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DIGA NA

À coPn

A cópia ilegal viola os dirertos dos autores


Os preludicados somos todos nós.

rsBN 978 989-644 168,5

Noto do editor frqnces


,ililltlttflttl[fl|[[Ltil
Agradeço a Monique Lévi-Strauss, que
'Ì ítrrlo rrligirral lì'ancôs: InnÍhropologfu nnnlt notltrttu
fìttt aux prollì'nts dtt iÌcompanhou com tanta atenção e generosida-
Autor': ( llarrde Lér'i-Stlrrrss
(ìopvright O L,clitions du Seuil. 201I cle cacla etapa da publicação desta obra.
(ìoleçiro ()lcnclcr'
"l-a Librairie clu XXle siècle", sob a dilcç:1o rlc Maulicc
-[ì'acluçiro: l'cclro Virlal (foao M. ().
Qrrina liìdições)
I{cr,isiro: Ì.e vi (lorrcÌinho
(ìapa: r\Rl)-(ìor'
Pré-irrP|css:1o:,\lì[)-(]or
l'ìxccuç:b er'hÍica: llloco Cir'híìco l,cla., Unicladr

I .l ccliçao: fcvcrciro cìc 20 I 2

ISLìN ( lèrnas c l)cbatcs): 971ì-989-(ì:14-I(ìtÌ-ir


N.e de cclição ((ìír'r:ulo clc l.citolcs): 76tì8
I)cprisìto leg:rl nírrnerrr 336773i I Ì

l{cscn'ackrs toclos os clilcitos. Nos tclnros clo criclig-o clo Dir-cito clc ;\utor', ()s tílrrkrs rlos tr-ês crpítrrlos cleste ltvr<> são
é expless:rrrrente lrroibirla a leplodução t.()t:ÌÌ ()rÌ parr:ial desta oll:r por'
( lllrrr<lt' ()s,i ilìt('l'1ítrrlos siro <lo
<1rr:ristlrrcl rnt'ios, inr'Ìrrinrlo a lirttx ripi:r e () tr':Ìt:ÌlÌìcrìl() iníìllrn:ilico, scrrr
:r lrrrtotiz:rqio ('xl)r('ss:ì rlos litrrllrtt's rlos rlittitos.
Prólogo

or ocasião da sua
quarta estadia no
Japão, na primave-
ra de 1986, Claude Lévi-Strauss escreveu os
três capítulos que compõem este volume - trôs
conferências pronunciadas em Tóquio, a con-
vite da Fundação Ishizaka. Escolheu para esse
conjunto o título constante no presente livro:
A Antropologia Face aos Problemas do Mundo Mo-
d,crn,o.

Para isolar os grandes temas da sua obra,


para os comentar e atualtzar, Claude Lévi-
-Stratrss rc(:orr-cÌ livrernente aos seus escritos.
ÂNÍROPOLOOIÂ FÂCE ÂO5 PROBLEIIÂS
CLAUDE LÉVI.5ÏRÀU5S DO iÃUl{DO llrODERl{O

Relê assim este ou aquele texto que o tornou Nas suas três conferências, Claude Lévi-
célebre, retomando os principais temas sociais -Strauss apresenta por fim as suas inquietações
que nunca deixaram de o inquietar, nomeada- r-elativas aos problemas cruciais de um mundo
mente a propósito das ligações entre <<râÇâ>>, l)restes a entrar no século xxt, sobre as afini-
história e cultura. Ou, ainda, medita sobre o tl.des entre as diversas formas ds "explosão
futuro possível de novas formas de humanis- i<leológica" e o futuro dos integrismos.
mo num mundo em plena transformação.
Se, por um lado, os leitores de Lévi-Strauss Reconhecida mundialmente, a obra de
encontram aqui as questões que subjazem aos ( ll:rude Lévi-Strauss é hoje um laboratório de
seus trabalhos, as novas gerações poderão des- l)crìsamento aberto sobre o futuro.
cobrir uma visão do futuro proposta pelo céle- Flste livro será sem dúvida, para os estudan-

bre antropólogo. Sublinhando a importância t('s e as novas gerações, a melhor introdução à


da antropologia como novo "humanismo de- irrtclisência sensível do mundo de Claude Lévi-
mocrático", Claude Lévi-Strauss interroga-se Str';rrrss.

sobre "o fim da supremacia cultural do Ociden-


te',, sobre as ligações entre relativismo cultural Maurice Olender
e juizo moral. Quando examina os problemas
de uma sociedade que se tornou mundial, são
também as práticas económicas que são inter-
rogadas, as questões ligadas à procriação arti-
ficial, as ligações entre pensamento científico e

pensamento mítico.
Ofim
da supremacia
cultural do
Ocidente
s minhas primer-
ras palavras serão
para agradecer à
lirrndação Ishizaka a grande honra que me
, orrc:ede ao confiar-me, este ano, conferências
rlrrr: Íôram ilustradas, desde 1977, por tan-
t:rri llersonalidades eminentes. Agradeço-lhe
igrr:rlnrente por me ter proposto como tema a
lor rrr:r como a antropologia - disciplina à qual
r orrs:rgrei a minha vida - encara os problemas
Írnrrl:rrnentais com os quais a humanidade se
r orrÍì'orrta ho.je em dia.
( iolrrt:ç:rriiÌ por vos dizer como a antropo-
logi;r lìrrrnrrl:r cstes problemas na perspetiva
;r;rt lir rrl;rt' r;rrr' í' :r srrir. 'li:nt:trei em sesuida
A ÀIIÌROPOLOOIA FAGE AOS PROBLEIITAS
CLAUDÊ LÉYI.STRAUSs DO lüUt{DO tYIODERItO

definir o que é a antropologia e mostrar em vida pessoal e mais responsabilidade na gestão


que é que ela lança sobre os problemas do dos assuntos públicos; de que o juízo moral, a
mundo contemporâneo um olhar original, sensibilidade estética, numa palavra, o amor
sem pretender resolvê-los sozinha, mas com a pelo verdadeiro, o bom e o belo, se propasa-
esperança de os compreender melhor. riam através de um movimento irresistível e
conquistariam o conjunto da terra habitada.
Os acontecimentos de que o mundo foi
Aprender com os oulros palco no decurso do presente século desmen-
tiram estas previsões otimistas. Houve ideolo-
Desde há cerca de dois séculos,a civiliza- gias totalitárias que se espalharam e, em várias
ção ocidental definiu-se a si própria como a regiões do mundo, continuam a espalhar-se.
civilização do progresso. Congregadas pelo Os homens exterminaram-se às dezenas de
mesmo ideal, outras civilizações acreditaram milhões, entregaram-se a horrorosos genocí-
dever tomá-la por modelo. Todas partilha- dios. Mesmo uma vez a paz restabelecida, não
ram a convicção de que a ciência e as técnicas parece seguro que a ciência e a técnica apenas
iriam em frente sem cessar, concedendo aos tragam benefícios, nem que os princípios filo-
homens mais poder e mais felicidade; de que sóficos, as instituições políticas e as formas de
asinstituições políticas, as formas de organiza- vida social nascidos no século xvrrr constituam
ção social surgidas no final do século xvrir em soluções definitivas para os grandes proble-
França e nos Estados Unidos, a filosofia que as mas colocados pela condição humana.
inspirava, dariam a todos os membros de cada As ciências e as técnicas alargaram prodi-
sociedade mais liberdade na conduta da sua gioszrmente o nosso conhecimento do mundo

16
A ÀNÌNOPOLOOIA FÀCE AOS PROBLEIIÂ'
CLÀUDE LÉVI-STRAUgi
DO lltultDo t[oDERlto

fisico e biológico. Deram-nos um poder sobre


unì nÌenor desequilíbrio pelo facto de, para
a natureza de que ninguém poderia ter sus- rl;rr t.r-abaÌho a indivíduos cada vez mais nu-
peitado há apenas um século. Começamos, rÌr('r'osos, ser necessário produzir cada vez
contudo, a medir o preço que foi preciso pa- rrr:ris. Somos assim arrastadosnuma corrida
gar para o obter. De forma crescente, coloca- st'rrr fim para uma produtividade acrescida.
-se a questão de saber se estas conquistas não
,'\ pr'odução apela ao consumo que, por seu
tiveram efeitos deletérios. Colocaram meios tulrì(), exige ainda mais produção. Frações
de destruição maciça à disposição dos homens r rrtlir vez mais maciças da população são como
e, mesmo não sendo utilizados, pela sua única
,;rrt: aspiradas pelas necessidades diretas ou
presença, estes meios ameaçam a sobrevivên- irrrliretas da indústria. Vêm concentrar-se
cia da nossa espécie. De forma mais insidiosa ('nr cnormes aglomerados urbanos, que lhes
mas real, esta sobrevivência é também amea- rrrrpirem uma existência artificial e desuma-
çada pela rarefação ou pela poluição dos bens rriz:r<la. O funcionamento das instituições de-
mais essenciais: o espaço, o ar, a âgua, a rique-
rrror:r'írticas, as necessidades da proteção so-
za e a diversidade dos recursos naturais.
r i:rl irnplicam, por sua vez, a criação de uma
Graças, em parte, aos progressos da me- lrrrlo<:r'zrcia invasora, que tende a parasitar e
dicina, o número dos humanos não cessou de ,r 1r:rr':rliszrr o corpo social. Pergunta-se mesmo
crescer, a ponto de, em várias regiões do mun-
sr' ;rs so<:iedzrdes rnodernas construídas segun-
do, não se conseguir já satisfazer as necessi- rlo cslc rnoclelo niro se arriscarão em breve a
dades elementares de populações submetidas
I( )r'r ì:u'-so i rrqovcr-nítveis.
à fome. Noutros sítios, em regiões capazes de
l)rr|lrrrlt: rnrriltl tcìtÌìpo uln ato de fé, a
assegurar a sua subsistência, não se manifesta ( r('lrç:t rìulÌì l)t'()gl'('li:i() nr;tlt:r.ilrl c m<tr-al desti-

IB
A AÌIÌROPOLOGIA FÃCE ÃOg PNOBIETÂS
CLAUDE LÉVI-gÍNÃUSS DO lllul{Do fltoDERt{o

nado a nunca ser interrompido, sofreu assim os incitam -uma vez que as outras ciências
a sua crise mais grave. A civilizaçáo de tipo sociais, mais centradas sobre o mundo con-
ocidental perdeu o modelo que se apresenta- temporâneo, náo lhes fornecem resposta - a
ra a si mesma e 1â nâo ousa oferecer esse mo- interrogar a antropologia. O que é então esta
delo às outras. Não convirá assim olhar nou- disciplina, durante muito tempo na sombra,
tra direção, alargar os quadros tradicionais, acerca da qual se pensa que talvez tenha algo
onde se fechavam as nossas reflexões sobre a a dizer sobre estes problemas?
condição humana? Não deveríamos integrar
aí experiências sociais mais variadas e mais
distintas das nossas, do que aquelas em cujos Fqclos singulores e bizorros
estreitos horizontes nos confinámos durante
tanto tempo? A partir do momento em que a Por muito longe que se procurem exem-
civilização de tipo ocidental jâ nâo encontra plos no tempo e no espaÇo, â vida e a ativi-
na sua própria base com o que se regenerar e rlade do homem inscrevem-se em quadros
encetar um novo objetivo, poderá aprender <1ue oferecem caracteres comuns. Sempre e
alguma coisa sobre o homem em geral, e so- cm todo o lado, o homem é um ser dotado
bre ela própria em particular, nestas socieda- <le linguagem articulada, vive em sociedade.
des humildes e longamente desprezadas que, A reprodução da espécie não é abandonada
até uma época relativamente recente, tinham ;Ìo acaso, estando sujeita a regras que excluem
escapado à sua influência? Tâis sáo as questões rrm certo número de uniões biologicamente
que se colocam desde há algumas décadas a vihveis. O homem fabrica e utiliza utensílios,
pensadores, sábios ou homens de ação, e que (lue uszì em técnicas variadas. A sua vida so-
ÂNTROPOLOGIA FAGE AOS FNOBLEIIIÃS
cLAUD: rÉvl-gÌn^uss DO fllUl{DO ftlODERl{O

cial exerce-se em coniuntos institucionals' em


rr:r Asia, bem como em Xenofonte, Heródoto,
l';rrrsânias e - sob um ângulo mais filosófico
que o conteúdo poderá variar de um grupo -
t'rrr Aristóteles e Lucrécio.
para outro, mas cuja forma geral se mantém
constante. Através de procedimentos dife- No mundo ârabe, Ibn Battuta, grande
rentes, certas funções - económica, educati- t,iitiitnte, e Ibn Khaldun, historiador e filóso-

va, política, religiosa - são regularmente as-


lo, testemunham no século xvr um espírito
seguradas.
;rrrlt:nticamente antropológico, tal como, vá-
r ios séculos antes, os monges budistas chi-
Entendida no seu sentido mais amplo, a an-
tropologia é a disciplina que se consagra ao es- que se deslocaram à Índia para se do-
n('ri(ìs
r rrnrcntarem sobre a sua religião, e os monges
tudo deste ofenómeno humano'' Sem dúvida
que este faz patte do conjunto dos fenómenos l;rl)()rÌeses que, com a mesma finalidade, visi-
l;u rìlÌì a China.
naturais. No entanto' apresenta, em relação às
Nesta época, as trocas entre o Japão e a
outras formas da vida animal, características
{llrirr;r Íàziam-se sobretudo por intermédio
constantes e específicas que justificam que seja
rl;r (loreia e, neste último país, a curiosida-
estudado de forma indePendente'
Neste sentido, poderá dizer-se que a an- rlr' ;rrr1r-<tpológica é comprovada desde o sé-
r rrlo vrr da nossa era. O meio-irmão do rei
tropologi a é tâo velha como a própria huma-
l\{rrrrrnu, dizem as antigas crónicas, não acei-
nidade. Nas épocas acerca das quais possuímos
testemunhos históricos, preocupações de um
lí)u t()l'lìiÌr-se primeiro-ministro senão com a
r orrtlição cle viajar primeiro incógnito através
género a que, hoje em dia, chamaríamos an-
r lo lt'ilr(),
tropológicas manifestam-se entre os memoria- [)iu-iÌ observar a vida do povo. Pode

listas que acompanharam Alexandre Magno \'('r s('trí rrrn:r plirncir:r pesquisa etnográfica,
AÌ{TTOPOLOGIA FÂGE AOS PROBLEIIÂS
CLÂUDE LÉVI.SÌRÂUSI' DO ftlUltDO tloDEnl{o

embora, para dizer a verdade, os etnógrafos ;rssinì <:hamadas por serem complacentemen-
de hoje não recebam frequentemente, como Ic rlcsr;ritas no século t da nossa era por Plí-
esse dignitârio coreano, do anfitrião indígena rrio, o Antigo, na sua História Natural: povos
que os acolhe, uma deslumbrante concubina :t'lv;rgcns monstruosos na anatomia e nos cos-
para partilhar o seu leito! Ainda nas crónicas Irr n r('s. O Japão não ignorou tais imaginações
coreanas, diz-se que o filho de um certo mon- ('. s('nì dúvida por se ter separado voluntaria-
ge que compunha livros sobre os costumes da rrrt'rrt(: do resto do mundo, elas sobreviveram
China e de Silla foi, por essa razão, colocado ,rr rruris tempo no espírito popular. Na altura
entre os dez grandes sábios deste reino. ,l;r rrrinha primeira estadia no Japáo, recebi
Na Idade Média, a Europa descobre o ,lr' presente uma enciclopédia publicada em
Oriente, primeiro por ocasião das Cruzadas, l'i u1), inrirulada Zôho Kunmo Zui. Na parte
depois através dos relatos dos emissários en- gt'og'r'hfica, consideravam-se reais povos exó-
viados no século xtu pelo papa e pelo rei de trr os gigantes, ou dotados de braços ou per-
França até aos Mongóis; e, sobretudo, no sé- r r;rs <lcsmesuradamente compridos...
culo xtv, graças à longa estadia de Marco Polo N;r mesma época, a Europa, mais bem
na China. No início do Renascimento, come- rrí()r'rÌìzÌda, acumulava conhecimentos positi-
çam a distinguir-se as fontes muito diversas de \'ori (lue, a partir do século xvt, começavam a
onde brotarâ, a partir daí, a reflexão antro- ;rílrrir' <le ÁÍrica, da América e da Oceânia, por
pológica: a literatura suscitada pelas invasões ,,< ;rsir-ro dos grandes descobrimentos. Muito
turcas na Europa oriental e no Mediterrâneo; rlr'1rn'ssa, as compilações destes relatos de via-
as fantasias do folclore medieval prolongam gcrrr tivrìr-iÌrn, na Alemanha, na Suíça, em In-
as da Antiguidade sobre as raças uplinianas", gl:rlcr r':r (ì (ìlÌì lir:rnça, uma moda prodigiosa.
 ÀIIÌROPOLOGIA ÍÂGE AOS PNOBLEilTAS
uND o D.É R l{ o
9 .',tr
cLAUDE LÉvt-5ll4gll -D-O-lÂ

, rrliosidade de antiquário' Percebia-se que


Esta enorme literatura de viagem alimentará a
àr-
.rs gr-andes disciplinas clássicas - histórra'
reflexão antropológica, que começa em Fran-
que gozavam
,
lrrt'ologia, filologia' disciplinas
ça com Rabelais e Montaigne e que conquista cur-
plt'tt:rrnente do direito de cidadania nos
a Europa inteira, a partir do século xvlll.
r,,s rrttiversitários esqueciam atrás de si toda
-
Encontra-se aliás o seu eco no Japáo, em
.r t'spócie de resíduos, de restos' Um pouco
viagens apresentadas como imaginárias, na re-
r r)nr() os trapeiros, os curiosos tentavam
ausência do conhecimento direto dos países
,,,llrt:t- estes restos de conhecimento' estes
longínquos. Como a viagem fictícia de Ô"
lr,rqtttcntos de problemas, estes detalhes pi-
Bunpa ao país de Harashirya, palavra por de-
t,r('s('os que as outras ciências rejeitavam
trás da qual se reconhece o Brasil, habitado
,1.'srlt'tthosamente nos seus caixotes de lixo
por indígenas que .ignoram o cult.ivo dos ce-
rrrtrlcr'Irtais.
reais, se alimentam cle taízes secas e não têm
No itrício, a antropologia náo foi mais' sem
rei e onde apenas são considerados nobres os
,lnr irllr, <lo que esta recolha de factos singu-
mais hábeis no tiro ao arco>. É mais ou me- a
l,rrcs t' lrizarros. E, contudo, descobria-se
nos aquilo que, dois séculos antes, Montaigne
() (' l)ouco que estes restos, estes resíduos
relatava, depois de ter conversado com os ín- lr{)u(
i r.urr rrr:ris importantes do que aquilo que se
dios brasileiros, levados para França por um
|
,r r r:i. r r :r. A rirzão é fácil de perceber'
navegador.
( ) (lu(' cspanta o homem no espetáculo
Mesmo que coloquemos no século xIX os
rl,',.rrltos ltotnens sáo os pontos pelos quais
inícios da pesquisa antropológica tal como se
'.r lr,u('(('lìì c:onsigo' Historiadores' arqueó-
pratica hoje em dia, ela teve como primeiro
1,,s,','., ÍrlrisoÍìrs, m<lr-zrlistas, literatos preten-
móbil aquilo a que se poderia ch:rmal- tllÌì2ì
,TilÍNOPOLOGIA FÃCE ÃOS PROBLEÀ'IÂ5
CLAUDË LÉVI.5ÌRÂU'S DO IIIUI{DO
'YIODERNO

diam em primeiro lugar dos povos recente- rrrrlr'n;Ìv:ÌrÌì-se entre si de forma muito mais
mente descobertos uma confìrmação das suas ,,,{'r('rrtc clo que os fenómenos julgados os
próprias crenças sobre o passado da humani- nnr( ()s irÌìportantes, sobre os quais se fixara a
dade. Isso explica que, quando das grandes ,rtrrrr,;ro. l'actos negligenciados ou pouco es-
descobertas do Renascimento, os relatos dos lrrrl.rrlos. t.al a maneira como as diferentes so-
primeiros viajantes não causassem surpresa: r r.rl,rrlt's partilham o trabalho entre os sexos
acreditava-se menos que se estavam a des- nunì:Ì clada sociedade, são os homens ou
cobrir novos mundos do que a encontrar o ,r', nnrllrr:res que se dedicam à olaria, à tece-
passado do antigo. Os géneros de vida dos l,rr,'rn. ()u que cultivam a terra? - permitem
povos selvagens demonstravam que a Bíblia, r,)nr|):lr':rl e classificar as sociedades humanas
os autores gregos e latinos diziam a verdade, ',r l,urrrlo bases mais sólidas do que se conse-
ao descreverem o Jardim do Éden, a Idade !' r r r.r ;ì r r tt:t'iormente.

do Ouro, a Fonte da Juventude, a Atlântida a divisão do trabalho; poderia falar


( ìrtt'i

ou as Ilhas Bem-Aventuradas... r.rrrrlrcrìì rlas regras de residência. Quando


Negligenciava-se, recusava-se mesmo ver r,í {)t r(' urÌì CasamentO, Onde VáO viVer OS jO-

as diferenças, contudo essenciais, a partir do \, us ('slros<ls? Com os pais do marido? Com


momento em que se trata de estudar o homem. ,', rl.r rrrrrllrcr? Ou estabelecem uma residência
Pois, tal como diria mais tarde Jean-]acques u t{ lr'l rcn< lt:nte?
Rousseau, "é preciso primeiro observar as di- ( ) com as regras de fi-
rrrt'srrrr) rÌcontece
ferenças, para descobrir as propriedades". Ir,r,,rr c rlo t::rs:rrnento, durante muito tempo
Iria ser feita também uma outr:ì desco- ul,11*.'t,,'i:r<l:rs, clc tzrl forma pareciam capri-
berta: estas sineulzrricla<les, cstas lriz:rrli:rs r lr':.,rS <' rlcs;rr'ovi<lirs clc signiíiczrção. Por que
ÀNTROPOLOOIA FAGE ÂOS PROBLEIIAS
GLAUDÉ LÉVI-5TRAU55 DO lltultDo roDEnilo

razâo um grande número de povos do


mun- 'nr lu(Ì não possam ser observadas. Daí o inte-
(

do distingue os primos em duas categorias' rí'\ (' (lue os antropólogos têm pelas variações,
.r1 r;rr t'ntemente fúteis, mas que permitem
segundo provêm de dois irmãos ou de duas
r lrcgirl a classificações relativamente simples,
irmãs, ou de um irmáo e de uma irmã? Por
que razão, neste caso' condenam o casamen- rrrtrorluzindo na diversidade das sociedades
to entre primos do primeiro tipo e o preconi- lrrrrrr:rnas uma ordem comparável à que os

zam, q.uando náo o impõem, entre os primos rooloÍros e os botânicos utilizam para classifi-

do sesundo tipo? E por que razâo o mundo ;u espécies naturais.


