso comum compartilhado pelo pesquisador com outros atores sobre o
mundo. Ela própria (a pesquisa) é uma atividade prática encravada num contexto de
conhecimento implícito baseado no conhecimento cotidiano (Wilson, 1992; Santos, 1996).

Desta perspectiva, o que não se admite é que pelo esforço de construir conceitos de "segunda
ordem", se destrua a própria realidade investigada e a substitua por uma versão cientificizada e
abstrata. Isto significa adulterar conceitos e etnométodos usados pelos atores no decorrer de suas
vidas, a fim de torná-los cientificamente válidos e utilizáveis.

Do lugar dos nossos pressupostos, entendemos que os sistemas de conhecimento, apesar de


serem relacionais, conservam suas características idiográficas, porquanto justificam-se
internamente contendo suas próprias ontologias e padrões de racionalidade que, de certa
perspectiva, fornecem formas e regras de maneira reflexiva a seus objetos de conhecimento.
Neste sentido, a ciência não é diferente. É um outro modo de olhar o mundo, não cabendo a esta
reivindicar superioridade absoluta e um lugar fora do mundo-vida, prática tão cara ao
intelectualismo e ao cientificismo messiânicos.

Sensível ao que chamou mundo-vida, a fenomenologia constitutiva, uma das bases filosóficas da
etnopesquisa, se propõe a descrevê-lo independente e anteriormente a qualquer explicação
científica. Os mundos-vivos pertencem a grupos históricos específicos; de uma posição histórica,
não poderia haver nenhum privilégio especial ligado a qualquer mundo vivo em particular.

A realidade é que o mundo humano altera-se com as inovações conceituais, e uma ciência moral
da vida humana não pode ser isenta de valores, constitui-se numa parte de uma espiral
hermenêutica de redefinições e interpretações de nossas opções fundamentais na vida (Hughes,
1980).

Preocupado com algumas reduções vindas com os sinais dos tempos pós-formais, ressalto que
uma ciência interessada nos significados socialmente construídos não dispensa o esforço da
razão – uma razão conectada obviamente —, da coleta cuidadosa de evidências, da exploração
dedicada e persistente, ideário de todo espírito científico curioso e seminal.

Ao instrumentalizar-se com os fundamentos conceituais e com os procedimentos comuns à


etnopesquisa crítica, entendemos que ao professor (educador-intelectual-pesquisador) é dada
uma oportunidade ímpar de "acordar as fontes" (Bachelard) nos diversos cenários onde se
institui a educação.

Ao conhecer de dentro, in situ, em ato, o educador - etnopesquisador olhará as iniquidades en


train de se faire, mergulhará criticamente nas múltiplas culturas e suas inteligibilidades, suas
estéticas e cosmovisões, experimentará nas relações éticas a política enquanto prática, emergindo
da sua aventura pensada com a noção fértil de mundo construído. Tal postura construcionista
jamais significou a negação da estrutura enquanto fenômeno social, o que, na realidade, se
configura, é a realização das seguintes questões-chave: como se estrutura a estrutura? Como se
organiza o tecido cultural por suas múltiplas e complexas interações? Como os sujeitos imersos
nos seus coletivos sociais significam e ressignificam suas ações? Pela via das ações dos atores
sociais, como se dá reflexivamente a relação instituinte/instituído? Pelo dinamismo destas
questões, penetra-se relacional e compreensivamente na complexidade das construções da vida
cotidiana.

Afirmo, a partir destas considerações, a necessidade irremediável e relevante de se tematizar o


método, assim como reafirmo, por absoluta convicção, o potencial formador desta prática no
âmago do ato educativo, enquanto também uma ruptura com os habitus esterilizantes da ação de
educar, que se consubstancia na prática do baixo mimetismo pedagógico e de um certo
imprinting acadêmico atualizado numa impressão matricial que dá estrutura e conformidade a
um pensamento.

Como no mito de Hermes, o esforço deve se dar na direção de se fazer ciência relacional,
conectada, caminhante, humanizada e humanizante, sedenta de insigths socialmente pertinentes.

Este caminho começa a ser trilhado por mim, faz-se necessário pontuar, no âmbito das práticas
de pesquisa do NEPEC – Núcleo Temático de Ensino, Pesquisa e Extensão em Currículo,
Comunicação e Cultura — do Programa de Pós-graduação da FACED/UFBA e no Departamento
de Ciências da Educação da Universidade de Paris Saint-Denis. Tais vivências possibilitaram-me
edificar um aprofundamento e um alargamento formativo das orientações destes programas no
que concerne à visão de pesquisa e de formação, tomando as humanidades e o currículo como
campos de estudo básico. Investigação etnográfica-semiológica e análise crítica das situações
educativas, consubstanciam-se num exercício que dá feição às múltiplas démarches de pesquisa e
de estudos do NEPEC, por exemplo, tendo nas pesquisas e nas orientações sócio-
fenomenológicas da Professora Teresinha Fróes Burnham sua pedra fundamental. Prática
complexa e multirreferencial, esse Núcleo Temático se fez na ousadia, na esperança e no
enfrentamento visando rupturas com as intolerâncias e os maniqueísmos academicistas, sem
perder de vista a necessidade do rigor articulativo, da edificação ética e da implicação política
em ciência e em educação, aliás este é um forte processo identitário com a história formativa da
Universidade Paris Saint-Denis e seu Departamento de Ciências da Educação.

Conheci e conheço as angústias do método, principalmente quando se nos apresenta enquanto


prática de um rigor científico fecundo, sem roteiros rígidos e preconceitos cristalizados. Esta é a
natureza da etnopesquisa, que articulada a uma tradição crítica em educação, torna-se prática
complexa e eivada de multirreferências; ao entrar nos campos formativos, transforma-se numa
hipercomplexidade nunca alcançada por perspectivas lineares normativas e compulsivamente
prescritivas, porquanto, o ato educativo jamais dispensa "escuta sensível", curiosidade heurística,
política de sentido e sentido ético e estético, orientados irremediavelmente para a compreensão
co-participada e emancipatória.

Esta é uma obra que nasce, portanto, de uma preocupação eminentemente científico-formativa,
ao pensar o método como possibilidade de formação que transcende em muito o ato simplório de
dominar, de forma não-reflexiva instrumentos de pesquisa. Filosofia, epistemologia, teoria e
tecnologia de pesquisa revelam-se à serviço do método e de uma formação docente que, na
pesquisa aplicada, nutre o desejo de se requalificar e se fortalecer em poder.

Nem pesquisa desinteressada, nem modificacionismo bárbaro parece-nos o pattern conquistado


nesta edificação metodológica que aponta de forma fundamentada para a co-participação e a co-
construção do conhecimento implicado e engajado ao ato eminentemente político de educar. Por
isso, método aparece aqui como caminho opcionado e ação refletida.

Foi a partir desta itinerância e de suas inspirações fundamentais, que arquitetei e exercito aqui a
construção do que denomino de uma etnopesquisa crítica e multirreferencial.
Capítulo I - Reflexões e inspirações teórico-
epistemológicas fundamentais para a etnopesquisa
crítica
Para que um discurso adquira validade, não pode ser apenas lógico.

Pedro Demo

Não pretendo aqui uma exegese formal de determinadas visões e reflexões filosóficas ou de
teorias enquanto referências. As idéias de reflexão e inspiração emanam, acima de tudo, da
necessidade de explicitar pressupostos e referências e do cuidado crítico com a pluralidade, a
abertura ao inacabado e à realidade empírica construída e reconstruída por seus atores; atenção
com a irremediável indexalidade-reflexibilidade e temporo-historicidade da ação humana e seus
sentidos, assim como a construção de uma vigília constante, no sentido da recusa da teoria que se
quer verdade única, perversa prática de pensar a realidade nossa de cada dia - incluindo a do
outro – fora de suas perspectivas.

Inspiração no sentido de estar sensível reflexivamente, convocando a totalidade dos recursos


existenciais para olhar a vida. Inspiração parcimoniosa, sem ser simplista, que convive com a
possibilidade da contradição, sem artificialmente sufocá-la para avaliá-la inexistente. Inspiração
plástica, espreitante, diante dos espetáculos do mundo. Inspiração que jamais sairá imune ao
tocar a realidade viva, portanto eminentemente relacional, construída em parceria – pelas vias de
consensos e conflitos – com sujeitos e instituições. Bergson nos diz, por exemplo, que a
inspiração, enquanto uma das fontes da moral, é um impulso, é uma exigência de movimento; ela
é, em princípio, mobilidade, e em querendo afirmá-la, o poeta Caetano Veloso disse certo dia
que "gente é outra inspiração, outra alegria, diferente das estrelas".

Quando me refiro à inspiração teórica, por exemplo, quero dizer que aquele que trabalha com
vistas à produção do conhecimento precisa cunhar uma teoria enraizada, como querem Glaser e
Strauss (l967).

O referencial teórico que informa a inspiração não é esquema geométrico, espécie de


organograma ou encaixe. É, por outro lado, impulso criador que nutre uma certa perspectiva, um
certo olhar, sedento de compreensão; empreitada compreensiva que opera motivações pelas quais
interacionistas e etnometodólogos, e tantos quantos inspiram-se nas démarches epistemológicas
e metodológicas acionalistas, sentem-se irresistivelmente atraídos pelos fenômenos sociais
surpreendentes, inquietantes e vivos. E no cuidado com o ser sempre em devir, vão au terrain
pesquisar munidos da leveza, da abertura e da flexibilidade das percepções sensibilizadoras –
nunca hipóteses fechadas - sobre os objetos-processos a serem investigados.

Esforço-me aqui pela pertinência e relevância jamais nascidas da vontade de fechamento, mas do
trabalho de articulação conseqüente, considerando sempre o caráter inacabado e insuficiente do
pensamento, no conjunto da pluralidade dos olhares que miram as práticas humanas,
interpretando-as.

Entendo, ademais, que contrario em alguns aspectos determinados princípios de teorias que
inspiram de forma predominante minhas referências, por não buscar nesta obra um exercício
rígido de legitimação de teorias e/ou métodos, muito mais de pertinência de olhares, num esforço
de conjugação conseqüente e não-lapidante.

Neste instante, lembro-me da poyesis conforme os antigos gregos, onde as coisas não podem ser
tomadas como dadas, mas dando-se. A poyesis é uma forma de raciocínio em que as sensações,
as opiniões e as percepções provisórias são instrumentos de reinvenção da realidade, via as
interações criadoras. Neste sentido, remete o sujeito cognoscente para a experiência... e não
apenas para a sistematização conceitual/ discursiva. Não há estranheza entre produto, processo e
produtor. As inspirações não emudecem a empiria, fundam um certo empirismo heterodoxo,
prenhe de sentidos e significados, daí a importância primordial para a etnopesquisa crítica de
uma etnografia semiológica, de uma endo-etnografia relacional.

A argumentação positiva da cientificidade


O cultivo à neutralidade, ao distanciamento no processo de conhecer; a busca de regularidades e
leis extraídas da realidade; o gosto pelo controle, pela mensuração, pelo pensamento nomotético
e monorreferencial, pelo conforto da previsibilidade; a dedicação quase louvação pela lógica
algorítmica e por um método objetivista; o fechamento nas certezas construídas pela inflexível
objetividade e o culto ao progresso ordenado do saber dito científico fizeram do positivismo o
grande construtor do "significado autoritário"(Bruner,1997), que ao legitimar-se pelo processo
de desconstrução do pensamento mítico, transformou-se num das vigas mestras do edifício
científico moderno e da argumentação positiva da cientificidade. É a partir desta perspectiva que
edifica-se um sujeito capaz apenas de conhecer pela resposta fiel aos estímulos externos,
instrumento relativamente passivo que esforça-se em deixar-se tocar por uma verdade que está à
espera de quem à descubra. Dá-se aqui o primado do objeto, um objeto que contém em si todas
as possibilidades para se chegar à verdade procurada.

Do posto destas inspirações, base dos argumentos objetivistas, nasce um tipo de voz avessa ao
que é insuficiente, ambíguo, contraditório, surpreendente: a voz da racionalidade
descontextualizada. Uma voz que ao cultivar o significado autoritário faz-se barbárie científica
ao não tomar cuidado com uma hegemônica e interessada versão rígida da noção de rigor, que à
semelhança das religiões sectárias, ao fechar-se, fanatizar-se, invariavelmente tornou-se uma
espécie de militarismo com potente poder de fogo.

Descartes, Comte, Bacon, Hobbes, Locke sedimentaram as bases do edifício científico moderno,
na medida em que arquitetaram e edificaram os fundamentos do pensamento objetivado sob um
controle rígido e visto como a resultante festejada de um império dos fatos. É neste veio que o
significado autoritário vem nos dizer que "contra os fatos não existem argumentos", e que as
regularidades devem virar norma, acabando por forjar rituais herméticos de prescrições calcadas
numa só verdade.

Ademais, este cultivo de ciência vai se ajustar de forma confortável com um tipo de sociedade
moderna prometéica seduzida pelo progresso produtivo, voltada para a utilidade e para a
explicação. O mito grego de Prometeu é compulsivamente produtivo, tal qual a lógica da
sociedade e da ciência modernas, sustentadas na racionalidade hiper-ativa e no finalismo.

É mergulhando na perplexidade desta forma "dura" de se fazer ciência que alguns atores
marginais à cena científica hegemônica da modernidade vêm nos falar criticamente de uma
prática científica que volta constantemente as costas à vida e ao que é vivenciado.

Ao deixar-se capturar pela lógica do fato objetivado, o sujeito do conhecimento moderno, pelo
culto ao neutralismo, criou uma cultura desmembrada das pautas éticas, políticas e estéticas
incontornavelmente vinculadas aos saberes antropossociais. Pautas que vão inspirar uma meta-
ciência capaz de refletir sobre si mesma e sobre o uso social dos seus métodos e produtos. Neste
sentido, uma epistemologia social recomenda e sugere a criação de um Ser da praxis científica
que, além de pensar o mundo e o mundo dos homens, imagina-se também parte indestacável
destes mundos; age sobre eles e com eles, por conseguinte, o seu saber e o seu fazer remetem-lhe
para dentro de um cultura científica e humana ao mesmo tempo.

Da minha perspectiva, a ciência que tem pretensamente o império da construção e solução dos
problemas humanos tem também uma natureza que cria problemas e, portanto, deve ser
questionada. Há à nossa disposição, afinal, uma história e uma política de sentido construídas
pela ciência, uma história e uma política de sentido que nos autorizam a falar de um objeto
legítimo e problemático a ser tematizado, questionado, como afirmei anteriormente. Os
frankfurtianos Adorno e Habermas já nos alertaram para o caráter venenoso do conhecimento
quantificável e tecnicista, se forem privados de uma reflexão libertadora.

Vê-se como o formalismo da filosofia positivista especializa-se na redução e na unificação pelo


elementar e pelo quantificável. Como nos diz Morin (1995), "o pensamento redutor da filosofia
positivista atribui a 'verdadeira' realidade não às totalidades, mas aos elementos; não às
qualidades, mas às medidas; não aos seres e aos entes, mas aos enunciados formalizáveis e
matematizáveis."

O princípio da explicação da ciência moderna vê na contradição o erro, e aí, insegura, temerosa


do seu próprio sujeito, elimina o observador da observação.

Podemos dizer que a ciência inspirada na filosofia positivista cultiva um sonho, onde a paisagem
predominante é uma única visão de mundo, uma única teoria "verdadeira" e uma única regra do
jogo. Sonho extremamente sincrônico com a dominação social que historicamente esta ciência
oficial ajudou a forjar e sedimentar junto à burguesia de origem européia.

Neste veio histórico, forjou-se uma intelligentsia científica afeita às disjunções, às


especializações e à construção do conhecimento em migalhas. Uma intelligentsia que construiu e
legitimou a objetividade hermética do conhecimento curricular; por exemplo, a intolerância face
à contradição e às insuficiências, e, por conseqüência, às articulações, desconstruções e
indexalizações do saber ao contexto, à cultura, à sociedade e à moral. É necessário afirmar que a
objetividade é uma questão de legitimação comunitária, não pode vir de outra fonte senão desta
concessão social com suas regras do jogo.

É curioso como a ciência positivista precisou exorcizar e lapidar o saber cientificamente


sistematizado dos sabores e saberes inerentes à vida: ao destacar-se desta, quis viver num cenário
externo à emergência humana. Há, portanto, uma dissimulação na objetividade científica, uma
dissimulação mascarada de pureza, que habita na compulsão programática dos saberes inspirados
na filosofia positivista. O que é importante salientar, verbi gratia, é que a busca de resultados
essencialmente estatísticos amarrou o estudo de feição positivista ao "dado", terminando a
análise da realidade onde ela deveria começar (Triviños,1987)

Por fim, faz-se necessário frisar que é este ethos absolutista de ciência que nos fez padecer
daquilo que o etólogo Konrad Lorenz chamou de imprinting – ordem irreversível que é impressa
no cérebro, observada em alguns animais -, tanto no que concerne ao caminho (método), quanto
no que se refere ao conhecimento acadêmico. Assim, podemos dizer que a ciência moderna se
esmerou em arquitetar e forjar imprintings, inspirada pela busca de uma verdade única a ser
seguida e intolerante à dialética e à dialógica dos saberes.

Felizmente, mesmo marginais, a dialética e a dialógica edificaram algumas possibilidades pela


teimosia de alguns que continuam acreditando na especificidade humanizante de uma ciência
humana rigorosa, mas pluralista.

No campo educativo, postam-se do lado da desconstrução, da resistência e da emancipação,


numa luta que não tem apenas como alvo o saber imperialista, mas toda uma maneira de pensar
incrustada e cristalizada na sociedade. Portanto, suas funções árduas são a de transformar
método, conteúdo e cosmovisões, movidas pela esperança no fortalecimento do pensamento
emancipatório, que não pode conviver jamais com o objetivismo fragmentário e perverso
possibilitado pela ciência positivista.

Este salto que Thomas Kuhn vem argumentar como uma ruptura de paradigmas não pode se dar,
por outro lado, sem uma reflexão cuidadosa, para que modismos reducionistas não venham a
ofuscar a dialogicidade e a dialeticidade das rupturas no âmbito do conhecimento. Não podemos,
em nome de um novo ethos de pesquisa, de um novo paradigma em termos do que seja a
construção do conhecimento do real, simplesmente esquecer do caráter histórico da edificação da
ciência; negar simplesmente, em nome do novo, por um festejo desvairado e irresponsável da
novidade não condiz com a dialógica, tão pouco com a dialética dos saberes, o já existente em
termos humanos não desaparece de uma forma irrefletida; a memória e sua especificidade
constitutiva sempre terá muito a dizer, ela cria e recria identidades. Nem ortodoxia, nem
vanguardismo que rejeita em bloco o passado nos parece pertinente. Pierre Weil nos alerta para o
fato de que em nome do novo muitas barbáries foram realizadas na história da humanidade. A
juízo deste autor, é a queda num certo reducionismo 'alternativo' que pode significar "alternativa
à destruição", eu acrescentaria alternativa a um assincronismo cego que não enxerga as
contradições que habitam em opacidade o interior da "onda". Uma consciência científica não
pode desprezar, em nome da novidade, do novo paradigma, a construção bachelardiana de
vigilância epistemológica, por exemplo, da filosofia do não, assim como a inquietação movente
da epistemologia social dos críticos frankfurtianos.

Enquanto educadores, não podemos esquecer, bem como deveríamos mobilizar, teoricamente, a
forma como as ideologias liberais alijadoras trazem e incorporam os modismos reformistas, e
com isso velam e escamoteiam autênticas possibilidades de se criar consciências científicas
emancipatórias. Desarticulados da história, da cultura e das pautas da justiça social, o
fundamentalismo do novo acaba fazendo o jogo do conservadorismo. Constato entre nós, por
exemplo, um culto alienado às intelegibilidades corporais e emocionais, ao auto-conhecimento
fechado no indivíduo, e à desconstrução irresponsável da racionalidade. Para mim, uma outra
fragmentação travestida de nova ruptura.

Parece-me que seria interessante afirmar, neste momento, inspirado por uma crítica da crítica que
a ciência morreu! Viva a ciência... Não seria esta uma forma de re-celebrar criticamente a
confiança na ação emancipatória do homem pelo conhecimento ampliado? Não foi este o canto
científico de libertação da barbárie monorreferencial medieval? Não foi esta a esperança dos que
diante da novidade iluminista resistiram e resistem em nome de uma ciência humana
comunicante e alerta face a inumanidade do cientificismo?

É preciso questionar-se sobre o real caráter revolucionário de algumas práticas em educação; por
exemplo, que em nome da crítica à ciência moderna, pregam e praticam tão somente uma espécie
de niilismo da razão e terminam por negar, mais uma vez, na história do conhecimento
educacional, o saber dialetizado e dialogicizado, comunicante, portanto. Em nome da
subjetividade, descreditam todo e qualquer conhecimento em objetivação, e em nome de uma
inteligibilidade corporal e afetiva tenta-se desalojar a razão por completo da ação, em nome da
intuição negligenciam o papel emancipador da estratégia, e assim por diante.

É fato que para um ethos científico ampliado, conectado e emancipador, é preciso desconstruir o
edifício científico moderno nas suas raízes, naquilo que fragmentária e alienadamente o
caracterizou, outrossim, temos de admitir que pode estar sendo forjado um certo totalitarismo do
"todo", um totalitarismo holístico. É aqui que se faz necessário um incessante canto dos
amanheceres, orquestrado por uma angústia do método, onde a disponibilidade para o
questionamento é uma infindável forma de vivificar o que aprendemos a nomear de real e de
verdade.

Posso afirmar, com uma certa tranqüilidade, que hoje, mais do que nunca, vivemos uma crise de
identidade no que concerne à própria concepção do que é científico. Convivia-se até pouco
tempo sem grandes indagações, com uma noção quase consensual de cientificidade. Os abalos
vivenciados não ultrapassavam o aparato lógico interno da própria ciência, inspirada nos ideários
aristotélicos e cartesianos.

Posso afirmar ainda, sem grandes problemas, que cientificidade significa, desta perspectiva,
precisão conquistada pela unicidade metodológica que começa historicamente pela idéia da
unidade metodológica entre as ciências antropossociais e as ciências naturais. Dá-se, a partir
deste ideário, o primado da homogeneização cientificista.

Construído este ideário, a cientificidade exige como condição do seu alcance um repertório de
posturas bem delimitadas: um discurso que se quer impessoal; um método universalista; rigoroso
controle de variáveis; fechamento em hipóteses pré-elaboradas; culto às generalizações e às
metanarrativas cíclicas; orientação categorial rígida para analisar as múltiplas realidades;
ausência de reflexão política em relação aos conteúdos e procedimentos inerentes à ciência;
afastamento de qualquer possibilidade de análise implicacional; culto a uma racionalidade
hermeticamente privilegiada e esvaziada de compromissos sociais, culturais, ecológicos e
existenciais; deificação da epistemologia em detrimento de outras formas de construção do saber;
intolerância face às transgressões intelectuais e metodológicas; disposição para construção de
corpus teóricos disciplinares e/ou condutas discipulares rígidas, que em geral se querem
oniscientes e onipotentes; indiferença face à necessidade do exercício de uma auto-ética e de
uma ética comunitária como componentes das relações científicas e humanas; rebaixamento
irônico daquilo que aparece como sensível; compulsão pelo ethos do progresso irrefletido; visão
monorreferencial e monossêmica da realidade; desconforto diante da natural dialeticidade e
dialogicidade do real; prontidão para o ataque imunológico sempre apontado para o que é
diferente, para o que significa ruptura; atração pelas certezas absolutas, pela explicação forjada
por uma racionalidade iluminada; gosto pelo procedimento analítico-fragmentário; forte
resistência em aceitar o valor heurístico e movente do acontecimento, do surpreendente, das
crises, dos paradoxos, das contradições, das insurgências e da inconclusividade; tendência em
aceitar o fato como verdade e os sentidos e significados como epifenômenos, sem valor para um
conhecimento sistematizável e operacionalizável em termos científicos.

Vista assim, a cientificidade passa a ser uma linguagem que marcha para um norte que se quer
dado e que, a despeito da subjetividade e da subjetivação incontornáveis, força o olhar para um
horizonte tão estéril quanto desencantador, porque minado pela rigidez e pelo medo da
transgressão intelectual.

Neste sentido, cientificidade significou obediência cega ao princípio da verificação


(demonstração da verdade), uma ladainha receitada, que só inventou porque jamais conseguiu o
que sempre almejou: o controle absoluto da realidade humana, inclusive da chamada conduta
científica.

Defendendo o critério da falseabilidade, um dos filósofos fundamentais do racionalismo crítico,


Karl Popper, vai justamente decretar a morte do positivismo lógico, argumentando seu
esgotamento em termos de explicação da realidade.

É necessário pontuar que, no que se refere aos âmbitos qualitativos da realidade humana, este
ethos de ciência nunca se esgotou, até porque esteve sempre vazio da possibilidade de
compreender estes âmbitos.

A inspiração e a argumentação fenomenológica


No mundo humano se atribui sentido até ao acaso...

Aloyilson Pinto

O fenômeno é justamente do que vai se ocupar a fenomenologia. Compreendendo e


interpretando o seu sentido e significado, o mundo da fenomenologia se mostra.

Fenômeno vem da palavra grega fainomenon – que deriva do verbo fainestai – e significa o que
se mostra, o que se manifesta, o que aparece. É o que se manifesta para uma consciência, que, na
fenomenologia, é intencionalidade, é o estar voltado para... atentivamente. Pha, semelhante a
phos, significa luz, brilho, o que pode se manifestar, tornar-se visível. Refere-se, portanto, a
qualquer coisa que se faça presente, seja ela um ruído, um perfume, uma lembrança, qualidade
ou atributo que, ao ser experienciado, possa ser descrito por aquele que vivencia (Esposito,1995).

Da perspectiva fenomenológica, a ação de educar não pode ser conhecida apenas a partir de
julgamentos contidos num arcabouço teórico a ela referente, mas, principalmente, a partir
daquilo que é construído na manifestação do próprio fenômeno. Percebo a educação, portanto,
enquanto cuidado com o ser-do-outro, onde a construção da autonomia cidadã é a finalidade
irremediável.

Creio que quando as idéias são entendidas e são apropriadas de forma encarnada por aqueles que
procuram entendê-las, edifica-se uma abertura e o fenômeno da educação tende a se mostrar.

O que a educação é, qual o seu savoir-faire, são questões que vivem longe de serem
compreendidas pelos paradigmas normativos. Subjacente a estes paradigmas, existe um modo
particular de ver o mundo. Este ethos se volta para os atos de hierarquizar coisas e pessoas, de
acordo com padrões pré-estabelecidos, almejando uma regulação sobre elas (Rezende, 1990;
Martins & Bicudo, 1983; Martins, 1992), vocação histórica das "tecnologias do eu", das
narrativas mestras e das pedagogias ortopédicas.

A crença dos paradigmas normativos está pautada no processo de idealização inerente ao fazer
da ciência, englobando a idéia de cálculo, exatidão e norma, abstraindo as imperfeições
percebidas nos dados do mundo sensível e a generalização daquilo que esses dados possam
apresentar de comum, essência do pensamento nomotético.

Faz-se necessário pontuar que a fenomenologia não nasce como método, dentro da tradição
prescritiva ou normativa, mas como uma das mais fortes e radicais críticas ao ethos científico
moderno.

Ao estudar a realidade, o pesquisador, inspirado na fenomenologia, procura ir às coisas, analisar


contextual e interpretativamente, recomendação clássica dos etnopesquisadores de ir a campo ver
para compreender de forma situada.

Assim, faz-se necessário frisar que a ênfase dá-se no olhar e não no julgamento do que é real ou
verdadeiramente real.

Embora o pesquisador fenomenólogo não inicie sua investigação com hipóteses armadas, ele
necessita de uma percepção sensibilizadora concernente ao que olhar, ao que ouvir, ao que
apreender...

Neste sentido, para se perceber o fenômeno da educação, surge como fundamental o


entendimento do ser-do-homem-no-mundo; é aqui que esta filosofia opta por uma
fenomenologia da existência, substituindo as "essências" pela facticidade do ser, pois, em última
instância, é para ele que se volta o cuidado de educar enquanto projeto de uma sociedade ou de
um segmento social.

É importante pontuar que, em seus últimos trabalhos, Husserl fala de uma fenomenologia
construtiva, o que vai conferir à fenomenologia uma dinamicidade muito mais próxima da
complexidade e diversidade das ações humanas.
Existência e conhecimento
A idéia de existência perpassa o pensamento filosófico, tornando-se evidente nas propostas de
Schelling, e se desenvolve posteriormente com Kierkegaard.

Para Kierkegaard, o problema central era a liberação do homem. Opõe-se ao tratamento


científico formal e universal, portanto, ameaçador da existência que deve colocar-se num
primeiro plano de realidade. O erro do tratamento do homem, diz ele, "está no exagero da
objetividade".

A aquisição do conhecimento depende de uma interpretação e esta depende de um ato de volição.


Tais idéias estão no âmago das concepções de ator-autor enquanto noções que apontam para a
ação, para a autorização e a alteração do Ser do homem.

Assim, a possibilidade que o homem tem de integrar suas percepções constitui sua propriedade
inerente e decorre do seu poder cognitivo e de sua competência interpretativa. Essa cognição
permite a cada homem perceber de forma pessoal e singular e apropriar-se do conhecimento de
maneira especial em meio à multiplicidade das realidades sócio-culturais e suas mediações. Isto
quer dizer que o conhecimento se apresenta como sendo específico para aquele que conhece,
como uma dependência da sua contextualidade relacional.

A concepção de conhecimento como sendo dependente do ser que conhece está ligada a uma
idéia importante e que perpassa toda sua referência à subjetividade. A de veicular que aquilo que
é conhecido só pode ser segundo um meio adequado ou apropriado em relação à coisa conhecida.

Ao pensar no conhecimento como sendo uma conseqüência da subjetividade socializada do Ser,


isto é, da tomada de consciência do conhecido, já questiona-se a relação sujeito-objeto.
Fundamental é o fato de que sempre que o Ser está empenhado em conhecer, precisa, antes,
situar-se numa relação significante com o objeto que lida, deve fazer parte dele; aqui está a
entrada hipercomplexa no mundo das implicações, realidade ofuscada pelos ideários iluministas,
cegos diante do fato de que em toda construção humana há uma política de sentido.

Esta concepção visa libertar o homem das ataduras de que a verdade só pode ser compreendida
em termos dos objetos externos, como preconizou o positivismo lógico.

O ser-no-mundo e o ser-com
Os fenomenólogos nos dizem que consciência é sempre consciência de alguma coisa, não deve
haver, portanto, sujeito sem mundo, nem deverá haver mundo sem sujeito no sentido
fenomenológico.

Para Heidegger, a constituição existencial resulta da condição de abertura para a existência. Esta
abertura pode ser vivida a priori como afeto, ser tocado sensivelmente; em segundo lugar, como
compreensão, e, em terceiro, como expressão. Estes aspectos são chamados por Heidegger de
existencialias.
Está expressa no discurso heideggeriano uma recuperação da imaginação proposta por
Kierkgaard, como sendo natureza ontológica do homem o Ser que fala, pensa, simboliza; bases
epistemológicas incontornáveis das correntes construcionistas e semiológicas nas ciências
antropossociais.

Eigenwelt, ou o mundo pessoal, pressupõe uma consciência de si mesmo, uma relação consigo
próprio, como indica a praxiologia do self interacionista em G. Mead. Não se trata de uma
experiência subjetivista, interna, reduzida a um solipsismo egológico, mas de uma experiência
que permite ao Ser ver o mundo real da sua perspectiva. É a forma de atribuir o significado que
as coisas têm para o Ser enquanto prática de sentidos.

Ao tentar descrever a estrutura básica de toda experiência vivida como um aspecto do trabalho da
sócio-fenomenologia, dois outros mundos emergem: o Mitwelt, isto é, o mundo das pessoas ao
redor, e o Umwelt, o mundo das entidades que rodeiam os indivíduos.

Em oposição às soluções dadas pela ciência "normal", buscam-se as soluções na densa descrição
da experiência e sua natural complexidade, até porque, aqui, a busca da essência única é uma
prática incompatível.

Onde quer que o Ser esteja presente, haverá realidade, mesmo a mais esquizofrênica, isto porque
a própria, existência humana, seja ela qual for, é estar-no-mundo. Questiona-se, assim,
radicalmente, a dicotomia cartesiana sujeito-objeto e adentra-se profundamente na perspectiva do
Erlebnis, o mundo das vivências totais, não reduzidas ao ratio (dimensões referentes ao cálculo,
de onde originou a palavra racional). Acrescente-se ainda uma abertura sensível ao campo da
phronesis, isto é, um alargamento articulativo que transcende as construções epistemológicas da
academia, interessando-se fortemente pelas formas de como as pessoas constroem a vida
cotidianamente, idéia-força do projeto etnometodológico.

Nesta direção, aponta-se para uma preocupação com o Ser social. O individual e o social não se
apresentam enquanto categorias, mas idéias práticas.

Assim, em Heidegger, pode-se abstrair que o ser-no-mundo ou o mundo-vida, com suas


perspectivas, edificam a estrutura do mundo, uma concepção estrutural que não recalca o sentido
óbvio de que não há estrutura sem sujeito.

Ser-no-mundo, no que se refere à educação, por exemplo, é viver a realidade da sala de aula, dos
livros, do material escolar, dos professores, técnicos, funcionários, diretores e do currículo
enquanto fenômeno significativo da vida escolar. Ademais, o aluno com o qual nos defrontamos
é um Ser reflexivo, que se preocupa consigo, com as formas de responder às situações vividas
com seus outros. A propósito, Sartre nos diz que quando Husserl se preocupou em refutar o
solipsismo, ele quis chegar a esse objetivo mostrando que o recurso ao outro é condição
indispensável para constituição de um mundo. Para Husserl, o mundo tal como ele se revela à
consciência é intermonádico, potente fonte de inspiração para que Schutz, valorizando as
interações cotidianas dos atores sociais, pudesse construir as elaborações fundantes da sua sócio-
fenomenologia.

O modo fenomenológico de pesquisar


...é realizar uma interrogação em todos os sentidos, sempre buscando todas as suas
perspectivas, e interrogar outra vez e outra ainda, buscando mais sentido, mais perspectivas,
e outra vez...

Joel Martins

Para a fenomenologia, a realidade é o compreendido, o interpretado e o comunicado. Não


havendo uma só realidade, mas tantas quantas forem suas interpretações e comunicações, a
realidade é perspectival. Ao colocar-se como tal, a fenomenologia invoca o caráter de
provisoriedade, mutabilidade e relatividade da verdade, por conseguinte, não há absolutidade de
qualquer perspectiva. Nestes termos, "a relatividade da perspectiva é, simultânea e
necessariamente, o reconhecimento da relatividade da verdade" (Critelli, 1996).

Uma questão fundamental ainda para a fenomenologia é a impossibilidade de se pleitear o


conhecimento fora dos âmbitos existenciais; assim o pensar se establece sobre o Ser, como nos
alerta Critelli, evidenciando-o.

De início, faz-se necessário frisar que a fenomenologia se opõe de modo direto ao positivismo,
sem, entretanto, rejeitar a intenção de rigor com que o positivismo interpela a realidade. Neste
ponto, a fenomenologia se faz também como uma prática científica e rigorosa de conhecer a
realidade.

É preciso também falar de uma fenomenologia que ao conceber o real como perspectival, não
passa a pregar um vazio em termos de um a priori perceptivo. Ao se perceber o fenômeno, tem-
se que há um correlato e que a percepção não se dá num vazio, mas em um estar-como-
percebido. Ir-às-coisas-mesmas é a experiência fundante do pensar e pesquisar fenomenológico,
faz parte do seu rigor. Por outro lado, ao mergulhar nas coisas-mesmas, o fenomenólogo realiza
um trabalho de desvencilhamento dos seus preconceitos para abrir-se ao fenômeno – époche -,
isto é, realiza um esforço no sentido de compreender o mais autenticamente possível,
suspendendo conceitos prévios que possam estabelecer o que é para ser visto.

Outrossim, não se cultiva, aqui, a ingênua percepção de que o pesquisador não tenha
experiências prévias; constitui-se, nestas experiências, o que a tradição fenomenológica
denomina de pré-reflexivo, uma trajetória que a posteriori, na pesquisa, vai se constituir em
intensa reflexibilidade, campo dos estudos implicacionais que falaremos mais adiante.

É significativo que seja destacado que a percepção do fenômeno é sempre um processo de co-
percepção, há uma região de co-percebidos. Sujeitos e fenômenos estão no mundo-vida com
outros sujeitos, co-presenças que percebem fenômenos (Bicudo, 1994). Nestes termos, a co-
participação de sujeitos em experiências vividas permite partilhar compreensões, interpretações,
comunicações, conflitos etc. Habita neste processo incessante de interação simbólica a esfera da
intersubjetividade, a instituição intersubjetiva das realidades humanas.

Neste sentido, a verdade é uma desocultação que se dá na esfera da construção intersubjetiva do


que é real. Como aletheia, que significa mostração do que seja a essência do fenômeno.

Quanto à essência do fenômeno pesquisado, jamais pode ser entendida como pureza última e
definitivamente dada, até porque isto não existe, mas, como queria Husserl, o alcance do
autenticamente vivido, das raízes daquilo que é vivenciado. A essência (eidos) de que trata a
fenomenologia não é idealidade abstrata dada a priori, separada da práxis, mas ela se mostra no
próprio fazer reflexivo. Esclarece-nos Bicudo (1994) que, " ao desvendar a essência, a
consciência, em um movimento reflexivo, realiza a experiência de percebê-la, abarcando-a
compreensivamente...". Neste momento, realiza-se o movimento da redução fenomenológica,
procedimento de aproximação do fenômeno pesquisado, onde, por um processo de inclusão e
exclusão de conteúdos, dá-se a objetivação do que se pretende conhecer a seu respeito.

De uma forma peculiar, a fenomenologia vai se utilizar também do conceito de a priori enquanto
histórico-vivido e de categorias enquanto grandes regiões de generalidades compreendidas e
interpretadas no âmbito do estudado e das reflexões do pesquisador. Entretanto, essas duas
noções não correspondem ao a priori kantiano, tão pouco ao que Aristóteles entendia por
categoria enquanto determinação do Ser do ente. Tanto em Kant como em Aristóteles, estas
noções perdem em historicidade, em movimento; portanto, algo que a fenomenologia
hermenêutica não pode perder de vista.

O pesquisador fenomenólogo está preocupado e interroga sujeitos contextualizados, dirige-se


para o mundo vivenciado destes sujeitos. Enquanto experiência vivida, este âmbito do mundo
denomina-se região de inquérito.

Interessado em descrever para compreender, o pesquisador fenomenólogo sempre está


interrogando: o que é isto? No sentido de querer apreender o fenômeno situado e o que o
caracteriza enquanto tal. Em vez de partir de uma atitude positiva (afirmativa, explicativa,
generalizante), o fenomenólogo é um céptico cuidadoso, evita afirmações pré-concebidas face às
realidades a serem estudadas. Sua interrogação é a atitude básica, dirigida às pessoas e suas
relações comunicadas, seu instrumento é a disposição para interpretar antes de tudo. Emerge
desta disposição, deste labor, o recurso da hermenêutica. E, nesta modalidade, a interrogação é:
qual é o significado destas ações e expressões? (Fini, 1994).

Da perspectiva fenomenológica, os acontecimentos não podem ser considerados como fechados


em si, enquanto realidades objetivas. Fazendo parte da sua própria temporalidade, a realidade é
uma construção precária, provisória, fenomenal, enquanto percepção dos fenômenos percebidos
pela consciência.

Para Merleau Ponty, a descrição ou o discurso, enquanto expressividade do sujeito, é a prova da


existência do sujeito, é o modo do sujeito expressar a sua experiência; é dotada de significados
da totalidade da experiência vivida, nem sempre totalmente explicitadas na linguagem enquanto
discurso. À propósito, P. Ricoeur nos fala de um infindável excesso de sentido em todo discurso,
por isso da impossibilidade de abarcá-lo em sua totalidade.

Como em todo processo interativo, o discurso é sempre compreendido por outrem, que lhe
atribui significações. Neste veio, o discurso, ao dar-se à significação, o faz como uma obra, isto
é, dentro de um tipo de codificação num paradigma no qual é compreendido. Para Esposito
(1995), o discurso se doa como composição e guarda um estilo próprio, portanto é trabalho
humano e, como tal, é práxis e techne, isto é, criação e construção como produção sapiente
historicizada. Partindo desta compreensão, as novas linguagens que surgem da hipermídia, não
podem situar-se imunes à crítica ideológica, nem fora nem acima da historicização necessárias ao
implemento do círculo existencial-hermenêutico.

Ademais, enquanto uma prática de pesquisa que se quer rigorosa, a pesquisa fenomenológica ao
ver que o fenômeno se ilumina diante de si, reconhece que o pesquisador está ligado ao sujeito
pesquisado por uma relação dialética entre o seu horizonte conceitual e a experiência do sujeito,
onde, através da intersubjetividade, da coexistência, estabelece os seus resultados.

Neste mesmo processo, dá-se o que na investigação fenomenológica se denomina a variação


imaginativa, que implica em interrogar o texto sobre o pensamento do autor, e indagar sobre o
seu pensamento, sobre a intencionalidade do seu dizer. É, em realidade, um processo duplo de
reflexão extremamente sutil. Como em qualquer estudo fenomenológico, procura-se o ponto de
vista do sujeito pesquisado, para indagar-se sobre que ele pensa, sente, analisa e julga.

Faz-se necessário pontuar que o caminho imaginativo implica em imaginação metódica,


acuidade inventiva, e que "o pesquisador mobiliza o seu pensar próprio no sentido de esclarecer
o discurso" (Martins, 1984). Apesar disso, em O Ser e o Tempo, Heidegger coloca no centro da
interrogação fenomenológica não a epistemologia desvinculada da experiência, mas o Ser na sua
existência, na sua coexistência, portanto, a ontologia, melhor dizendo, as ontologias. É aqui que
a experiência é compreendida como experiência vivida no plural, como pluralidade. Neste
sentido, não é o pragma que é importante, o que importa é a práxis enquanto ação, interação se
fazendo, criando, produzindo.

Sintetizando de forma pertinente o modo fenomenológico de pesquisar, Esposito (1994) nos diz
que ao se basear na estrutura prévia da compreensão, no pré-reflexivo e na ontologia, "o modo de
investigação fenomenológico tem como objetivo fazer com que o ser ou a coisa interrogada se
revele, sendo que as chaves para o acesso à compreensão não podem ser buscadas na
manipulação e no controle, mas, sim, na participação e na abertura". É a sabedoria que se quer
alcançar por um processo incessante de interpretação.

Com Rezende (1994), temos a compreensão fenomenológica pertinente de que "as correntes
quentes do vivido trazem um saudável bafejar de fragilidade; uma episteme menos resoluta, mais
complacente, que integra as incertezas e as formas precárias e, portanto, holísticas". Nesta
perspectiva, o modo fenomenológico de pesquisar nos dá uma fecunda possibilidade de
ultrapassagem do modo formalista de conhecer as complexas realidades humanas e educacionais
por conseqüência.

Por outro lado, é de bom alvitre marcar o modo fenomenológico de pesquisar como uma forma
de construção de um certo olhar que, ao mirar criticamente o modo de conhecer da metafísica,
atinge intencionalmente a tradição ocidental de forjar o conhecimento.

Ao afirmar a ontológica inospitalidade do mundo em relação ao homem e a ontológica liberdade


humana, Heidegger vem nos falar de uma angústia que também permeia o ato de conhecer.
Neste sentido, a inospitalidade do mundo aparece também em relação à possibilidade de
conhecê-lo, base da angústia metodológica no momento de tomar a realidade enquanto dinâmica
fenomênica, trama de sentidos e significados, mostração e ocultação. Habita nesta complexidade
a resistência de qualquer fenômeno humano ao conhecimento perfeito, acabado e definitivo.

É interessante pontuar que Descartes reconhecera tais inseguranças, mas nunca como
ontológicas, o ideário cartesiano visou sempre o distanciamento dos paradoxos, das incertezas
como possibilidade do conhecimento científico, jamais como condição.

A natureza sócio-constitutiva da ação humana


Na base da perspectiva fenomenológica, fica clara a influência de Bretano naquilo que emerge
como caráter intencional de nossos pensamentos.

Neste veio, Husserl aprofundou suas reflexões na medida em que considerou toda manifestação
experiencial ligada inexoravelmente às finalidades destas experiências. Neste sentido, o
maniqueísmo implementado pelos inatistas e ambientalistas tem em Husserl uma definitiva
superação. Os objetos nem estariam na cabeça das pessoas nem num mundo não habitado, se
constituiriam por atos volitivos da consciência num processo histórico e intersubjetivo. Merleau-
Ponty nos diz que Husserl rompe definitivamente com o logicismo e o psicologismo através de
sua teoria da redução fenomenológica.

A redução fenomenológica põe entre parênteses as relações espontâneas da consciência com o


mundo, não para negá-las, mas para compreendê-las. Esta redução refere-se, ao mesmo tempo, à
manifestação do mundo exterior e ao eu do homem encarnado, do qual a fenomenologia vai
buscar o sentido. A propósito, H. Meham (l982) argumenta que a atitude constitutiva em relação
à percepção não significa que os observadores tratem os objetos como se eles fossem
incompletos ou sem propriedades. Ao contrário, segundo Meham, os observadores constituem os
objetos como completos por meios prospectivos (deixando acontecer a informação na esperança
que a informação ulterior trará clarificações) e por meios retrospectivos (completando o que não
é percebido), atribuindo significados a acontecimentos não clarificados precedentemente. Para
Meham, estes atos constitutivos fazem de nosso mundo um processo de interação relativamente
estável.

Comentando sobre a evolução da fenomenologia constitutiva e suas conseqüências como


mediadora de novas elaborações psicossociais, H. Meham salienta que o processo de constituição
tal como é descrito pelos fenomenólogos constitutivos, ultrapassando o plano pessoal, contribuiu
de uma maneira importante para o desenvolvimento de uma teoria que articula as estruturas
sociais e cognitivas sempre em interação.

A conseqüência natural das conclusões expostas por Meham são, na realidade, o reconhecimento
de que os trabalhos, sobretudo do último Husserl, instigam inspirações extremamente
conseqüentes para o estudo do ato educativo na sua constituição social.

Intersubjetividade e realidades múltiplas


Os esforços realizados por alguns filósofos da fenomenologia de pensar o fenômeno na sua
emergência concreta, de abordar o Ser-no-mundo ou mesmo o Ser-com, conforme o olhar de
Heidegger, tem sua continuidade de certa forma sedimentada na inigualável contribuição de
Alfred Schutz, quando aprofunda relacionalmente a noção de Verstehen, propondo o estudo dos
procedimentos interpretativos a partir das interações entre as pessoas no seu cotidiano.
Na nossa apreciação, Schutz contribuiu definitivamente para o rompimento com o Zeitgeist
egológico da fenomenologia, assim como abriu caminhos férteis no sentido de uma abordagem
não-maniqueísta da relação indivíduo-sociedade.

Entre nós, resta ainda um certo sectarismo infértil, onde psicologismo e sociologismo lutam pela
conquista de espaços, e as obras de Schutz e Mead, por exemplo, constituem ainda edifícios
teóricos pouco compreendidos, até mesmo distorcidos.

Em outros contextos, restam atuais incompreensões grosseiras sobre as elaborações de Schutz,


enquanto fundamentos para etnometodologia; por exemplo, desencadeando respostas veementes,
como aquelas de B. Conein aos ataques de D. Flader e T. von Trotha a esta teoria do social,
quando a considera egológica.

Avaliamos oportuno reforçar nossos argumentos tomando o próprio pensamento schutziano no


que concerne à sua compreensão do que seja a construção social da realidade. Para Schutz, a
expressão "mundo da vida cotidiana" recobre o mundo intersubjetivo que existe antes do nosso
nascimento, o mundo dos outros, nossos predecessores, experimentado e interpretado como um
mundo organizado. Este mundo funciona como um quadro de referências sob a forma de um
conhecimento disponível. A esta reserva de experiências disponíveis pertence o fato de que nós
sabemos que o mundo onde vivemos é um mundo de objetos bem circunscritos e com qualidades
definidas; nós nos movimentamos entre esses objetos, eles nos resistem e, conseqüentemente,
nós agimos sobre eles. Desta perspectiva, Schutz considera que o mundo da vida cotidiana é a
cena e o objeto de nossas ações e interações. Desde o começo, nós, os atores da cena social,
vivemos o mundo como um mundo às vezes de cultura e de natureza, não um mundo privado,
mas intersubjetivo, isto é, que nos é comum. Para Schutz, isto implica em intercomunicação e
linguagem.

Vê-se claramente que as elaborações fenomenológicas sociais de Schutz nada têm de egológicas,
o Self constrói-se no seio das interações cotidianas, onde a intersubjetividade é condição
incontornável para o trabalho incessante de atribuição de sentidos e construção de significados
socialmente mediados (Schutz, l985).

P. Pharo (1985) nos convida a refletir sobre a idéia simples, tanto em Schutz como em
Wittgenstein, no sentido de que a compreensão realiza-se correntemente na vida ordinária, e deve
incitar-nos a começar a inventariar os meios mais evidentes desta forma de compreender, antes
de se arriscar nas interpretações que devem suas justificações a grandes dispositivos teóricos,
relativos às estruturas da sociedade e do psiquismo.

Schutz nos alerta enfaticamente para o corriqueiro hábito do uso de categorias homogeneizadoras
das realidades humanas, apontando para a natural pluralidade, singularidade e dialogicidade do
convívio humano no âmbito das "reciprocidade das perspectivas", que não excluem, é bom frisar,
compreensões de construções a partir das dissonâncias cognitivas, das crises e/ou conflitos.

Dentro da perspectiva sthutziana, todos os objetos culturais no mundo enviam-nos às ações


humanas, às atividades humanas, suas práticas, portanto. Neste sentido, o machado pré-histórico,
os instrumentos de última geração da informática, têm sua historicidade pontuada. Aqui, não é
possível compreender um objeto cultural como o computador e suas lógicas, por exemplo, sem
remetê-lo à atividade humana que circunscreve a historicidade dos objetos culturais, aos quais
incessantemente atribuímos sentido.

Segundo Schutz, as coisas são designadas e compreendidas dentro de um grupo social, e aí


acontece o fenômeno da tipicabilidade, ou formas individuais partilhadas de ações e
significados. A tipicabilidade de uma ação pode passar a ser de qualquer um, na medida que vão
se desprendendo do particular, generalizando-se e caminhando para a anonimidade. Outrossim, é
o processo de interação que vai dar movimento à tipicabilidade das múltiplas realidades
construídas cotidianamente. Neste sentido, Maffesoli diz ser crucial o entendimento deste
dinamismo para o conhecimento do fato social.

A construção do outro
O outro que fala e pensa, meu objeto, portanto, não fala e pensa como eu. Se não, não seria
meu objeto. Mas devo falar e pensar como ele, pois eu digo e penso alguma coisa, na
verdade, daquilo que ele diz e pensa. Se não, não seria o meu objeto, nem o seu, nem o de
ninguém. Sem este jogo de diferença e de identificação não teria ciência sobre aquilo que
quero conhecer .

(BOREL, 1992: 8-9)

Esta citação do pensamento de Marie-Jeanne Borel mostra que a "invenção do outro" pelos
estudos da cultura é, em realidade, um trabalho contínuo de mediação sobre a identidade e a
diferença. Sintetizando anos de estudos antropológicos e de superação do evolucionismo
hierarquizante, Kilani (1994) coloca-se a refletir, "que inventar o outro é se compreender a si
mesmo como vivo num mundo onde se pode, por contraste com o outro, desenhar os seus
contornos."

Da perspectiva acima construída, a cultura, cenário de onde emerge o outro, não é uma entidade
independente daqueles que a representam, ou uma força autônoma que é exercida sobre as
mentes dos indivíduos.

Faz-se necessário, por conseguinte, desfazer-se de uma concepção reificada de cultura, para
repensá-la enquanto força que age e que também é resultante de ações. É necessário, também, se
desfazer da concepção supra-orgânica da cultura, como uma realidade que projeta-se acima dos
atores sociais e guia suas ações. Em realidade, a cultura é um conjunto de interpretações que as
pessoas compartilham e que, ao mesmo tempo, fornece os meios e as condições para que estas
interpretações aconteçam.

As pessoas, com efeito, podem compartilhar símbolos, mas elas não compartilham,
forçosamente, o conteúdo desses símbolos. Deste ponto de vista, o outro na cultura e nas culturas
é incontornável enquanto co-construtor de diferenças e processos identitários. Ademais, a
construção do outro se dá num processo de negociação onde cultura e identidade cultural estão
em uma contínua efervescência, como espaços inscritos e como história de atores sociais dentro
de uma temporalidade.
Entretanto este outro, a minha diferença, para ser visto como tal pelos estudiosos da cultura, pelo
discurso antropológico, nem sempre apareceu enquanto alteridade afirmada. Por muito tempo foi
diluído num caldo de etnocentrismo no qual a resultante, em muitas vezes, foi o seu ofuscamento
em escalas de valores e avaliações autocentrados e de intenso conteúdo depreciativo. Quanto
maior a diferença em relação às culturas dominantes, maior o sentimento de estranheza e às
vezes de repugnância. Selvagens, monstros, animais, criaturas estranhas, rudes, faziam parte de
um discurso antropológico onde o outro é sempre visto da perspectiva da cultura que o observa,
o descreve, o interpreta e o explica.

Kilani (1994), tomando os referenciais da época da renascença e da tradição ocidental, nos revela
que a descobertas e o desejo do outro foram marcados pela fascinação da novidade e por sua
inscrição no extraordinário, no bizarro, ou mesmo na anomalia e na monstruosidade. O viajante
da renascença, descobria sobre seu caminho mulheres e homens nus, canibais ferozes e estranhas
criaturas híbridas, nos conta Kilani. Ademais, na idade média e na renascença, a fronteira entre
"eles" e "nós" era representada por uma linha que separava a cultura e a natureza, o homem e o
monstro, o cristão e o idólatra.

Estamos, neste momento, a caminho da égide do pensamento evolucionista. E aí, o outro é


diferente porque possui diferente grau de evolução. A sociedade do "eu" seria, assim, o estágio
mais adiantado da sociedade do outro, o estágio mais atrasado. O maior progresso de
determinadas sociedades levaria, conseqüentemente, à civilização, da qual os outros atrasados
estariam fora.

Neste movimento antropológico, Guimarães Rocha vê um dilema interessante: dois sistemas de


idéias – o espanto do século XVI e o evolucionismo do século XIX, ambos etnocêntricos na
maneira de ver o outro. Entretanto, reelabora Guimarães Rocha (1985), o evolucionismo, ao se
propor a pensar o outro e discuti-lo como "sócio do clube da humanidade, já traz em si alguma
semente de relativização".

Este é um processo interessante para se pensar a epistemologia das ciências antropossociais, ao


relativizar a cultura do outro como objeto de estudo. Aponta-se para o âmbito da complexidade
quando a sociedade do "eu" questiona-se a si própria ao pensar e refletir sobre a sociedade do
outro. A relação sujeito-objeto, definitivamente, já não é aquela preconizada pela lógica da
objetividade "dura" e disjuntiva. Identidade passa a constituir-se enquanto metamorfose nesta
relação de co-construção, processo identitário. Neste sentido, não há mais lugar para o
observador esterilizado e exorcizado do seu objeto, que faz do afastamento absoluto condição de
conhecimento.

Antropólogos do peso de Franz Boas e Radcliffe-Brown vão construir caminhos definitivos para
que a diferença se afaste do significado autoritário e a noção de tempo não represente um
universal a ser imposto a um contexto onde ele não existe.

O tempo produzido na sociedade do "eu ", que em geral o evolucionismo fez linearização
histórica, passa a ser relativizado e os estudos das culturas retira as amarras de uma compreensão
presa às perspectivas alheias ao contexto e às experiências que regulam e fazem a mediação das
ações e significados produzidos pelos atores. É nestes termos que viajar, ir morar, experimentar a
existência passa a ser incontornável para os estudos sincrônicos da antropologia agora
interessada na construção do outro.

Experimentar a diferença no campo de pesquisa, no mundo do outro, passa a ser um imperativo


etnográfico. Neste sentido, Malinowski transformou-se no Hermes da antropologia: viajar,
navegar, caminhar até o outro foi seu grande feito, fundando aqui o que costumou-se denominar
no discurso antropológico de comparação relativizadora. É a partir desta vontade de estudar in
situ que o outro passa a ser visto reflexivamente como uma fonte que ao ser acordada enquanto
compreensão sócio-cultural, pode, inclusive, transformar a cultura do "eu". Perspectiva que os
estudos antropológicos vão fazer fonte compartilhada da maioria das ciências antropossociais. A
construção do outro passa a ser uma temática híbrida e uma fonte extremamente seminal para se
afirmar o caráter interativo e intensamente dinâmico/ dialógico das realidades humanas. A
experiência da diversidade passa a ser uma temática central para a desconstrução dos estudos
maniqueístas e monorreferenciais, que insistem em achar que o mundo pode ser visto e
compreendido apenas por uma só lente.

Articulando a importância da história como uma das fontes de conhecimento, mas ao mesmo
tempo pluralizando-a, Lévi-Strauss vem nos perguntar sobre qual história o discurso histórico
quer veicular. É aqui que a história afetada pelo reconhecimento do outro torna-se múltipla.
Guimarães Rocha nos diz que quando Radcliffe-Brown desamarra a antropologia da história,
abre um "imenso espaço para que a sociedade do outro se mostre tal como ela é. Neste sentido, a
hierarquia deixa de ser a règle d'or da compreensão da alteridade.

O que é importante ressaltar é que para conhecer como o outro experimenta a vida, faz-se
necessário o exercício sensivelmente difícil de sairmos de nós mesmos. Há que desdobrar-se,
revirar-se, suspender preconceitos (Gadamer), criticar a si próprio, abrir-se a uma certa violação
de habitus sagrados e solidificados da sociedade do "eu".

Acrescente-se, nesta caminhada relativista, que ao se tornar a voz mais contundente em termos
da démarche interpretacionista, Clifford Geertz vai buscar convencer os estudiosos da vida
humana que seus estudos pertencem a uma ciência interpretativa dos sentidos e significados que
os seres humanos atribuem à sua existência, muito ao gosto do que Dilthey já elaborara e
defendia de forma tenaz. Necessário é, neste processo de olhar o outro da sua perspectiva, uma
"descrição densa" da experiência do outro e do "eu".

Do âmbito desta forma de olhar a diferença, o encontro relativizado e interpretado da sociedade


do "eu" com a sociedade do outro fez-se incontornável. Afinal, a cultura fala da existência e o
estudo da cultura precisa saber que este existir existe.

As culturas são verdades relativas aos atores e atrizes sociais, " são versões da vida, teias,
imposições, escolha de uma política de sentidos e significados que orientam e constroem nossas
alternativas de ser e de estar no mundo" (Guimarães Rocha, 1985).

É desta visão, acrescida de uma politização da relação de poder exercida no contato da sociedade
do "eu" com a sociedade do outro, que a crítica pós-formal vem dizer de uma visão às vezes
alijadora, às vezes bárbara, de se perceber o outro – note-se o outro na e da educação – com uma
visão monocular onde carências, déficits, insuficiências marcadoras são o ponto de partida e de
referência. Foi aqui que a prática da desreferencialização do outro fez-se norma, foi aqui que a
lavagem cerebral agiu sutilmente em forma de violência simbólica (Bourdieu) nos espaços
escolares. Subordinação inferiorizante passou a ser uma prática necessária e significativa para a
condição do aprender. Neste contexto, aluno e professor foram transformados consciente ou
inconscientemente em "idiotas culturais" ou "idiotas especializados" (Garfinkel, 1976; Demo,
1985) pelos discursos representativos de uma sociedade do "eu" sustentada pelos ideários do
ethos liberal colonizador no currículo.

Dá-se a incorporação cultural. O outro dilui-se em meio às práticas pedagógicas eminentemente


uniformizantes e eivadas de cosmovisões, conhecimento e métodos, social e economicamente
excludentes.

Um educador interessado em valorizar a cultura do outro no currículo deveria se questionar


continuamente, como nos sugere Silva (1996), sobre: "Quais visões são autorizadas e
legitimadas? De quais grupos? Quais visões não estão representadas ou são representadas como
déficit, carência ou exotismo? Quais visões são desautorizadas e deslegitimadas? Quais relações
de poder sustentam essas respectivas visões? "

Destes questionamentos podem advir respostas e pontos de esclarecimentos de como o currículo


pleiteia os outros da e na educação. Em realidade, a idéia do multiculturalismo crítico vem de
forma definitiva afirmar o outro na e da educação como limite e possibilidade dos projetos
educacionais.

No caso da educação e do currículo, especificamente, o outro na e da educação ainda é um


anúncio, porquanto as pedagogias, em geral, viraram as costas à diferença, por sempre terem
primado pelo que emerge enquanto norma e homogeneização. Penso, portanto, que a construção
do outro na educação e na pesquisa sobre a educação vem desalojar a confortável posição
autocentrada das pedagogias do eu e "tecnologias do eu" sempre despreparadas e de má vontade
para pensar e interagir construtivamente com as alteridades.

Para o etnopesquisador crítico dos meios educacionais, o outro é condição irremediável para a
construção de conhecimentos nos âmbitos das práticas educativas. Ao estabelecer a diferença, o
outro vai mostrar ao etnopesquisador que nem tudo é regularidade, norma, homogeneização, e
que ao traçarem uma "linha dura" para a compreensão do ato educativo, as ciências da educação
perderam de vista a multiplicidade instituinte. Por outro lado, já vislumbra-se que "a invenção do
outro" da perspectiva das ciências da educação começa a incomodar, desalojar e desconstruir.
Este é um anúncio significativo. Os estudiosos não-evolucionistas da cultura sabem disto e
sabem também que há muito para ser mobilizado em termos da destruição dos fundamentalismos
e intolerâncias.

A construção social das realidades


A noção de realidade enquanto construção social veio abalar de vez a possibilidade de se
compreender as práticas humanas e as visões de mundo nelas imbricadas de forma reificada, isto
é, não reconhecidas como resultado da atividade social destes mesmos homens.

Com Luckmann e Berger, compreendemos que a auto-eco-produção do homem é sempre e


necessariamente um empreendimento social. Para estes autores, os homens, em conjunto,
produzem um ambiente humano com a totalidade de suas formações sócio-culturais e
psicológicas. A humanidade específica do homem e sua sociabilidade estão imbricadas. O homo
sapiens é sempre, e na mesma medida, homo socius.

Para estes autores, todos os universos socialmente construídos modificam-se, e a transformação é


realizada pelas ações concretas dos seres humanos, assim como a realidade social é definida, mas
estas definições são sempre encarnadas, isto é, indivíduos concretos e grupos de indivíduos
servem como definidores da realidade (Berger e Luckmann, l973).

Neste sentido, o que permanece sociologicamente essencial é o reconhecimento de que todos os


universos simbólicos e todas as legitimações são produtos humanos, cuja existência tem por base
a vida dos indivíduos concretos e, portanto, não possui status empírico à parte dessas vidas.

Após a expulsão do sujeito/ator das teorizações antropossociais, dá-se um recalque que se traduz
num aparecimento reduzido a epifenômeno, ou mesmo a um sub-produto do estruturalismo.

De fato, a realidade enquanto construção social não emerge em função de leis naturais ou
históricas abstraídas da atividade humana, mas pela ação daqueles que lutam e negociam para dar
uma certa forma social às orientações culturais que eles valorizam. Não temos dúvida que as
estruturas existem e devem ser estudadas, mas é a ação humana inserida na sua temporalidade
que constitui o ingrediente básico de qualquer construção de obras-no-mundo. Assim, tenho a
convicção de que os novos paradigmas da compreensão do homem em sociedade terão na noção
forte de construção social das realidades uma aliada fecunda em termos epistemológicos e
metodológicos, face o status heurístico e a força teórica desta noção, ainda muito pouco
explorada.

O lugar da linguagem como ação


"No início, era a ação", disse Johann Wolfgang Goethe, em Fausto.

Da perspectiva dos nossos pressupostos no que concerne à linguagem como atividade, o trabalho
sobre o discurso torna-se, assim, um momento necessário da construção de uma teoria acionalista
em ciências do homem. Assim, E. Veron nos diz que dar conta da noção de motivo ou de
finalidade, enquanto categoria da inteligibilidade do social, importa em perguntar qual é o modo
de existência dos motivos ou das finalidades nos discursos; importa, segundo este autor,
compreender a natureza da produção do motivo e da finalidade nos atos de linguagem.

Neste sentido, a linguagem é uma atividade, é também, e por isso mesmo, uma competência. No
que concerne ao discurso, é um fenômeno social e constitui um dos vínculos mais importantes de
produção de sentidos no interior de uma sociedade, com uma importante função de a constituir
ideologicamente. É a partir deste entendimento que se conclui que o conceito que nos pode servir
para compreender as bases da constituição da inteligibilidade do social outro não é senão o de
sistema ideológico tal como foi esboçado por Marx. O que equivale a dizer que essa lógica
natural que habita tanto o discurso como a ação é o próprio trabalho da ideologia sobre as
matérias significantes. A propósito, as descrições etnometodológicas mostram bem que esse
trabalho está na base das operações de atribuição de sentido aos objetos e aos comportamentos, e
também na base da própria definição do indivíduo como membro de uma sociedade, isto é, na
base da constituição dos processos identitários.

Assim, da perspectiva da etnopesquisa, a vida social se constitui, predominantemente, através da


linguagem do dia-a-dia.

A partir desta lógica, a significação de uma palavra ou de uma expressão deve impregnar-se de
fatores contextuais tais como a biografia do locutor, sua intenção, daí a heterogeneidade natural
do sentido; não há, assim, homogeneidade semântica, bem como a linguagem natural não tem
sentido independentemente das suas condições de uso e enunciação (Veron, 1980).

Neste mesmo veio, P. Pharo (1984) argumenta que a indexalidade da linguagem se liga a todas
as expressões da linguagem ordinária, portanto, o sentido, enquanto ocorrência de palavras-tipos,
não é jamais redutível, pura e simplesmente, à significação objetiva das palavras e das
expressões.

Para pesquisadores interessados nos sentidos locais das expressões dos atores sociais, o mundo é
sempre conceitualizado, tematizado, tudo para o homem tem um nome, e a linguagem tem um
irremediável caráter constitutivo. Daí o lugar privilegiado dos atos de linguagem, e da polissemia
advinda do exercício cotidiano de comunicar-se.

Faz-se necessário também enfatizar que a linguagem representa e constitui poderes. Marx nos
ensinou que, se se souber olhar bem, todo produto traz os traços do sistema produtivo que o
engendrou. Esses traços lá estão como marcas, mas nem sempre visíveis facilmente. Uma análise
radical pode torná-las à vista: o que consiste em postular que a natureza de um produto só é
inteligível em relação às regras sociais de seu engendramento.

Coerente com esta visão, Foucault nos apresenta uma noção de poder, onde não o identifica nem
como uma instituição, tão pouco como uma estrutura, e nem de longe uma potência de que
alguns estariam dotadas, seria um nome que se dá a uma situação estratégica complexa, numa
dada sociedade. Estratégias estas não existentes fora do conjunto de significantes que as
constituem. Esta é uma semiose que Peirce descreveu como infinita.

Desta forma, quanto mais complexa uma sociedade, tanto mais complexa a semiose que a
atravessa. Assim, o ideológico enquanto conjunto não neutro de sentidos e o poder estão por toda
parte enquanto chaves da inteligibilidade do campo social.

Rejeitando a idéia que a realidade pode ser reduzida a elementos simples, ou que a linguagem
pode ser considerada como nomenclatura, Wittgenstein desenvolve a idéia de que o quadro de
emprego da linguagem é indispensável à compreensão da simplicidade ou da complexidade de
um objeto, particularmente das experiências de um interlocutor-auditor e das coordenadas que
ele utiliza quando considera o objeto em questão.

Reforçando os posicionamentos de Wittgenstein, Austin (l961), no seu artigo "A significação da


palavra", apela para a noção de "homem da rua" e sua maneira de utilizar e compreender a
linguagem cotidiana. Segundo a elaboração de Austin, o "homem da rua" tem uma capacidade,
uma competência intuitiva para produzir e compreender propósitos, que não podem ser
explicadas unicamente pela lógica. Para Austin, é fundamental se interessar pela maneira como
são utilizadas as palavras nas situações particulares. Nenhuma separação, segundo ele, deveria
existir entre as considerações sintáticas e semânticas.

Por concluir, e em conseqüência do exposto, falar da competência e da performance dos


interlocutores na sua língua materna exige do pesquisador compreender como se pode detectar
esta competência a partir de um estudo empírico de sua performance, mas também de mostrar
como todos os dois dependem da aquisição progressiva de procedimentos interpretativos para
aprender e reencontrar um vocabulário ou uma terminologia apropriada no curso dos encontros
vivenciados (Cicourel, 1979).

Cotidiano e cotidianidade
Há algum tempo, Brecht dizia: "...examinai, sobretudo, o que parece habitual...não aceiteis o
que é de hábito como coisa natural..."

Mas é a partir da década de 50 que a questão da vida diária, das ações cotidianas, passam a
representar um tema de interesse e a atrair diversas correntes do pensamento social, voltando-se
para este campo como um lugar rico e fecundo em questões sociais.

Outrossim, até esta época mais densamente, o cotidiano é decomposto em parcelas definidas e
cada parcela operacionalmente mensurável constitui uma unidade fundamental para se verificar a
ação global. O roteiro dessa verificação e do conjunto de atos é dado por uma descrição bem
precisa de indicadores e da medição engenhosa da freqüência com que eles ocorrem pela sua
duração e pela sua intensidade; isto autoriza a traçar uma trajetória e uma constante, e a chegar a
uma generalização. O cotidiano e suas ações são, necessariamente, fragmentos de tempo e de
espaço fisicamente delimitados, passíveis de uma mensuração. É uma porção de vida que se
repete, e que define sempre o idêntico, o repetitivo, o constante, e por esta via posso captar a
repetição, medir ou descrever a ação. O comportamento e o cotidiano, em suma, são
considerados como uma síntese cristalizada e inconsciente de estruturas normativas que já foram
inculcadas e que regem as condutas ou as motivações dos atores sociais e explicam a reprodução
e a estabilidade da ordem social, muito ao gosto dos herdeiros metodológicos de Durkheim
(Chizzotti, 1992). Causalidade, quantificação e academicismo são as bases epistemológicas desta
perspectiva.

Assim, a simplicidade da vida não interessa nem atrai a ciência formal. Tal fato insinua uma
característica marcante das ciências sociais até hoje: o desprezo pela vida do dia-a-dia, a forma
de olhar de cima para baixo, a reificação e imbecilização das questões do homem comum. No
formalismo científico, o homem "comum" é tão sem importância que mal parece acontecer. Não
passa de um figurante sem voz (Demo, l985).

Outrossim, é na vida cotidiana que se desenvolvem a sensibilidade, a percepção hermenêutica do


trajeto histórico comum, a compreensão dos processos identitários culturais, a enculturação do
funcionamento mental, sem os quais somos apenas componentes. De fato, as ciências sociais
fixaram-se preferencialmente no nível macro-estrutural, tentando interpretar /explicar grandes
realidades, que muitas vezes, ao final, representavam saberes tão abstratos quanto estéreis, por
estarem totalmente desvinculados da vida, que incontornavelmente dá-se na cotidianidade.

