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ADOLESCENTES EM SITUAÇÃO
DE VIOLÊNCIA SEXUAL
Aspectos Teóricos e Metodológicos
ESCUTA DE CRIANÇAS E
ADOLESCENTES EM SITUAÇÃO
DE VIOLÊNCIA SEXUAL
Aspectos Teóricos e Metodológicos
Organizadores:
Benedito Rodrigues dos Santos
Itamar Batista Gonçalves
Maria Gorete O. M. Vasconcelos
Paola Barreiros Barbieri
Vanessa Nascimento Viana
Brasília-DF
2014
UNIVERSIDADE CATÓLICA DE BRASÍLIA – UCB
Missão
A Universidade Católica de Brasília tem como missão atuar solidária e efetivamente para o desenvolvimento
integral da pessoa humana e da sociedade, por meio da geração e comunhão do saber, comprometida com a
qualidade e os valores éticos e cristãos, na busca da verdade.
Reitor
Gilberto Gonçalves Garcia
Coordenador
Paulo Henrique Alves Guimarães
ISBN 978-85-60485-70-3
CDU 159.9:343.541
Ficha elaborada pela Biblioteca Central da Universidade Católica de Brasília – UCB
Childhood Brasil
Coordenação do projeto
Itamar Batista Gonçalves
Childhood Brasil
Coordenadora de programas
Maria Gorete O. M. Vasconcelos
Childhood Brasil
Coordenação científica
Benedito Rodrigues dos Santos
Prof. Dr. da Universidade Católica de Brasília
Coordenação executiva
Paola Barreiros Barbieri
Consultora da Childhood Brasil
Colaboração técnica
Vanessa Nascimento Viana
Cintia Cristina Cavalcante L. de Barros
Revisão técnica
Benedito Rodrigues dos Santos
Maria Gorete O. M. Vasconcelos
Itamar Batista Gonçalves
Prefácio ................................................................................................................................................13
Apresentação ......................................................................................................................................15
Introdução ...........................................................................................................................................17
Capítulo 1 ................................................................................................................ 27
Por uma escuta da criança e do adolescente social e culturalmente contextualizada:
concepções de infância e de adolescência, universalidade de direitos e respeito às
diversidades
Benedito Rodrigues dos Santos
Capítulo 2 .............................................................................................................. 43
Desenvolvimento infantil: a revelação da criança pela linguagem
Silvia Renata Magalhães Lordello
Capítulo 3 ............................................................................................................... 57
O desenvolvimento infantil e o direito à sexualidade e à afetividade
Rita Ippolito
Capítulo 4 ............................................................................................................... 69
O essencial é invisível aos olhos: impactos da violência sexual na subjetividade de
crianças e de adolescentes
Anna Flora Werneck
Itamar Batista Gonçalves
Maria Gorete O. M. Vasconcelos
III – Marco normativo e produção de políticas públicas
Capítulo 5 ............................................................................................................... 91
Crianças e adolescentes vítimas de abuso sexual: a emergência de sua
subjetividade jurídica no embate entre modelos jurídicos de intervenção e seus
direitos. Uma análise crítica sob o crivo histórico-comparativo à luz do debate em
torno do depoimento especial
Eduardo Rezende Melo
Prefácio
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Escuta de crianças e adolescentes em situação de violência sexual: aspectos teóricos e metodológicos
Gary Stahl
Representante do UNICEF no Brasil
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Escuta de crianças e adolescentes em situação de violência sexual: aspectos teóricos e metodológicos
Apresentação
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Escuta de crianças e adolescentes em situação de violência sexual: aspectos teóricos e metodológicos
Introdução
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Escuta de crianças e adolescentes em situação de violência sexual: aspectos teóricos e metodológicos
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I – Concepções de
infância e de
adolescência, de
desenvolvimento da
linguagem e sexual
Capítulo 1
Por uma escuta da criança e do
adolescente social e culturalmente
contextualizada: concepções de infância
e de adolescência, universalidade de
direitos e respeito às diversidades
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Escuta de crianças e adolescentes em situação de violência sexual: aspectos teóricos e metodológicos
Para Ariès, a criança muito pequenina (abaixo dos sete anos de idade),
ainda muito frágil para se misturar à vida dos adultos, não contava. Parte dessa
pouca importância era atribuída aos altos índices de mortalidade infantil, em uma
época em que a sobrevivência era pouco provável. Assim que a criança ultrapassava
esse período de risco e a fase de maior solicitação à mãe, ela se confundia com
os adultos. A dimensão temporal da infância estava relacionada ao tempo em que
a criança dependia fisicamente dos cuidados dos adultos; enquanto o “filhote de
homem não conseguia abastar-se”. De criancinha pequena “ela se transformava
imediatamente em homem jovem, sem passar pelas etapas da juventude” (ARIÈS,
1960, p. 10). Daí por diante, sua socialização e a transmissão dos valores e dos
conhecimentos a ela, de modo mais geral,
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Capítulo 1 - Por uma escuta da criança e do adolescente social e culturalmente contextualizada: concepções de infância e de adolescência, universalidade de direitos e respeito às diversidades
– até por volta dos 19 ou dos 20 anos de idade. Dessa forma, a infância se liga ao
tempo de estudar, e não ao de trabalhar, para se preparar para a vida de adulto e de
trabalhador. Vejamos com mais detalhes estas características da chamada infância
moderna.
A complexidade e a especialização da vida moderna nas sociedades
industriais impactam a socialização de crianças de cinco maneiras:
1. A separação das esferas sociais de crianças e de adultos. Ocorre uma
apartação entre as esferas sociais de adultos e de crianças, embora continue
havendo conexões e mediações entre esses dois mundos. Nas sociedades
do passado, a infância era vista como uma etapa natural de uma progressão
que leva a criança a se tornar adulta. A noção de infância se vinculava à
primeira fase da vida da pessoa que, atualmente, designamos criancinhas
ou bebês. A partir dos seis ou dos sete anos, ela começava a participar da
esfera social dos adultos (ARIÈS, 1986).
2. Prolongamento do tempo de infância. O tempo de preparação das crianças
para a entrada na vida adulta é prolongado, e o conceito de adolescência é
inventado no período de vida intermediário entre a infância e a juventude.
Os limites etários anteriormente estabelecidos entre 5 e 7 anos foram
estendidos até os 18 ou os 19 anos, a partir dos quais passa-se para juventude
(ARIÈS, 1986).
3. A segmentação dos espaços de socialização. Nas sociedades da Era Medieval,
as crianças eram educadas na própria família até os seis ou sete anos.
Depois disso, eram colocadas em uma espécie de sistema de aprendizagem:
elas eram enviadas à casa de vizinhos, de amigos e de parentes para serem
educadas tanto por intermédio da convivência, quanto do aprendizado de
um ofício. Elas aprendiam pela observação direta com os adultos e não
apenas por instruções verbais ou por informações conceituais, como em
nossas sociedades modernas. Esse sistema era pautado pela reciprocidade
e pela solidariedade social, de modo que os filhos de uma família sempre
eram educados por outras famílias e pela comunidade.
4. O lócus da socialização deixa os espaços da família e da comunidade.
Surgem, como novos espaços de socialização da criança e do adolescente,
a escola e o grupo de pares. A noção de infância se vincula de tal maneira à
condição de estudante que alguns autores chegam a afirmar que foi a escola
que construiu a visão moderna de infância. Assim, o tempo de infância
se vincula ao tempo de estudar e não ao de trabalhar. A preparação para
a vida adulta não se fará mais como no sistema de aprendizagem antigo,
mas sim por meio da escola. Esta passa a assumir um lugar tão importante
no desenvolvimento cognitivo das crianças que estudar e trabalhar são
atividades de difícil conciliação sem prejuízos mútuos.