( 1ìs

ârabe constitui, praticamente sozinho'


exce- A este respeito, as pesquisas mais eficazes
l,r':Ìrrì aquelas que visaram as regras da filia-
ção a esta regra?
Da mesma forma, as proibições alimen- (,,:r() e do casamento. Com efeito, as socieda-
tares que fazem que, em todo o mundo' não rlt's que os antropólogos estudam podem ter

haia povo que náo procure afirmar a sua ori- r'Íì:tivos muito variáveis, indo de algumas de-

ginalidade proscrevendo esta ou aquela cate- z('rìzìs de pessoas a várias centenas ou a vários

goria de alimentos: o leite na China' o porco rrril[rares. Todavia, comparadas com as nossas,

para os judeus e os muçulmanos, o peixe para t'sliÌs sociedades têm dimensões muito redu-

algumas tribos americanas e a carne de cerví- zi<las, de forma que as relações humanas ofe-
r'(ìcem aí um carâcter pessoal. Nada o mostra
deo para outras e assim Por diante'
Todas estas singularidades constituem ou- rrrelhor do que esta tendência das sociedades

tras tantas difèrenças entre os povos' E' no st:rn escrita para conceberem as relações en-

entanto, estas diferenças sáo comparáveis' na I lc os seus membros segundo o modelo do


medida em que não existe praticamente povo 1r:rrcntesco: aí, toda a gente é irmão, irmã,
ÃÌ{ÌROPOLOOIA FAGE ÂO5 PROBLEMÀS
CLÂUDE LÉVI.SÌRAU6' DO MUNDO IITODERNO

primo, prima, tio, tia, etc., de toda a gente. Um denominqdor comum


E, se não se for um parente, é-se um estra-
nho, portanto, um inimigo potencial. Nem (.)uais são então essas sociedades que os an-

sequer é preciso retraçar as genealogias: em Irolrrilopos estudam preferencialmente e que


muitas destas sociedades, regras simples per- {'rt:nÌì()s habituados, por uma longa tradição,
mitem atribuir a cada indivíduo, em razão do ,r rlr:unar "primitivas>, termo que hoje muitos
seu nascimento, esta ou aquela categoria en- r('( urlÌm e que seria necessário, em qualquer
tre as quais prevalecem relações equivalendo r l,s r';rs{)s, definir com precisão?
às de parentesco. l)csignam-se geralmente assim os agrupa-
Ora, não há sociedades, por muito humil- rrrcrrlos humanos que diferem principalmente
de que seja o seu nível técnico e económico, rl,s rì()SSos pela ausência de escrita e de meios
e por muito diferentes que sejam os seus cos- rrrtrânicos, mas acerca dos quais não convi-
tumes sociais e as suas crenças religiosas, que r;r ('s(luecer algumas verdades essenciais: es-
náo possuam uma nomenclatura de parentes- t,rs sociedades oferecem o único modelo para
co e regras de casamento que distingam os in- r ( )nrl)r'eender a forma como os homens viviam
divíduos aparentados em cônjuges permitidos lunl()ri durante um período histórico corres-
e cônjuges proibidos. Dispomos assim de um lrorrtlcnte sem dúvida a 99 7o da duração total
primeiro meio para distinguir as sociedades rl:r virlzr da humanidade e, do ponto de vista
umas das outras e dar a cada uma o seu lugar gt'ogr'írÍìcr), numa época ainda recente, sobre
numa tipologia. tri's <;rr;rrtos da superfície da Terra habitada.
( )s r;onhecimentos que nos ftrrnecem estas
sor i<'<l:rrlcs nãro se devem assim tanto ao fâcto
_c_la 1 ! E !j rlj,!]l-a u I s
 ÂIf ÌROPOLOGIà ,AGE AOS PROALEilÃS
?l rrl--!Do iioDERrlo

de poderem ilustrar etapas do


nosso passado rlo. A sua taxa de crescimento
longínquo. Ilustram antes uma situação é muito fraca,
geral, rritirlamente inferior a lTo, de
um denominador comum da condição modo que os
huma_ g:rnhos de população compensam
na. Vistas nesta perspetiva, são aproxima_
as aÌtas civiliza_
rl;rrrrente as perdas. Em consequência,
ções do Ocidente e do Oriente que constituem os seus
cli'tivos não variam muito. Esta
as exceções. constância de_
rrrográfica é, consciente ou inconscientemente,
De facto, os progressos das pesquisas
etno_ ;rsscgurada por diversos procedimentos:
Iógicas convencem_nos cad.a vez tabus
mais de que s<'xuais após o parto, aleitamento
estas sociedades tidas por atrasadas, prolongado,
considera_ r;rrc retarda na mulher o restabelecimento
das como odeixadas para trás,, dos
pela evolução, rilrnos fisiológicos. É notável que,
rejeitadas para regiões marginais em todos
e condena_ ()s casos observados,
das à extinção, constituem formas um crescimento demo_
de vida so_ rr'híìco não incite o grupo a reorganizar_se
cial originais. São perfeitamente se_
viáveis, desde
rrrndo novas bases. Tornado mais numeroso,
que não sejam ameaçadas do exterior.
o e-rupo cinde-se e dá lugar a
Procuremos então distinguir duas
pequenas
melhor os sociedades da mesma ordem
seus contornos. de grande za que
;r :rnterior.
No limite, consistem em pequenos
gru_ Estes pequenos grupos têm
pos compreendendo entre algumas uma capaci_
dezenas rllr<le espontânea para eliminar
e algumas centenas de pessoas, do seu seio as
afastados uns <loenças contagiosas. Os epidemiologistas
dos outros por vários dias de viagem for_
a pé, e rì(ì(:cl'am a razão: os vírus
cuja densidade demográfica se destas cloenças ape_
situa em cer_ rr:rs sollrevivem em cada
ca de 0,1 habitante por quilómetro indivíduo durante um
quadra_ rrrirrrc:r'o rle diirs limitaclo, e clevern portanto

34
ÂNTROPOLOGIÂ FAGË AOS PNOBIEIIIAS
CLAUDE LÉVI-5ÌRAUSg DO tlul{Do rloDERl{o

circular constantemente para se manterem no r lr r r rs acasos da história a introduzirann em so-

conjunto da populaçáo. Isso apenas é possível , rr'<l:rcles mais numerosas.


se o ritmo anual dos nascimentos for suficien- (.)uanto às doenças não infecciosas, estão
temente elevado, condição realizada somente ,'rrr geral ausentes por várias razões: grande
a partir de um efetivo demográ{ìco de várias .rtivirlade fisica, regime alimentar muito mais
centenas de milhares de Pessoas' r';rri:rclo do que o dos povos agricultores, re-
É preciso acrescentar que, em meios eco- ,,,r rcndo a mais de uma centena de espécies
lógicos complexos como aqueles onde vivem por vezes mais, pobre em
,rrrirrrais e vegetais,

povos cujas crenças e práticas, que erramos lior(lrlras, rica em fibras e em sais minerais,
em tomar como superstições, visam preser- ,rs:i('tÌrlrando um consumo suficiente de pro-
var os recursos naturais, as espécies vegetais e t('nr:ìs e calorias. Daí a ausência de obesidade,

animais são muito diversas' Mas, nos trópicos, r lc lripertensão, de problemas circulatórios.
cada uma conta apenas um pequeno número Nacla de surpreendente, portanto, no fac-

de indivíduos por unidade de superfície, e é t, rlt' rrrn viajante francês que visitou os índios
também esse o caso das espécies infecciosas ou r lo lìr':rsil no século xvr, poder ficar espantado
parasitas: as infeções podem portanto ser múl- l)( )r ('st.c povo - cito-o - <composto pelos mes-
tiplas, mantendo-se contudo de fraco nível clí- rrr,rs t:lcnìentos que nós [...], nunca 1...] ser
nico. A sida constitui um exemplo atual' Esta ,rtirrsi(l() por lepra, paralisia, letargia, doenças
doença viral, com origem em alguns locais da ( iur( ('r'()s:Ìs,
nem úlceras, ou outros vícios do
( ()l
Áfri.u tropical, onde vivia provavelmente em l)() (lucÌ sc vejam superficialmente e no ex-
equilíbrio com as populações indígenas desde tcrior',', :r() l)iÌsso que, no século ou século e
há milénios, tornou-se um enorme risco quan- rrrcio (lll(' ri(Ì st:etrirr ìr rlescoberta da América,
ÀilINOPOIOGIA FÀCE AOS PROBLEflIAS
CLÂUDE LEVI-SÌRAUS5 DO ituitDo i,toDERito

as populações do México e do Peru desceram tl.r: ;rr)r' serem as mais diferentes das nossas,
de uma centena de milhões para quatro ou l,r rrcr'<'rÌì-nos o meio de estudar os homens,
cinco, sob os golpes, menos dos conquistadores, ,r\ su;rs obras coletivas, para tentar compreen-
mas sobretudo das doenças importadas, tor- ,lrr rlc rlue forma o espírito humano funciona
nadas mais virulentas pelos novos géneros de rr,rs sitrrações concretas mais diversas em que a
vida impostos pelos colonizadores: varíola, ru- p',',,1; r':ríia o colocou.
béola, escarlatina, tuberculose, malária, gripe, ( )r'..r, sempre e em todo o lado, a explicação
papeira, febre amarela, cólera, peste, difteria , rlntíÍica baseia-se naquilo a que se poderia
e por aí fora... , lr;rrrr:Ìr boas simplificações. Sob este aspeto, a
Não deveríamos portanto julgar mal estas .rrrt r opolo gra faz da necessidade virtude. Con-
sociedades por as termos conhecido num es- lor rrrt: acabo de dizer, uma fração importante
tado miserável. O que, mesmo empobrecidas, r l;rs sociedades que escolhe estudar são peque-
lhes dá um valor inestimável é que os milhares pclo volume, e concebem-se a si mesmas
rr;rs
de sociedades que existiram e das quais algu- solr o rnodo da estabilidade.
mas centenas continuam a existir à superficie l,lstas sociedades exóticas estão afastadas
da Terra constituem outras tantas experiâncias rlo :rntropólogo que as observa. Uma distân-
acabadas: as únicas de que dispomos, uma vez , i:r niro somente geográfica, mas também in-

que, ao contrário dos nossos colegas das ciên- lclt'r;tuzrl e moral, separa-os. Este afastamen-
cias físicas e naturais, não podemos fàbricar os lo lc<luz a nossa perceção a alguns contornos
nossos objetos de estudo, que são as socieda- cssc:nt:izris. Diria na verdade que, no conjunto

des, e fazê-las funcionar em laboratório. Estas rl;rs ciôncizrs sociais e humanas, o antropólogo
experiências, retiradas de sociedades escolhi- ( x lll)lì rrrrr lrrgzrr c<lmparírvel ao que cabe ao as-
FÂGE ÂOS PROBLEITIÃS
^ilTNOPOLOGIÂ
GLÃUDE LÉVI-SÌRAUSg DO t[UNDO
'nODERllO

trónomo no conjunto das ciências físicas e na- r rrf r!1( f('rrlcs das razóes pelas quais adotamos
turais. Pois, se a astronomia se pôde constituir rlr tcrrrrirr:rclo alimento e proscrevemos outro,

como ciência desde a mais alta Antiguidade, n,r, tlnros consciência da origem e da função
é porque, mesmo na ausência de um método r i',rl r l:rs rìossas regras de educação ou das nos-

científico que ainda não existia, o afàstamento ìil,i ilrilrrr:iras à mesa. Todos estes factos, que
dos corpos celestes permitia ter deles uma vi- urí'rllrrllr:rrn as suas raízes no mais profundo
sáo simplificada. rlr, rrrr onsciente dos indivíduos e dos grupos,
."rr ) ('\:tl:ìrnente aqueles que tentamos analisar
Os fenómenos que observamos estão ex-
tremamente longe de nós. Longe, já o disse, ' ,rrr;r'cender, apesar de uma distância psí-
r

em primeiro lugar no sentido geográfico, pois rinr(.r irrlcrna que, num outro plano, duplica
dantes era necessário que viajássemos duran- r',r l.rsl :ìrÌÌento geográfico.

te semanas ou meses para encontramos os N{t'srno nas nossas sociedades, onde não

nossos objetos de estudo. Mas longe, sobre-


('\r l(' r:ssa distância física entre o observador

tudo, num sentido psicológico, na medida em (' ír s('rr objeto, subsistem fenómenos compa-

que estes mínimos detalhes, estes humildes r.rr'<^is ìr<lueles que vamos procurar tão longe.
factos sobre os quais fixamos a nossa atenção \.rrrtrolroloeia assume os seus direitos e en-
repousam sobre motivações de que os indi- i ontlit lÌ sua função em toda a parte onde os

víduos não têm claramente, ou de nenhum u ( )s. os géneros de vida, as práticas e as téc-
modo, consciência. Estudamos línguas, mas rrrr;rs rrlÌo fìrram varridos por revoluções his-

os homens que as falam não têm consciên- t,r i<;ìs c cc:onómicas, comprovando assim que
cia das regras que aplicam para falar e serem r ( )r r'('ril)()rrrlcrn a qualquer coisa de suficiente-

compreendidos. Nós também não somos mais rrrcrrtt' 1rr'oíìrrrclo no pensamento e na vida dos
à ÀN'ROPOLOCIÀ FÀCE AOg PROBLETÂ'
DO IIIUNDO
GLÂUDE LÉVI-9IRÂU95 'hODERNO

Krrnio parecia ainda inscrever-se, pelo menos


homens para resistir às forças de destruição;
por todo o lado, portanto, onde a vicla coletiva :ros olhos do observador ocidental. É no sé-

r rrlo xvrrl também que a pesquisa antropoló-


das pessoas comuns - aqueles a quem o vosso
ilustre antropólogo Yanagida Kunio chamava
gicl se inicia na Coreia, com os trabalhos da

jômi,n - assenta ainda, em primeiro lugaq em


rural e os
cst:ola de Silhak, eue visam a vida
rosltrmes populares no próprio país e não,
contactos pessoais, em laços de família, em re-
( orÌìo na Europa, os povos longínquos.
lações de vizinhança, quer seja nas aldeias ou
Ao recolhermos uma multidáo de factos
nos bairros das cidades: numa palavra, os pe-
rrrlinros que, durante muito tempo, os histo-
quenos meios tradicionais onde a tradição oral
ri;rtloles acharam indignos da sua atenção, ao
se mantém.
( ()nrl)c'nsarmos pela observaçáo direta as la-
Parece-me aliás típico destas relações de
( un:rs e as insuficiências dos documentos es-
simetria que se observam entre a E'uropa oci-
r rilos, 2Ìo tentarmos conhecer a forma como
dental e o Japão que a pesquisa antropológi-
.rs l)('ss()zÌs se recordam do passado do seu pe-
ca aí desembarque na mesma época - no sé-
rln('n() Ílrupo - ou como o imaginam - e a for-
culo xvttt -, sendo que, na Europa ocidental, o
rrr;r, l;urrbém, como vivem o presente, conse-
impulso das grandes viagens permitiu aceder
ao conhecimento das mais diferentes cultu- ll,nnnos t:onstituir arquivos de um tipo original
r' l)(,r' rlc pé aquilo a que Yanagida Kunio, para
ras, ao passo que no Japão, entáo recolhido
sobre si mesmo, a pesquisa antropológica tem
, r it;rr tlr: novo, chamava bunkagaku, "ciência
rl,r r rrllllr':r', ou seja, numa palavra, a antro-
provavelmente as suas raízes na escola Koku-
gaku, na linha da qual, um século mais tarde, lrologi;r.

o monumental empreendimento de Yanagida


ÂNÌNOPOLOOIA FÂCE ÃO5 PROBIEIYTAS
GLAUDE LÉVI.5ÌRAU55 DO rUt{DO tlODEnilO

<<Aulenlicidqde> e <<i nq utenÍicidqde> Irrrrit;r l)ortanto a calar os seus sentimentos.


I lr' Í;rlrlica novas categorias mentais, contri-
Chegados a este ponto, estamos em me- lrrri 1r:rla a introdução de noções de espaço
lhor condição de compreender o que é a at1- l rlt' tcrnpo, de oposição e de contradição,
tropologia e o que constitui a sua originali- t,to ('str-anhas ao seu pensamento tradicional
dade. r ()nr() :rquelas que encontramos hoje em cer-

A primeira ambição da antropologia é tírs r:uÌÌos das ciências físicas e naturais. Esta
atingir a objetiaidade. llã"o se trata somente rll;rr.:'ro entre a maneira como os mesmos
para ela de uma objetividade que permita prrlrlc:rnas se colocam em disciplinas muito
àquele que a pratique abstrair-se das suas foi admiravelmente percebida pelo
.rl;rsl :r<las

crenças, das suas preÍèrências e dos seus pre- grr:rrrtlc físico Niels Bohr, quando escreveu
conceitos. Uma tal objetividade caracteriza ('nr l{)39: "As diferenças tradicionais entre
todas as ciências sociais, caso contrário não r rrltrrlas humanas [...] parecem-se em mui-

poderiam aspirar ao nome de ciência. O tipo tíls l)ontos com as diversas maneiras equiva-
de objetividade a que aspira a antropologia lcrrtt's como podem ser descritos resultados
vai mais longe. Não se contenta somente em , lc cxperiências fisicas'."
elevá-lo acima dos valores próprios da socie- A sesunda ambição da antropologia ê a to-
dade ou do meio social do observador, mas vida social um sistema em
tttlìrlrul,c. Ela vê na

dos seus métodos de pensamento: atingir r;rrc to<los os aspetos estão organicamente li-
formulações válidas não só para um observa-
dor honesto e objetivo, mas para todos os ob- 1 Nills lìrrlrr; urn.rut,isvtnle h,untaine, Parts,
/'l..y.srir1u: a.knnir[.ut rL
servadores possíveis. O antropólogo não se ( l:rllirrrrrr'<1.
"1,ìrlio l,lss:ris", n.a 157, l(X)1,p. 33.
ÂilTROPOLOOIA FÂCE AO5 PROBLÊIItÂS
GtÂuDE t EVt.StRAUtS DO TUI{DO IIIODERNO

gados. Reconhece na verdade que, para apro- ,,lrscr v:rdor sagaz da vida e da cultura japo-
fundar o conhecimento de um certo tipo de n{'sir:i, era um eminente filólogo. No seu cé-
fènómenos, é indispensável dividir um con- lrlrr c livro Things Japanese, regista o facto, ao
junto, como fazem o jurista, o economista, o nr(':irììo tempo que vários outros, sob a rubri-
demógrafo, o especialista de ciência política. t,r ,,'lbltsy-turuidom", eue eu traduzo aproxi-
Mas aquilo que o antropólogo procura é a for- rrr,rtiv:rmente por "onde tudo está de cabeça
ma comum, as propriedades invariantes que 1r,rr:r lraixo>, como uma bizarria à qual não
se manifestam por detrás dos géneros mais di- ;rtrilrrri qualquer significado especial. Em
versos de vida social. \unr:r, não vai mais longe do que Heródoto,
Para ilustrar através de um exemplo con- r;rrt' observava, há mais de vinte e quatro sé-
siderações que vos poderão parecer demasia- r rrlos,que, em relação aos seus compatriotas
do abstratas, vejamos a forma como um an- gr('Íjos, os antigos egípcios faziam tudo ao
tropólogo apreende certos aspetos da cultura r orrl t'hrio.
japonesa. l'clo seu lado, houve especialistas da lín-
Não é com certeza preciso ser antropó- grrrr .japonesa que observaram como uma
logo para reparar que o artesão japonês se , rrriosidade que um japonês que se ausenta

serve da serra e da plaina ao contrário dos l)()r' unÌ breve momento (meter uma carta no
seus colegas ocidentais; ele serra e aplai- r or'r'ci{), comprar o jornal, ou um maço de ta-

na para si e não empurrando a ferramenta lrirr'<r) rlir'á decerto qualquer coisa corno ,rltte

para o exterior. O facto já impressionara Ba- tttrrit'i'rtri,.su>, ao que lhe responderáo "Itte iras-

sil Hall Chamberlain, no fim do século xrx. sltrti,,. () irccnto nâo é assim colocado, como
Este professor da Universidade de Tóquio, rr:rs lírrg'rurs or:iclcntais em situação semelhan-

4/
I AI'ÍROPOLOGIA FÃCE ÀO5 PNOBIÊiÃÂS
CLAUDE LÉVI.gÌRÀUSS DO lltutlDo lUToDERNO

te, na decisão de sair, mas sobre a intenção de Ë1,' ,rssirrr, não como um dado primitivo, mas
um rápido regresso. !,ln() uur resultado para o qual se tende sem
Do mesmo modo, um especialista da antiga ,r rrlt'zrt de se alcançar. Nada de espantoso,
r

literatura japonesa sublinhará que a viagem é ir'. ( orrÍìrrme me afirmam, a famosa propo-
aí sentida como uma dolorosa experiência de rr(-;r() (lt: I)escartes - ..Penso, logo existo" - é
arrancamento e frcarâdominado pela obsessão r rFiorosatnente intraduzível em japonês! Em

do regresso à terra. Do mesmo modo, enfim, rl'rrrínios tão variados como a língua falada,
a um nível mais prosarco, a cozinha japonesa, .r'. lrir rricas artesanais, as preparações culiná-
ao que parece, nâo diz como na Europa <mer- r história das ideias (poderia acrescentar
r,rs, :r
gulhar na fritura>>, mas ,.subtrair, ou ,.elevar' .r .rrr;rritetura doméstica, pensando nas nume-
(ageru) para fora da fritura... | ( ri;rs :r<:cções que atribuís à palavrauchi'), uma
O antropólogo recusar-se-á a considerar r lrlcr t'rrça ou, mais exatamente, um sistema de
estes factos ínfimos como variáveis indepen- r lrlcr r:rrças invariantes manifesta-se a um nível
dentes, particularidades isoladas. Ficará, pelcr lrrolìrndo entre aquilo a que, para simplificar,
contrário, impressionado com aquilo que têm r lr;rrn:rria a alma ocidental e a almajaponesa,
em comum. Em domínios diferentes e sob mo- ,1rrt' pocleria ser resumida pela oposição entre
dalidades diferentes, trata-se sempre de trazer rrrrr rnovimento centrípeto e um movimento
a si, ou de se trazer a si mesmo para o interior. rt'rrlr'ílìrso. Este esquema servirá à antropolo-
Em lugar de colocar no início o oeu, como gi:r <lc hipótese de trabalho para tentar com-
uma entidade autónoma e já constituída, tudo
se passa como se o Japonês construísse o seu l lr /ir stgrrrlrt lr ir() lÌìcslÌìo temp() casa e edifício, o interior',
:r l;rrrrílilr, () gllrl)() írrtittto, 1Ì clÌìpr'eszÌ para os homens de
eu a partir do exterior. O oeuo .japrinês srrr- rrcg,i< ios rr:r lirtgu:tg<'trr pollttlltr'.
AilÌNOPOLOOIÂ FÀCE ÂOS PROBLEI'IÂ5
CTAUDE LÉVI-SÌRÂUSS DO l/tuNDo l,loDEnilo

preender melhor a relação entre as duas civi- N,rs n()ssas sociedades modernas, as rela-
lizações. l.lr',r ( orÌÌ o outro são apenas de fbrma oca-
Finalmente, para a antropologia, a pro- .tlln,rl c lì'rrgmentária fundadas sobre esta ex-
cura de uma objetividade total não se pode lr n{'rrr irr global, esta apreensão concreta dos
situar senão a um nível onde os fenómenos arr;r'rl()s lrns pelos outros. Resultam, para a
possuem significaçáo para uma consciência ln,nÍ )r plrr-te, de reconstruções indiretas, com
individual. Aí reside uma diferença essencial ,r .rlu( l;r <lc documentos escritos. Estamos liga-
entre o género de objetividade a que aspira ,1,,:. ;lr) rìosso passado, jâ nâo por uma tradi-
a antropologia e aquela com que se conten- ,-,r,, ,,r';rl rlue supõe um contacto vivido com as
tam as outras ciências sociais. As realidades lr{'\\()irs, mas por livros e outros documentos
visadas, por exemplo, pela ciência ecohómi- ,'r r rl r illurclos nas bibliotecas e através dos quais
ca ou pela demografia não são menos objeti- .r r r itit:r se esÍ-orça por reconstituir o rosto dos
vas, mas ninguém pensa em exigir-lhes que lulores. E, no presente, comunlcamos
tenham um sentido na experiência vivida rr imensa maioria dos nossos contempo-
do sujeito, que não encontra objetos como o r;ur('()sipor toda a espécie de intermediários
valor, a rentabilidade, a produtividade mar- rlocrrrnentos escritos ou mecanismos admi-
ginal ou o máximo de população. Estas são rristr:rtivos - que multiplicam imensamente
noções abstratas, situadas fora do domínio ()s rì()ss()s contactos, mas que lhes conferem
dos relacionamentos pessoais, das relações ,r(, nìcsrÌÌo tenìpo um carácter de inautenti-
concretas entre os indivíduos que são a mar- lÌste marca com o seu selo, a partir
, r<l:rrlt:.
ca das sociedades pelas quais se interessam os rlc lrsol':Ì, as r-elações entre os cidadãos e os
antropóloeos. 1
rot lt:t't:s.