Ao tomar a questão da classe social como exemplo, Demo (1985) comenta que o nível macro
parece alojar numa respectiva classe todos aqueles que sofrem mais-valia. Para o autor, todavia,
isto tem pouco a ver com os níveis micro, onde o proletariado não é média. De acordo com esta
elaboração, ao lado desta generalização máxima, é mister ver o fenômeno de perto, conviver com
ele, especificar como é a mais-valia na pele da empregada doméstica, do migrante, do menor
trabalhador, do trabalhador informal, do trabalhador negro etc.

A valorização do cotidiano possui uma certa sabedoria que se consubstancia na crença de que,
para que uma mudança seja profunda, é necessário partir da intimidade das coisas; para entrar na
intimidade das coisas, é preciso partir delas, conviver com elas; então podemos distinguir as que
não interessam, e, a partir de dentro, montar o caminho da transformação mais relevante e
pertinente, dentro da radicalidade que não desreferencializa, não arrasa. Estamos, é bom frisar,
empanturrados de indigestas verborréias teóricas e de propostas milagreiras que ao longo da
história do conhecimento e da educação fizeram apenas legitimar a voz da racionalidade
descontextualizada, escamoteando a construção de consciências conectadas e/ou relacionais
nestes campos da atividade humana.

A ciência formal não quer ver "les savants de l'interieur", com suas religiosidades, sua
experiência adquirida na prática histórica da comunidade, suas assincronias, suas soluções que
emergem da necessidade de viver e compreender a vida. Prefere perder estes aspectos intensivos
da vida, lapidando os fenômenos vitais avaliados como uma espécie de banalidade desprezível.

O que é interessante indagar-se é: que política de sentido está por traz deste ethos que considera
lixo, algo que penetra e perpassa tão intensa e profundamente na qualidade de vida?

Do nosso lugar de educador, consideramos que, para apagar as marcas do "beijo da morte" que a
ciência normal plantou no conhecimento acadêmico, ao desconectá-lo dos saberes da vida, far-
se-á necessário um currículo conectado com a cotidianidade, porquanto educação é de alguma
forma ciência, mas também arte e sabedoria.

Existe, efetivamente, um conhecimento empírico cotidiano que não pode ser dispensado. São
saber-fazer, saber-dizer, saber-viver, todos tão diversos e múltiplos que a monorreferência
objetivista preferiu ignorar, considerá-los, no máximo, epifenômenos, banalidades de um mundo
sem valor científico e sem status de verdade.

Nas opiniões de Ezpeleta e Rockwell (1986), a heterogeneidade caracteriza as atividades da vida


cotodiana e somente na vida cotidiana os homens se apropriam de usos, práticas e concepções,
cada uma das quais é síntese de relações sociais construídas na história e com a história.

Faz-se necessário frisar que a cotidianidade é relacional, não se consubstancia num corte
abstrato, tem sentido apenas no contexto de uma gestalt social, num processo histórico, porque
também temporal. O cotidiano enraiza-se na história e vice-versa.

Neste veio, a escola e seus diversos contextos de relações são os cenários privilegiados das
pesquisas educacionais, onde as categorias cotidiano e cotidianidade têm um status
epistemológico significativo.
O mais importante no conjunto das abordagens das pesquisas que inserem-se na cotidianidade é
o movimento recente "das mentalidades" que faz reaparecer o sujeito face as estruturas e aos
sistemas, a qualidade face a quantidade, o vivido face ao instituído. Relacionando e conectando
estas perspectivas, a "abordagem" do cotidiano em pesquisa – até porque, paradoxalmente,
abordagem significa se manter nos entornos - remetenos, inexoravelmente, ao mundo da
complexidade. É no cotidiano e na cotidianidade que as contradições, os paradoxos, as
ambigüidades, as insuficiências, os inacabamentos, as necessidades, as rotinas e os conflitos
apresentam-se como faces inerentes à especificidade humana. Nos diz Ecléa Bosi que a
verdadeira mudança política dá-se a perceber no interior, no concreto, no miúde, acrescentando
que uma resolução que não comece e não acabe transformando o cotidiano não merece
empenho. Em termos de formação docente, é da vida cotidiana escolar que brotam as formas de
produção do conhecimento extremamente significativas para pensar e repensar a prática
pedagógica, mediadas por valores e conhecimentos dos atores pedagógicos implicados. É através
da vida cotidiana escolar que se concretiza a praxis educacional enfim, onde começam e
terminam a ações instituídas e instituintes do fazer da educação.

Contexto e lugar. Pertinências constitutivas


Etimologicamente, o termo contexto nasce do latim contextus, do verbo contexture, entrelaçar,
reunir tecendo. O verbo contexture já significava juntar genericamente e, em Quintiliano
"compor um discurso, escrever um texto", assim como em Plínio, o Antigo, "tratar de um
assunto". Em Cícero e mais tarde em Isidoro Hispaliense, o advérbio contexte significa
"continuadamente, sem interrupção". Trata-se, portanto, de uma noção complexa e
multirreferencializada como a propósito elaboram Morin e Ardoino.

Malinowski foi, talvez, o pioneiro na utilização do conceito de contexto, concebido por este
autor como o conjunto de todos os elementos que formam uma cultura, tecido relacional e
conjuntamente.

Quando discorrem sobre a necessidade de contextualizar o fenômeno como forma de apreendê-lo


mais significativamente, Ludke e André (1986) comentam que é preciso levar em conta como o
objeto se situa, para assim compreender melhor a manifestação relacional das ações, das
percepções, dos comportamentos e das interações.

Uma outra perspectiva importante é elaborada por Silva e Silva (1986), quando chama a atenção
para o fato de que as investigações de características temáticas, que partem do universo
vocabular das populações, devem voltar-se para a percepção local da realidade e sua relação com
perspectivas mais gerais. Neste sentido, o objeto é apanhado na sua densidade local, mas também
no seu movimento e na sua transformação, de modo a superar o dado para atingir os nexos de
relação que se encontram em permanente movimento e que, portanto, se recriam e se
transformam na sua temporalidade.

Dentro desta visão, à medida que os atores se comunicam, falam; constroem em conjunto a
pertinência do contexto e escolhem os elementos de que têm necessidade no imediato. É no
fenômeno da reflexividade que evidencia-se o caráter dinâmico dos contextos, na medida em que
estes são constituídos e se constituem nos âmbitos das relações instituinte/instituído.
Em realidade, a necessidade de contextualização é uma das bases de desconstrução da ciência
formal e nomotética. Clama-se, pós-formalmente, por um olhar ideográfico e conectado naquilo
que o grand écrit barbaramente negligenciou, servindo, por conseqüência, ao poder do
colonialismo intelectual que ainda povoa as práticas e os estudos na e sobre a escola.
Historicamente, a palavra mestra virou as costas às identidades e às alteridades dos vários
contextos humanos, cultivou e cultuou perversamente o saber monorreferencial e excludente.

Nestes termos, cotidiano, cotidianidade, contexto e lugar, são conceitos mediadores férteis para
uma démarche metodológica em etnopesquisa crítica, particularmente nos meios educacionais.

É bom frisar que os contextos não são equivalentes aos meios físicos; eles são construídos por
pessoas. Pessoas em interação servem de ambiente uns para os outros, assim, o contexto é uma
construção onde a intersubjetividade é condição incontornável.

No que se refere à noção de lugar e tomando a natureza das relações modernas, teria o processo
de globalização acabado com o lugar e suas especificidades espaciais e temporais? Não haveria
mais espaço para o enraizamento? "Colocar os pés no chão" não mais seria uma recomendação
válida? A inspiração "Terra", cantada por Caetano Veloso, é agora apenas uma abstração
sentimental? Situar é uma bobagem ou um anacronismo epistemológico?

Da perspectiva de um etnopesquisador, tais questões demandam, acima de tudo, ressignificação,


como prova do caráter mutante da realidade, hoje caracterizada por uma temporalidade
extremamente comprimida, face às transformações no próprio tempo, não mais um tempo/ hora,
mas tempo/segundo.

Estaríamos presenciando uma eliminação do tempo? Em realidade, não se trata disto, entretanto,
é substancial sua diminuição, como conseqüência de uma tecnologia fundada na velocidade e na
ampliação espacial da informação que não deve ser confundida com o fenômeno sempre
encarnado da comunicação.

Temos que compreender, apesar do impacto temporal, que o processo de globalização


materializa-se no lugar. Aqui se lê, percebe, entende o mundo moderno em suas múltiplas
dimensões, o que significa dizer que no lugar se vive, se realiza o cotidiano, e é aí que ganha
expressão o mundial. O mundial que existe no local – o glocal – redefine seu conteúdo, sem
todavia anularem-se as particularidades.

O lugar se produz na articulação contraditória entre o mundial que se anuncia e a especificidade


histórica do particular. Deste modo, o lugar se apresentaria como um ponto de articulação entre a
mundialidade em constituição e o local enquanto especificidade concreta, enquanto momento
(Alexandri Carlos, 1996).

Assim, definido a partir do sujeito que se revela nas formas de apropriação pelo corpo, o lugar se
completa pela fala, troca alusiva a algumas senhas, na convivência e na intimidade cúmplice dos
locutores. No lugar, encontramos as mesmas determinações da totalidade sem com isso
eliminarem-se as particularidades. Cada sociedade produz o seu espaço, determina os ritmos, os
modos de apropriação. O lugar, portanto, guarda o âmbito prático-sensível, real e concreto.

Desta forma, o lugar é a base da reprodução da vida e deve ser analisado na relação habitante-
identidade-lugar. As relações que os indivíduos mantêm com os espaços habitados se exprimem
todos os dias nos modos de uso, nas condições mais banais, no secundário, no acidental. É, em
realidade, o espaço possível de ser apropriado, vivido e significado.

Na opinião de Alessandri Carlos (1996), o processo de reprodução das relações sociais que vem
ocorrendo hoje não invalida o fato de que o lugar aparece como distinção do espaço onde se
pode apreender o mundo moderno, "uma vez que o mundial não suprime o local enquanto lugar
da vida".

Neste sentido, a análise do lugar implica a idéia de uma construção, tecida nas relações sociais
que se realizam no plano do vivido, o que garante a constituição de uma rede de significados e
sentidos que são tecidos pela história e pela cultura que produz a identidade homem-lugar.
Assim, os autores que habitam esta temática afirmam inexoravelmente que a natureza social da
identidade, do sentimento de pertencer, liga-se aos lugares habitados, marcados pela presença,
criados pela história, marcados, remarcados, nomeados, ressignificados. Ademais, o lugar é um
espaço presente construído como uma totalidade com suas ligações e conexões mutantes. Mas
isto só pode ser entendido se se transcende a idéia do lugar enquanto fato isolado, o que faz,
segundo Alessandri Carlos, com que a vida de relações ganhe impulso na articulação entre
próximo e distante.

Para Santos (1995), o lugar permite ao mundo realizar a oportunidade de uma história que, ao se
realizar, muda, transforma, determina a ação, é onde os homens estão juntos vivendo, sentindo,
pensando, pulsando, e que têm a força da presença do homem, mesmo que o moderno imponha o
efêmero.

Podemos verificar também com Heidegger que o habitante, o mortal, só existe pelo seu
enraizamento, sua adesão a um terroi, um lugar de origem, uma referência familiar. Neste
sentido, o vivido tem um caráter espacial local. Liga-se ao habitar um espaço produzido.

Por conseqüência, o espaço não é para o vivido um simples quadro, a atividade prática vai
modificando constantemente os lugares e os seus significados, marcando e renomeando,
acrescentando traços novos e distintos que trazem valores novos, presos aos trajetos construídos
e percorridos (itinerâncias). Podemos falar, portanto, de uma territorialidade movente, cambiante.

De forma encarnada enquanto citadino, posso dizer que o lugar na polis pode ser o anonimato ou
a liberdade, o reencontro e o amor; a perdição, o pecado e a penitência; é a vida como a morte; é
o teatro da vida e o simulacro; é a opacidade e a resistência, bem como a verdade nua e crua.

Enfim, a etnopesquisa sem lugar perde sua força hermenêutica e criativa, formando, neste
sentido, um paradoxo irremediável. Tal perspectiva de pesquisa deve emergir sem concessões do
mundo cultural, tecido no âmago das indexalidades dos espaços ocupados: os lugares, os
contextos. Desta perspectiva, a escola jamais pode ser avaliada enquanto instituição
epifenomênica, é locus indispensável para a compreensão da concretude das políticas e ações
educacionais.

Os âmbitos da qualidade e sua dialética


Aquilo que em geral chamamos de âmbitos qualitativos da realidade, na medida que a inserção
existencial e cultural do ser –no-mundo é incontornável, não podem ser alcançados por um
paradigma normativo. O mundo dos sentidos, dos significados, dos símbolos, dos mitos, das
opacidades, das representações, do imaginário, das ideologias, não se doam à lógica dura,
laboratorial, como queria Bacon com seu ethos experimentalista. Ademais, estes âmbitos
apresentam uma outra complexidade só apreendida por um olhar hermenêutico: não funcionam
linearmente, resistem às metodologias onipotentes e ao saber nomotético absoluto.

O experimentalismo inspirado no controle não os alcança, a mensuração simplesmente os nega, e


o estruturalismo sem alma os contorna, como fez a cibernética ao contornar as lógicas internas
daquilo que os behavioristas identificaram como black box. Inalcançáveis por estes ethos
científicos, os âmbitos da qualidade permaneceram presos a uma filosofia abstrata e pouco
relevante para uma ciência interessada nas questões significativas da vida.

Entretanto, a partir das orientações sócio-fenomenológicas das pesquisas qualitativas, as ações


deixam de ter um significado idealista estável, devem, freqüentemente, ser interpretadas e
reinterpretadas de forma situada. Como conseqüência, torna-se necessário para o pesquisador
colocar-se na posição do ator. Isto é, perceber o mundo deste a partir do seu ponto de vista, do
contrário jamais terá acesso ao que denomino âmbitos da qualidade.

Assim, para o olhar qualitativo é necessário conviver com o desejo, a curiosidade e criatividade
humanas; com as utopias e esperanças; com a desordem e o conflito; com a precariedade e a
pretensão; com as incertezas e o imprevisto. Acredita-se, desta forma, que a realidade é sempre
mais complexa que nossas teorias e não cabe em um só conceito. É interessante frisar que o olhar
qualitativo não estranha as sutilezas paradoxais da cotidianidade, convencido do grande valor
epistemológico do fenômeno estar.

Na emergência qualitativa, aparece mais o intensivo que o extensivo, sem, entretanto, cair na
negação maniqueísta deste último.

Como nos conta Demo (1985), o intensivo tem mil faces. Aparece e desaparece. Reflui e se
esgueira. Toda felicidade tem uma pitada de amargura, como toda amargura pode ser prenúncio
de alegria. "Há o que é bom e dói, como há o que dói e é bom. Possui estruturas éticas, mas é
capaz de imoralidades". Isto nos mostra bem o quanto tal especificidade qualitativa não se
enquadra em qualquer linguagem binária e/ ou digital, como gostariam alguns quantitativistas
compulsivos. Aqueles que Sorokin chama de arautos da quantofrenia.

Esta realidade intensiva, fugaz e sutil, que muito nos escapa, porquanto somos muito
direcionados pelo habitus das lógicas newtonianas-cartesianas-ptolomáicas, esta realidade que
tentamos cercar de todos os lados e some, porque mais passamos do que ficamos, conecta-se
com a dialética, porque, segundo Demo, já aprendeu a viver atônita, pede a angústia do método
face a grande interrogação que é o homem e suas realizações.

Nos âmbitos da qualidade habitam objetos jamais tocáveis pelo fisicalismo, pela simples
mensuração, portanto, persona não grata dos behavioristas lógicos, que vêm nestes âmbitos
eminentemente reflexivos a negação do conhecimento preciso e onipotente.

A conseqüência natural destes limites comprometedores foi o aprofundamento pelo espírito


curioso nestes âmbitos complexos, criando caminhos capazes de acessar as características
qualitativas da vida, até porque têm muito da especificidade humana: o que um povo é está
inscrito na cultura e nesta habita a densidade qualitativa, que implica numa ética, numa estética e
numa política em todos os sentidos.

Qualidade e quantidade. Uma relação mal construída

É preciso alertar que a fratura ingênua entre qualitativo e quantitativo não cabe numa reflexão
epistemológica complexa, avessa aos maniqueísmos e reduções que o formalismo nos deixou de
herança. O que é interessante ficar claro é que a visão qualitativa em ciências do homem se
consubstancia numa certa resistência histórica às reduções matematizantes que a lógica dura
impôs ao conhecimento das realidades antropossociais; não significa, em nenhuma hipótese, uma
rejeição pura e simples em relação ao mundo das dimensões, até porque fazem parte também da
totalidade movente do Ser-no-mundo.

Assim, a organização qualitativa do processo de construção do conhecimento inclui a informação


produzida pelo extensivo, dentro de uma lógica qualitativa, por conseguinte; o conhecimento
nunca é a expressão matematizada dos dados empíricos, é, em realidade, o resultado de
construções teóricas que emergem vinculadas aos indicadores diversos constituídos em nível
empírico. O quantitativo pode representar um momento do processo, momento que permite, em
alguns casos, organizar o problema da investigação. No desenvolvimento do problema durante o
curso da investigação, as dimensões quantitativas que em algumas ocasiões estão na base da
definição do problema, passam a adquirir sentido apenas na configuração de fatores diversos,
organizados nos processos de interpretação. Não se trata, portanto, de negar o quantitativo, mas
de legitimar o lugar que corresponde no qualitativo. São as exigências concretas da investigação
e dos seus objetos que dão status ao tipo de "dado".

Desta forma, o "dado" é um momento do processo de pensamento, inseparável da própria


condição processual deste. Nesta perspectiva, o "dado" não é uma unidade direta de informação.
O "dado", definido como indicador, é um momento do processo de construção do conhecimento,
e que só tem sentido dentro dele.

Marli André (1995) nos diz de forma pertinente que mesmo quando se reportam "dados" de
depoimentos, entrevistas e de observações, é conveniente que se expressem os resultados
também em números. Segundo esta autora,

é muito mais interessante e ético dizer que "30% dos entrevistados consideram uma
proposta autoritária, do que afirmar genericamente que alguns professores consideraram a
proposta autoritária.

Neste caso, ainda segundo Marli André, o número ajuda a explicitar a perspectiva qualitativa.

Neste sentido, sugere a autora que deixemos as denominações qualitativo e quantitativo para
caracterizar técnicas de coleta de "dados", ou para designar um tipo de "dado" obtido.

Tenho consciência que alguns recursos quantitativos e a conclusão a que chegam, são
incompatíveis com a tradição hermenêutica da etnopesquisa, entretanto, a dificuldade não se
reduz simplesmente ao recurso ao número, mas ao tipo de mecanismo que utiliza o número como
fonte de explicação. Alguns caminhos do cálculo das correlações e algumas estreitezas dos
procedimentos experimentais não podem conviver com os procedimentos de uma pesquisa onde
interpretar imerso no contexto e na cultura são recomendações irremediáveis. Por outro lado, esta
questão é muito mais um debate epistemológico do que metodológico, e que me parece já vem
sendo superado quando se trata do uso das dimensões nos estudos compreensivos.

Uma epistemologia qualitativa

Tomando o caráter existencial das investigações qualitativas e inspirado nas elaborações


primeiras de Dilthey, J. Ardoino prefere falar em método clínico quando se refere às
investigações que lidam com o vivido e as implicações. Para este autor, a especificidade do
clínico reside numa dupla abordagem ao mesmo tempo histórica e implicacional da situação
investigada. Isto é, os sujeitos estão e são irremediavelmente implicados e situados tanto no
tempo quanto no espaço da problemática a ser compreendida. O recurso básico é uma démarche
hermenêutica, via uma escuta congruente, mais do que uma observação distanciada (J. Ardoino,
1980). Antes mesmo de falarmos em uma metodologia clínica ou qualitativa, numa técnica
clínica ou qualitativa, num instrumento clínico ou qualitativo, necessário se faz pensarmos numa
perspectiva mais ampla e fundante, isto é, as epistemologias que lhes dão base de sustentação e
status científico. É aqui que a noção de uma epistemologia qualitativa toma importância. Para
Rey (1997), a epistemologia qualitativa tem no seu caráter histórico a pedra de toque de suas
argumentações. Isto implica, de forma simultânea, nos processos de afirmação e interrogação
que lhes são complementares e garantem a continuidade através de cada novo momento de
construção do conhecimento. Assim, todo novo momento do conhecimento representa uma
afirmação, que simultaneamente gera novas interrogações que estão na base de sua continuidade.

Desta perspectiva, o conhecimento não se produz só pelo que se afirma, pois não representa uma
cadeia de verificações, mas que se legitima pela produção mesma em sua capacidade de manter
sua continuidade e congruência através das contradições, dos erros e das negações. São, em
realidade, momentos de estimulação para a produção teórica, até porque a presença do real na
construção teórica não aparece por verificações lineares que se acumulam, mas pela riqueza da
própria construção teórica que permite explicar formas cada vez mais complexas do real, as quais
emergem ante o conhecimento de formas muito diversas. A conseqüência desta démarche
epistemológica é a compreensão de que o conhecimento não se dá por processos de indução e
dedução tão somente, bem mais por formas ativas de produção que não se encaixam numa lógica
de ordem regular que defina regras fixas e universais a seguir. Outrossim, é possível, mesmo
dentro de uma perspectiva da epistemologia qualitativa, que existam momentos onde a indução e
a dedução apareçam valorizadas para a construção da informação.

Rey (1997) forja a noção de "lógica configuracional " para dar conta dos complexos processos
de construção que estão na base da produção do conhecimento na epistemologia qualitativa.
Segundo Rey, a configuração como processo construtivo é personalizada, dinâmica,
interpretativa e irregular, o que permite expressar a própria natureza contraditória, irregular e
diferenciada que o processo de produção do conhecimento tem.

Compondo isto que se denomina de uma epistemologia qualitativa, estão as seguintes


características nucleares: no processo de construção do conhecimento, os "dados" representam
um indicador a mais, que se integra no processo construtivo desenvolvido pelo investigador em
sua condição de sujeito do conhecimento, por isso é correta a afirmação dos etnopesquisadores
de que o pesquisador e seu repertório de experiências e conhecimentos são o principal
instrumento de uma etnopesquisa; o conhecimento se legitima como atividade produtiva, como
atividade teórica, representando um processo vivo em permanente desenvolvimento; a
construção do conhecimento é um processo aberto, pois entende seguir compreensivamente as
formas complexas da realidade em curso; o singular, o ideográfico, representam um momento
essencial no curso da construção do conhecimento. Entende que cada caso é consistente em si
mesmo, apesar de relacional, e, nesta dinâmica, atinge o geral; instrumentos, técnicas, recursos,
estratégias de investigação, só têm sentido dentro da construção teórica do investigador; o
cotidiano é parte incontornável, portanto inseparável da produção de informações; a produção do
conhecimento é sempre vista como um processo de co-construção, por mais que em alguns
momentos o trabalho de produção do conhecimento acadêmico recomende uma certa solidão;
portanto, o conhecimento é produto de interações que se voltam para um "dado" fenômeno
social; é dada à subjetividade em termos gnoseológicos, a mesma legitimidade ontológica dada a
qualquer outro objeto de conhecimento; é radical quando afirma o óbvio construtivista de que
não há conhecimento e realidade humana sem sujeito; por conseqüência, reconhece no processo
de implicação dialética do sujeito com seu objeto um tema científico legítimo e pertinente,
portanto indestacável do processo e do produto da pesquisa.

É interessante chamar à atenção que os âmbitos da qualidade, enquanto visão filosófica


aprofundada, não devem se limitar ao pensar da pesquisa, aliás, seria um bom ponto de
confluência na e para a educação, na medida em que professores e alunos pesquisadores
aprofundem as conseqüências para o ensino de uma epistemologia qualitativa em todos os seus
aspectos e conseqüências.

A hermenêutica. Um recurso e uma exigência


Do grego hermeneutikós, de hermeneuein, isto é, interpretar, a hermenêutica é um termo
originalmente teológico, designando a metodologia própria à interpretação da Bíblia;
significando também a interpretação ou exegese dos textos antigos. O termo passou depois a
designar todo esforço de interpretação científica de um texto complexo. No século XIX, Dilthey
vinculou o termo "hermenêutica" à sua filosofia da "compreensão vital". Para este filósofo da
compreensão, as forças da cultura, no curso da história, devem ser apreendidas através da
experiência íntima de um sujeito, cada produção espiritual é somente o reflexo de uma
cosmovisão, e toda filosofia é uma filosofia da vida. Em termos contemporâneos, constitui um
esforço interpretativo e compreensivo sobre as situações de vida em geral, inserida numa prática
fenomenológica do conhecimento.

Como conseqüência, o círculo hermenêutico nos sugere que toda compreensão do mundo
implica na compreensão da existência e reciprocamente (Heidegger). Essa antecipação é a pré-
compreensão a partir da qual poderá desenvolver-se uma explicitacão compreensiva.

De fato, na fenomenologia, a compreensão passa a ser definida como um mundo de


conhecimento predominantemente interpretativo, por oposição ao modo propriamente
"científico", que é o da explicação. Assim, enquanto a explicação constitui um modo de
conhecimento analítico, procedendo por decomposições e reconstruções de conceitos, a
compreensão é um modo de conhecimento da ordem intuitiva e sintética. Enquanto a explicação
detecta as relações que ligam os fenômenos entre si, a compreensão procede a uma apreensão
imediata e íntima da "essência" de um fato humano, isto é, seu sentido (Japiassú, 1996).

A reflexão hermenêutica torna-se, assim, necessária para transformar a ciência de um objeto


estranho distante e incomensurável com a nossa vida, num objeto familiar e próximo que, não
falando a língua de todos os dias, é capaz de nos comunicar as suas valências e os seus limites,
os seus objetivos e o que realiza aquém e além deles, um objeto que, por falar, será mais
adequadamente concebido numa relação eu-tu do que numa relação eu-coisa, e que, nessa
medida, se transformará num parceiro de compreensão e da transformação de realidades.

Ademais, a própria reflexão hermenêutica permite romper o círculo vicioso do objeto-sujeito-


objeto, ampliando e aprofundando o campo da compreensão, da comensurabilidade e portanto,
da intersubjetividade. Por esta via, dar-se-á a desdogmatização da ciência na sua pragmática. No
círculo hermenêutico, entende-se que cada parte de um texto requer o resto dele para tornar-se
inteligível; o todo só pode ser compreendido em termos das partes; há um constante movimento
entre as partes e o todo, não havendo nem começo absoluto nem ponto final. Nestes termos, a
compreensão se dá por meio de uma recriação da experiência ao tentar conhecê-la. Demanda-se,
aqui, um certo grau de empatia ou uma disponibilidade para recriar interpretando.

São os textos de Martin Heidegger, Hans–Georg Gadamer e Paul Ricoeur que mais densamente
deram lugar de destaque à hermenêutica. No conjunto plural desses pensamentos, o leitor,
observador ou intérprete, é colocado no centro da temática hermenêutica. Aparece aqui, com
força, a necessidade de compreendermos nosso tempo, lugar e cultura, como perspectivas para
dialogarmos com o texto. A existência é sempre temporal e, como tal, nós e o autor somos
interpretados dentro de uma temporalidade. Parte-se, assim, do princípio de que há sempre
interpretação. De que não há sentido sem interpretação. Estabilizada ou não, mas sempre
interpretação (Orlandi, 1996). Faz-se necessário alertar, ainda, que não há sentido em si, daí a
natural opacidade da linguagem e sua natural incompletude; desta perspectiva, a interpretação é
incontornável.

Como seres-no-mundo, estamos encharcados de cultura, portanto, é mister lidar com a natureza
ontológica do ser e a natureza epistemológica do conhecer, assunto caro a uma hermenêutica
relacional. Uma conseqüência natural desta inserção hermenêutica de cunho relacional é a
certeza de que o conhecimento é aquilo que criamos interativamente, dialogicamente,
conversacionalmente, no âmago da nossa cultura e de todas as indexalidades sociais nas quais
estamos implicados.

Haverá, portanto, incessantemente, a necessidade de interpretação decorrente do fato de que o


fenômeno e o discurso a seu respeito são da ordem do símbolo. Havendo vários sentidos
possíveis – realidades múltiplas – a interpretação torna-se indispensável. Conseqüentes são as
argumentações de Merleau-Ponty, por exemplo, quando nos sugere que todo conhecimento que
se possa ter do mundo, mesmo o próprio conhecimento científico, é construído a partir do meu
próprio ponto de vista, ou a partir de alguma experiência de mundo sem o que os símbolos da
ciência seriam sem significados.

Torna-se, assim, ilusão objetivista pensar em conhecer a totalidade do mundo-vida. Projeto que a
psicologia infantil tanto fomentou, imbuindo-se de uma tarefa que, acima de tudo,
consubstanciou-se em barbarismo adultocêntrico. O veio estigmatizador, defectológico e
controlador que tantos educadores seguiram inspirou Liliane Lurçat a argumentar sobre
"L`impossible connaissance totale de l`enfant".

Faz-se necessário salientar, outrossim, que ao referenciar-se na fenomenologia, os recursos


metodológicos da etnopesquisa não deixam de buscar o rigor no conhecimento, diferente da
rigidez esterilizante da pesquisa "armada" e hermética. Pretender o conhecimento dos âmbitos da
qualidade da vida humana não significa mergulhar sem rumo algum, tampouco considerar que
qualquer informação sobre qualquer assunto deve ser coletada e analisada. O que é interessante
notar é que os recursos metodológicos qualitativos da etnopesquisa apontam para uma outra
forma de se fazer ciência, uma ciência que aceita, sem escamotear, o desafio inquietante e
maravilhoso de saber que quer saber sobre aquele que pensa e sabe.

Isto é, sobre aquele que pensa e tem métodos, para ser mais pertinente, que elabora e mobiliza
etnométodos.

Por uma hermenêutica crítica

Ao tratar da interpretação de uma perspectiva múltipla, polissêmica, a hermenêutica está fazendo


parte de um projeto notoriamente antipositivista. As posições de Dilthey, por exemplo, sobre a
raiz filosófica das pesquisas hermenêuticas, apontam para uma crítica radical ao pensamento
nomotético, que busca nas realidades regularidades ou leis, e que irão, a posteriori, fundamentar
descrições, explicações e previsões.

Da perspectiva de Santos (1989), a primeira virada crítica da hermenêutica consubstancia-se nos


seguintes níveis: a distinção entre thought-objects e real objects; o comando da teoria; os
obstáculos epistemológicos e as estratégias de vigilância para os controlar e superar; condições
do rigor metodológico para uma prática científica não empirista; a não-neutralidade das técnicas
de investigação; o pluralismo metodológico; a reflexividade e a teorização da observação; a
distinção entre consistência conceitual e adequação empírica; a articulação entre compreensão e
explicação e entre modelos explicativos; as condições metodológicas para a superação de
dicotomias tais como estrutura-ação, singular-universal, acontecimento-longa duração,
individual-coletivo etc.

Por conseguinte, sem esta primeira ruptura, seria inviável uma teoria crítica, mesmo se tratando
de uma teoria que prescreva uma intervenção no real. A questão é que o construtivismo
racionalista pensou esta primeira ruptura como a única.

Urge, a partir desta inquietação, uma segunda ruptura, que tomando a primeira como aquela que
torna possível a teoria crítica, vem possibilitar que a crítica se torne prática.

Em superando a separação entre senso comum e ciência, uma hermenêutica crítica transforma-os
numa nova forma de conhecimento que, segundo Santos, será simultaneamente mais reflexivo e
mais prático, mais democrático e mais emancipador. É aqui que a hermenêutica crítica afirma o
caráter irremediavelmente contextual do conhecimento, aliás, o seu caráter duplamente
contextual, na medida que é indexalizado tanto pela comunidade científica quanto pela
sociedade. Daí ser dotada também de duas práticas: a científica e a social.
Neste momento é que não se pode afirmar uma visão única da hermenêutica fenomenológica
face a transformações que seu uso social e sua história envidaram. Aqui também sua itinerância
terá que ser historicizada e contextualizada.

Sendo assim, a hermenêutica crítica é uma das fontes de inspiração para uma etnopesquisa crítica
na medida que contém a possibilidade democrática e emancipatória de que a crítica seja também
prática, jamais crítica e prática messiânicas, até porque, parafraseando Santos, "num mundo sem
heróis, declarar a fraqueza não é sinal de fraqueza".

Inspirada em Gadamer, Espósito pontua que a elaboração da situação hermenêutica, "ao colocar-
se no horizonte de uma interrogação genuína, significa pôr-se frente à tradição". Neste sentido,
omitir ou desprezar o horizonte histórico de onde fala a tradição é equivocar-se sobre os
conteúdos por ela transmitidos, conclui a autora. É com Gadamer, justamente, que vamos
verificar a idéia de que nossa consciência passeia pelos horizontes históricos, isto é, que nos
movemos e vivemos neste horizontes.

Micro x macro. Uma questão de relação


É intrigante como determinados Zeitgeist se estabelecem, mesmo que seu aspecto paradoxal seja
óbvio. Se existe uma crítica contundente à visão "dura" de ciência, uma delas se instala na tarefa
de desconstruir os apartheids cultivados na forma de pensar do edifício científico moderno.
Outrossim, pode-se verificar que no seio mesmo das elaborações interpretativas em pesquisa,
fraturas maniqueístas são cultivadas, como, por exemplo, a polarização micro x macro.

É certo que as pesquisas voltadas para o âmbito da qualidade têm um apreço coerente pela
pertinência do detalhe, da minúcia, do local, demandando, por conseqüência, um aporte proximal
forte do processo de investigação. Isto não quer dizer, por outro lado, desprezo por outras
perspectivas da existência humana em sociedade.

É com Wilson (1985), na tradição das etnopesquisas da Escola de Chicago, que podemos
verificar uma forte intenção de superar esta fratura epistemológica arbitrária. Wilson considera
que a interação e a estrutura social estão entrelaçadas, não sendo possível apreender-se
separadamente estrutura e indivíduo. Desta perspectiva, a interação e a estrutura social são
interdependentes, assim como a estrutura social constitui um recurso para interação e é
reproduzida pela interação. Podemos verificar, também em Bourdieu, a crença segundo a qual a
estrutura social dissimula-se nas interações.

Wilson mostra, em seus estudos, que os indivíduos, na gestão das suas atividades cotidianas e em
sua linguagem, apelam constantemente para a estrutura social, que é um recurso indispensável
para o desenrolar das trocas e compreensão mútua. Assim, os indivíduos recriam a sociedade em
cada nova interação, são obrigados, aliás, a se apoiar em uma ordem social relativamente estável
e comum que, ao mesmo tempo, edificam construtivamente. Neste sentido, a sociedade é
reproduzida pela interação, mas também por determinações exteriores e impositivas.

A linguagem, por exemplo, torna-se um tema de estudo que é, simultaneamente, situacional e


transcendente. Além de se manifestar através da interação, atende à estrutura social que é
subjacente a qualquer relação social e, ao mesmo tempo, a revela. Aqui o texto é o reflexo
subjetivo de um mundo objetivo, é a expressão de uma consciência que reflete algo sobre a
realidade objetiva; sua mais profunda compreensão depende da interação que o texto estabelece
com o contexto dialógico do seu tempo (Bakhtin,1985).

Neste sentido, os termos micro e macro devem ser relativizados, apreendidos num continuum, até
porque não se pode desprezar a natureza relacional das realidades humanas enquanto totalidades
dinâmicas, que têm no seu amplo caráter interativo o cerne da sua emergência. Para Cicourel
(1979), nossas atividades sociais cotidianas comportam vários níveis de complexidade e
integram dados microssociais, tanto quanto macrossociais. Para este autor, as diferenças que se
estabelecem devemse ao fato de que pesquisadores escolhem situar-se em um dos dois níveis de
complexidade das relações entre os homens e utilizam estratégias para seccionar, ignorando o
outro, quando sempre é possível articular os dois níveis num todo complexo mais ampliado.

A conseqüência natural desta posição é que não se pode mesmo numa abordagem
predominantemente micro, deixar de se dar conta do fato de que as interações se desenrolam
num quadro social molar, do mesmo modo que as macro-abordagens não podem ignorar os
microprocessos.

Com efeito, se a pesquisa que se apoia nos quadros microssociais faz referências tácitas a
quadros sociais mais amplos, inversamente o estudo macrossocial das organizações, ou
movimentos históricos, refere-se indiretamente às microatividades de que é feita a vida social
(Coulon,1992). Nestes termos e à guisa de exemplo, podemos chamar a atenção de como os
microacontecimentos da sala de aula e da escola são transformados em macroinformações que
vão posteriormente forjar os destinos escolares.

Em realidade, as fraturas construídas, tomando estes dois níveis de complexidade humana,


revelam, acima de tudo, um obstáculo epistemológico, muito ao gosto dos dualismos cartesianos,
que a pós-formalidade vem esforçando-se em desconstruir. Oportunas são as elaborações de
Dilthey quando definem o significado, fenômeno fundamental para a perspectiva de investigação
da etnopesquisa, como o modo peculiar de relação que, dentro da vida, guardam as partes com o
todo, criticando de forma veemente o elementarismo associacionista e suas conseqüências
desmembrantes e alienantes.

Apesar da relação parte-todo não corresponder de forma absoluta à relação micro-macro, por
haver uma densidade e uma implicação filosófica bem mais complexa na primeira relação,
considero pertinente e relevante um maior aprofundamento dialético da relação micro-macro,
trazendo para o âmago deste aspecto relacional dos fenômenos sociais a natureza complexa e
seminal em termos epistemológicos da interação que estabelecem as partes com o todo e vice-
versa.

Pascal dizia que só poderia compreender um todo caso conhecesse, especificamente, as partes, e
só poderia compreender as partes se conhecesse o todo. Este é um percurso onde não cabem
linearidades, significa, acima de tudo, movimento, relação e interação dialetizantes. Aliás, para
Morin, as relações todo-partes devem ser necessariamente mediadas pelo termo interação. Neste
sentido, Morin nos sugere termos indissolúveis, que remetem um ao outro, como sistema, que
exprime a unidade complexa e o caráter fenomenal do todo, assim como o complexo das relações
entre o todo e as partes; interação, que exprime o conjunto das relações, ações e retroações que
se efetuam e se tecem num sistema; organização, que exprime o caráter constitutivo dessas
interações, isto é, aquilo que forma, mantém, protege, regula, rege, regenera-se, e que dá idéia de
sistema a sua coluna vertebral (Morin, 1996). Daí, segundo este autor, a natureza bem mais
movente e dialetizante da noção de organização em relação à noção de estrutura que nos remete
de forma bem mais simplificada à idéia de ordem.

Do lugar destas argumentações, resta significativa a necessidade de se apreender a relação micro-


macro e vice-versa de uma perspectiva organizacional, portanto interativa, relacional, onde tanto
as influências quanto as emergências sejam pleiteadas, para só a partir daí apanhar o caráter auto-
eco-organizado do sujeito instituinte, por aqueles que na prática da etnopesquisa crítica dos
meios educacionais poderíamos chamar de educadores-pesquisadores-conectores.

Representações sociais e imaginário


Onde, em pesquisa, houver o interesse em captar a ação humana vinculada aos sentidos que lhes
são inerentes, torna-se incontornável a necessidade de tratar com as representações sociais e o
imaginário social que brotam incessantemente do vivido histórico.

Como conceito híbrido, é na interface do psicológico e do social que se coloca a noção de


representação social. Ela concerne, num primeiro momento, à maneira como nós, sujeitos
sociais, apreendemos os acontecimentos da vida corrente, os dados do nosso ambiente, as
informações que ali circulam no âmbito do conhecimento prático propriamente dito. Desta
forma, as representações estão orientadas para a comunicação, a compreensão e o "domínio" do
ambiente social, material e ideal.

É necessário, portanto, compreendermos a idéia simples, mas necessária, de que o ato de


representação é um ato pensado, pelo qual um sujeito reporta-se a um objeto. Trata-se de um
conteúdo cognitivo concreto de um ato pensado, que se liga simbolicamente a alguma coisa. No
ato de representar há uma fusão entre o percepto, o conceito e seu caráter imagético. Um outro
dado importante a ser salientado é que as representações sociais não correspondem literalmente
nem ao real, nem ao ideal, tampouco a parte subjetiva do objeto ou a parte objetiva do sujeito; as
representações sociais são um produto da relação estabelecida entre estas instâncias; ela nasce de
um processo relacional entre estas instâncias referenciadas. É uma construção onde figura e
sentido aparecem duplamente, são duas faces indissociáveis, como nos fala S. Moscovici.

Levando em conta o interesse da etnopesquisa em relação ao dispositivo potente das


representações sociais, tem-se que na abordagem desta especificidade sócio-cognitiva, o sujeito é
considerado um produtor de sentido, ele exprime nas suas representações o sentido que ele dá à
sua experiência no mundo social. Ademais, o caráter social da representação emerge da
utilização de sistemas de códigos e da interpretação fornecida pela sociedade, ou da projeção de
valores e de aspirações sociais. No processo de interiorização-exteriorização, mediado pelos
instrumentos sócio-cognitivos (Vygotsky), constroem-se as representações sociais, partindo-se
de uma premissa básica de que a sociedade existe porque o sujeito é real (Moscovici, 1990).
Já num outro patamar, podemos falar de um imaginário social, quando as representações são
vivenciadas por sujeitos numa mesma condição ou experiência social. Um imaginário constituído
no seio da cultura, porquanto a criação da cultura é, conseqüentemente, um ato de imaginação
humana. Assim, cultura enquanto criação é do âmbito da imaginação e do imaginário. Aqui,
Castoriadis passa a ser uma referência fundante. Para este autor, como social-histórico, o
imaginário é o rio aberto do coletivo anônimo; como psiquê-soma é o fluxo
representativo/afetivo/intencional. Segundo Castoriadis (1992), o que no social-histórico é
criação, fazer ser denomina-se de imaginário social ou sociedade instituinte.

Fala-se, portanto, de imaginário enquanto criação incessante social-histórica e psíquica, a partir


das quais somente é possível falar-se de alguma coisa; realidade e racionalidade, por exemplo,
são conseqüências naturais.

Portanto, o imaginário criva a instituição, a cria, a mantém e a transforma, é instituído e


instituinte, pertence, portanto, ao âmbito da complexidade da emergência humana; sendo
singular, é relacional, por consubstanciar-se numa rede simbólica; apresenta-se e vela-se por ser
dotada de uma face opaca ontológica, é movente e contraditório, por constituir-se na e com a
história.

Desta forma, sendo fundante das instituições humanas, o imaginário é um campo fértil para o
etnopesquisador que, armado com dispositivos finos para a escuta e para o olhar sócio-
culturalmente sensíveis, percebe nas linguagens constitutivas da cultura e da sociedade um
subsídio significativo, para a compreensão/explicitação de construções em vida. A educação,
enquanto criação sócio-imaginativa instituída e instituinte, é área de extrema fecundidade para
estudos teóricos e aplicados, levando em conta tanto o fenômeno das representações sociais,
quanto do imaginário socialmente fundante. Nesta abordagem de natureza híbrida, habita uma
prática onde fronteiras antes demarcadas e defendidas com armas intolerantes e arbitrárias são
articuladas, desaguando numa contribuição ímpar para o encontro do homem-ser-pleno. A
modernidade científica tratou de perdê-lo ao especializar-se em conhecer fragmentando,
segmentando, via os apartheids cientificistas que produziu e ainda produz. A prática pedagógica
vai reproduzir este ethos de forma competente e dolorosa, num cartesianismo que teima em
separar aquilo que no homem é totalização em curso...

A emergência da subjetividade social


Os temas representação social e imaginário social emergem historicamente em meio a um vazio
epistemológico edificado pelo argumento positivista-fragmentário, que retira da cena do processo
de produção do conhecimento o sujeito. Ao arquitetar o primado do objeto, o positivismo
imaginou uma realidade humana complicada em vez de complexa e, assim, cegou-se face à
complexidade ontológica da realidade dos homens.

É no seio da história das epistemologias qualitativas que percebe-se um resgate e uma afirmação
da subjetividade enquanto âmbito significativo para se compreender pela pesquisa a
especificidade da ação humana em sociedade. Ao superar o egologismo dos primeiros estudos
fenomenológicos, ao sensibilizar-se face à natureza híbrida de alguns campos da análise da
realidade humana, o encontro do sócio-cultural com o individual vai revolucionar a abordagem
da ação humana ao romper com este maniqueísmo secular.

Entendo que o alcance teórico do tema da subjetividade, que implica no desenvolvimento de uma
representação complexa, irredutível a qualquer intento de relação isomórfica com suas diversas
formas de expressão, nos conduz a uma concepção construtiva e interpretativa da produção do
conhecimento.

Desde Sartre, com suas influências fenomenológicas e marxistas, vamos verificar a sedimentação
da idéia de que não é possível pleitear-se o tema teórico da subjetividade sem uma representação
dialética ou histórica, como já elaborara a psicologia sócio-histórica e a recente epistemologia da
complexidade.

Da nossa perspectiva, o conceito de subjetividade social é determinante para completar uma


visão do social enquanto âmbito que não está simplesmente constituído por fatos observáveis,
mas como um sistema configurado subjetivamente que se desenvolve de forma permanente.
Envolvem-se ativamente neste fenômeno intencionalidade e ação. Neste sentido, o conceito de
subjetividade social articula o social com o plano das relações, superando a noção do social
como cenário de operações com objetos.

Por conseguinte, analisar o social a partir das relações implica em defini-lo desde uma
perspectiva subjetiva, porquanto a comunicação humana não é simplesmente um ato de
transmitir ou compreender, mas representa um momento de configuração subjetiva do vínculo
com o outro (Rey, 1997).

É determinante para aqueles que trabalham com a noção de uma subjetividade social a
compreensão de que em nível deste fenômeno todo fato, toda atividade que se produz, pode ser
significativo na configuração do atual. Na sociedade, como na subjetividade, o tempo não
representa uma perspectiva cumulativa, previsível forma absoluta desde seus momentos
anteriores. Há uma permanente reestruturação qualitativa do atual, donde o constituído passa de
forma permanente a novas formas de organização e de sentido.

A consideração teórica de uma subjetividade social, tema aliás já pleiteado no conceito de self
em George Mead, conduz o âmbito do sujeito a uma referência obrigatória nos estudos do social.

Se partirmos da premissa de que as ciências do homem não podem, em hipótese alguma,


prescindir dos âmbitos qualitativos, temos que admitir que a subjetividade, enquanto condição do
sujeito, é uma articulação obrigatória, sob pena de apreendê-la como uma mera peça da
engrenagem social, e perder a especificidade da sua emergência complexa, como já afirmamos
anteriormente.

Refletindo sobre esta temática no seio das preocupações relativas ao currículo, Burnham (1996)
procura, via a afirmação de uma subjetividade construída socialmente, mostrar o quão necessário
se faz incluir o tema da subjetividade para trazer o sujeito por inteiro para o campo de estudo do
currículo e das ciências humanas. Tomando a obra de Castoriadis como referência, Burnham
reafirma a incontornável socialização da psique e argumenta em favor da dupla postura de
sujeito-objeto no que concerne à existência deste próprio sujeito; sujeito que, segundo esta
autora, " se separa de si mesmo para se conhecer melhor, refletindo sobre si próprio como
objeto do conhecimento humano". Desta perspectiva, o sujeito humano deixa de ser mero objeto
do currículo para se constituir num co-construtor deste mesmo currículo, transformando-se no
que chamo de um ator do currículo e/ou um autor do currículo. Aqui, intencionalidade e
reflexividade são as perspectivas fundantes mediadas pela imaginação, perspectivas, faz-se
necessário afirmar, na maioria das vezes descartadas, porquanto, para mim, o currículo entre nós
tem medo de tudo aquilo que represente prática imaginativa. Em geral, o currículo se quer peça
complicada, nunca complexa, dado que pleitear os âmbitos da complexidade na escola é fator de
possível desalojamento de poderes. Poderes que, entre nós, representam historicamente, a
iniquidade e a exclusão educacionais. É tomando o seu próprio pensamento como perspectiva e o
pensamento do outro como possibilidade, sempre que a afirmação do sujeito vem reafirmar a
subjetividade socialmente constituída no campo do currículo.

Em termos do interesse do tema da subjetividade para a etnopesquisa, faz-se necessário salientar


que, ao referir-se à consciência das pessoas, os etnopesquisadores estão interessados com o que
isto significa – em termos de pensamento e ação – no interior e no contexto de cada ator social.
A este respeito, May (1993) nos diz que este estado subjetivo se refere mais exatamente ao
interior do mundo de experiências. Enfocam-se aí os entendimentos que as pessoas dão ao seu
meio. Desta forma, os etnopesquisadores afirmam não poder conhecer o meio social
independentemente das interpretações que as pessoas fazem dele. Como os atores sociais
compreendem e interpretam o seu meio é o interesse fundante dos etnopesquisadores. Nestes
termos, a subjetividade jamais pode ser avaliada como um epifenômeno, mas como condição
incontornável para a construção do conhecimento.

Multiculturalismo, etnopesquisa e educação


Preocupada com as "múltiplas realidades", portanto com a natural diversidade das construções
humanas, a etnopesquisa rejeita o pensamento nomotético cultivado na compulsão explicativa.
Enquanto uma visão não-formal de pesquisa, pretende alcançar fina e densamente a
multiplicidade das culturas naquilo que elas têm de autenticamente ideográfico, sem, entretanto,
perder a natureza relacional da vida em sociedade.

Mediada pelas identidades edificadas intersubjetivamente, pelos produtos culturais fabricados


por sujeitos contextualizados, a etnopesquisa apreende no multiculturalismo uma fonte de
pensamento basilar para suas fundações epistemológicas e metodológicas.

A partir do ethos multicultural, olhares novos vêm sendo lançados sobre questões que se referem
aos processos sócio-culturais, como a construção de referências de identidades, o significado das
vivências culturais, os diversos modos de ser e agir que os diversos grupos constroem no interior
da escola e as múltiplas relações e ressignificações que os sujeitos estabelecem no seu contato
com o mundo. Desta perspectiva, a etnopesquisa conecta-se com o multiculturalismo ao incluir
nos fundamentos da pesquisa novas temáticas, como a relação educação e cultura, diversidade
etnocultural, relação de gênero, compreensão de mundos alijados do pensamento científico dito
"nobre", campos onde a especificidade cultural faz resistência face à tendência alijante e
hierarquizante da cientificidade normativa, histórica e confortavelmente articulada ao domínio de
classe, a regulação dos estados e aos poderes intolerantes que têm no conhecimento uma das
fontes e/ou instrumentos de ação.
Entendemos que ao falarmos de sujeitos sócio-culturais, diversidade étnica e cultura e escola,
estamos dando visibilidade ao fato de que professores/professoras, alunos/alunas, pais/mães
vivenciam diferentes processos sócio-culturais. São homens e mulheres, adultos e crianças que
pertencem a uma classe social, a uma cultura, a uma religião, cultivam valores morais,
existenciais, cultuam tradições e constroem preconceitos. Há, por exemplo, nos cenários
educacionais mais do que aprendizagem técnica, sujeitos aprendizes e professores que ensinam.
Densificam-se nestes cenários de identidades culturais em movimento, afirmações e
transformações que apontam para identificações, conflitos, conchavos, consensos, insurgências
etc.

A relação significativa entre etnopesquisa, multiculturalismo e educação permite construir


visibilidades mais finas diante da complexidade das multirreferências atualizadas no cotidiano
que informam e formam o ato educativo. A conseqüência natural deste olhar sensível às
indexalidades culturais é não ver mais o aluno apenas como aluno e o professor apenas como
professor. A homogeneização dos sujeitos como alunos e professores corresponde à
homogeneização da instituição escolar, compreendida como encarnação do normativo, muito ao
gosto do vislumbre durkheimiano. Nesta visão, conhecimento e vida se esquizofrenizam, se
desarticulam, portanto, como desarticuladas, em geral, nas academias, são as epistemologias e o
âmbito da phronesis, interessada em compreender a vida na sua inteireza. Há um flagrante
reducionismo racionalista nesta fratura inconcebível.

Compreender os atores pedagógicos e suas construções implica em superar a homogeneização e


a estereotipação das pesquisas normativas e prescritivas, é dar-lhes um outro significado: aquele
de sujeitos do ato educativo. Trata-se, também, de compreender a diferença na historicidade,
trazendo para a cena desta compreensão as visões de mundo, escalas de valores, sentimentos,
desejos, projetos, etnométodos e hábitos específicos. São estes, em realidade, produtos de
experiências e de vivências nos diversos espaços e cenários sociais, onde a cultura nasce e
renasce incessantemente, afinal, reafirmo, sociedade e cultura existem porque o sujeito é real.
Escola e currículo existem porque o ator pedagógico é concreto.

A educação, portanto, ocorre nos mais diferentes espaços, cenários e situações sociais; é um
complexo de experiências, relações e atividades que brotam no âmbito de uma estrutura material
e simbólica da sociedade num certo tempo histórico. Mobiliza-se nesta gestalt as instituições
políticas, a família, a vizinhança, o bairro, o mundo cotidiano difuso e contraditório do trabalho,
os movimento sociais etc. É nesta teia institucional que os etnopesquisadores encontram os
principais subsídios para apreender pela pesquisa minuciosa, pela escuta tolerante, a
multiplicidade cultural, tornando-se a etnopesquisa necessariamente, um fino approche
multirreferencial e complexo, porque idiográfico e relacional.

No que concerne à filosofia educativa que poderia mediar esta visão ampliada de cultura e
pesquisa, poderíamos vislumbrar algumas possibilidades: desenvolver uma empatia para com os
seres humanos, compreendendo a diversidade, as similitudes, as diferenças e as
interdependências; conhecer as razões dos conflitos; desenvolver um compromisso em não
tolerar preconceitos e discriminações; favorecendo a solidariedade e o respeito aos direitos
humanos; valorizar o significado das realizações de indivíduos e de grupos distintos; e ao
internalizar normas morais dentro da sociedade, saber que o pluralismo não se basta, num
cenário social onde a iniquidade nasce da própria base estrutural das relações sociais. Planta-se
aqui uma outra possibilidade em termos de pesquisa em ciências da educação, dentro de uma
concepção pós-formal: a etnopesquisa crítica, que, em afirmando a irremediável pluralidade da
emergência humana, a articula com a tradição crítica, avessa ao domínio iníquo e a voz da
racionalidade descontextualizada. Giroux, Apple, MacLaren, Kincheloe, Freire, Ardoino entre
outros, cultivam esta consciência conectada, sensíveis que são, ao fato simples e insuperável de
que pesquisa, ciência e educação têm a ver com a vida e sua qualidade. Estes autores são brotos e
ramos de um savoir-faire científico educacional, que entende ser a atividade de pesquisar uma
atividade, entre outras, que tem o homem e seu bem estar como meta principal; em termos
críticos, estão conscientes das ingenuidades, equívocos e alienações engendradas pelas
promessas iluministas. Dialética e dialogicamente as ressignificam, denunciando e anunciando
no próprio seio da construção científica que uma das certezas hoje é a necessidade urgente de
desconstruir e reconstruir uma ciência e uma educação que nós mesmos inventamos, crentes,
ademais, que é preciso recriar tais criaturas que, perigosamente, há muito escaparam das ações
conscientes, e o pior, da dignidade ética e social.

É interessante pontuar que um currículo democrático, que respeite no culto à dignidade a


diversidade política, cultural e lingüística, tem de oferecer a possibilidade de que todos os alunos
e alunas compreendam a história, tradição e idiossincrasia da sua própria comunidade, num
incessante cultivo à tolerância e a visão crítica face as assincronias.

Neste sentido, ausências e ocultações em relação às culturas infantis e juvenis, às etnias


minoritárias e/ou sem poder, ao universo feminino, à sexualidade homossexual, à classe
trabalhadora e às comunidades pobres, ao universo rural, às pessoas com deficiências física ou
psíquicas, aos homens e mulheres vivendo a velhice, aos clamores das sociedades exploradas, ao
conjunto do segmento estudantil, não podem ser silenciadas, ou mesmo estereotipadas e
deformadas para anular suas possibilidades de reações. Tampouco, a eles não podem ser negados
os instrumentos de poder necessários ao implemento destas reações, como vem fazendo um
construtivismo irresponsável e alienante.

Vemos como o adultocentrismo de nossa cultura leva-nos a uma grande ignorância sobre o
universo idiossincrático da infância e da juventude. Como nos sugere Santomé (1998), meninos e
meninas desconhecem porque o são, qual é o significado desta etapa de vida, quais os seus
direitos e deveres. É comum surgir aqui um notável sentimentalismo onde crianças e jovens são
considerados ingênuos, inocentes, desprotegidos, imaturos, incompletos etc e, portanto, suas
preocupações e interesses não podem ser consideradas "sérias". É notório como esses adjetivos
desqualificantes atingem predominantemente entre nós, pobres, negros, trabalhadores, índios,
mulheres e crianças.

Faz-se necessário pontuar, ademais, que quaisquer estudos que contemplem a infância não
podem prescindir de sua concretude. Isto é, embasar-se em concepções que levem em conta a
inserção da criança no seu contexto social, político e cultural. Somos uma sociedade cultural e
socialmente diversificada, colonizada, economicamente dependente, com terríveis desigualdades
sociais, portanto, excludente. Convivemos com preconceitos raciais e sexuais notórios. Desta
forma, nossa infância não pode ser concebida a partir de padrões que ignorem tais aspectos.
Demanda-se aqui pela construção de estudos contextualizados e pela conseqüente destruição do
universalismo que permeia a abordagem da infância brasileira. É necessário, por conseguinte,
desmistificá-la, desreificá-la, não percebê-la enquanto uma invariante na história (Macedo,
1991).

Relativização. Um conceito fundante


Temos que concordar que as ciências antropossociais pautaram-se nas suas interpretações e
explicações por uma etnocentrismo muitas vezes perverso, face ideológica e ética que a visão
pós-formal vem lutando para desconstruir. Entretanto, denunciou e anunciou bem mais do que
construiu, afinal, estamos vivendo, ainda, tempos de esperança, uma esperança, aliás, que pela
sua construção já considero seminal.

É significativo que se afirme, de início, a presença histórica de um etnocentrismo


epistemológico, até porque, durante muito tempo, a hegemonia social e política das sociedades
"civilizadas" foi considerada condição lógica suficiente para caracterizar a partir destas as
sociedades-objeto conquistadas para o estudo antropológico (Santos, 1989). Posto em causa, este
tipo de empirismo tão ingênuo quanto maldoso em termos lógicos e políticos, fez surgir as
denúncias de etnocentrismo na investigação antropológica. Apesar de uma vigilância construída
face ao conjunto de conhecimento produzido a partir desta ótica hierarquizante, a educação
conviveu na sua história recente, e ainda convive, com vários conceitos mediadores da prática
educativa de forte conotação etnocêntrica. O assistencialismo em educação, motivado por
políticas liberais de reforma, forjou, por exemplo, conceitos como o de "privação cultural",
"déficit lingüístico", "marginalização cultural", "imaturidade", "inadaptação", todos de forte
conotação etnocêntrica.

Saindo de um nível estritamente epistemológico e da própria história da ciência ocidental, faz-se


necessário que exercitemos um pouco o que seria o etnocentrismo enquanto conceito
antropológico, para a posteriori nos inserirmos no que seria uma noção fundamental para a
etnopesquisa, que é a noção de relativização.

Da perspectiva de Guimarães (1985), o etnocentrismo é uma visão do mundo onde o nosso


próprio grupo é tomado como centro de tudo, e todos os outros são pensados e sentidos através
dos nossos valores, nossos modelos, nossas definições do que é a existência. No plano
intelectual, pode ser visto como a dificuldade de pensarmos a diferença; no plano afetivo, como
sentimento de estranheza, medo, hostilidade ao diferente. Aqui, uma mesma atitude informa os
diferentes grupos; o "outro" não desfruta da palavra para dizer algo de si mesmo; a cultura do
"outro" passa por um julgamento de valor nos termos da cultura do grupo do "eu"; ao "outro"
nega-se a autonomia necessária para falar de si mesmo. Os rótulos, estereótipos e estigmas
funcionam a partir da atitude etnocêntrica, como guias para se confrontar com a diferença; essa
diferença peculiar é transformada em juízo de valor impregnado de etnocentrismo (Guimarães,
1985). De uma perspectiva histórica, o etnocentrismo esteve sempre no seio do barbarismo
científico, religioso e étnico, e no domínio de classe.

É fato o caráter autocentrado das concepções das elites quando abordam a cultura "popular". Em
geral, não são capazes de compreender como possível e viável o que está fora dos seus próprios
limites de racionalidade. Neste sentido, Marilena Chauí chama à atenção como a classe
dominante passa a exercer seu domínio tanto no plano material, quanto no plano espiritual (das
idéias), formando um ethos de cultura extremamente autocentrado e de caráter iníquo.
Por outro lado, faz-se necessário pensar a cultura no plural, e que se parta de uma concepção não
normativa e dinâmica. Por conseguinte, interpretar o significado das culturas implica em
reconstruir, em sua totalidade, o modo como o grupos se representam, as relações que os definem
enquanto tais na sua estruturação interna e nas suas relações com outros grupos e com a natureza
nos termos e a partir dos critérios de racionalidade desse grupo (Abrantes, 1985).

É a partir do pensamento antropológico de Franz Boas que o conceito de cultura perde seu
caráter evolucionista e passa a ser relativizado. Foi ele que primeiro percebeu a peculiaridade das
culturas humanas. Foi com Boas que se começou a perceber que cada grupo produzia, a partir de
suas condições cronotópicas, ou seja, históricas, climáticas, lingüística, uma cultura caracterizada
por ser única e específica.

A nosso juízo, quando um significado de um ato é visto não na sua perspectiva absoluta, mas no
contexto onde aparece, estamos relativizando. Quando vemos que as verdades da vida são menos
uma questão de essência das coisas e mais uma questão de posição, estamos relativizando
(Guimarães, 1985).

Tomando o pensamento deste autor, relativizar é ver as coisas do mundo como uma relação
capaz de ter tido um nascimento, capaz de ter um fim e uma transformação. Ver as coisas do
mundo como a relação entre elas. Ver que a verdade está mais no olhar do que naquilo que é
olhado. É não transformar a diferença em hierarquia, em superiores e inferiores ou em bem e
mal, mas vê-la na sua dimensão de riqueza por ser diferença.

(...) o ator social existe e troca mensagens dentro de um código fundamental que temos em
comum. Este código é a cultura. Neste sentido cada cultura atribui significados, sentidos,
destino próprios, seja ao seu tempo, ao seu corpo, a sua morte e sexualidade. Tal como um
código, a cultura fala da existência. Ela simboliza esta existência segunda as regras do seu
jogo. Sendo entendida como um sistema de comunicação que dá sentido à nossa vida, as
culturas humanas constituem-se de conjuntos de verdades relativas aos atores sociais que
nela aprenderam porque e como existir. As culturas são versões da vida; teias, imposições;
escolhas de uma política dos significados que orientam e constroem nossas alternativas de
ser e de estar no mundo (Guimarães,1984:88).

Apresentar a prática de relativizar como uma prática fundamental para a etnopesquisa não
significa, em hipótese alguma, fazer uma ciência relativista pura e simples, não significa uma
ausência interpretativa e avaliativa, até porque o etnopesquisador dos meios educacionais trata de
objetos interessados, ideologizados, portanto, onde, ademais, permeiam relações de poder,
muitas vezes poder de vida e de morte. Um outro ponto a ser esclarecido é que a etnopesquisa
crítica dos meios educacionais não é uma antropologia, inspira-se, bebe densamente na fonte dos
seus conceitos e recursos metodológicos; ao tratar do ato educativo, por outro lado, a
etnopesquisa crítica dos meios educacionais apropria-se do olhar cuidadoso de todo educador,
incluindo-se no rol das tecnologias inerentes às ciências da educação, e diferenciando-se
conseqüentemente, de uma simples aplicação dos princípios antropológicos à educação. É
necessário pontuar que o próprio ato de relativizar já se consubstancia numa etapa significativa
de ruptura face ao colonialismo intelectual que caracteriza a ciência moderna e as intervenções
que inspira, especialmente nas políticas educacionais. Equivalência antropológica, alteridade
existencial e desigualdade social precisam de uma articulação ao mesmo tempo heurística e
crítica na prática de pesquisar o fenômeno da educação, e o ato de relativizar é começo
irremediável para um etnopesquisador crítico dos meios educacionais, que entende ser a primeira
ruptura com o barbarismo cientificista a rejeição face ao núcleo fascista contido nas atitudes e
práticas etnocêntricas.

Como exemplo das elaborações que exercitamos até o momento, temos o estudo John Ogbu
(1974;1978), etnopesquisador americano de origem nigeriana, que tomou como problemática de
pesquisa o "fracasso escolar" das crianças americanos pertencentes a minorias étnicas, em geral
atribuído a pretensos déficits sócio-culturais (cultural deprivation) e ao meio ambiente
depauperado das famílias (background).

Os estudos em etnopesquisa de Ogbu num bairro massivamente povoado por negros e mexicanos
chegaram a conclusões totalmente diferentes daqueles que afirmam as teses dos handcaps.
Contrariamente ao que afirmam estas teses, Ogbu mostra que os pais e as crianças das minorias
étnicas atribuem uma grande importância à escola, que permitirá acesso a um bom meio e uma
melhor condição social. De outra parte, quando "trabalham duro", estas crianças alcançam o
sucesso escolar. Ogbu chega à conclusão que o problema fundamental não é o de saber porque as
crianças não alcançam o sucesso escolar (expondo seus déficits), mas porque eles não trabalham
o suficiente na escola, sabendo-se que eles próprios e seus familiares atribuem grande
importância ao sucesso escolar. O deslocamento da problemática é radical: Ogbu nos diz que as
crianças que pertencem às minorias historicamente sub-organizadas aprendem com seus pais que
podem se sair bem na escola, mesmo numa sociedade racista, sem obter uma recompensa sob a
forma de um bom trabalho e de uma boa situação social. A falta de trabalho e de espírito de
competição das crianças das minorias étnicas é também uma adaptação às limitadas chances de
se beneficiar de sua educação. Argumenta ainda Ogbu que esta adaptação ao fracasso escolar é
reforçada pelo comportamento da classe média e dos professores, que interpretam a vida das
classes populares em termos de déficits, impondo a estas classes uma relação do tipo patrão e
cliente, negando-lhes a autonomia e o discurso legítimo no campo educativo. Por conseguinte, o
autor conclui que o fracasso das crianças das minorias étnicas não é um fenômeno individual,
mas uma adaptação coletiva que se transmite de uma geração a outra. Apesar de passar por
condutas individuais, o fracasso escolar é uma adaptação coletiva a uma relação social de
subordinação no campo educativo, no mercado de trabalho e na sociedade por inteira, apesar de
não ser individualmente uma condição fatal.

O que podemos verificar em termos epistemológicos e de produção do conhecimento no estudo


de John Ogbu é que, pela desconstrução do etnocentrismo contido num tipo de ciência que
permeia o ato educativo, e pela edificação de uma relativização por identidade e aproximação,
chegou-se no mínimo a outras facetas não mostradas pelos estudos de extremo conteúdo
autocentrado. É óbvio que, enquanto cientista, mesmo engajado, Ogbu teve que construir um
distanciamento necessário à legitimação científica das suas conclusões.

É tomando como pista as investigações de Ogbu que Bernard Charlot vem desenvolvendo
estudos sobre as relações sociais envolvendo saberes, em cenários que chama de "zone
d'éducation prioritaire" localizadas nos iníquos subúrbios parisienses.

Por concluir: a filosofia multirreferencial e a questão do método


Como conseqüência das argumentações que engendram a epistemologia da complexidade e da
multirreferencialidade, reivindica-se um novo espírito científico não-imperialista. No âmago
deste novo espírito científico demanda-se um método que, acima de tudo, articule o que nos
paradigmas tradicionais é concebido de forma parcelária, disjuntiva. Tal pensamento,
francamente aberto à alteridade e ao multiculturalismo crítico, não se pretende jamais onisciente,
abalando definitivamente posturas como a compulsão especializante monorreferencial, que levou
os sistemas formadores em ciências humanas a forjarem super-especialidades, portadoras e
produtoras de conhecimentos tão espetaculares quanto estreitos e estéreis. O projeto cartesiano
das idéias claras e distintas é óbvio nas produções científicas da modernidade, como foi óbvia a
intenção, na história das ciências do homem, de reduzir a realidade humana, densa de sentidos e
significados, a um índice quantitativo, o que levou Sorokin a falar numa "quantofrenia"
(Macedo, 1996).

Faz-se necessário alertar que a especificidade da inspiração multirreferencial não está na prática
da complementaridade, da aditividade, tampouco da obsessiva necessidade do domínio absoluto,
mas da afirmação da limitação dos diversos campos do saber, da tomada de consciência da
necessidade do rigor fecundante, da nossa ignorância enquanto inquietação. Desta perspectiva,
faz-se clara oposição às racionalidades simplificadoras, unificantes, redutoras. Uma filosofia
multirreferencial, numa visão do Novo Espírito Científico, da Scienza Nueva, entende que a
multirreferencialidade em todas as suas formas é a condição sine qua non da seminalidade
criativa do pensamento científico. Gilbert Durand (1993), em seu artigo "Multidisciplinaridades
e Heurística", nos mostra, de maneira pertinente, que a criação científica foi acima de tudo
resultante de uma significativa história multirreferencial, tomando as implicações intelectuais e
profissionais dos sujeitos que, na história da humanidade, contribuíram com suas invenções e
descobertas. É importante, ademais, como este autor mostra o papel preponderante das
pedagogias tecnocientíficas, que optaram por uma prática mutilante, mesmo tendo a sua
disposição o fato de que físicos como Niels Bohr procuraram em campos longínquos da física
teórica suas inspirações, como, por exemplo, na filosofia, na psicologia etc. Para Durand, uma
inspiração científica plural, pela sua fecundidade heurística, é um verdadeiro movimento
fundador contra "as anemias da descoberta", "os ostracismos universitários conservadores que
não percebem que todo paradigma começou por ser um paradoxo" (Durand,1993). Neste
sentido, é urgente a eliminação dos "obstáculos epistemológicos" consubstanciados na
passividade monorreferencial e na tautologia analítica que barra todo salto heurístico.

Faz-se necessário, portanto, encarar a alteridade não como erro, mas como necessária a uma
insubstituível "filosofia do não", que esteve sempre presente nos incessantes procedimentos
polêmicos, e que sempre inspiraram esta revolução incessante que se chama ciência, por mais
que as rotinas acadêmicas tenham estabelecido a ausência da contestação e da transgressão
fundantes como norma. J. Ardoino nos incita também a uma certa traição em relação aos
cânones do modernismo científico.

Assim, a tradição epistemológica disciplinar e compulsivamente especializante, deixou-nos o


peso do esfacelamento que hermetiza. Mergulhamos numa crise que aponta para as
conseqüências mutilantes do modelo analítico esfacelador. Negando a subjetividade, o sujeito
instituinte, o cientificismo "duro" estreitou-se de uma forma tal que matou por sufocamento a
vitalidade das práticas ao esterilizar lapidando o sujeito divergente, imprudente, irreverente,
aquele que, segundo Ardoino, comete traições face à lógica aristotélica. Fundada na
perplexidade, na inquietação diante do pensamento nomotético rígido, a epistemologia
multirreferencial edifica-se a partir da aceitação da irredutível complexidade da emergência
humana, isto é, do seu caráter indexal, opaco, reflexivo, temporal, molar, ideográfico,
insuficiente, contraditório e eminentemente relacional.

Tais características vão dizer irremediavelmente que a atividade de teorizar, de conceituar, de


significar, é sempre precária, insuficiente, demandando sempre complementaridade e articulação
face à riqueza e complexidade de um Sapiens Sapiens programado para apreender e construir
realidades.