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Escuta de crianças e adolescentes em situação de violência sexual: aspectos teóricos e metodológicos
Uma breve análise dessas normas legais demonstra mudança das concepções
de infância e de adolescência a elas subjacentes. Observando, genericamente, a
tradição dos sistemas legais da maioria das sociedades ocidentais modernas no que
se refere à criança e ao adolescente, constata-se a importância central de quatro
categorias: poder, responsabilidade, imunidade e incapacidade. O termo poder,
quando utilizado no sentido legal, indica alguém que detenha os meios para mudar
o status legal de outra pessoa, e seu correlato é a responsabilidade legal. A oposição
ao poder legal é a incapacidade, no sentido de não ter poder. Assim, por exemplo,
as autoridades judiciárias têm poder para suprimir ou para delimitar o direito
dos pais, destituindo-os do pátrio poder ou suspendendo-o temporariamente
e transferindo-o para a autoridade de bem-estar social. Os pais detêm o poder
sobre os filhos até determinada idade e podem, inclusive, emancipá-los segundo
4
As referências de Veerman condições e fins estipulados nos sistemas legais de cada país.
(1991) são: Hohfeld, Wesley
N. Some fundamental legal
O termo responsabilidade corresponde ao poder e está em oposição à
conceptions as applied in imunidade. O responsável legal por alguém tem, sob sua jurisdição, uma pessoa
judicial reasoning, 1917, 23 que é sua dependente; portanto, essa pessoa está na posição de dependência. Essa
Yale Journal, 26, e Fundamental
dependência pode ser acompanhada de imunidade total, de não responsabilidade
legal conceptions as applied in
judicial reasoning, New Haven, ou de incapacidade legal. Neste último caso, as pessoas ou as instituições que
Conn., 1919, Yale University detêm a tutela têm responsabilidade pela criação e pelos atos do indivíduo menor,
Press; Sandel, Michael I. ou ele pode perder a imunidade de maneira gradativa e ser responsabilizado
Liberalism and the limits of Justice,
Cambridge, 1982, Cambridge legalmente pelos seus atos (VEERMAN, 1992).4 Skolnick (1975, p. 38) afirma
University Press; Mulder, que é justamente a incompetência, correspondente ao conceito de incapacidade
Mauk, P. Omgaan et macht, mencionado anteriormente, o traço característico que distingue toda a infância.
Amsterdam, 1977, Elseviers
“O sistema legal não somente reflete e codifica esta concepção de infância, como
Publ. House; Gobble, George
W. A redefinition of basic legal também molda a realidade social em que as crianças – e adultos – vivem suas
terms. Columbia Review, 1935, vidas diárias”5. Ela acrescenta, ainda, a presunção de Goldstein (1974, p. 38) de
v. 3; Kamba, Walter J. Legal que as crianças são “seres incompletos que não são inteiramente completos para
theory and Hohfeld’s Analysis
of a legal right. Judicial Theory determinar e salvaguardar seus interesses”. Dessa maneira, existem, por um lado,
Review, December 1974. restrições legais para casar, para votar, para trabalhar, para comprar bebidas e para
5
Texto original em inglês: “The firmar contratos. Por outro lado, há leis que obrigam as crianças e os adolescentes
legal system not only reflects a frequentarem a escola e a serem criadas e educadas por seus pais.
and codifies this conception
of childhood, but shapes the Se várias sociedades ocidentais definem suas concepções de infância
social reality in which children e de adolescência com base no paradigma do adulto – portanto, crianças e
- and adults - live their daily adolescentes são seres incompletos ou incapazes, enquanto o adulto é completo
lives”. Skolnick (1975) refere-
e capaz, o que já é um diferencial negativo para os primeiros –, nos países latino-
se ao trabalho de J. Goldstein e
A. Solnit, Beyond the best interest americanos, onde o conceito jurídico de menor de idade se transformou em um
of the child, 1974. O texto em conceito sociológico – a problemática do menor, dos meninos e das meninas
inglês é “incomplete beings de rua –, as crianças e os adolescentes, sobretudo dos segmentos mais pobres,
who are not fully competent
to determine and safeguard foram revestidas de extrema inferioridade e estigmatização, como é caso do
their interests”, ambas citações Brasil (GRUNSPUN, 1985; VIOLANTE, 1982; QUEIROZ et al., 1987;
encontram-se na página 36. SCHNEIDER, 1987; FERREIRA, 1979).
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Escuta de crianças e adolescentes em situação de violência sexual: aspectos teóricos e metodológicos
Por uma escuta que respeite o contexto cultural das várias infâncias
brasileiras
O leque das diversidades tratadas neste capítulo deve ser ampliado para
incluir diferenças de regiões e de territórios, de gênero, de orientação sexual e de
condição social, as quais não foram abordadas ou o foram apenas tangencialmente,
dado o escopo e a natureza deste capítulo introdutório. Dessa forma, antes de
proceder à escuta de uma criança e ou de um adolescente vítima ou testemunha de
violência sexual, os profissionais devem buscar compreender o universo simbólico
presente no imaginário dessa mesma criança e desse mesmo adolescente. Um
mesmo ato pode ser entendido por uma criança entre três e sete anos diferentemente
do que para um ou uma adolescente. Esse mesmo ato pode ser compreendido
diferentemente por um menino e por uma menina, ou por uma criança de classe
média e outra das camadas populares, ou ainda entre uma criança urbana e outra
rural, ou ainda entre uma criança indígena e uma não indígena.
Nunca é excessivo ressaltar o status da condição peculiar de ser em
desenvolvimento de nossas crianças e adolescentes. Como vimos, o conceito de
criança e de adolescente instituído pelo ECA no Brasil incorpora, na sua plenitude,
a doutrina da proteção integral, que constitui a base da Convenção sobre os Direitos
da Criança, cujo conceito foi inspirado na concepção da criança como sujeitos
de direito, em condição peculiar de desenvolvimento. Tal condição peculiar de
desenvolvimento desses sujeitos caracteriza-se por intrincados processos biológicos,
psicoafetivos, cognitivos e sociais que exigem, do ambiente que os cerca, do ponto
de vista material e humano, uma série de condições para o seu desenvolvimento.
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Referências
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História da vida privada: da renascença ao século das luzes. FEIST, H. (Trad.). São
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Crianças indígenas: ensaios antropológicos. São Paulo: Global, 2002.
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Capítulo 2
Desenvolvimento infantil: a revelação
da criança pela linguagem
Silvia Renata Magalhães Lordello
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Capítulo 2 - Desenvolvimento infantil: a revelação da criança pela linguagem
da vovó e depois, minha mãe foi trabalhar”. A criança não tem compromisso com a
causalidade e por isso suas explicações e seus desenhos trazem trechos produzidos
sem um fio condutor, o que, muitas vezes, promove a ideia de que a fala infantil
deva ser desacreditada por esse motivo.
A principal justificativa da presença desses traços na linguagem é que o
período pré-operatório é egocêntrico, ou seja, a criança apenas consegue pensar
em termos do seu ponto de vista. Ela não consegue absorver o papel de outro
indivíduo, revelando uma incapacidade de se descentrar. Evans (1980) e Seber
(1997) apontam o quanto o conceito de egocentrismo está presente em diversos
estudos piagetianos, constatando a manifestação dessa característica em dimensões
variadas como a linguagem, a socialização e o controle de seu comportamento.
Além disso, o pensamento infantil também é centralizado e, por isso, enfoca um
aspecto de cada vez. Dessa forma, a criança não consegue considerar mais de
uma variável em uma situação. Como ela não concebe um mundo do qual ela
não faça parte, expressa-se segundo um ponto de vista próprio, coerente ou não
com a realidade.
Na linguagem, o egocentrismo apresenta, como atributos, o animismo,
que é a atribuição de características humanas a seres e a objetos inanimados, e
as explicações artificialistas, não vinculadas à realidade, incluindo aspectos
imaginativos. A criança pode dizer que foi o pai quem comprou o rio que passa
perto da casa (artificialismo) ou aceitar uma ordem de uma boneca (que, para ela,
tem vida). Pode chorar porque o irmão disse que a mãe é dele (seu egocentrismo
não permite ver que a mãe dela pode ser de outro também) ou pode achar que, ao
procurar um carro, não precisa descrevê-lo (todos da casa deveriam saber de que
carro se trata, uma vez que não há outro pensamento além do dela).