5()
ÂNÌROPOIOGIA FAGE ÂO5 PROALEftIÂS
€LAUDE LÉVI-5ÍRÃUS' DO flIUNDO
'NODÉRI{O

A perda de autonomia, o enfraquecimento r i;rs pcrturbadoras, contenham muito menos


do equilíbrio interno que resultou da expan- rrrlorrnações acessíveis a todos do que as pe-
sáo das formas indiretas de comunicação (li- rlu('rìrÌs, paralâ não falar dos elementos hu-
vro, fotografia, imprensa, rádio, televisáo) res- nr;nr()s de que são compostas todas as comu-
salta para o primeiro plano das preocupações r rrr l;r<les'."
dos teóricos da comunicação. Desde 1948, llaro que as sociedades modernas náo
(

encontramo-las na pena do grande matemá- \,ro ('()mpletamente inautênticas. Ao virar-se


tico Norbert Wiener, criador, com Neumann, Ir,, jc t:r-n dia para o estudo das sociedades mo-
da cibern étrca e, com Claude Shannon, da teo- rllr nrÌs, a antropologia dedica-se a reconhe-
ria da informação. r ('f ('iscrÌar nelas níueis de autenticidade. O que

Raciocinando sobre bases completamente l,{'nnite ao antropólogo encontrar um ter-


diferentes das do antropólogo, Wiener obser- rrrro Í.:lmiliar quando estuda uma aldeia ou
vava no último capítulo do seu livro funda- rrrrr lxrirro de uma grande cidade é o facto de

mental Cybernetics. Control and Communicatiom Íìente aí conhecer toda a gente, ou qua-
Ior l:r :r

in the Animal and the Machine (1948) - cito: rr'. IJrn antropólogo sente-se à vontade numa
.,As pequenas comunidades estreitamente ,rlrlt'i:r cle quinhentos habitantes, enquanto
soldadas têm um grau de horneostasia consi- rrrrr:r ciclade grande, ou mesmo média, lhe
derável; e isso quer se trate de comunidades rcsistr'. l'orquê? Porque cinquenta mil pes-
muito cultas no seio de um país civilizado, ou \r);ui lrlÌ() constituem uma sociedade da mes-
de aldeias de selvagens primitivos." E pros-
r l Wiclrr:r', Oyhcrnel:ics. Control and Comntunìcation in
seguia: oNáo é por isso surpreendente que ' Norlrt
tlt, lttrtttrrl tt.ttrl tln Mrt,rh,i,n,e., P:rris, Librairie Hermann & Cie,
as grandes coletividades, expostas a influên- l(tlt{, 111r. llJT-lutÌ; tlirrlrrçiro Íiancesa: Paul Chemla.
ÃTIÌROPOLOOIA FACE AO5 PTO'LEITITAS
CLÂUDE LÉVI-5ÌRÃU5S DO filUilDO ÀlODÉnilO

ma forma que quinhentas. No primeiro caso, *No perspetivo ocidentql que é q minhq>
a comunicação não se estabelece principal-
mente entre pessoas, ou segundo o modelo Niro será por isso necessário reduzir a ar'-
das comunicações interpessoais. A realidade Ir ogroloeia ao estudo das sobrevivências que se
social dos "emissores> e dos <recetores" (para u r;rrrr ï)r'ocurar muito longe ou muito perto.
falar a linguagem dos teóricos da comunica- ( ) rlrrc importa, antes de tudo, não é o arcaís-

ção) desaparece por detrás da complexidade trro rlcstas formas de vida, mas as diferenças
dos "códigos> e dos "retransmissores". rln(' oÍr:r'ecem entre si ou em relação àquelas
O futuro julgará sem dúvida que a mais tlil(' s(' l()rnaram aS noSSaS.

importante contribuição teórica da antropo- ( )s pr-imeiros trabalhos sistematicamen-


logia para as ciências sociais provém desta Il r orrslrgrados aos costumes e às crenças dos
distinção capital entre duas modalidades de p'\'í )ri st'lvagens não remontam para além de
existência social: um género de vida entendi- llilrO. orr se'ja, a época em que Darwin lançava
do primeiro como tradicional e arcaico, mas lr lrrrrrl:unentos do evolucionismo biológico,
que é o das sociedades autênticas; e formas ilil rltr;rl |t:spclndia, no espírito dos seus con-
de aparição mais recente de onde o primeiro lr'rrrlronìrrt'os, a crença numa evolução social
tipo náo está ausente, mas onde grupos im- l rrllrrnrl. ll é ainda mais tarde, no primeiro
r

perfeita e incompletamente autênticos emer- rll,rrtr'l rlo sí:<:ulo xx, que os objetos ditos "ne-
gem como ilhotas à superfície de um con- !!rnrr.' ,,rr ,.lrlirrritivos, viram o seu valor estéti-
junto mais vasto, ele próprio atingido pela lr rr'(otrltt'r:itlo.
inautenticidade. l"sl,rr r;rrrrrls cIr'ados em concluir que a an-
ltulrologi:r ti rrrrur <:iôncizr nova, resultante das
ÂI{TROPOLOOIÀ FÂGE AOS PROBLEITÂS
CLÂUDE LÊVI-SINÀUg5 DO tlul{Do fltoDEnilo

curiosidadesdo homem moderno. Quando rr r gr':rnde Zeamt, que, para jogar o seu jogo,
nos esforçamos por colocá-la em perspetiva, rllvt'r'h aprender a ver-se a si mesmo como se

por lhe atribuir um lugar na história das ideias, lossr'<l espectador.

a antropologia surge pelo contrário como a N;r verdade, quando procurei que título
expressão mais geral, e o ponto de chegada, lr,rrlt'r'ia dar a um livro publicado em 1983,
de uma atitude intelectual e moral que nasceu ;r,rrrr Í'irzer ressaltar ao leitor a dupla essência
há vários séculos e que designamos pela pala- rl,r rt'Ílexão antropológica que consiste, por
vra "humanismo". iirrr l:r<lo, em olhar para muito longe, para
Permiti-me que me coloque por um mo- r rrllrrrrs muito diferentes da do observador,
mento na perspetiva ocidental que é a minha. lr;rs l:rrnbém, para o observador, em olhar
Quando, na Europa, os homens do Renasci- ir suir t:ultura de longe, como se ele próprio
mento redescobriram a Antiguidade greco- lrrrl('n(:esse a uma cultura diferente, o título
-romana, e quando os jesuítas fizeram do la- r;rrr' íirr;rlmente escolhi, O Olhar Distanciado,
tim a base da formação escolar e universitâria, lrrr rrrc inspirado pela leitura de Zeamr. Com
não era isso já uma realizaçáo antropológica? ír ,rlu(l:r <los meus colegas japonólogos, trans-
Reconhecia-se que uma civilizaçâo não se pode lrrrr sirrrlrlesmente para francês a fôr:mula ri-
pensar a si mesma se não dispuser de uma ou l;,'rt tt,t lirn,, tlue ele emprega para designar o
de várias outras para servirem de termos de rrllr,rr <lo :r1.or que olha para si mesmo como
comparaçâo. Para conhecer e compreender a ',r' lossr' o 1lírblico.
sua própria cultura, é preciso aprencler a olhâ- l);r rrrt:srna íòrma, os pensadores do Re-
-la do ponto de vista de uma outra: um pouco u,rrr irrÌ('lrl() cnsinaram-nos a colocar a nossa
à maneira do ator do Nô de que fala o vos- nrltru;r ('lÌì llclslletivzr, a c<lnÍì-ontar os nossos
ÂI{ÌROPOLOOIÂ FACE AOS PROBLEflIAS
CLAUDE LÉYI.SÌNÂUSS DO IAUNDO IIIODERT{O

costumes e as nossas crenças com os de outros lui rlivulgada de forma muito sugestiva nas
tempos e de outros locais. Numa palavra, cria- rxt;rrììl)as sobre temas chineses - ilustrações
ram as ferramentas daquilo a que se poderia rlo lornance Suikoden e de relatos guerreiros
chamar uma técnica de expatriação. Irnr<los do Kanjo - produzidas por Kuniyoshi
Não foi também esse o caso do Japão, r ltrrrrisada, por volta de 1830. Elas maniÍès-
quando a escola dita "nativista" de Motoori t,rrrr um gosto marcado pela ênfase, o estilo
Norinaga se encarregou de separar as carac- ll:rrrrc:jante, o barroco exacerbado, a rtqüeza
terísticas específicas, a seus olhos, da cultura e Í' :Ì (:omplicação dos detalhes das roupagens,
da clllização japonesas? Foi entregando-se a rrrrril<r afastado das tradições do ukiyo-e. Estas
um diálogo apaixonado com a China que con- ('slrìrÌìpas refletem uma interpretação tenden-
seguiu fazê-lo. Motoori confronta as duas cul- r ioslì, na verdade, da China antiga, mas que se
turas, e é ao separar certos caracteres, típicos ;
r rct cndia etnográfica.
a seus olhos, da cultura chinesa - <pomposa Na época de Motoori, oJapáo náo tinha co-
verbosidade',, como ele diz, gosto do taoismo rrlrc<:imento direto ou indireto senão da China
pelas afirmações abruptas e arbitrárias - que t' rl:r (loreia. Na Europa também, a diferença
consegue, por contraste, definir a essência da t'rrllc cultura clássica e cultura antropológica
cultura japonesa: sobriedade, concisão, discri- rlt'pcnde das dimensões do mundo conhecido
çáo, economia de meios, sentimento da imper- r rcst:rs épocas respetivas.
manência e da pungência das coisas (mono no No início do Renascimento, o universo hu-
aware), relatividade de todo o saber... rÌÌ1ìlr() está circunscrito pelos limites da bacia
Esta forma de ver a China como meio de rrrt'<lil.ct-rânica. f)o resto, apenas se adivinha a
afirmar a especificidade da cultura.japonesa cxistônr:iit. Mas.jlt se percebera que não se po-
AI{ÍROPOLOGIA ;AGE AOS PROBLEIIIAS
CLAUDE LÉVI.SÌRAU55 DO IIUIIDO If,ODERNO

deria aspirar a conhecer qualquer fração da rn po<liam ser alcançadas através dos textos
humanidade sem ser por referência a outras. r rlos rnonumentos. Quanto ao Oriente e ao
Nos séculos xvllr e xIX, o humanismo alar- l',rtrclno Oriente, onde não existia a mesma
gou-se com o progresso da exploração geográ- rlrÍrcrrl<lade, o método mantinha-se o mesmo,
fica. A China, a Índia, o Japão inscrevem-se ;rois, scgundo se acreditava, civilizações táo
lentamente no quadro. Ao interessar-se hoje Lrrrgírrquas e tão diferentes apenas mereciam
pelas últimas civilizações ainda mal conheci- rrl('r'(Ìsse a nível das suas produções mais eru-
das ou negligenciadas, a antropologia permite rlrt;rs c: refinadas.

que o humanismo entre na sua terceira fase. ) domínio da antropologia compreende


(

Sem dúvida que será tambérn a última, uma r ivilizações de um outro tipo, que colocam

vez que, depois disso, o homem jâ náo terâ t;rrrrlróm problemas diferentes. Não possuin-
nada a descobrir sobre si mesmo, pelo menos rlo t:scrita, nâo fornecem documentos escri-
em extensáo (pois existe uma outra pesquisa, tos. [,ì, como o seu nível técnico é em gerral
essa emprofundidade, de que não estamos se- rrrrrito baixo, a maior parte náo deixou mo-
quer perto de atingir o fim). nunìcntos figurados. Daí a necessidade de
O problema comporta um outro aspeto. rloÍ:rl o humanismo de novas ferramentas de
Os dois primeiros humanismos, o primei- rrr vcst ieaçáo.

ro limitado ao mundo mediterrânico, depois ( )s meios de que a antropologia dispõe são


o outro englobando o Oriente e o Extremo ;r() rÌìesmo tempo mais exteriores e mais inte-

Oriente, viam a sua extensão limitada não só riolt:s (poderia dizer-se também: mais grossos
em superficie, mas também em natureza. De- c rnlris íìnos) do que os das suas antecedentes,
pois de as civilizações antigas desaparecerem, ;r Íilologi:r c a hist.írria. Para penetrar em so-
ÀNTROPOLOGIÂ FÃGE ÂOS PROBLEllAIS
CLAUDE LÉVI.SÍRÂUSS DO ttut{Do tloDlnilo

ciedades de acesso difícil, a antropologia tem r itr los corn vantagem ao e studo de todas as so-
de se colocar muito de fora (como fazem a r rrr l,rr lcs, incluindo a nossa.
antropologia física, a pré-história, a tecnolo- l\'1:rs há mais: o humanismo clássico não es-
gia) e também muito dentro, através da iden- lrl\',r ;rlxìrìas restrito quanto ao seu objeto, mas
tificaçáo do etnólogo em reÌaçáo ao grupo de t,rrrrlrtirrr quanto aos beneficiários, que forma-
que partilha a existência e a importância que r',lnr rÌ r:lasse privilegiada.
deverá atribuir
- na ausência de outros meios ( ) lrumanismo exótico do século xIX en-
de informaçâo - aos mínimos matizes da vida r,ntr':ìviÌ-se ligado aos interesses industriais e

psíquica dos indígenas. r,,nrt'r'<:izÌis que lhe serviam de suporte e aos


Sempre para câ e para lá do humanismo r;rr;ris rlevia a sua existência. Depois do huma-

tradicional, os três humanismos integram-se nrsnro:rristocrático do Renascimento e do hu-


portanto e fazent progredir o conhecimen- rrr,rrrisrno burguês do século xIX, a antropolo-
to do homem em três direções: à superfície, Flr;r nìiìrca assim o surgimento, para o mundo
claro, mas este é o aspeto mais "superficial", Írrrito cm que se tornou o nosso planeta, de
no sentido próprio e no sentido figurado. rrrrr lrrrrnanismo duplamente universal.
Em riqueza dos meios de investigação, pois A<rprocurar a sua inspiraçáo no seio das
apercebemo-nos a pouco e pouco de que, uma r,'r it'<lades mais humildes e durante muito
vez que a antropologia foi obrigada a forjar t('nrl)o desprezadas, proclama que nada da-
novos modos de conhecimento em função das rlrrilo <1tre é humano poderá ser estranho ao
características particulares das sociedades "re- Ir,rrrrcrrì. F-unda assim um humanismo demo-
siduais" que lhe foram deixadas em partilha, , r;iti<'o <1ue ultrapassa os que o precedem, cria-

estes modos de conhecimento podem ser apli- rlos p;rr':r 1rr-ivilegiados, a partir de civilizações
!ACE ÂOS PROBLEiÃAS
^ilÌROPOLOGIÀ
GTAUDE LÉVI.'ÏRÂUSS DO ilUl{DO tnODERl{O

privilegiadas. E, ao mobilizar lrtétodos e técni- ( ) lrrrmanismo antropológico será mats ca-


cas respigadas a todas as ciências para os fazer 1r,rz rlr) (lue os outros de oferecer respostas às

servir para o conhecimento do homem, apela urt('r r()g'ações que nos assaltam?
à reconciliação do homem e da natureza, num N:rs conferências seguintes, tentarei defi-
humanismo generaü zado. rn (' (lclimitar algumas grandes questões às

Se compreendo bem o tema que pedistes rlrr,ris :r ;rntropologia, creio, pode ajudar-nos
para tratar nestas conferências, a questão re- .r rlslronder. Hoje, para concluir, gostaria de
sidirá para nós em saber se esta terceira for- rrrlrrrn' uma contribuição da antropologia
ma de humanismo, que constitui a antropolo- 'lu(', l)llr'2Ì ser modesto, oferece pelo menos a
gia, se mostrará mais capaz do que as formas \,urt;rg(ÌlÌì de ser certa. Pois um dos benefícios
precedentes de trazer soluções aos grandes rl,r ,rrrtropoloeia - talvez, bem vistas as coisas,
problemas com os quais a humanidade hoje , .i{'n lrt:neficio essencial - é inspirar-nos, a
se confronta. Durante três séculos, o pensa- rr'r, 1vl1'11rbros das civilizações ricas e pode-
mento humanista tem alimentado e inspira- rr|'1,rs. rrrrra certa humildade, transmitir-nos
do a reflexão e a açâo do homem ocidental. urrr,r srrlrc(loria.
E constatamos hoje que terá sido impotente ( )s ;uìtr-opólogos existem para testemu-
para evitar os massacres à escala planetária rrlr.rr rlu(ì rÌ maneira como vivemos, os valo-
que constituíram as guerras mundiais, a misé- rr'\ ('nr <;uc :rcreditamos, náo são os únicos
ria e a subalimentaçáo que chacinam de lorma lr{}\srvt'is; <1rre outros géneros de vida, ou-
crónica uma grande parte da'Ibrrzr habitada, rr,:r sisl(ÌrÌì:rs de valores permitiram, permi-
a poluição do ar e da água, a espoliitçãro clos t.nr irirrrl:r :r <:otnunidades humanas encon-
recursos e clas belezas n:ÌturzÌis... tr.u ir Ít'li< i<l:rrlc. A zrntropologia convida-nos
ÍÀGE ÀOS PROBLEIIAI'
^NÌROPOLOCIA
GLAUDE LÉVI.SÌRÂU53 DO IIODERIIO
'ITUNDO

assim a temperar a nossa jactância, a respei- Um <ponto ótimo de diversidqde>


tar outras maneiras de viver, a fazer que nos
coloquemos em questão através do conhe- no século xIX, o filósofo Au-
l,)rn França,
cimento de outros usos que nos espantam, grrslc Comte formulou uma lei da evolução
nos chocam ou nos repugnam - um pouco à Irrrrrr;rna chamada dos três estádios, segundo a

maneira deJean-Jacques Rousseau, que pre- r;rr:rl a humanidade teria passado por três es-
feria acreditar que os gorilas, recentemente t;rrlios sucessivos: religioso, depois metafísico,
descritos pelos viajantes do seu tempo, eram r csl:rria prestes a aceder a um terceiro está-
homens, a correr o risco de recusar a quali- rlio, llositivo e científico.
'l:rlvez a antropologia nos revele uma evo-
dade de homens a seres que, talvez, revelas-
sem um aspeto ainda desconhecido da natu- lrrr;lio do mesmo tipo, embora o conteúdo e a
reza humana. sigrriÍìcação de cada estádio difiram dos conce-
As sociedades que os antropólogos estu- lritkrs por Comte.
dam administram lições ainda mais dignas de Sabemos hoje que os povos qualificados
serem escutadas por, através de todas as espé- (onìo "primitivo5", ignorando a agricultura e
cies de regras onde, drzia-o há pouco , erraría- rr p:rstorícia, apenas praticando uma agricultu-
mos em apenas ver superstições, terem sabido lrr rudimentar, por vezes sem conhecimento da
realizar entre o homem e o meio natural um ol:rria e da tecelagem, vivendo principalmente
equilíbrio que nós jâ nãto sabemos assegurar. rllr r::rça e da pesca, da colheita e armazenagem
Deter-me-ei um pouco sobre este ponto. rlc produtos selvagens, náo são atormentados
pclo receio de morrer de fome e pela angústia
rlc niro <rnseguirem sobreviver num meio hostil.
ÂI{TROPOLOGIÀ ]AGE AOS PROBLEIIAS
CLÀUDE LÉYI.gTRÀUS5 DO tlultDo l$oDERl{o

O seu pequeno efetivo demográfico, o seu rrrrrrrrkr exterioç como almofadas amortece-
conhecimento prodigioso dos recursos natu- r lor':rs, crenças, sonhos, ritos, numa palavra,

rais permite-lhes viver no meio daquilo que torlrrs estas Íbrmas de atividade a que chama-
não hesitaríamos, sem dúvida, em chamar r r;uÌìos religiosas e artísticas.
abundância. E, no entanto - estudos minucio- Admitimos que, sob estes aspetos, a huma-
sos mostraram-no na Austrália, na América do rrrrl:r<le viveu num estado comparável durante
Sul, na Melanésia e em África -, duas a quatro rt'r rrl{)s, milénios. Observamos então que, com
horas de trabalho quotidiano são amplamente ,r ;rg'r'icultLLra, a pastorícia, depois a industria-
suficientes aos seus membros ativos para asse- Irz;rqiro, ela se <engatou>, se ouso dizê-lo, cada
gurarem a subsistência de todas as famílias, in- \'('r rÌÌais com o real. Mas, no século xlx e até
cluindo as crianças e os velhos que ainda náo lrojc, este engate operava-se indiretamente,
participam, ou que jâ nãrc participam, na pro- ;rol intermédio de conceções filosóficas e ideo-
dução alimentar. Que diferença em relação ao logir:as.
tempo que os nossos contemporâneos passam Oompletamente diferente é o mundo em
na fábrica ou no escritóriol (lu(' penetramos hoje: mundo em que a hu-
Seria portanto falso acreditar que estes po- rrr:rrridade se encontra abruptamente confron-
vos são escravos dos imperativos do meio. Bem t:rrl:r com os determinismos mais duros. Estes
pelo contrâno, gozam em relação ao meio de s;ro lcsultado do seu enorme efetivo demográ-
uma maior independência do que os cultiva- lrr o, <la quantidade cada vez mais limitada de
dores e os pastores. Dispõem de mais diverti- ('ril)irço livre, de ar puro, de água não poluída
mentos que lhes permitem conceder um largo rlr' <;rrc clispire pa"ra satisfazer as suas necessi-
papel ao imaginário, interpor entre eles e o r l;rrlt:s lriolíruicas c 1lsí<ltriczrs.
AT{TROPOIOOIÀ FAGE AO5 PROBIÊMA5
GLAUDE LÉVI-gÌRAUSg DO f,lUl{DO trlODEnìlO

Neste sentido, poderemos perguntar se I,lste divórcio será irrevogável? O nosso


as explosões ideológicas que se produzem rrrrrrrdo talvez se dirija para um cataclismo
desde há mais ou menos um século e que se rllrrrográfico ou uma guerra atómica que ex-
continuam a produzir - as do comunismo lclrrrinará três quartos da humanidade. Neste
e do marxismo, a do totalitarismo, que náo í ini(), o quarto restante encontrará condições
perderam a sua força no terceiro mundo, a rlc t'xistência que não serão assim tão diferen-
mais recente do integrismo muçulmano - trs rl:rrluelas das sociedades em vias de extin-
não constituem reações de revolta perante as r,;ro rlr: que falei.
condições de existência em rutura brutal com Mrrs, mesmo afastando hipóteses tão ater-

as do passado. r,rrlolrs, poderemos perguntar se as socieda-


Produziu-se um divórcio, cavou-se um rlrs rlrrt: se tornam enormes, cada uma por si,
fosso entre os dados da sensibilidade, que r'(lu('1t:ndem a tornar-se semelhantes umas às
jâ nâo têm para nós uma significação geral nnlr:rs, nãro recriarão fatalmente, no seu pró-
fora daqueles, restritos e rudimentares, que 1rr ro scio, diferenças situadas sob outros eixos

nos fornecem sobre o estado do nosso orga- rlilr niro aqueles onde se desenvolvem as seme-

nismo, e um pensamento abstrato onde se llr,trrr,,:rs. 'lalvez exista um ponto ótitno de diuer-

concentram todos os nossos esforços para tt,l,trl,'(1r(ì, sempre e em todo o lado, se impo-
conhecer e para compreender o universo' Itlr.r ,r lrrrrrr:rnidade para que ela se mantenha
Nada nos afasta mais destes povos que os \i,n't'|. l,,slt: ponto ótimo variaria em função
antropólogos estud arn, para quem cada cor, rl, rrnnr('r'() rle sociedades, da sua importân-
cada textura, cada odor, cada sabor tem um I l;l ililrrrti|ir:ll, <lo seu afastamento geográfico e

sentido. rl,,r urcios rlt: <:onrunicação de que disporiam.


A Â1IÌROPOLOOIÂ FACE AOS PROBL!TÂg
GLAUDE LÉVI.5ÍRÂU59 DO ttuilDo flloDERt{O

Pois este problema da diversidade não se co-


interna ou acidente favorável, mas apenas da
vontade de não ficar aquém de um grupo vi-
loca somente a respeito das culturas encara-
das nas suas relações recíprocas' Coloca-se zinho que submetia a normas precisas um do-

também em cada sociedade que junta no seu rnínio de pensamento ou de atividade, sobre o
r;ual não se sonhara promulgar regras.
seio grupos ou subgrupos que náo sáo homo-
géneos: castas, classes, meios profissionais ou A atenção e o respeito dirigidos pelo an-
confessionais... Estes grupos desenvolvem en-
tropólogo às diferenças entre as culturas e
t:rmbém àquelas que lhe são próprias consti-
tre si diferenças às quais cada um atribui uma
Iuem o essencial da sua atividade. O antropó-
grande importância, e pode acontecer que
krgo não procura assim estabelecer uma lista
esta diversidade interna tenda a crescer' en-
quanto a sociedade se torna mais volumosa e rlc receitas onde cada sociedade iria servir-se
sr'55undo o seu capricho, de cada vez que per-
mais homogénea sob outros aspetos'
clresse no seu seio uma imperfeição ou uma
Sem dúvida que os homens elaboraram r

culturas diferentes devido ao afastamento lrrcrrna. As fórmulas próprias a cada sociedade


ruio são transponíveis para outra qualquer.
geográfico, das características particulares do
meio onde se encontravam, da sua ignorância A antropologia convida somente cada so-
r icrl:rde a nã.o acreditar que as suas institui-
em relaçáo a outros tipos de sociedade' Mas'
( ()('s, os seus costumes e as suas crenças são
a par das diferenças devidas ao isolamento'hâ
aquelas, de igual modo importantes' devidas
,s rirricos possíveis; dissuade-a de imaginar
,;rrt', pclo fàcto de acreditar que são bons, es-
à proximidade: desejo de se oporem' de se
l,rs irrslit.triçõres, estes costumes e estas crenÇas
distinguirem, de serem eles mesmos' Muitos
rst;ir r insr:r'itos na nature za das coisas e que se
costumes nasceram , rtâo de uma necessidade
 ÂlrÌRopoLoGtÀ FÀcE Ãog PRoBLEInÂg
GLÂUDE LÉVI.STRAUSS DO fltUÍ{DO lilODERllO

poderá impunemente impô-los a outras so- rrrrrito longe e sem experiência anterior, ter sa-

ciedades cujo sistema de valores é incompatí- lrirkr penetrar a sua estrutura e ter-lhe evitado

vel com o seu. rrrrr afundamento cujas consequências teriam

Drziahá pouco que a mais alta ambição da sirl<r ainda mais trágicas, talvez, do que a da
r lcllota militar.
antropolo gta é inspirar aos indivíduos e aos
(lomo primeira lição, a antropologia en-
governos uma certa sabedoria. Não vos posso
oferecer melhor exemplo do que o testemu- sirur-nos que cada costume, cada crença, por

nho de um antropólogo americano que foi Pu- rrrrrilo chocantes e irracionais que nos possam

blic Nfairs Officer do general MacArthur, du- l):u('cer quando os comparamos com os nos-
rante a ocupação do Japão. Li uma entrevista ros, ÍIzem parte de um sistema cujo equilíbrio

sua onde conta como a publicaçáo, em 1946, nrl('r'rÌo se estabeleceu ao longo dos séculos, e

rlrrr', tleste conjunto, náo se pode suprimir um


do célebre livro de Ruth Benedict, The Chry-
santhemum and the Sword, dissuadiu o ocupante
rlcrrrcrtto sem nos arriscarmos a destruir tudo

americano de impor ao Japão a abolição do n rcslo. Mesmo que não nos trouxesse outros

regime imperial, contrariamente à sua primei- crrsirurrnentos, este só por si bastaria para jus-

ra intenção. Ruth Benedict, que conheci bem, Irlrr:rr <r lugar cadavez mais importante que
nunca fora ao Japão antes de escrever o seu ,r,nrtr'opoloeia ocupa entre as ciências do ho-

livro; e, tanto quanto sei, trabalhara em domí- nr('rÌÌ (' rla sociedade.

nios muito diferentes. Mas era antropóloga e,


portanto, poderemos atribuir ao espírito an-
tropológico, pela sua inspiraçáo e pelos seus
métodos, mesmo abordando uma culturzt clc:
II

Três grandes
problemas
contemporâneos:
a sexualidade,
o desenvolvimento
.2'
economlco e o
pensamento mítico
a minha primei-
ra conferência,
disse que tenta-
ri:r clefinir e delimitar alguns problemas que
sc colocam ao homem moderno e para a so-
lrrr iro dos quais o estudo das sociedades sem
cs<r'ita pode em parte contribuir. Para isso,
tcrr:i de considerar estas sociedades sob três
;rrrr{ulos: a sua organização familiar e social, a
srr;r vida económica e, por fim, o seu pensa-
rrrt'rr1o religioso.
(.)uando se abordam de um ponto de vista
rrrrrito {reral as características comuns às socie-
,l;rr lt's (luc os :utt.ropólogços estudam, impõe-se
r rrrr:r r'orìsllrIu<;iro: tal r:Orno incliquei brevemen-
ÂIIÍROPOLOGIÂ FÂCE ÀOS PNOBLEIIÂS
CLÂUDE LÉVI-SÌRÀU5S DO tf,UNDO ftlODERl{O

te, estas sociedades fazem apelo ao parentesco lrr':rçãro lógica. Uma vez concebido este quadro,
de uma forma muito mais sistemática do que 1rt'r'rnite distribuir os indivíduos por categorias
acontece hoje em dia entre nós. ;rrt'r:stabelecidas, atribuindo a cada um o seu
Em primeiro lugar, utilizam as relações de Irrg:rl no seio da família e da sociedade.
parentesco e de aliança para definir a perten- l'or fim, estas relações e estas noções com-
ça ou a náo pertença ao grupo. Muitas destas l)('notram todo o campo da vida e das ativi-
sociedades recusam aos povos estrangeiros a rllrrlcs sociais. Reais, postuladas ou inferidas,
qualidade de seres humanos. E, se a humani- rrrrlrlicam direitos e deveres bem definidos, di-
dade para nas fronteiras do grupo, reforça-se Iclt:ntes para cada tipo de parentes. De uma
no interior com uma qualidade suplementar: Íorrrra mais geral, poderá dizer-se que, nestas
os membros do grupo não são somente os úni- rocicdades, o parentesco e a aliança constituem
cos humanos, os únicos verdadeiros, os únicos rrrrrir linguagem comum, própria para exprimir
excelentes. Não são somente concidadãos, mas to<las as relações sociais: económicas, políticas,

parentes, de facto ou de direito. tt'ligiosas, etc., e não somente familiares.