Portanto, a epistemologia multirreferencial abre-se à pluralidade das referências, à alteridade, ao


multiculturalismo, às contradições, ao dinamismo semântico das práxis, às insuficiências e
emergências, para não perder o homem e sua complexidade, anulados na deificação da norma
científica lapidante.

Deste entendimento, tem-se que o marco teórico de uma pesquisa seja flexível, que considere o
conjuntural e se alimente das diferenças, constitua-se num instrumento que permita transcender
as auto-suficiências, até porque a auto-suficência, ao deparar-se com as resistências e
tempestades humanas, não envergam, acabam por quebrar. Paradoxalmente, são feitas de
fragilidades, pois nunca aprenderam as estratégias da flexibilidade necessárias às emergências.

Tomando a questão do método a partir de uma base epistemológica multirreferencial, Ardoino


nos sugere três tipos de abordagens: uma multirreferencialidade de compreensão, apreendida,
em nível clínico, como uma forma de escuta destinada à familiarização do pesquisador com as
particularidades idexais e simbólicas, bem como com as significações próprias vindas das
experiências, das formas triviais expressadas espontaneamente pelos sujeitos; uma
multirreferencialidade interpretativa, exercida igualmente em nível das práticas, a partir dos
dados precedentes e visando, através da comunicação, um certo tratamento deste material; e uma
multirreferencialidade explicativa, mais interdisciplinar e orientada para a produção do saber,
seria este um olhar interrogativo plural muito mais pertinente com a complexidade da
emergência das ações humanas.

Para uma filosofia multirreferencial, portanto, o Ser complexo jamais pode significar Ser
complicado, aquele que se decompõe para iluminar-se. Reconhecer-se numa dura linguagem
cibernética-experimental é coisificar-se e matar por compulsão calculista a existência
imaginativa, que implica também em mistério, para manter-se oxigenada. Ser complexo é
considerar o projeto sempre de uma perspectiva inconclusa, e a obra como produto de um
imaginário sempre em devir. Nas práticas científicas e acadêmicas – contínuas entradas na vida
para a filosofia multirreferencial – a complexidade alicia a inquietação teórica, semeia a angústia
do método, a prudência e o cuidado científicos, e mantém aceso o anseio do rigor fecundo,
construído na tolerância articulativa com as epistemologias e o mundo da phronesis, numa
dialogicidade autêntica e esperançosa de que a verdade possa, em algum momento, abrir o seu
caminho.

Ao nos proporcionar a possibilidade de olhar a complexidade, a abordagem multirreferencial


desconcerta as metanarrativas cíclicas e duras, a voz da racionalidade descontextualizada, que
excluíram e desarticularam para controlar e regular, ofuscando a articulação enquanto necessária
à dialogicidade. Considerar a complexidade imaginativa é cultivar e cultuar a parcimônia de
ouvir sensivelmente o outro e a si próprio, imbuir-se da necessidade de compreender antes de
apontar, excluindo, é desarranjar a barbárie do colonialismo e do patrulhamento acadêmico-
cientificista, é fazer com consciência uma ciência autenticamente moral, fundada no respeito aos
múltiplos imaginários, sem, entretanto, perder o rigor que a norteia e a inevitável política de
sentido (e o sentido da política) que a perpassa.

É justamente neste veio inspirador que o etnopesquisador crítico encontra sua fonte de
fundamentos, é por estes caminhos filosóficos e teórico-epistemológicos que trilham, fazendo
uma ciência que definitivamente não ignora a vida, até porque, do contrário, perderia o oxigênio
da sua própria atividade vital: compreender profunda, detalhada e relacionalmente os seres vivos
e suas obras; e a educação é, fundamentalmente, uma delas.

Construir esta reflexões, vistas por mim como inspirações fundantes para o etnopesquisador,
marcou o meu anseio há muito cultivado, face ao vazio epistemológico e político que
comprometedoramente criva nossas formações acadêmicas, mais especificamente a formação
dos nossos educadores e seus métodos de trabalho e pesquisa.
Capítulo II - Fontes acionalistas - semiológicas da
etnopesquisa e suas implicações educacionais
O mistério da vida me acusa a mais forte emoção. É o sentimento que suscita a beleza e a
verdade, cria a arte e a ciência. Se alguém não conhece esta sensação ou não pode mais
experimentar espanto ou surpresa, já é um morto-vivo e seus olhos se cegaram.

Albert Einstein

As abordagens ditas acionalistas e semiológicas em ciências antropossociais não são recentes,


têm seus clássicos em Dilthey e Max Weber. No que concerne à grande expansão do movimento
microinterpretacionista no seio das ciências do homem, J. Alexander (1987) afirma que decorreu
das dificuldades e do esgotamento explicativo das teorias de feições nomotéticas e dos métodos
objetivistas em busca de leis sociais e regularidades, ainda caudatárias do paradigma naturista.

As teorias da ação ocupam, portanto, a grande lacuna não preenchida no âmbito do


conhecimento das ciências do homem pelas abordagens coletivistas. Em geral, a epistemologia
desse conjunto de saberes sociais sistematizados visa o entendimento do processo de construção
da realidade através de sujeitos em interação incessante, dotados de uma competência antes
esquecida ou mesmo negligenciada: a de atribuir significados ao mundo em que está imerso
como co-construtor deste mesmo mundo. Edifica-se aqui toda a base das démarches
construtivistas e construcionistas nas ciências do homem.

Ação e significado social


T. Parsons, uma das principais bases de sustentação do funcionalismo sociológico americano,
acreditava na ordem e na ação a partir de um sistema normativo estável de símbolos, de valores e
de significação partilhados pelos atores sociais, que empregam modelos ou padrões de
conhecimentos e de racionalidade no dia-a-dia. Parsons, aliás, confessa seu ceticismo em relação
à análise sócio-fenomenológica de Schutz, que enfatiza a experiência intersubjetiva e a ação
motivada.

Assim, para Parsons, nós partilhamos valores que posteriormente irão governar enquanto
fenômeno social destacado do ator. Nesta lógica, temos todos uma tendência a nos
conformarmos às regras da vida cotidiana. Interiorizadas, estas regras passam a se constituir em
regulador interior das ações.

Tais questões, podemos verificar, estão contidas na caracterização enfatizada por Weber quanto à
ação social: uma ação é social quando um ator social atribui um certo significado à sua conduta
e, por meio deste significado, relaciona-se ao comportamento de outras pessoas. A interação
social ocorre quando as ações são reciprocamente orientadas em direção às ações de outros. As
ações orientam-se reciprocamente porque os atores interpretam e fornecem um significado tanto
ao seu próprio comportamento quanto ao de outros, e não de forma mecanicista, através de
estímulos e respostas.

O ponto importante daqui é a noção de significado e sua relação com o tipo de conhecimento do
qual necessitamos ou que podemos ter a fim de compreender e explicar os fenômenos sociais.
Assim, falar em significado é começar a assimilar o fato extremamente importante de que os
seres humanos, podemos dizer, possuem uma subjetividade complexa e variada, refletida nos
artefatos e instituições sociais nas quais eles vivem. Em termos antropossociais, nos referimos a
isto como cultura.

A ação deriva da idéia de um ator, especificamente um ator humano. Um ator é diferente de uma
variável causal porque pode-se dizer que ele ou ela efetua uma escolha – perspectiva política -, é
responsável – perspectiva ética –, louva - perspectiva estética.

A conclusão desta colocação sugere enfaticamente um tipo de relação muito diferente entre ação
e sua descrição, e as regras ou motivos que, poderíamos dizer, governam aquela ação. Em
primeiro lugar, ela afirma que as ações e sua descrição são conceitualmente vinculadas a razão e
motivos, não sendo passíveis de descrição como se fossem separadas e independentes. Ao
contrário, ação e descrição se informam mutuamente. Em realidade, "conceitos intencionais" ou
"conceitos de ação" pressupõem que estes são os meios mais importantes através dos quais os
membros da sociedade constroem deliberadamente seu mundo social.

Conforme Hughes (1980), o termo significado faz mais do que sugerir a natureza simbólica da
vida social, assinala o fato de que a ação não é tão previsível, tão determinada, em seu
desenrolar, quanto o objeto de estudo inanimado da ciência natural.

Neste sentido, Schutz diz que a realidade social é o conjunto dos objetos e dos acontecimentos
do mundo cultural e social, vivido pelo pensamento do senso comum, emergindo num mundo de
numerosas relações de interação. É o mundo dos objetos culturais e das instituições sociais nas
quais nascemos, onde nós nos reconhecemos. Para Schutz, desde o começo, nós, os atores, em
meio aos cenários sociais, vivemos o mundo como um mundo às vezes de cultura e de natureza,
não como um mundo privado, mas intersubjetivo, isto é, que nos é comum, que nos é dado ou
que é potencialmente acessível a cada um de nós; e isto implica na intercomunicação e na
linguagem.

A partir deste entendimento, dois postulados são tomados como formadores do eixo norteador
para a compreensão da noção de ação, de uma perspectiva sócio-fenomenológica: todo ator deve,
quando ele age, colocar necessariamente em obra procedimentos de compreensão e de
interpretação pelos quais ele dá, permanentemente, um sentido às atividades ordinárias em que
ele se insere; a ação social é uma realização prática, isto é, produto deste trabalho de
interpretação que deve informar os atores para agir, assegurando esta continuidade das relações
de troca, que fundam a possibilidade de uma ação.

Portanto, para esta perspectiva, não é possível apreender os fatos sociais como coisas, como
queria Durkheim, tão pouco apreender a ação como algo consolidado aprioristicamente, como
compreendia Parsons, no seu projeto teórico macro-sociológico e anti-fenomenológico. A
competência interpretativa é especificidade humana e, como tal, não há ação social sem
significado. Como expressa-se H. Garfinkel, "somos seres condenados a fabricar sentidos".
É interessante pontuar que acordar um lugar central para a ação e para o significado social é
cultivar, por conseqüência, a noção de sujeito, que consubstancia-se no desejo do indivíduo em
tornar-se um ator, de criar uma história pessoal. Outrossim, a idéia de sujeito não deve conduzir
jamais alguém a negligenciar as condições sociais ou interpessoais de seu reconhecimento. Neste
sentido, deve ser articulado o universo da instrumentalidade com o universo das identidades.
Como conseqüência, a compreensão da sociedade não pode se dar através do que se chama
determinismo social, mas, através das perspectivas de uma ciência social da liberdade, cuja idéia
de sujeito é a chave principal.

Para Morin, uma grande parte, a parte mais importante, a mais rica, a mais ardente da vida social,
é construída pelas relações intersubjetivas. Da perspectiva deste autor, é necessário mesmo dizer
que o caráter intersubjetivo das interações no seio da sociedade é de importância capital.
Ademais, é necessário reconhecer que todo sujeito é potencialmente não somente ator, mas autor,
capaz de computação/cognição/ escolha/decisão... a sociedade é um jogo de
afrontamento/compreensão entre indivíduos/sujeitos, entre nós e eus. Morin (1995), insiste na
necessidade de se conceber o sujeito como aquilo que dá unidade e invariância a uma pluralidade
de personagens, de caracteres, de potencialidades.

Em suma, a ação motivada e o significado social, enquanto especificidades irremediáveis do Ser-


do-homem, emergem também com a condição irremediável deste Ser encontrar-se como sujeito.

Interação simbólica. Gênese das ações


A escola da interação simbólica se reporta em origem, clássicos das ciências sociais do fim do
século XIX, embora o termo interacionismo simbólico tenha sido cunhado por Herbert Blumer
em l937. G. Mead, o fundador do movimento, não publicou uma obra completa sobre sua teoria.
Seu sistema de psicologia social, entretanto, é apresentado de forma completa em Mind, self and
society, onde o autor explora não somente a complexa relação entre sociedade e o indivíduo,
como expõe a gênese do self e o desenvolvimento dos símbolos significantes. Apesar de sua obra
como um todo apresentar uma orientação enfaticamente filosófica, ele se preocupou em ilustrar
suas proposições a partir de fatos da vida cotidiana (Haguette, 1987).

De acordo com Mead, o comportamento humano não é uma questão de resposta direta às
atividades dos outros, mas envolve uma resposta às intenções dos outros, não somente às suas
presenças. Estas intenções são transmitidas através de gestos que se tornam símbolos, isto é,
possíveis de serem interpretados. Quando os gestos assumem um sentido comum, ou seja,
quando eles adquirem um elemento lingüístico, podem ser designados de "símbolos
significantes".

Aqui, a relação dos seres humanos entre si surge do desenvolvimento de sua habilidade de
responder a seus próprios gestos. Esta habilidade permite que diferentes seres humanos
respondam da mesma forma ao mesmo gesto, possibilitando o compartilhar de experiências, a
incorporação em si do comportamento. O comportamento é, pois, social e não meramente uma
resposta aos outros. O ser humano responde a si mesmo da mesma forma que outras pessoas lhe
respondem e, ao fazê-lo, imaginativamente compartilha a conduta dos outros.
A ação, invariavelmente, ocorre em relação a um lugar e a uma situação, logo, a ação em si é
feita à luz de uma situação específica, a ação é construída através da interpretação da situação,
consistindo, a vida grupal, de unidades de ações. É do âmago destas argumentações que surge a
noção fértil de definição da situação, pedra fundamental da construção sócio-simbólica.

De acordo com Blumer, são três as premissas básicas do interacionismo simbólico: o ser humano
age com relação às coisas na base dos sentidos que elas têm para eles. Estas coisas incluem todos
os objetos, instituições e as atividades que o indivíduo desenvolve na vida cotidiana; o sentido
destas coisas é derivado, ou surge da interação social que alguém estabelece com seus
contemporâneos; estes sentidos são manipulados e modificados através de um processo
interpretativo usado pela pessoa ao tratar as coisas que ela encontra.

É interessante pontuar que, da perspectiva do interacionismo simbólico, a interpretação é um


processo formativo, e não uma aplicação sistemática de sentidos já estabelecidos.

Assim, a sociedade humana ou a vida em grupo é vista como consistindo de pessoas que
interagem, isto é, pessoas em ação que desenvolvem atividades diferenciadas que as colocam em
diferentes situações. O princípio fundamental é que os grupos humanos existem em ação e
devem ser vistos em termos de ação. É através deste processo de constante atividade que
estruturas e organizações são estabelecidas. Logo, a vida do grupo necessariamente pressupõe a
interação entre os membros do grupo ou, em outros termos, a sociedade consiste de indivíduos
interagindo uns com os outros (Haguette,1987 ; Coulon, 1992; Lapassade, 1991; Meham, 1987).

A vida de um grupo humano representa, portanto, um vasto processo de formação, sustentação e


transformação de objetos, na medida em que seus sentidos se modificam, modificando o mundo
das pessoas.

Esta compreensão da ação humana se aplica tanto para a ação individual, como para a ação
coletiva, e, neste ponto, a ação conjunta pode se constituir em objeto de estudo, não perdendo o
caráter de ser construída através de um processo interpretativo, quando a coletividade enfrenta
situações nas quais age. Apesar do seu caráter distintivo, a ação conjunta tem sempre que operar
através de um processo de formação. Esta decorrência de ações permite ao indivíduo partilhar
sentidos comuns e pré-estabelecidos sobre expectativas de ações dos participantes e,
conseqüentemente, cada participante é capaz de orientar seu próprio comportamento à luz destes
sentidos.

Conseqüentemente, não são as regras que criam e sustentam a vida em grupo, mas é o processo
social de vida grupal que cria, mantém e legitima as regras. Concluise, deste modo, que as
instituições representam uma rede que não funciona diabólica e automaticamente, por causa de
certa dinâmica interna ou sistema de requerimento; funciona porque pessoas, em momentos
diferentes, fazem alguma coisa, como um resultado da forma como definem situações na qual
atuam.

Prolongando a sociologia compreensiva de Weber e a filosofia interpretacionista de Dilthey, a


metodologia de trabalho dos interacionistas toma como ponto de partida o que Znaniecki
nomeou de "coeficiente humanista", a saber, que todo objeto do mundo cultural sempre existe
em relação à consciência, à experiência e à atividade de sujeitos, e devem ser descritos num
contexto relacional, com valores definidos por atitudes, e não como coisas. A experiência que os
atores cotidianamente retiram do mundo-vida e os conceitos que dele fazem, constituem o objeto
privilegiado e essencial das ciências humanas. O método interacionista define um novo realismo
em ciências sociais, consiste num esforço de reconstrução dos conceitos situacionais em toda sua
complexidade, e, em particular, tal como é apreendido e avaliado por atores para os quais as
situações "dadas" são circunstâncias e experiências reais de sua vida prática. Assim, o
pesquisador deve sempre circular entre dois mundos, aquele dos atores e aquele da teoria social.
Um verdadeiro conhecimento da realidade social não pode pautar-se apenas em questionários,
escalas de atitudes e análises estatísticas descontextualizadas, desindexalizadas, portanto.

Os interacionistas não assumem posições herméticas quanto ao método, aceitam, inclusive, o


"princípio da triangulação", onde a pluralidade dos métodos permite descobrir os diferentes
aspectos da complexidade da realidade empírica. A produção de pesquisa no interacionismo se
caracteriza pelo uso eletivo da pesquisa de campo, de preferência prolongada, implicando de
forma densa o pesquisador, como preconizava Park e a tradição dos estudos de Znaniecki no que
se refere aos documentos biográficos e autobiográficos.

Desta forma, os interacionistas procuram não esquecer que a pesquisa científica e cada ato de
pesquisa individual constituem, eles também, um caso específico de interação. Em conseqüência
disto, não há lugar, como recomenda Blumer (1969) para "conceitos definicionais" fixados de
uma vez por todas, deve-se cultivar "conceitos sensibilizadores", noções aproximadas que
sensibilizem os aspectos importantes da realidade, dentro de cada caso estudado, e que poderão
ser modificados no bojo mesmo do ato de pesquisa. A teoria social, portanto, é construção jamais
acabada, é um processo contínuo de descoberta de uma teoria enraizada no real, como querem
Glaser e Strauss (1987).

Para Woods (1990), uma abordagem interacionista, apoiada na démarche etnográfica e centrada
no aspecto qualitativo, permite compreender como as relações sociais mudam, como as pessoas
mudam, como mudam suas visões de mundo.

Tomando a escola como seu principal objeto de análise via uma abordagem etnográfica, Woods
capta como nas relações face-a-face as pessoas no interior da instituição escolar, de dentro dos
complexos mecanismos de construção de sentidos, tornam o fenômeno humano das práticas
educacionais possível. Para este autor da etnografia escolar britânica, não há determinismo
cultural total. Certos alunos, segundo Woods, podem desenvolver uma grande engenhosidade
para atualizar seus interesses pessoais em flagrante oposição às pressões institucionais.

É a partir destas constatações que autores da pedagogia crítica imbuíram-se de estudar, na escola,
o que chamam de mecanismos de resistência. Apple, Giroux, MacLaren, são os exemplos mais
próximos. O método interacionista deseja abrir a Black Box, e, abrindo-a, captar o movimento
incessante das interações constitutivas; estudando in situ, em ato, de dentro, a produção das
ações que edificam as instituições na sua precária e relativa ordenação.

Neste sentido, a interação é o princípio mesmo da educação. Uma conseqüência natural e


importante numa análise desta ordem é a reorientação trazida pelo interacionismo para a análise
do que se denomina correntemente de socialização. Aqui, o pensamento antitético é superado,
bem como, as noções deterministas e lineares deste fenômeno social. Nesta visão dinâmica da
socialização, este fenômeno não escapa da epistemologia da complexidade e da
multirreferencialidade.

A "tradição de Chicago"
É notória a influência da chamada Escola Sociológica de Chicago na prática de investigação dos
etnopesquisadores. Voltada basicamente para as pesquisas empíricas, a Escola de Chicago é
herdeira do pragmatismo enquanto filosofia social da democracia, onde, em termos educacionais,
o filósofo J. Dewey é um dos seus maiores expoentes, e do interacionismo simbólico de Mead.

No bojo desses princípios, a sociologia de Chicago vai elaborar uma série de conceitos e técnicas
de campo fundamentais para legitimação do seu itinerário, como o de definição de situação,
marginalidade, desorganização social, atitude e aculturação. No que tange aos recursos de
pesquisa, pode-se destacar a observação in situ, às vezes com participação (pesquisa
participante), história de vida, análise de documentos oficiais e pessoais, narrativas e entrevistas.

Com Thomas e Znaniecki, Park e Burgess, a tradição de Chicago prepara seu terreno e vê
fecundar sua plural identidade na diversidade das formas de abordar seus temas/problemas
preferidos. Advindos às vezes de uma prática jornalística, os estudos pontualísticos eram
naturalmente flexíveis e intensamente diversificados na sua forma de apreensão do objeto de
pesquisa. A densidade da descrição, o detalhismo, a proximidade do campo, faziam emergir um
objeto extremamente rico em minúcias, dando-lhe um sentido de plenitude e vida, ausentes nas
construções que eram forjadas nas elucubrações saídas dos estudos estatísticos.

Comentando sobre a dinâmica das origens da Escola de Chicago, Breslau (1988) ressalta o
aparecimento das primeiras cadeiras universitárias destinadas a pesquisadores em ciências
sociais.

Park, por exemplo, marginal em relação ao meio universitário, era destacado pela sua
repugnância face à postura dos universitários e suas pretensões em compreender o mundo social
olhando-o do alto. Neste sentido, constrói uma démarche anti-positivista, ao mesmo tempo
privilegiando o conhecimento direto do fenômeno social. Desde a chegada de Park à
Universidade de Chicago, em 1914, elabora-se uma certa redefinição das ciências sociais que
rompe com as estratégias que consistiam em colocar em relevo a distância em relação aos
objetos-processos pesquisados.

Apesar das divergências metodológicas aparentes cultivadas pelos expoentes da Escola de


Chicago (Park, Thomas, Burgess e Mckenzie), estes autores aceitam um mesmo paradigma para
a compreensão das realidades antropossociais, aquele do movimento perpétuo e corpuscular das
forças sociais (Schemeil, 1993).

O naturalismo de Park, em particular, o conduz a uma concepção micro das ciências sociais, da
crise e a da dimensão política como luta. Tal situação, ao invés de transformar Park num
pensador pessimista, eleva-o a uma perspectiva de realismo otimista, porquanto, para este
cientista social, o conflito aparece como condição de emancipação. O que se abstrai da noção de
crise em Park é uma passagem necessária, um processo natural do fenômeno de mudança. Da
perspectiva dos estudos de Park, toda tensão crísica implica em mudança, e é com sua análise do
que seria a cidade que podemos perceber bem a dinâmica de suas elaborações no que concerne à
inserção do conflito e da crise na conviviabilidade. Park vê a cidade como, acima de tudo, um
estado de espírito, um conjunto de costumes e de tradições, de atitudes e de sentimentos
organizados, transmitidos pelas tradições. A cidade não é simplesmente um mecanismo material
e uma construção artificial, está implicada nos processos vitais das pessoas que a compõem: é
um produto da natureza, particularmente, da natureza humana. Para Park, a cidade seria um tipo
de sistema psico-sócio-físico através do qual os interesses privados e políticos encontram uma
expressão não somente coletiva, mas conflitualmente organizada.

Tal posicionamento de Park, ao mesmo tempo naturalista e político, nos leva a colocá-lo no rol
daqueles que certamente contribuem para as argumentações em torno dos movimentos sociais,
fenômeno que Touraine concebe como o objeto predominante da ciência social, enquanto ciência
dinâmica, que deve encontrar "dentro da história, o ator social".

Em termos dos movimentos sociais por educação no Brasil, inspirações ancoradas nas
percepções da Escola de Chicago, como aquelas de Park, ajudariam a responder algumas
questões ainda nebulosas: quem são e quais as expectativas dos atores sociais concretos destes
movimentos? Como constituem e interpretam suas ações, via suas próprias vozes? Qual a
natureza das interações que estabelecem com outros âmbitos institucionais?

"Definição da situação". Uma noção seminal


O conceito de "definição da situação" forjado e desenvolvido por Thomas, em 1923, tem no meu
entendimento uma fecundidade notória naquilo que constitui a operacionalidade de um princípio
fenomenológico básico, a necessidade de ir ao encontro do ponto de vista do outro, para, a partir
daí, e só daí, interpretar a forma e o conteúdo das suas ações.

Ademais, esta operacionalidade teórico-metodológica que o conceito possibilita consubstancia-se


na construção de uma forma diferente de olhar as produções humanas, bem como em relação aos
procedimentos de pesquisa no seio das ciências do homem. Desta maneira, do âmago do conceito
edificado por Thomas, pode-se concluir que o indivíduo age em função do ambiente que ele
percebe e das situações que ele enfrenta. Suas atitudes e percepções preliminares informam sobre
o ambiente, permitindo-lhe interpretá-lo e compreendê-lo. Portanto, a ordem social e a história
pessoal fazem as mediações necessárias para que o indivíduo/ator defina situações.

Nem sempre as definições entre o ator e o grupo social encontram-se sem geração de conflitos;
divergências são naturalmente esperadas na emergência contraditória da existência social face à
pluralidade das histórias de cada um. Neste veio, Coulon (1992) comenta que Thomas, insistindo
sobre a necessidade dos pesquisadores recolherem, junto aos atores sociais, narrativas de
primeira mão, autobiografias, cartas e outras fontes, gostaria que eles tivessem acesso à maneira
como estes definiam suas situações. Captar definições de situações estabelece uma certa ruptura
com algumas práticas teórico-filosóficas de argumentar apenas via princípios, para a partir daí
entender a realidade humana.

O conceito de "definição da situação" estabelece definitivamente a condição do ator enquanto


"estrategista" elaborador de informações, jamais simples atendente de demandas.

"The fieldwork"
Parece-me que um dos grandes saltos qualitativos que a tradição dos estudos sociais de Chicago
arquitetou foi que em captando as construções in situ dos fenômenos sociais (o trabalho de
campo), instrumentalizou-se de modo a, concretamente, não perder o "trem" dos movimentos
sociais nos labirintos que percorrem e nos pontos onde se abastecem de forma e conteúdos
indexais.

Chapoulie (1984) reporta-se a E.C. Hughes e, numa outra perspectiva, a H. Blumer, como os
principais divulgadores da utilização da observação in situ como meio de investigação, às vezes
por suas publicações, ou mesmo via as aulas que ministravam na Universidade de Chicago. A
tradição do estudo de campo (the fieldwork) exercitada pela tradição de pesquisa de Chicago,
jamais encerrou-se num empirismo sem alma, pretende apanhar o ator social em ato, vendo-o
como sujeito.

Ao tecer comentários sobre o pensamento de G. Mead, Blumer argumenta que é necessário levar
em consideração o papel do ator e ver seu mundo do seu ponto de vista. Nas palavras de Blumer,
esta abordagem teórico-metodológica contrasta com o dito objetivismo, que vê o ator e sua ação
destacada e exterior. O ator age no mundo em função da maneira como ele vê, e não como
aparece a um observador estranho (Blumer, 1996).

Peneff (1990) discorre que Park concebia a aprendizagem em ciências sociais segundo duas
etapas: descobrir de início o mundo exterior antes de colocá-lo sob o crivo de uma análise;
possibilitar uma experiência direta com a diversidade da sociedade. Park incessantemente
convidava seus alunos a sair do mundo estreito em que eles viviam para experienciar e tomar
consciência da diversidade e da forma, às vezes estranha, dos modos de vida e dos
comportamentos que eles iriam estudar. Para Park, a biblioteca era fundamental, mas articulada
com o campo.

Parecem-me pertinentes a esse respeito os comentários de Louis Quéré, quando faz distinções e
aproximações entre Goffman e Garfinkel, no sentido de que a resultante de suas elaborações vem
caracterizar a opção empírica da tradição de Chicago. Para Quéré, é significativo colocar em
evidência as orientações que os dois autores compartilham, em particular uma desconfiança face
às construções teóricas apriorísticas, bem como em relação à análise conceitual tomada como um
fim em si mesma; uma orientação que se poderia traduzir em palavras de ordem tais como: se
nós queremos compreender como a sociedade se organiza, é necessário observar os
comportamentos menores, as ações recíprocas de importância pouco enfatizada; é necessário
apreender os detalhes dos acontecimentos, tratando os dados como fenômenos em si, em vez de
utilizá-los para exemplificar teorias para ilustrar argumentos ou mesmo para testar a validade de
hipóteses explicativas deduzidas de uma teoria. Tal démarche prescreve uma observação
empírica minuciosa, orientada por uma teoria apropriada dos acontecimentos sociais e das
práticas sociais. Pode-se denominar o recurso metodológico do estudo de campo como uma
prática que aponta para um empirismo heterodoxo.
A vida social enquanto cena e a teoria do desvio
É com Erving Goffman que se organiza um corpus de elaborações consistentes e intrigantes
sobre a concepção da vida em sociedade enquanto uma cena. Influenciado por W.L. Thomas e,
principalmente, pelo interacionismo simbólico de G. H. Mead, Goffman tem na sua obra " A
representação do eu na vida cotidiana" o batismo de uma contribuição valiosa à interpretação da
ação dos indivíduos em interação. A originalidade de Goffman prende-se ao fato de ter criado
um modelo de dramatização através do qual descreve e interpreta as atividades dos atores sociais.

Assim, Goffman tenta demonstrar a importância que as aparências exercem no comportamento


dos indivíduos e dos grupos, levando-os a agir no sentido de transmitir certas impressões aos
outros e, ao mesmo tempo, de controlar seu comportamento a partir das reações que os outros
lhes transmitem, a fim de fazer passar uma imagem que difere do que eles realmente são. Para
isto, utiliza conceitos como: desempenho, audiência, observadores, peça, papel, ato etc, que
caracterizam a forma como os indivíduos interagem, ou melhor, como eles desempenham seus
papéis no palco da vida.

Faz-se necessário frisar que Goffman, pelo menos em sua obra, não se preocupou com a forma
como os homens tentam modificar as estruturas perniciosas da sociedade, mas apenas com a
forma como eles se dinamizam nesta. Por outro lado, os objetos de estudo eleitos por Goffman
trazem em si a marca de práticas que, de uma perspectiva ética, necessitam de uma desreificação
profunda. Exemplo disto são os seus trabalhos sobre hospitais de doenças mentais, onde ele
constrói o conceito de instituição total, através da qual analisa a modificação e quase destruição
do self em internos sob a pressão das rotulações (labelling) e das regras administrativas. No caso
deste tipo de estudo, Goffman afasta-se da dramaturgia social e exercita o uso da " teoria do
rótulo" anteriormente arquitetada por H.S. Becker em seus estudos sobre o comportamento
desviante. Assim sendo, o ato desviante não pode ser somente compreendido em termos do
comportamento dos desviantes, mas através de uma análise sociológica que admite que qualquer
ato social envolve relações interpretativas, logo, o processo de interação dos desviantes com
aqueles que lhe são próximos deve ser significativamente considerado (Haguette 1987). Becker
procura mostrar, conforme o interacionismo, que o mundo social, o mundo das significações, é
construído nas interações sociais, e procura indicar aqueles indivíduos que estão estigmatizados,
socialmente marcados, etiquetados que são, em geral, os marginais, os bandidos, os que estão
numa situação em que esses marginais são, agora, considerados indivíduos de comportamento
"desviante" e, portanto, merecedores de sanção. Todo seu estudo mostra que os atos
considerados "desviantes" ou marginais não passam de conseqüências de regras bem-sucedidas
de sanção contra pessoas que devem ser consideradas como indivíduos estigmatizados,
criminosos, bandidos, e que devem permanecer etiquetados no meio social (Chizzotti, 1992).
Becker vai mostrar que esta etiqueta é uma construção social.

Em Goffman, especificamente, a vida cotidiana é densa de inferências, ora confirmadas, ora


negadas, e que sofrem reordenamentos constantes à medida em que os atores interagem
incessantemente. Goffman inspira-se em Thomas para argumentar que "vivemos de inferências".
Nem cálculos estatísticos, nem abstrações científicas norteiam as ações, decisões e perseguições
de metas.
A partir desta realidade da vida, Goffman fala-nos de um modus vivendis interacional, modus
vivendis acima de tudo precário, mas que torna possível a definição de situações.

A abordagem de Goffman visa a interação face-a-face, consubstanciada nos contatos, encontros,


reuniões e conversações. É uma perspectiva que não tem a intenção de apreender a interação em
termos de inter-compreensão, adesão, reconhecimento intersubjetivo, integração de objetivos, ou
visão comum. A questão é posta a partir do contato, da compreensão corporal. Goffman quer
saber, enfim, sobre a " divina comédia humana" que não tem nada de definitiva.

Enquanto um recurso teórico-metodológico para a etnopesquisa crítica em educação, a visão do


social de Goffman vem lançar luzes sobre a natureza interacional das construções educacionais,
inclusive no processo de fabricação social do desvio, tão comum nos procedimentos
defectológicos que permeiam significativamente nossas práticas educacionais. Considero, por
conseqüência, uma abordagem de extrema pertinência no processo de desreificação da questão
da exclusão, enquanto interação, por exemplo, e na compreensão das muitas formas de
estigmatização que a escola fabrica e fabricou ao longo da sua existência.

Etnometodologia e a compreensão dos etnométodos


Avaliei como significativo iniciar estas reflexões sobre a etnometodologia enfatizando que esta
corrente do pensamento em ciências sociais não pode jamais ser abordada como uma espécie de
metodologia científica. A etnometodologia é uma teoria do social que, ao centrar-se no interesse
em compreender como a ordem social se realiza através das ações cotidianas, consubstanciou-se
numa ciência dos etnométodos, como veremos nos argumentos que se seguem.

Foi pela voz de Aaron Cicourel, na primavera de 1987, durante um curso sobre etnometodologia
e sociolingüística, na FACED/UFBA, que tomei conhecimento do pensamento de Garfinkel.
Meu interesse se intensificou a partir da afirmação forte de que "o ator social não é um idiota
cultural". A minha intuição indicava que imbricada àquela afirmação emergia uma fecunda
elaboração teórica em relação, principalmente, à condução do sujeito social para as discussões
que situam o homem em sociedade. Cansava-me, já naquela época, digerir modelos e
elaborações sempre reivindicando para si o conhecimento absoluto de um real sem sujeito. Nos
seminários, predominava a palavra mestra, porta-voz fiel das grandes teorias, mesmo aquelas
que se auto-afirmavam críticas e modificionistas. O ator social, em geral, não tinha voz nem vez
diante de posturas teóricas que se queriam quase sempre narcísicos faróis do mundo. Os
trabalhos de base empírica tinham, em geral, a tarefa de achar no empírico justificativas para as
teorias cultuadas, os sujeitos falavam pela boca das elaborações teóricas. As entrevistas abertas,
de inspiração fenomenológica, as narrativas e biografias, funcionavam, em última análise, como
legitimadoras de alguma corrente de pensamento.

No contato acadêmico com Cicourel, a exigência de ir a campo ver e falar com os atores sociais,
seus repetidos e diversificados relatos de histórias de campo, ficavam para mim ainda num nível
nebuloso em termos de valor heurístico e científico. Aos poucos, na prática de pesquisa,
compreendi a intenção e a direção apontada: os etnométodos que emergem das práticas
cotidianas, dos processos interacionais que não se enquadram jamais na noção de constância do
objeto e que são, em última instância, os organizadores das ordens sócio-culturais.
Inquietava-me, à época, a ausência arquitetada do ator social, o silêncio a ele imposto. Vê-lo
expressar-se e valorizar esta expressão nos contextos educacionais e nas minhas produções de
pesquisador direcionou-me para âmbitos tão fecundos quanto complexos no que se refere às
problemáticas do ato educativo.

Então, qual é o objeto privilegiado de Garfinkel? Segundo ele, as pessoas, as suas vidas
ordinárias; as pessoas que conhecem e que atualizam métodos para definir suas situações de
ação, para ordenar suas atividades, para tomar suas decisões, para exibir condutas racionais,
regulares, típicas. Da perspectiva de Garfinkel, os pesquisadores em ciências sociais concebem o
homem em sociedade como um idiota desprovido de julgamento, um idiota cultural que produz a
estabilidade da sociedade agindo conforme as alternativas de ação pré-estabelecidas e legítimas
fornecidas pela cultura. Para Garfinkel, na base deste modelo há o fato de que os cientistas
sociais tratam como epifenômeno as racionalidades do senso comum. Neste sentido, tais
racionalidades são, no máximo, consideradas subsídios fomentadores de um conhecimento visto
enquanto verdade única.

Assim, em "Le domaine d'objet de l'éthnométhodologie", Garfinkel nos diz do seu objeto de
estudo: os procedimentos intersubjetivamente construídos que as pessoas, na sua cotidianidade,
empregam para compreender e edificar suas realidades. Para este autor, quando se faz
conhecimento social, "profano" ou profissional, toda referência ao mundo real, mesmo
concernente aos acontecimentos físicos ou biológicos, é uma referência às atividades organizadas
da vida cotidiana. Trata-se, portanto, de um fenômeno fundamental para a ciência social, quando
analisa as atividades do dia-a-dia enquanto métodos dos membros (aqueles que dominam a
linguagem natural) para tornar essas mesmas atividades visivelmente racionais e reportáveis para
todos os fins práticos.

Em realidade, a publicação de "Studies in ethnométhodologie", por Garfinkel, em 1967, emerge


num período de grande descontentamento face as ortodoxias dominantes na teoria e na
metodologia das ciências antropossociais. Neste contexto, abalam-se sobremaneira as
construções mistificantes das chamadas grandes teorias e do empirismo abstrato. J. Heritage
ressalta, por exemplo, que o vocabulário etnometodológico, principalmente as noções de
"accounts" e "accountability", deram acesso direto ao fenômeno há muito inacessível: a
definição da situação pelos atores (Heritage, 1985).

A partir das elaborações de Garfinkel sobre os etnométodos, se fortalece definitivamente o


argumento de que a constituição social do saber não pode ser analisada independentemente dos
contextos da atividade institucionalizada que o produz e o mantém.

No início do primeiro capítulo de "Studies in ethnomethodology", obra que marca a emergência e


a sedimentação definitiva da etnometodologia, Garfinkel nos diz que os estudos a serem
apresentados propõem tratar das atividades práticas, das circunstâncias práticas e do raciocínio
sociológico prático como temas de estudo empírico, atribuindo às atividades, as mais banais da
vida cotidiana, a atenção habitualmente dada aos acontecimentos extraordinários. São, em
realidade, fenômenos sociais de pleno direito as atividades que emergem do cotidiano da vida.

Influenciado pelo teoria da ação de Parsons, entretanto rompendo com o funcionalismo


parsoniano, bem como marcado pelas obras de Schutz, Gurvitsch e Husserl, a etnometodologia
de Garfinkel assume uma visão fenomenológica, local, da ação humana. Neste sentido, são
visíveis a influência do pragmatismo de W. James, do interacionismo simbólico de G. Mead e da
fenomenologia de Merleau-Ponty. Sua crítica à noção de essência o fez inspirar-se também na
filosofia existencial de Sartre.

O próprio Garfinkel nos relata que o termo etnometodologia foi empregado para referir-se à
investigação das propriedades racionais das expressões indexais e de outras ações práticas,
enquanto realizações contingentes e contínuas das práticas organizadas e engenhosas da vida de
todos os dias (Garfinkel, 1985). A partir destas elaborações, vê-se aparecer uma série de termos,
que junto a outros mais, vão constituir o corpus teórico da etnometodologia e que transformar-
se-ão em idéias-força desta forma de ver o social se fazendo. Vão representar o encorpamento do
projeto de Garfinkel e os elementos de densidade da sua argumentação.

Neste veio, Jules-Rosette (1986) esforça-se por resumir as características principais da


etnometodologia, trabalhando basicamente sobre seus conceitos fundamentais. Segundo esta
autora, pode-se situar a etnometodologia entre a tradição fenomenológica e a filosofia da
linguagem ordinária (ordinary langage philosophy), e seus principais aspectos são: a
indexalidade, a reflexibilidade, a descritibilidade, o conceito de membro da sociedade, as práticas
das ações socializadas, a contextualidade, a competência única (unique adequacy), assim como a
abordagem da ação na cena social (scenic display). Observa a autora, entretanto, que todos estes
aspectos devem ser considerados como um conjunto. No bojo dos seus argumentos, Jules-
Rosette chama a atenção para o fato de que é necessário constatar que a etnometodologia não é
puramente uma sociologia da vida cotidiana, porquanto cada tentativa de análise deva dar conta
dos aspectos fundamentais da ação e da significação implicada.

Do lugar desta perspectiva, as práticas sociais devem ser olhadas localmente, isto é, jamais de
forma descontextualizada. Para que se tornem visíveis estas práticas, é necessário que as conheça
de dentro e o conhecimento profundo das atividades consubstancia-se naquilo que Garfinkel
chamou de "competência única". Propondo o estudo do saber cotidiano e rejeitando os
preconceitos analíticos da superioridade do saber das ciências humanas sobre aqueles do senso
comum, a obra de Garfinkel resulta num programa de estudos que tem por centro de interesse a
constituição imanente do saber. Há uma insistência para que a análise da ação não se dê
independentemente das práticas e dos contextos das atividades sociais que os produzem e os
mantêm. No que se refere às noções nucleares da etnometodologia, já no início dos seus escritos
de "Studies in Ethnometodology", Garfinkel frisa que seus estudos tratam das atividades práticas,
das circunstâncias práticas e do raciocínio sociológico prático, como assuntos de estudos
empíricos. Emerge assim a noção de prática que toma em Garfinkel um sentido mediador forte
em termos teóricos, entretanto, como o termo se originou, ainda permanece numa aura de
indefinição. H. Meham (1982) nos diz que as origens do conceito de "prática" em
etnometodologia são obscuras, isto é, não são bem estabelecidas. Meham tenta uma analogia
com o conceito de práxis em Marx, entretanto, coloca suas diversidades quando, segundo ele, em
Marx, práxis é uma linha de conduta guiada por uma reflexão consciente e orientada para um
objetivo político. A partir do raciocínio de Meham, um dos herdeiros da tradição de estudos
etnometodológicos, a atividade orientada e que compreende a ligação entre reflexão e ação, entre
o pensamento e o ato é certamente uma característica da noção de prática de interações,do
método dos membros e dos procedimentos interpretativos.
Deste ponto de vista, praticar a vida social é literalmente trabalhar sua construção, sua
manutenção e sua modificação. A prática vai constituir assim a vida social, não é um reflexo
pobre de uma situação ideal, compreende as idéias das pessoas e a aplicação que fazem estas
pessoas desses ideais em situações sociais concretas. Da perspectiva de Meham, a noção de
trabalho precisada pela utilização deliberada do termo "fazendo" permite-nos apreender o sentido
mutuamente constitutivo e fluido das práticas de interação.

Neste sentido, o conceito de prática aproxima-se mais daquele de poyesis, que significa
produção, fabricação do próprio existir humano, individual e social, objetivo e subjetivo.
Vasquez (1977), ao trabalhar as diferenças entre práxis e poyesis, afirma que o trabalho é uma
atividade poética, levando em conta o trabalho do artesão, indo ao encontro das elaborações de
Meham de prática em etnometodologia enquanto "faisant".

À propósito, A. Ogien, ao colocar frente a frente as noções de prática em Bourdieu e Garfinkel,


procura mostrar as diferenças de elaborações que marcam estes dois autores, contribuindo, ao
mesmo tempo, para aprofundar o conceito de prática que emerge do seio de suas teorizações.
Ogien mostra que em Garfinkel, ao contrário de Bourdieu, não é preconizada a separação entre
observador e observado, criando-se um distanciamento epistemológico forçado. Sob este ângulo,
há uma desconstrução do monopólio do modo de conhecimento acadêmico enquanto validade
única. Como conseqüência, a objetivação também é vista como uma competência que pode se
estabelecer fora da academia. O que se deve deixar claro, entre outros pontos, é que a sociologia
de Garfinkel se institui sob o reconhecimento da capacidade interpretativa do ator. Desta
maneira, a ação social é concebida como indissociavelmente ligada ao trabalho de compreensão
que todo indivíduo deve atualizar com o objetivo de assegurar a continuidade das atividades
práticas de que ele participa. Em suma, a ação social, a prática, consiste numa prática de sentido
que o ator utiliza quando age. O ator social é um "prático de sentido" (Ogien, 1985).

No que se refere à indexalidade das ações, esta noção nos envia à constatação de que a vida
social se constitui, basicamente, através da linguagem do dia-a-dia. Ao reelaborar o pensamento
etnometodológico, A. Coulon observa que a indexalidade se consubstancia em todas as
determinações que ligam a uma palavra, a uma situação. Neste veio argumentativo são
pertinentes as elaborações filosóficas de Wittgenstein, quando afirma que a linguagem está
irremediavelmente ligada ao contexto de sua produção, assumindo uma natural incompletude,
porquanto a intenção generalizada não tem guarida onde a homogeneidade semântica e o
purismo das formas de falar e se expressar são totalmente descartados.

Nos diz Garfinkel, em resumo, que as propriedades racionais das expressões indexais e das ações
indexais são uma realização contínua das atividades organizadas da vida de todos os dias. No que
concerne à reflexibilidade, reafirma-se por esta via a natureza descritiva e constitutiva da
realidade social. As descrições do social passam a ser partes constitutivas daquilo que é descrito.
À propósito, quando o poeta gaúcho Mário Quintana era interrogado sobre sua poesia, em geral
respondia: "a minha poesia...a minha poesia sou eu". Neste sentido, as descrições são sempre
encarnadas, isto é, elas portam a própria "matéria" daquele que narra. Enfim, elas se encarnam na
pessoa que descreve. O que a noção de reflexibilidade evidencia é que, no processo de ação
social, se constitui e se é constituído.

Um outro conceito fundante da etnometodologia é o que Garfinkel chama de accountability. Para


este autor, se a ciência social é capaz de dar conta das atividades dos indivíduos, é graças à
existência de uma propriedade irremediável do mundo: vivemos num mundo que é descritível,
inteligível, analisável. Tal descritibilidade (accountability), revela-se nas ações prátic's que
empreendemos cotidianamente, subsídio seminal para a compreensão de como se instaura a
ordem social.

Para os etnometodólogos, a competência social dos membros nasce no seio de uma determinada
comunidade, e a escola é uma delas, a cultura ali criada indexaliza as ações. Neste sentido,
normas, regras e valores são sempre uma interpretação local, pontual, pois é na escola que se
criam e se recriam incessantemente. Procurando mostrar como as desigualdades são construídas
e mantidas no dia-a-dia das relações escolares, os etnometódologos entram na lógica das ações
cotidianas "não documentadas", desvelando procedimentos de exclusão nem sempre visíveis,
nem sempre comunicados: um mundo de ações tácitas que as relações cristalizadas ao longo da
história da instituição escolar mantêm reificadas, isto é, naturalizadas. É um impensado
extremamente importante para a compreensão do "currículo real " Perrenoud (1994), o currículo
que mostra a vida escolar se fazendo profunda e detalhadamente.

As sessões de orientação, a relação professor-aluno, as interações entre alunos e a construção de


regra de convivências entre eles e a instituição escolar, a associação de pais, formas de avaliação,
entre outros, são assuntos que emergem como campos significativos para os estudos
etnometodológicos, vistos correntemente pela óptica apenas reprodutivista, correlacional ou
experimentalista. Desta forma, mesmo que se considere a iniquidade como efeito da reprodução
do sistema escolar, é fato que vem se deixando intacta a questão de se saber qual é o processo
social da construção desta iniqüidade.

Tomando este conjunto de elaborações e os temas sobre o ato educativo que a etnometodologia
vem abordando, vemos com interesse particular a formação escolar da criança, considerando,
principalmente, as noções de infância que emergem dos diversos programas educacionais
infantis, assim como o que se entende como socialização desta própria criança. Refletindo sobre
esta questão, Coulon nos diz que o contexto institucional, isto é, os mecanismos tácitos que
regem a vida dos nossos estabelecimentos escolares, é determinante não somente de
aprendizagens, mas também da socialização em geral. Segundo este autor, esta hipótese
interacionista nos convida a revisar nossas teorias sobre a socialização da criança, porquanto os
alunos desempenham um papel ativo na organização social das atividades escolares e o status
social é certamente a resultante de interações complexas e contínuas entre as capacidades
individuais, a primeira socialização da criança, o capital cultural da família e sua capacidade em
transformar comportamentos escolares operatórios, que se tornarão a base das interpretações
institucionais encontradas na escola.

Nesta mesma direção, ressalto o artigo intrigante de Robert Mackay, " Conceptions of Children
and Models of Socialization", onde, à luz de um argumento etnometodológico, o autor demonstra
como a criança em geral é reificada pelos modelos teóricos normativos, levando articulistas
como J-M Brohm (1984) e M-S Trouzeau (1986) a identificar nas elaborações de Mackay um
rompimento definitivo com as concepções asfixiantes das abordagens que apreendem a criança
enquanto uma invariante na história.

Etnometodologia e educação fundam um encontro tão seminal quanto urgente face à inércia
compreensiva fundada pelas análises "duras". Pelo veio interpretacionista, os etnometodólogos
interessados no fenômeno da educação buscam o tracking dos etnométodos pedagógicos, isto é,
uma pista através da qual tenta compreender uma situação dada, bem como praticam a filature,
ou seja, o esforço de penetrar compreensivamente no ponto de vista do ator pedagógico, nas suas
definições das situações, tendo como orientação forte o fato de que a construção do mundo social
pelos membros é metódica, se apoia em recursos culturais partilhados, que permitem não
somente o construir, mas também o reconhecer.

O instituinte ordinário
Para H. Meham (1982), o construtivismo social toma como axioma básico o fato de que as
estruturas sociais e as estruturas cognitivas se edificam e se situam nas interações entre as
pessoas. Conceber as instituições como coisas prontas que num dado momento começam a
funcionar e, inevitavelmente, moldam/formam as ações das pessoas, significa aceitar, de alguma
forma, que as estruturas sociais (humanas) são vazias desta própria humanidade, uma construção
extra-humana. Por outro lado, enxergar a atividade, a ação mutante, constitutiva da vida em
sociedade, parece-nos encontrar a concreticidade do homem ator/ sujeito na sua primordial
condição: de construtor rotineiro das suas instituições. Assim, analisar a instituição sem analisar
as atividades que a constituem significa reificá-la, apreendê-la pseudoconcretamente, perder seu
caráter processual, senão vital. É significativo reafirmar que, na realidade, são os membros da
vida social ordinária que produzem a ordem social.

Podemos verificar em Castoriadis, por exemplo, a observação de que há o social instituído, mas
este pressupõe sempre o social instituinte. Esta elaboração articula-se com aquelas da
etnometodologia empenhadas em mostrar como as estruturas se estruturam, num projeto
obstinado de desreificação e de desconstrução de pseudoconcreticidades, não por argumentos
prenhes de argumentos (mera teoria teorizada), mas por reflexões encarnadas por estudos
concretos e contextualizados. Esta perspectiva instituinte não só se opõe à análise sistêmica de
"entrada e saída", como reafirma a riqueza e a significatividade das construções que acontecem
no seios da instituições.

Procurando apreender mais claramente as contribuições da etnometodologia na compreensão do


trabalho de instituição, G. Lapassade (1986) elabora uma série de aproximações com a análise
institucional francesa, resultando naquilo que denominou de um "instituinte ordinário". Com os
cuidados necessários de apontar diferenças de origens e pressupostos, Lapassade termina por
reforçar o fato de que onde a ciência social tradicional vê um efeito de pressão puro e simples,
moldando nossas práticas, a etnometodologia insiste sobre o "instituinte ordinário", sobre o
trabalho de instituição do dia-a-dia. Lapassade termina por concluir que a dialética instituinte-
instituído, base teórica da análise institucional, é, na etnometodologia, uma perspectiva
importante. Compartilha dessas convicções também L. Quéré quando preconiza a idéia de que o
real se auto-organiza. Segundo Quéré (1987), o mundo social não é caótico, e nem espera que o
cientista social venha a dar-lhe forma, ele se organiza, ele se ordena. Para este autor, o analista
social deve se perguntar, em realidade, como o mundo social toma forma? Como emerge sua
ordem? Neste sentido, conclui que é um instituinte que produz a ordem instituída, e a
etnometodologia seria uma sociologia do instituinte. Quéré argumenta que Garfinkel procurou o
instituinte nas atividades da vida corrente e nas interações entre os membros de uma
coletividade. Isto é, Garfinkel fez do "ordinário" o lugar da morfogênese do social, e da
emergência de sua forma (Quéré, 1987).

Para a etnometodologia, são as práticas cotidianas que produzem uma realidade. Outrossim,
sendo a prática descritível, nem sempre será descrita. Há, em realidade, uma potencialidade
descritiva enquanto especificidade humana (accountability), bem como as narrativas podem
conter elementos tácitos e opacos, tornando o mundo da linguagem extremamente complexo.
Como exemplo de prática instituinte, A. Ogien (1985), na sua tese de doutorado "Positivité de la
Pratique", mostra-nos como esta prática se organiza em instituição. Ogien descreve a lógica das
práticas de um serviço de psiquiatria, demonstrando que é a prática dos membros do serviço,
constituída pela linguagem natural, que possibilita a edificação do tipo de atendimento. Esta
linguagem natural é, em realidade, o resultado de um amálgama de uma linguagem especialista,
de uma linguagem administrativa, e de um falar ordinário das pessoas. As práticas de cuidado
médico, segundo Ogien, não são deduzíveis da leitura de um manual de psiquiatria, nem de
circulares ministeriais. São, ao contrário, o resultado de negociações constantes entre membros
do serviço. Para os autores que trabalham com a denominada análise institucional interna, são
estas práticas que devem ser estudadas por aqueles que estão interessados numa análise concreta
e não reificada. São tais acontecimentos ordinários que produzem as realidades sociais num
mundo relacional. Garfinkel parte do princípio de que todo quadro social, toda situação social se
auto-organiza (self-organize) em função do caráter inteligível de suas próprias práticas; que toda
instituição organiza suas atividades enquanto cenário de atividades práticas, inteligíveis e
descritíveis. Em realidade, aparece aqui uma clara recomendação para uma política de pesquisa
que tem o instituinte ordinário como inspiração, na medida em que as estruturas sociais das
atividades da vida cotidiana fornecem contextos, objetos, fontes, justificações, temas, problemas
etc, para as investigações e seus resultados.

Etnografia constitutiva e reflexiva em educação


A noção de etnografia constitutiva é fundada em meio aos estudos da segunda geração de
etnometodólogos. Emerge das investigações de Hugh Meham e, basicamente, do seu artigo
"Structuring School Structure", (1978).

Trata-se de uma démarche de pesquisa onde o fundamental é a descrição das atividades sociais
estruturantes, que criam os fatos sociais objetivos e instituintes do mundo da educação. Tais
estudos constitutivos operacionalizam o princípio interacionista segundo o qual as estruturas
sociais são realizações sociais. Neste sentido, em vez do pesquisador se fixar no instituído,
procura compreender o instituinte que o produz.

Ao tratar dos pressupostos básicos da etnografia constitutiva - encontrados nas orientações


interacionistas, etnometodológicas e da sociologia cognitiva – Meham critica enfaticamente os
estudos correlacionais estatísticos, as teorias da reprodução e as pesquisas de campo tradicionais,
que, segundo o autor, chegam a resultados meramente anedóticos e legitimadores de teorias
cristalizadas. Temas como a socialização são vistos pela etnografia constitutiva como um
processo muito mais dinâmico do que a noção simplista de que a cultura é transmitida de uma
geração a outra, conforme o pensamento durkheimiano. Segundo Meham, a socialização é o
processo pelo qual as pessoas tornam-se membros competentes de sua comunidade, competência
esta adquirida em meio aos procedimentos interativos criados e recriados no seio das construções
culturais. A etnografia constitutiva evita nos seus estudos a unidirecionalidade, quando apreende
como fundante da construção social, a abordagem interacionista constitutiva. Neste veio,
segundo G. Lapassade (1992), há uma crença na "causalidade recíproca" na base dos estudos da
etnografia constitutiva. Neste âmbito são vastos os argumentos que mostram como a
socialização da criança foi mal estudada pelo estruturo-funcionalismo, hipervalorizando as
pressões socializantes de uma ordem social onipotente, negligenciando, ademais, o aspecto
reflexivo das relações sociais.

Para Meham, o termo etnografia constitutiva evita dois erros de interpretação contidos na noção
de microetnografia, antes atribuídos à etnografia constitutiva. Para este autor, o termo micro não
corresponde ao seu projeto que é de estabelecer elos entre os níveis micro e macro, mostrando,
em patamares variados de análise, como se constrói uma estrutura; é fato, que a expressão
microetnografia já tinha sido utilizada em estudos de campo que não levavam em consideração a
interação que serve para a construção dos modelos descritos. Os estudos da etnografia
constitutiva, portanto, funcionam a partir da hipótese interacionista de que as estruturas são
construções sociais.

Algumas características metodológicas são peculiares à etnografia constitutiva: disponibilidade


dos "dados" suscetíveis de serem consultados (documentos, áudio ou vídeo, transcrição integral);
exaustividade do tratamento dos "dados", que é um meio de luta contra a tendência a limitar a
exploração aos elementos favoráveis às hipóteses dos pesquisadores; convergência entre
pesquisadores e participantes sobre a visão dos acontecimentos na medida em que os
pesquisadores garantem que há identidade entre a estrutura que descobrem nas ações e aquela
que orienta os participantes nessas ações. São utilizados, ademais, "dispositivos de verificação",
como: demanda de confirmação junto aos entrevistados; análise interacional que evita a redução
psicológica e, ao mesmo tempo, a reificação sociológica, na medida em que se crê que a
organização dos acontecimentos é socialmente construída e deve-se procurar essa estrutura nas
expressões e gestos dos participantes. Essa radicalidade face ao aspecto interativo da construção
social dá à etnografia constitutiva um autêntico status construcionista.

No que se refere ao caráter reflexivo da etnografia constitutiva, dá-se, na medida em que se


propõe, na prática de pesquisa, apreender reflexiva e simultaneamente o objeto pesquisado e o
processo de construção da própria investigação a partir da compreensão de que uma e outra são
não somente ligadas, mas que o conhecimento de uma permite igualmente apreender melhor a
outra. Neste movimento, é comum a integração à pesquisa de "dados" do diário de campo, onde a
noção de processo e implicação adquirem uma importância ímpar. Descrição das implicações e
validação intersubjetiva são dois fundamentos irremediáveis do que se denomina uma etnografia
constitutiva e reflexiva da educação.

História local e a multiplicidade histórica


A existência de itinerários que se alinham, que se superpõem, que se cruzam, que constroem
novos significados nas tensões que emergem das interações cotidianas prenhes de construções,
fazem sem cessar histórias pouco ou nunca conhecidas, pouco ou nunca documentadas.
Entretanto, no mais das vezes, apanham no contra-pé aqueles que, desumanizando a história, a
reificam, em nome, às vezes, de uma dialética desencarnada e de um movimento histórico pré-
definido, em muitas oportunidades proféticas; a construção histórica unificadora afoga-se num
discurso englobalizante, onde os reais construtores da(s) história(s), inseridos em contextos
culturais e políticos específicos, desaparecem, tornam-se mera peça de engrenagem, sem
interesses, esquecidos mediante a eloqüência/asfixiante de uma máquina onipotente que a tudo
molda.

Resta entender como uma máquina que perdeu seu maquinista consegue percorrer caminhos
imprevistos e tortuosos, objetivar desejos e intenções, produzir projetos, transformar-se movida
por fascínios banais. Aqueles que inventaram a história autoritariamente unificadora
escamoteiam a multiplicidade movente dos homens em vida. A conseqüência é que a tarefa de
homogeneização das histórias termina por "fazer água" por todos os lados. Aos poucos, afunda-
se, tomada de surpresa por irrupções históricas dotadas de uma tal dinâmica que aqueles que
descansam no " berço esplêndido" de uma história perfeitamente previsível padecem, sem cessar,
de sobressaltos face aos "espetáculos do mundo".

Argumentando sobre a multiplicidade da história, P. Pharo observa que é necessário estabelecer


o fim da unicidade da história, enquanto história do homem, que perto de dois séculos a filosofia
tinha instaurado. Segundo Pharo, para engajar-se hoje numa reflexão sobre a história, tem-se
que, em primeiro lugar, começar por admitir a multiplicidade das histórias e, de certa forma, uma
ruptura radical vis-a-vis nas mitologias que o século XIX nos legou. Não uma história, mas
histórias; não uma força imanente e única dirigindo o tempo coletivo dos homens, mais uma
multiplicidade de figuras que o desenvolvimento histórico edificou (P. Pharo, 1982). Referindo-
se às concepções históricas em Hegel, Marx, Nietzsche e Durkheim, Pharo deixa claro que a
história não pode conduzir nem à realização do espírito, nem ao comunismo, nem ao super-
homem. Nesta concepção descrita, a história ganha uma forma fluida, que vai centrar também
seu processo identitário na direção do desconhecido de um ser que não se pode dizer nada, a não
ser que ele se faz em um contexto qualquer (Pharo, 1982).

Este tipo de raciocínio nos conduz ao esforço de penetrar na complexidade dos conjuntos de
pensamentos que ligam homens de todas as condições a diferentes elementos que, como se sabe,
podem também ser considerados como outras formas de ser. Em termos metodológicos, as
abordagens do tipo monográfica podem reconstituir a especificidade de cada via social e
histórica, através do entrecruzamento das histórias no interior das formações sociais. Aqui, as
histórias orais assumem um lugar de destaque com toda sua diversidade e multiplicidade de
sentidos. Deste ponto de vista, toda história é, de uma certa maneira, uma história local,
acontecendo no interior de um espaço. O fenômeno da indexalidade trabalhado pela
etnometodologia nos mostra que toda narrativa é realizada a partir de um contexto que banha e
impregna aquele que narra.

Considero, assim, que a história unificadora sofreu do mal teorizante, deu-se à tarefa de moldar
"realidades múltiplas", imobilizar idiossincrasias dos coletivos sociais, ensacar visões de mundo
distintas, subsumidas por definições macro-incorporadoras que, no domínio da argumentação
erudita, facilmente e de longe tudo explicou. Trata-se, por outro lado, de interrogar recorrências
simbólicas observáveis nas diferentes escalas do mundo, construídas num incessante
compartilhar de sentidos.
Pharo nos incita a afastar as visões idílicas do historicismo universal e a repensar as
características fundamentais da ligação histórica, entendida como a relação que as múltiplas
histórias constroem umas em relação às outras. Ao afirmar que nenhuma ocorrência simbólica
existe isoladamente, este autor reafirma que toda construção de sentidos é relacional, isto porque
os símbolos que permitem a edificação de sentidos – os conceitos, as palavras, os gestos, os
ritos... - não se formam por geração espontânea, mas por interações que se consubstanciam em
desvios e remodelagens em relação àqueles que lhes precederam.

H.S. Becker (1986), dissertando sobre os trabalhos biográficos realizados no seio da tradição
sociológica de Chicago e sua importância científica, nos apresenta uma construção interessante,
onde relaciona biografia e mosaico científico. Citando Robert Park como o grande inspirador
destes estudos, Becker argumenta que em artigos sobre a natureza da cidade, sobre o papel da
comunidade na vida social, Park formulava um projeto geral sobre a vida urbana à medida que
realizava, com seus estudos, um mosaico compreensivo. A partir da leitura do trabalho de
Becker, percebe-se como se produzia uma certa história da cidade, onde biografias múltiplas
eram entrelaçadas e a cada peça juntada relacionalmente enriquecia-se mais o conjunto, "o
quadro", como se refere Becker. No mesmo argumento, Becker nos convida a pensar
relacionalmente, mostrando que cada peça do seu mosaico está relacionada ao seu contexto e
contêm em si este contexto. Um estudo de uma universidade, por exemplo, pode sugerir
hipóteses sobre as características da cidade, do estado e da região, sobre a origem social dos
alunos, sobre as experiências de classe dos estudantes. O estudo de um hospital psiquiátrico ou
de uma prisão fará surgir, igualmente, hipóteses sobre as características das famílias cujo
membros terminaram por freqüentar estas instituições.

Do pensamento de Mead, podemos extrair que o processo social não é apenas um jogo
imaginário de forças invisíveis ou a resultante de uma interação de múltiplos fatores sociais, mas
um processo possível de ser observado de interações simbolicamente mediatizados.

R. Barbier e J-L Legrand (1990), refletindo sobre a utilização das histórias de vida na instituição
educativa, chegam à pertinente conclusão de que é por estas histórias de vida cruzadas que uma
autêntica existencialidade coletiva e institucional poderá ser compreendida, onde pessoa,
interação, significado, imaginário, organização e instituição, jamais podem ser analisadas como
epifenômenos sociais. A multiplicidade histórica os resgata, e o faz dando-lhes o dinamismo
inerente ao ato de viver socialmente.

É na tentativa de trazer para a cena histórica o acontecimento, potente fator de pluralização da


história, que E. Morin aponta para os encontros fenomenais e suas relações mais ampliadas,
como fatores de evolução histórica. Para Morin, são os acontecimentos internos provenientes das
contradições dos sistemas complexos e francamente estruturados, e os acontecimentos externos
provenientes dos encontros fenomenais que fazem os sistemas evoluírem e, finalmente, na
dialética sistemo-eventual, provocam a modificação das estruturas. Da perspectiva deste autor, a
sociedade que evolui é uma sociedade onde se multiplicam os acontecimentos. A noção de
acontecimento é utilizada para designar o que é improvável, acidental, aleatório, singular,
concreto, histórico. É, em realidade, uma noção complexa. Portanto, temos que o acontecimento
resulta dos encontros, das interações; a própria vida tem na sua história um acontecimento
ontológico, o encontro entre dois seres. Da perspectiva de E. Morin, destruições, trocas,
associações, simbioses, mutações, regressões, progressões, desenvolvimentos, podem ser
conseqüência de acontecimentos modificadores. Morin conclui que a rejeição do acontecimento
pode corresponder à preocupação da racionalização quase mórbida que afasta a aleatoriedade
porque ela significa o risco e o desconhecido" (1997:254). A partir desta perspectiva de história,
não é mais possível acreditar numa interpretação histórica onde apenas se explica o processo
histórico via macro-categorias fechadas em intenções nomotéticas e relações lineares de causa e
efeito. Os encontros, os espetáculos, as interações fazem, e fazem muito, a história de nós,
homens.

A compreensão intensa e interna dos movimentos sociais


A nossa démarche natural aqui é enveredar por dispositivos da compreensão dos movimentos
sociais que ofereçam um instrumental efetivo no sentido do acesso ao âmago do fenômeno social
e seu(s) significado(s), à medida em que se movimenta. O fenômeno, movimento social, entre
nós, pede acima de tudo uma compreensão menos abstrata e mais movente, desapegada de
definições pré-estabelecidas. Nesta direção, tomamos de empréstimo os argumentos de G.
Lapassade (1987), pertinentes no que concerne à compreensão intensa do movimento social.
Tomando um exemplo concreto de estudo, a deflagração de uma greve de estudantes
universitários, o autor nos diz da sua determinação de trabalhar sobre um corpus localizado,
quebrando uma tradição da sociologia francesa de tentar compreender tais eventos via " idéias
gerais e consultas a intelectuais tradicionalmente de gabinetes". Lapassade afirma o desejo de
apreender o que se passava de um ponto de vista local, pois se tratava de uma greve que
começara nacionalmente, mas que, diferente de outras experiências no país, se prolongara com
características próprias na Universidade de Paris VIII.

Aliás, o próprio estudo onde Lapassade, Conein e Quéré expressam-se enquanto


etnometodólogos, se constitui num documento de real interesse sobre como, a partir de uma
inspiração etnometodológica, procura-se compreender um movimento social. Fica claro o
esforço de apreender a indexalidade do movimento. Segue-se, entra-se na emergência das ações
que primam por uma plasticidade e uma assincronia incomensuráveis, demandando uma abertura
de espírito e uma bricolage metodológica de intensa criatividade. Por este veio, entendo que o
caráter dinâmico dos movimentos sociais, principalmente entre nós, requer, para apreendê-los,
fôlego físico e intelectual, flexibilidade, relativismo, sagacidade, sensibilidade, escuta sensível,
imaginação teórica e metodológica, como, aliás nos recomendam Mills (1982), Bertaux (1985) e
M.H. Solet (1987). Avaliamos, por exemplo, que para compreender os plurais movimentos
comunitários que afloram no nosso contexto próximo, faz-se necessário entender as relações e
articulações da base destes movimentos, das lideranças entre si e outros componentes relacionais
comunitários.

Tentando reforçar a sua preocupação maior com o caráter indexal dos movimentos sociais, no
sentido de se ter acesso às realizações práticas, L. Quéré elabora um raciocínio extremamente
fecundo. Segundo o autor, o movimento social não deve ser apreendido como um objeto dado,
ali, sob nossos olhos, que temos que categorizar ou explicar em termos simplesmente de causas,
de objetivos, de sentido, mas como processo que se organiza do interior, sob a base de um saber
e de um saber-fazer ordinário de seus atores, como uma produção conjunta e relacional, tendo
como parte integrante a elaboração passo-a-passo de sua própria inteligibilidade, de sua própria
analisibilidade e de sua própria objetividade. Ou ainda, como um fenômeno que se auto-eco-
ordena, e, em se fazendo, exibe uma ordem ou uma configuração que lhe confere sua identidade
e sua determinação, mediadas pelo trabalho prático dos atores implicados e não por
categorizações que o subsume numa classe de equivalência munida de propriedades
discriminantes. Neste sentido, os movimentos sociais são analisados tendo uma forma e uma
atividade que também tem sua gramática, gramática esta completamente dependente das
atividades significantes dos atores em movimento.

Em resumo, ir ver, descer até as bases das construções, apreender sua dialogicidade, encharcar-se
dos sentidos que brotam das relações entre pessoas, urge enquanto démarche metodológica para
uma real compreensão de um movimento social, em geral edificado num processo complexo de
interações eivadas de lutas comuns e assincronismos que, entre nós, em meio às ações populares,
fundam a todo momento utopias, objetivam conquistas, elaboram ganhos, desventuras e perdas.
Desta perspectiva, um movimento social consubstancia-se numa itinerância no sentido atribuído
por Barbier, onde um conjunto relacional de vidas historicamente construídas projetam e
executam um certo trajeto de coletivos sociais, movidos por significados relativamente comuns.
Entre nós, o conhecimento concreto destas itinerâncias oportuniza compreender construções
educacionais acima de tudo processuais e que desvelam a todo momento as suas inerentes
contradições.

O sujeito como sistema sócio-cognitivo


O construtivismo sócio-histórico coloca como axioma básico o fato de que as estruturas sociais,
bem como as estruturas cognitivas, se constituem e se situam na interação entre as pessoas. A
partir desta concepção constitutiva, duas correntes de pensamento se aproximam, sem,
entretanto, partilharem pressupostos históricos e filosóficos. De um lado, temos os teóricos
interacionistas e sócio-fenomenólogos inspirados nas elaborações de George Mead e Alfred
Schutz; do outro, os estudos de Vygotsky, Luria e seus colegas da psicologia sócio-histórica
"soviética".

Como Piaget, estes pesquisadores fizeram valer a tese construtivista; entretanto, ultrapassaram o
sentido solipsista da construção, indo em direção ao plano interpessoal e intersubjetivo como um
plano fundante.

É na tradição fenomenológica de Husserl que vamos encontrar as fontes inspiratórias desta


compreensão, que tem na interconexão entre o pensamento e seus objetos um dos princípios
fundamentais. Da perspectiva fenomenológica, o objeto que se apresenta ao indivíduo que o
percebe não é um objeto como tal, uma coisa em si. É o objeto como-ele-aparece através do ato
particular da consciência intencional. O objeto varia segundo o ponto de vista, a orientação, a
atitude do observador. Portanto, e em definitivo, um objeto não é determinado uma vez por
todas.