Para quem avalia o discurso infantil, tais características podem sugerir
que o relato da criança a respeito de um fato não seja verdadeiro. Entretanto, esse
pensamento não encontra respaldo na literatura do desenvolvimento infantil. É
preciso apenas uma interpretação adequada. Imagine ouvir uma criança vítima de
abuso sexual perpetrado por alguém de sua família: João, três anos, foi surpreendido
por seu pai em uma cena com um primo mais velho no qual este brincava de dar-
lhe banho, fazendo todo o tipo de manipulação em seus órgãos sexuais. Ao ser
questionado posteriormente pela família, João relatava que seu primo gostava de
fazer de conta que era o sabonete e ficava lavando ele todo na brincadeira de faz de
conta. Para João, não havia uma relação entre significante e significado. Por isso,
ele não associou a brincadeira a algo errado. Fazendo uso do sincretismo, seu relato
misturava trechos do abuso, aspectos da casa da avó, descrições de brinquedos e
de colegas da escola. Contudo, mesmo com sua visão pré-operatória, guiada pela
percepção imediata, João mostrava um conteúdo claro, passível de ser interpretado
pelos adultos como uma experiência abusiva a ser investigada.
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Ainda no estágio pré-operatório, há outro subestágio que vai dos quatro aos
sete anos e é caracterizado pela maior complexidade de pensamentos, de imagens e
de progressões na capacidade de conceitualizar. A irreversibilidade é característica
típica desse período, pois a criança não é capaz de visualizar a situação original. A
lógica infantil é baseada em critérios perceptivos, pois não há conduta conservativa.
O que significam irreversibilidade e ausência de conservação? No campo
da linguagem, é saber que a criança age por percepção e não por operação. Se
pensarmos em situações do dia a dia, observamos que se alguém oferece a uma
criança duas notas de dois reais em troca de uma nota de vinte reais, a criança aceita
a proposta acreditando que fez um grande negócio. Isso ocorre porque é levada
pela percepção imediata e não pela conservação de valores. Por meio da percepção
centralizada em uma única dimensão, a criança não consegue coordenar dois ou
mais atributos do problema.
A partir de sua entrada na escola, da descentração (diminuição gradativa
do egocentrismo) e de sua passagem ao período operatório concreto, a criança
supera esses parâmetros ilusórios e refina a sua expressão verbal, apresentando
sofisticação dos argumentos, embora ainda de modo atrelado ao concreto. Por
exemplo, se observarmos comandos de livros didáticos e outras metodologias
desta fase, perceberemos que a contextualização é fundamental. É como se, para
estabelecer relações, a criança precisasse se ancorar em materiais, em histórias, em
experiências; como se tivesse de visualizar a situação para poder agir. Nas situações
de violência, ela consegue, por meio do brinquedo, revelar uma situação abusiva
de forma metafórica, mas ainda necessitando deste recurso para contextualizar a
experiência. Exigir um discurso hipotético nesta fase seria complexo demais para
a criança.
A característica da abstração, que transparece no pensamento e no discurso
de forma muito elaborada, representa o ápice do desenvolvimento cognitivo para
Piaget. Isso apenas terá lugar por volta dos 12 anos, quando se alcança o estágio
operatório formal. Este estágio se caracteriza pela construção progressiva da
capacidade de hipotetizar, de generalizar, de extrair propriedades e regras sem
vinculá-las à experimentação. Os adolescentes já conseguem formar juízos de forma
complexa, fazendo combinações de múltiplas variáveis. Nesta etapa, é comum
desenvolverem questionamentos e elaborarem teorias próprias, surpreendendo
seus familiares com críticas e com argumentos. A teoria de Piaget em relação à
linguagem nos aponta alguns cuidados que devemos tomar na qualidade de
profissionais que estão em contato direto com o discurso infantil.
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ele indica o ponto de partida. O que é real para uma criança é traduzido em seu
discurso e em suas ações.
Se já conhecemos o nível real do sujeito, podemos hipotetizar o que ele é
capaz de fazer com ajuda, uma vez que, para Vygotsky, os papéis do outro social e da
interação são indispensáveis. Este nível, o autor denomina nível de desenvolvimento
potencial, ou seja, se a criança é capaz de realizar tarefas com a intervenção de
alguém mais experiente que lhe dá pistas, que demonstra, que imita a forma de
resolver um problema, ela estará demonstrando que é capaz. Para Vygotsky, isto
é mais indicativo do desenvolvimento mental da criança do que aquilo que ela já
realiza sozinha. Daí a importância de não subestimarmos a capacidade da criança e
do adolescente, mas de oferecermos a mediação necessária para que eles avancem
em níveis de desenvolvimento.
Isso é revelador do valor da interação e das etapas posteriores do processo,
pois crianças de seis anos podem fazer, sozinhas, aquilo que, aos três anos, faziam
apenas com ajuda e que, aos três meses, nem com ajuda conseguiriam, como
andar de bicicleta, por exemplo. De acordo com Oliveira (1997), a concepção
vygotskyana de que o aprendizado desperta processos internos comprova a relação
entre desenvolvimento e ambiente sociocultural, deixando claro que o organismo
não se desenvolve plenamente sem o suporte de outros indivíduos de sua espécie.
Essa intervenção transformadora do outro terá lugar em um conceito específico que
Vygotsky formula para explicar a relação entre desenvolvimento e aprendizagem: a
zona de desenvolvimento proximal.
A distância entre o nível de desenvolvimento real, que compreende o que
a criança já sabe ou já é capaz de realizar sozinha, e o nível de desenvolvimento
potencial, que percebe de forma prospectiva o que ela é capaz de fazer com ajuda, é
chamada de zona de desenvolvimento proximal. Este conceito corresponde à área
de atuação do outro social mais experiente para promover transformações. Não é
possível mensurar essa zona, pois ela é dinâmica, dialética e difere de sujeito para
sujeito. Refere-se ao caminho que a pessoa percorrerá para desenvolver funções
que estão em processo de amadurecimento e que se tornarão consolidadas. O que
a criança hoje faz com ajuda, amanhã fará de forma independente.
É importante lembrar que cada fala, cada intervenção vai atuar sobre o
processo de maneira pessoal e que não se pode mensurar como estão ocorrendo
as transformações, pois cada qual relacionará, às próprias aprendizagens, vivências
anteriores e particularidades dos processos de desenvolvimento psicológico. Daí
a importância da preparação de profissionais para a escuta de crianças, pensando
que sua intervenção, que sua pergunta, que seus questionamentos ou proposta
lúdica podem promover mudanças, progressos e impactos no desenvolvimento
das crianças.
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Capítulo 2 - Desenvolvimento infantil: a revelação da criança pela linguagem
Considerações finais
Referências
EVANS, R. I. Jean Piaget: o homem e suas idéias. Rio de Janeiro: Forense-
Universitária, 1980.
OLIVEIRA, M. K. Vygotsky: aprendizado e desenvolvimento: um processo sócio-
histórico. São Paulo: Scipione. 1997.
PIAGET, J. O raciocínio na criança. Rio de Janeiro: Editora Record, 1967.
SEBER, M. G. Piaget: o diálogo com a criança e o desenvolvimento do raciocínio.
São Paulo: Scipione, 1997.
VYGOTSKY, L. S. A formação social da mente. São Paulo: Martins Fontes, 1984.
______. Pensamento e linguagem. São Paulo: Martins Fontes, 1989.
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por um absolutismo moral (as regras são absolutas e imutáveis) e por uma
justiça imanente (a violação segue sempre o justo castigo). Aos sete anos, a
criança começa a desenvolver uma moral da reciprocidade, ou a chamada
moral autônoma. As regras do jogo já não são imutáveis como antes, e,
se todo mundo concordar com a mudança, a punição que segue um mau
comportamento é fortemente atenuada. A criança começa a julgar as ações
com base nas motivações e não apenas nos efeitos. As dicotomias bem-mal,
certo-errado, a partir de agora, tomam a característica do caminho moral
do adulto. As estratégias mnemônicas são outro aspecto importante no
processo de aprendizagem. A criança encontra estratégias de classificação e
de associação, por exemplo, entre imagens e conteúdo indispensáveis para
se lembrar de um impressionante conjunto de dados. O desenvolvimento
da noção de tempo, em crianças, definido como tempo físico, está
intimamente conectado à noção de movimento e de velocidade. O tempo
é um conceito que se constrói de forma lenta e gradual.