Em segundo lugar, estas sociedades pen-
sam o parentesco e as noções que se lhe ligam
como anteriores e exteriores às relações bioló- Genilor, empreslodoro de útero
gicas, tal como a filiação pelo sangue, às quais a filioçoo sociql
nós próprios tendemos a reduzi-las. Os laços
biológicos fornecem o modelo sobre o qual são A primeira exigência que se impõe às so-
concebidas as relações de parentesco, mas estas r ir'<la<lcs humanas é a de se reproduzirem,

oferecem ao pensamento um quadro de classi- rlito <lc orrtr:t lìlrrn;r, cle se mzrnterem no tem-
ÃÌtïRoPotoorà FÃcE Âos pnoBLEillaS
CLÂUDE LËVI-'ÌRAUSS DO IIIUIIDO MODERÌIO

po. Toda a sociedade deverá portanto possuir De que se trata precisamente? É a partir
uma regra de filiação que permita definir a rlc agora possível - ou, para certos procedi-
pertença de cada novo membro ao grupo; um rììcntos, tornar-se-á em breve - fornecer filhos
sistema de parentesco que determine a forma iÌ um casal em que um dos membros, ou am-
de classificar os parentes, consanguíneos ou Iros, são estéreis, empregando diversos méto-
aliados; por fim, regras que definam as moda- <los: inseminaçãoartificial, doação de óvulo,
lidades da aliança matrimonial que estipulem crnpréstimo ou aluguer de útero, congelação
quem pode e quem não pode casar-se. Toda a rlc embrião, fecundaçáo in aitro conir esperma-
sociedade deverá também dispor de mecanis- tozoides provenientes do marido ou de um
mos para remediar a esterilidade. ()lltro homem, um óvulo proveniente da espo-
Ora, é este problema dos remédios para srÌ ou de uma outra mulher.
a esterilidade que se coloca de forma muito As crianças nascidas destas manipulações
aguda nas sociedades ocidentais, a partir do poderão assim, segundo os casos, ter um pai e
momento em que se descobriram meios para rrrna mãe como é normal, uma mãe e dois pais,
assistir a procriação, ou obtê-la artificialmente. rlrras mães e um pai, duas mães e dois pais, três
Não sei como se passa no Japão. Mas a ques- um pai e mesmo três máes e dois pais,
rrrires e
tão obceca os espíritos na Europa, nos Esta- <;rrando o genitor não é o mesmo homem que
dos Unidos, na Austrália, países onde foram o 1>:ri e quando três mulheres intervêm: uma
oÍìcialmente constituídas comissões para a de- rl:rndo um óvulo, outra emprestando o útero e
baterem. Destes debates, as assembleias par- ()u1r-iÌ que será a mãe legal da criança...
lamentares, a imprensa e a opinião fazem um lÌ não é tudo, pois encontramo-nos con-
grande eco. Íì'onl:rclos corn sitrr:rções em que uma mulher
CLÀUDE LÉVI-S,RÂUSS ÀIIÌROPOLOGIA FÃCE ÃOg PROBLEIIÃS
DO IIODERNO
'NUTDO

l)cde para ser inseminada com o esperma con_


r ontrário, o Código Napoleão, fiel ao velho
gelado do seu marido defunto, ou
então duas
lrlovérbio Pater is est quem nuptiae demonstrant,
muÌheres homossexuais pedem a possibilida_
tlccide que o marido da mãe é o pai legal da
de de terem juntas uma criança proveniente
r ri:rnça. Mas o direito francês contradiz-se a
do óvulo de uma clelas, fecundado artificial_
si mesmo, pois uma lei de 1972 autoriza as
mente por um dador anónimo e, em
seguida, :rçires em busca da paternidade. Social ou
implantado no útero da outra. Tàmbém
não lriológica, não se sabe assim qual a relação
se vê por que razão o esperma
congelado de (lue prevalece sobre a outra.
um bisavô não poderia ser utilizado um
século É u- facto que, nas sociedades contempo-
mais tarde para fecundar uma bisneta;
o bebé r'âneas, a ideia de que a filiação depende de
seria então tio-avô da sua mãe e irmão
do seu rrm laço biológico tende a prevalecer sobre a
próprio bisavô.
t;rre vê na filiação um laço social. Mas como
Os problemas assim colocados são
de duas rcsolver então os problemas colocados pela
ordens, uns de naturezajurídica, os
outros de
lrlocriação assistida em que, precisamente, o
natureza psicológica ou moral.
lrai legal já náo é o genitor da criança, e a mã.e,
Sob o primeiro aspeto, os direitos clos paí_ rro sentido social e moral do termo, não forne-
ses eur-opeus contradizem_se.
No direito in_ r:eu ela própria o óvulo, nem talvez o útero no
qlês, a paternidade social
não existe, mesmo <1ual se desenrola a gestação?
como ficção jurídica, e o dador de
esperma Por outro lado, quais serão os direitos e os
pocleria portanto legalmente reivinclicar
a <lcveres respetivos dos pais sociais e biológi-
cri:rnça ou, então, ser obrigado a
providen_ ('()s, u par-tir cle zrsora dissociados? Como de-
ciar' ìrs srrzìs necessiclacles. Itm Fr:rnça,
pekr vt'r':i <lc<:i<lir- rrnr tlibrrnal se a enìprestaclora d<t

Íì,1
à AI{IROPOLOOIA FAGE ÂOS PROBLEilÃ5
GTAUDE LÉVI.5ÌRÂUSS DO IÃUIIDO IIODERNO

útero der à luz uma criança malformada e se que deseje ser fecundada com o esperma con-
o casal que apelou aos seus serviços a recusar? gelado do seu marido defunto. E a opinião
Ou inversamente, se uma mulher fecundada torna-se francamente negativa se se tratar de
com o esperma de um marido se arrepende e um casal que deseje ter uma criança depois
pretende guardar a criança como sua? da menopausa da mulher, de uma mulher só,
Por fim, independentemente de qual seja ou de um casal homossexual que deseje ter
a prâtica, a partir do momento em que é pos- um filho.
sível, poderá ser livremente empregada, ou a De um ponto de vista psicológico e moral,
lei deverá alutorizar umas e proibir as outras? parece que a questão essencial é a da trans-
Em Inglaterra, a comissão chamada Warnock parência. A dádiva de esperma ou de óvulo, o
(segundo o nome da sua presidente) recomen- empréstimo de útero deverão ser anónimos,
dou que se proibisse o empréstimo do útero, ou os pais sociais e, eventualmente, a própria
baseando-se numa distinção entre a materni- criança poderão conhecer a identidade dos
dade genética, a maternidade fisiológica e a intervenientes? A Suécia renunci<tu ao ano-
maternidade social e considerando que, das nimato, a tendência inglesa parece ir no mes-
três, é a maternidade fisiológica que cria o laço mo sentido, enquanto em França a opinião e
mais íntimo entre a mãe e a criança. Embora a lei vão em sentido oposto. Mas mesmo os
a opinião francesa aceite maioritariamente a países que admitem a transparência parecem
procriação assistida para permitir que um ca- de acordo com os outros para dissociar a pro-
sal casado resolva um problema de esterilida- criação da sexualidade, poder-se-ia mesmo
de, torna-se indecisa no caso de um casal que drzer da sensualidade. Pois, para se limitar
viva em união livre e no caso de uma mulher ao caso mais simples, o da dádiva de esper-
A ÂIIÌROPOLOOTA FÂGE ÀOS PROBLE'NA3
CLÂUDÊ LÉYI-5TNAUS9 DO ÀlUl{DO tIODERilO

ma, a opinião pública náo a acha admissível lher estéril. A menina resultante desta união
a náo ser que tenha lugar no laboratório e Íôi rodeada de uma ternura igual pelos dois
pela intervenção de um médico: método ar- t;asais que viviam no mesmo prédio e toda a

tificial que exclui entre o dador e a recetora sente à sua volta conhecia a situação.
qualquer contacto pessoal, qualquer partilha Foram portanto as novas técnicas de pro-
emotiva e erótica. Ora, tanto para a dádiva criação assistida, tornadas possíveis pelo pro-
de esperma como para a do óvulo, a preo- Í{resso da biologia, que puseram em alvoroço
cupação com que as coisas se passem no ano- o pensamento contemporâneo. Num domínio
nimato parece contrâria a dados universais cssencial para a manutenção da ordem social,
que, mesmo nas nossas sociedades, mas sem iìs nossas ideias jurídicas, as nossas crenças
o dizer, fazem que este género de serviço rnorais e filosóficas mostraram-se incapazes
se preste, muito mais frequentemente do de encontrar respostas para situações novas.
que aquilo que se crê, "em família". A títu- Clomo definir a relaçáo entre o parentesco bio-
lo de exemplo, citarei um romance inacaba- lírgico e a filiação social, tornados agora dis-
do de Balzac, começado em 1843, época em tintos? Quais serão as consequências morais e
que os preconceitos sociais eram muito mais sociais da dissociação da sexualidade e da pro-
fortes do que na França atual. Intitulado, de criação? Será preciso reconhecer, ou não, o di-
forma significativa, Les Petits Bourgeoìs, este reito do indivíduo a procriar, se assim se pode
romance muito documental conta como dois clizer, "sozinho"? Uma criança tem o direito de
casais amigos, um fecundo, o outro estéril, se ar:eder às informações essenciais a respeito da
entenderam: a mulher fecunda encarrega- origem étnica e da saúde genética do seu pro-
-se cle fazer um filho com o marido cla mu- <;r'iaclor? Até que ponto e com que limites se
à ANÌROPOIOGIA FÂCE ÀOS PROBLEI'TAS
CLÂUDE LÉVI.SÌRAU'S DO tvlUl{DO fflODERt{O

podem transgredir as regras biológicas que os :r Sra. Françoise Héritier-Augé, que me suce-

fiéis da maior parte das religiões continuam a rlcu no Collège de France. Nesta sociedade,
entender como uma instituição divina? r:rcla menina é casada muito cedo, mas, an-
Ics de ir viver em casa do seu esposo deverá,
rlrrlante três anos ou mais, ter um amante da
srra escolha, oficialmente reconhecido como
Procrioçóo odificiql; mulheres virgens
e cqsois homossexuois t:rl. Ela leva ao seu marido o primeiro filho
rurscido pela intervenção do seu amante, mas

Sobre todas estas questões, os antropólo- <lrre será considerado como o primogénito
rl:r união legítima. Por seu lado, um homem
gos têm muito a dtzer, uma vez qlÌe as socie-
dades que estudam tiveram estes problemas poclerá ter várias esposas legítimas, mas, se

e ofereceram-lhes soluções. Evidentemente, t'l:rs o deixarem, manter-se-á como pai legí-

estas sociedades ignoram as técnicas moder- tirno de todas as crianças que elas venham a
tr:r- depois. Noutras populações africanas, o
nas de fecundaçá o in aitro , de recolha de óvulo
ou de embrião, de transferência, de implan- rn:rrido tem também um direito sobre todas
;rs crianças futuras, com a condição de esse
taçâo e de congelação. Mas imaginaram e pu-
seram em prática fórmuÌas equivalentes, pelo rlircito dever ser reinstaurado após cada nas-
menos sob os ângulos jurídicos e psicológicos. <'irnento, através da primeira relaçáo sexual

Permiti-me dar alguns exemPlos. Ito.sl, partum. Esta relação designa o homem

A inseminação com dador tem o seu rlrrc ser'á o pai legal da próxima criança. Um

equivalente em África, entre os Samo do Irorncrn czrsaclo cu.ja mulher é estéril poderá
rr, rrr crl ia n t.e p:ì g:ÌrÌìento, entender-se com
Rurkina Faso, estudados pela minh:r coleS;:r, : r ss i r
A ANÌROPOLOOIA FAGE AOS PROBLE'IIAS
CLAUDE LÉVI-gÍRAUS5 DO ÌtUt{DO i,lODEnNO

uma mulher fecunda para que ela o designe. rnaternidade individuais são ignoradas, ou
Neste caso, o marido legal é dador insemina- rrão são tidas em conta.
dor e a mulher aluga o seu ventre a um outro Regressemor aÁfri.u, oncle os Nuer do Su-
homem, ou a um casal sem filhos. A questão, <liro assimilam a mulher estéril a um homem.
incandescente em França, de saber se a em- Na qualidade de "tio paterno,', ela recebe as-
prestadora do útero o deverâ fazer gratuita- sirn as cabeças de gado que representam o
mente ou receber uma remuneração não se <preço da noiva" (em inglês, bride price) pago
coloca portanto aqui. pelo casamento das suas sobrinhas e serve-se
Entre os Índios Tupi-Kawahib do Brasil, <lele para comprar uma esposa que lhe dará a
que visitei em 1938, um homem pode despo- cle filhos, graças aos serviços remunerados de
sar simultaneamente ou em sucessão várias ir- rrm homem, frequentemente um estrangeiro.
mãs, ou uma mãe e a sua filha de uma união lÌntre os Yoruba da Nigéria, as mulheres ricas
precedente. Estas mulheres criam em comum lrodem, também elas, adquirir esposas que le-
os seus filhos sem se preocuparem, ao que me vrÌm a relacionar-se com um homem. Quan-
pareceu, com o facto de a criança de que esta <lo os filhos nascem, a mulher, <<esposo> legal,
ou aquela mulher se ocupa ser sua ou de uma rcivindica-os, e os procriadores reais, se quise-
outra esposa do seu marido. A situação simé- lcm ficar com eles, deverão pagá-los genero-
trica prevalece no Tibete, onde vários irmãos s:rmente.
têm em comum uma única esposa. Todos os Em todos estes casos, os casais formados
filhos sáo atribuídos ao mais velho deles, a por duas mulheres e às quais, falando lite-
quem chamam pai. Chamam tios aos outros lalrnente, chamaríamos homossexuais, prati-
maridos. Em tais casos, a paternidade ou a ('irtÌì :Ì pr-ocriaçãro assistida para terem filhos
 ÂII'ROPOIOEIA FAGE ÀOS PROBLEIIÂ5
CLÂUDE LÉVI.SÌRAUSS DO I'IODERI{O
'NUNDO

de que uma das mulheres será o pai legal e a írltimo tinha fornecido a compensação matri-
outra a nirâe biológica. rnonial criadora da filiação.
As sociedades sem escrita conhecem tam- Embora, em todos os exemplos que dei, o
bém equivalentes da inseminação post mortem cstatuto familiar e social da criança se deter-
que os tribunais franceses proíbem, enquan- rnine em função do pai legal (mesmo que este
to, em Inglaterra, a comissão Warnock pro- seja uma mulher), esta criança não deixa por
põe que uma lei exclua da sucessão e da he- isso de conhecer a identidade do seu genitor,
rança do pai todo o filho que não se encontre rÌem os laços de afeto que os unem. Ao con-
no estado de feto no útero da mãe, na altura trário daquilo que receamos, a transparência
da morte do seu marido. E, no entanto, uma rrão suscita, Íra criança, um conflito resultante
instituição testemunhada desde há milénios <lo facto de o procriador biológico e o seu pai
(pois já existia entre os antigos hebreus), o social serem indivíduos diferentes.
levirato, permitia e mesmo, por vezes, irnpu- Estas sociedades também não experimen-
nha que o irmão mais novo engendrasse em t:rm um receio do género daquele que é susci-
nome do seu irmão morto. Entre os Nuer su- lado entre nós pela inseminação com o esper-
daneses de que falei, se um homem morresse rÌìa congelado do marido defunto, ou mesmo,
celibatário ou sem descendência, um parente Íìrlando teoricamente, de um antepassado
próximo poderia descontar sobre as cabeças :rÍirstado: para muitas de entre elas, é suposto
de gado do defunto o necessário para com- os fìlhos serem a reencarnação de um antepas-

prar uma esposa. Este "casamento fantasma,,, sacl<), que escolheu voltar a viver nessa crian-
como dizem os Nuer, autotizava-o a engen- çrr. Iì <i <czÌsamento fantasma" dos Nuer admite
drar em nome do defunto, uma vez que este rrnr rcÍìn:ÌrÌìcnto srrplententar no caso em que
A ÂN'ROPOLOGIA FÀCÈ ÂOS PNOBLEMÂS
GLÀUDE LÉVI.STRÀUSS DO ittut{Do xloDERNo

o irmão, substituindo-se ao defunto, não pos- tigações antropológicas. O antropólogo não


sa engendrar por sua própria conta. O filho propõe aos seus contemporâneos que ado-
engendrado em nome do defunto (e que o tem as ideias e os costumes desta ou daque-
seu pai biológico considera portanto como seu la populaçáo exótica. A nossa contribuição
sobrinho) poderá prestar ao seu pai biológico é muito mais modesta e exerce-se em duas
o mesmo serviço. Sendo então este genitor o direções. Em primeiro lugar, a antropologia
irmão do seu pai legal, os filhos que porá no revela que aquilo que consid.eramos como
mundo serão legalmente seu primos. "naturalr', fundado na ordem das coisas, se
Todas estas fórmulas oferecem outras reduz a constrangimentos e a hábitos mentais
tantas imagens metafóricas antecipadas das próprios da nossa cultura. Ajuda-nos assim a
técnicas modernas. Constatamos assim que o livrarmo-nos das nossas palas, a compreen-
conflito que tanto nos embaraça entre a pro- dermos como e porquê outras sociedades
criação biológica e a paternidade social não podem tomar como simples e vulgares usos
existe nas sociedades estudadas pelos antro- que, a nós, parecem inconcebíveis, ou mesmo
pólogos. Elas dão sem hesitar a primazia ao escandalosos.
social, sem que os dois aspetos se confrontem Em segundo lugar, os factos que recolhe-
na ideologia do grupo, ou no espírito dos in- mos representam uma experiência huma-
divíduos. na muito vasta, pois provêm de milhares de
Se me alarguei sobre estes problemas, sociedades que se sucederam no decurso de
foi por eles mostrarem muito bem, sesundo séculos, por vezes de milénios, e que se esten-
creio, o género de contribuição que a socieda- dem por toda a extensão da Terra habitada.
de contemporânea poderá esperar das inves- Ajudzrmos:rssim a separar aquilo que pode ser
à ÃNÍNOPOLOOI FACE ÀOS PNOBLETIÀS
GLAUDE LÉVI.gÌRÂU3S DO InUt{DO ftlODERltO

considerado como os <unlversars> da natureza l'las, vluvas, ou ao serviço de casais homosse-


humana e podemos sugerir em que quadros xuais - têm o seu equivalente noutras socieda-
se desenvolverão evoluções ainda incertas, des que não se dão mal com elas.
mas que erraríamos ao denunciá-las à partida Desejam assim que se deixe fazer as coisas
como desvios ou perversões. c que se remetam à lógica interna de cada so-
O grande debate que se desenrola atual- ciedade para criar no seu seio, ou para elimi-
mente em relaçáo à procriação assistida é o de nar dele, as estruturas familiares e sociais que
saber se convém legislar, sobre o quê e em que se revelarão viáveis e aquelas que engendram
sentido. Nas comissões e noutros organismos contradições que apenas o seu uso poderá de-
instituídos pelos poderes públicos de vários monstrar que são inultrapassáveis.
países tomam lugar representantes da opi-
niáo pública, juristas, médicos, sociólogos, por
vezes antropólog,rr. É óbvio que estes agem Dos sílex do pré-históriq
em todo o lado no mesmo sentido: com uma ò cqdeio industriql modernq
grande pressa em legislar, permitindo isto e

proibindo aquilo. Passarei agora ao meu segundo capítulo: o


Aosjuristas e aos moralistas demasiado im- rla vida económica.
pacientes, os antropólogos prodigalizam con- Tâmbém neste sector, o interesse das in-
selhos de liberalismo e de prudência. Fazem vcstigações antropológicas é o de nos revelar
ver que mesmo as práticas e as aspirações que rnodelos muito diferentes dos nossos e incitar-
mais chocal;rr a opinião - procriação assistida -rros assim a refletir sobre eles, eventualmente
posta ao serviço de mulheres virgens, celibatá- rÌìcslÌÌo a pô-l<ls em czÌusuÌ.
A ANIROPOLOOIÂ FÂCË ÀOS PROBLËINA5
CLÂUDE LÉVI-5ÌRÂUSS DO IIUNDO flIODERI{O