Assim, a fenomenologia constitutiva se opõe às duas principais concepções de consciência, ou


seja, ao inatismo e ao empirismo. Apoiando-se sobre o fato de que as condições físicas
legitimam perfeitamente uma constante, os teóricos inatistas deduzem que as constantes
perceptivas de forma, de dimensão, de cores, estão inscritas, isto é, são integradas ao sistema
nervoso. Os empiristas, capitaneados por Locke e Hume, consideram a consciência como
passividade. Segundo os teóricos empiristas, as constantes perceptivas de forma, cores, dimensão
etc. são âmbitos que se explicam por um mosaico de dados sensoriais e de imagens derivadas
destes dados. Não há conexão interna entre estes fatos, eles coexistem simplesmente ou se
sucedem. Do ponto de vista de Husserl, não estão nem no aparelho psíquico nem no mundo, eles
são constituídos por atos intencionais de consciência. É pelo ato intencional que o objeto é
constituído. Por este processo constitutivo, os objetos são elucidados, o sentido se inscreve no
contexto, apelando para os conhecimentos preliminares a propósito dos objetos específicos da
vida cotidiana.

No pensamento de Gurwitsch (1964), experiências ulteriores podem revelar que a coisa material
apresenta propriedades e qualidades diferentes daquelas que o processo tinha permitido
estabelecer até ali. Tal revisão tem um efeito retroativo, reorganizando a primeira impressão para
que ela se adeque à experiência perceptiva presente da coisa. Em retornando ao ponto de vista de
onde a coisa aparecera anteriormente, sua emergência será agora co-determinada pelas
experiências perceptivas subseqüentes. Tal interpretação significa que o processo de percepção é
indeterminado, incompleto e sempre sujeito à revisão. Tanto para Husserl quanto para
Gurwitsch, o objeto, no seu estado completo, não é nem uma propriedade que lhe é inerente, nem
uma categoria a priori. Ao contrário, se realiza no ato intencional de percepção.

Em síntese, as propriedades de um objeto não são inerentes às coisa, mas relativos a diferentes
experiências. A atitude constitutiva em relação à percepção não significa que os observadores
tratem os objetos como se eles fossem incompletos ou sem propriedades. Significa que os
observadores constituem os objetos como completos por meios prospectivos e por meios
retrospectivos, dando significações a acontecimentos não clarificados precedentemente.

Para Meham (1982), estes atos constitutivos fazem do nosso mundo esta ligação relativamente
estável, objetiva, necessária e permanente que nós conhecemos. O processo de construção, tal
como descrevem os fenomenólogos constitutivos, superando o plano egológico, contribui de
maneira importante para o desenvolvimento de uma teoria que religa as estruturas sociais e
cognitivas em interação. Esta ruptura com o Zeitgeist solipsista, conservando os temas dinâmicos
e construcionistas dos fenomenólogos constitutivos, eliminou os chamados preconceitos mentais
e subjetivos.

Autores como Goffman, Garfinkel e Cicourel, por exemplo, começaram a falar de um mundo
social, no que concerne à sua ordenação, através da noção de "práticas de interação". Tais
atividades de interação, chamadas às vezes de "métodos dos membros" ou "propriedades
interpretativas", são, em realidade, processos que se desenrolam entre as pessoas. São atividades
sociais que implicam em ações humanas jamais devinculadas de uma elaboração cognitiva
construída entre pessoas. Podemos, portanto, qualificar estas práticas como naturalmente
constitutivas.

A construção social das estruturas cognitivas

É interessante notar como em nível da compreensão da gênese das estruturas cognitivas um


movimento similar acontece no que concerne aos fenômenos psicológicos ditos superiores. É na
abordagem sócio-histórica da psicologia que temos diversas proposições para explicar como a
prática da interação culturalmente organizada influencia o desenvolvimento psicológico.
Vygotsky, Leontiev, Elikonin, Luria, Zaporozhets, sob a liderança do primeiro, entendem que o
funcionamento cognitivo humano emerge da interação social, dando-se, neste âmago, o processo
incessante de interiorização/ exteriorização dos conteúdos e formas sociais.

Vemos, neste veio, que o pragmatismo interacionista americano, mais precisamente o


pensamento de G. Mead, aproxima-se bastante da abordagem sócio-histórica em psicologia
cognitiva, naquilo em que priorizam a sociedade e a experiência grupal. Partem da premissa
walloniana de que o homem é geneticamente social: a individualidade emergiria da sociedade e
não o contrário. Entretanto, há uma diferença clara entre o pensamento de Vygotsky e o de
Mead, na medida em Vygotsky especifica certos processos que tornam possível a transição do
social ao individual. A abordagem sócio-histórica propõe uma ligação bastante estreita entre
cultura e conhecimento, seja entre os processos de interação social que agem no seio da cultura,
seja nos processos psicológicos dos seus membros. Esta conexão pode se estabelecer porque o
funcionamento psicológico de um indivíduo se desenvolve através da interiorização do processo
de interação cultural organizada.

No âmago da zona proximal de desenvolvimento – área das aprendizagens possíveis a serem


construídas no processo de interação — os membros de uma cultura produzem relações entre o
funcionamento social e individual. É assim que o social torna-se individual e o individual, social.
A relação epistêmica piagetiana sujeito-objeto é transformada para pleitear-se a relação sujeito-
objeto/cultural, na medida em que o objeto se define desde já por seu papel no seio dos modos de
atividade cultural. Assim, os objetos são socialmente definidos e servem de pontos de contato
entre a cultura e a inteligência, construindo a pluralidade das inteligibilidades. Neste sentido, a
inteligência como outros processos cognitivos, está ligada ao contexto de atividade, a uma
política de sentido extremamente indexalizada. Esta compreensão é também compartilhada pelas
elaborações de Wittgenstein, quando este autor argumenta que o psíquico não funciona como
uma categoria no âmago de uma teoria da correspondência de sentido, e que não é uma
invariante levando-se em conta todas as circunstâncias de sua utilização. Para a pragmática de
Wittgenstein, o psíquico é atividade de interação por excelência. A conseqüência natural diante
de uma tal posição é que a variação das performances, segundo as situações, é a norma, e é neste
dinamismo que intenção, cognição e contexto formam um complexo só acessível a um olhar
dialogicizado.

Como nos ensina Bakhtin, todas as vozes individuais são abstraídas dos diálogos. Funda-se,
através desta virada contextualista, uma compreensão da atividade cognitiva a partir da cultura,
da experiência social, dos coletivos sociais, preocupada com ações situadas e sentidos
indexalizados, posição também partilhada pela noção talhada por Bruner (1997) de atos de
significação, vinda no bojo do que chama de a revolução cognitiva.

Construcionismo social e a "virada lingüística"


Hans Georg Gadamer nos diz que vivemos imersos na linguagem, que não há nada fora dela ou,
se há, não nos é possível conhecer. Esta alusão à linguagem como parâmetro da existência
cotidiana nos remete às conclusões do primeiro livro de L. Wittgenstein, Tractatus Logico-
Philosophicus, onde ele afirma que sobre o que não podemos falar, devemos guardar silêncio.
Tomando estas inspirações como centrais, o construcionismo social entende que a linguagem
impregna a totalidade da vida humana. É básica a idéia de que o mundo social consiste em
atividades, onde as conversações são pleiteadas enquanto jogos, jogos de interação com regras
incessantemente interpretadas e reinterpretadas. Assim, estamos imersos num processo em curso,
cujas bases não estão definidas uma vez por todas. Desta perspectiva, não funcionamos de uma
maneira digital, na qual uma unidade segue a outra, tão pouco de forma binária, onde temos que
agir " assim ou assado". Produzir e fazer está no centro do entendimento que o construcionismo
tem da vida social, sempre percebidos como co-construção.

Ademais, para compreender o que se faz e o que se produz num determinado tempo e lugar,
devemos olhar o contexto, já que nada tem significado fora do contexto. Devemos ver as coisas
em seu contexto e também devemos ver o que elas fazem a esses contextos. Sempre atuamos
desde e para contextos (Schnitman, 1996).

Desta perspectiva em vez de enfatizar-se e aspirar-se à episteme (o conhecimento das coisas


verdadeiras fabricadas por dada forma de objetivação) aspira-se a phronesis, que implica na
sabedoria sobre como as coisas do mundo funcionam.

De acordo com Barnett Pearce (1994), o construcionismo social associa-se a cinco idéias
fundamentais: o mundo social consiste em atividades; os seres humanos têm uma capacidade
inata para implicar-se nos espaços discursivos da vida social; as atividades sociais se estruturam
segundo certas regras acerca do que devemos fazer. Do posto desta perspectiva, não somos
considerados seres epistêmicos, somos seres sociais, porque nos orientamos mais pelas regras do
vínculo social do que pelas regras do conhecimento; o mundo social não é uma realidade
ontológica na qual estamos depositados; é, em realidade, uma trama de ações, ou seja, vivemos
em um mundo que construimos permanentemente. O que tomamos como conhecimento do
mundo não é um produto da indução nem da comprovação de hipóteses gerais, está radicalmente
indexalizado à história, à cultura e ao contexto. Aqui está a natureza cronotópica do
construcionismo social.

O que fica claro dentro das elaborações construcionistas é que a linguagem não é mapa nem
espelho de outros domínios, é parte de uma totalidade que constitui e é constituída. A relação
entre a linguagem e outros domínios da realidade humana é uma relação complexa, constituída
em múltiplas formas nas complexas interrelações das estruturas das diferentes formas de
subjetividade definidoras do sentido do social, dentro das quais a linguagem, assim como os
processos simbólicos em geral, têm um importante lugar. Linguagem e discurso são os
ingredientes fundamentais para a compreensão da realidade, sua dialética e história. Foucault já
sentira a força heurística desta posição.

Para os construcionistas, as ontologias desaparecem, de forma geral, dissipando toda forma de


essencialidade no socium. Adquire, aí, uma forte postura desreificante e desessencializante, face
às pautas que ridicularizam ao máximo tanto a natureza social, como histórica das práticas e da
existência.

Em resumo, o construcionismo cultiva as seguintes pautas epistemológicas segundo as


elaborações de Pearce, comentadas aqui de forma livre: enfatiza o papel ativo da teoria na
construção da realidade, imbricando-a a outras pautas como a ética, a ideologia e a história; o
espaço social é um espaço de produção e criação, e não um mero forum de expressões e
tendências previamente constituídas; o conhecimento é uma forma permanente de produção da
realidade como tal, por isso responde às negociações, às situações que caracterizam o momento
atual do sistema de relações de uma sociedade e seus discursos; não compreende a ciência como
uma atividade definida desde a razão, nem relacionada com a validez empírica em sua
legitimação. A ciência é resultante da negociação entre seus atores no espaço dos discursos
dominantes e das pautas interativas. Tampouco a ciência aparecer associada à noção de
progresso, tem muito a ver com rupturas, com o aparecimento de novos paradigmas, novas
formas de produzir conhecimentos, conforme percebe T. Kuhn.

Se olharmos o cenário de legitimação e produção das práticas educacionais entre nós e alhures,
se afinarmos nossos ouvidos para ouvir os discursos da educação e seus poderes, temos que
admitir a pertinência do potencial teórico do construcionismo social, principalmente, como um
dos panos de fundo para a etnopesquisa crítica. Aliás, temos que admitir, ainda, que o que hoje
se chama dentro do contrucionismo social de "virada linguística", tem como objeto privilegiado
um tipo de atividade humana que há muito já demonstrou o seu poder. Nós, educadores, sabemos
muito pela prática o que é linguagem, sabemos o quanto pode e o quanto não pode, e o seu papel
para a compreensão das transformações e para a própria transformação em curso.

Etnopesquisa, método dialético e a nova sociologia da educação


(NSE)
É principalmente no seio das elaborações e dos estudos da segunda vertente da nova sociologia
da educação (NSE) que vamos verificar sínteses onde articulam-se conteúdos e métodos da
sócio-fenomenologia e do marxismo libertário.

Ressaltando que os homens agem em termos de suas interpretações, de suas condições externas e
de suas intenções para com elas, a fenomenologia que fundamenta fortemente a etnopesquisa
deixa um vazio significativo no momento de analisar os mecanismos particulares pelos quais
uma determinada estrutura social impõe limites aos seus membros. Tem dificuldades de
explicitar como ou porque certas características repressivas da sociedade continuam a existir. As
questões ideológicas e a problemática da falsa consciência constituem-se num nó de difícil
resolução para o fenomenólogo. Além disso, a sócio-fenomenologia tem pouco a dizer sobre o
conflito estrutural numa sociedade e quase nada argumenta sobre o entendimento dialético da
mudança histórica e as condições materiais de existência que, embora socialmente produzidas,
tornam-se objetificadas, portanto, não podem simplesmente ser racionalizadas. Priorizando a
intersubjetividade ao desreificar os sistemas de pensamento e as ações que lhes configuram, a
abordagem sócio-fenomenológica carece de articulações, onde a desreificação prática deve fazer-
se mais potente pelas vias das relações sociais, para ser mais preciso, pela via da práxis (Sarup,
1986). Outrossim, deve-se pontuar que as bases teóricas da sócio-fenomenologia (Schutz,
Merleau-Ponty, Weber) não negam a estrutura e sua capacidade de regulação e constituição da
realidade social; o que há é um privilégio dado à ação instituinte, o que proporciona alguns
vazios significativos a serem preenchidos, e uma resistência ao marxismo e ao estruturalismo de
feições mecânicas e hiperdeterministas, na tentativa de interpretar a história à margem da ação
humana.

É aqui que um marxismo sensível à existência torna-se pertinente e relevante para proporcionar
uma etnopesquisa implicada e engajada com as transformações das práticas iníquas, e uma praxis
solidária, vinculada a uma ética comunitária.

Se a sócio-fenomenologia resgata compreensivamente na história um sujeito interessado, o


método dialético o vê a partir dos coletivos sociais, forjando, aqui, uma dialética que aponta
inexoravelmente para a humanização concreta e transformadora do ser social pelas suas
condições concretas.

Antes mesmo de tematizar a possibilidade de uma etnopesquisa dialetizada, seria interessante


indagar: o que é o método dialético?

Marx é o pioneiro em adotar, sistematicamente, o método dialético. Ao estudar uma determinada


realidade objetiva – um estudo de caso – analisa, metodicamente, os aspectos e os elementos
contraditórios desta realidade. Após ter distinguido os aspectos ou os elementos contraditórios,
sem negligenciar as suas ligações, sem esquecer que se trata de uma realidade, Marx reencontra-
a na sua unidade, ou seja, no conjunto do seu movimento, numa totalidade (Lefèbvre, 1974).

Desta perspectiva, o método de pesquisa é uma apropriação em pormenor da realidade estudada,


numa análise visando evidenciar as relações internas. Via o método dialético, o fenômeno
estudado deverá apresentar-se ao leitor de tal forma que ele o apreenda em sua totalidade. Para
tanto, necessárias se fazem aproximações sucessivas e cada vez mais abrangentes. Não se trata,
aqui, de uma totalidade que vai abarcar tudo e estaticamente, mas uma totalização em curso,
como quer Sartre, que se configura a cada relação estabelecida.

Lefèbvre observa que, antes de Marx, Descartes, Kant e Comte, já haviam contribuído para a
formulação do método dialético, mas, a todos, escapara a importância da descoberta do elemento
contraditório, das contradições: o positivo e o negativo, o proletariado e a burguesia, o ser e o
não-ser. Hegel a descobriu e Marx, sensibilizado por questões sociais concretas da sociedade
capitalista, o concretizou e o aprofundou.

Para Marx, o método não dispensa a apreensão, em si mesmo, de cada objeto. O método é um
guia, um caminho, uma orientação para o conhecimento de cada realidade. É preciso, portanto,
apreender as contradições peculiares, o seu movimento interno, a sua qualidade, as suas
transformações e irrupções; o método deve subordinar-se ao conteúdo, ao objeto, à matéria
estudada; permitir-se-á, assim, abordar eficazmente o estudo, captando o aspecto mais geral desta
realidade, nunca substituindo a pesquisa científica por uma construção abstrata (Lefèbvre, 1974).
Na crítica a Ludwig Feuerbach, Marx mostra o quanto o método dele não considerava o mundo
enquanto processo, enquanto matéria engajada num desenvolvimento incessante.

É neste momento que, em suas Teses sobre Feuerbach, mostra que a dialética dogmatizada vira
sectarismo, mistificação.

Preocupado em sintetizar as orientações básicas do método dialético, Lefèbvre (1975) apresenta


suas características fundantes:

dirigir-se à própria coisa; apreender o conjunto das conexões internas da coisa, de seus
aspectos; apreender os aspectos e momentos contraditórios, ou seja, apreender a coisa como
totalidade e unidade dos contrários; analisar os conflitos internos das contradições, o
movimento, a tendência; compreender que o real é relacional, uma interação insignificante
em determinado momento pode tornar-se relevante em outro; captar as transições, em geral,
trazem um componente crísico esclarecedor das contradições; não esquecer de que o
processo de conhecimento que vai do fenômeno à essência menos profunda à mais
profunda, é infinito, incessante; penetrar profunda e relacionalmente no conteúdo estudado,
apreendendo conexões e o movimento; fazer do pensamento um processo contínuo de
retomada e superação.

Faz-se necessário pontuar que Marx nunca esqueceu a perspectiva de classe que orientou as suas
pesquisas, estava aí o âmago das suas preocupações desreificantes e transformadoras. Ademais, o
corte entre Marx e seus predecessores é um corte de classe no interior da história da ciência.

Numa sociedade de classe, portanto nas suas raízes uma sociedade iníqua, é impossível fazer
ciência de forma imparcial, neutra ou desengajada.

Assim, enquanto instrumento de análise, enquanto método de apropriação do concreto, a


dialética enquanto método é uma prática crítica; crítica dos pressupostos, crítica das ideologias
e visões de mundo, crítica dos dogmas e preconceitos. A tarefa da dialética é essencialmente
crítica. Depreende-se daqui que o enraizamento sócio-político condiciona, inevitavelmente, toda
produção científica e ideológica (Silva & Silva, 1986). Neste sentido, o conhecimento tem
obrigatoriamente um caráter transformador.

De uma perspectiva epistemológica, o método dialético trata de uma proposta científica que se
contrapõe à concepção de conhecimento como algo definitivo, neutro, fechado e inflexível.
Contrapõe-se aos esquemas pré-estabelecidos e ao dogmatismo. Não é um ativismo, nem uma
improvisação desvairada, entende que a realidade social se cria e se recria num incessante
movimento. O objeto é visto na sua historicidade, na sua transformação, indo das partes ao todo
e vice-versa, do singular ao universal, da aparência à essência. O contexto e as ações contextuais
são fundamentais para vitalizar o método dialético, que jamais pode ser visto pelo ângulo de um
manual de instrução de pesquisa ou qualquer receita metodológica.

É na confluência entre uma antropologia não evolucionista, fenomenologia e marxismo que a


NSE vai problematizar noções como racionalidade, método, infância, educação, escola e,
principalmente, currículo.

É a partir do marxismo libertário da obra de Sartre, com sua ênfase no engajamento e na ação
libertária, que nasce a fonte de inspiração articuladora onde etnopesquisa e método dialético
formam um encontro de autêntica feição multirreferencial. No primeiro, afirma-se o sujeito, seu
universo subjetivo e sua ação instituinte. No segundo, a dinâmica social apreendida e vivida por
uma praxis transformadora, que não contenta-se em tematizar a construção social pela
consciência separada das condições objetivas da vida em sociedade, isto é, a sua materialidade.
Neste sentido, a crítica aponta sempre para a compreensão radical e a transformação estrutural,
no seio daquilo que foi o principal objeto das reflexões de Marx, a sociedade capitalista e suas
relações de produção e contradições.

Na interconexão entre o sujeito instituinte e culturalmente mediado e a crítica à sociedade


capitalista, seus mecanismos sociais hierarquizantes e de exclusão, a NSE promove a articulação
entre etnopesquisa e método dialético. Concretamente, é na tematização política do currículo que
predomina o corpus de estudos desta corrente do pensamento sócio-educacional britânico.

Quanto à pertinência da aproximação entre etnopesquisa e o método dialético, temos que as duas
abordagens, apesar de cultivarem pressupostos diferenciados, partilham alguns objetivos
semelhantes: a luta para superar a distância entre especialistas e os leigos; os intelectuais e as
massas e as formas mental e física de atividade. Estes são aspectos comuns tanto à abordagem
fenomenológica quanto à marxista. A idéia de que somos todos filósofos e intelectuais é também
uma noção marxista exposta na obra de Gramsci, bem como a noção de desreificação prática
(Sarup, 1978).

Tendo como seus principais representantes Michael Young, Basil Bernstein, G. Esland, N.
Keddie, a NSE entende que os saberes escolares são selecionados e distribuídos segundo
modalidades que deverão ser analisadas, apontando para sua desreificação. É um convite para
uma contínua elaboração de uma sociologia crítica dos saberes escolares e do currículo.

Vistos de um plano metodológico, os "novos sociólogos da educação", vão justamente privilegiar


os recursos da etnopesquisa, como a etnografia, a observação participante, o estudo de caso,
entrevistas abertas ou semi-diretivas, história de vida etc.

A.Coulon (1995) ressalta que uma das características marcantes da NSE é, com efeito, sua
vontade de analisar os processos escolares internos, dependentes das interações dos atores do
próprio interior do sistema escolar. Segundo Coulon, esta posição de pesquisa permite descobrir,
por exemplo, que os professores desempenham um papel mais importante do que, habitualmente,
lhes é reconhecido nos mecanismos de seleção e exclusão. Neste aspecto, o ator pedagógico
passa a ser quem julga e tem um papel instituinte na estruturação do contexto educacional.

Aqui estariam confluências capazes de inspirar, metodologicamente, a etnopesquisa e o método


dialético: os recursos da etnopesquisa são perfeitamente utilizáveis para a construção de um
corpus de conhecimento crítico sobre uma "dada" realidade, sem cair num modificacionismo
militante e bárbaro, distanciado da hermenêutica crítica, que critica mas compartilha.

Uma crítica da crítica pode ser vislumbrada também, a partir deste encontro, como por exemplo,
a desconstrução do que veio de um marxismo mecanicista, como o culto ao intelectual
messiânico, a uma dialética fortemente teleológica, a história logicamente previsível, onde a
dialogicidade, as interações, os assincronismos, a cotidianidade, pouco têm a dizer, e portanto,
não figuram como entidades do mundo dos humanos em sociedade.

"Escuta sensível" e contextualizada, conhecimento crítico e intervenção compartilhada, podem


assim, co-construir um encontro multirreferencial, que o sectarismo teórico-corporativista não
consegue imaginar, até porque a consciência da incompletude não faz-se realidade num corpus
de conhecimento em migalhas, que sempre se quis onisciente e onipotente.

Teoria crítica, ação comunicativa e etnopesquisa


Apesar de vários autores da pós-formalidade terem lutado contra o zeitgeist do racionalismo sem
alma, é a tradição crítica da Escola de Frankfurt que vai, na pluralidade singular das suas
históricas e inquietantes produções, afirmar uma teoria crítica onde o sujeito e sua subjetividade
são presenças irremediáveis.

Para os frankfurtianos, o programa iluminista levou ao desencanto do mundo (Horkheimer e


Adorno, 1985). Da perspectiva dos teóricos críticos, o saber produzido pelo iluminismo não
conduziu à emancipação e sim à técnica e à ciência moderna, que mantêm com seu objeto uma
relação ditatorial. A razão, que hoje se manifesta na ciência e na técnica, é uma razão
instrumental e repressiva. Há, nesta elaboração, uma objetividade cega e cínica. Horkheimer, por
exemplo, denuncia o caráter alienado da ciência e da técnica positivista, cujo substrato comum é
a razão instrumental. O que alertam os frankfurtianos é que, inicialmente, essa razão tinha sido
parte integrante da razão iluminista, mas no decorrer do tempo ela se autonomizou, voltando-se
inclusive contra as suas tendências emancipatórias.

Da perspectiva de Horkheimer e Adorno, a razão, sujeito abstrato em Kant e Hegel, converte-se


em uma razão alienada que se desviou do seu objetivo emancipatório original, transformando-se
em seu contrário, que é a razão instrumental, o controle totalitário da natureza e a dominação.

A dialética do esclarecimento "consiste em mostrar como a razão abrangente e humanística,


posta à serviço da liberdade e emancipação dos homens, se atrofiou, resultando na razão
instrumental" (Freitag, 1986).

Em Adorno, por exemplo, a razão instrumental é identificada com o positivismo defendido pelas
elaborações de Popper e o círculo de Viena, do qual faz parte o primeiro Wittgenstein. Sem
negar a competência intelectual destes opositores, Adorno salienta que a utilização da razão
instrumental pelo positivismo moderno gera, necessariamente, sua contestação, podendo levar à
sua autodestruição, na medida em que o positivismo não permite questionar as bases nas quais
funda-se sua lógica, achando nesta possibilidade um exercício de pura metafísica. Ao naturalizar
os processos sociais iníquos da sociedade capitalista, a produção científica advinda do
positivismo moderno não se percebe como saber interessado que tem uma moral e implicações
políticas e econômicas.

Ao analisar a dialética adorniana, Freitag (1986) assinala que o conceito de teoria, ao remeter a
um futuro melhor, remete, automaticamente, à dimensão da prática. Entretanto, a prática
positivista se reduz à prática do cientista limitado explicitamente à sua área de especialização. Da
mesma forma nos diz Freitag no que concerne ao conceito de crítica. Enquanto a crítica significa,
para Popper, a falsificação de uma hipótese dada, através de dados empíricos que demonstram o
contrário ou devido à descoberta de erros lógicos no processo dedutivo, a crítica significa, para
Adorno e os teóricos frankfurtianos, a aceitação da contradição e o trabalho permanente da
negatividade, presentes em qualquer processo de conhecimento.

O que é interessante notar é que a crítica da cultura, da racionalidade instrumental, do


autoritarismo e da ideologia, feita em um contexto plural e interdisciplinar, diria mesmo
multirreferencial, gerou perspectivas e categorias, relações e formas de investigação social que
constituem um recurso seminal para desenvolver uma teoria crítica das teorias e práticas
educacionais e dos fundamentos da pesquisa educacional.
Retomando a crítica do iluminismo, Adorno e Horkheimer vêm nos dizer, à propósito, que "uma
terra completamente iluminada irradia um triunfante desastre". Esses autores expressaram uma
crítica mordaz da fé inabalável do modernismo na promessa da racionalidade iluminista de
resgatar o homem das amarras da superstição, da ignorância e do sofrimento.

Retomando Marx, um dos seus grandes inspiradores na crítica à sociedade capitalista, os


frankfurtianos mostram os limites da sua concepção de razão, na medida em que enfatizou
exageradamente sua mediação no processo de trabalho e na racionalidade de troca que estava
tanto em sua força propulsora como em sua mistificação última. Adorno, Hokheimer e Marcuse
acreditavam, ademais, que o processo de racionalização tinha penetrado todos os aspectos da
vida cotidiana, seja nos meios de comunicação, na educação ou no trabalho. Assim, para a
Escola de Frankfurt, a crise da racionalidade está relacionada com as crises mais gerais na
sociedade como um todo e nas ciências, conseqüentemente. Horkheimer já nos alertara que "a
crise da ciência depende de uma teoria correta da situação social presente".

Da perspectiva de Giroux (1986), a Escola de Frankfurt definiu o positivismo em um sentido


amplo, como um amálgama de tradições diversas que incluíam o trabalho de Saint-Simon e
Comte, o positivismo lógico do Círculo de Viena, o trabalho inicial de Wittgenstein e as formas
mais recentes de empirismo lógico e de pragmatismo que dominam as ciências sociais no
Ocidente. Segundo este autor, embora a história dessas tradições seja complexa e cheia de
desvios e restrições, cada uma delas tem mantido o objetivo de desenvolver formas de
investigação social baseadas nas ciências naturais e nos princípios metodológicos de observação
através dos orgãos dos sentidos e quantificação.

Inspirados na afirmação de Nietzsche, de que "não é a vitória da ciência que é a marca distintiva
do século dezenove, mas a vitória do método científico sobre a ciência", os teóricos de Frankfurt
dizem que a supressão da ética na racionalidade positivista elimina a possibilidade de autocrítica,
ou, mais especificamente, de questionamento de sua própria estrutura normativa. "Os fatos ficam
separados dos valores, a objetividade solapa a crítica, e a noção de que a essência e a
aparência podem não coincidir se perde na visão positivista de mundo" (Giroux, 1986). Há,
neste ethos, uma celebração do mundo dos fatos e um culto à coleta e classificação de "dados".
Categorias históricas fundamentais para as ciências antropossociais como consciência,
autoconsciência, subjetividade e objetividade, aparência e essência, contradição, são
negligenciadas e vistas como epifenômenos.

Para Adorno, Marcuse, Horkheimer, Benjamim e Fromm o culto ao fato, um verdadeiro


fetichismo dos fatos, e o neutralismo de valores, serve como uma hegemonia ideológica que
impregna a racionalidade positivista com um conservadorismo político que o torna um
fundamento do status quo. Isto representa, portanto, mais do que um erro epistemológico, é uma
visão de mundo que alimenta uma episteme e uma praxiologia.

É meu objetivo, nesta elaboração, refletir a Escola de Frankfurt, mostrando sua pertinência
teórica para uma prática em etnopesquisa crítica. A partir deste aspecto, faz-se necessário
enfatizar a importância do chamado terceiro momento da elaboração do pensamento desta
"Escola", naquilo que foi a edificação teórica da ação comunicativa em Habermas.

Não permanecendo apenas nos âmbitos de uma teoria crítica da racionalidade instrumental,
Habermas cessa sua identificação plena com as posições de Adorno e Horkheimer, partindo para
a construção de uma teoria da sociedade como alternativa à teoria sistêmica.

Habermas cria em sua teoria da ação comunicativa a elaboração de um novo conceito de razão,
que nada tem em comum com a visão instrumental, mas que também transcende a visão
kantiana, de certa forma assimilada por Horkheimer e Adorno, ou seja, de uma razão subjetiva e
autônoma. Ao contrário, a razão comunicativa se constitui socialmente nas interações
espontâneas, na intersubjetividade, adquirindo maior rigor no que Habermas denomina de
discurso.

Desta forma, na ação comunicativa o interlocutor suscita uma pretensão de validade quando se
refere a fatos, normas e vivências, e existe uma expectativa que seu interlocutor possa, se assim o
quiser, contestar essa pretensão de validade de uma maneira fundada (Freitag, 1986).

Na razão comunicativa são fundamentais o questionamento e a crítica; são, aliás, elementos


constitutivos desta razão. Neste sentido, a dialogicidade seria um recurso incontornável. O que se
apreende daí é que a razão comunicativa encontrar-se-ia no ponto de intersecção de três mundos:
o mundo das coisas, o mundo social e o mundo subjetivo. Integram-se, ademais, duas óticas que
dão organicidade ao pensamento social de Habermas: a ótica sistêmica e a do mundo vivido. Não
se perde em Habermas o caráter relacional entre a estrutura e o mundo vivido, ao qual Habermas
deu a denominação cunhada por Husserl de Lebenswelt.

Freitag sintetiza esta elaboração dizendo que "esta visão de dentro da sociedade permite
compreendê-la a partir do cotidiano de seus atores, de suas vivências e experiências
partilhadas" (Freitag, 1986:61).

Quanto à objetividade das relações sociais, obtém-se quando o compartilhar relacional dos atores
sociais chega a vivências comuns que constituem sua memória e suas histórias coletivas. A
objetividade seria uma construção a partir de um coletivo social.

Para uma démarche de pesquisa interessada nos significados socialmente edificados e na


comunicabilidade, Habermas pode ser uma significativa fonte de inspiração teórica. Para
Habermas, os significados surgem num processo dialógico, onde atores atribuem significados às
coisas, pessoas e suas relações, onde a relação ego e alter é incessantemente negociada.
Definitivamente, este pensador insurge-se contra o significado autoritário cultivado pelas teorias
sistêmicas e mostra a incompatibilidade entre um sistemismo "duro" e o dinamismo da
construção de significados em sociedade.

Para Habermas, é no âmbito do social e do cultural que deve acontecer o questionamento e a


revalidação dos valores e normas. Ao reconquistar o terreno perdido, a razão comunicativa
descolonizará o mundo vivido e a capacidade de agir comunicativamente de todos os atores.

Vê-se, portanto, que em Habermas, como em Marx, uma ressignificação crítica da razão, e um
apontar dialético para uma nova racionalidade.

Da minha perspectiva, o racionalismo habermasiano, sua visão hermenêutica e relacional da


realidade social, sua crença na dialogicidade crítico-constitutiva, tornam-se um subsídio dos mais
significativos para uma fundamentação multirreferencial da etnopesquisa crítica dos meios
educacionais, naquilo que esta maneira de pesquisar traz como característica básica, o interesse
pela ação e pelo significado, pelos processos e construções interacionais e dialógicos, e um
compromisso com uma razão emancipatória na práxis educacional. Ademais, cultiva um tipo de
esperança na possibilidade instituinte e emancipatória do conhecimento.

Temos consciência da amplitude e complexidade do pensamento de Habermas, notadamente na


compreensão da sociedade moderna e, por conseqüência, do Estado moderno, entretanto, o
objetivo aqui foi demonstrar a existência de mais uma fonte de inspiração acionalista e crítica, de
valor relevante para os fundamentos de uma etnopesquisa crítica dos meios educacionais.

Propondo a reconstrução crítica da modernidade e, consciente das suas patologias ao mesmo


tempo epistemológicas e sociais, Habermas nos oferece um pensamento fecundo para um tipo de
pesquisa que, sem perder o rigor, nem confundi-lo com rigidez, produz conhecimento científico
eminentemente dialógico.

Algumas considerações conclusivas


Colocar em reflexão as chamadas abordagens acionalistas-semiológicas em ciências
antropossociais, face às suas pertinências teóricas para a etnopesquisa crítica, traz no seu bojo
uma preocupação forte de desconstruir a possibilidade de uma unicidade teórica absoluta, e, ao
mesmo tempo, de mostrar proximidades e identificações nem sempre alinhadas. É necessário
frisar que em nenhum momento persegui complementarismos irrefletidos, até porque esta obra
nunca visou qualquer tipo de ecletismo teórico. Possibilitei, acima de tudo, a expressão de
autores que, compondo comigo um olhar que se quis pertinente e relevante, alimentou saberes
seminais, mas nem sempre convergentes. Das fontes primeiras de mobilização inspiratória
acionalista em ciências antropossociais, até o moderno interacionismo, a dramaturgia social, as
abordagens do desvio, a etnometodologia, o construcionismo social, a NSE, ou mesmo a
psicologia sócio-histórica, percebe-se o que eu chamaria de uma plural cumplicidade teórico-
metodológica.

Já como uma ponte para o nosso próximo capítulo, podemos notar que a pluralidade teórico-
metodológica, que arquitetam os mentores do acionalismo interpretacionista, presenteia a tantos
quantos queiram entrar no âmago das problemáticas educacionais, com um instrumento prenhe
de possibilidades, para ir ao encontro compreensivamente de construções encarnadas. A
indicação irremediável de ir a campo para presenciar e captar os significados das práticas, as
recomendações insistentes de se mergulhar nas interações, emergindo com a noção de mundo
construído, de construções intersubjetivas, o entendimento de que a ordem social não pode ser
constituída senão por sujeitos/atores concretos, dotados de uma inteligibilidade culturalmente
mediada, mobilizam para o processo de conhecimento das realidades educacionais uma
démarche científica que entendo ser a possibilidade única de um verdadeiro encontro com as
artes, as obras e os universos simbólicos nelas imbricados, e que, cotidianamente, edificam-se
nos âmbitos das realizações educacionais. Compõem este corpus teórico-epistemológico
fundamentos de recursos pertinentes para entrar num mundo e numa vida que muito se sabe, mas
pouco se conhece. Em termos investigativos, foram tocados, na maioria das vezes, por
epistemologias e metodologias que os abordaram de forma en passant, face ao domínio histórico,
nos meios acadêmicos, da inspiração macroestrutural e tecno-funcionalista, fascinados pelos
grandes estudos nomotéticos e normativos. As abordagens acionalistas vêm, em realidade,
neutralizar o beijo da morte plantado pelas práticas de pesquisa academicistas em relação às
construções vitais do dia-a-dia. Ao ausentar-se da vida escolar, as ciências da educação
construíram uma amnésia onde a escola foi subsumida num estruturalismo sem alma e
imobilizador, retirando da cena educacional, de uma forma abstrata, aqueles que autenticamente
arquitetam e edificam o fenômeno educacional e, portanto, a própria instituição escolar.
Capítulo III - Métodos em etnopesquisa
Na ausência do outro, o homem não se constrói homem.

Vygotsky

Os pesquisadores são seres humanos que estudam problemas humanos de maneira humana.

Rodwell

Concordando com Cicourel, uma das primeiras tarefas do cientista social é clarificar o conteúdo
de sua linguagem dissertativa e explicar a teoria que dá feição e dinamiza seus instrumentos e os
chamados dados da sua pesquisa, fazendo uma espécie de desnudamento das inspirações que
orienta suas ações de pesquisador.

No que se refere aos recursos metodológicos aqui referidos, à medida em que minhas
inquietações com relação às produções teóricas que discorriam sobre a questão educacional
foram surgindo, bem como com relação à minha própria prática, inquietações emergiram da
necessidade de busca que tinha de respostas às minhas próprias indagações: qual a abordagem
mais conseqüente para minhas inspirações e práticas em emergência? Qual a maneira mais
pertinente de captar as realidades educacionais que desafiava-me enquanto necessidade de
compreensão?

Queria um instrumental que, sem perder de vista as perspectivas dos indivíduos em atividade,
mediasse a apreensão desse âmbito também em relação ao contexto simbólico/ institucional e
cultural por eles construídos. Um dos pressupostos básicos que veio nortear esta minha
caminhada é que uma ciência empírica pressupõe a existência de um mundo empírico disponível
para observação, estudo e análise. Este mundo empírico deve representar sempre o ponto central
de preocupação do pesquisador, o ponto de partida e o ponto de chegada da ciência empírica.
Entretanto, é necessário que não se confunda esta posição com outras de corte positivista. Ao
contrário delas, esta postura se aproxima e aceita um dos postulados fenomenológicos de que o
mundo da realidade existe somente na experiência humana e que ele aparece sob a forma de
como os seres humanos vêem este mundo.

Segundo esta forma de compreender a pesquisa, a tarefa do estudo científico deve, acima de
tudo, levantar compreensivamente o véu que cobre a área ou a vida das pessoas e dos grupos que
alguém se propõe a estudar. Isto só pode ser efetuado mediante uma aproximação com a área, e
de uma escavação profunda através de um estudo cuidadoso (Haguette, 1987). A propósito,
Blumer(1969) reforçou esta posição indagando como pode alguém aproximar-se da área e
escavá-la. Não é uma questão simples a de aproximar-se de determinada área e olhar para ela,
ressalta o autor:

É um trabalho exaustivo que requer uma ordem elevada de tentativa cuidadosa e honesta;
imaginação criativa e disciplinada; recursos e flexibilidade no estudo; uma ponderação de
resultados e uma constante disposição para testar e reorganizar as visões e imagens da área.
Podemos afirmar, com Blumer, que os métodos, em etnopesquisa, lutam pelo respeito à natureza
do mundo empírico habitado por homens, e pela organização de procedimentos metodológicos
que reflitam este respeito ou mesmo esta sensibilidade.

Natureza etnográfica e clínica das etnopesquisas


A opção da etnopesquisa se evidencia pela etnografia semiológica como recurso metodológico
básico e suas especificidades clínicas ou qualitativas. Tais especificidades do método etnográfico
nos remetem, de alguma forma, à noção de pesquisa qualitativa, podendo assumir esta noção
conotações diferentes, dependendo da orientação teórica de quem a utiliza. Tomando de
empréstimo as elaborações de Ludke e André(1986) sobre as pesquisas que priorizam os âmbitos
qualitativos da educação, podemos dizer que as etnopesquisas apresentam as seguintes
características metodológicas:

tem o contexto como sua fonte direta de dados e o pesquisador como seu principal
instrumentos; supõe o contato direto de pesquisador como seu principal instrumento; supõe
o contato direto do pesquisador com o ambiente e a situação que está sendo investigada; os
dados da realidade são predominantemente descritivos, e aspectos supostamente banais em
termos de status de dados são significativamente valorizados.

Nestes aspectos, valoriza-se intensamente a perspectiva qualitativa-fenomenológica, que orienta


ser impossível entender o comportamento humano sem tentar estudar o quadro referencial e o
universo simbólico dentro dos quais os sujeitos interpretam seus pensamentos, sentimentos e
ações.

Praticando uma ciência social dos fatos miúdos e muitas vezes obscuros do dia-a-dia, a descrição
etnográfica(a escrita da cultura), não consiste somente em ver, mas fazer ver, isto é, escrever o
que se vê, procedendo à transformação do olhar em linguagem, exigindo-se uma interrogação
sobre a relação entre o visível e o dizível ou, mais exatamente, entre o visível e o
lizível(Laplatine, 1996). O pesquisador etno é uma pessoa que chega totalizado e totalizando-se
para realizar seu fieldwork; não deixa em seu bureau suas convicções, sua itinerância, como
estudioso de fenômenos humanos, bem como defronta-se arduamente enquanto sujeito/pessoa
com suas próprias observações, pondo em evidência suas implicações, consubstanciadas nas suas
motivações, perspectivas e finalidades. Compreende que para suspender preconceitos é
necessário tê-los explícitos.

Portanto, na prática etnográfica do etnopesquisador, faz-se mister distender o tecido da


consciência e do mundo, para fazer aparecer os fios que são de uma extraordinária complexidade
e de uma "arânea fineza", face às multirreferências que sintetizam(Dartigues,1992).

A prática do trabalho de campo


Para Buford Junker(1960), o trabalho de campo significa observar pessoas in situ, isto é:
descobrir onde estão, permanecer com elas em uma situação que, sendo por elas aceitável,
permite tanto a observação íntima de certos aspectos do seu comportamento, como descrevê-lo
de forma útil para a ciência social, sem prejuízo para as pessoas observadas. Engendra-se aqui o
estudo in vivo de como se dinamizam as construções cotidianas das instituições humanas.

Assim, a ciência social requer sempre arte na observação e análise, e a observação de campo é
mais que uma etapa preparatória para as grandes pesquisas estatísticas. Constitui-se, na realidade,
como quer Junker, uma parte introdutória à ciência social. Junker entende que é...

preciso aprender a obter novos dados e a obtê-los em grande variedade de ambientes,


conforme é exigido pelos novos problemas que se deseja conhecer e/ou resolver. Outras
formas de resolver esta dialética incluem ser participante por algum tempo e relatar, por
outro, participante privado e relator público ou participante público e relator secreto. Todas
as modalidades são praticadas. Todas elas possuem seus defeitos morais, pessoais e
científicos, mas a dialética jamais fica resolvida plenamente. Para se fazer boa observação
social, é preciso estar junto às pessoas, vivenciando suas vidas, ao mesmo tempo vivendo a
própria vida e relatando.

Aqui, a informação é o registro da vida ao vivo, que, entre alguns pesquisadores de campo, por
vezes é descuidadosamente denominada de "dados crus".

Para Junker, os dados são elementos sistematicamente traduzidos e servem para se acessar as
raízes do conhecimento nas ciências sociais.

No pensamento dos pesquisadores de campo, quando examinamos as possíveis contribuições


para o conhecimento que resultam do trabalho de campo na ciência social, esse ideal nos auxilia
a estabelecer algumas diretrizes para o pensamento crítico independente. Assim, tudo que
descreve as operações do escritor ou expositor pode ser objeto de indagações. Por exemplo,
quem era o pesquisador de campo aos olhos das pessoas que observou? Que preocupações
teóricas levou com ele para a situação? Que aconteceu durante o estudo, tanto para ele como para
os outros no sentido intelectual e pessoal? Quem era e é o pesquisador de campo em seu próprio
julgamento, bem como aos olhos de sua audiência atual? Que operações analíticas usou ele para
transformar informações e para sintetizar seus dados, a fim de traduzi-los em declarações que
tenham seus próprios lugares numa matriz de conhecimentos a respeito da sociedade? (Junker,
1960).

J. Arensberg(1954), quando ressalta a natureza da exploração in vivo e sua característica de não


prejudicar a descoberta de fatores relevantes pelo isolamento prematuro de causas particulares,
mostra a pertinência desta démarche, vinculando-a ao próprio dinamismo da realidade. Ao longo
de estudos que empreendi e empreendo como pesquisador de campo, o que impressiona
justamente é o caráter fortemente ideográfico da informação in situ. Isto é, o trabalho de campo
implica numa confrontação pessoal com o desconhecido, o confuso, o obscuro, o contraditório, o
assincronismo. Ademais, além dos sustos com o inusitado sempre em devir, o campo tem uma
resistência natural que demanda uma dose de paciência considerável face, por exemplo, às
rupturas com ritmos próprios do pesquisador ou determinados prazos acadêmicos.

Atender a um ritmo determinado por um prazo acadêmico nem sempre é compatível com os
adiamentos constantes de um encontro marcado com um líder comunitário, que no limite das
suas atribuições, está mergulhado em compromissos tão importantes quanto urgentes. Tão pouco
com a falta de tempo de uma professora comunitária da favela, que entre aulas e tarefas de
planejamento escolar, tem que correr para casa para verificar se seu filho recém-nascido está
bem, ou se o outro, em idade de conquista de espaços, não caiu morro abaixo ou dentro do
mangue com maré cheia. Na realidade, o trabalho de campo de inspiração qualitativa é uma certa
aventura pensada sempre em projeto, e que demanda constantes retomadas. Não lida com objetos
lapidados nem com a procura de regularidades.

A depender dos objetivos e do relacionamento previsto do pesquisador com aqueles com quem
ele trabalha, o método de campo requer um grande dispêndio de tempo para aproximar-se
daqueles para quem podemos não ser familiares. Assegurar e manter as relações com pessoas
com quem temos uma pequena afinidade pessoal, fazer copiosas notas daquilo que normalmente
parecem ser acontecimentos mundanos do cotidiano, incorrer às vezes em certos riscos pessoais
no trabalho de campo e, ainda, se isto não for suficiente, semanas e meses de análises que se
seguem ao trabalho de campo, é, na realidade, a rotina do etnopesquisador. Para autores como
May(1993), entretanto, pesquisadores que estão preparados e dispostos a viver esta aventura
pensada podem verificar que este é um método que mais recompensa, ao produzir fascinantes
insights nas vidas e nas relações sociais das pessoas e, muitas vezes, contribui para preencher as
lacunas entre a compreensão das pessoas sobre estilos alternativos de vida e os preconceitos que
a diferença e a diversidade encontram.

Nos estudos de campo, os fatores não-oficiais assumem grande importância, ao contrário das
pesquisas que valorizam os dados substantivos. Neste sentido, para se obter dados que
caracterizam a complexidade dos grupos, organizações e instituições em educação, por exemplo,
as informações não-oficiais terão grande importância. Elas facilitam o entendimento real dos
procedimentos burocráticos quase sempre reificados, bem como questões como a posição do
observador em relação aos atores a serem estudados; os meios de acesso e como ele afetará suas
relações com os sujeitos; como se realizou o contato inicial. Estas são situações cruciais para o
entendimento das conclusões do estudo.

Desta forma, se é correto supor que as pessoas, na sua vida cotidiana, ordenam seu meio,
atribuem significados e relevância a objetos, fundamentam suas ações sociais em racionalidades
do senso-comum, não se pode fazer pesquisa de campo ou usar qualquer outro método de
pesquisa nas ciências antropossociais sem levar em consideração o princípio da interpretação
contextualizada. Em realidade, as pesquisas de campo de inspiração qualitativa desempenham
uma verdadeira " garimpagem" de expressões e sentidos, e estão interessadas, acima de tudo,
com o vivido daqueles que os instituem.

O acesso ao campo de pesquisa

Uma vez que o projeto de uma etnopesquisa esteja pronto e socializado o suficiente- muitas
vezes já no meio social onde se realizará o estudo- faz-se necessário ter acesso ao campo
propriamente dito. Este é um momento ao qual poucos se detêm como deveriam, enquanto
reflexão metodológica. A fecundidade dos resultados de uma etnopesquisa vai depender e muito
do tipo de acesso conquistado. É fundamental a disponibilidade das pessoas para informar,
deixar-se observar, participar ativamente da pesquisa, e até mesmo para co-construir o estudo
como um todo.
Sabemos, a partir da idéia simples, mas significativa, que a realização de um estudo em
etnopesquisa dos meios educacionais necessita do acesso minucioso e denso no meio social
escolar e seus atores, assim como do acesso à cotidianidade natural das situações onde se dá a
prática pedagógica.

Há que se construir uma confiança recíproca, pouco importando o quanto o pesquisador seja
familiar ou não em relação aos sujeitos do estudo. É necessário estabelecer claramente, desde o
início, que a pesquisa visa compreender a situação como ela se apresenta, e que as pessoas
jamais serão incomodadas ou prejudicadas nos seus afazeres e relações, exceto se houver uma
demanda vinda dos membros do grupo envolvido na pesquisa.

Mesmo com o processo de confiança construído, isto não exime o pesquisador de ser tentado ou
seduzido pelos diversos interesses ideológicos e de toda ordem, que permeiam as instituições e
relações educativas. Saber transitar enquanto pesquisador interessado em ouvir entre estas
seduções é uma sabedoria necessária para que "as portas não se tranquem" definitivamente, por
rejeições ou transferências nada desejáveis para um etnopesquisador dos meios educacionais.

Honestidade, capacidade de persuasão quanto à importância social da pesquisa, compromisso


ético, despojamento de vaidades acadêmicas, sabedoria em transitar pelas seduções que emergem
das relações institucionais, construção de identidades, se possível, e disponibilidade para uma
contra-partida efetiva, paralelamente, e/ou partir da própria pesquisa, parecem-nos alguns pontos
importantes para se conseguir um acesso capaz de possibilitar uma etnopesquisa densa e válida,
enquanto estudo em profundidade de uma realidade.

Parece-nos importante salientar que antes mesmo do acesso ao campo de pesquisa, é necessário
se construir vínculos com pessoas capazes de mediar encontros, viabilizar o acesso, assim como
trabalhar os possíveis choques culturais que poderão existir nos primeiros contatos. Informar-se
em detalhe sobre o contexto da pesquisa nunca é uma recomendação insignificante no que se
refere à construção de uma etnopesquisa.

Numa das últimas pesquisas que realizei, o acesso foi construído via as lideranças da instituição
pesquisada (sem com isso firmar quaisquer compromissos ideológicos com pessoas específicas),
assim como a estada em campo ficou condicionada a uma contra-partida de trabalho efetivo
numa área de necessidade comunitária, durante todo o tempo que eu permaneci pesquisando.
Sensibilidade cultural, franqueza e compromisso ético são ingredientes fundamentais para o
saber chegar e o saber sair numa pesquisa de campo.

Estudo de caso. A busca da densidade significativa


Tomando a tradicional démarche dos estudos pontuais, temáticos, o estudo de caso muitas vezes
se consubstancia em estudo sobre casos, quando numa só investigação faz-se necessário
pesquisar mais de uma realidade, sem, entretanto, perder-se a característica pontual e densa
destes estudos(Macedo, l995). Necessário se faz, ademais, reafirmar que tratamos aqui dos
estudos pontuais qualitativos, já que existem estudos de caso com preocupações puramente
quantitativas e/ou substantivas. Conseqüentemente, avaliamos oportuno arrolar algumas
características que dão feições qualitativas a esta opção metodológica: os estudos de caso visam
à descoberta, característica que se fundamenta no pressuposto de que o conhecimento não é algo
acabado uma vez por todas, haverá sempre um acabamento precário, provisório, portanto; o
conhecimento é visto como algo que se constrói, se faz e se refaz constantemente. Assim sendo,
o pesquisador estará sempre buscando novas respostas e novas indagações no desenvolvimento
do seu trabalho; valorizam a interpretação do contexto; buscam retratar a realidade de forma
densa, refinada e profunda, estabelecendo planos de relações com o objeto pesquisado,
revelando-se aí a multiplicidade de âmbitos e referências presentes em determinadas situações ou
problemas; usam uma variedade de informações, assim, em desenvolvendo um estudo de caso o
pesquisador usa uma variedade de dados coletados em diferentes momentos, em situações
variadas e com uma variedade de tipo de informantes; podem revelar experiência vicária e
generalização naturalística sem preocupações nomotéticas; apresenta flexibilidade para
representar os diferentes e às vezes conflitantes pontos de vista e ações presentes numa situação
social, portanto, cultiva-se o pressuposto de que a realidade pode ser vista e construída sob
diferentes perspectivas(Lüdke e André, 1986; Haguette, 1987; Macedo, 1995).

Assim, o estudo de caso tem por preocupação principal compreender uma instância singular,
especial. O objeto estudado é tratado como único, ideográfico(especial, singular) mesmo
compreendendo-o enquanto emergência molar e relacional, isto é, consubstancia-se numa
totalidade composta de, e que compõe outros âmbitos ou realidades. Desse modo, a questão
sobre o caso ser ou não típico, isto é, empiricamente representativo de uma população
determinada torna-se inadequado; o objeto não é recortado por uma amostragem com
preocupações nomotéticas, já que cada caso é tratado como tendo um valor próprio. Além disso,
em face da inerente flexibilidade dos estudos pontuais, da abertura que cultiva face ao inusitado,
os casos estudados vão constituir teorias em ato, impregnadas dos aspectos inerentes à
temporalidade da emergência complexa das "realidades vivas".

Busca-se, ademais, nos estudos de caso de inspiração fenomenográfica, a pertinência do detalhe


que o edifica e da singularidade que o marca, identifica-o e referencializa-o, sem cair nos
regularismos e formismos das perspectivas tecno-funcionalistas.

Faz-se necessário ressaltar que em muitas etnopesquisas onde mais de uma realidade é estudada
pontualmente, lança-se mão do denominado estudo sobre casos ou multicaso. Preocupados em
resguardar a natureza ideográfica e relacional destes estudos, evita-se a mera comparação,
construindo-se, por outro lado, relações contrastantes e totalizações onde o movimento é a
principal característica.

A observação e a presença do olhar senso-analítico


Sabe-se que é inerente à observação direta de características qualitativas chegar o mais perto
possível da perspectiva do sujeito, tentando apreender sua visão de mundo ou mesmo dos
significados que atribuem à realidade, bem como às suas ações. A experiência direta
compreendo, é sem dúvida o melhor "teste de verificação" da ocorrência de um determinado
fenômeno.

Faz-se necessário frisar, ainda, que o processo de observação não se consubstancia num ato
mecânico de registro. Apesar da especificidade da função do pesquisador que observa, ele está
inserido num processo de interação e de atribuição de sentidos. Goffman(1983) nos diz que
quando um indivíduo chega à presença de outros, estes, geralmente, procuram obter informações
a seu respeito ou trazem à baila as que já possuem. É com base nas evidências apreendidas que
começa o processo de definição da situação e o planejamento das linhas de ação. À medida que a
interação progride, ocorrerão, sem dúvida, acréscimos e modificações no estado inicial das
informações.

Aqui, as particularidades ligadas às observações participantes são significativas na medida em


que determinadas concepções de investigação pleiteiam participações densas no sentido de uma
intensa impregnação do pesquisador pelas práticas dos atores e pelos contextos onde se edificam
e edificam suas instituições. Neste aspecto, alguns níveis de participação são pleiteados a partir
do grau de envolvimento necessário à abordagem do objeto, ou mesmo da inspiração teórico-
epistemológica do pesquisador. É necessário pontuar, por outro lado, que é o objeto de pesquisa
que vai fornecer as evidências capazes de fomentar uma decisão quanto à dimensão do período
de observação e o grau de envolvimento necessário. Neste âmbito, fica mais significativo ainda o
domínio que o pesquisador tem da sua temática e das nuances por ela produzidas na sua
complexidade natural.

No que se refere aos períodos de participação, em algumas pesquisas pode ser interessante haver
diversos períodos curtos de observação para verificar mudanças havidas num determinado
programa ou no seu dinamismo ao longo do tempo. Em outros estudos, pode ser mais adequado
concentrar as observações em determinados momentos, digamos no início ou no final de cada
período ou sub-período escolar. Um exemplo interessante é o estudo de S. Ball "Initial
Encounters in the Classroom and Process of Establishment", citado por Coulon(1993), quando o
autor demonstra que seu objeto de investigação dependeu muito do período escolar onde as
observações se deram.

Em geral, o processo de registro dos dados é visto como maçante, entretanto, para Lofland e
Lofland(1984), se falta ao pesquisador um laço emocional em relação à pesquisa, a qualidade do
projeto(e mesmo sua conclusão) pode estar arriscada. Para estes autores, isto não está assegurado
somente pelo comprometimento, mas também pela qualidade das observações do pesquisador,
das notas de campo e das habilidades analíticas.

As notas de observação

No que se refere às notas de campo, muitos pesquisadores preferem, além de utilizar pequenos
blocos de notas, usar folhas pautadas com largas margens dos lados para suas anotações. Tais
margens permitem que sejam destacadas observações particulares sobre aquilo que seja de
interesse, escrever notas analíticas, ou anotações para o próprio pesquisador sobre um evento ou
relação que se quer investigar com mais profundidade, ou, ainda, outras leituras sobre o tema que
tenha sido observado, ou que tenha surgido de suas observações.

Para Lofland & Lofland(1984), uma anotação particular e um sistema de arquivo para as notas
são importantes. Por exemplo: palavras-chave para despertar a memória; marcas diferentes para
citações, indicando citações textuais ou parafraseadas; tópicos e eventos em arquivos individuais;
tópicos teóricos para o próprio pesquisador, além de qualquer dado suplementar, na forma de
documento, literatura ou pesquisas sobre o assunto.
Bruyn(1966) denomina de "adequação subjetiva" o método pelo qual o pesquisador avança sua
compreensão das anotações realizadas durante a observação, bem como para validar a pesquisa.
Para isso, apresenta seis indicadores para se alcançar esta "adequação".

O tempo seria o primeiro indicador. Assim, quanto mais tempo o observador despender com o
grupo, maior será a adequação alcançada. É o tempo que vai dizer sobre o quão profundamente,
por exemplo, as pessoas se sentem a respeito de certos assuntos. É o tempo que vai dizer sobre o
quanto, em uma cultura, é preciso para que uma influência de fora se torne parte significativa das
vidas das pessoas etc. Um outro indicador é o lugar. No lugar, atualizam-se as ações, dá-se o
pulsar cotidiano da vida das pessoas que edificam as práticas.

O terceiro indicador são as circunstâncias sociais. É necessário viver as circunstâncias que o


grupo experiencia, observar as reações organizadas ou não, as estratégias construídas, os
conflitos instituídos. O quarto indicador é a linguagem. Isto é, quanto mais o pesquisador estiver
familiarizado com a linguagem do meio social investigado, mais apuradas podem ser as
interpretações sobre este meio. É interessante lembrar do conceito de "membro" desenvolvido
por Garfinkel, quando o que define esta condição, é o domínio da linguagem natural. Faz-se
necessário frisar, por outro lado, que a linguagem aqui toma o sentido de comunicação em toda a
sua amplitude e todo o seu poder constitutivo. O quinto indicador é a intimidade. Poderíamos
dizer que os procedimentos de observação inerentes à etnopesquisa são, em geral, intimistas. Isto
prescreve que quanto mais o observador envolver-se com os membros do grupo, mais estará
capacitado para compreender os significados e ações que brotam da cotidianidade vivida por
estes. É interessante que o pesquisador adentre cada vez mais no mundo dos bastidores, nos
labirintos das relações, para, a partir desta experiência, compreender em profundidade.

E, finalmente, tem-se o que Bruyn chama de consenso social. Uma espécie de pattern que o
pesquisador extrai a partir dos sentidos que permeiam e perpassam as práticas dentro da cultura.
Esta habilidade é ajudada por se estar por um bom tempo exposto à cultura, anotando, sob
condições as mais diversas. Como nos indica Hughes, os etnopesquisadores atingem a
compreensão quando eles conhecem as regras da cena social e como são construídas e mantidas.
Chega-se, assim, por um processo interpretativo, à natureza da ordem social estabelecida, e
estabelecendo-se.

É importante reafirmar que em todo este processo impõe-se uma constante reflexão sobre os
caminhos e os resultados obtidos durante a investigação. Neste sentido, a disponibilidade para a
retomada é uma regle d'or das observações em etnopesquisa.

A observação participante. Pressupostos e prática

É notório como a observação participante, exercitada de início como predominantemente um


recurso metodológico, adquire, a posteriori, um tal status a ponto de atrair para si uma densidade
teórica que transcende uma simples posição de recurso em metodologia. Uma das bases
fundamentais da etnopesquisa, a observação participante termina por assumir sentido de
pesquisa participante tal o grau de autonomia e importância que assume em relação aos recursos
de investigação de inspiração qualitativa.

Uma das bases de argumentação contidas nos pressupostos epistemológicos da observação


participante(OP) é que a ciência social é um produto do intelecto humano que responde a
necessidades concretas de determinado momento histórico. Logo, ela é também histórica,
contextualizada na sua inspiração filosófica, teórica, metodológica e heurística. Tais implicações
são, em última instância, avaliadas por homens que formam uma comunidade de valores, que
fabricam uma política de sentidos, que historicamente se convencionou chamar de comunidade
científica. Enquanto homens, atores sociais, os cientistas possuem interesses, motivações,
emoções, superstições, cultivam mitos e, portanto, vivenciam um imaginário socialmente
construído. Enquanto atores, são membros de uma determinada classe social, representam um
gênero, um grupo de idade, uma etnia, um grupo profissional e algumas instituições. E são estes,
com seu campo relacional, que definem o "campo do científico"(Haguette, 1987). Desta forma,
nem a ciência é neutra, tampouco a forma de produzi-la. A ciência não é neutra porque seus usos
e frutos são apropriados por alguns segmentos, e não por todos, bem como transformou-se em
instrumento de regulação social em benefício de um determinado status quo. Conseqüentemente,
a pretensa neutralidade política da ciência não pode servir de garantia de cientificidade. A falsa
neutralidade da ciência combina-se à falsa neutralidade do seu método, ou métodos,
particularmente nas ciências sociais.

Neste veio, o campo da subjetividade na ciência não pode ser considerado um mero
epifenômeno, tampouco o das ideologias são, em todos os momentos da produção científica,
produtores de critérios determinantes dos resultados alcançados. É aqui que o distanciamento
arbitrário entre sujeito e objeto representou um verdadeiro processo político de apartheid na
história do conhecimento científico. Neste sentido, o envolvimento deliberado do investigador na
situação da pesquisa é não só desejável, mas essencial, por ser esta forma a mais congruente com
os pressupostos da OP. Entretanto, esta posição não pode ser unilateral, a população pesquisada
tem que se envolver na pesquisa, de forma que pesquisadores e pesquisados formem um corpus
interessado na busca do conhecimento: o conhecimento é gerado na prática participativa que a
interação possibilita. Trata-se de um processo mutuamente educativo pela pesquisa, na medida
em que o saber do sensocomum e o saber científico se articulam na busca da pertinência
científica e da relevância social do conhecimento produzido. Assim, a OP torna-se um
instrumento significativo para se realizar a transformação do modelo de submissão da ciência aos
diversos domínios iníquos, a quem há muito vem servindo.

A partir destes argumentos, a OP cultiva algumas pretensões de política científica: cultivar o


desejo originado da urgência de se ter uma ciência antropossocial conectada e crítica, que seja
tanto humilde quanto realista; relacionar a pesquisa da universidade com o campo da realidade
concreta e reduzir as distâncias entre sujeito e objeto de estudo. Com esta práxis, o fazer
científico assume uma dimensão que aponta concretamente para a democratização do saber ao
cultivar pautas e demandas sensíveis às problemáticas e clamores da sociedade, entendida aqui,
como de princípio, uma organização comunitária, como imaginou Marx. O papel político da
ciência e o compromisso ético-político do pesquisador são âmbitos irremediáveis a partir deste
ethos de pesquisa exercitados pelos observadores participantes implicados.

Os pressupostos da OP asseguram que a ciência social não é detentora de valores absolutos por
ser produzida por homens situados historicamente. Desta perspectiva, seus postulados são tão
dinâmicos quanto a própria realidade mutante que ele estuda e explicita, isto é: que os cânones
do método científico formal – neutralidade, objetividade, validade, confiabilidade, poder de
generalização, comprovação, refutação etc. – não são necessários nem suficientes para definir a
cientificidade do método. Assim é que praticantes da OP argumentam que a linha demarcatória
entre ela e a pesquisa formal não está nem na capacidade de produzir mudanças, nem na
capacidade de produzir conhecimentos, mas na capacidade de solucionar problemas de grupos
sociais com demandas sociais relevantes.

No que se refere à própria noção de participação, três elementos constitutivos brotam como
fundamentais: o processo de investigação, de educação e de ação(Haguette, 1987). Permeia aí a
idéia de que a separação entre sujeito e objeto da pesquisa, cultivado pelos paradigmas
normativos, não é exercitada, uma vez que a distância entre os dois é vista como prejudicial à
própria geração de conhecimento. A intervenção do pesquisador no meio é condição também
irremediável do conhecimento, assim como a visão da população sobre a própria pesquisa. Desta
forma, a participação é uma ação reflexiva conjunta que, ademais, na OP da pesquisa-ação,
transforma-se também num processo orgânico de mudança, cujos protagonistas são os
pesquisadores e a população interessada na mudança. Isto implica também numa verdadeira
prática multirreferencial em ciências antropossociais, na qual a sociologia, a psicologia, a
história, a antropologia, a economia e a geografia se articulam na ação do pesquisador.

É bom que se diga que, ao fazer etnopesquisa, o engajamento é usado e compreendido como uma
vantagem. É com Hammersley e Atkinson(1983) que fica afirmado o fato de que se tornar parte
do mundo social que estudamos não é uma matéria de compromisso metodológico, é um fato
existencial. É neste veio que etnopesquisadores têm esboçado, freqüentemente, suas próprias
biografias no próprio processo de pesquisa(Macedo, 1984; 1995). Aqui, o próprio equipamento
cultural é utilizado de forma reflexiva para compreender a ação social em seu contexto. Por
conseguinte, Hammersley e Atkinson(1983) enfatizam o fato de que em vez de nos
empreendermos em tentativas de eliminar os efeitos do pesquisador, deveríamos começar por
compreendê-los.

No que se refere à prática da OP enquanto tecnologia de pesquisa, é a partir dos estudos de Adler
e Adler que observa-se a distinção de três tipos de implicação em relação ao campo de pesquisa.
Para estes autores, emergem da prática de OP a participação periférica, a participação ativa e a
participação completa. Vê-se que esta tipologia constitui uma síntese entre os estudos sociais de
Chicago de uma parte, e orientações mais recentes saídas das sociologias ditas californianas: a
sociologia existencial e a etnometodologia, de outra.

Na observação participante periférica(OPP), são os pesquisadores que escolhem este papel ou


esta identidade consideram que um certo grau de implicação é necessário, entretanto, preferem
não ser admitidos no âmago das atividades dos membros. Procuram não assumir nenhum papel
importante na situação estudada.

O caráter "periférico" desse primeiro tipo de implicação encontra sua origem, muitas vezes,
numa escolha de ordem epistemológica: alguns pesquisadores estimam que uma implicação mais
intensa tende a bloquear o distanciamento necessário à possibilidade de análise.

Uma outra fonte de implicação periférica dá-se pelo fato de que o pesquisador não deseja
participar de certas atividades do grupo estudado, como, por exemplo, atividades de grupos de
delinqüentes.
Outros, por questões-limite como a pertença a segmentos de idade, sexo, etnia, religião, classe
social etc, preferem não participar das atividades centrais dos grupos estudados. Intervêm às
vezes problemas relativos a sistemas de valores antagônicos ou mesmo rivais. Peskin(1984), por
exemplo, ao estudar um grupo cristão fundamentalista, limitou-se a participar de atividades não
centrais em face da sua religião e de suas origens judaicas. Alguns grupos delinqüentes podem
identificar psicólogos, sociólogos, educadores, como inimigos, barrando por completo o acesso
às suas práticas. Em alguns casos, estudantes elegem o grupo de professores como uma cultura
hostil, privando os professores de qualquer possibilidade de estudo sobre seus problemas ou
questões escolares.

Quanto à observação participante ativa(OPA), o pesquisador se esforça em desempenhar um


papel e em adquirir um status no interior do grupo ou da instituição que estuda, o que lhe permite
participar ativamente das atividades como um "membro" aceito.

Em 1967, um pesquisador inglês em ciências da educação, David Hargreaves, decide ensinar em


um turno num estabelecimento onde ele efetua uma pesquisa: este trabalho será o ponto de
partida histórico da etnografia da educação inglesa, umas das bases do que chamamos de
etnopesquisa dos meios educacionais. Neste caso, uma certa cumplicidade se instaura face à
atividade cotidiana do pesquisador no contexto escolar.

Durante meus estudos de doutorado, tive a oportunidade de vivenciar este tipo de observação
participante, quando ao chegar a uma escola comunitária de subúrbio para realizar minha
pesquisa, fiquei durante um ano atuando como orientador psicopedagógico e consultor
pedagógico da instituição, a partir da negociação de acesso à escola com líderes comunitários e
pedagógicos. Tal condição facilitou ao extremo a compreensão das atividades cotidianas da
escola, mesmo não sendo um membro originário da comunidade.

Quanto à observação participante completa (OPC), pode se dar enquanto pertencimento original
e por conversão. No primeiro caso, o pesquisador emerge dos próprios quadros da instituição e
dos segmentos da comunidade, recebendo destes a autorização para realizar estudos em que a
realidade comum é o próprio objeto de pesquisa. Na participação que implica em conversão, o
pesquisador é originalmente de fora da situação pesquisada. Adler e Adler fazem referência a
Carlos Castanheda que seguindo as orientações etnometodológicas de Garfinkel, deixa-se
converter por um pajé yaqui, bem como Benetta Jules-Rosette, também orientada por Garfinkel,
ao estudar os Bapostolos da África, vive intensamente sua religiosidade para compreendê-la.
Tornar-se membro, no sentido etnometodológico, é o objetivo primeiro, isto é, apropriar-se e
viver profundamente o mundo da "linguagem natural" dos sujeitos do contexto original.

Uma das questões cruciais inerentes às pesquisas participantes é o acesso ao campo de pesquisa.
Faz-se necessário um trabalho hábil, honesto e franco de persuasão e de relação de confiança
onde, em geral, problemas éticos estão envolvidos e deverão, com cuidado, ser abordados por
pesquisadores e pesquisados. Conflitos institucionais em geral estão presentes, seduções
acontecem no dia-a-dia, manipulações por grupos rivais da instituição podem ocorrer. Neste
sentido, o pesquisador deve preparar-se para entender e tolerar com sensibilidade as naturais
resistências das realidades humanas ao conhecimento científico. Seus paradoxos, suas
contradições e ambivalências fazem parte, enfim, da especificidade do que é humano; é realidade
integrante e importante da pesquisa.
Por outro lado, a natural flexibilidade no campo da observação na etnopesquisa dá ao
pesquisador um meio efetivo de abordar, de uma forma um tanto quanto tranqüila, a
dinamicidade das realidades humanas. O trabalho de campo assume, em geral, um contínuo
processo de reflexão e mudança de foco de observação, o que permite ao pesquisador
testemunhar as ações das pessoas em diferentes cenários. Tal flexibilidade permite, ademais, que
objetivos, questões e recursos metodológicos sejam retomados, assim como as articulações com
a teoria, dependendo da dinamicidade e das orientações que surgem do movimento natural da
realidade investigada. Assim, a flexibilidade no ato de pesquisar é uma das condições para a
autenticidade e o sucesso de uma pesquisa, onde a observação participante seja um recurso
significativo.