4. Estágio operacional formal (12 anos em diante) – Esta fase é
caracterizada pela capacidade de execução de operações formais. A criança
começa a usar as próprias ideias da mesma forma como, antes, utilizava os
objetos. A diferença fundamental é que as ideias são muito mais flexíveis
e manipuláveis e podem resultar em suposições completamente novas e
diferentes. A criança pequena é apenas um observador de fora, incapaz de
refletir sobre os acontecimentos. O que caracteriza o adolescente, por sua
vez, é o seu interesse por assuntos sem relação com a realidade vivida dia a
dia. O que é surpreendente é a sua facilidade de desenvolver teorias abstratas.
O adolescente, como a criança, vive no presente, mas está muito projetado
no futuro. O seu mundo está cheio de projetos e de teorias sobre si mesmo
e sobre a vida. Em seguida, ele estende seu pensamento com base no real
em direção ao possível. A transição do pensamento concreto para o formal,
também chamado de hipotético-dedutivo, é uma transição suave. Até
agora, portanto, as operações de pensamento baseavam-se exclusivamente
na realidade e nos objetos tangíveis que poderiam ser manipulados e
submetidos a experiências reais. Nesta fase, nasce a representação de objetos
ausentes, o que equivale à representação da realidade. Neste estágio, além da
lógica formal e da conclusão da construção do pensamento, o adolescente
define a própria personalidade. Esse desenvolvimento da personalidade
começa por volta dos 8 anos e se define em torno dos 12 anos, influenciado
pelas regras e pelos valores que são adotados pela sociedade, bem como
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Referência
PIAGET, J. A formação do símbolo na criança: imitação, jogo e sonho, imagem e
representação. CABRAL, A. (Trad.) Rio de Janeiro: Zahar, 1971.
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Capítulo 3 - O desenvolvimento infantil e o direito à sexualidade e à afetividade
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Escuta de crianças e adolescentes em situação de violência sexual: aspectos teóricos e metodológicos
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Capítulo 3 - O desenvolvimento infantil e o direito à sexualidade e à afetividade
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Escuta de crianças e adolescentes em situação de violência sexual: aspectos teóricos e metodológicos
Conclusões
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Capítulo 3 - O desenvolvimento infantil e o direito à sexualidade e à afetividade
Referências
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Escuta de crianças e adolescentes em situação de violência sexual: aspectos teóricos e metodológicos
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www.unige.ch/piaget
www.jpiaget.com.br
www.sapo.pt/piaget
www.oikos.org/piagethom.htm
www.edusurfa.pt/piaget
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II – Conceitos e
caracterização da
violência sexual
Capítulo 4
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Capítulo 4 - O essencial é invisível aos olhos: impactos da violência sexual na subjetividade de crianças e de adolescentes
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Capítulo 4 - O essencial é invisível aos olhos: impactos da violência sexual na subjetividade de crianças e de adolescentes
passagem que o homem faz de seu estado de natureza para a cultura, possibilitando
a exogamia. Neste sentido, o termo incesto designa relações que são interditadas em
decorrência de um vínculo parental, o qual varia de cultura para cultura. Na mesma
linha de pensamento, Cohen (2000) define o incesto e o abuso sexual intrafamiliar
da seguinte forma: incesto é o abuso sexual intrafamiliar, com ou sem violência
explícita, caracterizado pela estimulação sexual intencional por parte de um dos
membros do grupo que possui um vínculo pelo qual lhe é proibido o matrimônio.
Abuso sexual é qualquer relacionamento interpessoal no qual a sexualidade é
veiculada sem o consentimento válido de uma das pessoas envolvidas, implicando
em violência psicológica, social e/ou física.
Em suas pesquisas sobre incesto, Cohen (2000) contempla as dimensões
de saúde mental e de justiça presentes nas situações de incesto e de abuso sexual.
Essa violência sexual, além de envolver aspectos da justiça e da saúde mental,
traz, em sua essência, o contexto social, com fatores que podem contribuir para
a vulnerabilidade de crianças e de adolescentes. Sendo assim, o contexto social
tanto pode favorecer a ocorrência do abuso sexual, como pode contribuir para a
sua prevenção.
Considerando uma amplitude de aspectos relacionados às situações de
violência sexual contra crianças e adolescentes, Faleiros (2000), ao fazer uma
revisão dos conceitos que tratam do tema e considerando a afirmação de Gabel
(1997), que apresenta o abuso como uma ultrapassagem de limites ou transgressão,
argumenta que:
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Capítulo 4 - O essencial é invisível aos olhos: impactos da violência sexual na subjetividade de crianças e de adolescentes
mais saudáveis que vão ajudá-los a retomar sua vida escolar, familiar e até mesmo
profissional a fim de superar o ocorrido. Entretanto, há crianças e adolescentes e
até mesmo famílias inteiras que não conseguem superar o trauma deixado pela
experiência da violência sexual; não conseguem estabelecer novos vínculos e
relações mais saudáveis. Estas crianças, estes adolescentes e suas famílias podem ser
dominados pela angústia paralisante e ter muita dificuldade em retomar suas vidas.
Por causa de consequências tão dissonantes e até mesmo antagônicas na
vivência da experiência da violência sexual é que acreditamos ser muito importante
o bom acolhimento das vítimas após a revelação da violência sofrida. Acreditar na
criança ou no adolescente, acolhê-los e encaminhar o caso para os serviços e para
as pessoas preparadas para escutá-los e ajudá-los a simbolizar o ocorrido é essencial
para a superação do trauma.
As pesquisas referentes à temática ainda são incipientes e demonstram
que existem várias leituras. Contudo, existe uma tendência a ressaltar os
impactos negativos provocados no desenvolvimento de crianças e de adolescentes
submetidos ao abuso e à exploração sexual, pois, em ambas as situações, está
presente a imposição da sexualidade adulta que invade o corpo e o psiquismo da
criança e do adolescente quando estes ainda não estão preparados ou amadurecidos
para tal vivência. Segundo Gijseghem (apud GABEL, 1997, p. 64), professor da
Universidade de Montreal, “quanto mais cedo ocorreu o incesto, maior o risco
de que as feridas sejam irreversíveis, particularmente ao nível da identidade”. Ele
assevera que as sequelas apresentadas pelas crianças pré-púberes dificultam sua
evolução psicoafetiva e sexual, afetando as identificações.
Um estudo canadense de Ontário (ROUYER, 1997, p. 62), envolvendo
125 crianças com menos de 6 anos de idade e que sofreram violência sexual,
concluiu que 60% delas manifestavam reações psicossomáticas e desordens no
comportamento, tais como: pesadelos, medos, angústias. Outras 18% apresentaram
anomalias do comportamento sexual: masturbação excessiva, objetos introduzidos
na vagina e no ânus, comportamento de sedução, de pedido de estimulação sexual
e conhecimento da sexualidade adulta inadaptado para a idade.
Um estudo francês, de V. Courtecuisse e sua equipe (ROUYER, 1997, p.
63), concluiu, no acolhimento de 30 adolescentes que sofreram violência sexual, que
22 tentaram, uma vez, o suicídio. Foram constatados, nessas adolescentes, estados
depressivos, dificuldades no desenvolvimento escolar, fugas, anorexia, distúrbios
sem substrato orgânico que causavam sérios problemas físicos e toxicomania.
A psicóloga Liliane Deltaglia (1995), especializada em atendimento em
tribunais, analisou perícias de adultos autores de abusos sexuais de crianças. Ela
concluiu que, mais do que o ato sexual imposto à criança, é a violência da situação
de dominação que provoca as desordens de comportamento constatadas.
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Escuta de crianças e adolescentes em situação de violência sexual: aspectos teóricos e metodológicos
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Capítulo 4 - O essencial é invisível aos olhos: impactos da violência sexual na subjetividade de crianças e de adolescentes
Pistas sexuais
• Desenha órgãos genitais além do esperado para sua idade.
• Apresenta comportamento sexual inadequado para sua idade.
• Mostra interesse não usual por assuntos sexuais.
• Pede informação sobre modos de contracepções frequentemente, o que
pode indicar um grito de ajuda.
Pistas gerais
• Comportamento regressivo.
• Perturbações do sono. Ex.: enurese noturna, pesadelos, sonolência.
• Isolamento social.