Nas fronteiras da antropologia e da ciên- <luzem preocupações ao mesmo tempo técni-


cia económica esteve na moda um debate t::rs, culturais, sociais e religiosas.
nestes últimos anos: as grandes leis da ciência Em menor medida, não é também esse o
económica sáo aplicáveis a todas as socieda- entre nós? Se toda a atividade das socie-
r::rso
des, ou somente àquelas que, como as nossas, tlades de mercado resultasse de leis econó-
funcionam sob o regime de uma economia de rnicas, a ciência económica seria uma ciência
mercado? verificável, permitindo prever e agir, o que
Nas sociedades antigas, nas sociedades não é manifestamente o caso. Poder-se-á ver
agrárias recentes ou contemporâneas, e tam- aí a prova de que, mesmo nas condutas que
bém nas estudadas pelos antropólogos, é na rìos parecem puramente económicas, inter-
maior parte das vezes impossível separar os vêm outros fatores que apanham a ciência
aspetos a que chamamos económicos de to- cconómica em falta. Mas estes fatores perma-
dos os outros. Não se pode reduzir a ativida- lìecem escondidos perante nós por detrás de
de económica revelada pelos membros destas trma tela de pretensa racionalidade, e o es-
sociedades a um cálculo racional, cujo único t.udo de sociedades diferentes, que lhes dão
objeto seria o de maximizar os ganhos e mini- rnaior importância, ajuda-nos a pô-los em
rurizar as perdas. Nestas sociedades, o trabalho cvidência.
não serve apenas para realizar um lucro, mas Qr" nos revelam elas então? Em pri-
também - talvez devêssemos dizer sobretu- rneiro lugar, e contrariamente àquilo que se

do - para adquirir prestígio e contribuir para pocleria pensar, uma espantosa capacidade
o bem da comunidade. Atos que, para nós, te- l)iÌr.;Ì r-esolver problemas de produção. Mes-
riam um carácter puramente económico tra- rìì() ÍÌori tcrnpos Ionuín<1uos cla pré-história,
A AI{ÌROPOLOGIA FA€E AOT PROALEftIAS
GTAUDE LÉVI.'TRAUSg DO tUltDO tloDERito

os homens souberam entregar-se em grande rrrjo trabalho era exigido para construir as
escala a atividades industriais. Conhecem-se cidades e os monumentos maias do México
em França, Íra Bélgica, na Holanda, na In- t' da América Central podiam viver no local
glaterra, locais arqueológicos de várias deze- lctirando a sua subsistência de uma pequena
nas de hectares, crivados de poços de mina lrsricultura fàmiliar dispersa, como a que é
para a extraçáo do sílex e onde trabalhavam praticada pelos camponeses maias atuais.
operários às centenas, provavelmente orga- Graças às fotografias tiradas de avião e pelos
nizados em equipas. Os nódulos de sílex pas- satélites, sabemos desde há algum tempo que
savam por oficinas tão especializadas como rr:r região maia e em diversas regiões da Améri-
os postos de uma cadeia industrial moder- t it do Sul - Venezuela, Colômbia, Bolívia - exis-
na. Em certas oficinas, era partida a natérta- tiam sistemas agrícolas muito aperfeiçoados.
-prima, noutras eram aparelhados os frag- I jrn deles, na Colômbia, remonta a uma época
mentos, ainda noutras eram desbastadas as <1rre vai do início da era cristã até ao século vtt.
peças, para lhes dar uma f-orma definitiva: No final deste período, estendia-se sobre duzen-
picaretas de mineiro, martelos, machados, tos mil hectares de terras inundáveis, drenadas
etc. Estes centros mineiros e industriais ex- lrol milhares de canais, entre os quais se cul-
portavam os seus produtos até centenas de liv:rva a terra sobre terraços artificialmente er-
quilómetros em redor, o que supunha uma grridos. Juntamente com a pesca nestes canais,
organização comercial poderosa. t'st:r agricultura intensiva podia alimentar mais
A antropologia fornece indicações do rk' rnil habitantes por quilómetro quadrado.
mesmo tipo. Interrogámo-nos durante mui- A :rntr'opologia revela contudo um para-
to tempo como é que populações nuÍnerosas, <l<rx<r. lÌris, a l):Ìl' (;orÌì estas grandes realtza-
A ANTROPOLOGIA FAGE AO5 DROBLEÌIÀg
CLAUDE LÉVI.SÌRAU5S DO fllUl{DO tIODEnNO

ções testemunhando aquilo a que, na nossa Em níveis e domínios muito variados, as

linguagem, chamaríamos uma mentalidade sociedades humanas observam assim, em ma-


produtivista, existem outras que constituem téria económica, atitudes heterogéneas. Não
a sua contrapartida. Estes mesmos povos, existe um modelo de atividade económica,
ou outros, sabem limitar a sua produtivida- mas vários. Os modos de produção estudados
de através de procedimentos negativos. Na pelos antropólogos - colheita e apanha, caça
África, na Austrália, na Polinésia, na Améri- e recolha, horticultura, agricultura, artesana-
ca, chefes ou sacerdotes especializados, ou to, etc. - representam outros tantos tipos dife-
então corpos de polícia organizados para rentes. É aif.l reduzi-los, como se acreditava
esse efeito possuem poderes absolutos para poder fazer, a fases sucessivas do desenvolvi-
fixar o início e a duração da caça, da pesca e mento de um modelo único conduzindo todos
da colheita de produtos selvagens. A crença, para o estádio mais evoluído: aquele que nós
muito espalhada, em <senhores" sobrenatu- próprios nos propomos como modelo.
rais de cada espécie animal ou vegetal que Nada o mostra melhor do que as discussões

castigam os culpados por extrações excessi- em curso sobre a origem, o papel e as conse-
vas contribui para a sua moderação. Da mes- quências da agricultura. Sob vários aspetos, a
ma forma, todas as espécies de prescrições agricultura representou um progresso: forne-
rituais e de tabus fazem da caça, da pesca ou ce mais alimento num espaço e num tempo
da colheita atividades graves e pesadas de dados, permite uma expansão demográfica
consequências, que exigem por parte daque- mais rápida, um povoamento mais denso,
les que as praticam uma conduta prudente e sociedades ao mesmo tempo mais extensas e
reflet.icla. rnzri s v<lltr rÌì()s:ìs.
À ÃIIÌROPOLOGIÂ FAGE ÀOS PROBIEIYIÀ'
GLAUDE LÉVI.!iTRAUSS DO tlul{Do llloDEnilo

Mas, sob outros aspetos, constitui uma re- Temos alguma dificuldade em nos colocar-
gressão. Tâl como observei na minha primei- mos sob esta perspetiva, pois, ao considerarmos

ra conferência, degrada o regime alimentar, as sociedades ditas atrasadas ou subdesenvolvi-


a partir de agora limitado a alguns produtos das, tais como elas surgiram quando estabele-
ricos em calorias, mas relativamente pobres cemos contactos com elas no século xrx, negli-
em princípios nutritivos. Os seus resultados genciamos um facto evidente: estas sociedades
sáo menos seguros, pois basta uma má colhei- não eram mais do que sobrevivências, vestígios
ta para que se instale a fome. A agricultura mutilados na sequência de perturbações que
exige também mais trabalho. Poderá mesmo nós próprios tínhamos, direta ou indiretamen-
acontecer que tenha sido responsável pela te, provocado. É a exploração ávida das regiões

propagação de doenças infecciosas, conforme exóticas e das suas populações, entre os séculos
sugere, Áfri.u, a coincidência notável, no xvr e xrx, que permite ao mundo ocidental o
"- seu desenvolvimento. A relação de estranheza
tempo e no espaço, da difusão da agricultura
e da malária. entre as sociedades ditas subdesenvolvidas e a
A primeira lição da antropologia em ma- civllizaçâo industrial consiste sobretudo no fac-
téria económica é, assim, que não existe uma to de esta civilização industrial encontrar nelas
única forma de atividade económica, mas o seu próprio produto, mas sob um aspeto ne-
várias, que não podem ser ordenadas sobre gativo que não sabe reconhecer.
uma escala comum. Elas representam, em vez A simplicidade e a passividade aparentes

disso, escolhas entre soluções possíveis. Cada destas sociedades não lhes sáo intrínsecas. Estes

uma apresenta vantagens, mas é preciso pagar caracteres são sobretudo os resultados do nosso
o seu preço. desenvolvimento no seu início, antes de se vir

t(\/
 AI{ÌROPOLOGIà FACI ÀOS PROBLEITAS
GLAUDE LÉVI-6fRAUSf DO ftlU1{DO illODEnilO

impor do exterior a sociedades previamente de ferro, ao mesmo tempo que facilitaram e


pilhadas para que o próprio desenvolvimento simplificaram o trabalho e a atividade econó-
pudesse nascer e crescer sobre as suas ruínas. mica, provocaram a ruína da cultura tradi-
Ao atacar os problemas da industrialïzaçâo cional. Por razóes complexas, no detalhe das
do s p aíse s sub de se nvolvidos, a cw rlizaçâo indu s - quais seria demasiado longo entrar, a adoção

trial encontra aí, em primeiro lugar, a imagem das ferramentas de metal provocou o afun-
deformada, e como se permanecesse congelada damento das instituições económicas, sociais
ao longo dos séculos, das destruições que lhe e religiosas, que estavam ligadas à posse e à
foi necessário primeiro consumar para que pu- transmissão dos machados de pedra. Ora, sob

desse existir. As doenças introduzidas pelo ho- forma de utensílios usados ou danificados, por
mem branco nas populações que não tinham vezes mesmo de indescritíveis fragmentos, o

contra elas qualquer imunidade riscaram do ferro viaja mais depressa e mais longe do que
mapa sociedades inteiras. Mesmo nas regiões os homens, devido às guerras, aos casamentos,

mais recuadas do planeta, onde se poderia às trocas comerciais.

imaginar que existem sociedades intactas, os


germes patogénicos, que viajam com uma rapi-
dez surpreendente, exerceram as suas devasta- Cqrócler ombíguo dq (noturezq))

ções, por vezes várias dezenas de anos antes


de
o contacto propriamente dito ter lugar' Depois de definir os quadros históricos no

se poderá dizer das matérias-


O mesmo seio dos quais se manifestam descontinuida-

-primas e das técnicas' Existem na Austrália des culturais, poderemos tentar, com menos

sociedades onde a introdução dos machados riscos cle erro, determinar as causas profun-

I09
A AIIINOPOLOGIA ÍAGE ÂO3 PROBLEflIAI'
CLÂUDE LÉVI-SÍNÂU55 DO tlultDo llloDERl{o

das da resistência que estas sociedades opõem com os missionários a jogar futebol, adota-
frequentemente ao desenvolvimento. Em pri- ram esse jogo com entusiasmo. Mas, em vez
meiro lugaq a tendência da maior parte das de procurarem a vitória de uma das equipas,
sociedades ditas primitivas para preferirem a multiplicavam os jogos até que as vitórias e
unidade aos conflitos internos; em segundo as derrotas de cada campo se equilibrassem.

lugar, o respeito que manifestam em relação O jogo não acaba como entre nós, quando há
às forças naturais; por fim, a sua repugnância um vencedor, mas quando se asseguram de
em se envolverem num devir histórico. que não haverá um vencido.
Foi muitas vezes invocado o carácter não Observações realizadas noutras socieda-

competitivo de alguma destas sociedades para des parecem ir no sentido inverso; contudo,
explicar a sua resistência ao desenvolvimento são igualmente exclusivas de um verdadeiro

e à industrralizaçã,o. Não esqueçamos, toda- espírito de competição. Assim, quando se de-


via, que a passividade e a indiferença que lhes senrolamjogos tradicionais entre dois campos
censuramos poderão ser uma consequência que representam, respetivamente, os vivos e
do traumatismo consecutivo ao contacto, não os mortos, terão necessariamente de terminar

uma condição presente desde a origem. Além com a vitória dos primeiros.
disso, aquilo que nos surge como um defeito Épot fim notável que quase todas as socie-
e como uma falta pode corresponder a uma dades ditas primitivas rejeitem a ideia de um
forma original de conceber as relações dos ho- voto tomado pela maioria das vozes. Encaram
mens entre si e com o mundo. Um exemplo a coerência social e o bom entendimento no
permitirá compreender isso. Quando os po- seio do grupo conìo preferível a qualquer ino-

vos cl<l interior da Nova Cluiné aprenderam vaçãro. A questãri litigiosa é assim retomada as

ìlt
A AI{TROPOLOOIÂ ;ACE AO' PROBLEIIÂS
GLÂUDE tÉVI.5ÍRAUSS DO TIUI{DO flIODERNO

vezes que forem necessárias até que se tome tanto, entre os povos ditos primitivos, a noção
uma decisão unânime. Por vezes, combates si- de natureza oferece sempre um carácter ambí-
mulados precedem as deliberações. Esvaziam- guo: a naturezaé pré-cultura e é também sub-
-se assim velhas querelas e apenas se passa ao cultura; mas constitui o terreno sobre o qual
voto quando o grupo, refrescado e renovado, o homem espera encontrar os antepassados,
realizou no seu seio as condições de uma in- os espíritos, os deuses. A noção de natureza
dispensável unanimidade. inclui assim uma componente "sobrenatural"
A ideia que muitas sociedades têm acerca e esta sobrenatureza estâ tão acima da cultura
da relação entre a:natureza e a cultura explica como a natureza em si mesma está abaixo.
também que estas sociedades resistam ao de- Náo nos deveremos portanto espantar
senvolvimento. Pois o desenvolvimento supõe pelo facto de as técnicas e os objetos manu-
que se faça predominar a cultura sobre a r'a- faturados serem desvalorizados pelo pensa-
tureza, e esta prioridade dada à cultura quase mento indígena sempre que se trata do es-
nunca é admitida sob esta forma, anâo ser pe- sencial, ou seja, das relações entre o homem e
las civilizações industriais. Sem dúvida, todas o mundo sobrenatural. Tânto na Antiguidade
as sociedades reconhecem que existe uma se- Clássica como na do Oriente e do Extremo
paração entre estes dois reinos. Oriente, no folclore europeu como nas socie-
Nenhuma, por muito humilde que seja, dades indígenas contemporâneas, poderão
recusa conceder um valor eminente às artes indicar-se numerosos casos onde se proíbe o
- cozinhar os alimentos, cerâmi-
da civilizaçáo emprego de objetos de fabrico local ou im-
ca, tecelagem -, através das quais a condição portados para todos os atos da vida cerimo-
humana se afasta da condição animal. No en- rrizrl e parzr diversos momentos do ritual. Ap.-

I t') I I :ì
 ÃIIÌROPOLOOIÀ FAGE ÂOg PROBLEIIAS
GLAUDE LÉVI-3fRAU5S DO XIUilDO mODERÌ{O

nas são permitidos objetos naturais, deixados mento de base, no entanto muito próprio para
no seu estado bruto, ou utensílios arcaicos. ser cultivado -, pelarazâo de lhes ser proibido
Como foi o caso da proibição do emprésti- uferir a sua mãe, a terra>.
mo com juros pelos Padres da Igreja e pelo A mesma oposiçáo entre natureza e cultura
Islão, o emprego das coisas, quer se trate de está muitas vezes na base da divisão do trabalho
dinheiro ou de outros instrumentos, deverá entre os sexos. Por muito variáveis que estas re-
conservar uma pureza primitiva. gras pareçam quando se comparam sociedades
É du -"r-a forma que será preciso inter- diferentes, elas comportam elementos constan-
pretar a repugnância em relação às transações tes que são diversamente interpretados e em
imobiliárias. Se miseráveis comunidades indí- relação aos quais apenas as aplicações diferem.
genas da América do Norte e da Austrália re- Muitas sociedades consideram que a oposição
cusaram durante muito tempo - e continuam naturezafcultura e a oposiçáo mulher/homem sâo
a recusar, em certos casos - ceder territórios homólogas. Reservam assim às mulheres as

mediante indemnizações por vezes enormes, é formas de atividade concebidas como sendo
por, segundo o próprio testemunho dos inte- da ordem da natureza, corno ajardinagem, ou
ressados, verem no solo ancestral uma ..mãer. colocando o artesáo em contacto direto com
Levando ainda mais longe este raciocínio, os a matérra. bem como a cerâmica modelada à
Índios Menomini da região dos Grandes La- mão, enquanto o homem assume as mesmas
gos, na América do Norte, embora perfeita- tarefas quando estas se exercem com a ajuda
mente ao corrente das técnicas agrícolas dos de instrumentos ou de máquinas cujo fabrico
seus vizinhos iroqueses, recusavam-se a apltcâ- atinge um certo grau de complexidade, aliás
-las à produçáo do arroz selvagem - o seu ali- vzrriírvel segundo as sociedades.

tta
À AI{ÍROPOLOGIÂ FÂG- ÂOS PROBLEIì,IÃ5
GLAUDE LÉVI'5IRAU55 DO flIUNDO ttODERt{O

<As nossqs sociedqdes sõo feitqs muito baixo nível técnico e económico podem
pqrq mudqn) experimentar um sentimento de bem-estar e
de plenitude: cada uma acha que pode ofere-
Nesta dupla perspetiva, vê-se a que ponto cer aos seus membros a única vida que merece
êvão falar de <povos sem históriao. As socieda- ser vivida.
des a que chamamos primitivas têm uma his- Há uma trintena de anos, ilustrei as dife-
tória como todas as outras, mas, ao contrário renças entre as sociedades ditas primitivas e
do que se passa entre nós, recusam-se à his- as nossas através de uma imagem que susci-
tórra, esforçam-se por esterilizar no seu seio tou muitas críticas mas, ao que creio, por ter
tudo aquilo que poderia constituir o esboço de sido mal compreendida. Propunha comparar
um devir histórico. As nossas sociedades estão as sociedades a máquinas, de que se sabe exis-
feitas para mudar, é este o princípio da sua tirem dois tipos: as máquinas mecânicas e as
estrutura e do seu funcionamento. As socie- máquinas termodinâmicas.
dades ditas primitivas surgem-nos como tal, As primeiras utilizam a energia que thes é
sobretudo, por serem concebidas pelos seus fornecida inicialmente. Se tiverem sido cons-
membros para durar. A sua abertura ao ex- truídas perfeitamente, sem que se produzam
terior é muito reduzida, domina-as aquilo a fricções e aquecimentos, poderão, em teoria,
que chamamos em francês o "espírito de pa- Íuncionar indefinidamente. Pelo contrário, as
róquia". Em contrapartida, a sua estrutura so- máquinas termodinâmicas, do tipo da máqui-
cial interna tem uma trama mais cerrada, uma na a vapor, funcionam segundo uma diferen-
composiçáo mais rica do que a das civilizações ça de temperatura entre a caldeira e o con-
mais complexas. Além disso, sociedades de rlenszrdor; pr<lcluzem muito mais trabalho do
A ÂIIÌROPOLOGIÂ FÂCE AOS PROBLEIIÂS
CLÂUDE LÉVI-STRAUSS DO fltU1{DO tlODEnilO

que as outras, mas consumindo a sua energia de arrefecimento. As nossas sociedades fun-
e destruindo-a progressivamente. cionam segundo uma diferença de potencial:
Drzia assim que as sociedades estudadas a hierarquia social que, através da história, to-

pelos antropólogos, comparadas com as nos- mou os nomes de escravatura, de servidão, de


sas sociedades modernas, mais numerosas e divisão em classes, etc. Tâis sociedades criam
complicadas, sáo um pouco como as socieda- e mantêm no seu seio desequilíbrios que uti-
des nfrias" em relação às sociedades "quentes>: Iizam para produzir ao mesmo tempo muito
sáo relógios comparados com a máquina a va- mais ordem - a cívilização industrial -, mas,
por. São sociedades que produzem pouca de- no plano das relações entre as pessoas, muito
sordem - os fisicos diriam pouca "entropia" - mais entropia.
e que tendem a manter-se indefiniclamente no As sociedades estudadas pelos antropó-
seu estado inicial (ou naquilo que imaginam logos poderão assim ser consideradas como
ser um estado inicial); o que explica que, vis- sistemas de fraca entropia, funcionando pró-
tas de fora, pareçam náo ter história nem pro- ximo do zero absoluto da temperatura histó-
gresso. rica. É aquilo que exprimimos ao dizer que
As nossas próprias sociedades não fazem estas sociedades não têm história. As socieda-
somente um grande uso de máquinas termo- des "com históriao, como as nossas, conhecem
dinâmicas; do ponto de vista da sua estrutura maiores afastamentos entre as suas tempera-
interna, parecem-se com máquinas a vapor. l.uras internas, afastamentos que são devidos
É necessário que existam nelas antagonismos iìs desigualdades económicas e sociais.
comparáveis àquele que se observa numa má- Evidentemente, toda a sociedade implica
quina a vapor, entre a fonte de calor e o órgãtr scrÌìple os clois iìspetos. São como o 1in e o
A AIITROPOLOOIA FAGE ÂO3 PNOBLElrÀS
CLÂUDE LÉVI.SÌRAUS' DO fttUilDO lloDERI{O

)ang da filosofia chinesa: estes dois princípios sobre os quais repousam de inícro são con-
opõem-se e completam-se, mas há sempre sumidos inexoravelmente. Poder-se-ia quase
yin no )ang e yang no yin. Uma sociedade é ao dizer que as nossas sociedades perdem pro-
mesmo tempo uma máquina e o trabalho que gressivamente o seu vigamento e que tendem
essa máquina fornece. Como máquina a vapor, a pulverizar-se, a reduzir os indivíduos que
fabrica entropia; como motor, fabrica ordem. as compõem à condição de átomos permutá-
Estes dois aspetos - ordem e desordem - cor- veis e anónimos.
respondem às duas formas segundo as quais se Aqueles a quem chamamos "primitivos"
pode considerar uma civilização: de um lado a ou povos sem escrita fabricam pouca ordem
cultura, do outro a sociedade. na sua cultura; por essa razão, classificamo-los
A cultura consiste no conjunto das rela- como povos subdesenvolvidos. Em contrapar-
çóes que os homens de uma civilização dada tida, fabricam muito pouca entropia na sua
mantêm com o mundo; a sociedade consiste sociedade. Em termos gerais, estas socieda-
mais particularmente nas relações que esses des são igualitárias, de tipo mecânico, regidas
mesmos homens mantêm uns com os outros. pela regra de unanimidade que eu descrevia
A cultura fabrica a ordem: cultivamos a há pouco.
terra, construímos as casas, produzimos ob- Pelo contrâno, as civilizadas, ou enten-
jetos manufaturados. Em contrapartida, as didas como tal, fabricam muita ordem na
nossas sociedades fabricam muita entropia. sua cultura, como o mostram o maquinismo
Dissipam as suas forças e esgotam-se em con- e as inumeráveis aplicações da ciência, mas
flitos sociais, lutas políticas, tensões psíquicas fabricam também muita entropia na sua so-
que fazem nascer nos indivíduos. E os valores ciedade.
A AIIIROPOLOOIA FÃGE AOS FROBLÊTÀg
CLÂUDE LÉVI.|'ÌRAU!'S DO tf,Ul{DO
'nODERl{O

O ideal seria sem dúvida uma terceira via: Íicaria liberta de uma maldição milenar que
aquela que conduzrrta a fabricar sempre mais a obriga a sujeitar os homens para que o pro-
ordem na cultura sem que fosse preciso pagá- sresso suceda. A partir de então, a história far-
-la com um crescimento da entropia na socie- -se-ia sozinha, e a sociedade, colocada de fora
dade. Dito de outra forma, e conforme preco- e acima da história, poderia gozar de novo
nizava o conde de Saint-Simon em França no desta transparência e deste equilíbrio inter-
início do século xtx, saber passar - cito - "do no de que as menos degradadas das socieda-
governo dos homens para a administração des ditas primitivas comprovam não serem
das coisas". Ao formular este programa, Saint- incompatíveis com a condição humana.
-Simon antecipava ao mesmo tempo a distin- Nesta perspetiva, mesmo utópica, a antro-
ção antropológica entre a cultura e a socieda- pologia encontraria a sua mais alta justifica-
de e sobre essa revoluçáo que se opera neste ção, uma vez que as formas de vida e de pen-
momento sob os nossos olhos com os progres- samento que estuda nâo teriam somente um
sos da eletrónica . Talvez ela nos faça entrever interesse histórico e comparativo: elas tornar-
que será um dia possível passar de uma civili- -nos-iam mais presente um destino do homem
zaçáo que inaugurou outrora o devir históri- que as observações e as análises da antropolo-
co, mas reduzindo os homens à condição de gia têm por missão salvaguardar.
máquinas, a uma civilização mais sábia que Da comparaçã"o que acabo de efetuar en-
conseguiria - como se começa a fazer com os lre dois tipos de sociedade resultam também
robôs - transformar as máquinas em homens. lições mais imediatas e de um alcance prático.
Então, tendo a cultura recebido integralmente Uma primeira consequência poderá ser
a tarefa de fabricar o progress(), zÌ s<lcieclade tiracl:r claí. Ilír modos de atividade económi-
 ANINOPOLOOIA ;AGE AOS PROBLEMAS
CLÀUDE LÉVI.gÌRÂUS3 DO I'tUilDO ISODENT{O

ca que, na ótrca do industrial e do financei- Poderemos também perguntar se o nosso


ro modernos, constituem vestígios arcaicos, Íirturo económico não exige que preservemos
obstáculos ao desenvolvimento, que merecem ou restauremos, no processo de produção, os
ser considerados com respeito e tratados com Íirtores psicológicos, sociais e morais. Os espe-
todo o cuidado. cialistas de sociologia industrial denunciam
Hoje em dia, há quem se dedique a cons- uma contradição entre a produtividade obje-
tituir bancos de genes onde se preserva aquilo tiva, que impõe o emparcelamento e o empo-
que subsiste ainda de espécies vegetais origi- lrrecimento das tarefas, a perda de iniciativa
nais, criadas durante milénios através de mo- no trabalho, o afastamento do produtor do seu
dos de produção totalmente diferentes dos produto e da produtividade subjetiva que per-
nossos. Espera-se assim diminuir os riscos de rnite ao trabalhador exprimir a sua personali-
uma agricultura reduzida a algumas espécies dade e o seu desejo de criação. Para me limitar
de elevado rendimento, mas devedoras de en- 2Ì um exemplo, um melanésio a quem as regras

riquecimentos químicos e cada vez mais vul- sociais obrigam a tratar com ostentaçâo da casa
neráveis aos agentes patogénicos. da sua irmã, ou que, pelo tamanho dos inha-
Não deveríamos ir ainda mais longe e, não mes produzidos no seu jardim, procura provar
contentes em preservar os resultados destes que se entende bem com as divindades agríco-
modos de produçáo arcaicos, assegurar-nos las, está animado de preocupações ao mesmo
de que os saberfazer (em inglês: hnow-how) rn- tempo técnicas, culturais, sociais e religiosas.
substituíveis, graças aos quais estes resultados Aquilo que o antropólogo recorda ao eco-
foram obtidos, não desaparecerão sem espe- nomista, caso ele venha a esquecê-lo, é que o
rança de regresso? hornem nãro é pÌrrzr e simplesmente incitado a
A ÂIITTOPOLOGIÂ FÂGE AO5 PROBLETÂ5
CLAUDE LÉVI.STRÀU5C DO tlultDo toDlnilo