O campo das implicações objetais na pesquisa participante

Ninguém sai indeme da implicação, assevera Borba(1997). Sua elucidação também é um


compromisso com a verdade, acrescento. Ademais, corroboram com estas assertivas físicos
filósofos como Capra e Heisenberg, ao afirmarem que o observador se encontra implicado no
dispositivo de experimentação e que tal condição é incontornável para o trabalho da ciência.

No domínio das ciências antropossociais, a produção do saber exige que o pesquisador elabore
um trabalho de elucidação da sua relação com seu objeto de pesquisa. Aqui reside uma das
características da revolução epistemológica que instaura uma nova relação entre o pesquisador e
o processo de construção objetal. Uma nova subjetividade na produção do conhecimento, diria.

A implicação sempre foi repudiada pelo espírito científico como um resíduo da subjetividade,
contrariando um ideal de objetividade, vista sempre como um parasita a ser eliminado na medida
do possível. A implicação sempre foi um desconforto presente no exercício da racionalidade
científica de inspiração objetivista. Diferentemente desta visão formalista, em alguns âmbitos
ditos pós-formais, os processos implicacionais, ao invés de serem expurgados, são reconhecidos
como conteúdo e fonte de análises significativas, porquanto "dado" integrante e constitutivo dos
fenômenos humanos, objeto desejável de análise face à intensidade existencial que traz para a
análise do conhecimento. A implicação constitui, assim, um modo especial de conhecimento,
onde ela própria se torna parte integrante.

Um dos pontos importantes da implicação reside na ruptura que estabelece com a concepção
positivista de pesquisa, que não avalia a subjetividade enquanto elemento constitutivo do objeto
pesquisado. Assim, a análise das implicações corresponde a um esforço de elucidação das
condições de produção, dos mecanismos, dos procedimentos, dos objetivos e das finalidades.
Aqui, a pesquisa não se pretende um fruto de um observador fechado, mas um co-produto no
qual o observado participa ativamente. Neste veio, a conseqüência é o aparecimento no mundo
das implicações objetais de uma implicação metodológica, literária, pedagógica, institucional,
libidinal etc. Para R. Barbier(1977), a implicação se dá em três níveis: o nível psicoafetivo,
histórico-existencial e estruturo-profissional. Em meio às pesquisas onde a observação é
fundamental, estes três níveis se interpenetram e agem um sobre o outro. Barbier percebe a
implicação como um engajamento pessoal e coletivo do pesquisador na e pela práxis científica,
em função de sua história familiar e libidinal, de suas posições passadas e atuais na relação de
produção e de seu projeto sócio-político. Portanto, um elemento constitutivo do processo de
conhecimento.
Escreve Morin(1991) que isto que nós sabemos do mundo não é o objeto subtraído de nós, mas o
objeto visto e observado, co-produto para nós. Para Morin, nosso mundo faz parte de nossa visão
de mundo, a qual faz parte de nosso mundo. Isto é, que o conhecimento, por mais físico que seja,
não pode ser dissociado de um sujeito conhecedor, enraizado numa cultura e numa história. O
processo implicacional seria, portanto, uma realidade incontornável, por mais positivista e
estrutural que seja a análise.

Da perspectiva de Lourau(1994), dissociar fazendo do observador uma abstração é, por


excelência, um ato falho. Desta forma, todos os dispositivos de pesquisa construídos pelo
pesquisador, e ele próprio, fazem parte de um todo indissociável, assim como as circunstâncias
das descobertas e os processos interacionais que se estabelecem no campo de investigação. Estas
considerações implicacionais estão no âmago daquilo que permite que a ciência possa existir,
que vai constituir o ato de pesquisar.

Em conseqüência destas posições, vários epistemólogos críticos nos mostram que a distinção
entre contexto de justificativa e contexto de descoberta deve ser abandonada: o que há, segundo
tais visões, é imbricação, implicação entre o que se passa quando do processo de pesquisa e o
que se passa quando da construção dos resultados.

É interessante pontuar, entretanto, que faz-se necessário evitar, por um esforço de rigor
científico, por uma certa vigilância epistemológica, a fusão indistinta e permanente do sujeito e
do objeto, dificultando o próprio exercício da produção do conhecimento específico. Por uma
fusão amalgamada, submete-se o objeto construído a um esquecido epistemológico
subordinando-o a uma mera vivência não-analítica, não-hermenêutica, muito próximo do
fenômeno no qual estudiosos da cultura e da sociedade, ao não conseguirem elaborar o processo
científico de interpretação e objetivação, transformam-se, simplesmente, em "nativos", ocupados
apenas com a contemplação e a vida cotidiana, ou, como alguns adeptos, um tanto quanto
desvairados da pesquisa-ação, que terminam por transformá-la em pura militância
modificacionista.

Em realidade, a implicação é também formação em ato, e integra um campo onde com ela deve-
se não perder a dialética aproximação/distanciamento enquanto condição necessária à
cientificidade seminal. Neste sentido, o distanciamento enquanto um dos pólos do movimento de
entrada e saída do objeto é um momento importante para a construção do conhecimento em
ciência. Há um momento onde certa "descontextualização" do objeto faz-se necessária para que o
texto científico possa brotar. Por outro lado, faz-se necessário reafirmar que em qualquer ato
criativo, produto incontornável da curiosidade humana, existe uma ordem implícita e uma
política de sentidos que nasce das implicações vitais do criador. Tal "dado" é real tanto quanto o
sujeito sempre o foi. Neste sentido, a observação participante e sua démarche científica vêm
afirmar a inegável verdade de que pesquisador e pesquisados, suas artes e obras existem porque
implicam numa ação de sujeitos, Sapiens Sapiens desejosos, capazes de optar, portanto políticos,
atribuidores de significados, desta forma, seres morais. Por conseqüência, pesquisadores e
pesquisados, todos, são sujeitos que pensam, refletem sobre sujeitos, e é aí que brota a fantástica
e complexa relação de produção do saber das ciências antropossociais e das ciências da
educação. São campos naturalmente resistentes a qualquer simplificação por mais que isto se
justifique em nome dos cânones científicos secularizados.
Implicação e etnopesquisa. Exemplo concreto

Desde a construção da minha dissertação de Mestrado, refletindo de dentro um programa de


educação infantil compensatório, a edificação no âmago das minhas elaborações acadêmicas, do
meu processo implicacional em relação ao objeto de estudo, passou a ser um imperativo.
Entendia, desde já, que aquele trabalho de elaboração que em geral é reduzido na academia
formal à uma racionalidade descontextualizada, pertencia a uma existência co-construída, a uma
itinerância, portanto, e que muito do que ali aparecia enquanto produto do labor investigativo era
obra de um ser que se constituía numa história. Convencia-me, também, que os resultados
daquela formação acadêmica envolvia, de forma incontornável, uma subjetividade social que se
movia norteada por sua consciência construída em meio aos seus coletivos sociais.

Era um dado que eu não conseguia descolar do processo de produção, ao mesmo tempo em que
não entendia porque teria que ser omitido, como era de praxe nas pesquisas normativas.

É a partir desta primeira experiência que pensar o processo implicacional na prática de pesquisa
transformou-se em mim não mais num efeito prático, mas na necessidade também de refleti-lo
enquanto pauta epistemológica e objeto de reflexão em termos de método. Nos meus trabalhos
acadêmicos de mestrado e doutorado, na medida que aprofunda-se verticalmente o olhar em
relação às minhas análises, vê-se claramente se constituindo aquilo que denomino de um analista
por inteiro, portador de uma história, de desejos e formações.

Neste veio, retomo aqui um extrato do meu processo implicacional em relação às minhas
atividades de pesquisador descritas na minha tese de doutorado, como forma de uma
exemplificação formativa neste campo revolucionário e ainda polêmico da construção do
conhecimento acadêmico: a implicação...

(...) Esta descrição emerge de um itinerário prático e acadêmico e mostra de maneira


encarnada, a forma pela qual um ator social implicado se construiu, imerso no conjunto das
suas interações sociais. Coloca-se em evidência aqui, o fato de que o conhecimento não se
realiza necessariamente por determinações mecânicas do objeto, ela é exercida por
intermédio de uma atividade crescente do sujeito, dos seus meios, de suas aspirações, dos
seus objetivos, dos seus planos e métodos.

O que desejo expor nesse momento teve sua fonte de inspiração na maneira implicada de
lidar entre mim e meu objeto de trabalho e de pesquisa – a criança em escolarização –
transformada agora em assunto desta tese, enquanto um estudo de programas de educação
pré-escolar concretos de uma perspectiva compensatória e comunitária.

(...) Extremamente inquieto, comecei a refletir e a analisar os fundamentos e pressupostos


das concepções de prontidão, para aprender, e de educação compensatória, bem como a
observar de uma perspectiva crítica a maneira como eles funcionavam na prática
pedagógica investigada, mediada também pelas minhas próprias práticas.

Em contato com a sociologia da educação e do conhecimento de inspiração crítica, e que


aprende a escolarização enquanto construção social, cada vez mais via aprofundar os
questionamentos sobre as minhas ações enquanto ator pedagógico.
Não posso esquecer o quanto foi importante para as minhas desconstruções o contato com a
antropologia relativista e crítica. Neste aspecto, a leitura de 'A Interpretação das Culturas',
de C. Geertz, foi fundamental.

Há, neste momento, a urgência de reorientação de numerosas convicções, com uma


conseqüente reflexão e uma sorte de superação teórico/prática que esteve longe de ser
tranqüila. Minha ordem lógica resistia. Era desestruturador ver numerosas verdades, até o
momento inquestionáveis, completamente "destruídas". As práticas pedagógicas correntes
relativizadas e dialetizadas colocavam a lógica formal que eu tinha assimilado sem
restrições por terra, e, sob o efeito desta descontrução, eu me sentia sem referência, diria,
sem norte.

Tornara urgente reconstruir fundamentos e pressupostos, fora das constantes, das


invariantes, das regularidades e das cômodas ancoragens em modelos unificadores. O
pensamento cartesiano vivido e exercido por mim visceralmente impunha-me uma terrível
dificuldade de refletir sobre minha prática de uma maneira dialetizada. O habitus normativo
assimilado resistia, dificultando meu processo de superação.

No Mestrado, entretanto, a maneira academicista que era demandada esta desconstrução e


reconstrução deixava-me com a sensação que todo conhecimento que assimilei concernente
ao indivíduo estava irremediavelmente condenado à execrabilidade da atividade científica
abstrata, ideologicamente conservadora e alienante...O desejo, o sentido, o projeto do
sujeito, eram considerados pelo imperialismo estruturalista como heresias, que deveriam
submeter-se a uma exorcização racionalista...

O sectarismo e o imperialismo sociológico me fustigavam e me inquietavam de forma


significativa, optei por um período de silêncio nos seminários, atendendo a uma quase
solicitação da minha subjetividade por tempo para uma reestruturação.

Em realidade, se tratava de dúvida, de um processo inquietante de superação, a fecundar


significações construídas numa opção pelo silêncio, mesmo vivendo as incompatibilidades
face ao culto da verdade única e da monorreferencialidade e o quase convencimento de que
o racionalismo instrumental que assimilei não dava conta da complexidade que a prática me
apresentara.

As rupturas concernentes às minhas visões de homem e de mundo eram viscerais,


acompanhadas de uma angústia profunda, em busca de uma superação, que não
representasse somente uma simples mudança dogmática, uma dessas transformações
motivadas por ondas de modismo academicista.

É neste momento histórico que uma formação em psicologia edificada num cenário
tecnicista e violento na Universidade de Brasília (meados da década de 70), desnuda-se por
uma reflexão político-epistemológica profunda.

Nesta direção, encontro-me construindo uma noção fundante das minhas concepções e
práticas futuras; o sujeito instituinte, após a desconstrução da concepção fisicalista do
indivíduo desprovido de subjetividade e de sentido, mecânica resultante dos fatores
ambientais; da mesma forma me inquietava a concepção não menos mecânica do homem
enquanto massa amorfa diluída nas formações coletivas...

Foi nesta ambiência que comecei a construir as primeiras reflexões no âmbito do mestrado,
tendo como objeto de estudo a pré-escola pública na sua perspectiva compensatória...

Em meio às discussões sobre a Escola de Frankfurt apresentadas pela minha orientadora, a


professora Teresinha Fróes Burnham, sensibilizado pelo pensamento de Schutz, via seus
continuadores Luckman e Berger, e identificado com as elaborações sócio-fenomenológicas
e críticas de Paulo Freire no contato com educadores populares, articulações fecundas
começaram a tomar forma enquanto um norte teórico, epistemológico e metodológico.

Após meus contatos diretos com Aaron Cicourel e os princípios da etnometodologia,


familiarizei-me com as idéias interacionistas de George Mead e Harold Garfinkel. Com o
primeiro, percebi a fecundidade teórica de um pensamento onde o indivíduo e a sociedade
têm uma existência imbricada, numa ambiência plena de sentido. Com Garfinkel, construo
uma ruptura com um projeto de ciência humana empanturrada de formalizações. Sua
asserção de que 'o ator social não é um idiota cultural', veio ao encontro de um processo de
superação que, definitivamente, apontava também para uma prática desreificante contínua...

Com tal percurso em processo, encontrei-me com a noção de cotidianidade e de qualidade


nas ciências humanas, num conjunto de obras onde destacaram-se a sociologia do cotidiano
de Michel Maffesoli, o interpretacionismo de Alain Coulon, o pensamento sociológico
dialetizado de Pedro Demo, assim como, em termos metodológicos, os trabalhos de Marli
André, Menga Lüdke e Tereza Haguette, que me apresentaram às denominadas
metodologias qualitativas. Celeremente, minha formação inspirada no positivismo lógico
desvanecia-se e possibilitava-me uma reflexão profunda, ao mesmo tempo acadêmica e
existencial, do que é um processo de superação na prática e pela prática... (Macedo 1995:6-
9).

Apresentei, aqui, um extrato da descrição de um processo de construção do conhecimento, onde


evidenciam-se implicações profissionais, existenciais, intelectuais e mesmo libidinais ativamente
presentes, e que deram identidade ao conjunto de uma produção jamais descolada da itinerância
vital que a construiu. Como já pronunciara-me, muito de alma e carne aqui está, mas também
muito de alma e carne aqui falta, até porque conhecer e descrever o conhecimento é um processo
de construção/desconstrução de um sujeito histórico que julga, distingue e opta.

A entrevista. Buscando o significado social pela narrativa


A entrevista é um outro recurso extremamente significativo para a etnopesquisa. Numa
etnopesquisa, a entrevista ultrapassa a simples função de fornecimento de dados no sentido
positivista do termo. Comumente com uma estrutura aberta e flexível, a entrevista pode começar
numa situação de total imprevisibilidade, em meio a uma observação ou em contatos fortuitos
com participantes. Pode estruturar-se assim no desenrolar das interações, como é comum nas
pesquisas participantes. Mais do que entrevista, entrefalas e entretextos já nos sugerem Kramer e
Souza(1997).
Poderoso recurso para captar representações, na entrevista os sentidos construídos pelos sujeitos
assumem para o etnopesquisador o caráter da própria realidade, só que do ponto de vista de
quem a descreve. A linguagem aqui é um forte fator de mediação para a apreensão da realidade e
não se restringe apenas à noção de verbalização. Há toda uma gama de gestos e expressões
densas de conteúdos indexais importantes para a compreensão das práticas cotidianas. Verifica-
se, inclusive, que o tipo de entrevista mais adequada para a etnopesquisa em educação aproxima-
se mais dos esquemas livres e flexíveis, como dissemos mais no alto, enveredando, também, pela
captação de diálogos nos processos de interação.

Ao refletir sobre o ato educativo como objeto de pesquisa, S. Mollo-Bouvier(1986) atenta para o
fato de que a educação edifica-se no processo de reconstrução mental do real pelo sujeito,
atividade que é, às vezes, fonte e produto da comunicação. A consideração da representação
assegura a mediação entre as idéias e os âmbitos do implícito, religando-o às condições
psicossociológicas que o formam e o informam. As representações colocam assim, em
comunicação, diferentes códigos, diferentes níveis de comportamento, diferentes grupos,
diferentes instâncias da sociedade. Elas são indissociáveis da linguagem enquanto expressão
local, contextual. Pode-se, assim, explicitar diferenças, mas também filiações entre
representações e práticas a partir da análise dos discursos na e sobre a educação. A linguagem
revela, veicula e cria representações cujas formas e significações estão inseridas no contexto
social de sua produção e de seu uso. A linguagem nasce socialmente com aquilo que ela exprime.
Ela não é nem falsa, nem verdadeira, portanto, constante objeto de análise para o
etnopesquisador. É seu uso social que lhe dará status de verdade ou mentira. Até porque, como
elabora Bakhtin, "cada sentido terá sua festa de ressurreição" (Bakhtin, 1985), e em toda ação
humana existe uma política de sentido. Em educação, certas práticas não são discursos, mas os
discursos sustentam, orientam e justificam a prática. Faz-se necessário frisar, também, que a
prática freqüentemente resulta de uma produção do discurso. Mollo-Bouvier chama à atenção
para o fato de que o discurso constitui ainda, significativamente, parte da atividade do professor
e do aluno.

De fato, a entrevista é um rico e pertinente recurso metodológico na apreensão de sentidos e


significados e na compreensão das realidades humanas, na medida em que toma como uma
premissa irremediável que o real é sempre resultante de uma conceituação; o mundo é aquilo que
pode ser dito, é um conjunto ordenado de tudo que tem nome, e as coisas existem através das
denominações que lhes são emprestadas. O que existe para o homem tem nome enfim(Duarte
Júnior, 1984), e o conhecimento humano terá de ser, em conseqüência, uma prática
incessantemente tematizável. É interessante notar que o aspecto não estruturado da entrevista
pode tomar, em algumas situações de pesquisa, conotações de uma dialogicidade totalmente
livre. Aliás, a conversa corrente, ordinária, é um elemento constitutivo da observação
participante: o pesquisador encontra pessoas e fala com elas à medida que participa das
atividades pertinentes, pede explicações, solicita informações, procura indicações etc.

É necessário pontuar que o primeiro manual de fieldwork elaborado e utilizado pelos sociólogos
de Chicago descrevia conversas espontâneas, como uma das técnicas essenciais da abordagem
antropológica em ciências sociais.

Voltando ao recurso da entrevista aberta ou semi-estruturada, podemos verificar que trata-se de


um encontro, ou uma série de encontros face-a-face entre um pesquisador e atores, visando a
compreensão das perspectivas das pessoas entrevistadas sobre sua vida, suas experiências,
expressas na sua linguagem própria. Bogdan e Taylor(1975) chamam tal recurso de "entrevista
em profundidade".

Apesar deste caráter "não diretivo" da entrevista etnográfica, há necessidade que se entenda que
este tipo de recurso metodológico pode parecer não comportar nenhuma espécie de estruturação,
mas, em realidade, o pesquisador deve elaborar uma estratégia pela qual ele conduz sua
entrevista. Assim, a entrevista não-estruturada é flexível, mas também é coordenada, dirigida, e,
em alguns aspectos, controlada pelo pesquisador, porquanto trata-se de um instrumento com um
objetivo visado, projetado, relativamente guiado por uma problemática e por questões de alguma
forma já organizadas na estrutura cognitiva do pesquisador. Neste sentido, recomenda-se a
realização de um roteiro flexível, onde a informação inesperada possa ser incluída.

Distinguem-se três tipos de entrevistas de inspiração etnográfica a partir da experiência


etnossociológica: a primeira visa elaborar uma narrativa de vida(uma auto-biografia). Aqui o
pesquisador se esforça em apreender experiências que marcam de maneira significativa a vida de
alguém e a "definição" destas experiências pela própria pessoa. O segundo tipo é destinada ao
conhecimento de acontecimentos e de atividades que não são diretamente observáveis. Pede-se
às pessoas para descrever interpretando realidades e como essas realidades são percebidas por
outras pessoas. O terceiro tipo aproxima-se bastante do recurso metodológico em ciências sociais
denominado grupo nominal ou focal. Propõe-se que através de questões abertas sejam obtidas
informações de um número um tanto quanto elevado de pessoas num tempo relativamente breve.
Num estudo, por exemplo, sobre a prática de ensino numa determinada escola, pode-se
entrevistar vinte professores, num tempo onde se faria apenas uma observação numa sala de
aulas.

Não podemos esquecer que a natureza da condução de uma entrevista vai depender muito dos
pressupostos que o pesquisador traz para o ato de pesquisar. Alguns etnopesquisadores
consideram que segundo la règle d'or da observação participante, tornar-se "membro" da
situação que eles estudam seria significativo para uma maior efetividade da entrevista.

Um outro aspecto importante, no sentido de desreificar o momento da entrevista como uma mera
coleta de informações, é que no próprio desenrolar da entrevista podem acontecer redefinições de
identidades tanto do pesquisado quanto do pesquisador, podem haver mudanças de objetivos da
pesquisa e pessoais. Pat Sikes descreveu para Peter Woods o caso de uma professora que teria
mudado sua vida e redefinido sua personalidade, descobrindo em si uma vocação para a pintura,
a partir de entrevistas que possibilitaram uma tal redefinição do seu self. Humphrey, citado por
Lapassade(1991), mostrou como sua vida foi profundamente modificada a partir de entrevistas
com pais bissexuais numa pesquisa universitária.

Uma outra característica marcante da entrevista é que os sujeitos envolvidos na pesquisa podem
ser submetidos a várias entrevistas, não só com o objetivo de se obter mais informações, mas
também como um meio de apreender as variações de uma situação estudada, muito comum nos
meios educacionais.

Portanto, a entrevista de inspiração etnográfica, enquanto recurso fecundo para a etnopesquisa, é


muito um encontro social constitutivo de realidades, porque fundado em edificações pela
linguagem, pelo ato comunicativo definidor de significados. Neste sentido, a entrevista é um dos
recursos quase indispensáveis para a apreensão do significado social de forma
indexal(encarnada, enraizada) pelos etnopesquisadores.

Particularidades da análise de entrevistas

Do ponto de vista de May(1993), o primeiro aspecto a ser considerado no que se refere à


particularidade da análise de entrevistas é o uso de gravadores ou notas na entrevista. Neste
sentido, o autor considera três aspectos significativos deste procedimento de coleta: a interação, a
transcrição e a interpretação. Em nível interacional, é necessário se trabalhar o aspecto da
inibição face ao gravador e a dificuldade que algumas pessoas têm em ver suas opiniões e relatos
serem registradas em fitas cassetes. É um processo a ser tratado com o cuidado que todo
etnopesquisador tem que ter quando do seu acesso ao campo de pesquisa. Ou seja, faz-se
necessário, além de um rapport bem construído, respeitar os hábitos, as crenças, as visões de
mundo das pessoas incluídas na pesquisa, afinal, o pesquisador está em campo para compreender
em profundidade, e não para impor condições ou formas de conduta. Quanto à transcrição, sabe-
se que é um processo longo, que, entretanto, pode favorecer a apreensão por impregnação dos
conteúdos, ao se ouvir de forma paciente cada trecho da entrevista. Quanto ao aspecto
interpretativo, o processo de gravação é um fator de ajuda, na medida em que favorece a
possibilidade do pesquisador se concentrar na conversação e registrar expressões não-verbais do
entrevistado, ao invés de despender um tempo significativo olhando notas e escrevendo o que é
dito. É importante também assinalar que a gravação impede que o pesquisador coloque em suas
próprias palavras as palavras do ator social, ou mesmo os significados que este atribui à realidade
investigada.

Após a transcrição das fitas e o registro das notas, pode-se começar o processo propriamente dito
de análise. Outrossim, faz-se necessário salientar que não se pode esperar que num processo de
análise de entrevistas, pretensos conceitos educacionais bem formulados, formas de ação bem
articuladas, purismos teóricos, vão brilhar e saltar aos olhos do pesquisador, como num toque de
mágica do processo de entrevistar. Ao contrário, o esforço hermenêutico é indispensável. A
realidade humana é uma construção de sujeitos, lembremos; uma pesquisa é uma construção do
pesquisador, não podemos esquecer...

Com as transcrições em mãos, dá-se o momento de se elaborar algum senso analítico a partir dos
"dados" coletados. Começa aqui o processo de codificação. Codificar pode ser definido como um
sentido geral de categorizar os dados. Um código é o produto das análises do corpus empírico,
levando em consideração os objetivos da pesquisa, suas questões fundamentais e os interesses
teóricos do pesquisador. Longe de serem noções rígidas, os códigos devem estar disponíveis para
modificações constantes e trocas, dependendo dos dados da entrevista.

Já existem, em alguns contextos, programas de computador para a análise de alguns dados de


natureza qualitativa, nos quais, segundo May(1993), procuram-se palavras-chave ou frases,
assim como a freqüência com que certas palavras são utilizadas e em que contexto. Da
perspectiva de May, com isto os analistas podem verificar o que Mills denominou de
"vocabulário de motivos" das pessoas. Pode ser verificado durante as entrevistas, porque as
pessoas agiram variadamente em determinadas situações, brotando daí justificativas que apontam
para as identidades construídas nas relações estabelecidas e negociadas socialmente. Assim,
pode-se perceber que um relato, durante uma entrevista, não se constitui apenas de razões, mas
também de apresentação do self.

Ainda da perspectiva de May(1993), a análise de uma entrevista pode não apenas examinar
motivações e razões, mas procurar verificar estes âmbitos em termos de identidade social, e
como estas identidades e razões se constituem nos cenários sociais investigados.

O que é interessante pontuar é que a análise de entrevistas pode ser um longo processo. Por outro
lado, perseverança, perspicácia teórica, atenção fina ao detalhe e socialização das dificuldades de
interpretação com outros estudiosos da área parecem se constituir em relevantes recursos para se
chegar a bom termo no estudo pela entrevista de uma "dada" realidade. Novamente, aqui, são a
disponibilidade e a competência interpretativa do pesquisador, sua experiência com o método e o
seu objeto, que vão dar o tom principal da fecundidade heurística de uma entrevista.

O questionário aberto
Historicamente, o questionário é um recurso de pesquisa vinculado às pesquisas quantitativas
com claro interesse nomotético, isto é, a partir de um tratamento estatístico das respostas obtidas
numa amostra, generalizar suas conclusões. Por outro lado, na medida em que elaboram-se
questões abertas no questionário e tem-se o cuidado para que estas questões surjam indexalizadas
ao contexto do estudo, o questionário pode ser útil às etnopesquisas, porquanto em alguns
momentos a entrevista em profundidade torna-se um instrumento de difícil realização por vários
motivos, verbi gratia, uma indisponiblidade do informante que, por motivos vários, não pode ou
se recusa a ser entrevistado. Em outros momentos, a aplicação de um questionário se dá porque o
pesquisador está interessado em alguns dados pessoais dos sujeitos que participam da pesquisa,
como nome, data de nascimento, local de moradia, profissão etc.

Recomenda-se que as perguntas dos questionários abertos sejam em pequeno número, até porque
os respondentes terão que argumentar suas respostas, muitas vezes justificá-las, contextualizá-las
e explicitá-las. Ademais, as perguntas elaboradas devem ser claras, precisas, bem próximas ao
contexto de vida do respondente. Devem, assim, apontar para os assuntos nucleares do problema
da pesquisa. Um estudo exploratório antes da realização de um questionário aberto é sempre
recomendável.

Tomando o ponto de vista de Triviños(1987), a elaboração de um questionário aberto, aliás,


como em qualquer elaboração de instrumentos de pesquisa, deve atender às seguintes etapas:

a) estudo das perguntas em equipe, depois de detida análise dos objetivos da pesquisa; b)
revisão do questionário aberto por outros especialistas no tema; aplicação do questionário a
uma pequena amostra intencional; formulação definitiva do questionário.

Assim, como em toda orientação em etnopesquisa, o questionário aberto faz parte de ecologia de
recursos de estudo que se retroalimentam, na busca de uma maior riqueza de "dados". Respostas
a um questionário aberto podem levar à necessidade de entrevistas semi-estruturadas,
observações mais minuciosas, filmagens etc. Quanto à análise de um questionário aberto,
seguem-se as mesmas orientações dos outros recursos metodológicos em etnopesquisa. O
tratamento é eminentemente hermenêutico, podendo-se lançar mão de algumas elaborações
quantitativas quando se tratar de expressar "dados" objetivos fornecidos pelo respondente, como
profissão, salário, número de filhos, número de filhos na escola etc. Pode-se tomar como recurso,
também, a classificação de respostas por categorias ou por respondentes, dependendo das
questões e respostas que aparecem. Podem emergir neste processo de tratamento e análise pontos
comuns, conflitos, vazios, que vão dar ao pesquisador significativas informações sobre a situação
analisada.

Faz-se necessário pontuar que, como em qualquer opção por um recurso metodológico em
etnopesquisa, é a situação de pesquisa — a temática, a problemática, o objeto de pesquisa — que
irá orientar a utilização de qualquer técnica.

Documentos como fonte de análise


Um outro recurso significativo na tradição metodológica da etnopesquisa é a análise de
documentos. Constitui-se num recurso precioso para este tipo de investigação, seja revelando
novos aspectos de uma questão ou mesmo aprofundando-a.

É no surgimento do que se chama "La Nouvelle Histoire" representada pelas obras de Lucien
Febvre, Marc Bloch, Jacques Le Goff e outros, influenciados pela etnologia de Marcel Mauss,
principalmente, que o documento, em sua especificidade, toma importância enquanto fonte de
dados. Daí a necessidade de se desenvolver análises a partir de textos até então desprezados –
textos que atestam humildes realidades cotidianas – os ditos etnotextos.

Comentando sobre a pertinência e relevância das fontes documentais, Ludke e André(1986)


argumentam que, quando o interesse do pesquisador é estudar o problema a partir da própria
expressão dos indivíduos, isto é, quando a linguagem dos sujeitos é importante para a
investigação, pode-se incluir todas as formas de produção do sujeito em forma escrita, como as
redações, cartas, comunicações informais, programas, planos etc.

Citando Jean-Noel Luc, Eric Plaisance(1993) sugere que o corpus dos textos oficiais é uma fonte
importante para o pesquisador em ciências da educação. Apesar das zonas de sombra
ideológicas, em geral estes documentos oferecem definições significativas sobre políticas
educacionais.

Ademais, os documentos têm a vantagem de ser fontes relativamente estáveis de pesquisa, o que
facilita sobremaneira o trabalho do pesquisador interessado na qualidade das práticas humanas e
com a fugacidade destas.

Para Blumer (1969), o documento é, em realidade, um "fixador de experiências", enquanto um


registro objetivo do vivido, principalmente em se tratando de documentos pessoais. Neste
gênero, "Polish Paesant" é um dos estudos mais clássicos. Em 1912, W.I. Thomas, professor da
primeira geração da chamada escola de Chicago, decide estudar a imigração polonesa para os
Estados Unidos. Após diversas viagens à Polônia, encontra-se com Znaniecki, saindo deste
encontro um estudo de 2.000 páginas todo calcado no recolhimento de cartas e documentos
pessoais, em particular de biografias escritas pelos próprios imigrantes.
Com relação aos estudos no âmbito escolar, sabemos que existe uma vasta cultura tácita dos
alunos, cuja manifestação escrita toma forma de notas, cartas, bilhetes, desenhos, grafite etc. A
densidade destas expressões é considerada pelos etnopesquisadores como um indicador
significativo de "patterns" de ações no meio escolar. Ademais, podemos comprovar que a
própria vida escolar e seus rituais é muito feita a partir de orientações contidas em documentos.
Isto é, sua burocracia aparece com todas as suas inspirações em meio à prática de uma cultura
gráfica. O currículo, aliás, tem seu primeiro sopro de vida legitimado pela via de um documento.
Em termos de cultura escolar contemporânea, é o documento que legitima a própria existência
escolar, mesmo sabendo-se que o currículo real transcende e muito o documento oficial, por ser
um fenômeno construído eminentemente nos fluxos das interações cotidianas da escola. É
interessante frisar que são documentos quaisquer expressão escrita dos atores sociais, para não
cairmos na rigidez normativa das pesquisas de inspiração positivista.

Na última pesquisa que realizei num programa de educação infantil comunitário, cartazes de
parede foram extremamente importantes para a apreensão da cultura educacional do programa. A
natureza dos chamamentos, das demandas, dos encontros acadêmicos e comunitários, dos ídolos
cultuados, dos avisos para o exercício da religiosidade, dos temas anunciados de seminários, das
problemáticas a serem discutidas, das frases escritas, refletindo questões políticas gerais e do
próprio fazer pedagógico(Macedo, 1995).

No caso do vivido do pesquisador, o seu diário de campo é um documento valioso de pesquisa.


Ele descreve a implicação do pesquisador, contém detalhes da maneira como concebeu a
pesquisa ao longo do processo de investigação, sobre a negociação de acesso ao campo de
pesquisa, sobre a evolução do pesquisador ao longo dos seus estudos, sobre os fracassos e erros.
Este gênero de documento é útil para avaliar os resultados do estudo na medida em que a
pesquisa é, num certo sentido, uma pesquisa-ação nos níveis da transformação teórica,
epistemológica, metodológica e profissional do próprio pesquisador. Ou seja, é um instrumento
mediador de uma formação científica em processo.

No conteúdo deste gênero de documento aparecem, comumente, as confrontações do


investigador com o inusitado, com o imprevisto, no sentido do registro da emergência de
realidades confusas, obscuras e contraditórias, correntes em qualquer prática de pesquisa onde a
ação humana seja privilegiada. Enfim, pela cotidianidade da pesquisa relatada no diário de
campo, resistências e aberturas são documentadas, mostrando que fazer ciência não implica em
linearidade e previsibilidade perfeitas, é uma aventura pensada com responsabilidade e ética.

Enquanto um etnotexto fixador de experiências, revelador de inspirações, sentidos, normas e


conteúdos valorizados, o documento é uma fonte quase indispensável na
compreensão/explicitação da instituição educativa. Justifica-se, ademais, esta nossa assertiva,
partindo-se da premissa de que é na escola moderna que a cultura gráfica veio de vez sedimentar-
se e é através dela, predominantemente, que obtém e avalia seus produtos. Poderíamos dizer,
contemporaneamente, que não é possível vida escolar sem um processo de documentação desta.
Aí está, entendemos, uma fonte seminal a ser acordada por aqueles que, abraçando a
etnopesquisa crítica dos meios educacionais e sua metodologia, querem compreender em
profundidade a ação de educar suas linguagens e inteligibilidades.
História oral. Vozes que documentam
De acordo com Michel Trebitsch, a pretensão pela história oral de se constituir em uma "outra
história", surge no contexto dos movimentos de contestação radical dos anos 60 e 70. Nos anos
Kennedy, mais do que o choque da Guerra do Vietnã, a descoberta da "outra América", da
pobreza, e a expansão do movimento negro desencadeiam o interesse pelos excluídos, pelas
minorias étnicas, imigrantes e delinqüentes. É o mesmo "populismo existencialista" postulando
que o saber pode, por si só, resolver a questão social, que impregna os movimentos radicais,
feministas, pacificistas da New Left, bem como as pesquisas orais dos anos 60, que opõem a
história vista de baixo à história escrita, branca.

Havia, neste contexto, três reivindicações fortes: contra a história antiga, a anterioridade milenar;
contra a história oficial, uma história "vista de baixo"; contra a ficção da objetividade, uma
ciência engajada. Trebitsch(1994) escreve que no cerne do contra-discurso elaborado pela
história oral(HO) no decorrer dos anos 60, há, em primeiro lugar, a vontade de derrubar o
interdito estabelecido pela história crítica do século XIX, que expulsa a tradição oral do campo
científico em proveito de fontes escritas. A HO opõe a esse veto uma dupla questão acerca da
legitimidade e, sobretudo, da anterioridade milenar. Convoca o pai da história, Heródoto, que foi
o primeiro a realizar o seu inquérito, com o olho e o ouvido, com a observação direta e o
testemunho. Em seguida vem Tucídides, com sua técnica de cruzamento dos testemunhos, e
Políbio, com sua crítica dos "ratos de biblioteca".

A HO vem, portanto, se opor como contra-história, operando uma inversão historiográfica


radical, tanto do ponto de vista dos objetos como dos métodos. História vista de baixo, história
local e do comunitário, história dos humildes e dos sem-história, tira do esquecimento aquilo que
a história oficial sepultou. Opondo-se à fria trilogia acadêmica Estado, história, escrita, a HO
assume um projeto utópico de democratização da história, contra a instituição, a civilização, o
progresso, a cidade, enquanto produto de uma racionalidade capturada pelo ethos cientificista.
Propõe-se a devolver a palavra ao povo, ao rural, ao primitivo. História quente, militante, história
dos excluídos, em que o oral se opõe ao escrito como a natureza à cultura, o vivenciado ao
concebido, o verdadeiro ao artificial. São comuns aqui os recursos à pesquisa participante, à
pesquisa de campo, a abertura multirreferencial para as demais ciências sociais. É notória, neste
aspecto, a influência dos pesquisadores da Escola de Chicago e da etnologia no que se refere às
técnicas de acesso e de coleta de informações.

Da perspectiva desta obra, nos interessa apenas contextualizar este recurso de pesquisa em
ciências sociais como uma preliminar da apresentação de sua potencialidade técnica para a
etnopesquisa, até porque o cenário teórico da HO é vasto e implica em múltiplas apreensões no
campo da historiografia.

Em geral, pode-se dizer que tudo que é oral, gravado e preservado pode ser considerado
conteúdo de uma HO. Neste sentido, os discursos, as conversas telefônicas, as conferências ou
qualquer outro tipo de comunicação humana que pode ser gravada, transcrita e preservada como
fonte primária para o uso futuro da comunidade científica poderia ser denominada de HO. Desta
forma, não se gravam apenas lembranças do passado, mas as reflexões e opiniões daqueles cujas
vidas estão implicadas com alguma atividade ou instituição de interesse do pesquisador. Aqui a
memória assume dinamicidade na interação entre o passado e o presente, fugindo ao aspecto
estático do documento escrito.

No veio da tradição da HO, podemos verificar em Moss(1974) a afirmação de que a memória


não é simplesmente um reservatório passivo de dados, cujo conteúdo pode ser esvaziado e
escrutinado à vontade. Para este autor, a memória está empenhada e integrada com o presente,
com atitudes, perspectivas e compreensões que mudam. O que é capturado pela HO é, raramente,
um estudo exaustivo de todos os dados relevantes, mas, ao contrário, um segmento da
experiência humana, no contexto de um passado relembrado, de um presente dinâmico e de um
futuro desconhecido e aberto. Depoimento pessoal e memória são, assim, os ingredientes
irremediáveis da HO; um gravador, o instrumental insubstituível.

Do exposto, conclui-se que: a HO é um recurso metodológico de coleta baseado no depoimento


oral, gravado, obtido através da interação do pesquisador com um ator social ou testemunha de
acontecimentos relevantes para a compreensão de um grupo, de uma instituição, de um
movimento ou mesmo da sociedade; pode ter, por finalidade, o preenchimento de áreas de
desconhecimento existentes nos documentos escritos; é multirreferencial, na medida em que é
interessante para a história, para a sociologia, para a antropologia, para a política ou mesmo para
o jornalismo(Haguette, 1987).

Faz-se necessário destacar, tomando aqui uma preocupação mais técnica, que a escolha de um
informante dentro da tradição da HO não pode ser aleatória, ou seja, não pode obedecer aos
parâmetros da amostragem probabilística. Seria extremamente paradoxal com seus pressupostos
e bases epistemológicas. Poderíamos dizer que, neste caso, a "amostra" deverá ser intencional,
partirá da escolha do especialista ou da sugestão dos participantes. Biográfica ou temática, a HO
escolhe seu objeto pelo método de consistência interna obtido via a experiência do pesquisador
e/ou dos participantes de uma prática social qualquer. Para o primeiro caso, incluir-se-ão os
personagens que, ao longo de suas vidas, desempenharam um papel relevante na prática
estudada; no segundo, o nível de implicação não precisa ser tão profundo, apesar da relevância
da vivência comprovada.

Em suma, a HO, enquanto recurso para a etnopesquisa, veio estabelecer-se como uma contra-
instituição metodológica, na medida em que deixou desconfortável a voz da racionalidade
oficial, ao trazer, pelo sentido político da sua emergência, a necessidade de escutar outras vozes,
que compuseram, ao longo da plural e iníqua existência humana, um manancial histórico quase
ou nunca documentado.

História de vida. Vivência e narrativa

A história de vida é outro recurso pertinente exercitado no âmbito da etnopesquisa. Não


representa nem dados convencionais da ciência social, nem é uma autobiografia, também não
representa um exercício de ficção. Embora o trabalho seja apresentado a partir do enfoque do
pesquisador, ele enfatiza o valor da perspectiva do ator social. Na sua origem, a história de vida é
subsidiária do interacionismo simbólico de Mead em termos teóricos e dos trabalhos de campo
de Thomas e Znaniecki em termos práticos, e junto com o recurso da observação participante, é
quem melhor dá sentido à noção de processo, na medida em que capta e tenta compreender, no
processo de interação, como se constrói a vida do ator.
Escreve Becker(1986) que a autobiografia proporcionada pela técnica de história de vida se
propõe a nos contar a vida de um ser engajado. Deste modo, há um esforço em manter uma
coerência entre a história que ele narra e aquilo que uma investigação objetiva descobrir. Por
outro lado, quando lemos uma autobiografia, temos que estar conscientes que o autor nos conta
apenas uma parte de sua história, que ele escolhe os fatos, que negligencia aquilo que lhe parece
menor ou desagradável, talvez de um grande interesse para nós. Um exemplo lúcido e de fino
interesse para ilustrar tal construcionismo histórico, é o comentário elaborado por Edgar Morin
sobre sua vida na obra "Meus Demônios":

Minha vida intelectual é inseparável de minha vida...Não sou daqueles que têm uma
carreira, mas dos que têm uma vida. No entanto, não quis revelar tudo da minha vida, e não
quis revelar o mais íntimo de mim mesmo. Há, seguramente, neste livro, incessantes
evocações de vida, incessantes interferências da alma e da carne. Mas, inevitavelmente,
faltarão nele muita alma e muita carne...Passei ao largo dos amores, ainda que não tenha
podido viver sem amor...Por isso, os amigos aparecerão como figurantes, os amores ficarão
invisíveis, ainda que o amor e a amizade sejam o mais importante da minha vida...

Reafirmando o caráter ao mesmo tempo fenomenológico e científico do recurso metodológico da


história de vida, Becker observa que a biografia narrada pode ser particularmente útil para
esclarecer o lado subjetivo de processos institucionais, e mais do que qualquer outra técnica,
exceto talvez a observação participante, a biografia pode dar um sentido à noção de "fluxo do
processo"(Becker, 1986).

Refletindo a história de vida no âmbito das práticas educacionais, R. Barbier e J-L


Legrand(1990) enfatizam que a abordagem da história de vida apresenta perspectivas heurísticas
interessantes em educação por sua orientação fundamentalmente existencial. trata-se sempre de
começar pelo vivido, realidade opaca, resistência que constitui a verdade de cada experiência do
sujeito social nas práticas educacionais.

Desta forma, longe de refletir o social de forma mecanicista, o indivíduo o assimila e o acomoda
numa linguagem construcionista, portanto o mediatiza e o retraduz, projetando-o numa dimensão
diferente, a dimensão da subjetividade.

Na elaboração de Ferrarotti(1983), se cada sujeito representa a reapropriação singular do


universo social e histórico que o envolve, podemos ter a pretensão de conhecer o social a partir
da especificidade de uma praxis individual. De fato, para este autor, cada sujeito totaliza a
sociedade através da mediação do seu contexto social mais próximo, isto é, dos grupos
específicos do qual faz parte no seu dia-a-dia. Ferraroti enfatiza o caráter sintético do relato
biográfico. Salienta, ademais, que as narrativas de vida dos atores permite atingir camadas
sociais e estruturas de comportamento que, por suas características de marginalidade e de
exclusão social, fogem irremediavelmente aos dados adquiridos e elaborados pela ciência formal.
Desta perspectiva, entende-se que se a essência do homem é, na sua realidade, a "totalidade" das
relações sociais, toda prática individual humana é uma atividade sintética, uma totalização em
curso e ativa de todo um contexto social. Assim, a vida, enquanto vida vivida em sociedade, é
uma prática que se apropria das relações sociais, as interioriza e as transforma em estruturas
psicológicas. Desta ótica, a ordem social está presente em nossas ações, as mais banais, nossos
sonhos, nossas fantasias, artes, obras, posturas e condutas.
Trata-se, assim, de resgatar a riqueza e a importância das recordações dos sujeitos humanos,
devolvendo às pessoas que fizeram e fazem a história um lugar fundamental, mediados por suas
próprias palavras. A história não mais compreendida como realizada apenas pelos grandes
espetáculos criados e historicizados pelas elites. Nestes termos, vivifica-se o processo histórico,
e, no ato educativo, a história de atores pedagógicos vão nos mostrar a história de um tempo que
em muitos momentos fizeram e fazem a mediação de opções, decisões e práticas na interseção
com a história da sociedade onde se inserem.

Neste sentido, a história de vida, nada tem a ver com uniformidade e linearidade. Na prática da
história de vida, atores ignorados e/ou excluídos econômica e culturalmente adquirem a
dignidade e sentido de finalidade ao rememorar a própria vida, contribuindo pela valorização da
sua "linha de vida" para a formação de outras gerações. Conseqüentemente, o recurso da história
de vida nos meios educacionais é mais uma contribuição para o rompimento com o baixo
mimetismo cognitivo, o abstracionismo teórico e o colonialismo intelectual que, a serviço de um
saber capturado por uma ética burguesa nomotética, praticaram e praticam uma epistemologia e
uma metodologia excludentes.

O observador que trabalha interessado na "linha de vida" dos atores sociais, ao fazer com que as
pessoas confiem nas lembranças e interpretações, em sua capacidade de colaborar para escrever a
história, possibilita a aquisição de um sentimento de estima e de valor social. Um sentimento de
identidade, de pertencer a um determinado lugar e a uma determinada época, num mundo em que
a desreferencialização é processo que tende a avançar por diversas vias e interesses. Pela própria
história, lança-se vida para dentro da história.

Ao escreverem a obra histórica e pedagogicamente relevante "História de Professores", Sônia


Kramer e Solange Jobim e Souza(1997) nos dizem o quanto a questão da identidade é
fundamental quando indagamos sobre a vida e a pessoa do professor, ou seja, quando queremos
saber como e por que cada um se tornou o professor que é. É com Nóvoa(1992), entretanto, que
esta questão da identidade do professor brotada da sua itinerância fica analiticamente seminal.
Para Nóvoa, a identidade não é um dado adquirido ou um produto, mas um lugar de lutas e de
conflitos, é um espaço de construção de maneiras de ser e estar na profissão. Desta forma, a
maneira como cada um de nós ensina está diretamente dependente daquilo que somos como
indivíduos quando exercemos o ensino. O maniqueísmo forjado pelo tecnicismo entre pessoa e
profissão fica assim desalojado nesta perspectiva da história de vida na ação de educar.

Ademais, é notório, como constatou Goodson(1992), como depoimentos de professores passam a


ser tratados de forma lapidar nas pesquisas em educação. Destituem em geral os aspectos vitais
da sua prática, e numa filtragem cientificista ignoram o professor-pessoa, subsumido em
categorias teóricas, totalmente afastadas da prática docente enquanto profissão-vida. Ofuscada
pelos "dados objetivos", a vida docente passa a ser epifenômeno, enquanto deifica-se na pesquisa
de forma reduzida, a sua capacidade de executar procedimentos e transmitir saberes.

Vida social e a vida dos atores pedagógicos implicados numa prática educacional são os
subsídios da história de vida enquanto recurso metodológico da etnopesquisa crítica nos meios
educacionais. Na sua história de vida, o ator pedagógico vai encarnar reflexivamente um tempo
social conectado a outros tempos sociais, em que ele, o ator pedagógico, é uma das sínteses
possíveis destes tempos, afinal,como nos diz um dos provérbios árabes: "nos parecemos mais
com nosso tempo do que com nossos pais".

Grupo nominal ou focal


Trata-se de um recurso de coleta de informações organizado a partir de uma discussão coletiva,
realizado sobre um tema preciso e mediado por um animador-entrevistador ou mesmo mais de
um. Em realidade, configura-se numa entrevista coletiva aberta e centrada. Alguns elementos,
entretanto, devem ser levados em conta: os membros do grupo; sua preparação para a entrevista;
as condições de tempo; o lugar do encontro; a qualidade da mediação ou do entrevistador em
termos de domínio da temática a ser trabalhada e da dinâmica grupal.

A composição do grupo é, com efeito, a primeira preocupação do mediador. A coleta de


informações se restringe a 8 ou 12 membros, aproximadamente, que tenham afinidade com o
objeto pesquisado (princípio da representatividade do grupo).

É necessário, ainda, que o(s) mediadore(s) conheça(m) seu métier, isto é, que ele formule de uma
maneira pertinente e concisa para o grupo o tema-objeto da pesquisa e suas questões.

É interessante frisar que neste tipo de recurso qualitativo faz-se necessário um certo domínio de
técnicas não diretivas de entrevista, diria mesmo, uma certa atitude que consiste em demonstrar
tolerância às ambigüidades, paradoxos, contradições, insuficiências, impaciências, compulsões,
até mesmo sentimentos de rejeição ao tema tratado ou sua metodologia. Neste sentido, saber
ouvir, interromper, fazer sínteses, reformulações, apelos à participação, apelos a complementos,
à distensão, à maior objetividade, seriam habilidades recomendáveis.

Aqui, pode-se verificar, diferentemente de uma entrevista aberta, um efeito interacional


significativo, principalmente para as pesquisas que valorizam o aspecto interacionista.

Na discussão, os membros têm maior possibilidade de diluir defesas, de expressar conflitos e


afinidades, fortalecendo nas etnopesquisas seu caráter construcionista. Ademais, seguindo as
recomendações de A. Schutz, o recurso do grupo nominal ou focal entra de forma consistente na
prática da apreensão das "realidades múltiplas", que, ao recusar a possibilidade de uma realidade
unívoca e já construída para sempre, exercita a pluralidade dialógica já na coleta de informações.
Neste aspecto, enquanto fundamentos filosóficos, são pertinentes as construções bakhtinianas,
totalmente avessas ao culto da grande voz ou da voz única, escamoteadoras da natureza dialógica
das construções sociais. Para Bakhtin, a palavra que se quer única não é palavra.

Enfim, o recurso do grupo nominal é um instrumento ideal para a constituição das tipologias
qualitativas em etnopesquisa, outrossim, seu caráter público inibidor recomenda possíveis
aprofundamentos em nível de entrevistas individuais, dependendo da pertinência tomada a partir
da problemática pesquisada. Enquanto técnica eminentemente grupal, o grupo nominal é
extremamente válido para tratar com os objetos da pesquisa em educação, afinal de contas, a
prática pedagógica se realiza enquanto prática grupal em todas as suas nuances.

As técnicas projetivas
Os pesquisadores que elegem como fundamental nos seus estudos a apreensão de sentidos e
significados, isto é, colocam a subjetividade e seu dinamismo como uma especificidade
importante da ação humana, sabem de algumas dificuldades encontradas para a coleta de
informações a partir destes níveis da experiência. Por exemplo, entre as crianças de tenra idade, é
extremamente difícil, em alguns momentos, entrar no mundo de suas significações, face ao
natural adultocentrismo que a comunidade humana cultiva e cultua, levando a uma brutal
opressão e recalque das vivências infantis.

As técnicas projetivas são variadas e comportam numerosas variantes. De uma maneira geral,
uma técnica projetiva utiliza a projeção, isto é, um recurso psicossociológico onde o sujeito
percepciona o meio ambiente e responde-lhe em função de suas vivências, perspectivas, desejos,
ideologias etc. Diz-se, por exemplo, que La Fontaine projetou nos animais das suas Fábulas
sentimentos e raciocínios antropomórficos. Neste sentido, entende-se que um fato psicossocial é
deslocado e localizado no exterior. Desta perspectiva, todo ato de interpretar traz consigo
projeções. Portanto, os métodos projetivos repousam sobre uma concepção da expressão
humana, considerando-se que todas as construções imaginárias e imaginativas dos indivíduos e
dos grupos portam a marca do seu mundo de significação, da sua estrutura afetiva, que da nossa
perspectiva estão sempre indexalizadas na cultura e no tipo de sociedade que habita, mesmo que
não conscientes. Estariam aí representados parte do mundo das opacidades, do sabido não
conhecido, do inconsciente político-cultural, dos arquétipos e do habitus que em muitos
momentos nos orientam num nível de consciência pouco evidente.

Os recursos metodológicos projetivos a que nos referimos, não correspondem às técnicas


projetivas tradicionalmente empregadas pela psicologia formal ou pelas inferências psicanalíticas
pouco afeiçoadas às pautas existencialistas. Há nestas correntes uma necessidade constante de
recorrer a verdadeiros clichês interpretativos, o que é totalmente paradoxal com uma visão sócio-
fenomenológica e construcionista da realidade humana. A projeção aqui é abordada a partir das
próprias temáticas que emergem da situação analisada, bem como esforça-se para que o
significado apreendido venha à tona impregnado das experiências indexalizadas da cultura e das
problemáticas de vida experienciadas pelos atores. Busca-se, em última instância, um pattern
social no âmago das projeções, isto é, em meio a uma gama plural de dados projetados, procura-
se uma relativa regularidade implícita em alguns significados que emergem do corpus analisado.
Paralelo a este trabalho hermenêutico face ao tácito, ao subjacente, trabalha-se a compreensão
das contradições, dos paradoxos, das insuficiências, das incompletudes etc.

Como objetos de projeção podem ser utilizados desenhos dos atores interpretados por eles
próprios, opiniões sobre uma obra de arte representativa de uma problemática local, sobre uma
peça ou performance, sobre uma música, sobre uma oração, sobre um curso, sobre uma poesia ou
qualquer expressão literária. São, em realidade, materiais pertinentes para o etnopesquisador,
interessado que é na densidade simbólica da vida.

Como todo recurso em etnopesquisa, haverá sempre um lugar para a invenção metodológica,
para a capacidade de improvisação e de transformação do plano de pesquisa. Lapassade nos fala
de uma certa bricolage metodológica necessária, porquanto a realidade pede uma constante
abertura ao inusitado, ao imprevisto, aos desvios e "ruídos" inesperados, sem jamais
desvencilhar-se da vigilância que o rigor científico nos recomenda. Valorizar nas ciências
antropossociais e da educação os âmbitos da qualidade, jamais, em hipótese alguma, significa a
banalização irresponsável do labor científico.

Neste tipo de visão de pesquisa, o objeto pode e deve, em muitos momentos, formar e informar o
método, e este, ao abrir-se, apreende um mundo de imagens estruturadas por hábitos, costumes,
tradições, visões de mundo, de extrema importância para uma démarche de pesquisa que não se
contenta com a explicação factual e/ou correlacional.

Muitos etnopesquisadores adaptam as técnicas projetivas de acordo com o contexto da sua


aplicação. Outros chegam a inventar recursos projetivos de acordo com seus propósitos. Aqui, o
juízo e a intuição do investigador criam o que Freud chamou de um método de "consistência
interna" que, acrescido à acessibilidade deste método, forja a validade.

Na minha pesquisa de doutorado, por exemplo, utilizei o desenho comentado como fator de
projeção dos significados que as crianças atribuíam às suas experiências na escola, uma vez que
percebi uma tendência construída, onde as crianças tendiam a querer, nas suas narrativas diretas,
"agradar" aos adultos, em realidade, por um respeito submisso. Por esta via, foi possível perceber
como um denso imaginário veio à tona, bem como temáticas e problemáticas normalmente
recalcadas, mas vividas e simbolizadas intensamente. Aqui, a expressão, o ponto de vista, é
definido como posição do sujeito em situação, na sua relativa opacidade ontológica, levando em
conta a sua condição de Ser-no-mundo e de Ser-com-o-mundo.

Entra neste exercício hermenêutico o mundo metafórico no qual todos nós estamos imersos, visto
que, em muitos momentos, a metáfora vai nos dizer muito mais que o duro objeto das definições
operacionais cultivadas pelos behavioristas de plantão.

Como em toda itinerância investigativa das etnopesquisas, é necessário que se alargue a


formação do etnopesquisador, até porque consubstancia-se numa prática de pesquisa
multirreferencial, portanto, solidamente calcada na necessidade da articulação e da relação. No
caso do recurso à técnica projetiva, uma aproximação com a psicologia seria recomendável,
assim como com a psicolingüística, ou mesmo a incorporação de pesquisadores destas áreas
sensíveis à mediação social dos fenômenos subjetivos. A conseqüência natural deste processo de
articulação tem conduzido a um rompimento com a exclusividade das técnicas de investigação,
fazendo dialogar pesquisadores de diferentes áreas das ciências humanas, interessados em forjar
dispositivos de pesquisa cada vez mais pertinentes em relação à complexidade das realidades
humanas.

Imagem na etnopesquisa
Em "Fenomenologia do Ato Criador", Aranha(1995) nos diz que

ir às imagens formadas é uma interiorização que, obviamente, desvela novos atos, novas
dimensões de um existir reflexivo. Inspirada em Merleau-Ponty, para esta autora, um ato de
conhecimento visual, por exemplo, é um desvelar da consciência, uma descoberta de um
novo sentido sobre a experiência que foi vivida... desvelamento de novos horizontes que
originam novos sentidos que, então, refundam aquilo que já foi visto ou experienciado.
No que concerne ao conhecimento em nível da criação visual, Aranha argüi sobre a necessidade
de desvelar a consciência fenomenológica, "dirigir o ato à experiência que se alojou como
sentido e que criou o estado de consciência visto, a tensão visual, a imagem".

A dificuldade desta caracterização aponta para a primeira e maior especificidade do texto não-
verbal, porque, por assim dizer, nele não encontramos um signo, mas signos aglomerados sem
convenções: traços, tamanhos, cor, contraste, textura, sons, palavras, ao mesmo tempo juntos e
difusos.

O não-verbal não substitui o verbal, é bom que se diga, mas convive com ele, ou seja, as palavras
ou frases que nele podem aglomerar-se perdem sua hegemonia logocêntrica para apoiar-se ou
compor-se com o visual, sonoro, numa nivelação e transformação de todos os códigos.

Ao incorporar-se à realidade, os textos não-verbais não se impõem à observação, senão por uma
operação mental específica: esta operação é a leitura. Assim, a característica plurissígnica do
texto não-verbal gera sua segunda característica estrutural, ou seja, insere-se no espaço da página
onde é escrito e que, concomitantemente, transforma o próprio espaço em linguagem,
caracterizando-o como manifestação privilegiada do não-verbal.

Ferrara(1998) nos diz que estudar a organização do não-verbal, as mudanças funcionais das suas
articulações, a circulação de seus signos, compreender o papel dos seus usuários ou receptores,
sua relação com o processo institucional ou cultural onde se insere, sua contextualização ou
descontextualização, sua semantização ou ressemantização é, ao mesmo tempo, estudar o espaço
como linguagem, como representação da prática cultural que lhe é inerente. Para este autor,
estudar o espaço como página onde se emite e se recebe um texto não-verbal supõe estudá-lo
como extensão daquela mesma prática representativa, ou seja, nele se escreve a história sucessiva
de um modo de pensar, desejar, desprezar, escolher, relacionar, sentir etc. A percepção da escola
e sua rede de relações, por exemplo, construída através de "fragmentos" da sua imagem, leva os
interessados em sua compreensão à surpresa que rompe com o hábito do uso. Um exemplo
significativo desta constatação foi a experiência estética experimentada pelo artista plástico
Christe, que ao cobrir com extensos tecidos monumentos importantes da história da humanidade
e descobri-los após algum tempo, possibilitou olhares diferenciados face aqueles símbolos
históricos, já um tanto quanto mumificados pelo uso, ou ofuscados pela percepção cotidiana.
Reacendendo significados, este artista revitalizava a história crivada na obra, bem como a
história dos seus autores e dos seus tempos.

Este procedimento de registro do espaço, levaria o ator pedagógico a captar, confrontar e


informar espaços idênticos, próximos ou divergentes. Contrastar é um método significativo em
uma pesquisa de percepção espacial, levando a distinções importantes para a compreensão de um
cenário institucional como a escola.

O recurso da máquina fotográfica, por exemplo, estabelece um estranhamento entre o espaço


ambiental e seu uso habitual, permitindo, então, explicitar, não só a imagem da escola, mas a
seleção dos seus ângulos claramente relacionados com o cotidiano. Esta relação surpreende o
próprio ator pedagógico quando dela se apropria através da imagem fotográfica revelada, e isto
constitui estímulo para a verbalização do uso como significado da escola.
O pesquisador pode muito bem atuar como estímulo para captar o uso escolar, resgatando-o da
sua opacidade habitual e tornando-o relevante pela imagem(fotografia), a ponto de ser possível
falar sobre ela, verbalizá-la e, aí, complementar o sentido construído numa gestalt mais ampliada
e conectada em relação a outros âmbitos da sua vida.

O processo de interpretação das imagens construídas pode desenvolver-se a partir das seguintes
perspectivas escolares: características físico-contextuais e estágio atual e sua transformação; a
memória e a história ambiental; o espaço público institucionalizado e espontâneo; a relação entre
espaço público e privado; o ambiente escolar nas suas microlinguagens.

Neste processo, o vídeo flagra a dinamicidade ambiental e serve de elemento de contraste com a
posterior documentação fotográfica. De certa forma, a leitura não-verbal, nos seus limites, obriga
o leitor a retomar a lógica do verbal para operacionalizar-se, embora imponha, como linguagem,
não a hegemonia sígnica, mas o emaranhado de índices-fragmentos. Isto é, o texto não-verbal
opera com resíduos desconexos de múltiplas linguagens, mas sua leitura aprende, com a leitura
do verbal, a necessidade de operar logicamente, daí a necessidade de geometrizar os "resíduos"
sígnicos, compará-los e flagar convergências e divergências(Ferrara, 1988).

Apreendem-se formas, volumes, cores, movimentos, que adquirem, num primeiro momento,
estruturas frásicas e significantes, mas compõem, em um segundo momento, flashes de
concretização semântica. À lógica do significado verbal substitui-se o flash semântico, o
instantâneo do significado.

Para Ferrara, a percepção deste instante semântico é básico para a concretização da leitura, mas
depende, por comparação e contraste, da capacidade do analista de decodificar o significado
verbal, ou seja, a experiência de decodificação verbal permite apreender o significado relacional
que se vislumbra, num rápido índice sígnico, numa passageira associação de imagens. Há,
portanto, que distinguir, no não-verbal, o texto da leitura.

Temos que, no texto verbal, o referente se textualiza, isto é, fixa a apreensão de um tempo; no
não-verbal, o referente é enfaticamente contextual, sofre o impacto de um ritmo que não se deixa
fixar e deve ser ele próprio considerado linguagem.

Ademais, o texto não-verbal supõe uma recepção que ousa ultrapassar os limites da alfabetização
verbal para acreditar na sua possibilidade de ver, através de fragmentos informacionais, um texto
que não é outra coisa senão o reflexo de outros textos, inclusive verbais, já armazenados na
memória e veiculados pelos sentidos. É, antes de tudo, a capacidade do cérebro humano de
processar informações através da interação sensível do universo que o cerca(Ferrara, 1988).

Neste sentido, a escola é mensagem à procura de significado que se atualiza em uso e


cotidianamente.

No que se refere ao processo de estudo utilizando equipamentos produtores de imagens, é


interessante relatar a itinerância de Sampaio(1997), ao estudar, na sua tese de doutorado, a
abordagem do corpo em escolas de Salvador. Nos diz Sampaio:

Mas a grande discussão foi mesmo a câmera de vídeo; percebi que, no seu imaginário eu
viria filmá-las com um grande equipamento, como um repórter de TV, auxiliada por alguém
e por luzes. Felizmente, tive a idéia de levar para a reunião minha pequena "handcam"; ao
vê-la, o grande problema praticamente desapareceu, apenas uma professora falou que, de
qualquer forma, não gostava nem de fotos, que nunca tinha sido filmada e que ficava
constrangida. Garanti a todos que mostraria os resultados das filmagens, mesmo para as
crianças. Uma das professoras perguntou por quanto tempo eu permaneceria em sala; na sua
opinião, as filmagens não poderiam ser longas, porque isso poderia incomodar o
desenvolvimento normal das aulas... acordamos que, a cada vez, eu demoraria 15 minutos
em sala. Insisti sobre a necessidade delas realizarem suas tarefas sem se ocupar com a
minha presença, sem planejar nada de especial para o momento das observações e,
sobretudo, não corrigir as crianças porque estavam sendo filmadas... Era certo que uma
pessoa estranha, que portava uma filmadora, chamaria a atenção das crianças, de forma
nenhuma habituadas a práticas semelhantes... Quanto a este ponto, expliquei que filmaria
alguns dias em horários livres, o que, no meu entender, favoreceria a uma certa habituação
das crianças com o equipamento e, ao mesmo tempo, com minha presença... Voltei à escola
para, num movimento inicial, fazer algumas filmagens; cheguei na hora do recreio e me pus
num canto do pátio a filmar, enquanto as crianças se dirigiam à cantina... corriam ou
simplesmente, andavam por ali, em pequenos grupos... permiti que eles manuseassem a
câmera... se tornou um verdadeiro acontecimento dentro da escola. Após uma semana de
observação livre, eu e meu equipamento já pertencíamos ao ambiente da escola. Após esta
fase que chamei de 'habituação', que implicava numa mútua familiarização entre mim e a
escola, pude então começar a fazer filmagens dentro das salas de aula... procurava me
localizar na classe de tal forma que eu pudesse visualizar, ao mesmo tempo, a professora, a
atividade em curso e, evidentemente, a escola.

Deste procedimento prático de construção de imagens, Sampaio apreende o que chamou de "a
simbologia do espaço escolar". Segundo o estudo desta autora, nada pode sugerir a ludicidade
característica da infância, a provocação de sua curiosidade, de sua expressão corporal intensa nas
escolas estudadas. Nestes termos, conclui: "a escola é pensada enquanto prédio, enquanto
concepção de arquitetura, para receber alunos".

O que Sampaio mostra, via os recursos das lentes de sua câmera, é uma verdadeira política da
quietude, visando uma aprendizagem reduzida ao racional. Pela linguagem dos corpos em
interação e articulados às outras linguagens escolares, a autora chega à conclusão que, na prática
pedagógica, perpassa um imaginário onde aprender é muito mais quietude do que movimento no
espaço da educação infantil que estudou.

Sampaio, MacLaren, Meham, são exemplos que evidenciam, nos seus estudos da escola, o
quanto o uso da imagem para a etnopesquisa é um recurso extremamente fértil, principalmente
na compreensão dos múltiplos rituais que a escola constrói nos seus espaços vitais.

Em termos de uma etnopesquisa, é bom frisar que o vídeo ou mesmo a entrevista gravada não
devem substituir a observação participante. Estes meios não obtêm o equivalente ao que a
presença do pesquisador no campo é capaz de obter em termos de observação. Poisson(1990) nos
fala, por exemplo, que em verificando seqüências filmadas em campo, teve a impressão de que
estava assistindo a uma peça, só que filmada e apresentada na televisão. Tal impressão se dá
porque o vídeo focaliza certos aspectos e omite uma grande parte da realidade globalmente
vivida pelo conjunto das pessoas que estão presentes no meio onde se faz o registro das ações.
Análise construcionista
Bakhtin nos diz do caráter dialógico da fala individual e, ao afirmá-lo, nos diz também da
natureza sócio-histórica, interativa e constitutiva da linguagem. Aliás, vimos isto já como um
fundamento do construcionismo, na medida em que a linguagem aparece ali como uma mediação
fundamental e um instrumento incontornável.

Deste modo, uma análise construcionista teria nas interações naturais, na dialogicidade, na
comunicação, os subsídios fundamentais para a compreensão de realidades, sendo a linguagem a
mediação fundante.

Ao criar algumas metáforas para explicitar a dinâmica construcionista, os teóricos do


construcionismo social e, principalmente, Barnett Pearce, se utilizam da noção de jogo como
forma de mostrar as relações de troca que se desenrola num processo comunicacional. Esta
metáfora é tomada basicamente da perspectiva do participante, daquele que experiencia o jogo.
Neste processo, as ações que se atualizam respondem a um desenvolvimento e a uma
configuração de um desenho sempre mutante de acontecimentos. As ações vêm a ser parte deste
processo de estruturação deste desenho que, na medida em que configura, estabelece o contexto
para os próximos eventos; é um processo que nunca se cristaliza, porque os contextos vão se
configurando permanentemente. Assim, o significado que qualquer ato que se desenvolve dentro
de um jogo não está fixo nem adstrito a um significante, e não se adapta a quadros de
correspondência um a um entre comportamentos e sinais, é definido em termos de sua
significação(Pearce, 1997).

Pearce ainda nos diz, inspirado na teoria dos sistemas, que um sistema é a melhor explicação de
si mesmo. Portanto, situar o jogo e a partir de dentro do jogo é uma premissa básica do
construcionismo social. Isto quer dizer que, se desejamos compreendê-lo, devemos fazê-lo a
partir da organização de sua composição interna organizada. É na configuração produzida pelos
diálogos, na interação, que os construcionistas implementam a compreensão da constituição das
realidades, vendo na comunicação o processo fundante desta constituição.

Perseguindo esta via de recomendação para uma análise construcionista, avaliei pertinente
exemplificar este recurso metodológico tomando como subsídio o estudo que fiz da obra de
Jorge Amado "Capitães de Areia", vista de uma perspectiva do romance de formação (Macedo,
1997). Para alguns autores como Coulon (1987) e Pujade-Renaud(1986), a literatura apreende
uma fração do real reelaborando-o, reinterpretando-o de forma indexal e ativa. Partilha desta
opinião Sigmund Freud, quando considera que a ficção elabora uma verdade que muitas vezes
escapa à pesquisa em ciências humanas. A obra literária, em geral, preserva a dialogicidade,
condição irremediável para uma análise construcionista que, de preferência, pratica uma
hermenêutica movente. Faz-se necessário lembrar, entretanto, que a análise construcionista é
possível em qualquer situação humana, desde quando a comunicação esteja presente.

Os capitães da areia eram crianças pobres, desgarradas das suas famílias, e com histórias
diferentes que, em busca de concretizar objetivos imediatos e sonhos às vezes inacessíveis,
reuniam-se por acaso num velho trapiche, transformado em lar coletivo. Convivendo na
cotidianidade extremamente contraditória da cidade de Salvador, esse grupo garantia sua
sobrevivência, amava, projetava o futuro, lutava, roubava e fazia devoções a santos de fé;
arrependia-se, conflitava-se, brincava, sonhava, enfim, constituía significados e concretizava
ações.

Jorge Amado faz emergir uma concepção de infância não-reificada. Não há linearidade nem
pseudoconcretizações nas suas interpretações. A criança é um ser-no-mundo, num contexto que
forma e é formado por ela. Seus personagens infantis incessantemente agem interpretando, num
processo de interação e de comunicação que se move e vai configurando realidades e destinos.
Documento pujante da vida de um determinado grupo de crianças, onde as barreiras do
moralismo e da reificação são do início ao fim ultrapassadas, "Capitães da Areia" é publicado
pela primeira vez em 1937, logo após a instalação da ditadura do Estado Novo. Amado vê toda a
sua obra queimada em praça pública, sob a acusação de ser um manifesto comunista e imoral,
portanto, subversivo. Por este fato, vê-se de imediato o caráter instituinte da sua construção
literária. A natureza reflexiva do seu livro é demonstrada pelo barbarismo da reação que o
instituído desenha e implementa. Atentemos para a densidade e a pertinência construcionista
destes diálogos:

" MANHÃ COMO UM QUADRO ". A ESCOLA IMPOSSÍVEL

Pedro Bala, enquanto sobe a ladeira da Montanha com o Professor, vai pensando que não
existe nada melhor no mundo que andar assim, ao azar, nas ruas da Bahia...Moças se
debruçam nas janelas dos casarões antigos e ninguém pode saber se é uma costureira que
romanticamente espera casar com um noivo rico ou se é uma prostituta que o mira de um
velho balcão, enfeitado de flores em pobres latas.