• Alternância de humor: passa do triste para o alegre e vice-versa em pouco
tempo.
• Mudança de comportamento alimentar. Ex. perda de apetite, obesidade.
• Medo de lugares fechados.
• Falta de confiança nos adultos.
• Medo acentuado de homens ou de mulheres.
• Exibições inapropriadas de afeto para com os pais.
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Escuta de crianças e adolescentes em situação de violência sexual: aspectos teóricos e metodológicos
Outras Pistas
• Masturbação excessiva.
• Vergonha excessiva.
• Dificuldade de caminhar, de urinar ou de engolir.
• Doenças sexualmente transmissíveis.
• Dor, coceira ou odor na área genital.
• Roupas rasgadas ou com manchas de sangue.
• Sangramento na região vaginal ou anal.
• Sêmen ao redor da boca, nos genitais ou na roupa.
• Aparente maturidade.
• Atitudes perversas.
• Aumento da frequência das atividades heterossexuais ou homossexuais.
• Busca constante de confirmação de afeto por parte dos adultos.
• Comportamento delinquente impulsivo ou autodestrutivo.
2
• Sentimento de culpa ou de vergonha excessivo.
Diversos autores que tratam
do tema sobre consequências • Depressão.
foram pesquisados. Para
saber mais, ver: Azevedo e
• Desenvolvimento precoce dos interesses sobre assuntos sexuais e da
Guerra (1989), Backes (1999), independência do adolescente.
Mariane (1994), Adam (1995), • Dificuldade no contato com adultos.
Mullen e Fleming (1998).
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Capítulo 4 - O essencial é invisível aos olhos: impactos da violência sexual na subjetividade de crianças e de adolescentes
• Distúrbios da personalidade.
• Doenças sexualmente transmissíveis.
• Estágio infantil prolongado ou regredido.
• Inadequação nas relações sociais.
• Perda da autoestima.
• Pessimismo.
• Retardo do desenvolvimento mental e emocional.
• Sintomas de nervosismo.
• Tendência a fuga das atividades normais da infância.
• Altos níveis de ansiedade.
• Autoflagelação.
• Choro sem causa aparente.
• Comportamento muito agressivo, apático ou isolado.
• Tentativas de suicídio.
• Sentimento prolongado de desamparo.
• Tristeza, abatimento profundo.
Sinais orgânicos
• Lesões físicas gerais
• Imobilização coercitiva.
• Espancamento.
• Contusões.
• Fraturas.
• Queimaduras.
• Ferimentos com armas brancas.
• Enforcamento.
• Morte.
Lesões genitais
• Hematoma vulvar.
• Rompimento da mucosa vulvar.
• Lacerações clitoridianas.
• Rompimento da uretra.
• Sangramento genital.
• Rompimento do hímen.
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Escuta de crianças e adolescentes em situação de violência sexual: aspectos teóricos e metodológicos
• Edema vulvar.
• Extensos rompimentos da musculatura vulvar perianal atingindo o esfíncter
anal.
• Irritação da mucosa vaginal.
• Hemorragias.
• Rompimento do fundo do saco vaginal.
Lesões anais
• Laceração da mucosa anal.
• Intenso sangramento.
• Infecções.
• Formação de abscessos perianais.
• Rompimento do esfíncter anal.
• Rompimento da mucosa retal.
• Doenças sexualmente transmissíveis:
• Gonorreia.
• Sífilis.
• Cancro mole.
• Herpes genital.
• Aids.
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Capítulo 4 - O essencial é invisível aos olhos: impactos da violência sexual na subjetividade de crianças e de adolescentes
Conclusão
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Escuta de crianças e adolescentes em situação de violência sexual: aspectos teóricos e metodológicos
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Capítulo 4 - O essencial é invisível aos olhos: impactos da violência sexual na subjetividade de crianças e de adolescentes
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III – Marco normativo e
produção de políticas
públicas
Capítulo 5
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Capítulo 5 - Crianças e adolescentes vítimas de abuso sexual: a emergência de sua subjetividade jurídica no embate entre modelos jurídicos de intervenção e
seus direitos. Uma análise crítica sob o crivo histórico-comparativo à luz do debate em torno do depoimento especial
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seus direitos. Uma análise crítica sob o crivo histórico-comparativo à luz do debate em torno do depoimento especial
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seus direitos. Uma análise crítica sob o crivo histórico-comparativo à luz do debate em torno do depoimento especial
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Escuta de crianças e adolescentes em situação de violência sexual: aspectos teóricos e metodológicos
do adulto na qual tanto direitos, como deveres são assumidos porque se aceita que
crianças têm uma sexualidade que pode vir a ser explorada. Por conseguinte, uma
abordagem sobre o tema deve ser feita com base nas necessidades dessas crianças em
cada fase de seu desenvolvimento, assim como em sua necessidade de informação
apropriada e de suporte em cada estágio (ENNEW, 1986, p. 61-62). No entanto,
justamente porque a sexualidade de crianças deveria ser vista como distinta da
do adulto não apenas em razão das diferenças físicas, mas também em razão das
diferenças de conhecimento e de entendimento das atividades sexuais e de suas
consequências, emerge a necessidade de se falar em direitos a serem assegurados,
relativos não apenas à proteção, mas à adequada informação e ao suporte, por
conseguinte, em direitos sexuais (MELO, 2010, p. 43-60).
Em razão desse processo, houve uma crescente consideração da condição da
criança como vítima. Ora, podemos, então, falar de uma primeira grande ordem de
direitos relacionada ao que se tem entendido como direito de reconhecimento, ou
seja, à consideração da existência, na sociedade, de grupos estigmatizados, também
frutos de determinantes institucionais e históricas, podendo não ter fundamentos
científicos, racionais ou funcionais para a sociedade e sofrendo a usurpação ou a
negativa de bens materiais em razão dessa exclusão. O reconhecimento consiste,
dessa forma, na afirmação e na valorização positiva de certas identidades ou práticas,
afirmando-se como um direito e traduzindo-se em esforços públicos, estatais e não
estatais que se pautem pelo respeito, inclusive, ou sobretudo, à diferença (LOPES,
2003, p. 18-30).
O reconhecimento de que o abuso sexual implica o cometimento de um
crime e, portanto, de que a criança é vítima determina seu direito a que haja uma
resposta penal ao ofensor, não se procurando, portanto, a preservação da família
a qualquer custo e, por conseguinte, a redução da situação a uma mera questão
da vara da infância e da juventude. Com isto, embora alguns setores vissem, no
modelo de bem-estar – que enfatiza o entendimento mais que a culpa –, uma
resposta mais produtiva e humana para o problema do abuso sexual, poderosos
argumentos passaram a ser levantados em favor da persecução penal (MORGAN;
ZEDNER, 2003, p. 115), dando emergência ao modelo judicial de intervenção
(justice model).
O modelo judicial
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Capítulo 5 - Crianças e adolescentes vítimas de abuso sexual: a emergência de sua subjetividade jurídica no embate entre modelos jurídicos de intervenção e
seus direitos. Uma análise crítica sob o crivo histórico-comparativo à luz do debate em torno do depoimento especial
garantindo que as leis previstas para sua proteção sejam obedecidas. Trata-se de
um modelo, portanto, associado a operadores do direito, a advogados, a juízes
e a promotores de justiça e cuja organização é voltada à proteção dos direitos
individuais (KING, 1981, p. 105-106). Justamente por se basear em garantias de
direitos individuais, esse modelo judicial coloca em cena não apenas o modo de
resposta ao ofensor, mas também, e paulatinamente, a consideração dos direitos
de crianças e de adolescentes. Em relação ao ofensor, pauta-se por uma perspectiva
nitidamente garantista, voltada aos fundamentos do direito e do processo penal.
Conforme lição de Ferrajoli (1995), o direito e o processo penal têm por
objetivo precípuo a garantia da liberdade do cidadão contra o arbítrio e a intromissão
inquisitiva, a defesa dos mais fracos com regras iguais para todos, o respeito à
dignidade da pessoa humana e, em consequência, também à sua verdade perante a
maioria. Se o direito penal está baseado em garantias tanto relativas à pena, como
também à descrição de condutas como criminosas, o processo penal baseia-se na
garantia de uma jurisdicionalidade estrita, vale dizer, no modo como o juiz exerce
o juízo cognitivo para declarar alguém responsável por um delito.