produzir cadavez mais. Ele procura também, Quqis sõo qs qfinidqdes enlre
no trabalho, satisfazer aspirações que estão en- pensqmenlo cienlífico, histórico e mítico?
raizadas na sua :natlureza profunda: realizar-se
como indivíduo, imprimir a sua marca à maté- O tempo passa; serei portanto mais breve
ria, dar, através das suas obras, uma expressão quanto ao terceiro capítulo inscrito no meu
objetiva à sua subjetividade. programa: aquele consagrado aos ensinamen-
É sob todos estes aspetos que o exemplo tos que se poderão retirar das conceções reli-
das sociedades ditas primitivas nos pode ins- giosas mais correntes entre os povos estuda-
truir. Elas fundam-se sobre princípios que têm dos pelos antropólogos.
como efeito converter o volume das riquezas Para o antropólogo, as religiões consti-
produzidas em valores morais e sociais: reali- tuem um vasto reportório de representações
zaçáo pessoal num trabalho, estima dos pró- que, sob forma de mitos e de ritos, se aliam em
ximos e dos vizinhos, prestígio moral e social, combinações diversificadas. Salvo aos olhos dos
acordo conseguido entre os mundos natural e crentes, estas combinações parecem à primeira
sobrenatural. As investigações antropológicas vista irracionais e arbitrárias. A questão que se
ajudam a compreender melhor a necessidade coloca é, portanto, a de saber se basta ficar por
de uma harmonia entre estas diversas compo- aí e simplesmente descrever aquilo que não se
nentes da natureza humana. E, em todo o lado pode explicar, ou se, por detrás dessa desor-
onde a civilização industrial tende a destruí-la, dem aparente das crenças, das práticas e dos
a antropologia poderá colocar-nos de sobre- costumes, é possível descobrir uma coerência.
aviso e indicar-nos algumas das vias a seguir Tomando como ponto de partida os mitos
para a reconquistar. das populaçõres indípçenas do Brasil central
 ÂT{TROPOLOGIA FÂGE ÂOS DNOBLEIIÂS
CLÂUDE LÉVI'5TRAU'5 DO lltUilDO InODERI{O

que eu conheci, creio perceber que, se cada Dois amantes incestuosos, ou interditos
mito tem a aura de um relato bizarro de que um ao outro por convenções sociais, apenas
qualquer lógica está ausente, entre estes mitos conseguem unir-se na morte, que os fundirá
existem relações mais simples e mais inteligi num único corpo: eis uma história que acei-
veis do que as histórias que cada mito conta tamos facilmente porque as nossas tradições
em particular. literárias no-la tornaram familiar. O Ocidente
Mas, enquanto o pensamento filosófico e tem o romance medieval de Tristão e Isolda e

científico raciocina formulando e ligando con- a ópera de Wagner. E creio saber que a tradi-
ceitos, o pensamento mítico funciona com a çáo japonesa contém também este género de
ajuda de imagens retiradas do mundo sensível. relato.
Em vez de estabelecer relações entre as ideias, Em contrapartida, ficaríamos espantados
opõe o céu e a terra, a terra e a âgua, aluz e a com uma outra história em que uma avó cola
escuridão, o homem e a mulher, o cru e o cozi' um irmáo e uma irmã recém-nascidos, para
nhado, o fresco e o podre... Elabora assim uma fazer deles uma única criança. Esta criança
lógica das qualidades sensíveis: cores, texturas, cresce, atira um dia verticalmente uma flecha
sabores, odores, barulhos e sons. Escolhe, com- que, ao cair, a fende ao meio, separando assim
bina ou opõe estas qualidades para transmitir o irmão e a irmã que se apressam a tornar-se
uma mensagem de algum modo codificada. amantes incestuosos.
Eis um exemplo, escolhido entre centenas Esta segunda história parece-nos absurda
de outros que tentei analisar em quatro gros- e incoerente. Ora, ela existe ao lado da outra
sos volumes intitulados Mythologiques, publica- entre os Índios da América do Norte e basta
dos entre 1964 e 1971. compzrrh-las episírdio a episódio para nos con-
A AIIÌROPOLOGIA rACE ÀOS PROBLEflIAS
CLAUDE LÉVI.SÌNAUS!' DO ttultDo tloDERltO

vencermos de que a segunda história repro- como um filme cinematográfico que se pro-
duz exatamente a primeira: conta-a simples- jetaria a partir do princípio ou do fim e que,
mente ao contrário. Não teremos assim aqui no segundo caso, mostraria uma locomotiva
e ali apenas um mesmo mito, que populações a andar em marcha atrâs, enquanto o fumo
vizinhas ilustram através de relatos simétricos reentra na chaminé e se condensa progressi-
e invertidos? vamente em água.
Não haverá qualquer dúvida a esse respei- O resultado de uma tal análise é que, em
to quando, dando mais um passo, observamos Irrgar de dois mitos diferentes, agora apenas
que na América do Norte o primeiro relatcl cxiste um. Procede-se assim pouco a pouco e
pretende explicar a origem de uma constela- rrrna multidão de relatos sem significado dão

ção na qual se transformam, depois da mol'- lrrgar a objetos cada vez menos numerosos,
te, os amantes incestuosos (um pouco como, rÌriÌs que se clarificam uns aos outros. O sen-

na tradição chinesa, o Boieiro e a Tecedeir-it, tirlo dos mitos não pertence a cada um deles
sempre celebrados pela festa de Tânabata, tl<t torrurdo à parte. Somente surge quando são

Japão), ao passo que o segundo relato pt't:- r t'l:rr:ionados.

tende explicar a origem das manchas do Sol. ()s meus ouvintes talvez me perguntem
Ou seja, num caso, pontos luminosos qu(ì s(' ('nr (lue é que tais investigações poderão con_
destacam sobre um fundo escuro; e, no <lttll'tt tr ilrrrir para esclarecer os problemas atuais. As

caso, pontos escuros que se destacam solrl't' n()srilrs sociedades já não têm mitos. para re_
um fundo luminoso. Para dar conta de c;ottíi' rrlvt'r' os problemas colocados pela condição
gurações celestes inversas, conta-se porl:llll ( ) ;l Irrrrrurrrir c pelos Íènómenos naturais, dirigem-

mesma história, mas do direito ou do ltv(:ss(,i sr' :r ciôrr<:i:r ou, mais exatamente, para cada
à ÂNÌROPOLOGIA FAGE AOS PROBLEIIAS
CLÂUDE LÉVI-STNÂUg9 DO XIUNDO tlODEnilO

tipo de problema dirigem-se a uma disciplina sociedade atual. E, conforme julguemos essa
científi ca especializada. configuração social boa ou larâ, náo concebe-
Será sempre o caso? O que os Povos sem remos a revolução de 1789 da mesma forma
escrita pedem aos mitos, o que toda a humani- e aspiraremos a futuros diferentes. Noutros
dade sempre lhes pediu no decurso de cente- termos, a imagem que fazemos do nosso pas-
nas de milhares de anos, talvez de milhões de sado próximo ou distante é em grande parte
anos da sua longa história, é que expliquem a da natureza do mito.
ordem do mundo que nos cerca e a estrutura Seria ousado da minha parte estender es-
da sociedade em que se nasceu, que demons- tas reflexões ao Japão. Mas, pelo pouco que
trem como estão bem fundados e que inspirem conheço da história do vosso país, imagino fa-
a certeza confiante de que o mundo no seu cilmente que pôde acontecer o mesmo na vés-
conjunto, e a sociedade particular de que se é pera da era Meiji para os defensores do poder
membro, se manterã,o tal como foram criados shogunal e para aqueles que preconizavam a

no começo dos tempos. restauração do regime imperial. Por ocasião


Mas, quando nos interrogamos sobre a or- de um simpósio organizado em 1980 em Osa-
dem social que é a nossa, nós próprios fazemos ca pela fundação Suntory, pareceu-me mesmo

apelo à história pàra a explicar, a justificar ou que os participantes japoneses continuavam


a acusar. Esta maneira de interpretar o passa- a ter sobre a restauração Meiji interpretações
do varia em funçáo do meio ao qual pertence- divergentes: uns viam nela uma vontade de
mos, das nossas convicções políticas, das nos- abertura à vida internacional e desejavam que
sas atitudes morais. Para um cidadão francês, se pudesse ir sempre mais longe nesta via, sem
a revolução de 1789 explica a confìguraçãro da hesitaçã<1, sem nostalgia nern remorso; outros,
A ANÌROPOLOGIA FÂGI ÀO3 PROSLETÂS
CLAUDE LÉVI.!'tNAUSS DO tÂUilDO ttODERilO

pelo contrârio, viam nesta abertura uma for- ma história, cujos episódios são dispostos de
ma de conquistar ao Ocidente as suas armas outra forma. Inversamente, acreditamos que
para poder eventualmente resistir-lhe e con- há apenas uma História, quando na realidade
servar a cultura japonesa com as suas caracte- cada partido político, cada meio social, cada
rísticas específicas. indivíduo por vezes conta uma história dife-
Chegamos assim a perguntarmo-nos se rente e utíliza-a, contrariamente ao mito, para
uma história obietiva e científica é possível ou dar a si próprio razões para esperar, não que o
se, nas nossas sociedades modernas, a histó- presente reproduza o passado e que o futuro
ria nâo desempenhará um papel comparável perpetue o presente, mas que o futuro difira
ao dos mitos. Aquilo qì-le os mitos fazert pelas do presente da mesma forma que o próprio
sociedades sem escrita - legitimar uma ordem presente diferiu do passado.
social e uma conceção do mundo, explicar A comparação rápida a que acabo de me
aquilo que as coisas são através daquilo que entregar entre as crenças dos povos a que se
elas foram, encontrar a justificação do seu es- chamam primitivos e as nossas leva-nos a com-
tado presente num estado passado e conceber preender que a História, tal como as nossas
o futuro em função, ao mesmo tempo, deste civilizações a utilizam, exprime menos verda-
presente e deste passado - é também o papel des objetivas do que preconceitos e aspirações.
que as nossas civilizações atribuem à história. Tâmbém neste caso, a antropologia adminis-
Porém, com uma diferença: como tentei tra-nos uma liçáo de espírito crítico. Faz-nos
mostrar através de um exemplo, os mitos pa- compreender melhor que o passado da nossa
recem contar cada um uma história diferente, própria sociedade e também o de sociedades
e descobrimos que é frequentemente a mes- clifèrentes não têm apenas uma sisnificação
 ÃNÌROPOTOGIA FÀGE AOg PNOBLENAS
GLAUDE LÉVI-gTNÃU35 DO lluNDO llODERIIO

possível. Não existe uma interpretação abso- deza espacial e temporal, escapam às nossas
luta do passado histórico, mas interpretações capacidades mentais. Neste sentido, a história
todas elas relativas. do cosmo torna-se, para o comum dos mor-
Para concluir esta conferência, permiti-me tais, uma espécie de grande mito: consiste no
uma reflexão ainda mais ousada. Mesmo no desenrolar de acontecimentos únicos de que,
que diz respeito à ordem do mundo, a ciência uma vez que apenas se produzíram uma vez,
passa hoje de uma perspetiva intemporal para nunca se poderá provar a realidade.
uma perspetiva histórica. O cosmo já não nos Se, assim, desde o século xvII, se podia
surge, como no tempo de Newton, como sen- acreditar que o pensamento científico se opu-
do regido por leis eternas, como a da gravita- nha de forma radical ao pensamento mítico e
çáo. Para a astroÍísica moder:na, o cosmo tem que um deles deveria em breve eliminar o ou-
uma história. Começou há quinze ou vinte mil tro, poderíamos perguntar se não se observa
milhões de anos por um acontecimento úni- o início de um movimento no outro sentido.
co (chamado, em inglês, big bang), dilatou-se, O próprio progresso do pensamento cientí-
continua a sua expansão e, segundo as hipó- fico não o empurra para o lado da história?
teses, continuará indefinidamente no mesmo Foi já o que aconteceu com a biologia no sé-
sentido, ou alternará entre ciclos de expansão culo xtx, com a teoria da evoluçâo, e a cosmo-
e de contraçã.o. logia moderna orienta-se também nesta dire-
Mas, ao mesmo tempo que a ciência pro- ção. Tentei mostrar que, mesmo entre nós, o
gride, convence-nos de que somos cada vez conhecimento histórico conserva afinidades
menos capazes de controlar pelo pensamento com os mitos. E se, como parece, a própria
fenómenos que, pelas suas ordens de gran- ciêncizr tende a tornar-se uma história da vida
CLAUDE LÉYI-SÍRAUSS

e uma história do mundo, não seria de excluir


que, depois de, durante muito tempo, terem
seguido caminhos divergentes, o pensamento
científico e o pensamento mítico viessem um
dia a aproximar-se. Nesta hipótese, o interesse
III
que a antropologia tem pelo estudo do pensa-
mento mítico justificar-se-ia aind.a mais, pela
contribuição que traz ao conhecimento de
constrangimentos sempre atuais, inerentes ao Reconhecimento
funcionamento do espírito.
da diversidade
cultural: o que nos
enslna a civilizaçáo
a

Japonesa
udo aquilo que drs-
se nas minhas pri-
meiras duas con-
fèrências convida a reduzir a distância que,
considerando o seu baixo nível técnico e eco-
nómico, somos tentados a colocar entre as so-
r:iedacles sem escrita e as nossas.

Anlropólogos e genelicistqs

Para justificar esta distância, recorreu-se


no passado a dois tipos de argumentos. Segun-
rlo zrlquns, eslzÌ distância seria inultrapassável,
pois lcstrltltt'iit clo fircttt de os aÉ{rupamentos

t4t
à ANÌROPOLOGIA FÂCE ÃOS PROBLEIIIÂg
CLÀUDE LÉVI-5ÌRAUS5 DO fllUt{DO mODÉnilO

humanos diferirem pelo seu património ge- influenciava a cultura e de que maneira. Pelo
nético. Entre estes patrimónios existiria uma facto de os povos que não têm a mesma apa-
desigualdade que se refletiria nas capacidades rência fisica terem também géneros de vida,
intelectuais e nas disposições morais. É esta a costumes e crenças diferentes, concluía-se que
tese dos racistas. Segundo a teoria evolucionis- as diferenças físicas e as diferenças culturais es-
ta, pelo contrário, a desigualdade das culturas tão ligadas. Como reconhece com bom senso o
teria uma origem não biológica, mas históri- preâmbulo da segunda declaração da lJnesco
ca: sobre a via única que todas as sociedades sobre o problema das raças, o que convence o
deverão necessariamente percorrer, umas te- homem da rua de que as raças existem, cito, né

riam tomado a dianteira, outras teriam ficado a evidência imediata dos seus sentidos quan-
a marcar passo, outras talvez tivessem recua- do apercebe juntos um africano, um europeu,
do. O único problema seria compreender as trm asiático e um índio americano".
razões contingentes do atraso sofrido por al- Contra a ideia de que araça e a cultura es-

gumas e ajudá-las a recuperar. tão ligadas, a antropologia apresentou desde


Encontramo-nos assim confrontados conr lrír muito tempo dois argumentos. Em primei-

os dois últimos problemas para a solução dos r'o lugar, o número de culturas que existem e,

quais a antropologia espera poder contribuil solrretudo, que existiam ainda há dois ou três
e que são: um, o problema das raças, o outt'o, srl<:ulos sobre a superfície da Terra ultrapassa
o do sentido que será preciso dar à noção tlt' rrrt omparavelmente o número de raças que os
progre sso. rrr:ris meticulosos investigadores se puseram a

Durante todo o século xIX e a prirttt'it:t r list inguir: vários milhares contra uma ou duas
metade do século xx, perguntou-se se iÌ l'ilçll rlrizi:rs. Or-a, duas culturas elaboradas por ho-

ì 4.Ì
 ÃIIÍROPOLOGI FACE ÁOg PNOBLEIIÃ5
GLÀUDE LEVI.SÌRAUSS DO tvlUl{DO ttoDERNO

mens que, supostamente, pertencem a mesma seres vivos. Entre os dois tipos de inventários
<raça> podem diferir entre elas tanto ou mais nãro se conseguia estabelecer qualquer tipo de
do que duas culturas provenientes de grupos r'orrelação. Se me é permitida uma imagem,
racialmente diÍèrentes. ;r peneira dos antropólogcts fisicos tinha uma
Em segundo lugar, os patrimónios cultrt- rcde demasiado aberta para conseguir reter
rais evoluem muito mais depressa do que ()s r;rr:rlquer das diferenças entre as culturas a
patrimónios genéticos. Um mundo separa ir rlrc nós mesmos, antropólogos culturais ou
cultura que conheceram os nossos bisavôs clir so<:iais, atribuímos um significado.
nossa. Poderíamos mesmo dizer que há menos [Ìm contrapartida, mas desde há somente
diferença entre o género de vida dos antigos trinta ou quarenta anos, instaurou-se a cola-
gregos e romanos e o dos nossos antepass:rtlos lror:rção entre a antropoÌogia e essa nova dis-
do século rvtII do que entre o género de virlrr , igrlina biológica a que se chama genética das
destes e o nosso. No entanto, mais ou mclt()li, ;,,,1 rrrl:rções. Através de argumentos biológicos,
perpetuamos a sua hereditariedade. lst:r t'onfirmou a desconfiança tradicional dos
Estas duas razões explicam que destlt: lui ,rrrnop<ilogos em relação a todas as tentativas
uma centena de anos se tenha produzid() unr l),u;r ('stzÌbelecer uma conexão, ou mesmo uma
divórcio entre, por um lado, os antrop<ilogos r rl.rr.'iro cle causa e efeito, entre as diferenças

ditos "culturais" ou nsociais", que esturl:urr :rs r.rr i:ris c :rs difurenças culturais.
técnicas, os costumes, as instituições e lìs ('r'('u ,\ rroçiro tradicional de raça repousava in-
ças e,por outro, os antropóloeos Íísit:os tl:t vt' lí r:urrt'rrtc s<lbre caracteres externos e bem
lha escola, que se obstinavam enì íltzcl rrrt'rli r rrrvcis: lrlltrr':r, cor da pele e dos olhos, forma

ções e aferições sobre crânios, cs<lttt:lt'(r)s ()tl ,1,' r r;ìrrio, lipo <lc t;:rbelerirzr, etc. Sup<tndo que
à ÀrÌRoPoLool FÀcE ÂOS pnOBLlllÂl
CLAUDE LÉVI-SÌRÂUSS DO ftrUilDO lltODEnilo

as variaÇões observáveis nestes diferentes do- c:omposto por dosagens relativas que variam
mínios fossem concordantes, o que me parece rle um lugar para outro e que não deixaram
bastante duvidoso, nada prova que concordem cle variar ao longo do tempo. Os limites que
também com as diferenças que os geneticistas lhes são fixados são arbitrários. Estas dosagens
revelaram e das quais demonstrararn a impor- sobem ou descem em gradações impercetíveis,
tância, mas que não são imediatamente per- e os limites que se instituem aqui ou ali depen-
cetíveis aos sentidos: grupos sanguíneos, pro- dem do tipo de fenómeno pelo qual se inte-
teínas do soro sanguíneo, fatores imunitários, ressa o investigador e a que se refere para os
etc. No entanto, umas não são menos reais do classificar.
que as outras e poder-se-ia conceber - foi mes- - diria, empregando
Esta ,,nova aliança"
mo estabelecido em certos casos - que as se- uma expressáo na moda - entre os antropó-
gundas tivessem uma distribuição geográfica logos e os geneticistas implicou uma notável
totalmente diferente das primeiras. Segundo mudança de atitude em relaçáo aos povos di-
as características recolhidas, <raças invisíveis, tos primitivos. Com outros argumentos, esta
apareceráo assim no seio das raças tradicio- mudança de atitude vai no sentido em que, até
nais, ou então recuperarão as fronteiras 1â in- agora, os antropólogos tinham sido os únicos
certas que atribuíam a estas. a apostar. Durante séculos, costumes que con-
Confirmando as posições dos antropólo- sistiam em regras de casamento bizarras, em
gos, os geneticistas substituíram assim a noção interdições arbitrárias como aquela que atin-
de raça pela de stock genético. Em lugar de re- ge as relações sexuais entre esposos enquanto
cobrir caracteres supostamente imutáveis com a máe aleita o último nascido, em privilégios
fronteiras bem traçadas, um .sfuck genético é poligâmicos em benefício dos chefes ou dos
A ANTROPOLOGIÃ FÂCE AOS PROBLETÃS
CLÀUDE TÉVI-5ÌRAU55 DO rúNDO thODÉnilO

anciãos, em usos que nos revoltam, como o estabelece-se à parte. Mais tarde, blocos de in-
infanticídio, parecem absurdos e mesmo es- divíduos aparentados juntam-se e vêm parti-
candalosos. Foi preciso que a genética das lhar o novo habitat. Os stochs genéticos que se
populações tomasse forma por volta dos anos constituem assim diferem muito mais entre si
1950 para que nos apercebêssemos das suas do que se fossem o efeito de reagrupamentos
razóes. realizados ao acaso.
Temos tendência a considerar as raças Disso resulta uma consequência. Se as al-
mais afastadas da nossa como sendo também deias de uma mesma tribo compreendem for-
as mais homogéneas: para um branco, to- mações genéticas diferenciadas desde o início,
dos os amarelos se parecem, e as representa- vivendo cada uma num isolamento relativo e

ções estereotipadas dos brancos na arte dita em competição umas com as outras por terem
namban sugerem que o inverso também seja taxas de reprodução desiguais, elas reconsti-
verdade. Ora, foram isoladas diferenças con- tuem um conjunto de condições bem conhe-
sideráveis entre tribos primitivas vivendo na cidas dos biólogos como favorável a uma evo-
mesma área geogrâfrca; e estas diferenças são lução incomparavelmente mais rápida do que
quase tão grandes entre aldeias de uma mes- aquela que se observa em geral nas espécies
ma tribo como entre tribos distintas pela lín- animais. Ora, sabemos que a evolução que
gua e pela cultura. Por consequência, mesmo conduziu os hominídeos fósseis até ao homem
uma tribo isolada não constitui uma unidade atual se fez, falando relativamente, de forma
biológica. Isso explica-se pelo modo pelo qual muito rápida.
se formam as novas aldeias: um grupo fami- Se se admitir que as condições observáveis
liar separa-se da sua linhagem genealógica e nos nossos clizrs em certas populações afasta-
A ÂNÌROPOLOOIA FAGE AOg PNOBLETÃg
CLAUDE TÉVI-gTRAUSS DO fllUilDO lttODÊRl{O

das oferecem, pelo menos sob certos aspetos, uma outra reviravolta, cujas implicações teóri-
uma imagem aproximativa daquelas experi- cas sáo talvez ainda maiores.
mentadas pela humanidade num passado lon- Evoquei f,actos que resultam da cultura:
gínquo, deveremos reconhecer que estas con- as sociedades ditas primitivas mantêm um
dições quejulgamos muito miseráveis eram as fraco crescimento demográfico prolongan-
mais adequadas para fazerem de nós aquilo do durante três ou quatro anos a duração do
em que nos tornámos, e que continuam a ser aleitamento; observando diversas proibições
as mais aptas para manter a evolução huma- sexuais; provocando, se necessário, o aborto
na no mesmo sentido e para lhe conservar o e o infanticídio. A taxa de reprodução muito
seu ritmo, ao passo que as enormes sociedades variável dos homens, dependendo de terem
contemporâneas, onde as trocas genéticas se uma ou várias mulheres, favorece certas for-
fazem de outro modo, tendem a travar a evo- mas de seleção natural. Tudo isto diz respeito
lução ou a alterar a sua orientação. ao modo como os grupos humanos se dividem
Era preciso que o nosso saber evoluísse e e se reformam, aos costumes impostos aos in-
que tomássemos consciência destes novos pro- divíduos dos dois sexos para se unirem e re-
blemas para reconhecermos um valor objeti- produzirem, às maneiras prescritas de recusar
vo e uma significação moral a modos de vida, ou de dar à luz as crianças e de as criar, ao
usos e crenças que antes não recebiam da nos- direito, à magia, à religião e à cosmologia. De
sa parte mais do que zombarias ou, na melhor forma direta ou indireta, estes fatores mode-
das hipóteses, uma curiosidade condescen- lam a seleção natural e orientam o seu curso.
dente. Mas, com a entrada da genética das po-
pulações na cena antropológica, produziu-se
à AIIÍROPOLOCI ;AGE AOS PROBLEflIÂS
CLAUDE LÉVI-SÌRÂUSg DO XTUNDO IIODERÍilO