A fisionomia de Professor se fecha:

- Eu sei que nunca há de ser...

- Quê!

- Tem vez que me topo pensando... - e Professor mira o cais lá embaixo, os saveiros
parecem brinquedos, os homens miúdos carregando sacos nas costas.

Continua a voz áspera, como se alguém o tivesse batido:

- Eu penso um dia fazer um bocado de pintura daqui...

- Tu tem jeito. Se tu tivesse andado pela escola...

- Mas nunca pode ser um troço alegre, não...

- Por quê? – Pedro fala, está espantado – Tu não vê que tudo é mesmo uma beleza! Tudo
alegre...tem mais cores que o arco-íris.

- Se eu tivesse tido na escola como tu diz, tinha sido bom. Em um dia ia fazer muito quadro
bonito. Um dia bonito, gente alegre andando, rindo, namorando, assim como aquela gente
de Nazaré, sabe? Mas cadê escola? Eu quero fazer um desenho alegre, sai o dia bonito, tudo
bonito, mas os homens saem tristes, não sei não...Eu queria uma coisa alegre.

- Quem sabe se não é melhor mesmo fazer uma coisa como tu faz? Pode até dar mais
bonito, mais vistoso.

- Que é que tu sabe? – Que é que eu sei? A gente nunca andou em escola...eu tenho vontade
de fazer a cara dos homens, a figura das ruas, mas nunca tive na escola, tem um bocado de
coisas que eu não sei...

Fez uma pausa, olhou Pedro Bala que o escutava, continuou:

- Tu já deu uma olhada na escola de Belas Artes? É um belezame rapaz. Um dia andei de
penetra, me meti numa sala. Tava tudo vestido de camisão, nem me viram. E tava pintando
uma mulher nua...Se um dia eu pudesse...

Pedro Bala ficou pensativo. Olhava o professor como que pensando. Logo falou com um ar
muito sério:

- Tu sabe o preço?

- Que preço?

- De pagar na escola? O professor?

- Que história é essa?

- A gente se reunia, pagava pra tu... Professor riu:

- Tu nem sabe...tanta complicação...Não pode não, deixa de tolice...

- Um dia tu ainda bota um bocado de pintura numa sala da Rua Chile, mano. Sem escola
sem nada. Nenhum destes bananas da escola faz uma cara como tu...tu tem jeito...

Professor riu. Pedro Bala riu também:

- E tu faz o meu retrato, hem ! Bota o nome embaixo, não bota? Capitão Pedro Bala, macho
valente...

Tomou a atitude de um lutador, com um braço estirado. Professor riu, Bala também riu,
logo o riso se transformou em gargalhada. E só pararam de gargalhar para aderir a um grupo
de desocupados que se reunira em torno de um tocador de violão Amado(1991).

Vimos que o Professor projeta em sua pintura a tristeza de não poder ir à escola; interpreta
comentando sua melancolia, melancolia que aparece nos rostos das pessoas que pinta, apesar da
beleza do cenário. Por outro lado, Pedro Bala valoriza a competência natural do professor, e em
sua fala verifica-se um desprezo, eivado de revolta, face àqueles que tiveram o "privilégio" de
passar pela escola. Mesmo atingindo os escolarizados com a sua ira, gostaria de ver o Professor
na escola, percebe o valor individual e social de um processo de escolarização.
O Professor apreende certa incompletude da sua competência e entende que a escola o faria
melhor enquanto pintor. Sente a escola como uma instituição distante.

Diante da tristeza do Professor e de suas motivações, Pedro Bala reage diferente, reafirma as
regras dos Capitães da Areia: "Nenhum destes bananas da escola faz uma cara como tu...tu tem é
jeito..." Contrapõe-se àquele outro mundo que o exclui, fazendo questão de contrariá-lo; pensa
em estratégias inerentes às ações dos "Capitães da Areia", no sentido de forjar condições para o
Professor estudar.

Assim, ficção e realidade misturam-se para nos fornecer uma compreensão encarnada do que foi
a infância pobre de Salvador num dado contexto histórico e refletida por um dos seus segmentos,
onde a escola emerge como uma utopia distante e um alvo de revide social.

Amado mergulha nos labirintos das tramas e jogos do grupo de crianças descrito e, sem
sistematizar nenhum conceito definitivo de infância, tão pouco nenhuma metafísica abstrata a
respeito da existência do grupo, elabora uma densa construção de sentidos indexais e reflexivos.

A forma pela qual as crianças constroem significados, produzem estratégias e regras de conduta,
é exuberante. A diacronia-sincronia das ações brota nas tramas das negociações no dia-a-dia
daquele mundo, em que crianças e adultos, em interação incessante, imersos na cultura do lugar,
colados à realidade que fabricam, convivem na contraditoriedade e pluralidade do cotidiano de
Salvador, movendo-o e dando-lhe feições. A narrativa produzida ao mesmo tempo em que
desreifica a infância, evidencia, através das instituições pedagógicas que se mostram, a
construção da exclusão, por intermédio da violência física e/ou simbólica, em uma sociedade que
cultiva e cultua um ethos e uma ética de assistência desreferencializadora, jamais uma ética da
compreensão, como elabora Morin.

Assim, ao mesmo tempo que mostrei, por uma análise construcionista, a pertinência da obra de
Jorge Amado para pensarmos a infância pobre do nosso contexto, vimos o quanto este tipo de
recurso pode instigar os atores pedagógicos a olharem para lados opacos da produção do
conhecimento e da sociedade, ofuscados pela metanarrativa "dura" que habita a escola, suas
interpretações e práticas.

A análise construcionista vem nos mostrar que o universalismo e a reificação com que a infância
é apreendida entre nós impede que sejam vislumbrados aspectos importantes da história vivida
pelos diversos segmentos infantis em formação.

Dramaturgia social e o método de pesquisa etnocenológico


É fato que em sociedade representamos papéis diversos, apesar da relativa estabilidade ao nos
apresentarmos enquanto atores sociais nos cenários da nossa cotidianidade. É justamente pela via
da noção de representação e de sua dinâmica interativa que a dramaturgia de Goffman vai
inspirar um método que, em tentando apreender os diversos papéis desempenhados por atores no
dia-a-dia, termina por compreender determinada organização interativa de significados
socialmente constituídos e que reflexivamente instituem e alimentam outras ordens sociais. Os
diversos rituais da prática pedagógica são um exemplo que nos mostra como papéis diversos
entram em cena, mobilizados pelos interesses particulares de cada ator, para, ao final,
constituirem atos que legitimam e instituem ao mesmo tempo uma dada estrutura. Apesar de
Goffman nunca ter tido preocupações com ordens sociais se estabelecendo, sendo esta uma
preocupação muito mais etnometodológica, seu modelo, pela sua pertinência construcionista,
criou possibilidades para a construção de um método etnocenológico.

Na dramaturgia goffmaniana, representar é transmitir e constituir uma verdade, com todas as


contradições ou paradoxos que alguém de fora possa apreender. Nos diz Goffman

que quando um indivíduo desempenha um papel, implicitamente solicita de seus


observadores que levem a sério a impressão sustentada perante eles. Pede-lhes para
acreditarem que o personagem que vêem no momento possui os atributos que aparenta
possuir, que o papel que representa terá as conseqüências implicitamente pretendidas por
ele e que, de um modo geral, as coisas são o que parecem ser. Para Goffman, é importante
examinar a própria crença do indivíduo na impressão de realidade que tenta dar àqueles
entre os quais se encontra (Goffman, 1983:25).

Para uma compreensão mais apurada de um método etnocenológico abstraído das idéias de
Goffman, faz-se necessário analisarmos alguns conceitos nucleares de sua dramaturgia social.
Neste sentido, representação tem a ver com toda atividade de um indivíduo que se passa num
período caracterizado por sua presença contínua diante de um grupo particular de observadores, e
que tem sobre estes alguma influência. Como conseqüência deste conceito mais amplo,
depreende-se a noção de fachada, significando a parte do desempenho do indivíduo ao definir
situações para os que observam a representação. Há, neste conjunto, ou mesmo nesta gestalt, o
cenário, compreendendo o pano de fundo que vai constituir o suporte contextual do desenrolar
da ação executada diante, dentro ou acima dele. Em realidade, ao representar um papel, o ator
social define e redefine constantemente situações, reproduz, mas também cria, trazendo à cena e
ressignificando presentemente situações e cenas do passado recente ou remoto, ou mesmo
mobilizando sentidos projetados a partir de uma intencionalidade vinda das possibilidades de um
certo devir.

Ademais, temos que pontuar que segundo a dramaturgia social de Goffman, quando um
indivíduo se apresenta diante de outros, seu desempenho tenderá a incorporar e exemplificar os
valores oficialmente reconhecidos pela sociedade, até mesmo mais do que o comportamento do
indivíduo como um todo.

Goffman argumenta que, na medida em que uma representação ressalta os valores oficiais
comuns da sociedade em que se processa, podemos considerá-la, à maneira de Durkheim e
Radcliffe-Brown, como uma cerimônia, um rejuvenescimento e reafirmação expressivos dos
valores morais da comunidade. Além disso, tanto quanto a tendência expressiva das
representações venha a ser aceita como realidade, aquela que é no momento aceita como tal,terá
algumas das caraterísticas de uma celebração.

É a partir do jogo das aparências e das expectativas que também podemos ter acesso a âmbitos
que costumamos chamar da verdade: elas fazem parte deste conjunto constitutivo e compõem a
gestalt do que denominamos real. Neste sentido, Goffman vai proporcionar o retorno dramático
do intérprete, que enquanto unidade da interação, se auto-eco-organiza na e pela representação
dos seus papéis na presença de outros enquanto ator social.

É significativo pontuar que o método etnocenológico de pesquisa tem outras fontes de


inspiração, como, por exemplo, os próprios estudos realizados no seio da etnocenologia (Pradier,
1988) enquanto disciplina emergente. Conforme Jean-Marie Pradier, a etnocenologia estuda as
práticas e os comportamentos espetaculares(grifo nosso) organizados dos diversos grupos
étnicos e comunidades culturais. Enquanto campo de estudo que nasce multirreferencializado, a
etnocenologia articula outras referências com a psicologia, a neurobiologia a antropologia e a
etnologia. Segundo Pradier, é espetacular o que se destaca da banalidade do cotidiano, da
plenitude da existência, da coexistência, em um evento construído, assegurado e assumido por
um ou mais performers. O autor empenha-se em marcar a perspectiva etnocenológica, mostrando
sua oposição ao pensamento dualista segundo o qual se concebe a existência de atividades sem
corpo e atividades corporais sem implicação cognitiva e psíquica. Afirmando que a
etnocenologia não se organiza em torno da descrição comparativa de espetáculos exóticos e/ou
populares e que ela não limita seu campo às civilizações nas quais o estudo constituiu o domínio
tradicional da etnologia, Pradier pontua o caráter não-etnocêntrico da etnocenologia ao
relativizar as obras e as práticas espetaculares ocidentais, explicitando sua especificidade
cultural.

Neste sentido, fica explícito que o propósito da etnocenologia é o de contribuir para um melhor
conhecimento da natureza do homem, participando da elaboração de uma teoria geral do
"espetacular humano"(Pradier, 1988), e que sua hipótese fundamental parte do princípio de que a
atividade espetacular humana é um traço fundamental da espécie, sustentado pela unidade do
corpo/pensamento, e que este traço constitui o espaço central a partir do qual se organizam
formas múltiplas nos campos os mais diversos da vida dos indivíduos e dos coletivos sociais. Em
resumo, para Pradier, a etnocenologia é o estudo etnolingüístico do campo lexical das práticas
espetaculares, bem como do campo semântico deste espetacular; dos tipos de práticas
espetaculares tal como são definidos pelos autoctones; das aprendizagens dos performers e dos
participantes e/ou espectadores; da função e do status dos performers; dos materiais utilizados;
das práticas associadas e da criação espetacular.

Num estudo de forte componente heurístico, onde a preocupação da autora é com aspectos
ecológicos-educacionais da relação homem x animal, Santos(1997) utiliza-se do método de
pesquisa etnocenológico(sem sistematizá-lo) para a edificação de uma leitura compreensiva desta
relação num cenário de uma feira livre nordestina. Localizando seu estudo no âmbito da
etnozoologia, Santos descreve de forma fina todo um imaginário que eclode da relação homem x
animal num contexto comercial e predominantemente rural, mas que atualiza outras conexões,
em níveis do conhecimento zoológico, das questões sociais da saúde e educação ambiental.

Sinteticamente, descreverei esta construção do método de pesquisa etnocenológico utilizado pela


autora:

" Cenário – Área externa do pavilhão 1 do Centro de Abastecimento de Feira de Santana.


Espaço sombreado por quatro sombreiros coloridos, uma boca de altofalante, uma mesa
contendo alguns frascos envolvidos separadamente em jornais...uma bateria de carro servindo
de fonte de energia, uma mala do tipo 007...duas caixas de madeira contendo serpentes e um
lagarto teiú.
Personagens – Homem 1 trajando paletó verde...colar de candomblé, óculos escuros, barba por
fazer, aparentando 45 anos; homem 2 trajando uma roupa comum, tênis, com aproximadamente
54 anos; Jovem aparentando 26 anos, trajes simples; quatro serpentes(Boa constrictor) e um
lagarto teiú(tupinambis sp).

Ato primeiro:

Cena 1: homens 1, 2 e transeuntes...

O homem 2, utilizando o microfone, chama a atenção dos transeuntes:

(...) A briga do teiú com as cobras Chiquita e Paloma. Essa é Paloma e essa é Chiquita, uma
salamandra. São venenosas muito perigosas...Vocês sabem que teiú não tem veneno, é um
bicho frouxo, não é de nada! Mas se ele encontrar uma bicha perigosa (se referindo às
serpentes) e morde ele, ele sai correndo pro mato e cava a terra e encontra a batata-de-teiú e
come. Aí, sim! Ele fica brabo e volta pra brigar até matar a cobra. Batata-de-teiú cura até
veneno de jararaca... É como diz nosso senhor Deus da Bíblia... (Faz citação do texto
bíblico de maneira rápida e confusa).

As frases são ditas com intensa expressão corporal. Pega uma fralda, faz cara de emocionado e
fala sobre trechos de sua história de vida.

Baianos e baianas, eu trago pra vocês uma coisa maravilhosa e acredite em mim pelo suor
que enxugo na fralda da minha neta: eu já bebi muito....e o que me salvou foi este remédio...

Cena 2 – Homem 2; remédio.

Os transeuntes aglomeram-se, alguns fazem sinal afirmativo com a cabeça, concordando com a
apresentação. O homem 2 continua:

Baianos e baianas, é, trago um remédio para os homens e um verdadeiro milagre para as


mulheres.... Baianos e baianas me desculpe, mas tem mulher que não tem coragem de
entregar sua mehor roupa-de-baixo pra melhor amiga lavar porque está cheia de pus da
inflamação da região baixa...tem homem que caiu a potência, é nada em casa.(Risos). Estou
oferecendo um remédio para os homens e um milagre para as mulheres. Este remédio serve
para a inflamação da próstata dos homens e das mulheres...

Depois de descrever toda a representação envolvendo os personagens, onde a tensão da briga das
cobras e do lagarto era a finalidade última para possibilitar a compra dos remédios anunciados
(briga esta nunca concretizada, conforme a descrição detalhada da autora), a autora constrói as
interpretações daí advindas. Mostra a utilização econômica dos animais, o imaginário quanto às
serpentes e seus significados simbólicos, onde a dramatização de seus perigos vai credibilizar a
fala dos vendedores de produtos, vendidos sem nenhum controle sanitário e/ou fiscal.

Com este estudo, procura responder questões sobre a conexão homem-animal no contexto
estudado, estabelecendo conexões e relações no que se refere a esta temática de interesse para os
educadores ambientais e etnozoólogos, hoje mobilizados com questões relacionadas à
preservação e ao entendimento da relação histórica homem-natureza e a questão da
sustentabilidade como tema pedagógico.

O caráter seminal do estudo de Santos está na apreensão do dinamismo das interações, que ao
pulsarem em contexto, em rituais muitas vezes frenéticos, fornecem, de forma extremamente
indexalizada, significativos indicadores e ancoragens semiológicas de temáticas e problemáticas
sociais importantes. Tomando, ao mesmo tempo, inspirações etnocenológicas e
etnometodológicas, as análises engendradas pela autora nos fornecem um exemplo significativo
de método para apreendermos e compreendermos de uma perspectiva interacionista,
hermenêutica e holística o aspecto constitutivo da encenação social na vida cotidiana. De uma
perspectiva epistêmica, é uma realidade que está aí e que constitui uma série de desafios
cotidianos a serem compreendidos.

Diário de campo. Notas de existência e conhecimento


Jornal de pesquisa, diário de campo, diário de viagem, são denominações que conceitualizam a
descrição minuciosa e intimista, portanto densa de existencialidade, que alguns pesquisadores
despojados das amarras objetivistas constroem ao longo da elaboração de um estudo. Trata-se,
em geral, de um aprofundamento reflexivo sobre as experiências vividas no campo de pesquisa e
no campo da sua própria elaboração intelectual, visando apreender de forma profunda e
pertinente o contexto do trabalho de investigação científica, que, como nos alerta Cicourel e
Meham, imbrica-se no próprio objeto e forma sua gestalt, esclarecendo-o em todos os seus
âmbitos.

Em realidade, a prática do diário de campo permite melhor nos situarmos nos meandros e
nuances em geral descartados(nem por isso pouco importantes) da instituição pesquisa, naquilo
que são suas características explícitas e tácitas. Atinge o habitus objetivista cravado no
inconsciente acadêmico, que termina por determinar procedimentos e conclusões de estudos.
Entretanto, o mundo das implicações, apesar de permanecer no campo do não-dito, jamais pode
ser alijado do contexto da produção científica. É neste instante que o diário de campo tem uma
função de extremo significado heurístico.

Em geral, a prática de escrita de um diário de campo leva ao pesquisador a possibilidade de


compreender como seu imaginário está implicado no labor da pesquisa, quais os seus atos falhos,
quais os verdadeiros investimentos que ali estão sendo elaborados. É um esforço de tornar-se
cônscio da caminhada, do processo pessoal e co-construído da produção; portanto, um potente
instrumento de formação no campo da investigação em ciências do homem e da educação,
ciências estas irremediavelmente construídas nos âmbitos do que emerge enquanto alteração.

Nestes termos, ao construir o seu diário de campo, o pesquisador reafirma definitivamente seu
status de ator/autor, entra, por conseqüência, numa elaboração e numa construção do sujeito e do
objeto, bem como passa por um trabalho elaborativo sobre aquilo que nos constitui tanto em
nível do imaginário quanto do real. Portanto, ao narrar despojada e minuciosamente seu vivido
de pesquisador, o sujeito se performa também, daí a pertinência formativa do diário de campo,
que, aliás, em alguns centros formadores, toma feições que transcendem a pesquisa, transforma-
se num instrumento generalizado de auto-formação.
Assim, ao elaborar o seu diário, o pesquisador, como nos sugere Morin, constitui-se num sujeito
entre outros sujeitos, se humaniza, se dialetiza, ao aceitar a lógica do inacabamento - da
alteração, portanto -, que qualquer teoria coerente do sujeito deve exercitar.

Além de ser utilizado enquanto um instrumento reflexivo para o pesquisador, o gênero diário é,
em geral, utilizado também como forma de conhecer o vivido dos atores pesquisados, quando a
problemática da pesquisa aponta para a apreensão dos significados que os atores sociais dão à
situação vivida. Diria que, é um instrumento de grande relevância para acessar os imaginários
envolvidos na investigação, pelo seu caráter subjetivo, intimista.

Coulon(1985) nos mostra com o exemplo da sua pesquisa a constituição do que chamou de
"inteligência institucional" e como os diários de estudantes revelaram o processo de afiliação à
instituição universitária no início das suas carreiras.

Para Lourau, o diário de campo ultrapassa seu quadro técnico de coleta de informações; é,
freqüentemente, também um diário de pesquisa. O texto institucional se mostra, não somente
oferece seu quadro de referência, mas orienta, implicitamente, a observação, informa os dados
que se coleta, excluindo outros. Às vezes, muito íntimo, o diário registra a temporalidade
cotidiana de uma investigação que engloba o projetoprocesso científico, que muitas vezes lhe
escapa(Lourau, 1994).

No caso da formação de pesquisadores, o diário, nos fala Borba (1997):

torna-se uma prática regular de escrita de um texto nosso, com o objetivo de uma maior
competência de escrita e de articulação dos nossos espaços de reflexão, um dispositivo que
coloca a nu nossas relações, e que, assim, nos ajuda a compreendê-las em profundidade.

Faz-se, assim, uma certa meta-reflexão do processo de formação do pesquisador.

"Escuta sensível", conhecimento escolar e etnopesquisa


Predominantemente, a história do conhecimento acadêmico é a história do significado
autoritário e da experiência monossêmica.

Um olhar historicizado e crítico sobre o conhecimento que faz a mediação dos currículos
destinados à formação no âmbito das ciências antropossociais encontrará um tipo de saber
dotado de uma aura de verdade absoluta. Uma verdade insofismável, que deverá ser aprendida
sem contestações, até porque já foi legitimada por um imaginário de ciência infalível.

Ademais, este conhecimento percebido como uma correspondência perfeita do real, é distribuído
como se não houvesse nenhuma contestação sobre seu caráter mesmo de cientificidade. Aqui, em
termos curriculares, o científico significa o que não pode ser problematizado, até mesmo
tematizado, o que está objetivado, instituído, o que só uma refutação de caráter empirista pode
contradizer.

Por trás de um discurso da ciência onisciente e que preconiza a neutralidade, esconde-se um


saber que, travestido de inofensividade, pratica um tipo de terrorismo onde a principal arma é a
omnipalavra, a palavra mestra, o conceito definitivo e definicional.

Cultivando e cultuando, até mesmo celebrando, apenas o que é norma, prescrição, este saber
legitima compulsivamente a racionalidade instrumental que o engendrou. Formas de
inteligibilidades out siders são ofuscadas, desencorajadas e até mesmo alijadas em definitivo.

Por conseguinte, assiste-se a uma banalização do saber acadêmico e da própria forma de acesso a
este saber, onde vê-se, de maneira imbecilizante, uma hipervalorização das funções mnemônicas,
ao se lidar com o conhecimento científico na escola.

Se olharmos em detalhe a riqueza da realidade, a complexidade das diversas formas de


inteligibilidade que a multiplicidade intelectual das pessoas pode mobilizar para conhecê-la,
temos a sensação de que a escola pratica, pelo culto ao significado autoritário, à experiência
monossêmica, um tipo de baixo saber, tanto medíocre quanto cínico e perverso, porque
eminentemente alijador. Histórias são negadas; saberes degradados e ironizados; visões de
mundo diminuídas; diferenças linearizadas por lógicas corporativas; barbáries naturalizadas;
mentiras secularizadas; descalabros legitimados; cinismos justificados em nome de um savoir-
faire tão superior quanto burocrático e de uma celebrada orgia promíscua do significado
autoritário. Da perspectiva de Boaventura Santos, acontece aqui um autêntico "epistemicídio".

Está claro para mim que esta prática, apesar de hegemônica, não acontece sem que se descubra,
mesmo em níveis de um entendimento impressionista, que trata-se de uma forma de apartheid.
Daí nascem resistências que, mesmo dialética e dialogicamente significativas, enquanto um tipo
de filosofia cotidiana do não, não bastam face à potente ideologização histórica que permeia a
arquitetura e a edificação destes saberes. As resistências carecem ainda de organicidade crítica e
de uma percepção fina do movimento do real.

Funda-se, nestes âmbitos do saber e do fazer escolar, o que Freire denominou de uma
"pedagogia da resposta", que avança, no máximo, para um ouvir caridoso e ritualístico, sem
nenhum compromisso com o que chamo de uma empatia majorante, jamais humanismo
pegajoso, adocicadamente neutro.

É neste rumo que o conceito de "escuta sensível ", forjado por Barbier, faz-se pertinente. É a
partir desta fonte de inspiração que podemos vislumbrar uma escuta dialética e dialógica, uma
empatia dialética e dialógica, uma autêntica ausculta, porque visceral.

Esta escuta, em realidade, pode ser fundamento de uma forma de ser, de uma postura. Uma
postura de escuta que aceita a premissa fenomenológica existencialista básica de que todos têm o
direito de ser compreendidos, um tipo de compreensão que não exclui, mas que não se abstém do
julgamento e de uma filosofia compreensiva do não.

O que se percebe é que a prática do significado autoritário pela ciência e seus distribuidores,
afirmou, sem sequer ouvir, ver e compreender; explicou, sem sequer explicitar ou qualificar suas
justificativas pela "autorização" daqueles que agem atribuindo sentidos e significados à vida.

A "escuta sensível", como dispositivo de pesquisa, é uma conquista catalizadora de vozes


recalcadas por uma história científica silenciadora e castradora. A necessidade de ouvir
sensivelmente, no ato de pesquisar, é, ao mesmo tempo, um recurso fundamental para os
etnopesquisadores, considerando suas bases filosóficas e epistemológicas, bem como mais um
dispositivo facilitador para a democratização do saber.

Estamos numa sociedade onde o poder econômico de base capitalista faz-se voz unívoca e
validada, impõe-se, portanto, pelo culto à unicidade, é ágil e tem uma capacidade admirável de
cooptar diferenças e ofuscar linguagens incômodas. Numa sociedade embevecida pelo consumo,
o poder econômico elabora uma sedução muitas vezes irresistível, onde, ao mesmo tempo,
reprime, alija, mas também seduz. Vejamos, por exemplo, o papel da mídia televisiva neste
engendramento. Como conseqüência, podemos detectar assincronismos como o cultivo, por
alijados e oprimidos, de práticas opressoras usadas pelos agentes do domínio iníquo, ou mesmo a
legitimação destas práticas pela via dos procedimentos de cooptação. Experienciamos uma
ciência e uma academia dotadas de potentes tendências corporativas e imunológicas, que, a
qualquer aproximação com o diferente, com o assincrônico, fecha-se e ataca de forma virulenta,
visando incorporar, por homogeneização, ou destruir por alijamento e negação da fala.

Consciente destes mecanismos, o etnopesquisador crítico quer ouvir sensivelmente para relatar
em profundidade, até porque a crítica sem aprofundamento, que ofusca a voz do seu sujeito-
objeto de análise, é no mínimo leviandade. Pensar sobre o que se faz e saber sobre o que se
pensa, é tarefa primordial de um etnopesquisador, assim como relatar desvelando é uma forma
de exercitar um certo poder. Por isso, escutar sensivelmente é prática fundante em etnopesquisa.
Ademais, é importante frisar "que a sensibilidade é, certamente, individual, mas, igualmente e
simultaneamente, social "(Barbier, 1993).

Portanto, ao se utilizar do dispositivo da "escuta sensível", não basta contextualizar o sujeito


pesquisado, é preciso, antes de tudo, vê-lo como um Ser que tem uma qualidade e um imaginário
criador.

No pensamento de Barbier(1993), a atitude requerida para a "escuta sensível" é a de uma


abertura holística. Dá-se a partir daí uma certa holoepistemologia, onde mais do que disjunção,
pratica-se uma escuta guestáltica. Para este autor, trata-se de entrar numa relação de totalidade
com o outro, tomado a partir da sua dinâmica existencial. Neste dinamismo emerge um corpo,
uma imaginação, uma razão, uma afetividade e uma necessidade interacional permanente. Neste
sentido, o ouvir, o tocar, o ver, são atitudes basilares na "escuta sensível".

Barbier nos diz, ainda, que para se falar em escuta é necessário empregar uma sorte de dialética
negativa. Ou seja, afirmar aquilo que ela não é. E uma das assertivas que a escuta traz para o
campo da pesquisa é que há sempre o que se escutar, por mais que o tema esteja exaustivamente
questionado, e que alguém em algum lugar afirme que não há mais o que saber.

Neste sentido, as elaborações relativas à "escuta sensível" aceitam enfaticamente o pensamento


multirreferencial que nasceu da crença de uma vazio criador incessante na constituição do
objeto. Por conseguinte, a prática humana e social é percebida como portadora de uma
multiplicidade de referências, que ninguém, nem mesmo o sujeito da prática, poderá esgotar
numa análise.

A crença nesta assertiva tornou-se um norteamento fundante para o etnopesquisador. Não saber
escutar sensivelmente é um decreto de morte para um estudo que se quer etnopesquisa, e que tem
na ação comunicativa um dos subsídios insubstituíveis.

A nosso juízo, a "escuta sensível" passa a ser não só um dispositivo significativo para se fazer
etnopesquisa crítica e multirereferencial dos meios educacionais, mas uma forma de ser
radicalmente humanizante.

Se os estudos pedagógicos pós-formais apontam para a edificação de um saber onde a alteridade


é basilar, - alguns falam que o futuro da pedagogia far-se-á na ênfase à alteridade -, entendemos
que não se chegará a tal sem que o saber pedagógico se produza por uma pesquisa indexalizada,
irremediável forma de fazer ciência pela escuta em profundidade e criticamente. Crítica na
medida em que, dentro das alteridades, também habitam assincronismos muitas vezes
inconscientes, ou seja, em forma de habitus, como explicita Bourdieu.

Um outro ponto importante de elucidação emerge na medida em que, ao falar de sensibilidade na


pesquisa, no processo de produção do conhecimento, tende-se a desprezar o sentido do rigor.
Outrossim, este rigor ressignifica-se na medida em que assimila dialética e dialogicamente
âmbitos de tendências modernistas – um exemplo é a constituição de um empirismo heterodoxo,
pelos interacionistas, da assimilação dialética e dialógica da epistemologia pela hermenêutica – e
cria novas maneiras consubstanciadas nas alternativas, nas relações e nas conexões. Os recursos
qualitativos utilizados pelos etnopesquisadores são fartos em exemplos de como o rigor
científico ressignificado é uma necessidade, assim como o quanto a escuta construída na
sensibilidade é um subsídio importante para se chegar a um rigor fecundo.

A "escuta sensível", como um dispositivo em etnopesquisa, constitui-se num recurso de


possibilidades pouco exploradas, principalmente no campo da pesquisa-formação, démarche de
pesquisa, aliás, ainda longe das nossas práticas de educadores e pesquisadores engajados nas
políticas educacionais e suas efetivações. Trata-se de uma fecunda fronteira em pesquisa
educacional, que aponta para o resgate do ator e do autor pedagógico, da atriz e autora
pedagógica, que o professor precisa incorporar urgentemente, na sua prática de sujeito do
processo e das finalidades educacionais.

Escutar sensivelmente em etnopesquisa é um imperativo, como a certeza de que em toda ação,


individual ou coletivamente orientada, há uma política de sentido que deve ser compreendida,
sob pena de se ficar nas verdades parciais e/ou de se mergulhar em interpretações impertinentes
ou mesmo pouco honestas. Da nossa perspectiva, esta postura é um tipo de ética imbricada no
processo de conhecer, uma auto-ética, uma ética comunitária, considero, das quais a pesquisa
nunca deve se desindexalizar se quiser praticar a ausculta do Ser do homem em prática.

A propósito do método documentário de interpretação (MDI)


Dentro da tradição hermenêutica da etnometodologia, Harold Garfinkel lança mão da noção
arquitetada por Mannheim de "método documentário de interpretação".

Não sendo um método reduzido à análise de documentos, o MDI, segundo o pensamento de


Garfinkel, não fica atrelado às performances sábias, como queria Mannheim. Coerente com o seu
entendimento da forma e dos processos de produção do conhecimento em toda a sua diversidade,
Garfinkel mostra que este método documentário já é uma obra em processo da "sociologia
profana", generalizando-o ao conjunto do raciocínio sociológico prático.

O MDI é, na realidade, um recurso que todo e qualquer ator social coloca em ato para
compreender reciprocamente e compreender o próprio mundo cotidiano. Vê-se que, no MDI, a
reflexibilidade e a indexalidade estão na raiz dos procedimentos pelos quais interpretamos
continuamente o mundo.

No pensamento de Mannheim, o método documentário de interpretação implica na pesquisa de


um pattern idêntico homólogo subjacente a uma grande variedade de realizações e sentidos. O
método consiste em tratar uma aparência de fato como um "documento de", como designando,
mostrando, em nome de um suposto modelo subjacente. Assim, o pattern refere-se a um
significado, portanto implica num processo de interpretação.

À propósito, Garfinkel esclarece que a tarefa de historicização da biografia de um personagem


repousa sob o uso do método documentário, por selecionar e ordenar os acontecimentos
passados, de tal sorte que se atribui às circunstâncias presentes sua pertinência passada e sua
perspectiva futura. Na mesma direção Coulon,(1987) observa que o MDI permite ver as ações
dos outros como expressões de patterns, esses patterns permitem ver o que são as ações. Assim,
as ações, sem cessar, são interpretadas em termos de contexto, e o contexto, a seu turno, é
compreendido como sendo o que é, através destas ações. Segundo o raciocínio que funda o MDI
, é este processo que nos permite reinterpretar de forma a priori certas cenas, de modificar
julgamentos sobre as coisas e os acontecimentos.

O MDI imbrica-se na cotidianidade dos atores sociais como um trabalho incessante de


interpretação do mundo e que, ordenando significações relativamente estáveis, formam as
cosmovisões de cada sujeito em ação. É uma constante tomada de perspectiva de atores sociais
conceitualizadores e conceituados e, que, ademais, criva os diversos métodos de pesquisa ditos
hermenêuticos. Colocando em evidência o MDI e a prática de pesquisa, Coulon nos explica que
seu uso se manifesta em numerosas ocasiões de interpretação de dados, quando o pesquisador
retoma suas notas de entrevista, ou levando em consideração as respostas de um questionário,
deve decidir sobre o que o entrevistado tinha em mente... Emerge também quando o pesquisador
se interroga sobre o caráter motivado da ação, ou sobre uma teoria, ou sobre a adesão de uma
pessoa a uma causa; ele utiliza o que efetivamente observou para documentar um "pattern"
subjacente.
Em resumo, o MDI é utilizado para "resumir o objeto", o construir interpretativamente,
contextualmente.

Análise e interpretação dos "dados" em etnopesquisa crítica


A prática em etnopesquisa crítica nos mostra que, em realidade, a análise se dá em todo o
processo de pesquisa. Há, é claro, um dado instante de ênfase na construção analítica que,
irremediavelmente, se transformará num produto de final aberto, até porque discordamos da
noção despretensiosa de que pesquisa é só processo e/ou estratégia acadêmica. Há uma produção
visada que se objetiva num corpus de conhecimento a serviço de uma formação e de uma
relevância social. De fato, na etnopesquisa a análise é um movimento incessante do início ao fim,
e que, em determinado momento, se densifica e forja um conjunto relativamente estável de
conhecimentos, como disse, um produto de final aberto, característica marcante das pesquisas
pós-formais.

Assim, uma das primeiras tarefas na análise dos dados de uma etnopesquisa é o exame atento e
extremamente detalhado das informações coletadas no campo de pesquisa. Este ato constitui a
primeira etapa do processo de análise e de interpretação. Os grandes eixos daquilo que emergirá
da análise e da interpretação podem, por assim dizer, estar contidos em germe nas questões
formuladas já na elaboração do projeto de pesquisa, projeto este que deve estar calçado, numa
experiência prévia e significativa, com a temática e com o objeto de estudo a ser analisado.

Após um certo tempo de imersão em campo, tempo que pode variar segundo a problemática do
objeto pesquisado e/ou de suas especificidades de contexto, o pesquisador deve indagar-se sobre
a relevância dos seus "dados", tomando, mais uma vez, como orientação, suas questões
norteadoras e outras intuições saídas do contato direto com o objeto pesquisado. Tal reflexão
aponta p ara o recurso que denomina-se saturação dos "dados", indicativo da suficiência das
informações e da possibilidade do início das análises e interpretações finais do conjunto do
corpus empírico. Este momento jamais é visto como momento estanque, pois é possível retornar-
se várias vezes ao campo à procura de maior densidade e detalhamento.

A partir deste momento, a tradição fenomenológica, em pesquisa, nos recomenda a redução.


Aqui se determina e se seleciona as partes da descrição que são consideradas "essenciais", e
aquelas que, no momento, não sejam avaliadas como significativas. O propósito deste momento
é distinguir – sem fragmentar e sem perder suas relações - o objeto da consciência, isto é, os
acontecimentos, as pessoas, as emoções ou outros aspectos que constituam a experiência. A
técnica usual e comum para realizar a redução fenomenológica é denominada variação
imaginativa. Consiste em refletir sobre as partes da experiência que nos parece possuir
significados cognitivos, afetivos e conotativos, e, sistematicamente, imaginar cada parte como
estando presente ou não na experiência. Neste processo de filtragem contextualizada e
encarnada, o pesquisador se capacita em "reduzir" a descrição para chegar à consciência da
experiência. Neste sentido, a compreensão só se torna possível quando o pesquisador assume o
resultado da "redução" como um conjunto de asserções significativas para ele, pesquisador, mas
que apontam para a experiência do sujeito, quer dizer, que apontam para a consciência que este
tem do fenômeno. Ao conjunto de asserções daí advindas, o procedimento fenomenológico
denomina unidades dos significados (Martins, 1992).

No começo, estas unidades devem ser tomadas exatamente como propostas pelos sujeitos que
estão descrevendo os fenômenos, empregando os seus etnométodos. Posteriormente, o
pesquisador transforma estas expressões em expressões próprias do discurso que sustenta o que
está buscando. Finalmente, obtêm-se a síntese das unidades significativas que vêm das várias
fontes de informações e dos vários sujeitos da investigação. Aqui, pluralidade, densidade,
detalhamento e contextualização são recursos que, se articulados, dão a "medida" da
confiabilidade das etnopesquisas. A existência no mundo é precisamente aquilo que deve ser
compreendido, conceitualizado e teorizado nesta perspectiva.

Faz-se necessário pontuar que a interpretação em etnopesquisa é, sem dúvida, uma atividade
extremamente exigente em termos intelectuais. Convoca-se, em geral, uma grande capacidade de
mobilização para refletir, fora de formalidades paradigmáticas, desaguando num espírito crítico e
de aguçada curiosidade face a realidades à primeira vista avaliadas como por demais banais e
óbvias. Há, portanto, que imbuir-se de uma imaginação metodológica que ultrapasse a mera
descrição e interpretação sumárias, produto de simples constatações. À medida que a leitura
interpretativa dos "dados" se dá - às vezes por várias oportunidades – aparecem significados e
acontecimentos, recorrências, índices representativos de fatos observados, contradições
profundas, relações estruturadas, ambigüidades marcantes. Emerge aos poucos o momento de
reagrupar as informações em noções subsunçoras – as denominadas categorias analíticas - que
irão abrigar analítica e sistematicamente os sub-conjuntos das informações, dando-lhes feição
mais organizada em termos de um corpus analítico escrito de forma clara e que se movimenta
para a construção de uma peça literária compreensível e heuristicamente rica.

No que se refere à construção das noções subsunçoras, que emerge conjuntamente da


competência teórico-analítico do pesquisador e da apreensão fina da própria realidade
pesquisada, deve conter uma capacidade ampla de inclusão, evitando-se a fragmentação das
análises através da emergência de inúmeras destas noções.

Algumas operações cognitivas são comuns na análise e interpretação dos "dados" obtidos a partir
de uma etnopesquisa: distinção do fenômeno em elementos significativos; exame minucioso
destes elementos; codificação dos elementos examinados; reagrupamento dos elementos por
noções subsunçoras; sistematização textual do conjunto; produção de uma meta-análise ou uma
nova interpretação do fenômeno estudado.

Desde que amplas noções subsunçoras pareçam corresponder à realidade pesquisada, em face da
densidade de dados e acontecimentos que figuram e são subsumidas por estas noções, emerge o
momento de estabelecer relações e/ou conexões entre as noções subsunçoras e seus elementos. É
neste momento que se inicia o esforço de organização e síntese, que vai ter seu momento final
nas considerações conclusivas. É o momento também de estabelecer totalizações relacionais com
contextos e realidades históricas conectadas com a problemática analisada; construir tematizando
as respostas às questões formuladas quando da construção da problemática da pesquisa; elaborar
meta-análises onde poderão brotar novas análises, novos conceitos, compondo um tecido
argumentativo pertinente e fecundo em termos da construção do conhecimento visado.

Por mais que este último aspecto pareça uma tarefa difícil para aqueles que se iniciam na vida
científica, face à exigência de certa competência teórico-metodológica, defendemos sempre a
necessidade de ousar, de aventurar-se na construção de conhecimentos fecundos, até porque
considero que não há mais lugar na academia, por absoluto empanturramento e enfastiamento,
para o conhecimento requentado, bem como, aos poucos, a resistência é cada vez maior face o
colonialismo intelectual e suas nefastas conseqüências formativas. Ademais, é bom frisar, não se
pode abster-se do rigor – diferente da rigidez esterilizante disseminada no conhecimento
acadêmico -, outrossim, este rigor não pode deixar de revisitar incessantemente a curiosidade, a
inventividade e a transgressão intelectual.

J. Ardoino, chega a falar em traição no que concerne aos cânones da ciência monorreferencial
moderna.

A conseqüência natural destas elaborações é a compreensão de que o etnopesquisador dos meios


educacionais tem de munir-se com uma sólida cultura pedagógica e em ciências da educação.
Deve estar aberto a todas as referências de saberes, construindo uma disponibilidade para
articula-los crítica e pertinentemente, com o objetivo de, ao olhar detalhadamente o fenômeno da
educação, vê-lo em profundidade e de forma conectada, estabelecer análises tão finas quanto
seminais, onde muitas vezes acredita-se já ter tudo compreendido e explicado.

É bom frisar que a competência do etnopesquisador crítico dos meios educacionais se estabelece
ao ultrapassar de longe o savoir-faire meramente técnico e/ou utilitarista em ciências da
educação.

Os próprios procedimentos de investigação inerentes aos recursos metodológicos em


etnopesquisa demandam uma competência sólida e pluralista, sendo a técnica da triangulação
um exemplo concreto desta postura de pesquisa: é um dispositivo onde o etnopesquisador apela
na construção do seu instrumental analítico para diversos meios, diferentes abordagens e fontes
para compreender e explicitar um dado fenômeno, utilizando-se de um autêntico approche
multirreferencial (Ardoino, 1992; Burnham, 1998; Macedo, 1998; Borba, 1998;
Gonçalves,1998). Atores diferentes implicados na pesquisa falam de uma mesma temática;
recursos metodológicos diversificados são empregados; perspectivas teóricas diferentes e até
contraditórias são mobilizadas para o entendimento de uma realidade. Enfim, a triangulação é
um recurso sistemático que dá um valor de consistência às conclusões da pesquisa, pela
pluralidade de referências e perspectivas representativas de uma dada realidade. Ao sistematizar
o recurso da triangulação, Triviños(1987) nos oferece algumas sugestões significativas a este
respeito. O autor subdivide este procedimento em três momentos: processos e produtos centrados
no sujeito; elementos produzidos pelo meio do sujeito; processos e produtos originados pela
estrutura sócio-econômica e cultural.

No que se refere à construção de um estudo monográfico em etnopesquisa – aliás, o gênero mais


recomendável para esta abordagem em pesquisa – isto é, sua elaboração escrita em todos os
níveis acadêmico-científicos, é interessante lembrar a necessidade da presença da voz do ator
social implicado, e que ele não fale simplesmente pela boca da teoria, não seja apenas um
figurante legitimador de conceitos cristalizados e corporativos, que sua fala seja recurso de
primeira mão para as interpretações fundamentadas na realidade concreta, da qual ele faz parte,
irremediavelmente. Assim, as citações das falas dos atores se constituem num recurso pertinente
em termos de coerência teórico-epistemológica para a etnopesquisa, além do que servem como
base para a avaliação da pertinência das conclusões a que chegou o estudo. Outros recursos
podem ser acrescidos, como fotos, recortes de documentos, jornais, cartas, impressos, mapas,
gráficos, cartazes, pinturas, desenhos, fitas de vídeo etc. Recomenda-se, ademais, que tais
recursos não sejam relegados apenas aos anexos, figurem no corpo do texto analítico, até mesmo
como fonte de uma densa interpretação, afinal, as etnopesquisas visam compreender/explicitar a
realidade humana tal como é vivida pelos atores sociais em todas as perspectivas possíveis.

Uma outra questão significativa emerge da função que a teoria tem nos estudos de feição
etnográfica e semiológica. Pratica-se, em realidade, um empirismo heterodoxo: apesar da
recomendação de ir a campo ver, a teoria não é vista como uma limitação heurística, a teoria
entra no cenário das análises como uma inspiração aberta à retomadas. Ao nos defrontarmos com
a realidade, temos que compreender que esta não cabe num conceito, é preciso construir um
certo distanciamento teórico, a fim de edificarmos, durante as observações, uma disponibilidade
face aos acontecimentos em curso. Ao concluir a coleta de informações, as inspirações teóricas
são retomadas fazendo-as trabalhar criticamente no âmbito das interpretações saídas do estudo
concreto. Neste encontro, tensionado pelos saberes já sistematizados e "dados" vivos da
realidade, nasce um conhecimento que se quer sempre enriquecido pelo ato reflexivo de
questionar, de manter-se curioso.

Neste sentido, teoria e empiria engendram um diálogo que tende a vivificar, vitalizar o
conhecimento. Teoria e empiria se informam e se formam incessantemente. Angustiar-se no
método e na teoria é condição sine qua non para mergulharmos nos fenômenos humanos,
realizando, por esta via, um empirismo com alma e uma teoria enraizada e encarnada.

Um relatório em etnopesquisa requer rigor, disciplina e inventividade, mesmo porque os


maniqueísmos que povoam a discussão metodológica constroem tendenciosidades que parecem
retirar das pesquisas pós-formais a necessidade de cientificidade. Em realidade, a etnopesquisa
vem forjar pela crítica ao cientificismo "duro" um outro processo identitário em termos de
ciência, reconhecendo como fundamentais as incontornáveis políticas de sentido que os mundos
humanos veiculam e com elas significam a realidade que constroem. As etnopesquisas não
devem escapar daquilo que Bachelard chama de "vigilância epistemológica", que se
consubstancia na atenção ao inesperado, à aplicação do método, e na atenção em relação ao
próprio método. Neste momento, Bachelard está preocupado com a tentação do cientista de
transformar preceitos do método em receitas ou em objetos de laboratório. Acrescente-se aqui,
também, a preocupação face a banalização e/ ou face a pura e simples negação do método.

Preocupados com a validação dos seus estudos, um procedimento cada vez mais utilizado entre
os etnopesquisadores é a confrontação das suas interpretações conclusivas com as opiniões dos
atores implicados na situação pesquisada. Esta espécie de validação não se refere somente aos
atores diretamente implicados, outros atores que vivenciaram significativamente a situação ou
indiretamente, têm um papel interessante neste momento ao avaliarem as conclusões saídas do
estudo. Aqui não só os resultados são socializados, mas também o método seguido e o próprio
processo da investigação, que deverão estar documentados no próprio estudo.

Neste veio, Erickson(1986) insiste sobre a pertinência dos "dados" e sobre a consistência que
deve existir entre as questões da pesquisa e a coleta destes. Com esta preocupação, Erickson cita
algumas dificuldades que podem levar à desqualificação de uma etnopesquisa: insuficiência de
provas; o pesquisador não obteve evidências o bastante para garantir certas asserções; falta de
diversidade no estabelecimento de provas: ausência de provas apoiadas sobre "dados" obtidos a
partir de fontes variadas; erro de interpretação: o pesquisador não compreendeu os aspectos
chaves da complexidade da ação ou os significados atribuídos pelos atores aos acontecimentos e
ações.

Para alguns etnopesquisadores, uma das primeiras providências para se evitar estas dificuldades
é o cuidado com a duração das observações e com a necessária proximidade do pesquisador com
os atores e seu contexto.

O que se retira das preocupações de rigor cultivadas pelas etnopesquisas é que esta prática de
investigação demanda uma sedimentada formação na prática, supervisionada por pesquisadores
experientes, face a impossibilidade do uso de receitas e da demanda por uma bricolage e uma
angústia metodológica incessantes, capitaneadas pela necessidade de invenção e criatividade ao
longo do próprio processo de pesquisa.

Um outro ponto importante relacionado com a pertinência e validade de uma etnopesquisa


encontra-se na própria natureza filosófica destas, na medida em que os critérios de valor-
relevância em geral embasam sua construção e conclusões. Nestes termos, faz-se necessário
estabelecer uma legítima comunidade crítica colaborativa e/ou apoiadora. Garantiríamos, assim,
a desconstrução da estrutura "dura" do rigor fisicalista, trazendo para este cuidado a noção de
rigor fecundo, mediado por uma epistemologia social implicada.

A análise de conteúdos

O recurso à análise de conteúdos não é recente. A tentativa de interpretar os livros sagrados


foram, em realidade, os primeiros esforços para se realizar uma análise de conteúdo. Em termos
de utilização na pesquisa propriamente dita, é com os estudos da Escola de Chicago que este
recurso é utilizado densamente quando cartas pessoais, documentos, autobiografias e jornais são
analisados visando compreender o conteúdo destas fontes de conhecimento.

Algumas peculiaridades são importantes na análise de conteúdo. Uma delas é que se trata de um
meio para estudar a comunicação entre atores sociais, enfatizando a análise dos conteúdos das
mensagens.

Uma outra peculiaridade que convêm salientar é que a análise de conteúdo é um conjunto de
recursos metodológicos. Conceituação, codificação, categorização são recursos de análise
incontornáveis quando se lança mão deste tipo de procedimento interpretativo. É importante
ainda salientar que o domínio do método de análise do conteúdo não dispensa, em hipótese
alguma, a inspiração teórica, que deverá ficar evidenciada nos referenciais que fundamentam
qualquer estudo.

Não queremos com estas reflexões alimentar uma recaída conteudista, consubstanciada na
análise reduzida, onde se esteriliza narrativas, destacando-as das suas indexalidades e dos
significados produzidos em contexto, portanto.

Da perspectiva da etnopesquisa, a análise de conteúdo é um recur-so metodológico


interpretacionista que visa descobrir o sentido das mensagens de uma dada situação
comunicativa. Está longe, portanto, de um modelo aplicativo, enquadrado em qualquer regra
fixa. Daí o porque de o pesquisador, com seu background, ser o principal instrumento das
análises. Um poema, um discurso, uma entrevista, uma história de vida, uma declaração verbal
ou escrita, um diário pessoal ou de campo, um livro didático etc, são objetos de uma análise de
conteúdo. Isto é, qualquer documento onde o conteúdo possa emergir significativamente para os
interesses de uma pesquisa, para compreensão de uma dada situação, via processos
construcionistas da comunicação humana.

É interessante salientar que ao nos depararmos com uma ação comunicativa, visando uma análise
de conteúdo, temos que considerar a natureza efêmera e fugaz do fenômeno da significação. Ele
pode mostrar-se simplesmente como indicativo, demandando um esforço interpretativo radical
em direção ao mundo tácito ou subjacente da vida simbólica, sempre crivada de interesses e
ideologias. Nesse sentido, o conteúdo pode ser manifesto ou latente. Nesse último caso,
principalmente, o pesquisador postula que a significação real e profunda do material analisado
reside além do que é expresso. Trata-se de descobrir o sentido velado, em opacidade, das
palavras, das frases e das imagens que constituem o material analisado. Assim, o dito e o não-
dito na análise de conteúdo são apreendidos numa gestalt onde figura e fundo devem ter a
mesma importância analítica.

Nessa ótica, analisar um conteúdo de forma pertinente implica em tornar-se membro, como
recomendam os etnometodólogos, quer dizer, "encharcar-se" ou fazer parte da linguagem natural
praticada por uma comunidade. Portanto, destacar fragmentando o conteúdo da comunicação do
contexto onde se dá, com o objetivo de analisá-lo, é uma prática arbitrária e inconcebível para
uma etnopesquisa, seria um paradoxo insuperável.

Em termos práticos, algumas etapas são geralmente especificadas num processo de análise de
conteúdo. Verifica-se, entretanto, que este processo assemelha-se ao próprio processo de análise
dos "dados" em etnopesquisa face a sua natureza hermenêutica.

Bardin(1997) especifica três etapas básicas no trabalho com a análise de conteúdos: pré-análise,
descrição e interpretação inferencial. Entretanto, por esforço didático, avaliamos interessante
ressaltar de forma mais detalhada o caminho normalmente trilhado pela AC:

a) leituras preliminares e o estabelecimento de um rol de enunciados; b) escolha e definição das


unidades analíticas: tipos de unidades, definição e critérios de escolha; c) processo de
categorização(prefiro não utilizar a noção categoria e substituí-la por noções subsunçoras,
perspectivas, face à carga positivista que a prática de categorização historicamente carrega):
definição das noções subsunçoras, qualidades básicas destas noções; d) análise interpretativa dos
conteúdos emergentes; e) interpretações conclusivas.

Na etapa a), dá-se a leitura em diversos momentos do corpus recolhido, onde se obtém uma visão
do conjunto deste corpus, assim como, das suas diversas particularidades e dificuldades a serem
superadas; pressentir os tipos de unidades informacionais a serem utilizadas pelas classificações
posteriores; apreender particularidades amplas do material, que se constituirão em temas ou
noções subsunçoras significativas do corpus empírico coletado. É, em realidade, uma primeira
familiarização com o material, uma sorte de pré-análise, para, em se destacando uma idéia do
sentido geral e certas idéias mediadoras centrais, se conseguir uma orientação do conjunto da
análise subseqüente.

Na etapa b), trata-se de construir as unidades de sentido, chamadas unidades de contexto, ou


unidades de significação. A unidade não é mais uma simples palavra, uma simples frase ou
porção de frase, uma simples expressão gramatical. Pode ser tudo isto, mas situado na ambiência
particular do contexto global, na qual a unidade aparece e que lhe confere uma significação
específica que não é necessariamente a mesma em todos os casos e por todas as pessoas.

Quanto à etapa c), é a fase de reorganização do material pela qual são reagrupados em noções
subsunçoras, ou temas mais amplos. Cada noção subsunçora é uma sorte de denominador comum
no qual se organiza todo o conjunto de enunciados. Por conseqüência, a noção subsunçora
provém predominantemente do corpus analisado, a partir de reagrupamentos sucessivos dos
enunciados, baseando-se sobre a semelhança dos sentidos emergentes. Aqui as noções são
mutáveis dependendo da natureza decidida do material analisado. Assim, o nome de cada noção
subsunçora e sua definição devem sempre ser revistos, especificados e diferenciados, basilando-
se em critérios suficientemente claros. Recomenda-se ademais, que as noções subsunçoras seja
exaustivas e em número limitado, coerentes, claramente definidas, o mais possível homogêneas,
fecundas, mutuamente exclusivas.

Por último, na etapa d), dá-se o momento onde emergem os conteúdos significativos a partir de
um arranjo tecido no esforço interpretativo, formando um corpus de argumentos capaz de elevar
a compreensão a uma densidade e a âmbitos de pertinência não percebidos por um olhar não
analítico e/ou desinteressado. Desprende-se da situação um conjunto de significados em geral
não vistos por uma leitura meramente constatatória de exposição de idéias ou mesmo
verificacionista. Numa linguagem metafórica, diríamos que o analista de conteúdo quer, em
geral, alcançar a alma e a carne do corpus comunicativo coletado. Trabalha desvelando sentidos
e significados que habitam a teia comunicativa, que se escondem e se revelam, dependentes que
são dos valores, ideologias e interesses do ser social. Desta perspectiva, a análise de conteúdo
passa a ter um significado de peso no conjunto das técnicas praticadas pela etnopesquisa,
principalmente se se cultiva os pressupostos e princípios da sócio-fenomenologia de feição
crítica.

Por fim, alguns indicativos sobre o estudo de textos são importantes, principalmente porque, na
análise de conteúdo, o texto é um subsídio que predomina: quem produz o texto lida com idéias
do seu tempo e da sociedade em que habita; a existência e suas condições fazem surgir as
concepções, idéias, crenças e valores; o texto assimila as ideologias da época, mas também tem
seu papel instituinte, de estabelecimento de rupturas e contradições. Não é apenas o mundo que
cria a linguagem, a linguagem é uma potente criadora de mundos, faz-se necessário frisar. Neste
sentido, há nos conteúdos de um texto um vivo processo instituinte que, numa pesquisa, deve
tornar-se objeto do esforço interpretativo.

Etnopesquisa e o critério de pertinência ética e sócio-profissional


A questão da ética na etnopesquisa emerge por dois veios: o primeiro deles refere-se à postura do
pesquisador face ao mundo dos pesquisados e seus valores; o segundo tem a ver com o próprio
ethos da pesquisa enquanto atividade social entre outras. Nesta última questão, encontram-se as
atuais discussões sobre a ciência moderna e suas pautas sócio-epistemológicas.

De fato, o savoir-faire científico que as luzes nos deixaram como herança tem marcas de um
cinismo que, por mais que se justifique, não apagará os sinais de sua perversidade e de suas
difíceis opções éticas e políticas. O mundo está denso de exemplos de como a ciência formal
edificou-se. Capturada pela burguesia europocêntrica e masculina, o fazer científico criou um
edifício de racionalidades extremamente insensível à diversidade das demandas humanas, à
miséria galopante, diria, à própria vida. Excludente, afundou-se numa clausura academicista de
notória opção por uma epistemologia não solidária.

Do meu ponto de vista, o fazer científico não se justifica, a não ser por uma praxiologia
includente. A seminalidade de uma ciência avalia-se na medida de sua pertinência e relevância
humanizantes.

Erickson(1986) coloca em evidência a relação entre a validade de uma etnopesquisa e o respeito


a certos princípios éticos. Assim, a responsabilidade ética e a preocupação científica devem
sempre estar juntas, na medida em que uma pesquisa interpretativa necessita de um acesso
significativo a "dados" sobre as concepções, as significações ou os valores expressos pelos
sujeitos. Para Erickson, a validade no âmbito das pesquisas interpretativas depende muito da
relação de confiança construída entre o pesquisador e os sujeitos, particularmente com aqueles
que potencialmente são os mais significativos para a pesquisa.

Por conseguinte, dois princípios éticos são comumente citados: o pesquisador deve informar aos
sujeitos, desde a fase de entrada no campo de pesquisa, sobre os objetivos da sua pesquisa, sobre
as atividades que ele espera realizar, sobre os riscos que pode implicar a participação do sujeito
na pesquisa; assim, o pesquisador deve proteger o quanto possível os sujeitos contra os riscos
psicológicos ou sociais, para isso deve procurar obter o máximo de informação sobre a
ambiência onde pesquisa e discutir cuidadosamente a proteção das informações.

A prática da etnopesquisa nos recomenda alguns procedimentos para estabelecer uma relação de
confiança e de colaboração, que podem nortear um trabalho neste campo de investigação social.
Uma certa isenção de julgamento face aos sujeitos da pesquisa: os membros têm uma tendência
para assumir que os objetivos da pesquisa são de avaliar suas concepções e ações; a
confidencialidade: em campo, o pesquisador não deve jamais comentar com outros sujeitos
assuntos retirados da sua pesquisa que impliquem em dificuldades psicossociais; a implicação: o
pesquisador deverá tentar implicar os sujeitos diretamente na pesquisa, a fim de formular
conjuntamente questões, colher "dados" e construir em parceria interpretações conclusivas.
Erickson comenta que os métodos comuns às pesquisas qualitativas são intrinsecamente
democráticos. Neste sentido, a passagem de uma abordagem compreensiva para uma abordagem
de intervenção que provoque as modificações desejadas jamais se consubstancia num obstáculo
epistemológico e metodológico, desde quando se mantenham claras as implicações evidentes, os
limites e possibilidades dos conhecimentos construídos e das possíveis ações a partir deles. Em
educação, por exemplo, uma implicação dos professores em nível do conjunto da pesquisa pode
ajudar a constituir uma via interessante de aperfeiçoamento e conduzir a uma valorização do
professor enquanto profissional.

É interessante entender que a capacidade de analisar sua prática e de articular esta reflexão por si
e pelos outros pode ser considerada como uma habilidade essencial em um professor. Está
contido num dos veios do próprio significado de formação e de sua característica intersubjetiva.

No que se refere à pertinência sócio-profissional de uma etnopesquisa, consubstancia-se num dos


recursos que ora se aplica à própria reflexão sobre o processo de validade destas. Aliás, cada vez
mais sinalizase para a irremediável implicação social, portanto ética e política da pesquisa, como
um recurso de desconstrução do edifício racional e pretensamente neutro da ciência formal.

É possível se afirmar que a pesquisa em educação não pode se contentar com uma validade
interna em nível da coerência lógica e do refinamento do discurso teórico. Ela deve, igualmente,
dar conta das demandas e/ou exigências dos objetos educacionais, isto é, das problemáticas
educativas e das pessoas que as vivem, tanto a partir do próprio processo de pesquisa quanto dos
resultados em si. Por conseguinte, cada vez mais uma mera estética argumentativa formal perde
terreno para o critério da pertinência sócio-profissional, principalmente nos cenários formadores,
sem, entretanto, relegar a segundo plano as conquistas do rigor científico. Em síntese, faz-se
necessário praticar, em ciência, aquilo que denomino de rigor fecundo e implicado.

Nos campos formativos, a validade de uma pesquisa não pode se definir pela pureza formal ou
estética, sob pena de reforçarmos o estéril hermetismo científico e as catedrais dos especialistas
afeitos às tecnocracias insensíveis, valores que não se adequam à tradição da etnopesquisa
crítica. Portanto, o processo interpretativo das etnopesquisas pelos seus pressupostos, pela
cosmovisão que alimentam, caminham na direção de uma validação pelas vias da pertinência
sócio-profissional, principalmente, nos cenários educativos escolares.

Tomando ainda a questão da ética na produção do conhecimento, temos que nas raízes da
etnopesquisa está contido um princípio básico e um ponto de partida: descrever para
compreender. Entretanto, o processo de compreensão na prática da pesquisa não se encontra fora
de uma epistemologia social e de uma ética comunitária.

Vemos em Morin, por exemplo, que a ética da compreensão exige argumentar, refutar, em vez
de excomungar e lançar anátemas. Desta perspectiva, a compreensão impede os barbarismos,
mas não impede a condenação moral, já que, segundo este autor, favorece o julgamento
intelectual. No pensamento de Morin, uma auto- ética da compreensão deve articular-se a uma
ética comunitária que a precede e a transcende. Aqui, o significado atinge uma forma pública e
comunal. Em vez de privada e autista, parte-se da premissa de que todos têm o direito de serem
compreendidos, sem estarem, por outro lado, imunes ao julgamento crítico da auto-ética e da
ética comunitária (Macedo, 1997).

Tal ética comunitária deságua, por conseguinte, numa prática solidária e na solidariedade como
religião. E aqui Morin ironiza de uma forma extremamente ética: "Alguns sociobiólogos
sustentam até que haveria um gene da solidariedade. Não acredito, mas este gene não me
incomoda..."

Os etnopesquisadores dos meios educacionais não devem também se incomodar com este
suposto gene. Devem constituir, na prática, um universal similar, até que um dia se transforme,
quem sabe, num ideário de invariante sociobiológica, a serviço de uma pesquisa socialmente
pertinente, relevante e emancipatória.
A escrita de uma etnopesquisa
Não, não é fácil escrever. É duro como quebrar rochas. Mas voam faíscas e lascas como
aços espelhados.

Clarice Lispector

Uma das orientações primeiras na escrita de uma etnopesquisa, face à diversidadade, densidade e
detalhismo dos "dados", é disciplinarse na organização destes "dados" e evitar digressões. Neste
sentido, uma das recomendações é manter-se atento e focalizado no objeto e nas questões
fundamentais do estudo. Wolcott (1990) nos recomenda per-guntar-se continuamente: "isto é
realmente um estudo do quê? Concordando com Wolcott, eu acrescentaria uma outra indagação,
para mim incontornável: o que tenho de responder face às questões fundamentais da minha
problemática? O que se vê, nestas recomendações, é uma constante preocupação com a
organização do pensamento, para a produção de um texto que se movimente claro, coerente e
organizado.

No que se refere ao estilo de escrita na redação de uma etnopesquisa, considera-se um assunto


eminentemente pessoal. Alguns pesquisadores deixam entender que a etnopesquisa não deve se
submeter a regras impostas do exterior, por pessoas que não sabem o que o pesquisador viveu
como experiência no curso da sua pesquisa de campo. Eisner(1981) recomenda utilizar um estilo
bem pessoal, onde o "eu" ocupe uma lugar significativo. Esta sugestão contrasta com o estilo
impessoal de rigor nas ciências experimentais, onde o "eu" é banido a fim de preservar o mais
possível a neutralidade e a objetividade. Aqui rigor e rigidez são confundidos em nome de um
ritual de escrita que se quer universalmente válido e impessoal.

É comum que as emoções não sejam expurgadas da redação de uma etnopesquisa; não se pode
negar que os afetos movem em muito as análises; não consigo imaginar um pesquisador
desprovido de afeto em relação ao seu objeto de estudo. Mesmo sabendo da complexidade desta
relação, ela é inevitável. Outrossim, é necessário tomar-se consciência de que as emoções, por si
só, não podem guiar um processo de construção do conhecimento, faz-se necessário aprender a
dialetizar de forma cuidadosa o movimento de aproximação e distanciamento do objeto
investigado, numa vigília constante ao imperativo de cientificidade da pesquisa. Uma pesquisa
não é um romance, tão pouco um poema; existem especificidades epistemológicas e
metodológicas que devem ser vistas com bastante cuidado para que se preserve o lugar da
cientificidade, por mais que as inspirações que fundamentam a etnopesquisa desconstruam
alguns rituais da ciência "dura". Aspirar um processo de objetivação na construção do
conhecimento não pode ser desprezado pelo fato das etnopesquisas cultivarem a flexibilidade e a
sensibilidade.

Ademais, é significativo que se encontrem no corpo da redação de uma etnopesquisa suficientes


índices que indiquem que o pesquisador apreendeu a realidade a partir do vivido dos atores
sociais, mesmo que saibamos que a obra redigida é, em realidade, uma plural construção
coparticipada, ela tem uma autoria definida.

É a partir dos trabalhos de etnógrafos da educação clássicos, como Wolcott, Smith, Erickson,
Burgess, Hammersley, Jacob e Woods, que alguns princípios tornaram-se lugar comum na
redação de um relatório em etnopesquisa. Um dos mais importantes princípios que regem a
escrita deste tipo de pesquisa é a clareza. Neste sentido, ser preciso, metódico e científico não
significa linguagem hermética, ou seja, de difícil acesso. O esforço aponta para a direção de uma
escrita compreensível, que não fique distante da possibilidade da comunidade utilizá-la, num
processo de socialização mais ampla do conhecimento educacional. Simples e diretas, as idéias
devem ser organizadas e corretamente comunicadas, assim como devem estabelecer conexões
entre o saber novo e os conhecimentos correntes e reconhecidos. Assim, estaríamos coerentes
com um outro princípio básico: a consistência.

Um outro princípio que insistimos ser seguido junto aos alunos de pós-graduação é que nas suas
monografias, dissertações e teses, haja uma referência fundamentada e bem elaborada sobre os
recursos metodológicos utilizados para que o leitor possa retraçar com clareza os pressupostos e
os caminhos percorridos pelo pesquisador. Isto não significa hipertrofiar metodologicamente um
relatório de estudo.

O objetivo de uma descrição da metodologia nas etnopesquisas é, acima de tudo, para


demonstrar que os "dados" e a interpretação que foram feitos são o resultado de um processo que
foi seriamente elaborado e que tem um valor científico.

Um outro recurso significativo é a utilização de extratos tirados das notas de observação,


entrevistas etc. A escolha das citações e dos exemplos tirados da realidade observada contribui
para que o relatório obtenha um caráter de autenticidade que jamais deixará o leitor indiferente.
O cuidado que se terá que tomar é não deixar que a pesquisa se transforme numa mera descrição
das ações dos atores sociais, construindo, a partir daí, um simples relato de relatos, ou uma
mostra sem compromisso interpretativo de documentos e/ou evidências. Não é a quantidade de
fatos relatados que se torna significativo num relatório, mas as interpretações que situam estes
fatos num contexto relacional. Muitas vezes um só fato é capaz de proporcionar um insight muito
mais fecundo do que uma infinidade de exemplos, que resultam muito mais em pulverização do
que em clarificação e consistência.

Por concluir, entendo que escrever emerge da arte de ver, perceber e traduzir em palavras e
frases aquilo que a imaginação constitui. Ademais, faz-se necessário afirmar, aqui, a natureza
heurística da metáfora e a sua contribuição significativa para a justeza da descrição. Torna-se
pertinente, por este veio argumentativo, nos inspirarmos naquilo que Hess(1995) nos diz a
respeito do processo de escrever, para ele,

tornar-se sujeito de um processo de escrita significa entrar progressiva e definitivamente


numa elaboração e numa construção do sujeito e do objeto, que passa necessariamente por
um trabalho sobre aquilo que nos constitui, tanto em nível imaginário quanto em nível real.
(Hess, 1983:80).

Desta perspectiva, tornar-se um escritor, num sentido amplo, é constituir-se na narrativa escrita, é
criar um estilo e um processo identitário comunicativo muito longe do ato simplório de apenas
colocar no papel algo percebido.

Parece-me importante pontuar, ainda, que a escrita da etnopesquisa é eminentemente processual,


a clássica estrutura onde a "revisão da literatura" era uma construção à parte e as análises
apresentavam-se a posteriori é substituída por uma construção articulada, onde "dados" e
inspirações teóricas dialogam e se retroalimentam incessantemente.

A etnopesquisa crítica nos meios educacionais: extratos de


exemplos
Apresentarei a seguir um conjunto de exemplos pontuais e conclusivos de procedimentos de
pesquisa e resultados, tomando como referência os recursos metodológicos da etnopesquisa
crítica dos meios educacionais. A apresentação destes extratos tem como objetivo demonstrar ao
leitor alguns recursos básicos empregados pelas pesquisas que têm na descrição compreensiva e
crítica seu principal veio investigativo. São aqui apresentados procedimentos e análises em
etnopesquisa crítica contidos nos meus estudos e pesquisas nos meios educacionais.

"ANTÔNIA SE RECUSA A FALAR"

O caso "Antônia se recusa a falar" fez parte de uma pesquisa conduzida por mim durante a
construção da minha dissertação de mestrado, que estudou um programa de orientação
compensatória de educação infantil, num bairro "periférico" de Salvador. Foram utilizados os
recursos qualitativos inerentes à etnopesquisa crítica e, por via das ações pedagógicas
envolvendo a performance de Antônia, uma aluna de 5 anos, desvelou-se uma série de
etnométodos representativos do modus operandis e da percepção de educação que a instituição
cultivava. Em verdade, o caso Antônia fez parte de um corpus empírico bem mais amplo,
compondo o que nas pesquisas de campo denomina-se processo de triangulação.

Faz-se necessário informar que a pesquisa de que o caso Antônia fez parte foi construída por
uma participação observadora, porquanto o pesquisador fazia parte da própria equipe pedagógica
enquanto psicólogo do programa investigado(este autor).