Há, com efeito, garantias orgânicas relativas à formação do juiz, à sua
colocação institucional em relação aos demais poderes do Estado e aos outros
sujeitos do processo (a acusação e a defesa), mas igualmente garantias processuais,
que dizem respeito à formação do juízo e que estão fundamentalmente ligadas à
coleta de provas, ao desenvolvimento da defesa e à convicção do órgão judicial.
Daí que, fundamentalmente, procure-se uma vinculação intrínseca entre razão
e liberdade, o que torna o objetivo justificador do processo penal a garantia
das liberdades dos cidadãos por meio da garantia de verdade, não uma verdade
substancial, obtida a qualquer preço, mas graças ao seu caráter cognoscitivo, ou seja,
passível de verificação e de refutação, vale dizer, que se submeta ao princípio de
contradição. Isto quer dizer que todos os atos processuais “equivalem a momentos
de um conflito entre verdades judiciais contrapostas, entre asserções que enunciam
ou sustentam hipóteses acusatórias e asserções que as contradizem, confutando
com isto não apenas sua verdade, mas também a validade dos preceitos em que
se apoiam” (FERRAJOLI, 1995, p. 543). Justamente porque consciente de um
impacto na liberdade dos indivíduos, o modelo judicial explicita mais claramente o
teor e o controle sobre as medidas passíveis de serem aplicadas, diferentemente do
modelo de bem-estar, que se apresentava como voltado à proteção dos indivíduos,
particularmente, de crianças e de adolescentes (KING, 1981, p. 132).
Em relação às crianças e aos adolescentes vítimas de abuso, a mudança
foi tampouco meramente ideológica. Essa mudança de perspectiva, da proteção à
punição, foi louvada por pesquisadores por sua importância, inclusive simbólica,
para crianças e adolescentes.Conforme Morgan e Zedner,
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seus direitos. Uma análise crítica sob o crivo histórico-comparativo à luz do debate em torno do depoimento especial
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2002, p. 70). Por isso, não basta a afirmação de que se é sujeito de direitos. Precisa-
se compreender de modo distinto como se reconhecer as competências jurídicas
por meio da legitimação de participação social de crianças e de adolescentes e pelo
reconhecimento de suas competências sociais.
Como aponta Mortier (2004), reconhecer competência implica a verificação
de certas capacidades intelectuais e práticas intimamente relacionadas, em toda e
qualquer dimensão de direito, ao recebimento de informações e à sua adequada
transmissão a crianças e a adolescentes (art. 13 e 17 da Convenção). Implica, ainda,
um ambiente favorecedor do reconhecimento de competências (MORTIER, 2004,
p. 85). Melhora-se a capacidade de exercício de competências aumentando ativos
pessoais de crianças e de adolescentes para lidar com o sistema ou fazendo com que
as escolhas dentro do sistema se tornem menos irreversíveis. Isto se faz seja pela
diminuição de riscos com as escolhas pelo controle do ambiente no nível coletivo,
aumentando-se a competência individual para decidir (MORTIER, 2004, p. 85)4.
É essa imposição de esforço ativo por parte de todo e qualquer adulto
para que a criança ou adolescente tenham condições de exercer essa competência
intelectual e jurídica que dita o art. 12 da Convenção sobre os Direitos da Criança.
Se toda criança e adolescente têm garantido o direito à expressão de seus juízos e
ao reconhecimento destes em todos os assuntos relacionados à vida da criança e do
adolescente, incumbe, aos adultos, encontrar os critérios cognitivos e práticos que
lhes permitam se posicionarem.
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Tais situações são responsáveis por uma das causas mais evidentes da cifra
negra do delito. A dependência da vítima para a investigação não se expressa em
ações de cuidado, a despeito de ser este o objetivo primário das instituições que
dela se ocupam, fazendo com que as vítimas adotem a atitude de não denunciar.
Para evitar essa consequência, a doutrina indica a necessidade de reconhecer as
necessidades das vítimas, convertendo estas últimas em protagonistas, possibilitando
sua participação no processo e, sobretudo, garantindo suas necessidades e
interesses. Para tanto, é fundamental contar com programas de assistência à vítima
e com profissionais capacitados (NORDENSTAHL, 2008, p. 31-40). Para isto,
tem-se sugerido procedimentos mais céleres, áreas de espera especiais, redução das
formalidades, isenções de exigência de corroborar provas em caso de testemunho
de crianças, uso de videocâmeras para entrevistas iniciais e de circuito fechado
de TV para depoimentos separados e privados, proibição de acareação, apoio de
pessoas de suporte durante o depoimento e cortes especiais para casos de abuso
(GAL, 2011, p. 98).
Desse movimento que se consolida, resultou não apenas outro Protocolo,
o de Palermo, voltado à prevenção, à repressão e à punição pelo tráfico de pessoas,
em particular de mulheres e de crianças, mas também importante normativa
internacional, considerada soft law: as Diretrizes à Justiça em matérias envolvendo
crianças como vítimas e testemunhas, consolidada pela Resolução nº 20/2005 do
Conselho Econômico e Social das Nações Unidas. Essa normativa se estrutura
em torno de direitos reconhecidos a crianças e a adolescentes nessas condições
para evitar justamente a revitimização secundária e garantir maior protagonismo
dessas vítimas (ECOSOC, 2005).
Verifica-se, então, que ao reconhecimento da condição como vítima e,
por conseguinte, ao direito de persecução penal dos responsáveis, somam-se os
direitos voltados à participação e à representação para culminar com dois outros
grandes grupos de direitos. De um lado, os direitos voltados à proteção contra os
sofrimentos no curso do processo. De outro, os direitos à reabilitação e à promoção
de seu desenvolvimento.
A aludida Resolução bem o expressa ao enfocar, primeiramente, a condição
da criança vítima, reconhecendo-a capaz de fala e de testemunho, em uma
valorização de seu protagonismo e, por conseguinte, a necessidade de respeitar-lhe
os seguintes direitos:
• Direito a ser tratada com dignidade e com compaixão.
• Direito a ser protegida de discriminação.
No entanto, justamente em decorrência do direito à participação, a
Resolução também expressa claramente o segundo grupo de direitos:
• Direito a ser informada.
• Direito de ser ouvida e de expressar suas visões e opiniões.
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Referências
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Capítulo 5 - Crianças e adolescentes vítimas de abuso sexual: a emergência de sua subjetividade jurídica no embate entre modelos jurídicos de intervenção e
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MELO, E.R. Direito e norma no campo da sexualidade na infância e na adolescência.
111
Escuta de crianças e adolescentes em situação de violência sexual: aspectos teóricos e metodológicos
112
Capítulo 6
Políticas públicas, rede de proteção e
os programas e serviços voltados para
crianças e adolescentes em situação de
violência sexual
Benedito Rodrigues dos Santos
Rita Ippolito
Maria de Lourdes Magalhães
113
Escuta de crianças e adolescentes em situação de violência sexual: aspectos teóricos e metodológicos
114
Capítulo 6 - Políticas públicas, rede de proteção e os programas e serviços voltados para crianças e adolescentes em situação de violência sexual
115
Escuta de crianças e adolescentes em situação de violência sexual: aspectos teóricos e metodológicos
2
Documento elaborado O ECA define, como diretrizes, a municipalização do atendimento, a
pelo governo federal em
criação dos conselhos dos direitos da criança e do adolescente e do Fundo dos
parceria com a sociedade
civil, o PNEVSIJ norteia Direitos da Criança e do Adolescente, assim como a integração operacional dos
as políticas públicas nessa órgãos dos três poderes encarregados do atendimento inicial a todas as formas de
área (BRASIL, 2002b). O violação dos direitos de crianças e de adolescentes. Os princípios que decorrem
Brasil foi um dos primeiros
países do mundo a cumprir dessas diretrizes são a descentralização político-administrativa, a participação e a
a principal recomendação mobilização populares e a transparência na gestão financeira dos recursos públicos.