<<Roçon - um termo impróprio geográficos do território que ocupa, as rela-


ções de amizade ou de hostilidade que man-
Desde logo, os dados do problema rela- tém com os grupos vizinhos, e - por via de
tivo às relações entre a noção de raça e a de consequência * a importância relativa das tro-
cultura encontram-se confundidos. Durante cas genéticas que, graças aos intercasamentos
todo o século xIX e a primeira metade do sé- permitidos, encorajados ou proibidos, se po-
culo xx, perguntou-se se a raça influenciava derão produzir entre si.
a cultura e de que maneira. Depois de se ter Mesmo nas nossas sociedades, sabemos
constatado que o problema assim colocado que os casamentos não se fazem completa-
era insolúvel, percebe-se agora que as coisas mente ao acaso. Fatores conscientes ou in-
se passam no outro sentido. São as formas de conscientes intervêm: distância entre as re-
cultura que adotam aqui e ali os homens, as sidências familiares dos futuros cônjuges,
suas formas de viver passadas e presentes, origem étnica, religião, nível de educação,
que determinam numa larga medida o rit- recursos das famílias... Se é permitido ex-
mo e a orientação da sua evolução biológica. trapolar a partir de usos e de costumes que
Longe de ser preciso perguntar se a cultura ofereciam atê a uma data recente uma gran-
é ou não funçáo da raça, descobrimos que a de generalidade, admitir-se-á que, desde os
raça - ou aquilo que se entende em geral por primeiros inícios da vida em sociedade, os
este termo impróprio - é uma função entre nossos antepassados deverão ter conhecido
outras da cultura. e aplicado regras de casamento permitindo
Como poderia ser de outro modo? É a cul- ou proibindo certos tipos de parentes. Dei al-
tura de um grupo que determina os lirnites guns exempkrs disso nas minhas conferências
 A}IÌROPOLOGI FAGE ÃOS PROBLEIIIAS
CLÀUDE LÉVI.gÌRÂUS5 DO NUilDO IITODERNO

anteriores. Como é que tais regras, aplicadas jeitas a regras cuja origem última não é bioló-
durante gerações, não agiriam de forma dife- gica, mas social.
rencial sobre a transmissão dos patrimónios A evolução humana nâo é portanto um
genéticos? subproduto da evolução biológica. Tâmbém
E não é tudo; pois as regras de higiene pra- não é completamente distinta dela. A síntese
ticadas por cada sociedade, a importância e a entre estas duas atitudes tradicionais torna-se
efi,câcra relativas dos cuidados dispensados a possível com a condição de os biólogos e os
este ou àquele tipo de doença ou de deficiên- antropólogos tomarem consciência da ajuda
cia, permitem ou previnem a níveis diversos a que poderão fornecer mutuamente e das suas
sobrevivência de certos indivíduos e a dissemi- limitações respetivas.
nação de um material genético que, sem isso, Na origem da humanidade, a evolução
teria desaparecido mais depressa. O mesmo biológica talvez tenha selecionado traços pré-
se poderá dizer das atitudes culturais peran- -culturais, como a postura ereta, a habilida-
te certas anomalias hereditárias e das práticas de manual, a sociabilidade, o pensamento
que atingem sem discriminação os dois sexos simbólico, a aptidão para vocahzar e comu-
em certas conjunturas - nascimentos ditos nicar. Em contrapartida, e desde que a cul-
anormais, gémeos, etc. - ou que, como no in- tura existe, é ela que consolida estes traços
fanticídio, visam particularmente as meninas. e os propaga. Quando as culturas divergem,
Por fim, a idade relativa dos cônjuges, a fertili- consolidam e favorecem outros traços, como
dade e a fecundidade diferenciais segundo os a resistência ao frio, ou ao calor, para as so-
níveis de vida e as funções sociais estão, pelo c:ieclades que se deveráo adaptar, a bem ou a
menos em parte, direta ou indiretamente su- nrzrl, a extr-emos climáticos, a uma composi-
À ANÌROPOIOOIA FACE AOg PROBLEf,rÂg
CLÂUDE LÉVI-SÌRÂUSS DO flIUNDO TODERI{O

ção rarefeita do ar em oxigénio para aque- modo mais ou menos acentuado. Estes traços
las que vivem nas alturas, etc. E quem sabe equilibram-se no seio de um sistema que, num
se as disposições agressivas ou contemplati- e noutro caso, deverá ser viável, sob pena de
vas, o engenho técnico, etc., não estarão em ser progressivamente eliminado por outros
parte ligados a fatores genéticos? Tâis como sistemas mais aptos a propagarem-se ou a re-
os captamos a nível cultural, nenhum destes produzirem-se. Para desenvolver diferenças,
traços poderá ser claramente ligado a uma para que os limites que permitem distinguir
base genética, mas não se poderia excluir a uma cultura das suas vizinhas se tornem su-
priori o efeito longínquo de ligações intermé- ficientemente vincados, as condições são em
dias. Neste caso, seria verdade drzer que cada geral as mesmas que aquelas que favorecem as

cultura seleciona aptidões genéticas que, por diferenças biológicas entre as populações: iso-
retroação, influenciam a cultura e reforçam a lamento relativo durante um tempo prolon-
sua orientação. gado, trocas limitadas, quer sejam de ordem
As duas abordagens são em parte análogas cultural ou genética. Quase na mesma ordem
e em parte complementares. Análogas, pois, de grandeza, as barreiras culturais desempe-
em diversos sentidos, as culturas são compará- nham o mesmo papel que as barreiras gené-
veis a dosagens irregulares de traços genéticos ticas; prefiguram-nas ainda melhor na medi-
que outrora se designaram pelo termo <raça>. da em que todas as culturas imprimem a sua
Uma cultura consiste numa multiplicidade de marca ao corpo: por estilos de roupa, de pen-
traços, entre os quais alguns lhe são comuns, teado e de adornos, por mutilaçóes corporais
a diferentes graus, com culturas vizinhas ou e por comportamentos gestuais, mimam dife-
afastadas, enquanto outras os sepuÌl-?Ìm cle renças compzrrhveis àquelas que podem existir
A AI{ÌROPOLOOIA !ÀGE ÂO' PROBLETÂ9
CLÂUDE LÉVI-SÌNAUgg DO tlul{DO tIoDERNO

entre as raças. Ao preferir certos tipos fisicos se encontram dependentes de um único gene.
a outros, estabilizam-nos e, eventualmente, O que é válido para o genoma individual é-o
espalham-nos. também para uma população que deverá ser
Há trinta e quatro anos, num opúsculo de tal forma (pela combinaçáo que se opera
intitulado Race et histoire, escrito a pedido da no seu seio entre vários patrimónios genéti-
LJnesco, fazia apelo à noção de coligaçâo, para cos) que um equilíbrio ótimo se estabeleça e
explicar que culturas isoladas não conseguem melhore as suas hipóteses de sobrevivência.
criar por si mesmas condições de uma história Neste sentido, pode dizer-se que a recombina-
verdadeiramente cumulativa. Para isso é ne- ção genética desempenha, na história das po-
cessário, dizia, que culturas diferentes combi- pulações, um papel comparável àquele que a
nem, voluntária ou involuntariamente, as suas recombinação cultural desempenha na evolu-
contribuições respetivas, dando assim a si mes- ção dos séneros de vida, das técnicas, dos co-
mas a hipótese de realizarem, no grande jogo nhecimentos, dos costumes e das crenças. Pois
da história, as séries longas que permitem que os indivíduos predestinados pelo seu patri-
esta progrida. mónio genético a nâo adquirirem senáo uma
Os geneticistas propõem atualmente pers- cultura particular teriam descendentes singu-
petivas bastante próximas sobre a evolução larmente prejudicados: as variações culturais
biológica, quando mostram que um genoma às quais estes estariam expostos sucederiam
constitui na realidade um sistema no qual cer- mais depressa do que aquilo que o seu patri-
tos genes desempenham um papel regulador, mónio genético poderia evoluir e diversificar-
outros agem em conjunto num único carâc- -se para responder às exigências destas novas
ter, ou o contrário, quandcl vários c?tracteres situaçõres.
A ANÌROPOLOOIA IACE AOg PROBLIMAS
DO XlUl{DO i'tODERt{O
CLÂUDE LÉVI-gÌNÁU5S

Antropólogos e biólogos estão portanto outras cores se mantiveram para trás, umas a

hoje de acordo em reconhecer que a vida em meio caminho, outras atingidas por um atra-

geral, e a dos homens em particular, não se so que se cifra em milhares ou em dezenas de

pode desenvolver de modo uniforme. Sempre milhares de anos? Não se poderá pretender
e em todo o lado, supõe e engendra a diver- ter resolvido pela negativa o problema da de-
sidade. Esta diversidade, intelectual, social, sigualdade das raças humanas se não nos de-

estética, filosófica, não está reunida por qual- bruçarmos também sobre o da desigualdade
quer relação de causa e efeito àquela que exis- - ou da diversidade - das culturas humanas,

te no plano biológico entre as grandes famílias que, no espírito do público, lhe está estreita-
humanas. É-the apenas paralela num outro mente ligado.
terreno.
Mas em que consiste ao certo esta diver-
sidade? Teria sido inútil obter do homem da O escôndqlo dq diversidqde
rua que renunciasse a atribuir uma significa-
Ora, a diversidade das culturas surge ra-
ção intelectual ou moral ao facto de ter a pele
negra ou branca, o cabelo liso ou crespo, e que ramente aos homens tal como é: um fenóme-

permanecesse silencioso perante uma outra no natural resultante das relações diretas ou
questão, pela qual este homem da rua se in- indiretas entre as sociedades. Antes têm visto
teressa de imediato: se não existem aptidões nela uma espécie de monstruosidade ou de
raciais inatas, como explicar que a civilizaçáo escândalo. Desde os tempos mais recuados,
de tipo ocidental tenha fêito os imensos pro- uma tendência, que se poderia pensar ser ins-
gressos que se sabe, enquanto as clos povos de tintivzr, tão solidamente está ancorada, leva os

tót
A ÃNÌROPOIOGIÂ FAGE ÂOg PROBLEXIÂS
DO IIIODERNO
CLÂUDE LÉVI'SÏRAUS5 'NUilDO

e simplesmente cos- fim, das diversas declarações dos direitos do


homens a repudiar pura
mais afastados homem - ergueram-se constantemente contra
tumes, crenças' usos e valores
sua própria sociedade' esta atitude. Estes sistemas esquecem, todavia,
daqueles em vigor na
chineses quali- que o homem não realiza a sua ratüreza numa
Os antigos gregos e os antigos
participavam na sua humanidade abstrata, mas no seio de culturas
ficavam os povos que náo
tradicionais que diferem entre si segundo os
culturaatravésdetermosquetraduzimospor
parecem locais e as épocas. Apanhados entre a dupla
..bárbaros>> e que' etimologicamente'
dos pás- tentação de condenar experiências que os fe-
em ambos os casos evocar a chilreada
rem moralmente e de negar diferenças que não
Saros.Enviavam-nosassimparaoladodaani-
oselvagem>' que há muito compreendem intelectualmente, os modernos
malidade; e o termo
significa "da selvao' tentaram compromissos que lhes permitissem
tempo empregamos' e que
de vida animal' por simultaneamente ter em conta a diversidade
evoca também um género
Recusa-se assim das culturas e suprimir aquilo que ela conserva
oposiçáo à cultura humana'
diversidade cultu- para eles de escandaloso e de chocante.
admitir o próprio facto da
fora da cultura' O evolucionismo, que durante muito tem-
ral; prefere-se rejeitar para
mostra o termo ale- po dominou o pensamento ocidental, cons-
para a rratrfieza- como
-máoNaturaõlher_,tudooqueseafastadas titui assim uma tentativa para reduzir a di-
versidade das culturas, ao mesmo tempo que
normas sob as quais se vive'
sistemas religio- finge reconhecê-las por completo. Pois, se se
Sem dúvida, os grandes
se trate do budismo' tratarem os diferentes estados em que se en-
sos e frlosóficos - quer
das dou- contram as sociedades humanas, tanto antigas
do cristianismo ou do islamismo'
marxista' ou' por no tempo c()rÌìo afãstadas no espaço, como es-
trinas estoiczr' kantianzr <lu
à ÃNÍROPOTOGIA FACË ÂO5 PNOBLEftTÂg
CLAUDT LÉYI.SÌRÂUS' DO lllullDo lloDÊRNo

tádios ou etapas de um desenvolvimento úni- sem conhecer a eletricidade e a máquina ava-

co que as empurra a todas na mesma direção, por poderiam deixar de evocar fases arcaicas
a diversidade que se observa entre elas passa da civilização ocidental? Como não comparar
a ser apenas aparente. A humanidade torna- as tribos indígenas sem escrita e sem metalur-

-se uma única e idêntica a si mesma. Somente, gia, mas que traçam figuras sobre as paredes
esta unidade e esta identidade apenas se reali- rochosas e fabricam utensílios de pedra, com
zam progressivamente e nem em todo o lado os povos desconhecidos que, há quinze ou vin-

ao mesmo ritmo. te mil anos, tiveram uma atividade semelhante


Esta solução evolucionista é sedutora, em França ou em Espanha? Quantos viajantes
mas simplifica abusivamente os factos. Do seu ocidentais não encontraram "a Idade Média"
próprio ponto de vista, cada sociedade pode no Oriente, no século de Luís XIV" na Pequim
separar as sociedades diferentes de si mes- de antes da Primeira Grande Guerra, "a idade
ma em duas categorias: aquelas que lhe são da pedra> entre os indígenas da Austrália ou
contemporâneas, mas geograficamente afas- da Nova Guiné?
tadas; e aquelas que existiram praticamente Este falso evolucionismo parece-me extre-
no mesmo espaço, mas que a precederam no mamente pernicioso. Das civilizações desapa-
tempo. recidas, apenas conhecemos certos aspetos e

Quando se consideram as sociedades do que são tanto menos numerosos quanto a ci-
primeiro tipo, somos tentados a estabelecer vilização considerada é mais antiga, uma vez
entre elas relações que equivalem a uma or- que os aspetos conhecidos são os únicos que
dem de sucessáo no tempo. Como é que so- puderam sobreviver às ameaças do tempo.
ciedades contemporâneas que se mant.iveram O pr<lcediment<l consiste assim em tomar a
ANÌROPOLOGIÂ FÂCE AOg PROBLEIÃÂS
CLAUDE LÉVT-STRAUSS DO MUI{DO IYIODERNO

p:Ìrte pelo todo, em concluir, a partir do fac- ças superficiais com o feudalismo europeu.
to de certos aspetos de duas civilizações (uma Representa uma forma de organizaçâo social
atual, a outra desaparecida) se parecerem, perÍèitamente original. Em seguida, e sobre-
pela identidade de todos os aspetos. Ora, não tudo, por outras razões: já no século xvl, o
somente esta fbrma de raci<tcinar é logicamen- Japão era uma nação industrial que fabricava
te insustentável, como na maior parte dos ca- e exportava para a China, às dezenas de mi-

sos é desmentida pelos Íàctos. lhares, armaduras e sabres e, um pouco mais


A título de exemplo, recordemos as ideias tarde, arcabuzes e canhões. Na mesma época,
durante muito tempo prevalecentes no Oci- oJapão contava mais habitantes do que qual-
dente sobre oJapão. Em quase todas as obras quer país da Europa, tinha mais universida-
o vosso país, até à Segunda
escritas sobre des, uma taxa de alfabetrzação mais elevada;
Guerra Mundial, se podia ler que, em ple- por fim, um capitalismo mercantil e financei-
no século xIX, o Japão se mantivera sob um ro, que não devia nada ao Ocidente, estava
resime feudal, semelhante ao da Europa da em pleno desenvolvimento bem antes da res-
Idade Média; e que somente na segunda me- tauraçáo Meiji.
tade do século xIX, ou seja, com dois ou três Lonee, assim, de duas sociedades se ins-
séculos de atraso, é que entrou na era capi- creverern uma a seguir à outra numa mesma
talista e se abriu à industnahzaçâo. Sabemos linha de desenvolvimento, antes seguindo vias
hoje que tudo isso é falso. Em primeiro lugar, paralelas, mas fazendo, a cada momento da
porque o pretenso "feudalismo".japonês, de história, escolhas que não coincidiam necessa-
espírito militar, impregnado de clinzrmismo e rizrmente; unÌ pouco corÌÌo se, tendo nas mãos
de praernatismo, :ìperì:Ìs oÍèt-erc:c scrnclh:ru- ?Ìs lììcìsrÌì:rs <:lrt't:rs. <::rclit urna tivesse det,idicl<l

Ir,/
À ÀNTROPOLOGIÂ FAGE AOg PROBLEMAS
CLAUDE LEVI-SÌRAU'5 DO MUI{DO IIIODERNO

jogh-las numa ordem difèrente. Como muitas lugar à pedra polida, ao osso e ao marfim; a
outras comparações que se poderiam fazer, cerâmica, a tecelagem, a agricultura seguem-
esta entre a Europa e o Japão recusa a noção -se, associadas progressivamente à metalur-
de um progresso em sentido único. gia, onde se podem distinguir também eta-
Se tudo isso é verdade para as socieda- pas. Neste caso, não poderemos falar de uma
des que coexistiranì no tempo, mas muittt verdadeira evolução?
longe umas das outras, também o será para No entanto, não é tã.r> fácil como se pen-
as sociedades do segundo tipo que distingui sa ordenar estes progressos incontestáveis
há pouco, aquelas que, nunì local determina- numa série regular e contínua. Durante
do, precederam historicamente a sociedade muito tempo, distinguimos etapas sucessi-
atual? A hipótese de uma evolução unilinear, vas: idade da pedra lascada, idade da pedra
tão frágil quando é invocada pâra colocar so- polida, idades do cobre, depois do bronze,
bre uma mesma escala sociedades afastadas depois do ferro... era demasiado simples.
no espaço, parece neste caso dificilmente evi- Sabemos hoje em dia que polir e lascar a pe-
tável. Sabemos, através dos testemunÌros con- dra existiram por vezes lado a lado; e, quan-
cordantes da paleontologia, da pré-história e do a pedra polida prevalece, não é como re-
da arqueologia, que os territórios <tcupados sultado de um progresso técnico - pois polir
pelas grandes civilizações atuais foram antes é muito mais custoso em matéria-prima do
habitados por espécies variadas do géner<t que lascar -, mas como uma tentativa para
Homo, que lascavam grosseiramente o sílex. copiar em pedra as armas e os utensílios
Corn o tempo, este instr-umento de peclra de cobre ou de bronze que possuíam as ci-
afina-se e aperfleiçorÌ-se; :t peclt'it lust:utl:t cllt vilizaç:õrcs tn:tis ":tv:tnç:tclas", é verd:rde, nÌas
à ÃNÌROPOLO€I FÃGE ÂO5 PROATEüAS
cLÃuDt rÉvr-stRAUss DO tvlu_l{Do inoDERlto
__

contemporâneas e vizinhas das das suas imi- Não se trata de negar os progressos con_
tadoras. Segundo a região do mundo que é seguidos pela humanidade. Somente, deve
considerada, tanto a cerâmica surge com a adotar-se uma visão mais matizad,a. O desen_
pedra polida, como a precede. volvimento dos nossos conhecimentos convida
Acreditava-se outrora que as diferentes a estender pelo espaço Ítrrmas de civilização
técnicas da pedra lascada - indústrias "de que éramos levados a escalonar no tempo.
núcleos,, indústrias "de estilhaços", indús- O progresso não é nem necessário, nem
trias "de lâminas" - refletiam um progresso contínuo. Processa-se por saltos, por pulos, ou,
histórico em três etapas, a que se chamavam como diriam os biólogos, por mutações. Estes
paleolítico inferior, paleolítico médio e pale- saltos e estes pulos nem sempre vão mais lon_
olítico superior. Admite-se hoje que estas três ge, nem na mesma direção. São acompanha_
formas puderam coexistir, que náo repre- dos por mudanças de orientação, um pouco à
sentam etapas de um progresso em sentido maneira do cavalo de xadrez, que tem sempre
único, mas aspetos ou, como se diz, "Íácies" à sua disposição vários movimentos, mas em
de uma realidade muito complexa. As indús- direções diÍèrentes. A humanidade em pro_
trias da pedra foram, há centenas de milha- gresso não se parece com uma personagem a
res de anos, talvez há mais de um milhão, subir, degrau a degrau, uma escada. É preciso
a obra de um antepassado do Homo sapiens, antes pensar no jogador cuja sorte está repar_
chamado Homo erectus. Ora, estas indústrias tida por vários dados e que, de cada vez que
testemunham uma complexidade e um refi- os lança, os vê dispersarem-se sobre a mesa.
namento que só foram ultrapassados no fìn:rÌ Aquilo quc se sanha com um, está_se sempre
do neolítico. srrjcito :r llclrlô-l() ('()lÌì {r otrtl.o, e é sornentc
a ÀltrRopoLoora !Âcl ael ?lallltltl
GLAUDE LÉVI.9ÍRAUS5 DO tUt{DO tODltf,o

através de um golpe de sorte que a história se as outras culturas nos surgiriam como eslit-
torna cumulativa ou, dito de outra forma, que cionárias, não necessariamente por o serem,
os cômputos se adicionam para formar uma mas porque a sua linha de desenvolvimento
combinação favorável. náo significa nada para nós, náo é mensurá-
Mas que atitude seria a nossa em relação vel nos termos do sistema de referências que
a uma civilização que realizasse combinações utilizamos.
favoráveis do seu próprio ponto de vista, sem
que oferecessem interesse para a clTltzaçã"o
a que pertence o observador? Este não fica- <<A qrle do imperfeito>
ria inclinado a classificar esta civilizaçáo como
estacionária? Noutros termos, a distinção en- Para fazer compreender melhor este pon-
tre história estacionârra e história cumulativa to, que acredito ser essencial, recorri no passa-
(uma que acumula as descobertas e as inven- do a várias comparações que vos peço licença
ções, a outra, talvez tã.o atla como esta, mas para retomar.
onde cada inovação se dissolveria numa espé- Em primeiro lugar, a atitude que denuncio
cie de fluxo ondulante, que nunca se afastaria parece-se, sob muitos aspetos, com aquela que
de modo durável da direção primitiva) náo observamos nas nossas próprias sociedades,
resultará da perspetiva etnocêntrica em que onde as pessoas idosas e as pessoas jovens não
nos colocamos sempre para avaliar uma cul- reagem aos acontecimentos da mesma ma-
tura diferente? Consideraríamos assim como neira. As pessoas idosas consideram em geral
cumulativa toda a cultura que se desenvolves- como estacionária a história que se desenvolve
se num sentido análogo ao nosso" Enquanto durante a sua velhice, por oposiçáo à história
F:T

A ÂNÌROPOLOGIÂ FACE ÃOg PROBLENÂg


CLÀUDE LÉVI-gÍRÂUg5 DO MUNDO MODENNO

cumulativa de que os seus jovens anos foram Para o observador ao microscópio, que se nfo-
testemunhas. Uma época na qual elas.iá não cou> num corpo colocado a uma certa distân-
estão ativamente empenhadas, onde 1â nâo cia da objetiva, os corpos colocados para cá ou
têm nenhum papel, jâ nâo tem sentido. Náo para lâ, mesmo que o afastamento seja míni-
se passa nada, ou aquilo que se passa apenas mo, parecem confusos e indistintos, ou não se

oferece, em sua opinião, aspetos negativos. veem mesmo: vê-se através deles.
Em contrapartida, os seus netos vivem este Do mesmo modo, para um viajante senta-
período com todo o fèrvor que os seus avôs do num comboio, a rapidez e o comprimen-
perderam. to aparentes de outros comboios que se veem
Nunca, nas nossas sociedades, os adversá- pela janela variam, segundo circulem no mes-

rios de um regime político reconhecem que mo sentido, ou no sentido oposto. Ora, qual-
este evolui. Condenam-no em bloco, rejeitam- quer membro de uma cultura lhe é tão estreita-
-no para fora da história, como uma espécie mente solidário como este viajante idealizaclo
de entreato, no final do qual, somente, a vida do seu comboio. Desde o nosso nascimento, o
normal retomará o seu curso. Completamen- ambiente familiar e social imprime no nosso
te diferente é a atitude dos militantes, e tanto espírito um sistema complexo de referências,
mais, notemo-lo, quanto rnais importante f'or consistindo em juízos de valog motivações e
o lugar que ocuparem no aparelho do partido centros de interesse, incluindo as ideias que
no poder. nos inculcaram sobre o passado e o futuro da
A oposição entre culturas proeressivAs e nossa civilização. No decurso da nossa vida,
culturas imóveis parece assim resultat' cÌzrquil<r deskrczrrnr)-nos literalmente com este sistema
zÌ que chamariir trm:r clifèr-erìçtÌ clt: Íìr<:ttlizaçito. rlc lc:Íì'r'ôn<:ias c: pclr:cbenìos os sistcrn:ts rlzrs
A ANÌROPOLOGIA FÂCE AO3 PROALEfiIAS
GTAUDE LÉVI-'ÌRAUgg DO ffIUNDO lltODERilO

outras culturas, das outras sociedades, apenas sido a aptidão para triunfar sobre meios geo-
através das deformações que o nosso próprio gráficos particularmente hostis, os Esquimós e

sistema lhes inflige, quando não nos impede os Beduínos ganhariam a taça. A Índia soube,
de ver seja o que for. melhor do que qualquer outra civilização, ela-
Cada vez que somos levados a qualificar borar um sistema filosófico e religioso capaz
uma cultura de inerte ou de estacionária, de- de reduzir os riscos psicológicos de um dese-
vemos assim interrogar-nos se este imobilismo quilíbrio demográfico. O Islão formulou uma
aparente não resultarâ da ignorância em que teoria da solidariedade de todas as formas de
nos encontramos acerca dos seus verdadeiros atividade humana - técnica, económica, social
interesses e se, com os seus critérios, diferen- eespiritual -, e sabemos o lugar predominante
tes dos nossos, esta cultura não será vítima da que esta visão do homem e do mundo permi-
mesma ilusão a nosso respeito. Dito de outra tiu que os Árabes ocupassern rra vida intelec-
forma, não ofereceriam qualquer interesse tual da Idade Média. O Oriente e o Extremo
uma à outra, simplesmente por não se asse- Oriente possuem um avanço de vários milha-
melharem. res de anos em tudo aquilo que diz respeito às
Desde há dois ou três séculos, a ctvThza- relações entre o fisico e o moral e à utilização