Antonia é uma menina pobre, moradora da periferia de Salvador, tem cinco anos, olhos vivos e
sorriso largo. Sua família, apesar de pauperizada, a mantêm bem cuidada. Como com todos os
alunos do programa pré-escolar, a família de Antônia procurava uma formação de melhor
qualidade, num programa que nascera subsidiado, acreditando nos princípios da educação
compensatória e seus pressupostos – a pobreza fabrica alunos e famílias deficitárias, que
compensados nos seus déficits por ações educacionais ampliadas, superarão tais déficits e,
assim, evitar-se-á o fracasso escolar destes alunos.

Numa tarde de terça-feira, fui procurado pela assistente social e coordenadora do programa,
relatando-me que Antônia, há um mês, não tinha pronunciado sequer uma palavra em sala de
aula, apesar do esforço da professora, da coordenadora pedagógica e dos próprios pais de
demovê-la desta atitude. Pensei, a princípio, tratar-se de um processo de autismo, face à forma
radical em que se apresentava sua incomunicabilidade.

Durante o período de vacinação, o pediatra teve notícia do comportamento de Antônia. Segundo


a assistente social, este chegou a pensar em algum grau de surdez, entretanto, quando os pais
relataram que Antônia falava normalmente em casa, ou até a porta da escola, descartou-se esta
possibilidade. Antônia entrou no rol daqueles que apresentavam "problemas de
comportamento".

Fui conversar com a coordenadora pedagógica e a professora. Preocupava-me, principalmente,


com o rendimento escolar de Antônia, avaliado como precário, em face da sua recusa
irremediável de falar, assim como devido à informação que obtive sobre os castigos que os pais
vinham aplicando na tentativa de Antônia modificar sua conduta na escola.

Um desligamento do programa também poderia acontecer, pois seu aprendizado era quase nulo,
enquanto outras crianças aguardavam vagas, situação crônica em termos de educação infantil
pública na Bahia.

Antônia não pronunciava nenhuma palavra, não cantava, não rezava, não participava das
cantigas de roda nem empenhava-se nos rituais cotidianos; não cumprimentava, não dava tchau
para a professora, nem boas vindas aos visitantes, cantando para eles, tão pouco relatava as
vivências do seu cotidiano extra-classe.

Verifiquei a ficha de Antônia e nada justificava em termos de antecedentes biopsico-sociais os


comportamentos apresentados.

A professora colocara-me que desistira de insistir para Antônia falar. Percebi que começara um
certo isolamento por parte da professora.

Percebi que alguns dos seus coleguinhas já a designavam de "doidinha". Nestes momentos, as
feições de Antônia fechavam-se e ela se afastava.

Os pais vieram ao Serviço de Orientação Educacional para ajudar na resolução das


dificuldades de Antônia. Eram pessoas simples, com notórias dificuldades financeiras; estavam
tensos, pois percebiam a possibilidade do desligamento da sua filha da escola.

Já batemos, já aconselhamos, deixamos de castigo, sem resultado. Ela vem tagarelando até a
porta da escola, ao entrar, não pronuncia uma palavra. A professora já deixou de lado, a
coordenadora já falou que se ela continuar assim, ela pode ser desligada. A vizinha já
aconselhou rezar ela(sorrisos), quem sabe, tem que vê, né! Pode ser algum olhado...

Após termos indagado sobre os antecedentes de Antônia, os pais relataram que Antônia não
queria ir para uma escola fora do seu bairro, entretanto, eles insistiram, e, no primeiro dia de
aula, Antônia entrou na escola aos berros. Eles tiveram de arrastála, pois já estavam atrasados
para o trabalho. A partir deste dia, Antônia vivia pedindo aos pais para estudar em outra escola
do bairro dela.

Esperançosos, os pais argumentavam:

A escola aqui é melhor, lá é muito pobre, as professoras não são formadas, é muito ruim...

Passaram-se dois meses e Antônia não alterava seu comportamento.

Conversando com a professora, ficava clara a decepção diante das tentativas, e a solução já não
mais estava nas suas avaliações. Comentava, vez por outra:
Acho que pra esta só escola especial, aqui não temos condições de lidar com o problema
dela...

A mesma tendência foi percebida com relação à coordenadora pedagógica:

Não tenho outra alternativa diante da incapacidade de Antônia de assimilar o conteúdo


proposto, a demanda é muito grande por vagas...

Procurei orientar a professora no sentido de demovê-la da iniciativa de isolar Antônia. Nas


sessões de 'ludo' em grupo, Antônia interagia, sorria, disputava, mas nenhuma palavra era
pronunciada.

Na escola, os conflitos entre os procedimentos pedagógicos e os atos administrativos eram


notórios, desligamentos aconteciam em pleno processo de orientação educacional. Antônia
parecia ser mais um caso onde a burocracia excludente e a intolerância face à diferença
predominariam.

Semanas passaram-se quando eu soube que os pais de Antônia procuraram-me insistentemente,


bem como que o desligamento de Antônia já estava sendo construído pela coordenação
pedagógica e administrativa da escola. Isto ficara mais ou menos claro quando o diretor me
solicitou uma avaliação das reais condições psicopedagógicas de Antônia.

Num dos meus dias de trabalho, ao chegar cedo à escola, encontrei os pais de Antônia
esperando-me. Na conversa com os mesmos, pediram-me para mediar a possibilidade de deixar
um irmão e um primo com Antônia na escola, pois na sexta-feira passada foram apanhá-la no
fim da tarde e ela conversou com os mesmos no parque da própria escola.

Será que a coordenadora vai deixar? Acho que Deus ajudou nós...

Os pais de Antônia conseguiram que a menina tivesse o primo e o irmão no parque. O fato é que
Antônia timidamente conversava com seus pequenos parentes, os lábios quase não se abriam, o
olhar era fugaz, sorria timidamente, às vezes sentava-se no meio dos dois, alguns "sim" ou "não"
eram balbuciados com outros colegas, que pouco atentavam para o fato inusitado que ali
brotava. Revendo uma das frases que surgira nas minhas conversas com os pais, comecei a
compreender Antônia:

Ela parece que tem medo desse ambiente aqui... não sabemos porquê... nosso bairro lá é
muito diferente... achamos que aqui é muito estranho pra ela...

A partir deste episódio, apenas implementou-se a estratégia dos pais de Antônia. Ao fim do
último semestre, Antônia já era considerada uma criança normal nas avaliações do programa...

O que se percebe é que esta aluna, como muitas das camadas populares, na sua subjetividade,
vivenciava um processo de escolarição/ruptura, onde via-se, a todo momento, sendo definida
pela institucionalização do desvio. Definição esta que não se produz mecanicamente e fora das
relações concretas, que no dia-a-dia da escola negociam decisões.

A partir deste cotidiano se constrói o processo de estigmatização de Antônia, de alijamento, e,


paulatinamente, sua exclusão.

É também na cotidianidade do programa, via as argumentações sobre o problema que se


apresenta, que surge a solução em meio às angústias de seus pais, tomando o processo decisório
outro rumo.

Na relação com seus pais, com a professora e colegas, Antônia construía sua contestação, com
seus recursos e os recursos que avaliou mais eficazes.

Não falar significava não querer ficar, querer outra coisa, Antônia constrói sua capacidade de
negociação calando-se, é sua forma de protestar, de afirmar-se.

Sua estratégia de resistência, de construção da forma de escolarização que prefere é o silêncio.


Sua recusa de falar estremece e, de alguma forma, desnuda a instituição na emergência dos
conflitos, das contradições, atualizando suas definições de situação. A rapidez da estigmatização
fica notória, a diferença precisa ser definida, para a partir daí legitimar o instituído.

No silêncio, Antônia afirma sua presença, sua existência única, e que naquele momento marca
com uma certa desordem a instituição.

Antônia fala uma outra linguagem. Urgente, a escola precisa de uma leitura segura para suas
resoluções, objetivas e eficazes. Para Antônia, a exclusão é a saída desejada: poderia voltar a
permanecer imersa na cultura do seu bairro, nas escolas do seu distante subúrbio. Antônia faz-
se quase opacidade, só a cotidianidade e o caráter indexal das suas expressões fornecem a via
de compreensão da sua itinerância escolar.

Impenetráveis, irônicos, agressivos, apelativos, meigos, ausentes, os silêncios de Antônia contêm


um mundo de significados que edificam uma existencialidade e uma intencionalidade, portanto,
é no seu silêncio que estava a sua linguagem.

Com Schutz(1944), encontra-se uma elaboração pertinente para a compreensão relacional e


institucional da caminhada de Antônia no início da sua vida escolar. Numa das passagens da
sua publicação 'The Stranger', Schutz nos diz:

... também para o estranho...a cultura do novo grupo tem sua história peculiar, e esta história
lhe é até mesmo acessível. Mas nunca se tornou parte integrante de sua biografia, como
aconteceu com a história do seu grupo. Somente os modos de vida de seus próprios pais e
avós podem se tornar, para qualquer pessoa, elementos de seu estilo de vida. Túmulos e
reminiscências não podem ser transferidos ou conquistados. O Estranho, portanto, se
aproxima do outro grupo como um recém-chegado, no sentido literal do termo. Na melhor
das hipóteses, poderá querer e ser capaz de compartilhar o presente e o futuro com o novo
grupo, em experiências vividas e imediatas, mas sempre permanecerá excluído do seu
passado. Do ponto de vista do grupo abordado, ele é um homem sem história.
Schutz(1944:502).

Retomando as interpretações de Schutz sobre "O estranho", algo análogo pode acontecer com
várias "Antônias", alunos da periferia que no espaço/tempo escolar vivenciam rupturas afetivas,
cognitivas e negações sociais, sendo levados a convocar formas de enfrentamento que às vezes
aprofundam mais ainda as distâncias diante das expectativas escolares. Vimos que em nome de
uma adaptação, de uma socialização com características a-críticas, fabricavam-se mecanismos
de definição, designação e de exclusão.

Vê-se como o programa compensatório, a partir de seus fundamentos, mostra-se paradoxal; no


seio das suas próprias práticas, pratica a exclusão, e em nome de uma pedagogia
eminentemente normativa e prescritiva, ajuda a engrossar a legião de potenciais excluídos da
educação formal.

Faz-se necessário pontuar que a itinerância de Antônia jamais pode transparecer um exemplo
de passividade diante das pressões institucionais, apesar do poder notório da escola em excluir
e marcar destinos escolares e sociais. É bom que se frise também que o processo de adaptação
jamais pode ser considerado um simples mimetismo, sem desconhecer, é claro, a potente ação
do instituído na escola...(Macedo,1995: 290-296).

Após a construção das noções subsunçoras da pesquisa, o "caso Antônia" foi selecionado para
análise dentre outros que fizeram parte do corpus empírico, constituindo-se numa fonte
significativa para a compreensão das ações educativas do programa compensatório de educação
infantil investigado, seus pressupostos e sua dinâmica curricular. Obviamente, várias outras
fontes de informação foram utilizadas de acordo com os recursos da etnopesquisa. O que é
importante mostrar, dentro de uma das tradições deste tipo de pesquisa, é como, por uma
itinerância de uma existencialidade interativa, por suas ações, pode-se ter acesso à compreensão
de um fenômeno social ou de uma instituição social. Parte da história da vida escolar de Antônia
representou para a pesquisa um momento fundamental para a compreensão in situ da ação
curricular compensatória, bem como, ao relacioná-la com as teorias liberais que a inspiram,
pode-se ampliar por uma abordagem pontual, contextualizada, o conjunto do conhecimento sobre
o ideário da educação compensatória entre nós. Woods chama isto de uma "teorização fundada".

"A PEDAGOGIA DE JANICE. OBSERVAÇÃO DE UMA PRÁTICA"

Janice é uma professora de educação infantil comunitária, residente no Bairro de Novos


Alagados, em realidade, uma favela da periferia de Salvador. Órfã, migrou para Salvador em
busca de uma vida melhor. Estudar a sua prática pedagógica enquanto professora do segundo
período da educação infantil foi uma tentativa de compreender, via um estudo de caso, a
escolarização infantil no seio de uma escola comunitária. Janice, além de professora, desenvolvia
uma série de outras atividades sócio- pedagógicas na comunidade. Residia já há algum tempo no
bairro e conhecia bem a sua história, que ela própria ajudou a fazer enquanto migrante do sertão
do nordeste.

O estudo da prática pedagógica de Janice fez parte da pesquisa da tese de doutorado, defendida
no Departamento de Ciências da Educação da Universidade de Paris VIII, onde, utilizando os
recursos inerentes à etnopesquisa crítica, pesquisei dois programas públicos de educação infantil,
sendo um compensatório(de onde fez parte "O caso Antônia") e outro, comunitário, as duas
possibilidades pedagógicas públicas disponíveis em educação infantil na Bahia, à época da
pesquisa (entre 1987 e 1994), e que mostrou-me as profundas contradições das políticas, dos
pressupostos e das práticas para a educação da criança em nosso contexto. Mais adiante,
mostrarei as considerações conclusivas deste estudo como exemplo de uma síntese de um
relatório conclusivo em etnopesquisa crítica, onde as perspectivas compensatória e comunitária
em educação infantil são refletidas, a partir do estudo edificado.

'A aula inesperada'

Cheguei cedo à E.P.N.A(Escola Popular de Novos Aalagados, localizada no beira-mangue do


subúrbio ferroviário de Salvador). Programara-me com o objetivo de coletar e organizar as
tarefas realizadas pelos alunos durante todo o ano letivo.

Ao chegar, acomodei-me num canto da sala de aula para não perturbar o trabalho diário de
Janice com seus alunos. Ao mesmo tempo, tinha o gravador sempre à minha disposição, e
procurava observar discretamente as tarefas e interações na sala de aula.

As crianças vão chegando e bebendo o mingau que já estava na mesa. Era uma segunda-feira,
Janice propõe um desenho livre sobre o fim de semana.

Ao começar a tarefa com lápis cera e papel ofício, entra Nadson atrasado e trazendo um siri
amarrado pela poan com um barbante. As crianças olham curiosas. Janice levanta-se e dirige-
se até Nadson.

J – O que é isso, rapaz?

N – Um siri que eu achei no caminho, estava agarrado na madeira da ponte...

J - Você chegou para a aula de amanhã, é?

As crianças se agitam e se desconcentram.

J - Vá amarrar este siri lá fora e venha fazer a tarefa...

Nadson sai, entretanto amarra o siri em frente à porta da sala, que permenece aberta por causa
do calor intenso(a escola é uma velha fábrica desativada e invadida pelos moradores). Algumas
crianças saem para ver o siri. Janice reclama:

J – Quem não fizer a tarefa vai ficar sem recreio, certo?

As crianças vão e voltam diversas vezes pra ver o siri. Janice começa a demonstrar impaciência,
pois as crianças a todo momento saem pra ver o crustáceo.

Janice fica um tempo em silêncio, olha alguns papéis, arruma algumas coisas no armário,
resolve chamar Nadson. Pensei na possibilidade de uma punição.

J – Nadson, venha cá... pegue aquele siri e traga aqui...

Nadson sai com ar de apreensão, pega o siri e o traz pendurado no barbante, entregando-o a
Janice. Janice pendura o crustáceo numa das paredes de madeira da sala e argumenta:

J – Vocês queriam ver o siri, né? Então está aqui... hoje nós vamos falar sobre este animal do
mar, tá certo?
Uns levantam e olham de longe. Outros chegam perto e tocam o animal que abre as poans para
mordê-los. Nadson, junto a seu bicho, conta como conseguiu pegá-lo.

Janice faz perguntas em voz alta:

J - De onde vem este siri?

Crianças em coro – Do mar...

J – Pra que serve?

Crianças – Pra comer...

J - Vocês sabiam que o siri tem bastante sustança para o crescimento de vocês? Pois tem...tem
cálcio e ajuda no crescimento de vocês.

- Agora eu vou escrever a palavra Siri no quadro e vocês vão tentar copiar...está certo?

- Quem quiser desenhar, aproveite o papel e desenhe também...depois cada um vai contar uma
história de siri...

Janice escreve em letras maiúsculas bem extensas a palavra siri.

As crianças correm para as carteiras e começam a tarefa. As atenções concentram-se ora no siri
pendurado, ora na palavra escrita. A movimentação é intensa, entretanto, voltada para a tarefa.

Após as crianças terminarem a tarefa, Janice retoma sua aula.

J - Vocês sabiam que a poluição e o lixo estão acabando com os peixes, os mariscos, inclusive os
siris?

- É preciso a gente ter cuidado com o lixo...muitas vezes a gente aqui não tem comida em casa, e
se não fosse o mar, a gente ficava com fome.... Se acabarem os animais do mar, muita gente vai
ter que pedir comida nas ruas...

- Que tal amanhã a gente trabalhar com a palavra lixo?

Crianças em coro – Tá bom...

J - Você, Nadson, solte o bichinho no mangue...não deixe ele morrer, não.

As crianças começam a se arrumar para sair, são quase 11:30 da manhã. (Macedo,1995: 302-
308).

'Um tema gerador'

Ao entrar na sala de Janice, vários trabalhos dos alunos estavam pendurados na parede. Neles
estava escrita a palavra "LIXO" com feijões colados.
Pesquisador – E esses trabalhos, Janice, como foram feitos?

J – O tema do lixo, a gente trabalhou assim com eles: a gente abordou o que era o lixo...eles
colocaram que o lixo não servia pra nada, entende? Que o lixo trazia doenças...e aí a gente
separou o lixo que tinha proveito para a agricultura e o lixo reciclável para a indústria...o
papelão, o papel, o plástico, as latas, aquilo que a gente pode transformar... aí fizemos um
teatro sobre o menino que anda no lixo e o menino que não anda no lixo...eles disseram que o
menino que anda no lixo pega vermes... doenças.

Então, neste diálogo que a gente teve, entrou também o problema do entulho daqui de Novos
Alagados...a gente está com o problema do aterro, que os ecologistas são contra, e é uma coisa
urgente pra nós.

Na pesquisa, a gente saiu e identificou o lixo, separamos o que nos interessava e jogamos na
lixeira o resto.

Pesquisador – E aqueles trabalhinhos?

J – São trabalhos com o tema para eles terem contato com a palavra "lixo", e também trabalho
com a coordenação motora, utilizando a mesma palavra do tema gerador. Estes eu trabalhei
com feijões.

Pesquisador – E os materiais para estes trabalhos, como conseguem?

J – Vêm da Secretaria da Educação, a gente compra, existem doações,... a cola, por exemplo, a
gente faz aqui mesmo...a gente pega farinha de trigo ou farinha de mandioca mesmo, a gente aí
faz a cola. De início tinha cola, agora a escola está sem condições de adquirir...

Pesquisador – Ok... Segunda-feira volto aqui para acertarmos melhor a reunião com os
pais.'(Macedo,1995: 380-390).

'Janice desarmou o barraco...'

Ao chegar às 10 horas da manhã à biblioteca da E.P.N.A, para coletar alguns documentos


administrativos sobre o programa de educação infantil e sobre a escola, a secretária comentava
com uma outra professora: ' Janice desarmou o barraco hoje...' (sorrisos irônicos).

Aquela expressão que já me era familiar, alertava-me que algo de anormal acontecera na sala
de aula de Janice. Demorei-me um pouco e fui discretamente à sala. Encontrei Janice com o
semblante fechado e transpirando muito. A porta da sala estava fechada, fato incomum.

Pesquisador – Que houve, pró?

J – Veja, professor...aquele ali deu um ponta-pé na boca do colega e quebrou a boca do


outro...O outro está fazendo curativos...eu cheguei na sala, eles tinham virado a sala de cabeça
pra baixo...todos vão ficar sem recreio e Antônio está separado dos colegas ali, oh!.. sentado na
mesa só...Eles precisam entender que aqui é uma escola, não é a rua...
Vão ficar sem recreio e só vão sair doze horas, depois que todos saírem...e o passeio na praia
amanhã está cancelado...eu acho que compreensão e amor têm limites, o professor Paulo Freire
já disse que educação não pode ser feita sem um não! Não acha?

Janice estava agitada.

Pesquisador – Você mandou algum lá para a coordenação?

J – Aqui, professor, a professora tem autonomia pra tomar decisões, não é como na escola
pública e na particular que qualquer coisinha manda-se pra fora da sala, para a direção ou
para o orientador, e a professora se vê livre... eu não vejo elas como educadoras, são, como
Vera disse, dadeiras de aula...aqui eu armo e desarmo o meu barraco... (sorri ligeiramente).
Roupa suja se lava em casa...eles sabem que eu sou assim... precisam aprender a não confundir
liberdade com bagunça, escola com a rua...

As crianças estavam sentadas sem nenhuma tarefa, enquanto Antônio estava de cabeça
baixa...as crianças conversavam em voz baixa, quase susurravam... Senti que minha presença
não deixava Janice à vontade, saí. Por muito tempo a porta da sala ficou fechada, um fato raro.

No primeiro extrato deste bloco, que denominei " A aula inesperada", vimos como diante de um
ato inusitado de um dos seus alunos, Janice tenta organizar as tarefas inicialmente propostas e
no próprio desenrolar destas, muda sua estratégia, incorporando na sua aula este momento
inesperado.

Por alguns instantes, Nadson desestabiliza sua aula, com o siri amarrado a um barbante, face
ao intenso interesse despertado nos seus colegas. Aquele era um fato mais importante para os
alunos do que a proposta de aula que seria desenvolvida.

Janice pensa, resiste, enquanto busca uma saída pedagógica, uma estratégia diante do evento,
do acontecimento arrebatador para seus alunos. Termina por incorporar o acontecimento ao
seu objetivo pedagógico.

Toma o inusitado nas mãos, assimila a disposição motivacional dos alunos, articula com sua
preocupação formadora.

Trabalha a palavra "siri" e as suas letras, esclarece detalhes sobre o animal marinho e seu
ambiente, problematiza a sua existência e de outros animais no seio da comunidade.

Em conversa à parte, Janice comenta que pra ela, trabalhar assim torna-se mais fácil e
recompensador.

Percebi como num momento pedagógico de certa maneira "dramático", por conter uma ruptura
numa certa ordem que se construía, edifica-se um outro instante, um outro significado para a
aula. Janice abre-se à pressão da construção motivacional dos seus alunos, possibilita a
negociação que tacitamente, a partir deles, já apontava para um outro objetivo. Faz do seu
programa uma estratégia para facilitar a "brecha" pedagógica.

Há na sua concepção de pedagogia do ensino infantil, quando diz que prefere trabalhar
articulada com as expectativas dos seus alunos, a noção de que o sentido lúdico naquela
realidade educacional impregna toda a prática. Sabiamente o incorpora.

A presença do siri na sala de aula tratava-se para as crianças de um fato vivo, com o qual elas
brincavam no seu cotidiano à beira-mar, estava contido o gosto diante do aspecto
lúdico/perigoso que representa o siri para as crianças. Observar os seus movimentos, tocá-lo
rapidamente para não ser mordido, ter o prazer de prendê-lo apesar da sua agressividade,
representava, acima de tudo, movimento lúdico.

Janice exerce a sua "escuta sensível" e deixa que a abertura à pluralidade das ações tempere
sua prática pedagógica. Não abre mão da sua condição de professora, entretanto move-se com o
grupo, articula, conjuga, completa.

No extrato que denominei "Um tema gerador", o método de Janice novamente vem à tona.

Janice me explica que nem sempre o tema gerador é proposto pela criança, ela também propõe
a partir da discussão com suas colegas e as pessoas da comunidade.

Explica que procura ouvir seus alunos, complementa seus comentários, constrói peças de teatro,
pesquisa nas ruas, problematiza o tema.

Percebi que a dialogicidade da atividade imbrica-se com as tarefas da leitura e escrita da


palavra "lixo". Há um contato largo e profundo com a palavra. A via é nitidamente
paulofreiriana. A leitura do mundo vem junto com a leitura da palavra. No contato plural e
crítico com o tema, enlarguece o significado da palavra.

Janice implementa uma pedagogia da pergunta e do diálogo. O lixo é o tema, o desenho é a


expressão desencadeadora e a pergunta implementa o diálogo, a problematização, que também
aponta para um processo de formação de significados valorizados pela professora.

No que se refere ao extrato que denominei "Janice desarmou o barraco", é significativo o que
representa esta expressão na comunidade, trata-se de um momento de decepção, raiva, um certo
descontrole, que caracteriza a condição de um favelado que, expulso do seu local de moradia,
tem que desarmar a sua casa, o seu barraco. O contrário significa um processo de conquista,
construção, satisfação. Fui à procura deste significado na prática pedagógica de Janice.
Encontrei uma pessoa fechada, ofegante, agitada, fato incomum no seu dia-a-dia com as
crianças. Não escondia a decepção em relação aos seus alunos, e fora dura no sentido de
afirmar o espaço da escola como um espaço que tem limites de tolerância a determinados
comportamentos, preocupação que nutre em relação a outros aspectos da escola comunitária
que avalia tolerante em excesso. Com isso, Janice marca aquele espaço de forma
irreconciliável, pune severamente seus alunos com a retirada de programas de lazer. Deixa-os
sentados sem tarefa, parece querer que aquele momento se prolongue, enquanto momento
impregnado de frustrações, arrependimentos e fadiga, ressaltando a conduta inadequada de
Antônio ao separá-lo dos colegas.

Janice justifica suas atitudes ao mesmo tempo que critica um certo descompromisso dos
professores das escolas públicas oficiais, que, segundo ela, são "dadeiros de aula", e não
educadores; diante dos problemas da sala de aula, os transferem para a Direção ou para os
Serviços de Orientação.

Em resumo, a prática pedagógica que emerge na sala de aula de Janice, longe de refletir um
purismo pedagógico calcado na inspiração comunitária, toma feições e é temperada com a sua
idiossincrasia enquanto professora. Ao mesmo tempo, o conjunto dos seus métodos, dos seus
etnométodos, melhor dizendo, aponta nitidamente para uma inspiração que, entre nós, costuma-
se denominar uma pedagogia popular, na qual acredita e está implicada na condução da sua
classe de ensino infantil (Macedo,1995: 409-418).

Com este bloco de observações sobre a prática pedagógica de Janice, adentrei pontual,
significativa e relacionalmente em vários aspectos que caracterizavam a educação infantil
comunitária na E.P.N.A., até porque a professora Janice desempenhava um papel significativo na
escola e suas orientações curriculares, assim como no que se referia às ações pedagógicas
caracterizadas como uma "pedagogia em movimento". Janice consubstanciava-se num ator
pedagógico de extrema representatividade para a compreensão das ações educacionais ali
desenvolvidas.

UMA ENTREVISTA EM ETNOPESQUISA. TEMATIZANDO E PROBLEMATIZANDO A


EDUCAÇÃO INFANTIL COMUNITÁRIA.

Janice fala do programa pré-escolar comunitário da E.P.N.A. e da sua experiência...

- E sua experiência como professora de educação infantil, Janice?

- Primeiro eu me interessei pelo trabalho da comunidade, comecei a trabalhar, fiz um curso,


estagiei no Lar Fabiano, tive uma boa resposta, através do curso fui vendo muitas coisas que
antes desconhecia. Antes, passei pela creche, aprendi muito sobre as condições das crianças
pobres daqui, fiz um curso de puericultura e de educação pré-escolar. Deste momento pra cá,
não parei mais, tudo que a Sociedade Primeiro de Maio promove sobre a escolarização da
criança eu estou no meio, ou organizando ou participando como ouvinte. Compreendi logo o
valor da educação pré-escolar para as crianças daqui...

- Então a pré-escola é importante pra você?

- A pré-escola é importantíssima...em todos os aspectos do desenvolvimento educacional da


criança; a criança que passa pela pré-escola é bem mais preparada para a vida escolar e para a
escolarização depois...A criança que não passa pela pré-escola não tem um processo... aqui tem
criança que tem 14 anos e não consegue coordenar o movimento com um lápis... eu acho que a
criança que passa pela pré-escola desenvolve seu querer com a convivência...aos poucos ela vai
desenvolvendo a compreensão da utilidade da escola e tomando gosto, entende?

- Se você me permite, gostaria de saber um pouquinho de você...

- Tudo bem, eu gosto de falar de mim...(sorrisos)

- Você é daqui de Salvador?

- Não, eu não sou daqui, eu sou Sergipana, mas eu me criei aqui...praticamente eu não tenho
nem pai nem mãe, fui por muito tempo menina de rua, aí uma família me criou...com oito anos
vim morar aqui...Mas eu queria sempre trabalhar com crianças, com crianças como eu fui,
pobre...mas na pré-escola, é um momento importante demais, porque eu via as mães saírem
para trabalhar, lavar roupa, ficavam aquelas crianças sem cuidado, sem alimentação...Ter
contato com a escola, nada...eu achava que naquele tempo que a mãe estava trabalhando,
estava mariscando, fazendo qualquer coisa, eu podia ajudar a construir o futuro das crianças
com a aprendizagem na escola, entendeu? Por isso que decidi me dedicar ao pré-escolar...

- Como vocês trabalham na pré-escola em termos pedagógicos?

- Em primeiro lugar, a escola só pega uma professora que vive aqui no dia-a-dia, que conheça
as crianças, não se vai em outros bairros recrutar para trabalhar com as crianças, a gente tem
uma orientação pedagógica, apesar de que, a gente na comunidade já tem l6 anos de
experiência e pode passar nossa experiência para outras pessoas... A gente trabalha
basicamente com as orientações de Paulo Freire, a vida da criança é muito importante para
nós... às vezes a gente está com uma aula preparada em conjunto sobre os meio de transportes,
mas daqui a pouco tem um acidente, o menino caiu na maré, faleceu... eles vão para o enterro,
aí a gente vai trabalhar aquele assunto que a gente conviveu, entendeu? A gente está sempre
preparada para trabalhar bem o que é a vida concreta deles, da nossa, aliás(sorrisos). Muitos
deles, professor Roberto, já fazem cálculos, pois são eles que vão comprar as coisas nas vendas,
nas barracas...,às vezes vendem coisas na rua pra ganhar um dinheirinho pra ajudar em
casa...eu uso muito isto pra exercitar a matemática... às vezes, a gente imita, faz teatro, um é o
dono da venda, o outro é o empregado, um é o comprador e o outro o viajante...e assim eles vão
estudando a matemática...depois disso, eu ponho no papel pra ver como eles fazem... às
vezes,mando medir a canoa do pai, ver que canoa é a maior, a menor... mando medir a rua da
gente e comparar com as ruas do centro da cidade... é assim,... agora eu aproveito e a gente
reflete porque as ruas da gente são pequenas, finas e feitas de pontes de madeira enfiadas na
lama...isto eu não deixo passar nunca...

- O que você acha do método adotado?

- Eu acho que no início do ano, tudo bem, mas no segundo semestre devia modificar um pouco,
porque... eu não entendo direito... esse negócio de idade, a criança tem um saber, a idade... não
importa que ele tenha 5 anos, por que ele tem cinco anos é obrigado a ficar na sala do pré? Eu
acho assim: se tem 5 anos e ele tem capacidade de pegar um aprofundamento, ele vai... fazer o
contrário é uma perversidade... olhando as nossas necessidades aqui, as necessidades por
conhecimento das nossas crianças...

- Como você percebe a escola pública do Estado e a escola pública comunitária?

(Reflete por um certo momento) - Olha... a escola pública, apesar do ensino não ser bom pra
nós, porque as professoras são de outra realidade, não são sensíveis à vida das crianças de
favela, encontram tudo prontinho, não fazem pesquisa, já tem no livro descartável tudo pronto...
em um ponto a escola do governo é boa, para a organização da criança, ela tem obrigações com
ela própria, ela tem um horário cobrado, tem que se vestir e se cuidar...eu acho que dá mais
responsabilidade ao aluno, entendeu? E aos pais também...E a escola d'agente aqui, a escola
comunitária, ela é muito...os pais e os meninos entram na escola com os cabelos lá em cima,
entendeu? A escola comunitária é muito boa porque ela trabalha dentro da necessidade dos
alunos, dos pais, não se omite diante das dificuldades da comunidade, é uma ação coletiva...mas
eu acho que ela tira um pouco a responsabilidade da criança e dos pais...

- Você acha que o trabalho de pré-escolarização que você faz ajuda a criança?

- Ajuda, ajuda bastante! A gente percebe muita diferença, tem criança que chega aqui na escola
nos primeiros meses, não tem sentido a escola pra eles Chega lá, senta, ele não brinca, não
conversa, não desenha, nada...com o tempo, a gente começa o diálogo, a convivência, ele passa
a participar de tudo, entendeu? Eu acho que ajuda bastante no desenvolvimento dele no
momento e para o futuro na escola, como eu disse ao senhor... Eu tenho certeza que a pré-escola
deveria ser um direito para todas as crianças e não só para quem pode pagar... isso porque eu
percebo com os meus próprios filhos, eu vejo a diferença...o desempenho da criança que passa
pelo pré e aquela que não passa. Eu já vi isto, professor...eu já fui professora do
aprofundamento e senti na carne a diferença..." (Macedo, 1995: 430-444).

As informações de Janice sobre diversos aspectos da educação comunitária infantil apreendidas


na sua entrevista, foram densamente analisadas sob a orientação da noção subsunçora(categoria)
prática pedagógica, entrevista esta muita claramente direcionada para o fazer pedagógico
cotidiano da sala de aula. Muitos outros aspectos foram evidenciados ao longo da entrevista
como um todo. É significativo notar, neste extrato, como me limitei a perguntar e a ouvir por
vias de questões abertas e de fácil compreensão, tomando como norteamento os objetivos da
entrevista e a orientação fenomenológica de proporcionar a emergência do fluxo discursivo da
entrevistada.

CAPTANDO INTERAÇÕES ORGANIZADAS. UM SEMINÁRIO DOCENTE SOBRE


EDUCAÇÃO INFANTIL COMUNITÁRIA

As interações captadas através deste recurso metodológico de base construcionista, onde a


dialogicidade é a fonte primeira de "dados", deu-se quando da realização de um seminário sobre
educação infantil, com a participação das professoras do ensino pré-escolar da E.P.N.A. Em
realidade, o seminário nasceu da confluência das necessidades docentes e da mediação que
proporcionamos enquanto pesquisador participante do programa pré-escolar da referida escola
comunitária.

- Eu vou começar... eu trabalho com alfabetização, eu acho muito importante a pré-escola


porque a criança que passa pela pré-escola..., ela tem na alfabetização um desenvolvimento
diferente daquela que não passa pela pré-escola. São os casos das minhas crianças, as crianças
em alfabetização têm às vezes 6,7,8,9 anos e ainda estão sendo alfabetizadas, estão passando
por aquele processo de coordenação, de percepção, expressão, experiência que a criança
adquire na pré-escola.

- Eu agora vou falar... minha turma também é igual a de Nilzete. É importante a pré-escola
porque pega a criança numa fase que ela quer conhecer tudo, quer sentir tudo. Na minha sala,
por exemplo, a gente faz uma rodinha e a gente conversa sobre tudo, sobre o bairro, sobre a
família, sobre a escola, sobre a cidade, eu converso muito com meus alunos, a gente tem que
estar preparada para enfrentar esta fase...
- Eu, por exemplo, conheço as crianças que não passaram pela pré-escola. Eles têm um
desenvolvimento muito diferente daqueles que passaram pelo pré...estes têm uma facilidade
muito maior...

Mediador - Eu gostaria de saber de você a importância da pré-escola para esta comunidade,


para as famílias, para os pais?

- A criança quando chega aqui na escola não sabe quase nada sobre a escola e o que se faz
nela...Então, a partir do momento que ela começa a rabiscar algumas coisas, mostrar em casa
suas aprendizagens, os pais ficam alegres, já acompanham em casa, tem pais aqui que
acompanham na sala. Aí as mães ficam curiosas e até se interessam para estudar também, ou
retornar, depois de ter deixado de estudar.

- Quero dizer que o atendimento das crianças aqui começou em 1977, primeiro com a Creche
Casulo, através da necessidade que o bairro tinha de ter uma assistência melhor para as
crianças, depois veio a pré-escola, uma outra necessidade...porque os pais e a própria
Associação perceberam o tempo que os meninos e meninas perdiam sem aprender nada,
brincando na rua...para só entrar na escola com sete anos, imaginem o tempo perdido para se
desenvolver na escolarização...a gente via os filhos dos barões se alfabetizarem, com seis anos,
e os nossos filhos só aos sete anos e olhe lá!

- É importante, por exemplo, o desenvolvimento da psicomotricidade, do corpo mesmo... a gente


vê como a prática da capoeira desenvolve a criança...o ritmo, a percepção de alguns sons, o
equilíbrio, a noção de espaço...as crianças, inclusive, desenham a dança e a luta da capoeira, os
instrumentos... com isso trabalhamos as origens deles, pra que eles não esqueçam suas origens
africanas, tudo isso nós trabalhos na pré-escola.

- Eu quero voltar à importância da pré-escola, eu acho que se houver uma boa pré-
escolarização, as coisas na alfabetização são bem mais tranqüilas, fica um processo, uma
continuidade, um desenvolvimento. Só quem alfabetiza é que sabe o que é, ao mesmo tempo,
num só ano, desenvolver as habilidades e entregar, no fim do ano, a criança alfabetizada...,não
é fácil não...

É marcante nos depoimentos das professoras das pré-escola e séries iniciais da E.P.N.A a
importância que dão à pré-escolarização enquanto um momento de aprendizagem que, ademais,
é preciso valorizar-se face aos seus efeitos no "desenvolvimento" da criança e para sua
escolarização futura. Há uma notória preocupação com o tempo que a criança pobre perde fora
da escola, preocupação esta construída na observação atenta à escolarização dos filhos das
famílias das classes privilegiadas(os barões).

Vê-se como a noção de "desenvolvimento" está colada ao sentido de aprender progredindo, isto
é, aprender mais coisas, saber mais, saber expressar-se em sala de aula, dominar o manuseio de
um lápis, de um papel, enfim, dominar as tarefas e posturas valorizadas e esperadas pela escola.

Há, também, uma clara valorização da educação infantil como um momento de preparação para
a alfabetização e escolarização como um todo..

Nota-se que o objetivo da guarda não vem à tona com ênfase entre as professoras. A concepção
de educação infantil constrói-se enquanto momento pedagógico importante em si mesmo e na
relação com a escolarização... este significado edificou-se em muito pela pressão dos pais ao
longo da história do programa, segundo as professoras.

À medida que as discussões enveredaram pelas práticas pedagógicas, o tema capoeira


monopolizou os relatos. A capoeira enquanto ritmo, movimento, luta, musicalidade, tradição, é
tomada com uma importância marcante pelas professoras. Ressalta-se a todo momento sua
função pedagógica dentro e fora da escola, exalta-se seu conteúdo cultural, assim como a
capacidade que esta dança/luta tem de motivar as crianças da comunidade. A E.P.N.A adota a
prática da capoeira no seu currículo pré-escolar e nas séries iniciais como atividade de
formação física, cultural, emocional e moral, como ressalta, numa das intervenções, o Mestre
Israel, mestre de capoeira do bairro e componente do corpo docente da escola..

Vê-se, portanto, por estes diálogos, o significado dado pelo corpo docente pré-escolar e das
séries iniciais da E.P.N.A, quanto à pré-escolarização das crianças da comunidade. Comentam,
avaliam, criticam e afirmam o que para elas é importante enquanto prática pedagógica,
constroem e reconstróem comentando a realidade que objetivam na cotidianidade das suas
ações educacionais comunitárias em termos de educação infantil...(Macedo,1995: 450-460).

Este extrato demonstra, de forma sintética, "dados" e procedimento analítico de um evento, onde
o subsídio são interações organizadas via um seminário co-construído por interesses conjuntos
dos atores da escola pesquisada e o próprio pesquisador, enquanto participante do programa
comunitário de educação infantil. Trata-se de um recurso significativo, para aqueles que, no
âmbito das etnopesquisas críticas dos meios educacionais, valorizam os processos interativos
como fonte de compreensão das práticas pedagógicas cotidianas.

AS DIMENSÕES NUMA PESQUISA QUALITATIVA.

A EDUCAÇÃO COMPENSATÓRIA EM QUESTÃO

As análises aqui apresentadas compõem um estudo qualitativo, onde os "dados" quantitativos


emergem mostrando o caráter insuficiente das argumentações e práticas pedagógicas da
educação dita compensatória, concebidas para erradicar o fracasso escolar das crianças pobres,
vistas como "deficitárias" em termos bio-psico-sociais. Estes "dados" são analisados por um
trabalho de organização e sistematização em tabelas do estudo de acompanhamento dos egressos
do programa pré-escolar nas séries iniciais da educação fundamental de um colégio anexo. Tais
análises fizeram parte da minha pesquisa de mestrado, sob o título: "Prontidão, Compensação e
Pré-escola. Prática e Crítica", FACED/UFBA, e que após sua defesa foi publicada em livro sob
o título "O Sentido da Pré-escola Pública".

Os 'dados' ora analisados referem-se à tabelas que mostram o estudo de acompanhamento nas
séries iniciais das crianças assistidas pelo programa de educação compensatória desde 1983...

O que se verifica, por exemplo, é que na primeira turma atendida durante um ano de ensino pré-
escolar, tomando sua performance na primeira série, o fenômeno da evasão se apresenta de
forma mais intensa nesta série(tabela I:B). A alfabetização e a segunda série não apresentam
tantas dificuldades para estes alunos. Na tabela 1:C, onde visualizam-se os 'dados' globais do
acompanhamento, chama-nos à atenção a proporção de alunos 'descontínuos' de 53,8%
(repetentes e evadidos), que é mais elevada do que a dos 'aprovados contínuos', 46,1%.
Portanto, mais da metade dos alunos são 'descontínuos'. Outrossim, considerando o estudo até o
momento, pode-se verificar que 76,9% dos alunos egressos do programa permanecem no
colégio, os denominados 'ativos'(aprovados contínuos mais os repetentes).

Pode-se verificar, desta forma, que no grupo que ingressou no colégio em 1984, assistido pelo
programa durante o ano de 1983, a 'descontinuidade' é bastante significativa, revelada pelo
índice de repetência e evasão.

Quanto ao segundo grupo, assistido durante dois anos pelo programa compensatório, pode-se
verificar, como no grupo anterior, que é na primeira série que acontece o maior número de
repetências e evasões(tabela 2:B). Note-se que na tabela 2:C a proporção de 'aprovados
contínuos', 58,8%, é maior que os descontínuos 4l,1%. Os ativos ficam em torno de 70%. É
significativo no acompanhamento desse grupo a proporção de evadidos, quase 30%.

No que se refere ao terceiro grupo estudado, que iniciou a alfabetização em 1986, verifica-se já
neste período um número expressivo de repetentes e evadidos(tabela 3:B). Caso se confirmem as
tendências dos grupos anteriores, onde na primeira série se verificou um significativo índice de
repetentes e evadidos, este grupo poderá apresentar uma proporção significativa de
'descontínuos', já que na alfabetização esse fenômeno já se dá de forma notória.

Na tabela 3C a proporção de 'aprovados contínuos' é de 68,7%, enquanto a de 'descontínuos' é


de 31,2%. Numa hipótese comparativa, levando-se em conta os 'dados' das tabelas anteriores, é
possível inferir-se que provavelmente a proporção menor de 'descontínuos' desse grupo deve-se
ao fato de que esse grupo passou apenas pela alfabetização, não se submetendo aos três anos de
escolarização fundamental do primeiro e os dois anos de escolarização fundamental do
segundo, onde o tempo de exposição à seletividade foi maior.

Na tabela 4, onde todos os dados globais estão agrupados, com todas as séries e turmas, pode-
se verificar que a proporção de 'aprovados contínuos' é maior do que a de 'descontínuos'; note-
se, no entanto, que a proporção de 'descontínuos' é cerca de 41,8%, distanciando-se pouco da
metade proporcional.

Com esses 'dados', verifica-se que a evasão e a repetência dos alunos advindos do programa é
considerável, o que significa que 41% dos alunos atendidos pelo programa tiveram grandes
dificuldades em ultrapassar com seus backgrounds escolares a escolarização proposta pelo
colégio. No entanto ao se verificar a proporção de ativos(aprovados contínuos mais repetentes),
detecta-se que apesar das dificuldades, uma proporção expressiva, 78,2%, continua resistindo à
seletividade, vivenciando a escolarização das séries iniciais.

O que é importante enfatizar a partir destes dados é que o programa compensatório ficou longe
de cumprir e justificar suas metas no que concerne à erradicação da evasão e da repetência das
crianças pobres na escola...o que remete as análises destes fenômenos para formas muito mais
complexas do fracasso escolar... "(Macedo,1988: 63-67). Vide Anexo 2.

SÍNTESE CONCLUSIVA DE UMA ETNOPESQUISA CÍTICA NOS MEIOS


EDUCACIONAIS
Os estudos aqui apresentados são a síntese conclusiva de um só estudo, a minha tese de
doutorado no Departamento de Ciências da Educação da Universidade de Paris VIII, de onde
os extratos de estudos já apresentados nesta obra fizeram parte, denominada Enfance et
Éducation. Approche Actionnaliste et Phénoménographique de deux programmes publics
d'éducation préscolaire a Bahia(Brésil).

Caracteriza-se como uma investigação interpretativa de dois programas de educação infantil


públicos, orientados pelas perspectivas compensatória e comunitária, desenvolvidos em bairros
populares de Salvador, estudados em épocas diferenciadas(1984-1992).

Tratou-se de um estudo sobre casos ou multi-casos, portanto, onde a problemática construída


revela, acima de tudo, a itinerância de uma inquietação heurística, e menos uma necessidade
cientificista de comparação entre dois programas de educação infantil, apesar do significativo
efeito contrastivo que possibilitou. Neste processo, reafirma-se o caráter fenomenográfico do
estudo, sua natureza ideográfica, multirreferencial e crítica.

Calcado numa abordagem acionalista, a partir de uma inspiração teórica interacionista,


etnometodológica e institucionalista crítica, o estudo opta por um processo metodológico com
intensa observação participante.

Tendo como principal objetivo a análise de dois programas pré-escolares, marcados pela
diferença, pelo conflito de ideários e por complexas contradições, a pesquisa, na sua
verticalidade, emerge desnudando o percurso de superações epistemológicas, práticas e
assincronismos do seu ator/autor; seus atos falhos e suas implicações enquanto pesquisador. O
que nas pesquisas não-hermenêuticas fica em opacidade, no processo implicacional deste estudo
aparece enquanto inquietante dialética encarnada do colonialismo intelectual, intensamente
vivenciada por seu autor.

A abertura a uma visão relacional do objeto de pesquisa com níveis ditos macros, privilegiando
as construções locais dos atores pedagógicos, a flexibilidade, em considerando visões estéticas
ou mítico-poéticas da realidade, elaboram uma investigação de característica eminentemente
hermenêutica.

Por uma "descrição densa"(Geertz), por uma abordagem clínica e crítica, busquei a
característica intensiva, pontual, temática e relacional do objeto analisado, seu caráter
autenticamente qualitativo. Considerei, ademais, a incontornável capacidade ou competência
interpretativa de todos os atores pedagógicos implicados, via entrevistas abertas, história de
vida, análise de documentos, análise construcionista, grupo focal, observação de movimentos
públicos, observações de aulas e análise de expressões escritas e estéticas. Através destes
recursos, cheguei à "rede de significados"(Martins,1995) dos currículos propostos e vivenciados
pelos dois programas.

No que concerne à problemática central da pesquisa, ao implementar com outros atores


pedagógicos o programa pré-escolar compensatório do CAS, edificado no início da década de
8O, movido pela crença na efetividade teórica de conceitos funcionalistas como privação
cultural, déficit lingüístico e outros, e da pertinência técnica de intervenção da educação
compensatória, vejo-me, posteriormente, envolto em dúvidas e questionamentos. Inquietava-me
a tão propalada pertinência pedagógica da perspectiva compensatória face aos paradoxos das
próprias ações cotidianas da iniciativa por mim vivida. Note-se que a problemática estabelecida
incrusta-se, imbrica-se ou encarna-se no próprio vivido do seu sujeito/autor.

Após discutir, na minha dissertação de mestrado, a história e a prática da educação


compensatória e sua apropriação pelos órgãos da educação pública brasileira, fui movido em
direção a um aprofundamento crítico das pedagogias compensatórias e da minha própria
formação e prática; inquietado, indaguei-me: que outras possibilidades educacionais pré-
escolares restam às crianças das camadas populares?

Minhas buscas levaram-me às significativas iniciativas das comunidades dos bairros pobres de
Salvador, os programas pré-escolares comunitários, nascidos das inspirações educacionais
populares e suas articulações organizacionais e institucionais, que brotam em face das políticas
públicas iníquas no que concerne à educação infantil.

Percebi, então, que se desvelava diante de mim uma perspectiva educacional nascida no seio
das contradições históricas e fundamentais da sociedade brasileira e do contexto baiano,
particularmente, no que concerne ao atendimento infantil na escola pública.

Cheguei então à questão norteadora do estudo: através da análise de programas pré-escolares


públicos concretos, como emergem e se dinamizam as perspecticvas compensatória e
comunitária em educação pré-escolar pública? Quais os pressupostos e conceitos mediadores
que as orientam? Como emergem as práticas e os significados atribuídos às práticas
cotidianamente? Que visão de infância em escolarização transparece das ações dos atores
pedagógicos? Qual a natureza dos vínculos e articulações com os movimentos sociais e/ou
pedagógicos, no bojo dos quais tomaram forma e feições?

Concebido no seio do chamado "otimismo pedagógico", que surge paralelamente ao "discurso


de grandeza" dos governos totalitários que se instalaram no Brasil no pós-64, o programa pré-
escolar do CAS – não fui autorizado a tornar público o nome da instituição – nutre a crença de
que a educação compensatória seria a panacéia universal para as injustiças e desigualdades
sócio-educacionais. Erradicaria o fracasso das crianças pobres na escola, vistas como carentes,
culturalmente privadas, desnutridas, sem prontidão para aprender, deficitárias, portanto. As
práticas estão plenas de etnocentrismos hierarquizantes, desreferenciadores.

Impregna-se nos argumentos norteadores das práticas uma noção de infância que se quer
universal, idealizada, uma invariante na história, facilmente "penetrável" e objetivamente
socializável. Vê-se como a diferença é tornada defeito numa abordagem francamente
ortopédica, isto é, interessada em "consertar" déficits.

Segundo as especificidades do atendimento, a criança é um ser incompleto por natureza, deve


ser preparada por uma pedagogia da falta, está sempre à espera de uma vida adulta ajustada e
produtiva; consubstancia-se num ser atemporal; nega-se seu status de ator e autor social, capaz
de agir, autorizar-se e alterar-se.

A partir desta lógica de intervenção, em querendo prevenir/erradicar o fracasso escolar, erige-


se, no seio do próprio programa, conceitos mediadores e mecanismos pedagógicos de claro
conteúdo excludente, funda-se seu principal paradoxo: desejando acrescentar, retira,
estigmatizando, como nos mostra Goffman nos seus estudos sobre as "instituições totais".

O ideário compensatório por mim vivido reflexivamente, em realidade reifica e escamoteia


mecanismos de exclusão, deixando em opacidade o caráter reformista neoliberal da ideologia
básica desta perspectiva, tão longeva quanto a idéia de escolarização da criança, e tão
revitalizada quanto os mecanismos das ideologias capitalistas nas suas múltiplas hibridações.

Ao mesmo tempo em que compreendi criticamente, de dentro, um programa pré-escolar


compensatório, seus pressupostos, conceitos mediadores, significados e práticas correntes,
deparei-me com a possibilidade, enquanto outra realidade, na profunda e intensa contradição
sócio-educacional em que nos encontramos, consubstanciada nas iniciativas educacionais
comunitárias.

In situ, esforço-me em interpretar uma pedagogia que se quer radical, diferenciada,


requalificada.

Articulado com movimentos religiosos, étnicos, de classe e localistas, todos de caráter


emancipatório, colado aos interesses das mulheres da comunidade pela pré-escolarização dos
seus filhos, o programa pré-escolar da E.P.N.A.(Escola Popular Novos Alagados) atualiza seu
processo educacional pela constante problematização dos conteúdos normatizadores,
reproduzidos e disseminados pelos livros didáticos oficiais e pelas instituições que os veiculam.
Insurge-se, a todo momento, contra a desreferencialização das crianças dos segmentos
populares.

O currículo que se institui quer saber sempre da vida dos seus sujeitos-alunos, constrói-se,
predominantemente, a partir deles, e movimenta-se com eles; torna-se um corpo híbrido e
movente de conhecimentos; desconstrói a todo momento, o poder do "está escrito"; daí a força
da oralidade nas relações e construções pedagógicas.

Fundado numa prática que se quer irremediavelmente dialógica, imbricam-se aprendizagem e


vida, deseja-se uma criança concreta aprendendo, percebida como um ser que necessita, mas
que é capaz de acrescentar ao mesmo tempo. Rejeitam-se os métodos pedagógicos ortopédicos,
reduzidos à patologização do ato educativo e a uma psicopedagogia descontextualizada.

Pelo desenho livre, pelo jornal de classe, pelo teatro pedagógico, pela expressão incentivada e
fustigada, vivida e vivenciada, aproxima-se a criança do mundo letrado; a leitura na escola
começa com a leitura do mundo: inspiração paulofreiriana.

Cultivando como conceitos mediadores o tema gerador, a problematização, a participação, a


dialogicidade, a luta e a emancipação, o processo pedagógico pré-escolar da E.P.N.A. pode ser
interpretado como uma pedagogia construtivista, problematizadora, solidarista e emancipadora.
Faz do movimento uma pedagogia pela cidadania, dando à pré-escolarização uma amplitude
que transcende às atividades encerradas em sala de aula.

O cotidiano de privações da Comunidade de Novos Alagados está presente no dia-a-dia da


E.P.N.A. e no programa pré-escolar por conseqüência; acrescentem-se aí as difíceis condições
de trabalho das professoras recrutadas na comunidade e as discriminações sofridas a partir do
poder instituído. Neste movimento, vê-se uma relação com o Estado onde os conflitos são
inevitáveis, mesmo porque é no próprio seio dos conflitos sociais básicos que caminham as
ações educacionais da E.P.N.A. e seu programa de educação infantil, que gera a perspectiva
que cultiva.

É aqui que se edifica uma das suas principais contradições e que atinge de frente a intenção
maior das práticas educacionais comunitárias: a requalificação do ato educativo, seriamente
comprometida pela extrema pobreza de recursos. No seio destas dificuldades, destes
comprometimentos, surgem dúvidas e contestações entre seus atores sobre aspectos
significativos da identidade do programa, diria mesmo assimilações pedagógicas paradoxais,
quando procuram algumas aproximações com pedagogias normativas e/ou prescritivas.

A concepção de escolarização infantil do programa pré-escolar da E.P.N.A. quer requalificar


radicalmente a pedagogia deste grau de ensino entre nós. Ao instituir práticas novas, em
fazendo-se diversidade e adversidade, elemento de contradição, visa assustar o instituído neste
campo do fazer educativo. Seus atores pedagógicos, aliás, predominantemente suas atrizes
pedagógicas, até porque são as mulheres que emergem como as condutoras fundamentais das
ações, transformam a espera perpetuada em esperança ousadamente conquistada. Enquanto
sujeitos, querem deixar de ser objetos do currículo, fabricam uma certa utopia pedagógica,
apesar das inquietantes contradições que vivenciam.

Uma "ilusão fecunda" os move,(as move predominantemente), a luta por uma educação pré-
escolar pública popular. Com este objetivo, reinterpretam a forma como a pré-escola pública
oficial compreende a criança que atende.

Em resumo, através da praticabilidade de programas e currículos, do "currículo real", sem


mergulhar num empirismo sem alma, ou num egologismo ou possibilitarismo ingênuos, fiz
emergir realizações e patterns em educação pré-escolar pública até o momento não
documentados, ou seja, analisados quando muito abstratamente, ou como mera corporificação
de hipercorrentes e/ou onipotentes forças macroestruturais.

As perspectivas compensatória e comunitária em educação pré-escolar analisadas apontam


para o caráter contraditório das políticas e ações educacionais infantis. Apontam também para
a natureza incipiente, fragmentária e socialmente injusta das políticas pedagógicas
implementadas.

Por outro lado, via práticas alternativas, o estudo mostra a possibilidade sendo construída, no
âmago mesmo das contradições em processo.

Em termos conclusivos, evidencia-se no estudo e na emergência hipercomplexa dos currículos, a


fecundidade analítica da concepção de currículo enquanto "estado de fluxo", sistema aberto e
relacional, construção interessada e prenhe de significados instituintes. Por conseqüência,
impõe-se uma análise hermenêutica crítica, que possa romper com os estudos objetivistas e ditos
neutrais, desnudando o fato de que, como tudo entre os homens, a educação é uma prática
opcionada. Por conseguinte, uma construção curricular em nível da educação infantil – como
qualquer outra – é portadora de uma visão de homem e de mundo, tem um projeto e uma
intenção, aspectos significativos para um pesquisador interessado na complexidade da praxis
educacional.
Nestes termos, a compreensão da pertinência social de uma construção curricular em educação
infantil passa, necessariamente, por uma pedagogia crítica, como aliás elabora E. Morin sobre
uma certa "ciência com consciência", onde o paradoxo, a contradição, a diversidade, a
adversidade e os assincronismos não sejam relegados a epifenômenos. A propósito, os
imaginários infantis expressam e são densos de multirreferências, complexidade que o
cientificismo adultocêntrico não se esforça em ver, tampouco senti-la sensivelmente. Seria por
acaso o fato de que a criança é uma ausência constante da grande maioria dos estudos que
versam sobre a educação? Seria por acaso a construção histórica de inferioridade, na qual tem
sido concebida? Seria por acaso, à semelhança do que se fez com os negros, a mulher, o índio, o
trabalhador, vê-la como "idiota cultural"? É por acaso o cultivo na escola deste ethos em
opacidade?

Este estudo quis compreender, por uma etnopesquisa crítica e multirreferencial, através de uma
teorização encarnada, uma problemática curricular onde as questões tematizadas perpassam
todo um processo hermenêutico sobre a infância e a educação escolar. Ademais, o próprio
estudo, no seu processo, vai provocar significativas transformações em nível do pensamento e
da prática educativa do seu autor, face a dialeticidade e a dialogicidade implicacionais entre
sujeito e objeto, possibilitado pelas etnopesquisas de natureza reflexiva...(Macedo,1995: 720-
735).

Etnopesquisa, condição feminina e educação


Da perspectiva de Poisson(1990), a abordagem qualitativa das etnopesquisas permitiu a muitas
pesquisadoras feministas descrever a realidade tal como elas vivenciavam enquanto mulheres,
como jamais nenhuma outra abordagem teria possibilitado anteriormente.

Para este etnógrafo dos meios educacionais, graças à etnopesquisa, as mulheres puderam, de
alguma maneira, se apropriar da realidade social que lhes escapava até então. De mais, a
pesquisa de orientação qualitativa parece ser um meio significativo para permitir às mulheres que
se expressem mais livremente na presença de etnopesquisadoras enquanto atrizes e autoras
sociais sensíveis à condição histórica da mulher em sociedade.

Esta nova condição tem como efeito o desenvolvimento de conhecimentos em ciências humanas
antes recalcados, por uma ciência que praticou e pratica um sexismo de uma forma muito mais
explícita do que se imagina. Os temas e as problemáticas em geral privilegiadas pelas mulheres
cientistas e politicamente engajadas, não são necessariamente os mesmos eleitos pelos homens,
há uma feição e uma preocupação onde a condição histórica e presente da mulher de alguma
forma são pleiteadas.

Notadamente, a influência do feminismo no desenvolvimento da etnopesquisa foi tratada por


vários autores como Oakley, 1981; Finch, 1984; Scott, 1985; Smith, 1987. Todos estes autores
pontuam características das pesquisas produzidas por mulheres engajadas, onde os resultados
apontam inclusive para a contestação de pesquisas edificadas sob o ethos masculinizado, que
trabalharam com o mesmo objeto, mas que, entretanto, chegaram a conclusões preconceituosas e
hierarquizantes.
Fica claro o falocentrismo e a percepção falocrática de uma ciência que pelo que me consta
sempre reconheceu nos homens a condição e a aptidão predominante de fazer ciência. Criou-se
um verdadeiro fetiche face a uma razão instrumental machista.

É justamente com os diversos movimentos feministas que pode-se ver surgir uma ciência
impregnada do ethos feminino, que vem trabalhando cada vez mais densamente para abalar
velhas crenças patriarcais, emergindo daí perspectivas novas para pensar o social e o cultural,
diria mesmo a opção de vida da sociedade moderna. Nestes termos, uma outra racionalidade
seria cultivada, muito próxima da razão comunicacional habbermasiana.

Tomando a docência e sua formação entre nós como exemplo, nasce em meio ao que Tomaz
Tadeu da Silva(1995) compreende como o pensamento educacional brasileiro inflexivelmente
machista e patriarcal, apesar do magistério ser uma atividade predominantemente feminina.

Ao comentar sobre a tradicional perspectiva feminista em educação, que se dirige


fundamentalmente à questões de acesso e desempenho das mulheres no sistema educacional,
Tomaz Tadeu chama à atenção para as estratégias discriminatórias pelas quais as mulheres têm
dificuldade de acesso ao sistema educacional de forma geral e a certas carreiras educacionais em
particular, como também para os preconceitos em relação a seu cultivo de determinadas
disciplinas. O autor pontua, ainda, os estereótipos "em relação a papéis sexuais predominantes
em materiais didáticos e livros-textos"(Tadeu da Silva, 1995:188).

Mergulhando um pouco mais a fundo, e retomando a questão da natureza sexista do


conhecimento moderno, a própria ciência teria desta perspectiva, de ser ressignificada, na medida
em que fomentando o conhecimento curricular, apresenta formas de conhecer, ensinar e aprender
eivadas de experiências centradas nas perspectivas falocêntricas.

É aqui que uma epistemologia social da qual já falamos tem um papel de desreificação e de
desconstrução fundamentais. Não estaria o objetivismo duro, o universalismo bárbaro, a
neutralidade cínica, sob a égide de uma razão autocentrada, machista? Não poderia ser a
etnopesquisa crítica e multirreferencial com seu ethos solidarista, inclusivo, comunitarista,
sedento de conexões e articulações, aberto ao acontecimento, intencionalmente emancipatória,
um instrumento interessante para o fortalecimento de uma inteligência feminina inquiridora e
inventiva, mas também poderosa o necessário para emancipar-se e emancipar? Por essas e outras
questões é que Rubim(1997), ironicamente, reinventou e ressignificou um "Maquiavel para as
mulheres", ao construir com sua obra uma "Princesa" bela, sensual, inteligente, perspicaz e
empreendedora, capaz de construir estratégias próprias à forma feminina de ver o mundo, uma
atriz social crítica e ressignificada pela forma feminina de ser.

Parece-me que a etnopesquisa é mais um recurso para se decretar uma falência absolutamente
necessária no fazer científico e no fazer educacional sexista: a falência do colonialismo bárbaro
que historicamente se estabeleceu, quando os homens descobriram o cínico e confortável habitus
da utilização das mulheres para os seus projetos iníquos, como aliás foi o que aconteceu e ainda
vem acontecendo nos meios educacionais.

Assim, a etnopesquisa e a emancipação das atrizes pedagógicas(Silva, 1998) me parecem mais


um encontro significativo nestes tempos de crise de paradigmas e de anseios de construção de
novas e mais dignas formas de trabalhar, pesquisar e viver.

Etnopesquisa e a construção do objeto


Nos parece importante salientar que a tradição de flexibilidade das etnopesquisas não significa
em absoluto a dispensa da organização do pensamento que investiga.

Emergem desta perspectiva alguns eixos norteadores que avalio fundamentais para se chegar a
um bom termo na condução de uma etnopesquisa.

Interesse e experiência em relação à temática ou ao objeto a serem investigados são um começo


que possibilita, sem grandes tropeços, chegar às etapas fundamentais de sua elaboração. Por estas
vias começam as inquietações, que mesmo sendo um tanto quanto inconsistentes, podendo ser
melhor orientadas por um contato exploratório inicial, vão levar a uma construção que considero
o eixo basilar de qualquer pesquisa: a construção do objeto. Um objeto de pesquisa que chega
mal delimitado e mal construído nas etapas finais da investigação leva, em geral, o pesquisador,
a dificuldades significativas ou a um fracasso comprometedor, pois é a construção clara e
coerente do objeto que vai dar consistência a todas as outras etapas da pesquisa. Isto não difere
nas etnopesquisas críticas dos meios educacionais, mesmo sabendo da sua recomendável
maleabilidade. Clareza e consistência, outrossim, não significam rigidez, é possível que a
construção de um objeto de pesquisa seja modificado quando do contato com o campo, isto é
perfeitamente possível e coerente com a forma com que os etnopesquisadores percebem a
complexidade da realidade no seu movimento, na sua historicidade, enfim. É uma prova de que
sujeito e objeto se modificam mutuamente e que pesquisar implica num diálogo aberto com o
real.

Esta dialeticidade, entretanto, requer um desejo de saber que se auto-eco-organiza na experiência


e no amadurecimento teórico relativo à temática de onde emerge o objeto de pesquisa. Os
etnopesquisadores jamais dispensam a teoria enquanto inspiração que ajuda a alimentar a sua
inquietação e a leitura que faz da realidade, face aos desafios que esta "oferece" à sua
consciência investigativa. A esse respeito, Ivani Fazenda(1997) faz uma reflexão extremamente
fecunda:

Entretanto, à medida que vai se apropriando de si mesmo, sua pesquisa experimenta o gosto
pela autêntica descoberta de sua subjetividade. Como num espelho, vê sua imagem (aquela
que nunca a ele fora revelada), exposta como se não fora sua. Examina-a em cada detalhe;
um ajuste aqui, outro acolá, aproxima-a da imagem de seus desejos. É todo um processo de
construir-se e, nesse construir-se, aos poucos, revelar-se.

Como se daria então a construção de um objeto de uma etnopesquisa? Interesse, desejo de saber,
inquietações sobre algum aspecto da realidade experienciada de alguma forma, um estudo
exploratório inicial cuidadoso, vão desaguar naquilo que considero a "alma" de uma pesquisa, o
que lhe dá vida e norteamento: sua problemática e suas questões fundamentais.

Argumentar o desejo de saber, as inquietações e dúvidas, as implicações sobre algum aspecto a


ser conhecido de uma "dada" realidade bem delimitada, significam construir uma problemática.
Formular algumas perguntas coerentes com a problemática construída, com significativo poder
de inclusão sobre esta realidade que se deseja conhecer, significam edificar as questões
fundamentais da pesquisa. São tais questões que irão esclarecer, ao serem respondidas, a
problemática da pesquisa. São elas que devem embasar todas as outras construções no âmbito do
estudo realizado. Outros aspectos não contidos nas respostas às questões formuladas podem
aparecer, sem nenhum comprometimento no que se refere à validade do estudo realizado,
entretanto, as questões fundamentais elaboradas na problemática terão que ser respondidas, sob
pena de se deixar uma lacuna cientificamente comprometedora no estudo realizado.

Para quem tem experiência de pesquisa, sabe que cumprida esta etapa, justificativas, objetivos,
métodos etc. emergem como uma mera conseqüência do cuidado com a coerência e a pertinência
adquiridas no compromisso com a competência de pesquisar, como produto de uma formação
bem solidificada nos âmbitos da preparação do pesquisador.

Portanto, mesmo em se tratando de uma etnopesquisa, faz-se necessário que o processo de


apropriação e construção do objeto de pesquisa seja coerente e consistente, até porque não serão
os etnopesquisadores que, praticando uma forma de pesquisar aberta aos assincronismos,
paradoxos, contradições, ambivalências etc, negarão o sentido do rigor científico, que jamais
deve ser confundido com hermetismo, é bom reafirmar.

Como primeiro momento da construção de um objeto de pesquisa, seria interessante historicizá-


lo, contextualizá-lo, mostrar as implicações objetais do pesquisador, para depois apresentá-lo
enquanto um desafio que demanda um conhecimento específico(a problemática), e, num passo
posterior, elaborar as questões norteadoras a que a pesquisa deverá responder. Como a
construção de um objeto de pesquisa depende totalmente do sujeito que pesquisa e da realidade
pesquisada, jamais pode ser vista como uma receita rígida, carece de acuidade criativa, portanto,
de imaginação. Desta perspectiva, a idéia de objeto construído significa num primeiro momento,
que nós não trabalhamos com a realidade de uma maneira direta e imediata, mas com a realidade
que nós captamos, assim, é coerente que falemos de objeto construído como resultado de um
labor imaginativo e científico ao mesmo tempo. Por conseguinte, da nossa perspectiva, o objeto
construído não pode ser compreendido na ausência de seu respectivo construtor. Não imagino a
solidão hermética de um sujeito e de um objeto, tendo entre eles uma relação meramente formal
de simples captação, de descrição e de reprodução. Sujeito e objeto se fecundam mutuamente.
Vivi e creio na relação constitutiva entre o sujeito e o objeto do conhecimento numa pesquisa, a
partir de uma influência dinâmica e multimediada.

Como exemplo sintético da construção de um objeto de pesquisa, podemos tê-lo no extrato


conclusivo de uma etnopesquisa que apresentei nesta obra. Tomando como estudo dois
programas de educação infantil públicos, um compensatório e o outro comunitário, mostro,
historicizando-os e contextualizando-os, a pertinência de compreendê-los em profundidade,
como, inclusive, as duas únicas perspectivas à época disponíveis em termos de educação infantil
pública. Após apresentá-los enquanto uma problemática a ser esclarecida, pois representavam um
exemplo patente das contradições que perpassam as políticas educacionais entre nós e seus
pressupostos, apresentei as questões fundamentais que nortearam todo o estudo. Num olhar
verticalizado, vê-se, ademais, incessante e ativamente, um sujeito concreto a construir seu objeto
de pesquisa e a sua pesquisa como um todo.
Apesar da opção forte e clara por uma orientação anti-positivista e crítico-fenomenológica,
características fundamentais de uma etnopesquisa crítica, o estudo não dispensou a preocupação
em construir um objeto claramente delimitado e compreensível na sua constituição.

Seria de bom alvitre, também, que após a construção do objeto de pesquisa, o projeto fosse
socializado entre pessoas interessadas na temática, no sentido mesmo de submetê-lo à apreciação
da pertinência de sua constituição. Uma etnopesquisa crítica não visa satisfazer uma curiosidade
ou uma preocupação individualista inconseqüente. Tal postura recomenda inclusive que a
problemática e questões, e os demais componentes do projeto sejam socializados no meio escolar
pesquisado (Poisson, 1990), até porque a aceitação de um projeto de pesquisa pelas pessoas que
serão envolvidas, através de uma estada prolongada do pesquisador em campo, possibilita uma
caminhada investigativa muito mais fecunda e participativa.

O etnopesquisador. Principal "instrumento" da etnopesquisa


Em geral, quando um jovem aprendiz de metodologia se depara com o corpus de conhecimento
característico das etnopesquisas, tende a buscar respostas metodológicas e roteiros prontos e
capazes de, sem maiores esforços intelectuais, possibilitar o acesso ao "dado" significativo.

Costumo desconstruir tal expectativa, convencendo-lhe de que é a sua competência teórica, sua
experiência com o objeto de estudo e sua acuidade criativa com o método que o transformará
num bom etnopesquisador. Trabalhar bem uma etnopesquisa demanda sempre uma certa dose de
ousadia curiosa e inventiva, porquanto, se há uma característica marcante nesta forma de fazer
pesquisa, é a sua natureza aberta à complexidade dos fenômenos humanos. Inteligência que não
aprendeu a desconstruir a maneira digital e binária de raciocinar na investigação dos fenômenos
humanos está fadada ao fracasso, ou à mediocridade ao implementar uma etnopesquisa. Tais
requisitos tornam-se incontornáveis quando tem-se, por exemplo, como objeto de pesquisa, a
prática educativa. Multifacetada, multimediada, multirreferencial, contraditória, ideologizada, a
prática educativa é, em verdade, uma construção hipercomplexa, longe de ser compreendida por
tecnologias retilíneas de pesquisa, e/ou procedimentos algorítmicos.