feita pelo 1st World Congress
against Commercial Sexual
Exploitation of Children (I O enfrentamento da violência sexual é uma das prioridades na política
Congresso Mundial contra a
Exploração Sexual Comercial nacional e do Plano Decenal de Promoção, Proteção e Defesa dos Direitos da
de Crianças), realizado em Criança e do Adolescente
Estocolmo, na Suécia, em
agosto de 1996 (UNICEF,
1996). O encontro para a O Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente aprovou,
elaboração e a aprovação do em abril de 2011, as diretrizes e os objetivos estratégicos da Política e do Plano
documento, realizado em Decenal de Promoção, Proteção e Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente.
junho de 2000 em Natal
(RN), foi resultado de um Entre as prioridades das políticas nacionais, encontra-se o enfrentamento de todas
processo de articulação e de as formas de violência contra criança e adolescente. O plano decenal inclui no Eixo
mobilização protagonizado de Proteção Especial, que traz o seguinte objetivo estratégico: Objetivo Estratégico
pela sociedade civil, por
instituições governamentais
3.4 – Fomentar a criação de programas educativos de orientação e de atendimento
e pela cooperação a familiares, a responsáveis, a cuidadores e a demais envolvidos em situações de
internacional. Ademais, foi negligência, de violência psicológica, física e sexual.
uma demonstração da vontade
política do governo e da
sociedade civil no sentido de
operacionalizar o combate
O enfrentamento da violência sexual nos níveis municipal, estadual e
à violência sexual, com nacional
metodologias e estratégias
adequadas construídas sobre
a base do consenso entre as No caso específico do enfrentamento da violência sexual, a principal
duas partes. Participaram da diretriz é o Plano Nacional de Enfrentamento da Violência Sexual contra Crianças
discussão e da elaboração do e Adolescentes (PNEVSCA) (BRASIL/SDH, 2013), o qual passou por um processo
PNEVSIJ representantes do
Legislativo, do Judiciário,
de revisão iniciado em 2003 e concluído em 2013 com a aprovação pelo Conanda.
do Ministério Público, de Esta segunda edição do PNEVSCA revisou a primeira edição do Plano Nacional de
órgãos dos executivos federal, Enfrentamento da Violência Sexual Infanto-Juvenil (PNEVSIJ) (BRASIL, 2002),
estaduais e municipais,
aprovada pelo Conanda no ano de 20002.
de ONGs brasileiras e
internacionais, assim como O objetivo geral do PNEVSCA é estabelecer um conjunto de ações
representantes juvenis e articuladas que permitam a intervenção técnica, política e financeira para o
integrantes dos conselhos
dos direitos da criança e enfrentamento da violência sexual contra crianças e adolescentes. Este se estrutura
do adolescente e conselhos em torno de seis eixos estratégicos. Cada um deles define os objetivos, as ações, os
tutelares. O encontro foi prazos e as parcerias pertinentes. A seguir, apresentamos um resumo desses eixos.
um marco na história da
mobilização contra a exploração
e o abuso sexual de crianças
e de adolescentes. Depois
116
Capítulo 6 - Políticas públicas, rede de proteção e os programas e serviços voltados para crianças e adolescentes em situação de violência sexual
O Eixo Prevenção tem por objetivo “assegurar ações preventivas contra de apresentado, deliberado
e aprovado na Assembleia
o abuso e/ou exploração sexual de crianças e adolescentes, fundamentalmente pela
Ordinária do Conanda
educação, sensibilização e autodefesa” (BRASIL/SDH, 2013, p. 27). Está previsto, em 12 de julho de 2000, o
para este eixo, o desenvolvimento de ações e atividades educativas e formativas PNEVSIJ (BRASIL, 2002)
de sensibilização da sociedade; de incentivo aos projetos de educação sexual nas se tornou a diretriz nacional
para esse enfrentamento no
escolas e de disseminação de metodologias referenciais na prevenção do abuso âmbito das políticas públicas
e da exploração sexual contra crianças e adolescentes; de fortalecimento da e sociais. Cabe destacar que
rede familiar e comunitária, que tenha o potencial de implementar políticas de o documento tem como
referência fundamental
prevenção, de implementação de códigos de conduta e de inclusão de cláusulas e o ECA (BRASIL, 1990),
de condicionantes em contratos relacionados com a realização de megaeventos e reafirmando os princípios
grandes projetos de desenvolvimento econômico. da proteção integral de
crianças e de adolescentes,
O Eixo Atenção objetiva: bem como sua condição
de sujeitos de direito e de
Garantir o atendimento especializado, e em rede, às crianças e pessoas em desenvolvimento.
aos adolescentes em situação de abuso e/ou exploração sexual Outros princípios do ECA
(BRASIL, 1990) reforçados
e às suas famílias, realizados por profissionais especializados no PNEVSIJ (BRASIL, 2002)
e capacitados, assim como assegurar atendimento à pessoa são: participação/solidariedade;
que comete violência sexual, respeitando as diversidades de mobilização e articulação de
toda a sociedade organizada
condição étnico-racial, gênero, religião, cultura e orientação
e de setores governamentais;
sexual etc. (BRASIL/SDH, 2013, p. 31). gestão paritária efetivada
pelos conselhos de direitos,
Para a consecução desse objetivo, está prevista a realização de ações e de assistência, saúde e educação;
atividades como universalização do acesso a políticas públicas de atendimento a descentralização para que as
políticas sejam executadas nos
crianças e a adolescentes; qualificação das políticas de acolhimento institucional,
municípios; sustentabilidade
de atendimento psicossocial especializado para crianças e adolescentes em situação das ações focadas,
de exploração sexual e tráfico para esta finalidade; desenvolvimento de programas dimensionadas e orçadas pelos
de atenção aos familiares dessas crianças e adolescentes; articulação dos programas municípios; responsabilização
dos órgãos da sociedade
e dos serviços em rede; definição de protocolos e de fluxos de atendimento; e civil que têm a missão de
formação profissional para adolescentes. acompanhar e de monitorar a
execução dessas políticas.
O Eixo Defesa e Responsabilização tem por objeto a atualização do
marco normativo sobre crimes sexuais, o combate à impunidade e a disponibilização
de serviços de notificação e responsabilização qualificados (BRASIL/SDH, 2013,
p. 34). As ações e as atividades aqui previstas referem-se ao desenvolvimento e
à qualificação dos sistemas e dos mecanismos de responsabilização de autores
de violência sexual: a implantação e implementação do sistema de notificação
compulsória; o fortalecimento dos canais para registro e recebimento de notificações
de violações aos direitos humanos de crianças e adolescentes, como o Disque 100 e
o Sistema de Informações para Infância e Adolescência (Sipia); o fortalecimento da
ação fiscalizadora das ocorrências de trabalho infantil, da capacidade institucional
dos conselhos tutelares e dos órgãos de investigação como delegacias especializadas,
serviços de perícia especializados. Também estão previstas a implantação dos
núcleos de atendimento integrado a crianças e a adolescentes em situação de abuso
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Escuta de crianças e adolescentes em situação de violência sexual: aspectos teóricos e metodológicos
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Capítulo 6 - Políticas públicas, rede de proteção e os programas e serviços voltados para crianças e adolescentes em situação de violência sexual
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Referências
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SANTOS, B. R. O enfrentamento da exploração sexual infanto-juvenil. Goiânia: Cânone
Editorial, 2007.
128
IV – A escuta nos órgãos
encarregados da
proteção básica e
especial
Capítulo 7
Tu me dizes, eu esqueço.
Tu me ensinas, eu lembro.
Tu me envolves, eu aprendo.
Benjamim Franklin
Todos os dias, ele chega à escola. Vai para a sala dos professores, conversa
com seus colegas, toma café, abre o armário, pega o material preparado para a aula
do dia. Toca o sinal, e chega a hora de ir para a sala de aula.
Ele sente profundo incômodo, mas não há saída. Mais uma vez, chega a
hora de encontrar aquele estudante sobre o qual ele tem a convicção de que vem
sofrendo violência sexual. Se pudesse, não daria aula mais nessa turma. Não há
saída. Enfrentar a situação parece que ainda não é o momento, mas quando será?
