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ESCOLA SECUNDÁRIA DE DOMINGOS SEQUEIRA

Diagnóstico 12º Letras em Dia

Próximos de não termos fim


5 O livro é uma vela que ilumina por dentro. Sempre que acabo de ler
uma obra à janela da qual vi mais do que veria no quotidiano, tenho a certeza
disto.

E também estou certo de contas: o Universo tem 13,5 mil milhões de anos, a Terra uns
3,5 mil milhões, o continente onde estamos já vai nos vários milhões, e o país numas centenas.
10 Com alguma sorte, chegaremos aos cem anos. Donde, em comparação inclusive com as
tartarugas (que ainda não aprenderam a ler), temos uma breve eternidade para agarrar a coisa
volátil que é a vida.

Não é lirismo nem maneira de dizer. É excelente não sermos acabados. Podíamos ter
vindo de fábrica com as características definidas, como acontece, suponho, com os louva-a-
15 deus. Em vez disso, temos a responsabilidade de nos construirmos a cada dia. No fim, sobrará a
arquitetura de nós mesmos; para uns, algo grandioso e aturado como as obsessões de Gaudí,
para outros, um chão de cimento que ninguém se lembrou de varrer.

Embora a construção seja menos notória na seca do dia a dia - não disse «na seca da
rotina» porque considero a rotina edificante -, ela faz-se à luz de uma vontade que não parece
20 só nossa. Se fosse, apagava-se nos caprichos, nas tristezas. Pelo contrário, somos difíceis de
conter: continuamos a construir, vamos querendo mais e mais vida.

Os livros - já disse, velas que iluminam por dentro, mostram-nos uma dimensão da
existência que é próxima de não ter fim. Nunca poderíamos conhecer uma Helena de Troia no
corredor para o Economato, nem seria bom tentarmos o incesto à la Carlos e Maria Eduarda, ou
25 provar ao pequeno-almoço o arsénico que Madame Bovary engole às mancheias. No entanto, é
como se. E isso, lermos o que não poderíamos ser, torna-nos grandiosos nem que seja
brevemente.

Estaria a dizer banalidades, não fosse a literatura tão importante para que a nossa
arquitetura nunca chegue ao fim. E isso escapa a uma tendência que tenho visto impor-se nos
30 últimos anos: os leitores quererem que os livros sejam espelhos. Assusta-os a descoberta.
Fogem à responsabilidade de se construírem. Fogem ao confronto, à luta. Por isso procuram a
semelhança. A melhor obra é a que retrata aspetos parecidos com a sua experiência - e quantos
mais salamaleques emocionais houver, melhor. A crítica literária máxima, merecedora de cinco
estrelas, passou a ser «identifiquei me». Talvez este tipo de leitor se considere uma coisa finita
35 que não precisa de ser iluminada por dentro.

Não sei por que pensei nisto. Talvez pelo passar do ano, altura em que a vida pede vida.
Altura em que faço listas, me proponho a descobertas. Altura em que quero que a vida me
ilumine por dentro.
CABRAL, Afonso Reis, 2023. «Próximos de não termos fim». In JN.
40 https://www.jn.pt/opinio/afonso-reis cabral/proximos-de-nao-termos-fim-14462077.html
[Consult. 2023-01-22]
1. Relaciona as metáforas com que se inicia o texto com a perspetiva exposta
nos parágrafos das linhas 4 a 23.
45 2. Explicita a crítica desenvolvida no penúltimo parágrafo.
3. Interpreta o valor expressivo do título, atendendo ao assunto do texto.

4. Seleciona a opção correta.


Nas frases «um chão de cimento que ninguém se lembrou de varrer» (l. 13) e
«Se fosse» (I. 16), a palavra «se» é
50 (A) uma conjunção em ambos os casos.
(B) um pronome em ambos os casos.
(C) um pronome e uma conjunção, respetivamente.
(D) uma conjunção e um pronome, respetivamente.

55 5. Identifica a função sintática das expressões:


a. «que ilumina por dentro» (l.1);
b. «a arquitetura de nós mesmos» (I. 12);
c. «menos notória na seca do dia a dia» (l. 14);
d. «de conter» (l. 16).
60
6. Classifica as orações:
a. «onde estamos» (l.5);
b. «que os livros sejam espelhos» (l.26).

65 7. Indica a modalidade expressa em «Talvez este tipo de leitor se considere uma


coisa finita que não precisa de ser iluminada por dentro.» (II. 30-31)

ESCRITA
«É excelente não sermos acabados. Podíamos ter vindo de fábrica com as
70 características definidas, como acontece, suponho, com os louva-a-deus. Em vez
disso, temos a responsabilidade de nos construirmos a cada dia .» (II. 9-11)

Num texto de opinião bem estruturado, com um mínimo de duzentas e um máximo


de trezentas e cinquenta palavras, defende um ponto de vista pessoal sobre a
75 perspetiva expressa por Afonso Reis Cabral no excerto acima transcrito.

No teu texto:
- explicita, de forma clara e pertinente, a tua opinião, fundamentando-a em
dois argumentos, cada um deles ilustrado com um exemplo significativo;
80 - formula uma conclusão adequada à argumentação desenvolvida;
- utiliza um discurso valorativo (juízo de valor explícito ou implícito).

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