çáo ocidental dedicou-se principalmente ao dos recursos desta suprema máquina que é o
conhecimento científico e às suas aplicações. corpo humano. Atrasados nos planos técnico
Se se adotar este critério, faremos da quanti- e económico, os Australianos elaboraram sis-
dade de energia disponível por cabeça de ha- temas sociais e familiares de uma tão grande
bitante o índice do grau de desenvolvimento complexiclade que é preciso, para os com-
clas sociedades humantÌs. Se o <:r'ilét'io tivesse prccn<lc:l; Íìrzcr- apclo :r certas fìlrrntrl:rs das
ÂN'ROPOLOGIÀ FÂCE AOS PROBLEMÂS
CLÀUDE LÉVT.SÌRÂUgg DO MUNDO II'IODERNO

matemáticas modernas. Podemos reconhecer no caso do milho, de aí se expandir; em se-

neles os primeiros teóricos do parentesco. guida o cacau, a baunilha, o tomate, o ananás,


A contribuição da ÁÍiica é mais complexa o pimento, várias espécies de feijões, de algo-
mas também mais obscura, pois mal começa- dões e de cucurbitáceas. Por fim, o zero, base
mos ainda a compreender o papel de melting da aritmética e, indiretamente, das matemáti-
pot que ela desempenhou no Mundo Antigo. cas modernas, era conhecido e utilizado pelos
A civilização egípcia apenas é inteligível como Maias, pelo menos meio milénio antes da sua
uma obra comum da Ásia e da eÍiica. E os descoberta pelos Indianos, que o transmitiram
grandes sistemas políticos da África antiga, as à Europa através dos Árabes. Por esta razâo,
suas contribuições jurídicas, o seu pensamen- talvez, o calendário maia era, na mesma épo-
to Íìlosófico durante muito tempo oculto aos ca, mais exato do que o do Mundo Antigo.

ociclentais, as suas artes plásticas e a sua mú- Regressemos por um instante ao caso da
sica são outros tantos aspetos de um passado Europa e do Japão. Em meados do século xIx,
muito fértil. Pensemos por fim nas múltiplas a Europa e os Estados Unidos estavam cer-
contribuições da América pré-colombiana tamente mais avançados em matéria de in-
para a cultura material do Munclo Antigo. Em dustrialização e de maquinismo. O Ocidente
primeiro lugar, a batata, a borracha, o tabaco soubera desenvolver melhor o conhecimento
e a coca (base da anestesia moderna), que, a científico, para dele retirar todas as espécies de
diversos títulos, constituem quatro pilares da aplicações, que permitiam acrescentar enor-
civilização ocidental; o milho e o amendoim, lÌÌclÌÌcnte o pocler clo homem sobre a nature-
que revolucionaram a economia africana mes- z:r. M:rs tirl rulo ó vc:r-cl:ttlc, tl:r tnesma m:rneiL:t,
mo antes de serem conhecidos na Europâ e, ('rÌì lo<los os rlotnílrios, ( ()nr() lx)r'('x(ìtÌì1ll<l o cl:r
à ÂilÌROpOLOOtA. FACE ÂOS pROBrÊÀrÂt
GLÀUDE LÉVI.SÌNÃUSS DO fltUilDO ilODERl{O

metalurgia do aço e o da química orgânica, de ou assimétricas, numa palavra, por aquilo que
tal modo os Japoneses eram especialistas nas o grande teórico destes estilos arcaicos, Yana-
técnicas da têmpera e na das fermentações, o gi Sôetsu, denominou <a arte do imperfeito".
que talvez explique que hoje tenham tomado a Esta <arte do imperfeito", produzida sem in-
dianteira na biotecnoloeia. Voltemo-nos agora tenção consciente pelos seus primeiros auto-
para literatura. É so-.trte no século xvrrr que
a res, iria inspirar no Japão a cerâmica raku, as
vemos aparecer na Europa obras comparáveis, simplificações ousadas de um mestre oleiro
pela subtileza e pela profundidade psicológi- como Kôetsu e, nos planos gráÍìcos e pÌásticos,
cas, ao Genji monogalan I e. para encontrar num as obras de pintores e decoradores, tais comcr
memorialista os voos líricos e a melancolia co- Sôtatsu e Kôrin.
movente dos vossos cronistas do século xuI, Ora
e é aqui que quero chegar -, este
-
será preciso esperar por Chateaubriand. aspeto da arte japonesa, ilustrado pela escola
Na minha primeira conÍèrência, recordava Rimpa, é o mesmo que, na segunda metade
que o interesse pelas artes ditas "primitivas" do século xrx, Íàscirìou a Europa e fez evoluir
datavam na Europa de menos de um século. a sua sensibilidade estética. Graças ao que a
No Japão, um interesse semelhante remonta curiosidade europeia se alargou proeressiva-
ao século xvl, com a paixão dos vossos este- nÌente, até ao ponto de incluir as artes ditas
tas manifestacla pelas olarias rírsticas, obras de
"primitivas". Mas não nos equivoquemos: a
humildes camponeses coreanos. É então que arte.japonesa preparara o Ocidente, sem que
se afirma entre vós o gosto pelas matérias dei- cste percebcsse, para este entusiasmo, pois
xadas em estado bruto, as texturas rugosas, os Íìri crn ;rr'1c's r'orn1t:rr-írveis pelo seu arcaísmo
acidentes de fabricação, as f'ormas irregulares <
1
r r<'. v:i lios sr'i<'r r los lr lì I oii, ( )s :r r-t ist:ts.jal)( )neses

 ÀiIÏROPOLOGIA ÍÀCE ÀOS PROALElrtAS


CLAUDE TÉVI-SÌRAUS5 DO MUilDO
'ITODERNO

que citei se tinham inspirado e assimilado as uma arte, conhecimentos positivos, crenças re-
suas lições. ligiosas, uma organtzaçâo social e política. Mas
O exemplo é menor, mas parece-me de- a sua dosagem nunca é exatamente a mesma
monstrativo. Achamos que as ideias e os gos- para cada cultura e a antropologia dedica-se
tos vão avançando quando, muitas vezes, não a compreender as razões secretas destas esco-
fazem mais do que andar em círculo. Toma-se lhas, mais do que a estabelecer inventários de
assim por um progresso ousado o seu regresso factos separados.
ao ponto de partida.
Aliás, não são as contribuições separadas
que mais deverão reter a atenção. Fez-se de- Relqfivismo cuhurql e iuízo morql
masiado caso de todas as prioridades: fenícia
para a escrita no Ocidente; chinesa para o pa- A doutrina de que acabo de esboçar as
pel, a pólvora para os canhões, a bússola; in- grandes linhas tem um nome: relativismo cul-
diana para o vidro e o aço... Estes elementos tural. Ela não nega a realidade do progresso'
sáo menos importantes do que a forma como nem que se possam ordenar entre si certas
cada cultura os associa, os retém ou os exclui. culturas, com a condição de nos limitarmos a
O que constitui a originalidade de cada uma este ou àquele aspeto particular. O relativismo
reside antes na sua maneira particuÌar de re- cultural afi.rma, todavia, que, mesmo restrita,
solver os problemas, de colocar em perspetiva esta possibilidade se confìna a três limites.
valores que são, gros.io modo, os mesmos para Em primeiro lugar, embora a realidade do
todos os homens: pois todos os homens seln progresso seja incontestável quanclo se encara
exceção possuem uma linÍruzÌÍÌelÌì, tó<:nic:as, a cvolttçito <lit httnrzrniclade numa perspetiva
 ÂìrÌRoPoto@t ;ÀcE PRoBLEillÂs
CLÂUDE LÉVI-SIRAUSS ^os
DO i[Ut{DO ilODERNO

cavaleira, o progresso náo se manifesta contu- verdadeiro sobre uma outra cultura, uma vez
do a não ser em sectores particulares e, mes- que uma cultura náo se pode evadir de si pró-
mo aí, de forma descontínua, não exclusiva de pria e a sua apreciação se mantém por isso pri-
estagnação e de regressão locais. sioneira de um relativismo contra o qual não
Em segundo, quando o antropólogo exa- tem recurso.
mina e compara em pormenor as sociedades Ora - e é este um dos maiores problemas
pré-industriais, as quais sobretudo estuda, que se colocam à antropologia atual -, des-
é rncapaz de isolar critérios que permitam de há cerca de um século, não reconheceram
ordená-las a todas numa escala comum. todas as sociedades, uma após outra, a supe-
Por fim, o antropólogo declara-se impo- rioridade do mundo ocidental? Náo vemos o
tente para emitir um yuízo de ordem intelec- mundo inteiro imitar-lhe progressivamente as
tual ou moral sobre os valores respetivos deste suas técnicas, o seu género de vida, o seu ves-
ou daquele sistema de crenças, ou de tal ou tal tuário e mesmo as suas distrações?
forma de organizaçâo social. Para o antropólo- Desde as multidões asiáticas até às tribos
go, com efeito, os critérios de moralidade são, perdidas na selva sul-americana ou melané-
por hipótese, uma Íunção da sociedade parti- sia, um acordo unânime, e sem precedentes
cular que os adotou. na história, proclamou até uma época recen-
É po. respeito para com os povos que es- te que uma forma de civilizaçâo era superior
tudam que os antropólogos se proíbem de fìrr- a todas as outras. No momento em que a civi-
mular juízos sobre o valor comparado da cul- hzaçáo de tipo ocidental começa a duvidar de
tura de uns e de outros. Cada cultura, dizem, si próprizr, os povos chegados à independên-
é por essência incapaz cle estabelecef urÌì .1uí2lt t:i;r rro <lr:<'rn'so tlo írltirno tneio séctrlo c<lnti-
'-ï

à Â1IÌROPOIOGI FÂCE ÁO5 PROBLEIIIÀ5


CTAUDE LÉVt-SÌRÂUSS DO ilUl{DO ftlODERltO

nuam a preconrzâ-la, pelo menos pela boca paradas pela distância geogrâhca e por bar-
dos seus dirigentes. Estes acusam mesmo por reiras linguísticas e culturais marcava o fim
vezes os antropólogos de prolongarem insi- de um mundo que foi o dos homens durante
diosamente o domínio colonial ao contribuí- centenas de milénios, talvez um ou dois mi-
rem, pela atenção exclusiva que lhes prestam, thões de anos, quando viviam em grupos du-
para o prolongamento de práticas em desuso ravelmente separados uns dos outros e que
que constituem um obstáculo ao desenvolvi- evoluíam cada um de Íbrma diferente, tanto
mento. Se me é permitido evocar uma recor- no plano biológico como no plano cultural. As
dação pessoal, quando, em 1981, percorria perturbações desencadeadas pela civiüzação
a Coreia do Sul em companhia de colegas e industrial em expansáo, a rapidez acrescida
estudantes, estes últimos, contaram-me, di- dos meios de transporte e de comunicação
ziam entre si, troçando: "Este Lévi-Strauss só derrubaram todas as barreiras. Ao mesmo
se interessa por coisas que.já não existem.> tempo, desapareceram as hipóteses que ofè-
O dogma do relativismo cultural é assim pos- reciam para que se elaborassem e fossem
to em causa por aqueles em beneficio moral postas à prova novas combinações genéticas
dos quais os antropólogos tinham achado de- e experiências culturais.
ver proclamá-lo. Sem dúvida embalamo-nos no sonho de
Esta situação coloca à antropologia, e à que a igualdade e a fraternidade reinaráo um
humanidade tomada no seu conjunto, um dia entre os homens sem que seja comprome-
grave problema. No decurso destzrs três con- tida a sua cliversidade. Mas é preciso que não
ferências, sublinhei em vár-ias oczrsiõrcs que iÌ nos iluclarrn<>s. As gr:rncles épocas criadoras
fusão proeressiva de poprrlaçõrcs uté- cntiro sc- lìll':rrrr lr<lrrcl:rs ('nì (lu(ì :r t:otnttnic:tçiul se t()l--
 ÂlttnoPoLoGIA !ÂcE Âos PRoBLEtf,Â5
CLÂUDE IEVI-SÌRAU5g DO lltut{Do flloDERilo

nou suficiente para que parceiros afastados se encontra hoje em dia colocada. Tudo parece
estimulassem, sem contudo ser suficientemen- mostrar que se inclina para uma civilização
te frequente e rápida para que os obstáculos, mundial. Mas esta própria noção não é con-
indispensáveis tanto entre os indivíduos como traditória se, tal como tentei mostrar, a ideia
entre os grupos, se amenizassem ao ponto de de civilizaçáo implicar e exigir a coexistência
as trocas demasiado fáceis uniftrrmizarem e de culturas que ofereçam entre si a maior das
confundirem essa diversidade. diversidades?
Pois, se é verdade que, para progrediq é O fascínio que o Japáo exerce hoje sobre
preciso que os homens colaborem, no decurso os espíritos, tanto na Europa como nos Esta-
desta colaboração identificam-se gradualmen- dos Unidos, não se deve somente às suas pró-
te as contribuições cuia diversidade inicial era prias técnicas e aos seus sucessos económicos.
precisamente o que tornava a colaboração Ele explica-se em grande parte pelo senti-
fecunda e necessária. O jogo em comum, de nÌento confuso de que, entre todas as nações
onde resulta todo o progresso, deverá acar- modernas, a vossa se mostrou a mais capaz de
retar, num prazo mais ou menos breve, uma navegar entre estes dois escolhos, de elaborar
homogenerz.açâo dos recursos de cada joga- formas de vida e de pensamento adequadas a
dor. Embora a diversidade seja uma condição ultrapassar as contradições às quais a humani-
inicial, é preciso reconhecer que as hipóteses dade do século xx está sujeita.
de ganho se tornam tanto mais fracas quanto O.[apão entrou resolutamente numa civi-
mais a partida tiver de se prolonear. hzaçâ<t munclial, mas, até ao presente, soube
Tâl é o dilema perante o qual, aos olhos Ízrzê-kr senr abjrrr-rÌÌ' zÌs sr.rzÌs czÌnÌ(:terísticas es-
da antropoloeia, a humaniclade moclernzt se pc<:ííi<:lrs. (]lurrrrlo, rur ó1lor:lr rl:r r-erst:rur-:rçir<r
à ÂI{INOPOLOGI FAGE AO' PROBLEIf,AS
GLÀUDE LEVI.!TRÂUS5 DO lilullDo tlloDERÌlo

Meiji, o Japão resolveu abrir-se, fê-lo conven- de vos tornar mais evidente a forma como elas
cido de que lhe era preciso igualar o Ociden- espantam o observador ocidental.
te no plano técnico, se queria salvaguardar os Na minha segunda conferência, sublinha-
seus próprios valores. Ao contrário de muitos va a urgência que se prende com a salvaguarda
países ditos subdesenvolvidos, não se entregou dos "saber-fazer,, tradicionais. Vós encontras-
de mãos e pés atados a um modelo estrangei- tes uma solução para este problema ao insti-
ro. Apenas se afastou momentaneamente do tuirdes o sistema chamado dos "tesouros na-
seu centro de gravidade espiritual para me- cionais vivoso, ningen kohuhô. Penso não estar
lhor o assegurar, protegendo o seu contorno. a trair um segredo de Estado ao confìar-vos
Desde há séculos, o Japão manteve o equi- que os poderes públicos do meu país prepa-
líbrio entre duas atitudes: tanto aberto às in- ram atualmente medidas visando estabelecer
fluências externas e pronto a absorvê-las; tan- em França um sistema diretamente inspirado
to fechado sobre si próprio, como se se tratasse no vosso.
de se dar tempo para assimilar estas contri- Um outro aspeto da vossa história que,
buições estranhas e para lhes imprimir a sua para nós, Franceses, é particularmente instru-
marca. Esta capacidade espantosa do Japão tivo, tem a ver com as formas diferentes - e
de alternar entre duas condutas, de partilhar diria nìesmo opostas - como os nossos dois
a sua fidelidade entre divindades nacionais e países entraram na era industrial. Em França,
aquilo a que vós próprios chamais os "deuses uma burguesia de advogados e de burocratas,
convidadoso são ideias que vos são sem dúvida aliada a um campesinato ávido de pequena
familiares e não pretendo ensinar-vos nada. propriedircle, Íèz uma revolução que aboliu
Gostaria somente, zrtravés cle zrlguns exemplos, sirnult:rrtc:lrÌtcttlc os 1lt'ivilégios c:tclrtc<ts tì iìs-
 AI{ÌROPOLOGIà FACE AO5 PROBLEIIIAS
CTAUDE LÉVI.SIRAUSS DO tìtuNDO flloDEnilo

fìxiou um capitalismo nascente. O Japão, por de fechamento, umas vezes desfasados um em


seu lado, procedeu a uma restauração que, relação ao outro, outras vezes coexistindo no
remontando às fontes, tinha também como tempo. Para ser original e manter em relação
objetivo integrar o povo na comunidade na- a outras culturas afàstamentos que lhes per-
cional. Mas capitalizou o passado, em vez de mitam enriquecerem-se nÌutua[Ìente, toda a
destruí-lo. O Japão conseguiu assim colocar cultura deve a si própria uma fidelidade cujo
ao serviço da nova ordem recursos humanos preço a pagar é uma certa surdez a valores di-
plenamente disponíveis porque o espírito crí- ferentes aos quais permanecerá insensível, to-
tico não tivera a oportunidade de exercer as tal ou parcialmente.
suas devastações e porque todo um aparelh<t Fizestes-me a honra de me confìar estas
de representações simbólicas remontando aos conferências, talvez com a ideia de que a an-
tempos antes da produção do àrroz, e já inte- tropologia pudesse ensinar qualquer coisa ao
grado nos tempos da sua produção, era ainda Japão. Mas se, pela quartavez, venho ao vosso
bastante sólido para dar uma base ideológica país com uma curiosidade, uma simpatia, um
ao poder imperial e, depois, à sociedade in- interesse cada vez mais vivos, é porque - cada
dustrial... uma das minhas estadias me convence mais
Em suma, aquilo que o olhar que nós, oci- disso -, pela forma única de colocar os proble-
dentais, Ìançamos sobre o Japão nos confirma mas do homem moderno e pelas soluções que
é que cada cultura particular, e o conjunto das propõre, o Japão pode ensinar muito à antro-
culturas de que toda a humanidacle é feita, não poloei:r.
podem subsistir e prosperar se não fìrncion:r-
rem segundo um cluplo rit.nro cle :rbcr-trn-:Ì cì
Indice

PROLOGO por Maurice Olender. I


I
O FIM DA SUPRE,MACIA CULI-UIìA.L
DO OCIDE,NTE 13
Aprender com os outros l6
Factos singulares e bizarros. . . . 2r
()o
[Jm denominador comum i).)
"Autenticidade" e "inautenticidade". . 44
"Na perspetiva ocidental
que é a minha" 55
IJm "ponto ótimo de diversidade" . . . o/

II
-I'RÊS (
;IìAN I)I.]S PROBLEMAS
( ìON' I' I.] M I'O RAN IÌOS: A SEXUALIDADE,,
o t) t,ts t,, N v( ) l ,v I N4 t,tN't'o Fl,CoNÓMrco
1,, () l,l,,Nsr\N4l,,N l'() ví'l'lCo . . 77
CLÂUDE LÉVI-STNÃU3S

Clenitor, emprestadora de úter<t


e filiação social BI
O Autor
Procriação artificial; mulheres virgens
e casais homossexuais . 90
Dos sílex da pré-história à cadeia
industrial moderna 99
Carácter ambíguo da nnatureza>>. 109
nAs nossas sociedades são feitas
para mudar, 116
Quais sáo as afinidades entre
pensamento científico,
histórico e mítico? Claude Lévi-Strauss nasceu a 2B de novem-
r27
bro de 1908, em Bruxelas. Ocupou a cadeira
III de Antropologia Social no Collège de France,

RECONHE,CIMENTO DA DIVERSIDADE entre 1959 e 1982, e Í-oi eleito membro da Aca-


CULTURAL: O QTJE, NOS ENSINA demia Francesa em 1973. Faleceu em Paris, a
ACTVTLTZAÇ^OJAPONESA... 139 30 de outubro de 2009.
Antropólogos e geneticistas. . . l4l l

nRaça" - um termo impróprio l52 l

O escândalo da diversidade . . . 16l i

nA arte do imperfèito"
j

17i:\ Bibliogrofiq essenciol


Relativismo cultural e.juízo moral . . . Ifì:ì l

i
i
La, Vie fìt,tnil,ia,[,e eLsot:ittle rles Indiens Nambikwara,
l

Par-is, So<:ióté rlcs Américanistes, I948.

Les,\lt'trt'l rr t r,.s ílr;tttt'ttl,rt,'itvs rl,t


ltnrenté, Paris,
l,a,

l't ll,, l1) l1); l,:r I l:ryt'-l'lrlis, Morrtrrn & (lie,


I{Xì7

I
 ÂNTROPOLOGIA FÀCE ÂO5 PROBLEII,IÂS
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Edição portuguesa: 0 Olh,ar DistanciarJo, trad. Carmen de
Carvalho, Lisboa, Edições 70, 1986. (N. do T.)

Edição portusuesa: Raça e História, trad. lnácia Canelas, Ediçáo poltuguesa: A Ole'ira Ciumenta, trad. José António
t,isboa, Editorial Presença, 1973. (Ì'{. do T.) Br:rga Fernandes Dias, Lisboa, Edições 70, 1987. (N. do 7:)

Ediçáo portuguesa: Tlistes Tiópico,s, trad. Jorge Constante lÌcliçircr portusuesa: Hislóúa do Lince, trad. Rosa Maria Pe-
Pereira, I-isboa, Portugália, 1976. (N. do T.) rcz, I)olto, l.)rliçoes Asa, 1992. (N. do T.)

Edição portuguesa: O Tòtemismo, hoje, trad. José Antírnio t,ì<[içÍ<r l)()r'l u!3u('ri;ì: Olltrt.r Omtir Lar, trac],. -leresa Menescs,
Braga F'ernandes Dias, Lisboa, Edições 70, 198ô. (N. rl,o'l)) IÌrr'1<r, I,,<lir,.iics Asrr, ltl\ìlt. (N. dn'l-.)
Recr:xahecida ïïÌu tìrli;r Irt tt'r tI t'" o
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e ci&;ra de ilXauCe [,évi-Str :u rs\ o_
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d* rmruradc* c{e {liaude l,óvi-Slr:utss il>
8>
olf
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ori
[,Évi-strauss
uPara isolar os grandes temas da sua obrat, ltitr;| ()l i (rlI rrrt rl;rr Tõ
8e
e alualizar, Claude Levi-Strauss recorre livret oO
o(ì ?)
t tct tlt t i tor ; : ;t )l lr, u' ;r t ll t,'l:

Relê eSte OU aqUele teXtO qUe O tOrnOu celel;rc, tclr rttl; tnr ll l', l rl llt' ll rill:] 3(o
8D' )[ X
temas sociaìs que nunca deixaram de o inqttirllitl, llol Ìl,r; t, l,tl lìr,l tl. o
o
a propósito das ligaçÕes entre "raça", historiir o r;r rllrl;;1 ( )t 1, ;111 lrlir, rn,'' lll,r c
:l
Ir '1,)[ rlr )l ìillì r lO
sobre o futuro possível de novas formas de lrrrrÌr; il rir;r ìì( ) r rr il lr rÌil il rr lr r o
o
em plena trans[ormação.
o
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llr ,1, l,/, rt lr ;rrto
Se, por um lado, os leitores de Levi-Strauss otìr;otìlr;tn t , rr p ll E
f,
o
as questÕes que subjazem aos seus traballrt )lì, i ìi; lì{ r\/, l', I lí !l , r, , rr '

poderão descobrir uma visão do futuro protrltx;l;r 1rll r r ll'l irii ;lnir',1 ,
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rlr r, 1, r

Sublinhando a importância da antropologiÍl o( )rÌì( ) rr( )vl "lrtl r, rr rt .ru'


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democrático",ClaudeLévi-Straussinterroç,;a l;cr;oI )rr!"r ,ríir il:r, i'r
cultural do Ocidente", sobre as ligaçÕes e.'ttlrc tcl;tlivi:;t11. r tllltlt;tl
ejuízo moral. [...] Apresentaaindaassuasitttltticl;t(ìi(,r!: ,l'l;tli'it'r;t,,' o
lri
lt-
rb (o
problemas cruciais do nosso mundo, sollrrt ltl;;tlittirl; tr h'",1 1l1r"r rll..tl ':'i" ,;ì
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formas de "explosão ideologica" e o Íttlttro tlol; ittlr)(llli;l ìli,', {; I

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