O etnopesquisador não é um mero relator contemplativo, sua imersão no cotidiano, a


familiaridade com os acontecimentos diários e a percepção das concepcões que embasam
práticas e habitus supõem que os atores e atrizes sociais da pesquisa têm representações parciais,
incompletas, entretanto construídas com relativa coerência em relação à sua visão e à sua
experiência(Chozzotti, 1998). Neste sentido, atores e atrizes sociais jamais podem ser percebidos
como imbecis, como bem alertara Garfinkel.

É fundamental o entendimento de que o etnopesquisador é parte irremediável da pesquisa.


Representante de um segmento que, ao longo da história, se quis um construtor de regularidades
e leis, o etnopesquisador deve acostumar-se com a angústia do método, um questionamento
constante sobre a pertinência de suas posturas e métodos, da sua visão de mundo, da visão sobre
os pesquisados e suas construções, dos seus construtos teóricos e epistemológicos. Daqui nasce o
desejo curioso e a inventividade no processo de pesquisar.

Marli André(1995) nos fala, por exemplo, que em sendo o pesquisador o principal instrumento
de coleta e análise dos "dados" de uma pesquisa etnográfica, "haverá momentos em que sua
condição humana será altamente vantajosa, permitindo reagir imediatamente, fazer correções,
descobrir novos horizontes". Por outro lado, esta mesma condição humana, por ser
ontologicamente insuficiente, bio-degradável, poderá levar ao erro, a deixar de ver e
compreender pontos chaves da situação pesquisada; envolver-se demais e perder o necessário
distanciamento para que possa emergir o fazer da ciência é uma dificuldade de extrema limitação
à construção e sistematização do conhecimento científico.

Tolerância às ambiguidades, às insuficiências, às retomadas, às seduções, às políticas


corporativas, à informação dúbia, é uma postura altamente significativa para quem quer fazer
etnopesquisa. Tal tolerância implica em "escuta sensível" e uma grande facilidade em se
comunicar e criar uma ambiência empática capaz de fazer fluir bem as informações, inclusive as
mais resistentes.

É interessante pontuar também uma preocupação mencionada por Marli André(1995) a partir das
recomendações de Merriam(1988) no que concerne à capacidade de escrever uma pesquisa
etnográfica. A autora ressalta

que muitas vezes o trabalho de campo é conduzido com todo cuidado, os "dados" obtidos
são ricos, significativos, mas o pesquisador não consegue pôr em palavras aquilo que
observou, ouviu e sentiu.

Da nossa perspectiva, a habilidade para a escrita de uma etnopesquisa precisa ser abordada entre
nós a partir de uma retomada muito mais ampla: a dificuldade histórica da maioria dos nossos
estudantes em expressar-se pela escrita. Neste sentido, faz-se necessário atinar que a questão do
método ultrapassa a competência do metodólogo, como se expressou Becker a respeito da
complexidade deste savoir-faire. Neste caso, necessário se faz uma preparação/conscientização
mais ampla e aprofundada sobre a criação pela escrita.

Pelo dito, cada vez mais me convenço da necessidade urgente de se formar em profundidade
aquele que é o principal instrumento da etnopesquisa, o etnopesquisador, principalmente porque,
reafirmo, a etnopesquisa é necessariamente uma prática complexa e de rupturas claras com os
cânones da pesquisa convencional.

A etnopesquisa e seus vieses


Preocupa-me de maneira inquietante a crença muitas vezes constatada nos meios formativos de
pesquisadores em educação de que as pesquisas de inspiração interpretativa não têm
compromisso com a validade e o rigor científicos, mas apenas com a riqueza dos "dados"
coletados. Faz-se necessário alertar que a etnopesquisa não é uma antipesquisa, tão pouco toma
de forma literal a expressão anarquista de Feyarebend no que concerne ao método. Os
etnopesquisadores não são "contra o método", o ressignificam, na medida em que precisam de
outros instrumentos para alcançarem os âmbitos da qualidade humana. Tomando a qualidade
como atributo humano complexo, "tão forte quanto frágil"(Demo, 1998), um método que deseje
tocá-la em profundidade e no seu inerente dinamismo, precisa considerar a reconstrução
permanente e a constante dialogicidade sujeito-objeto como procedimento de qualidade.
Parece-me importante salientar que os procedimentos em etnopesquisa cultivam pressupostos
filosóficos, coerência epistemológica e metodológica. Não é possível sustentar um argumento
metodológico, por exemplo, onde se diz ser uma pesquisa participante uma investigação onde o
pesquisador vez por outra aparece no contexto e de forma en passant coleta "dados", ou ao
realizar uma entrevista dita aberta, fala mais do que ouve, ou ainda, se dispõe a uma análise de
inspiração interpretacionista usando instrumentos inerentes aos métodos de gabinete, como os
surveys. Existem aqui erros epistemológicos e metodológicos graves, que não se sustentam ao
primeiro aprofundamento histórico-filosófico no que concerne à emergência dos métodos
interpretativos.

Ademais, é preciso que o etnopesquisador entenda que ele não pode abrir mão da sua condição
de pesquisador. Este perigo advém do fato de que etnopesquisadores extremamente implicados
com seu objeto de pesquisa confundem pesquisa com militância ou meio de defesa por
identificação transferencial, após, muitas vezes, a sua conversão aos ideais do grupo pesquisado.
Alguns chegam a inventar, a partir do seu imaginário identificado, informações que em absoluto
saíram de uma verdadeira pesquisa. Mergulhar no contexto, vivenciá-lo densamente é tão
importante quanto o processo de afastamento para que o conhecimento científico possa construir-
se. O diálogo aqui deve ser permanente, visando uma legitimação comunitária, mas nunca
confusão populista, onde, em geral, abre-se mão da especificidade do fazer científico. Ciência
solidária sempre, entretanto, não é possível chamar-se de ciência qualquer conhecimento
produzido só na prática da solidariedade.

São pertinentes, neste sentido, as elaborações de Haguette(1987), quando sintetiza alguns vieses
e suas conseqüências em termos de distorções e erros numa pesquisa de inspiração qualitativa.

l. O viés sócio-cultural do pesquisador, ou seja, o viés de partilhar a perspectiva e valores de


sua própria cultura de seu tempo e de seu meio com o desempenho do papel do pesquisador;
2. O viés profissional/ideológico, que induz à seletividade da observação, dependendo do
quadro de referência ou do tipo de formação recebido pelo pesquisador; 3. O viés
interpessoal do observador que moldará, a partir de suas emoções, defesas etc., o que ele
"verá" como significativo e a maneira como ele perceberá a interação humana; 4. O viés
emocional do observador com relação às próprias necessidades como pesquisador; em
outras palavras, a necessidade de confirmar suas hipóteses, de "estar certo", pode levá-lo a
forçar uma "adequação" do real a suas teorias prévias sobre o fenômeno; 5. O seu viés
normativo acerca da natureza do comportamento humano pode conduzi-lo a juízos de valor
que prejudicarão não só sua coleta de dados como sua análise e interpretação. p. 39

É preciso reafirmar que flexibilidade, dinamicidade, abertura às contradições, às relações, às


articulações, às ambivalências, aos paradoxos, às insurgências, aos acontecimentos, às
insuficiências, às sabedorias, às opacidades, à diversidade das expressões, à reflexão ética,
política e estética, jamais significam abrir mão do rigor, não o rigor que lapida, esteriliza,
purifica, mas o rigor que fecunda, numa prática de ciência ressignificada e requalificada, que
deve sempre primar pelo cuidado competente.

Esses também são motivos pelos quais defendo uma formação sedimentada no método,
principalmente em se tratando das etnopesquisas que, muito mais que outras abordagens
investigativas, lida com âmbitos extremamente complexos do ser-do-homem. Neste sentido,
demandam um pesquisador formado em profundidade, ultrapassando de longe o mero
instrumentalizar-se com técnicas. Precisa-se, aqui, de uma formação crítica bem fundada nas
chamadas humanidades e nos variados recursos metodológicos inerentes à etnopesquisa.

Considerações conclusivas
Na medida em que concebemos método enquanto caminho refletido, percebido necessariamente
por uma reflexão epistemológica fincada no seu uso social, isto implica em escolha, em opção
sobre a pertinência deste caminho. Da mesma forma, escolher e optar demanda um processo de
interpretação da pertinência e da relevância, e que ao mesmo tempo forma uma opinião, a
constitui. Tal incursão reflexiva na prática da pesquisa nos leva a compreender o quão esta
construção tem de alma e de carne, isto é, o quão impregna-se de existencialidade, como já
elaborara Heidegger.

Não foi nossa intenção, como se verifica, esgotar ou fazer uma exegese dos argumentos
metodológicos contidos nos âmbitos da etnopesquisa. Meu esforço foi de nunca desvincular o
método do referencial teórico-epistemológico, aliás, método é teoria em ato. Pretendi, refletindo-
os, fazê-los assunto de formação, evitando, ademais, tropeçar e cair no Zeitgeist – espírito do
tempo – da abstrata dicotomização tão recorrente entre método e teoria. Neste sentido, venho
reafirmar teimosamente a necessidade de refletir o método na pesquisa enquanto potencial
formativo para a prática compreensiva e transformadora de nós, professores, tão afeitos ao
imprinting científico e ao baixo mimetismo pedagógico. Vislumbro nesta via a possibilidade real
de uma formação do professor-educador enquanto intelectual e pesquisador, sem a aura
assombrosa que paira diante desta possibilidade. Pensar implicadamente a própria prática e a
prática dos parceiros é possibilidade alvissareira de uma reflexiva transformação na prática e pela
prática.
Capítulo IV - Etnopesquisa crítica, currículo e
formação docente
Nous avons cet avantage de sentir autour de nous un espace immense, mais aussi un vide
immense...

Nietzsche

Sobre a crise da formação docente


Seria pertinente começar estas reflexões pontuando algumas noções que em geral inquietam e
que, no momento, emergem como o centro de polêmicas nos meios do pensamento educativo.
Trata-se do conceito de formação e das especificidades da docência. No que se refere ao
primeiro, é na língua alemã que habita a complexidade da noção de formação e que inspira-me
em profundidade. Bildung(formação), surge modernamente na Alemanha no fim do século
XVIII. É um conceito de alta complexidade, com extensa aplicação nos campos pedagógico-
educacional e da cultura, além de ser indispensável nas reflexões sobre o homem e a
humanidade, sobre a ética, a criação, a sociedade e o Estado. Revestido de uma carga ideológica
sem igual, o conceito de Bildung só se torna plenamente compreensível a partir da própria
evolução político-social da sociedade alemã. Para Bolle(1977), não se encontram equivalentes
deste conceito em outras línguas. O francês formation e mais ainda o inglês formation seriam
apenas reproduções mecânicas. No caso da língua portuguesa, formação amplia-se e se
complexifica bem mais, aproximando-se do significado alemão, sem, entretanto, atingir sua
indexalidade. Bolle toma como exemplo enfático as dificuldades que o tradutor brasileiro de
Anos de aprendizagem de Wilhelm Meister, de Goethe, evidenciou quando não atinou com o
emprego estratégico da palavra Bildung, nessa obra paradigmática da tradição dos ditos
romances de formação(Macedo, 1997).

No que concerne às questões envolvendo o entendimento do que venha a ser a prática docente, a
nosso juízo, é preciso afirmá-la como especificidade que deve resistir a toda investida de
pulverização e de descaracterização, em nome de uma suposta prática de ensino de forte
conteúdo heurístico, mas que termina por destituir da docência as complexas competências
necessárias ao exercício de um bom professor. Falar de professor- pesquisador significa, de
início, afirmar o professor que, continuamente inquieto, forma-se também pela dúvida,
questionando o conhecimento e a realidade que se lhe apresenta enquanto desafio. É aqui que
emerge a postura de pesquisa e a necessidade de instrumentalização, visando o fortalecimento na
requalificação das práticas e o poder pelo domínio do saber relevante. Sabe-se que ensino e
pesquisa nutrem-se mutuamente; outrossim, há uma preocupação predominante quando fala-se
de docência como um ponto de partida: a competência do professor onde a pesquisa aparece
como uma das fontes de revitalização contínua.

Gostaria, ademais, de começar a refletir a relação entre etnopesquisa e formação docente,


vinculando-a a uma experiência pessoal publicada num ensaio lido praticamente no âmbito da
minha universidade, mas que hoje, numa conjuntura crísica em termos da formação docente
(reformulação dos currículos de pedagogia, a pesquisa hipervalorizada na formação universitária,
extinção gradual do curso de formação de professores em nível do segundo grau, ressignificação
das licenciaturas, etc.), foi retomado como possibilidade de uma reflexão histórica, já que foi
publicado na primavera de 1991, num contexto onde não havia tantas inquietações no que
concerne à formação de professores. Sob o título "Quando criar é arte do demônio", o artigo
transformou-se num autêntico etnotexto crítico, já que tomou forma de uma narrativa eivada de
extrema existencialidade refletida.

A partir dali comecei a construir a convicção de que pesquisa é muito uma atitude diante da vida,
implica em nutrir o espírito curioso da nossa especificidade existencial, o sentimento ético-
acadêmico de inacabamento, de liberdade para autorizar-se, alterar-se, bem como de que o
habitus do baixo mimetismo incrustado no ensino, e do imprinting incrustado no fazer científico,
vem instituindo solidamente no ethos formativo dos nossos professores uma visão deformada e
colonizada do que é a ação de ensinar e o fenômeno aprender. É notório o desconforto face à
curiosidade e à transgressão intelectual nos meios formativos da docência.

Foi como me senti, mensageiro do demo, arauto do inferno, pregador da discórdia, quando,
em certo momento de inquietação acadêmica, propus ao Departamento de Educação da
minha Faculdade que os alunos produzissem e defendessem um trabalho monográfico
orientado, ao final do curso de Pedagogia, onde fossem incentivados, principalmente,
trabalhos que versassem sobre temas contextuais, através de uma prática fundamentalmente
etnográfica e problematizadora.

Movido pela insatisfação por ver a universidade brasileira sendo marcada pelo mimetismo
acadêmico, transformada em verdadeiros cartórios que legitimam cada vez mais o imobilismo
iníquo da nossa sociedade, formando/moldando especialistas encasulados, parti para a persuasão
sobre meus pressupostos e propósitos.

Basilamos nossa proposta numa concepção de aluno-pesquisador capaz de, desafiado,


construir conhecimento, conhecimento vivo, colado à realidade concreta, à sua própria
realidade de futuro docente. Basta dizer que o quadro social onde atua o Departamento de
Educação(Serrinha-UNEB), campeia o analfabetismo e toda ordem de iniquidade sócio-
educacional. Tomava-me, naquele momento, a sensação de que aquela instituição de ensino
superior não podia abrir mão do seu papel transformador,não podia se acomodar com o
torpor do imobilismo que pontua o ensino no Brasil. Após uma consulta aos professores,
através de um comunicado explicativo a cada colega, e não tendo chegado às nossas mãos
sequer uma proposta, o assunto parecia estar sendo encerrado na falação estéril da reunião
departamental...

Diante da proposta, colegas declaravam-se incrédulos a possibilidade, por não acreditarem nas
condições cognitivas e no backgraund escolar dos alunos, outros sentiam-se ameaçados diante da
ruptura formativa contida na proposta e alguns, mesmo sutilmente, edificavam algumas das
várias perversões acadêmicas que nós do métier bem conhecemos.

Quanto aos alunos, reproduziam a seus modos, as posturas dos professores, sugeriam que a
proposta não fosse incorporada ao currículo e ficasse em nível de uma adoção pessoal de
cada aluno interessado em pesquisa. Outros profetizavam que a proposta viraria, a
posteriori, uma espécie de adorno ou enfeite do currículo, já que o objetivo da maioria era
formar-se o quanto antes, e não colocar mais pedras no caminho... Macedo(1991:10-16).

Este é, diria, um documento minimamente representativo, mas significativo, do que vem


acontecendo predominantemente entre nós, no que se refere à orientação curricular na formação
docente e a sua própria prática. É patente a disposição para enfatizar a reprodução, bem como é
notória a resistência para um ensino não dissociado da pesquisa. O que constatamos neste extrato
documental crivado de existencialidade é que a pesquisa ameaça os meios formativos e, nos
diversos significados desta ameaça, moram problemáticas e questões-chave para pensarmos e
modificarmos, sem messianismos, a atual qualidade da formação docente entre nós, conscientes
de que no bojo desta construção necessária se faz a reflexão política ampliada, afinal a
reprodução não é desinteressada e nem sempre é consciente. Faz-se urgência, portanto, a
necessidade de uma política para pesquisa e de pesquisa nos meios formativos.

No mesmo veio destas nossas inquietações, a crítica da crítica fazse pertinente. É preciso que o
poderoso fenômeno da moda sofra uma também potente desconstrução, até porque fazer
pesquisa hoje nos meios formativos já sinaliza um certo modismo, alavancado pelo projeto
modernoso do neoliberalismo perversamente competitivo que nos atinge em cheio.

A propósito, Antônio Nóvoa(1998) nos diz que em pedagogia "a moda significa quase sempre a
vontade de mudar para que tudo fique na mesma". Neste mundo tão etéreo, é preciso se cultivar
um certo ceticismo saudável, uma certa vigilância crítica em relação ao que está sendo proposto.
Inspirar-se, portanto, na passagem bíblica que nos recomenda: "examinai tudo..." seria um
primeiro e importante passo para uma atitude de pesquisa nos meios educacionais.

Uma das conseqüências de uma formação inspirada por alguns dos princípios aqui exercitados é
uma valorização autêntica da experiência e do vivido enquanto reflexões seminais para a
teorização da prática. Segundo Pinto(1995), utilizamos uma pedagogia predominantemente
falada. Para este autor, é preciso colocar os atores pedagógicos de imediato na situação a
conhecer, "contrariando o princípio da preparação ao acontecimento, do conceito antecipado à
existência, do referencial teórico prévio ao problema a investigar".

Desta perspectiva, Merleau-Ponty é uma fonte seminal de inspiração quando afirma a


"positividade da indeterminação", ponto de partida interessante para a experiência didática na
formação docente, em geral mumificada por receitas e paralisada por um turbilhão de verdades
insofismáveis.

Etnografia semiológica e formativa


Para Lapassade(1991), a etnografia na escola é de extrema importância para a formação teórico-
metodológica e crítica do professor e seus alunos, partindo-se das bases filosóficas e sócio-
lingüísticas destes recursos de pesquisa. Calcada no imperativo da descrição reflexiva, da
pertinência do detalhe contextualizado, do resgate dos sentidos construídos em contexto, a
prática etnográfica nascida no interior das práticas pedagógicas – uma endo-etnografia escolar,
portanto, – desvelaria realidades até hoje em opacidade, escondidas numa "caixa preta" quase
que intocável pela análise sistêmica de entrada e saída, muito ao gosto do macro-estruturalismo.

Um mundo de práticas, sentidos e significados complexos é, em geral, negligenciado como se a


sala de aula, a escola e suas ações representassem apenas um reflexo mecânico do processo
decisório de autoridades pedagógicas, um cenário estático e estéril. Diria que esses "espaços da
aprendizagem" (Burnham, 1997) transformam-se, desta perspectiva, numa construção de
inconsciência educativa, as ações que aí emergem e que se dinamizam pelos seus sujeitos restam
nos âmbitos do sabido, mas não conhecido.

Faz-se necessário frisar que exercitar uma endo-etnografia na escola não deve ter apenas o
interesse fechado na pesquisa. É um recurso para todos os fins práticos da formação, da auto-
eco-organização dos formadores e formandos. P. Woods nos alerta que não devemos supor que o
professor e os alunos ensinam e aprendem simplesmente, devemos, segundo este autor, nos
questionar: o que se passa nesta sala? Como ela se constitui a partir do conjunto das relações
pedagógicas e suas diversas nuances? Integrando aí nossas interpretações, as interpretações dos
alunos e de todos os atores e atrizes do cenário pedagógico, direta ou indiretamente implicados.
Tais análises descritivas incluiriam tanto a rotina da prática como as crises e os conflitos onde o
distanciamento descritivo proporcionaria retomadas formativas. Neste sentido, a prática
etnográfica na escola daria ao currículo uma base de fomento para o verdadeiro significado de
um currículo em "estado de fluxo"(Sarup, 1986), aberto às construções cotidianas dos seus atores
e atrizes e sensível à análise crítica das pressões institucionais.

No que concerne ao incentivo para que alunos elaborem etnografias das suas vivências
educacionais, via diversos recursos disponíveis – diários, autobiografias, descrições pontuais
etc., – considero uma oportunidade ímpar para provarem da sua competência interpretativa, da
sua condição de teóricos do dia-a-dia escolar, de atores e autores pedagógicos, na medida em que
podem construir pertinentes teorias encarnadas, de profundo valor pedagógico, face à
indexalidade dos escritos, densos de características cronotópicas (históricas, geográficas,
culturais).

Ademais, o conjunto destas endo-etnografias formariam, na sua temporalidade específica e


relacional, um imaginário rico em patterns pedagógicos, por assim dizer, processos identitários
descobertos a partir do conjunto das ações e obras elaboradas na dinâmica organizacional e
institucional da escola. Afinal, o homem muito se reconhece na sua própria obra refletida.

Deve-se estar sempre alerta para o fato de que o ato formativo requer, até para ser coerente, uma
constante reflexão sobre si mesmo, sob pena de transformar-se em meras práticas receitadas e
petrificadas que, em muitos momentos, transformam-se em atos esquizofrenizados face à
fragmentação que transportam em nível do saber e do fazer.

Tomando este aspecto que comentamos, dá-se no ato formativo a perda de um momento fecundo
em termos do processo ensino-aprendizagem: o aprender por mimese, processo de identificação
ativa e de extrema mobilização afetiva, ética e cognitiva.

Sem querer propor mais uma panacéia pedagógica, podemos apontar a endo-etnografia como
uma prática metodológica motivante e de reais possibilidades para tornar o ato educativo bem
mais reflexivo nos seus aspectos formativos, muitas vezes ofuscado pelo desenvolvimento de
uma cultura latente, não revelada, nem por isso menos importante. Enganam-se aqueles que
imaginam uma determinação cultural total. Enganam-se aqueles que acreditam que as receitas
teóricas são simplesmente transplantadas em total acordo com seus autores e propagandistas. Há
uma densidade teórica contida nos etnométodos disponíveis para confrontações, articulações,
negações e recriações na cultura escolar. Não teorizadas por absoluta intolerância face à
competência interpretativa do ator-social-teórico-da-cotidianidade, esta cultura tem a sua vida
relegada a uma espécie de esquecido social.

Com as políticas neoliberais que avançam junto ao crescimento da nova direita, o fabricante
deste tipo de cultura rica em estratégias e conhecimentos heuristicamente significativos é
reduzido cada vez mais a um agente de consumo. Um consumidor-cliente afogado nas manobras
do custo-benefício, "bem atendido" na medida em que pode representar lucro e apenas lucro.

A meu juízo, professores e alunos endo-etnógrafos, além de aperfeiçoarem a observação


enquanto esforço hermenêutico por uma participação reflexiva, transformam-se sem rituais
dolorosos dispensáveis, em intelectuais pesquisadores, podendo constituir-se em "savants de l'
interieur"(Boumard, 1989), na medida em que os resultados de suas descrições e reflexões
formem um corpus compreensível do que se passa dentro de uma microrrealidade coletivamente
vivida e politicamente interessada.

Percebo a endo-etnografia escolar como um recurso seminal, no sentido de que entra na


complexidade e na riqueza formativa que os mistérios da "caixa preta" escolar ainda deixa em
opacidade. Como conseqüência desta postura de pesquisa na e com a cotidianidade das ações,
um mundo de sentidos, significados tácitos e ações ocultas, refletidos por uma vivência
heurística, desvelaria-se no âmago do que Woods denomina de uma "teoria fundada", co-
construída por aqueles que Boumard entende serem os "sábios do interior".

Assim, uma abordagem endo-etnográfica inspirada na epistemologia qualitativa permite


compreender como as relações sociais mudam, como as pessoas em formação mudam, como
mudam suas visões de mundo, como a realidade escolar conflitua-se pela possibilidade da
mudança, como a "menor" interativamente(diferentemente do que acredita a quantofrenia), pode
ser significativa na mudança, sem desaparecer na média ou na maioria.

Sem querer criar um conhecimento em migalhas, ou edificar rompimentos maniqueístas com as


abordagens ditas macros, quantitativas ou mesmo de inspirações marxistas, até porque
articuláveis, pode-se verificar que a etnografia escolar, tomando as noções-chave de perspectiva
e estratégia, reafirma no cotidiano escolar o ator pedagógico e o autor pedagógico, sem
artificialmente destacá-los da sua "bacia semântica". Ademais, é de bom alvitre reafirmar que há
nesta abordagem um modelo alternativo que implica em trabalhar com atores da mudança, em
vez de trabalhar sobre eles, consubstanciando-se numa outra trilha formativa, denominada de
nova pesquisa-ação no campo formativo. Faz a mediação desta forma compartilhada de
transformar a inspiração sócio-fenomenológica crítica que, apesar de continuar nutrindo os
ideários da desconstrução das raízes e das ações socialmente iníquas, não esquece de que educar
é uma forma de cuidado esperançoso, onde rigor, compreensão e co-construção não se excluem.

A etnopesquisa e o estudo do currículo


Avalio, hoje, que o currículo acadêmico é uma instituição em crise. Se, de um lado, vejo a
necessidade de desconstrução dos cânones curriculares e a construção de novas concepções e
estruturas curriculares como sinais positivos dos novos tempos, por outro, faz-se necessário dizer
que o currículo não deve transformar-se apenas por pressões externas e/ou sustos provocados
pela necessidade de adequar-se. Enquanto uma totalidade em constante "estado de fluxo"
Sarup(1986), construído, reconstruído, significado e ressignificado pelos atores pedagógicos a
ele implicados e a instituições nele interessadas, o currículo se caracteriza concretamente como
uma edificação de sujeitos, com suas intenções, sentidos e poderes. Sujeitos que trazem, com
suas ações e interpretações, um ethos de classe, de gênero, de etnia, de religiosidade, e do que é a
própria vida e o próprio homem.

Da nossa perspectiva, o currículo deve instituir, incessantemente, um dispositivo para a


transformação, uma disponibilidade fundamentada e crítica para acolher os sinais e as demandas
que apontam para a mudança participada. Falo aqui, obviamente, de uma participação cogestada,
para descartar, de início, a noção parasitária de participação, onde atores sociais desprovidos de
poderes são utilizados apenas como informantes, protagonistas sem voz e vez transformadoras,
instrumentos para legitimar estudos que desejam ornamentar-se com a aparência da ação
democrática. Aliás, esta tem sido a tradição dos estudos de campo em ciências da educação entre
nós, assim como de algumas pesquisas que almejam a intervenção transformadora. Neste
sentido, a academia travestida de boas intenções acaba, em geral, fazendo apenas uso, para
depois adornar o seu discurso pseudo-democrático.

Podemos dizer que o currículo tem carne e alma, isto é, é movido concretamente por uma visão
de homem e de mundo, bem como auto-eco-organiza-se mediado por estas instâncias.

Arquitetado por grupos de fato, o currículo é um processo-produto interessado, movido por um


pattern de significados, que nem sempre sai do mundo das opacidades institucionais, nem
sempre por acaso, é bom que se diga.

É possível, neste momento, fazer-se uma síntese da relação etnopesquisa e o estudo do currículo.
O etnopesquisador, pelos seus pressupostos e prática de pesquisa,vê o currículo de acordo com o
que P. Perrenoud chama de "curriculo real", onde são fundamentais, para esta visão, as
instâncias do sujeito, da cotidianidade e do poder. Uma metáfora fundante, aí, é que o currículo
tem vida, e se move, conseqüentemente. Por conseqüência, é feito de encontros, interações e
acontecimentos, mesmo que lastreado por um rol seletivo e organizado de conhecimentos, em
geral instituídos por uma intelligentsia e um establishement, que a história vem mostrando serem
avessos à socialização democrática do conhecimento e à criação de condições e espaços para a
inventividade emancipatória.

Tomando por exemplo as incursões filosóficas da multirreferencialidade, que identifica no


fechamento as verdades únicas uma forma de barbárie, o campo do currículo, enquanto espaço
prático, pode ser visto historicamente como uma autêntica prática bárbara, face a hegemonia dos
discursos e das práticas fundadas em metanarrativas absolutistas e excludentes. Por conseguinte,
enquanto uma invenção moderna, é filho pródigo de um conhecimento que, no seu interior, se
fez predominantemente dogma; o currículo ainda carrega consigo o Zeitgeist da ciência
iluminista, com isso, a transgressão, o acontecimento, o evento, os ruídos, são extremamente
desconfortáveis para quem quer existir protegido por grades – à propósito da nocão de grade
curricular. Um engradeamento que em realidade forjou e legitimou conservadorismos,
hegemonias hierarquizantes, controles, regulações, afinados a uma sociedade calcada no
interesse de classe, uma sociedade racista e sexista, e que o currículo vem refletindo de forma
notória, até porque sua face oculta, que em geral apresenta-se escamoteada, tem uma força
formativa extremamente potente para conformar estes apartheids.

Voltando ao ponto principal destas nossas argumentações, é interessante pontuar na relação


etnopesquisa e o estudo do currículo a noção de "currículo real" desenvolvida por P.
Perrenoud(1994). Para este autor, o currículo real é, em verdade, "uma transposição
pragmática", isto é, um conjunto de experiências, de tarefas, de atividades que engendram
aprendizagens ou visam engendrá-las, na medida em que representam uma sucessão de
experiências formativas, deliberadamente organizadas e mobilizadas pelas organizações
escolares. Da perspectiva de Perrenoud, na transposição pragmática do currículo formal em
currículo real, é necessário não só fazer a parte da equação pessoal do professor, que determina
sua interpretação do currículo formal em currículo real e sua concepção de trabalho escolar, mas
também das pressões de todo o gênero. Há, neste momento, a presença do imprevisto, das
negociações, das resistências. Tomando estas circunstâncias, acredita-se que o currículo formal
não pode "programar" completamente as atividades dos professores e dos alunos. Há uma trama
tecida nas atividades desenvolvidas na sala e seus entornos que demanda interpretações não-
fechadas no que aparece formalmente e que é prescrito. Pode, por exemplo, circular de maneira
significativa algo prescrito vagamente, de forma ambígua, contraditória e incoerente, e que não é
explicado pelo currículo formal. Tomemos, por exemplo, o âmbito do que poderíamos
denominar de um "currículo moral". Dos procedimentos pedagógicos "tradicionais" aos
procedimentos pedagógicos de cor progressista, este tipo de formação mostra-se e ofusca-se, a
depender dos interesses que a formalidade nem sempre explicita, mas está lá... cotidianamente;
mostra-se e ofusca-se numa gradação interessada, negociada, que é preciso compreender melhor,
até porque as fronteiras do que se chama currículo oculto e currículo manifesto não contém
linhas demarcatórias absolutas. A nosso juízo, uma abordagem mais político-antropológica da
escola e do currículo como lugar da vida e da aprendizagem pela prática é muito mais fecunda
que uma análise fechada nos conteúdos e nas ideologias do ensino. Aqui, os recursos de uma
etnopesquisa dos meios educacionais seria muito mais seminal do que os métodos que priorizam
um conteudismo estrutural e distante do currículo real.

Tomando Jackson(1968) como inspiração, via o seu livro Life in Classrooms, onde identifica o
currículo oculto às rotinas cotidianas, Eggleston(1977) distinguiu sete tipos de aprendizagens que
favorecem regularmente o funcionamento da escola, sem que isto figure nos objetivos oficiais do
ensino. Tentemos resumi-los esquematicamente, à guisa de uma exemplificação mais livre das
idéias de Eggleston:

- aprende-se a viver numa concentração de indivíduos num espaço relativamente exíguo,


que implica numa frágil intimidade; aprende-se também a se isolar, a ignorar ou a tolerar
interrupções, a diferenciar a satisfação dos desejos pessoais ou a renunciá-los;

- aprende-se a matar o tempo, aprende-se a paciência;

- aprende-se a tornar-se alvo da avaliação dos outros;


- aprende-se a satisfazer as expectativas dos professores e dos colegas, para obter suas
estimas, suas felicitações, e todas as formas de recompensa;

- aprende-se a viver numa sociedade hierarquizada e estratificada, onde vive-se a iníqua


distribuição dos poderes e a existência de grupos de status diferentes;

- aprende-se a controlar, a influenciar os ritmos do trabalho escolar, a regular as


intervenções;

- aprende-se a compartilhar valores e códigos de comunicação;

- aprende-se a regular as fronteiras das interação, numa relação sutil com os âmbitos do
público e do privado.

Em realidade, esta lista sistematizada por Eggleston, sem nenhuma intenção de exaustividade,
forma aquilo que Coulon(1991) chamou de uma "inteligência institucional", construção contínua
e criadora de habitus, só apreendida a partir da aceitação de que o currículo real mora na
cotidianidade das relações, na cultura escolar. Emerge aqui uma prioridade em termos de âmbito
para o estudo do currículo: os âmbitos do cotidiano. Para o etnopesquisador interessado no
campo do currículo, a cotidianidade das ações educativas é um dispositivo incontornável para o
entendimento concreto do dinamismo deste campo. Considerando este aspecto da cotidianidade
como significativo para uma praxis de educadores radicais, Giroux & MacLaren(1995)
argumentam sobre como o discurso do cotidiano torna-se uma valiosa forma de crítica, uma vez
que esclarece como o poder e o saber interagem para desvalorizar o capital cultural dos grupos
subordinados. Para estes autores, este discurso também é útil para o desenvolvimento de uma
linguagem da possibilidade, criando, dessa forma, uma pedagogia radical capaz de envolver o
discurso do cotidiano por meio da dinâmica da confirmação, do questionamento e da esperança.

Para Giroux & MacLaren, o conhecimento do "outro" é destacado não apenas para que sua
presença seja celebrada, mas também para que se faça a necessária interrogação crítica das
ideologias que contém, dos meios de representação que utiliza e das práticas sociais subjacentes
que confirma. Nestes termos, concordam que o discurso da vida cotidiana também aponta para a
necessidade de os educadores verem a escola como esferas culturais e políticas ativamente
engajadas na produção da voz e na luta pela voz. Aqui, a voz da escola, do professor e do aluno,
vão dizer dos poderes que configuram a ação pedagógica. Para se entender e se interrogar os
múltiplos e variados significados que compõem os discursos da voz do estudante, por exemplo, é
preciso valorizar e absorver, no sentido bakhtiniano, as linguagens polifônicas que os alunos
trazem para as escolas, mais precisamente o conjunto de práticas comunicativas tanto escritas
quanto faladas adotadas por determinados segmentos sociais (H.Giroux & P. MacLaren, 1985).
No caso da voz docente, deve-se compreender e questionar a política de sentidos e o sentido
político da sua prática cotidiana, questionando, inclusive, os seus modos de mediação das vozes
discentes. No que se refere à voz da escola, é mister esforçar-se para captar as particularidades
históricas e relacionais desta instituição que interessadamente ordena, comanda e fabrica
conceitos e ações mediadores.

Pode-se depreender destas elaborações que é preciso escutar o cotidiano escolar para ouvir suas
diversas vozes, articuladas a âmbitos e esferas institucionais mais largas, mas que se atualizam
nas práticas cotidianas.

H. Giroux & P. MacLaren, mais uma vez são chamados para construir conosco esta síntese.
Segundo o pensamento destes dois autores, o modo pelo qual indivíduos e grupos mediatizam as
formas culturais apresentadas por forças estruturais e ao mesmo tempo nelas se situam "é em si
mesmo uma forma de produção e precisa ser interrogada por métodos de análise conexos,
porém diferentes entre si". Tomando a realidade escolar como reflexão, é nesta trilha que
encontraremos o currículo real e toda sua densidade em termos de possibilidade de uma
compreensão em profundidade e multirreferencializada da sua dinâmica.

Nesta perspectiva, torna-se de extrema importância para o estudo do currículo a noção


arquitetada por Joel Martins de "rede de significados", onde o recurso básico é descrever o
conjunto de traços verbais dos pensamentos daqueles que se dispõem a falar sobre o currículo,
onde os atores pedagógicos poderão construir, a partir das suas experiências e posições, uma
certa consciência coletiva definidora de um coletivo social sobre este próprio currículo.

Nos afastaríamos, assim, das tradicionais avaliações onde apenas padrões e critérios externos são
levados em conta pela sua pretensa objetividade. Os significados buscados, vivenciados,
conflituados e tensionados no seio da complexa instituição curricular, em geral ficam de fora,
repetindo-se, assim, a promiscuidade e a orgia do mimetismo avaliativo, pautadas na noção
estandartizada de currículo.

Etnopesquisa-ação e etnopesquisa-formação
Falar de uma etnopesquisa-ação nos conduz a um campo onde a academia concretamente sai dos
seus muros e age em termos de uma intervenção com a comunidade. Na relação etnopesquisa e
ação, assume-se como principal objetivo da pesquisa a solidariedade e a ética comunitárias. Nem
pesquisa desinteressada, nem modificacionismo bárbaro cabem nesta relação, mas uma
compartilhada produção do conhecimento visando pertinência e relevância sócio-comunitárias
que, de início, partem claramente em busca do conhecimento, para que a pesquisa, enquanto
etapa fundamental, não se dissolva no predominante interesse de intervenção. Em termos de
prática científica, é necessário que se garanta tal princípio, sob pena de não se estar autorizado
para se falar de pesquisa enquanto prática específica.

Apesar da pesquisa-ação ter surgido a partir de uma perspectiva de intervenção externa, onde o
expert em geral propõe ou negocia com a sua pesquisa uma intervenção em uma dada realidade,
o que denomino de etnopesquisa-ação, tem predominantemente um caráter construtivo que vem
de dentro do campo pesquisado. Desta perspectiva, o especialista deverá estar implicado à
situação a ser conhecida e transformada.

Por outro lado, historicamente, a pesquisa-ação, desde o seu inventor, o antropólogo americano J.
Collier, caracteriza-se por uma ação transformadora especializada. O próprio Collier propunha
que as descobertas do tipo etnológica sobre os índios das reservas americanas fossem utilizadas
em benefício de uma política favorável a estes índios.

Como nos sugere Lapassade(1983), essa primeira origem da noção indica já o que foi a
"essência" da significação clássica da pesquisa-ação. Desta perspectiva, a pesquisa-ação é, antes
de tudo, a obra de um expert, especialista em ciências sociais que vem de fora de uma situação
dada e se propõe a fazê-la evoluir a partir de um diagnóstico concernente à situação estudada.

Entretanto, é com Kurt Lewin que a expressão pesquisa-ação se consolida e se faz conhecida em
todo o mundo acadêmico, tornando-se um conceito clássico.

As primeiras intervenções ilustrando a pesquisa-ação lewiniana têm a ver com a mudança das
atitudes e dos comportamentos em certos setores da atividade social(preconceitos, hábitos etc).
Lewin chega, inclusive, a sistematizar as fases de uma pesquisa-ação: sua planificação, aplicação
de uma primeira etapa do plano de intervenção, com a observação dos efeitos e, a posteriori, a
planificação de uma nova etapa de ação, a partir dos resultados obtidos na fase precedente. A
partir deste movimento cumulativo, uma espiral é formada entre prática, observação e teorização.

Entretanto, no final dos anos 50, nos Estados Unidos, a pesquisa-ação entrou numa fase de
declínio. É o momento do apogeu da sociologia estrutural-funcionalista parsoniana e do
empirismo das grandes enquetes por questionários.

É somente nos anos 60 que a hegemonia da sociologia standard começa a deixar brechas por
absoluta fadiga heurística e explicativa. Para o renascimento de correntes em ciências sociais
inspiradas nas produções da Escola de Chicago. Neste contexto, onde brotavam inúmeros tipos
de contestação nos Estados Unidos e Europa, da reivindicação de sociedades alternativas, é que a
pesquisa-ação lewiniana renasce, notadamente no setor educativo, ao lado de correntes como o
interacionismo simbólico e a etnometodologia.

A partir dos anos 80, vê-se desenrolar na França e na Inglaterra, principalmente, práticas que vão
designar-se de pesquisa- ação, mas que não podem mais atribuir-se os significados da pesquisa-
ação desenvolvida por Lewin.

A pesquisa-ação que se desenvolveu a partir de Lewin era, antes de tudo, uma pesquisa e uma
ação de experts especialistas, outrossim, o que se chama de a nova pesquisa-ação nasce da
necessidade dos atores sociais implicados intervirem enquanto pesquisadores co-partícipes. Em
muitos casos, faz-se o que Lapassade(1983) chama de uma "análise interna" das suas próprias
práticas. A emergência dessas novas orientações no campo do currículo é, em geral, atribuída a
Lawrence Stenhouse.

Stenhouse dirige, a partir de 1927, uma pesquisa-ação envolvendo reforma de currículos:


Humanities Curriculum Project, no Centro de Pesquisas Aplicadas à Educação da Universidade
de East Anglia. Este autor, posteriormente, vai publicar a obra "An Introduction to Curriculum
Research", na qual desenvolve a noção de professor-pesquisador e que vai desaguar na
denominação de nova pesquisa-ação escolar.

É a partir de Stenhouse que a pesquisa-ação, como um trabalho apenas de experts, se não foi
abolida, vai ser relativizada e criticada por posições de base sócio-fenomenológica e marxistas-
libertárias.

Com esta orientação, pesquisas-ação foram desenvolvidas na França, a partir de 198l, no âmbito
do CRESAS-INRP (Institute National de Recherche Pédagogique). Os resultados destas
pesquisas foram apresentados, comentados e discutidos durante o colóquio "Recherches
Impliquées, Recherches-actions: le cas de l'éducation", realizado em outubro de 1986, em Paris.
Predominaram orientações diferenciadas da pesquisa-ação britânica, mais voltada para o
interacionismo simbólico e a etnometodologia. Como um exemplo da tendência que se
desenvolve na França em termos de pesquisa-ação, tem-se a obra de René Barbier(1985) "A
Pesquisa-ação na Instituição Educativa", onde o autor inspira-se predominantemente nos
princípios do marxismo libertário sartriano e nos fundamentos da Análise Institucional Francesa,
que tem seu maior reseau no Departamento de Ciências da Educação da Universidadse de Paris
Saint-Denis.

É retomando as preocupações de Stenhouse no sentido de possibilitar ao professor pensar e


modificar sua prática pela pesquisa, a noção libertária francesa de pesquisa implicada e/ou
engajada e os pressupostos sócio-fenomenológicos da pesquisa-ação britânica, que cheguei a
arquitetar a noção de etnopesquisa-formação.

Neste sentido, é o conhecimento "prático" que será valorizado, conhecimento este forjado no seio
da comunidade envolvida na pesquisa e na transformação.

A etnopesquisa-formação adota o princípio antropológico segundo o qual os membros de


um grupo social conhecem melhor sua realidade que especialistas que vêm de fora da
conviviabilidade grupal da comunidade ou da instituição, o que não significa fechamento
num basismo ingênuo e equivocado, mas na abertura a uma dialogicidade interessada
visando uma compreensão e intervenção majorantes.

No que se refere ao processo de pesquisa: a formulação da problemática, a negociação do acesso


ao campo, a coleta de dados, sua avaliação e sua análise, a apresentação dos resultados, a
etnopesquisa-formação difere pouco da etnopesquisa sem uma preocupação acionalista que visa
uma intervenção transformadora desde a delimitação da sua problemática.

Na formulação da problemática de uma etnopesquisa-formação, o processo se dá no interior de


um problema social envolvendo uma necessidade social que preocupa um grupo em um dado
contexto. O pesquisador implica-se junto com a coletividade na construção da problemática da
pesquisa e o seu estudo. Ao pensar coletivamente a problemática, pesquisadores implicados e
engajados vão procurar as fontes válidas dos dados a serem coletados. Toda e qualquer etapa da
etnopesquisa-formação é desenvolvida num processo de discussão coletiva. É comum que a
coleta de dados aconteça através da utilização de métodos muito ativos como as discussões de
grupo, os jogos de papéis e as entrevistas em profundidade. Questionários são utilizados,
entretanto, as questões são abertas e utilizadas de uma perspectiva semiológica.

No que concerne à validade dos dados, é a discussão coletiva que os legitimará, é o aval
comunitário vindo de participantes observadores que os autorizará enquanto autenticidade
científica para aquela realidade a ser conhecida e transformada. O exame dos "dados" tem por
função redefinir a problemática inicial, o objeto da pesquisa e a ajudar a encontrar novas
soluções.

Tratando-se da análise e interpretação dos "dados", são as discussões envidadas pelo grupo de
pesquisadores implicados que lhe dará corpo e legitimação. Os passos são os mesmos da
pesquisa clássica, entretanto, pratica-se o que posso denominar de uma hermenêutica
coletivizada, é o coletivo social empenhado em conhecer em profundidade que vai fazer emergir
os resultados, e os pontos onde a intervenção se dará, que tomará para si o processo decisório
que a pesquisa indica. Neste momento, é importante o processo que se denomina de feedback,
ou seja, a comunicação dos resultados ao grupo interessado ou à comunidade, ou à instituição
concernente.

Tal procedimento se repete na apresentação dos resultados da pesquisa, é numa discussão grupal
ou comunitária que os resultados são apresentados, surgindo daí as chamadas estratégias da ação
formativa.

Faz-se necessário pontuar que no veio deste tipo de pesquisa-ação que denominei de
etnopesquisa-formação, desenvolve-se uma prática onde o pesquisador propõe de forma
colaborativa uma proposta de pesquisa e intervenção, só que, sob o crivo também das decisões
comunitárias. Este tipo, action research, nasce de uma diversidade das inspirações lewinianas
nos Estados Unidos, assim como das preocupações, principalmente do Departamento de Ciências
da Educação da Universidade de Paris Saint-Denis quanto à educação continuada.

Quanto à questão do método, as tecnologias utilizadas pela etnopesquisa-formação caracterizam-


se por utilizar as mesmas orientações metodológicas da etnopesquisa clássica. Por outro lado,
Stromquist (1986) nos apresenta algumas idiossincrasias metodológicas da pesquisa-ação, que
avalio pertinentes para a etnopesquisa-formação. As comentarmos de uma forma livre a
pesquisa-ação, cria-se uma situação de dinâmica social radicalmente diferente daquela da
pesquisa clássica; o processo deve ser simples e se desenrolar num tempo relativamente curto;
quando uma coletividade ou um grupo se sensibiliza por um problema comum, essas pessoas ou
líderes tornam-se estreitos colaboradores do pesquisador, constituem uma fonte importante de
direções e de recomendações implicados no processo de pesquisa. Em geral, a pesquisa-ação
utiliza um grande número de recursos metodológicos de natureza qualitativa, entretanto, dá uma
feição nova aos métodos na medida em que os transforma em instrumentos coletivos de
pesquisa. A coletivização da tecnologia de pesquisa é uma marca das etnopesquisas interessadas
na intervenção.

Entretanto, é com a corrente australiana da pesquisa-ação em educação que vamos identificar


vicariamente princípios fundamentais da etnopesquisa-formação, fortemente envolvida com a
formação dos professores e com o currículo enquanto uma construção social. Carr e Kemmis são
apontados como os seus principais representantes. São justamente estes autores que vão mostrar
as razões pelas quais os meios educacionais começaram a reivindicar uma pesquisa
autenticamente implicada com as demandas reais da educação e sensíveis às possíveis e
necessárias transformações advindas daí.

Carr e Kemmis(1983) enumeram uma série de razões que irão justificar a pesquisa-ação nos
meios educacionais. Para estes autores, os professores já não se contentam com o pesquisador do
tipo consultor, vindo do exterior; os atores pedagógicos estão cada vez mais conscientes da
inutilidade sócio-educacional de um certo número de pesquisas em educação distanciadas das
necessidades reais do processo educacional, onde o pesquisador assume dentro dos meios
educacionais uma simples postura de observador.
Agora há um interesse forte pelos problemas inerentes ao campo do currículo e suas ações, e pela
inteligência prática, em oposição à inteligência técnica ou instrumental; um profundo interesse
dos educadores pelos tipos de avaliação de orientação qualitativa, avaliação iluminativa,
democrática, o método de estudo de caso e etnografia da prática escolar, todos acentuando a
necessidade de se levar em conta o ponto de vista, as perspectivas dos atores pedagógicos; citam
o "accountability movement", que politizou os atores pedagógicos, especificamente os
professores, levando-os a uma crítica das suas condições de trabalho, na medida em que são
demandados a prestarem conta, por seus relatórios, à sociedade e ao poder institucional, num
contexto onde a avaliação das práticas é cada vez mais valorizada; de onde a solidariedade
crescente do meio docente face às críticas públicas da escola desenvolvidas num contexto de
mutação da instituição educativa, associada ao aumento da escolarização; a tomada de
consciência cada vez mais alargada do problema da crise da instituição educativa e do fracasso
das formas de pesquisa que tentam compreendê-la e transformá-la.

Carr e Kemmis tomam a noção de "prática" como uma ação informada e implicada, um
fundamento acionalista de extrema importância para a etnopesquisa-formação. Prática enquanto
práxis, referindo-se à noção marxiana tal como é elaborada por J. Habermas, uma referência
fundamental destes autores. Dizem ainda os autores: "uma práxis que é necessário compreender
num contexto histórico, uma ação que é informada por uma "teoria prática" e que, em retorno,
informa e transforma esta teoria numa relação dialetizada". Neste sentido, práxis designa uma
ação associada a uma estratégia, em resposta a um problema colocado concretamente, numa
situação em que o autor está implicado. O significado que pode-se apreender deste
posicionamento é que os problemas são problemas que só podem ser solucionados fazendo-se
algo. São, portanto, problemas práticos.

Dos posicionamentos de Carr e Kemmis, depreende-se que: só o prático tem acesso às


implicações e as teorias práticas que informam sua práxis, só o prático pode estudar sua práxis.
A etnopesquisa-formação, enquanto cultivo da práxis, será, portanto, uma pesquisa interna da
prática singular do prático. Por conseguinte, o conhecimento adquirido está constantemente em
relação dialética com a prática estudada na ação, neste senti-do, o conhecimento é um processo
cooperativo ou coletivo de reconstrução interna a um grupo de pesquisadores-práticos.

A pesquisa-ação dos meios educacionais, tal como concebem Carr e Kemmis, tem como objetivo
desenvolver entre os educadores-pesquisadores uma sorte de distância crítica em relação aos
sentidos e significados que governam habitualmente as práticas.

Autêntica etnopesquisa-formação crítica e emancipatória, as elaborações de Carr e Kemmis se


consubstanciam numa iniciativa que parte de forma incontornável dos práticos e suas
necessidades de auto-organizarem-se ao pensar, significar e ressignificar suas próprias práticas
enquanto professores-pesquisadores. A entrada neste processo de pesquisadores não pertencentes
ao contexto das práticas vai depender do nível de participação e de implicação destes com as
temáticas e os princípios básicos da pesquisa definidos pelos atores pedagógicos engajados na
situação-problema. Por conseqüência, a etnopesquisa-formação dos meios educacionais aponta,
pela pesquisa, para a construção de um processo identitário prático, construído no âmago das
relações que se estabelecem na cotidianidade da instituição educativa. Por lidar com um conceito
eminenetemente dialético – a práxis – jamais pode ser pensada numa prática de pesquisa fora das
relações e/ou fechada às interações e suas dinâmicas.
Neste mesmo veio, é significativo, por exemplo, o trabalho de Ruth Canter Kohn, naquilo que
denomina de " A Pesquisa pelos Práticos ou a Implicação como Modo de Produção dos
Conhecimentos". Tomando a última expressão de empréstimo da obra de J. Ardoino, Ruth Kohn
caracteriza seu interesse nas seguintes questões sensibilizadoras: " como os práticos fazem
pesquisa, tirando partido das suas implicações? Em lugar de escamotear as dificuldades que
comporta o duplo engajamento de ator e de pesquisador, como, porquê e para quem tirar proveito
de seu pertencimento profissional, da especificidade do seu lugar, da sua experiência e da sua
visão de mundo, na sua produção de pesquisa?" Enquanto orientadora de pesquisas, os sujeitos
de pesquisa desta autora são os "estudantes práticos", em geral comprometidos com seu lugar
profissional e seus questionamentos de vida.

Segundo Kohn(1998), quaisquer que sejam as motivações e os objetivos,

iniciar uma pesquisa a partir do propósito de sua própria esfera de ação constitui uma
situação paradoxal: é ao examinar de perto esta prática que os atores tomam distância em
relação a ela. É ao trazer uma interrogação sistemática sobre um aspecto particular que os
fatores em jogo e suas articulações podem ser esclarecidos...Sua atividade é precisamente a
condição que permite que esses jogos de força apareçam, que sejam sociais, ideológicos,
psicológicos ou políticos, e que apareçam não enquanto abstrações ou enquanto conteúdos a
priori formalizados, mas enquanto realidades concretas...

No que concerne à "implicação como modo de produção de conhecimentos", o pesquisador


explora a especificidade do seu pertencimento e da sua visão, mergulhando mais ainda nestes
âmbitos, num esforço de compreensão e de nomeação de suas características e contornos. Não há
uma negação da sua subjetividade, tira-se partido desta condição ontológica. Há um esforço na
direção de examinar o sentido do lugar ocupado pelo prático pesquisador, em compreender suas
ações e os significados a elas ligados.

Mais uma vez, é fundamental pontuar que ludidez, rigor e priorização na produção do
conhecimento não podem ser descartados em nome de uma mera descrição das implicações ou
de alguma transformação prática ao realizar o que Kohn denomina de "Pesquisa pelos Práticos" e
o que Ardoino caracterizou de "A implicação como modo de produção dos conhecimentos".

Etnopesquisa e pedagogia crítica


Parto da premissa de que, muito antes de nos preocuparmos em estabelecer barreiras que irão
cristalizar posições num autêntico cartesianismo epistemológico, é necessário indagar-se sobre as
bases filosóficas, epistemológicas e metodológicas das cisões implementadas pelo ethos
científico moderno.

Compreendo que, em níveis humanos, toda pesquisa é pesquisa-ação, resulta de um labor


construtivista e construcionista que modifica, por mais que o pesquisador queira olhar apenas
para o seu umbigo acadêmico ao praticar seu narcisismo intelectual. De uma perspectiva
construtivista, em toda pesquisa existe uma explicitação e uma intervenção em âmbitos
diferenciados da existência humana. Sem querer legitimar quaisquer irresponsabilidades ou
cinismo científico, temos que reconhecer que até as mediocridades científicas têm um papel
formativo no contraste que estabelecem.

É nesta discussão da interface entre pesquisa e ação que nos parece habitar a relação entre
etnopesquisa e pedagogia crítica.

Neste campo de interrelações, o que nos parece importante pontuar é que cognição e ação são
duas faces de um mesmo fenômeno: a atividade humana.

Por conseguinte, pertinência sócio-profissional nos parece um ponto de partida para a


implementação de uma etnopesquisa crítica nos meios educacionais; implicação ética, estética e
política,um exercício de cidadania incontornável, até porque é preciso que o cientista, em todos
os âmbitos do saber, se indague sobre o exercício de sua cidadania. Não basta tematizá-la de
fora, não seria congruente, tão pouco pedagógico.

O descaramento crísico em que se encontra o saber científico moderno já aponta para alguns
nortes: um deles é o de que não há mais lugar para as fraturas epistemológicas, para o intelectual
messiânico e para o intelectual interessado apenas na ciência abstrata; para a esquizofrenização
entre pensar e agir, ou para a hipervalorização da mudança não-compartilhada, mesmo sabendo-
se que em alguns momentos, far-se-á necessário o conflito e a ruptura no seio do esforço pela
construção co-participada. Afinal, cohabitam entre nós cosmovisões e práticas radicalmente
incompatíveis com ações autenticamente humanizantes e emancipatórias.

Tolerando as incompletudes, as opacidades, as insuficiências, os assincronismos, as ciências dos


meios educacionais necessitam trabalhar criticamente as inclusões, as relações, as articulações,
as contradições, sem perder o sentido do rigor constitutivo, da reflexão ética, do elã formativo da
expressão estética, do compromisso político, sob pena de prolongar o luto face à complexidade
perdida desde as luzes.

Etnopesquisadores preocupados com uma pedagogia crítica, reaprendem, num certo sentido, os
caminhos que eles têm que tomar para ver o mundo em torno deles; despertam, segundo
Kincheloe (1997), de um sonho modernista, com sua paisagem não examinada do conhecimento
e construção de consciência não imaginativa. Uma vez despertos, educadores-etnopesquisadores
começam a ver as escolas como criações humanas com sentidos, limites e possibilidades, não se
satisfazem em perceber os indicativos do fenômeno, querem interpretá-los radicalmente, com o
compromisso de fazer ciência com consciência(Morin).

Biografia e cognição são conectados, forjando a possibilidade que etnopesquisadores críticos dos
meios educacionais se tornem pesquisadores deles próprios, sempre no processo de ser mudado e
mudando-se, de ser conscientizado e conscientizando-se.

Aqui a semiótica desempenha um papel fundamental na medida em que faz de um objeto


reificado foco de investigação crítica. A semiótica recusa a superficialidade, mobiliza-se na
busca de uma penetração profunda no significado em opacidade, trazendo à tona pressupostos
antes obscuros e reificados. Insights fazem com que valores e crenças obscuras, mas com
funções importantes na ideologização do ato educativo, saiam da penumbra onde se escondem,
apresentando-se a uma ativa avaliação crítica.

Dotados destes instrumentos mediadores, e ao conectar-se com a pedagogia crítica, educadores-


etnopesquisadores críticos se tornam atores responsáveis, porque implicados na interpretação do
mundo-vida, da escola, dos nossos alunos, de nós, professores, de nossas salas de aula e das
políticas institucionais que crivam a vida do educador.

Construindo uma consciência relacional, uma razão astuta(Hegel), educadores-


etnopesquisadores críticos começam a descobrir as estruturas profundas, a ordem tácita que torna
o real relacional, onde eventos sabidos, mas não conhecidos, conectam-se numa totalidade
complexa.

Neste sentido, educadores-cientistas críticos estabelecem uma competência até o momento


outorgada a especialistas tecnocratas da pesquisa, que muitas vezes nunca experienciaram uma
sala de aula e suas particularidades complexas, que estão longe de ser meras simplificações do
ato educativo.

Imbuídos da etnopesquisa, educadores críticos conhecem a liberdade responsável das


metodologias inerentes a esta alternativa científica, conduzindo investigações pertinentes e
contingentes ao contexto, e, na necessidade de conhecer, educadores-etnopesquisadores podem
abraçar estratégias cognitivas mais compatíveis com as situações vivenciadas e problematizadas.

Neste veio, a pesquisa deixa de ser um privilégio de poucos iniciados, transforma-se numa
prática cotidiana a serviço de uma percepção educativa eminentemente democrática, porque
resistente aos estereótipos e simplificações tão caras à pedagogia da resposta, nunca preocupada
em escutar, compreender, explicitar e mudar conectadamente, conjuntamente.

Algumas considerações conclusivas


A nosso juízo, professores, como etnopesquisadores-críticos, como aprendizes apaixonados,
como observadores implicados e engajados, como homens-conectores, indagam-se sempre após
suas investigações: estamos nós revitalizados para melhorar o processo educacional como
resultado da nossa forma de ver e praticar? Podemos superar os chavões da retórica educacional
apontando para a autenticidade e a desconstrução da esquizofrenização da prática educativa? Há,
como nos sugere Kincheloe(1997), acomodações emancipatórias nos nossos insights?

No seio desta prática reflexiva e democrática de pesquisar, outras inteligibilidades podem


emergir e fortalecer-se em poder, outros talentos ressurgem como o pássaro phoenix, ao
entenderem porque eram vistos como cinzas inférteis.

A partir destas elaborações e tomando a vida da escola como incontornável para entender sua
existência social, considero o encontro etnopesquisa e pedagogia crítica – como, aliás, já
perceberam autores como Giroux, Apple, MacLaren e os representantes da Nova Sociologia da
Educação britânica -, um ato seminal para alcançar um novo saber sobre a escola, mobilizando
uma nova prática, menos abstrata, mais pertinente e socialmente mais relevante. Surge, nesta
junção, portanto, uma autêntica contra-instituição ao mesmo tempo científica e pedagógica.

Considero, ademais, que a conseqüência natural de uma tal postura científico-pedagógica,


consubstancia-se num outro olhar sobre o currículo. Apreendido não mais como um arranjo de
proposições e verdades engessadas em conhecimentos nomotéticos e monorreferenciais, o
currículo apresenta-se enquanto fenômeno social, incessante construção interessada e eivada de
significado social e intersubjetivamente negociados. Como tal, dispensa qualquer tentativa de
compreensão que não o reconheça como complexidade em ato, produto precário, até porque
parte indestacável dos mundos construídos pelos homens, e da educação enquanto projeto e
prática visados.

Convicto, como professor-pesquisador, da fecundidade deste encontro aqui tecido, resta-me


continuar buscando outras relações e compreensões, nas infinitas possibilidades que esta conexão
ainda deverá proporcionar, por entender que a pós-formalidade ainda terá muito o que falar aos
seus vizinhos, principalmente sobre a natureza complexa do currículo enquanto alma encarnada
da instituição escolar, e como querem Heráclito e Morin, sobre a própria vida enquanto fluxo
auto-exo-organizado.

Entendo, assim, que a vida na educação ainda tem muito por ser compreendida e mobilizada
teoricamente, até porque o significado autoritário mostra sinais evidentes de vida, apesar da
falência em alguns contextos das suas perversas orgias.
Considerações conclusivas finais
Nossos alunos se foram corrompendo à medida que nossas ciências e nossas artes
avançaram para uma certa perfeição...

J.J. Rousseau

Ao esforçar-me para concluir esta obra, quero expressar mais uma preocupação inquietante, em
meio às muitas que aqui brotaram: a de que não se avalie a etnopesquisa crítica e
multirreferencial como uma panacéia metodológica ou como o cultivo de um pólo monolítico em
termos epistemológicos.

No cerne mesmo das elaborações aqui exercitadas, está o gosto pelo aprofundamento e pela
articulação intelectualmente responsáveis, pelo rigor fecundante e pela angústia do método. Quer
dizer, o desejo de fazer ciência aberta e comunicante, uma scienza nueva, segundo Morin,
consciente da sua ontológica insuficiência e bio-degradação, como bio-degradável é o sujeito
humano.

O que aqui se construiu, forjou-se na esperança de se contribuir para a formação do professor


com o gosto pela pesquisa implicada e intelectualmente fundamentada, o gosto pela atitude de
pesquisa que conecta-se, irremediavelmente, com a prática da abertura à dialogicidade, à
tematização, à articulação e à problematização dos saberes e das práticas. Uma pesquisa que em
hipótese alguma dispense, como faz o positivismo, reflexões sobre os âmbitos morais, estéticos,
políticos e existenciais das inspirações teóricas e dos caminhos trilhados. Uma pesquisa que não
só reproduza para confortar, agradar e legitimar, que não transgrida só para barbarizar, que
não esconda para escamotear, velando o relevante que incomoda.

Para nós, é urgente que o educador se familiarize com um modus operandis de pesquisa onde
três âmbitos fundamentais sejam ativados: a visão pluralista crítica, a ação política em
movimento e a implicação moral, âmbitos estes escamoteados pelas elaborações do edifício
científico moderno.

São estas as concepções que me fizeram propor, tematizando e problematizando, esta figura do
estudioso dos meios educacionais de percepção contextualista, interpretacionista e crítica,
denominado aqui de pesquisador etno, crítico e multirreferencial, que, ressignificando
modernamente as inspirações que edificaram o mito de Hermes, revitaliza o seu espírito curioso,
astuto e ao mesmo tempo afeito à compreensão dos incessantes espetáculos do mundo dos
homens. Inspirado em Hermes, o pesquisador etno-crítico atento à densidade, ao detalhe, à
diversidade, à contradição, viaja sem miopias aos mundos "menores", resistentes, banais e
obscuros, até então olhados, equivocadamente, pela intelligentsia normativa e prescritiva como
meros lixos sociais, conteúdos pouco nobres para uma análise científica ofuscada pelo interesse
fechado em figuras retilíneas e de fácil encaixe.

Henri Lefèbvre nos falou da necessidade de sair ao encontro; Gaston Bachelard, do nosso poder
de acordar as fontes; Blumer, inspirado em Mead, nos recomendou compreender os fenômenos
humanos interativos e escavar as àreas, como fez a inquietação foucaultiana; Marx incitou-nos ao
desvelamento das reificações capitalistas e do barbarismo social que ele engendra; Nietzsche,
Morin e Ardoino descofiaram dos fatos em si e fechados em si; Dilthey e Heidegger rebelaram-
se contra a expulsão do sujeito e da coexistência, bem como Weber, Schutz e Garfinkel
recomendaram-nos caminhar interpretando compreensivamente a cotidianidade e a coexistência;
Habermas, do lugar da tradição crítica da Escola de Frankfurt, nos aponta a fecundidade
emancipatória da comunicação e o caráter venenoso da razão instrumental; Vygotsky mostrou-
nos o processo de individuação como socialização dos processos cognitivos superiores; e Freire,
do seio da nossa cultura e das nossas lutas, falou-nos de uma educação desafiadora, movida por
uma pedagogia do ato amoroso que assim como compreende, denuncia, anuncia e transforma.
Não estaria esta poética da compreensão, da crítica e da co-transformação por sujeitos sociais
curiosos e partícipes, caminhando dialogicamente, backtinianamente, ao lado de Hermes
ressignificado, reconhecido? Do meu lugar de educador, foi este o meu esforço, inspirado pelas
problemáticas da minha cotidianidade e dos meus tempos, que me tocam incessantemente na
alma e na carne, que me fizeram por um labor educativo, crítico e científico de inspiração
radicalmente democrática, um etnopesquisador dos meios educacionais implicado, eivado de
inquietações e apaixonado sem culpas pela ação dialógica de educar, para mim, na sua
"essência", irremediável processo de emancipação co-construída.

Este livro expressou e sintetizou a busca e o conhecimento de caminhos, onde interesse e opção
foram os impulsionadores predominantes. Onde querer ir e qual a opção a fazer nortearam as
caminhadas traçadas e retraçadas em muitos momentos. A dúvida de Alice(a do País das
Maravilhas) muitas vezes me habitou, quando foram muitos os momentos em que me perguntei
qual seria o caminho e como caminhar para trilhar ou para chegar, defrontei-me muitas vezes
também com as respostas dadas pelo gato Cheshire, que insistia em dizer a Alice que sua saída
dependia do lugar onde ela queria ir. Na insistência de Alice em querer encontrar qualquer
caminho, o gato recomendou-lhe continuar caminhando.

Portanto, caminhar em pesquisa é preciso, como também é preciso vislumbrar onde chegar e o
que encontrar. Henri Levèbvre e o gato Cheshire têm razões que talvez certas razões que pregam
o niilismo metodológico e práticas monolíticas de pesquisa desconheçam.
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Anexo 1
Variantes da Etnopesquisa nos Meios Educacionais

Etnografia antropológica da educação - Delamont e Atkinson, 1980

Etnografia antropológica do sistema escolar – Spindler, 1981

Antropopedagogia – Morin, 1980

Etnografia constitutiva – Meham, 1980

Etnografia cooperativa da educação- Hymes, 1980

Etnografia da educação – Spindler, 1980

Etnologia da educação – Hymes, 1980

Etnografia da vida da classe – Hamilton, 1981

Etnografia e política educacional – Mulhauser, 1975

Etnografia do sistema escolar – Wolcott, 1975

Etnopedagogia – Burger

Etnografia da avaliação – Rist, 1980

Etnografia focalizada – Erickson, 1977

Microetnografia da sala de aula – Smith, 1967

Nova etnografia da educação – Erickson, 1983

Etno-sociologia da educação – Lapassade, 1994

Etnografia sociológica da educação – Atkinson, 1980

Endoetnografia da educação – Lapassade, 1994

Etnografia da prática escolar – André,1995


Anexo 2
Tabelas com dados citados no sub-capítulo - "As dimensões numa pesquisa qualitativa". p.
232.

TABELA 1B
APROVADOS CONTÍNUOS, REPETENTES E EVADIDOS POR
SÉRIE/ANO.
Série / Aprovados (A) (B) (C)
ano Contínuos Nº de Nº de Repetentes Evadidos R2 ou
Alunos (R2) Tr.
Alfa ( 1984) 13 - 1
A
1 Série (1985) 12 3 2
2A Série (1986) 7 1 -
A
3 Série (1987) 6 ** **
**
Nota: = Ano letivo em processo

TABELA 2B
APROVADOS CONTÍNUOS, REPETENTES E EVADIDOS POR
SÉRIE/ANO.
Série / Aprovados (A) (B) (C)
ano Contínuos Nº de Nº de Repetentes Evadidos R2 ou
Alunos (R2) Tr.
Alfa ( 1984) 17 - 2
A
1 Série (1986) 15 2 3
A
2 Série (1987) 10 ** **
Nota: ** = Ano letivo em processo

TABELA 3B
APROVADOS CONTÍNUOS, REPETENTES E EVADIDOS POR
SÉRIE/ANO.
Série / Aprovados (A) (B) (C)
ano Contínuos Nº de Nº de Evadidos R2 ou
Alunos Repetentes Tr.
Alfa ( 1986) 16 3 2
1A Série (1987) 11 ** **
Nota: ** = Ano letivo em processo

TABELA 1C
NÚMERO E % DE APROVADOS CONTÍNUOS, REPETENTES,
ATIVOS, EVADIDOS E "DESCONTÍNUOS".
Categorias Número %
APROVADOS CONTÍNUOS (A) 6 46,1
REPETENTES (B) 4 30.7
ATIVOS (A+B) 10 76,9
EVADIDOS (C) 3 23,0
"DESCONTÍNUOS" (B+C) 7 53,8

TABELA 2C
NÚMERO E % DE APROVADOS CONTÍNUOS, REPETENTES,
ATIVOS, EVADIDOS E "DESCONTÍNUOS".
Categorias Número %
APROVADOS CONTÍNUOS (A) 10 58,8
REPETENTES (B) 2 11,1
ATIVOS (A+B) 12 70,5
EVADIDOS (C) 5 29,4
"DESCONTÍNUOS" (B+C) 7 40.5

TABELA 3C
NÚMERO E % DE APROVADOS CONTÍNUOS, REPETENTES,
ATIVOS, EVADIDOS E "DESCONTÍNUOS".
Categorias Número %
APROVADOS CONTÍNUOS (A) 11 68,7
REPETENTES (B) 2 11,1
ATIVOS (A+B) 14 87,5
EVADIDOS (C) 2 12,5
"DESCONTÍNUOS" (B+C) 5 31,2

TABELA 4 C
TOTAIS EM NÚMEROS ABSOLUTOS E EM % DE APROVADOS
CONTÍNUOS, REPETENTES, ATIVOS, EVADIDOS E
"DESCONTÍNUOS" DE TODAS AS TURMAS.
Categorias Número Total % Total
(46) (100%)
APROVADOS CONTÍNUOS (A) 27 58,6
REPETENTES (B) 9 19,5
ATIVOS (A+B) 36 78,2
EVADIDOS (C) 10 23,3
"DESCONTÍNUOS" (B+C) 19 40,8

Fonte: Macedo, R. O sentido da pré-escola pública. Salvador: Ed. Uneb, 1991.

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