Por que não toma a decisão de se aproximar e de dialogar sobre o que suspeita estar
afligindo o aluno há vários meses? E as consequências que advirão dessa decisão
de se aproximar? O pai nunca esteve na escola. A mãe apenas aparece quando
convocada pela direção a comparecer e a tomar conhecimento de alguma situação
específica sobre o filho.
Chega à sala de aula. Em meio ao burburinho da turma, olha para aquele
menino e o vê tentando agarrar-se a algo ou a alguém para conseguir sobreviver.
Seu desempenho nas disciplinas não é dos piores, mas, se estivesse em condições
diferentes da que se encontra, poderia ser um dos melhores da turma.
131
Escuta de crianças e adolescentes em situação de violência sexual: aspectos teóricos e metodológicos
É hora de fazer alguma coisa. Contudo, mais uma vez, olha para o menino
e, mais uma vez, em meio a um profundo conflito interior, resolve deixar para
outro dia. Em casa, seus pensamentos sobre o menino ocupam suas reflexões e ele
se questiona como seria se já tivesse cumprido o seu dever: notificar o caso e buscar
ajuda para aquela criança que, com seu modo e com seu olhar triste e inquiridor,
vive a pedir socorro.
Sua omissão se sustenta no receio de, ao tomar uma atitude, comprometer-
se excessivamente e de vir a sofrer também, ou mesmo de colocar-se em risco e de
se tornar alvo de represálias. Escolhe seguir a rotina, e assim passam os dias. Aquele
professor daquela escola distante e agora também distante daquela criança tenta,
de todas as formas, amenizar seu desconforto e seguir mantendo o equilíbrio no
cotidiano.
Situações como essas acontecem em muitas das inúmeras escolas espalhadas
pelo país. Diante disso, ficamos nos perguntando como intervir para que dramas
dessa natureza, vividos por milhares de crianças e de adolescentes e os dilemas
vividos por muitos professores sejam transformados em ações concretas que
assegurem os direitos humanos previstos no Estatuto da Criança e do Adolescente
(ECA).
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Capítulo 7 - A escola como o espaço mais próximo da revelação da violência sexual e o cuidado de crianças e de adolescentes
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Escuta de crianças e adolescentes em situação de violência sexual: aspectos teóricos e metodológicos
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Escuta de crianças e adolescentes em situação de violência sexual: aspectos teóricos e metodológicos
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da s
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Escuta de crianças e adolescentes em situação de violência sexual: aspectos teóricos e metodológicos
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Referências
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Escuta de crianças e adolescentes em situação de violência sexual: aspectos teóricos e metodológicos
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Capítulo 8
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Escuta de crianças e adolescentes em situação de violência sexual: aspectos teóricos e metodológicos
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Capítulo 8 - Atenção integral à saúde de crianças e de adolescentes em situação de violência sexual, em linhas de cuidado
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Escuta de crianças e adolescentes em situação de violência sexual: aspectos teóricos e metodológicos
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Capítulo 8 - Atenção integral à saúde de crianças e de adolescentes em situação de violência sexual, em linhas de cuidado
Fonte: OS AUTORES.
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Escuta de crianças e adolescentes em situação de violência sexual: aspectos teóricos e metodológicos
Atendimento
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Escuta de crianças e adolescentes em situação de violência sexual: aspectos teóricos e metodológicos
ACOLHIMENTO
HUMANIZADO
ESCUTA
QUALIFICADA
NOTIFICAÇÃO COMPULSÓRIA DE
VIOLÊNCIA SEXUAL, DOMÉSTICA E COMUNICAÇÃO OBRIGATÓRIA
COLETA DE MATERIAL E/OU AO CONS. TUTELAR (art.13. ECA)
OUTRAS VIOLÊNCIAS
REALIZAÇÃO DE EXAMES ANAMNESE
(Port. GM/MS Nº 104/2011)
ACOMPANHAMENTO
LABORATORIAL
AVALIAÇÃO
DE RISCO
ANTICONCEPÇÃO DE
EMERGÊNCIA + PROFILAXIAS: ORIENTAÇÕES SOBRE OS
DST + HIV + TÉTANO + HEPATITES DIREITOS LEGAIS DA PACIENTE
CONFORME LEGISLAÇÃO EM VIGOR
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Capítulo 8 - Atenção integral à saúde de crianças e de adolescentes em situação de violência sexual, em linhas de cuidado
O atendimento multiprofissional
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Escuta de crianças e adolescentes em situação de violência sexual: aspectos teóricos e metodológicos
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Capítulo 8 - Atenção integral à saúde de crianças e de adolescentes em situação de violência sexual, em linhas de cuidado
A abordagem clínica
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Escuta de crianças e adolescentes em situação de violência sexual: aspectos teóricos e metodológicos
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Capítulo 8 - Atenção integral à saúde de crianças e de adolescentes em situação de violência sexual, em linhas de cuidado
(após a primeira
vaginal e/ou anal), sangue (vaginal e/ou anal) e oral sêmen (oral, anal e
menstruação e antes
e outros líquidos corporais com ejaculação vaginal)
da menopausa)
• Avaliar o esquema
• Realização de • Solicitar e aconselhar vacinal da vítima (3
aconselhamento teste (anti-HIV) doses) • Escolha adequada do
• Intolerância gástrica • Escolha da associação do • Avaliar a método
Cuidados
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Escuta de crianças e adolescentes em situação de violência sexual: aspectos teóricos e metodológicos
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Capítulo 8 - Atenção integral à saúde de crianças e de adolescentes em situação de violência sexual, em linhas de cuidado
Notificação
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Escuta de crianças e adolescentes em situação de violência sexual: aspectos teóricos e metodológicos
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Capítulo 8 - Atenção integral à saúde de crianças e de adolescentes em situação de violência sexual, em linhas de cuidado
Seguimento na rede
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Escuta de crianças e adolescentes em situação de violência sexual: aspectos teóricos e metodológicos
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Capítulo 8 - Atenção integral à saúde de crianças e de adolescentes em situação de violência sexual, em linhas de cuidado
Reflexões finais
165
Escuta de crianças e adolescentes em situação de violência sexual: aspectos teóricos e metodológicos
Referências
166
Capítulo 9
167
Escuta de crianças e adolescentes em situação de violência sexual: aspectos teóricos e metodológicos
168
Capítulo 9 - A atenção a crianças e a adolescentes vítimas de violência sexual nos Centros de Referência Especializados de Assistência Social (Creas)
A Proteção Social Básica, por sua vez, tem por atribuição a prevenção de
situações de risco e o fortalecimento de vínculos familiares e comunitários. O
equipamento público responsável pelo atendimento à população é o Centro de
Referência de Assistência Social (Cras). Os serviços, os programas, os projetos e
os benefícios são articulados pelo Cras em parceria com a rede socioassistencial
do território.
A Proteção Social Especial, por intermédio de medidas socioeducativas
ou medidas de proteção, tem por atenção potencializar a capacidade de proteção
da família e dos indivíduos que vivenciam violações de direitos por ocorrência
de violência física, psicológica, sexual (abuso ou exploração) ou de negligência.
O equipamento público responsável por esse tipo de proteção é o Centro de
Referência Especializado de Assistência Social (Creas).
Com a deliberação da VI Conferência Nacional de Assistência Social,
aprova-se a Resolução CNAS nº 109/2009 sobre a Tipificação dos Serviços
Socioassistenciais, estabelecendo, assim, quais são os serviços vinculados à Proteção
Social Básica e à Proteção Social Especial de Média Complexidade e de Alta
Complexidade. Na perspectiva da universalização do atendimento e da ampliação
das ações integradas e continuadas de assistência social perante as famílias, o Serviço
de Enfrentamento à Violência passa a ser uma das ações do Serviço de Proteção e
Atendimento Especializado a Famílias e Indivíduos (Paefi), no âmbito da proteção
especial de média complexidade.
Interessa, neste capítulo, focar justamente no Paefi, que hoje é o serviço
que atende às crianças e aos adolescentes vítimas de violência. Para dar conta desse
desafio, três Creas, localizados em Atibaia, em Santos e em São Paulo (Creas
Capela do Socorro – Cedeca) foram entrevistados, além do Projeto Camará, em
São Vicente, uma das referências da rede privada no atendimento às crianças e
aos adolescentes vítimas de violência. São serviços com realidades e com práticas
diversas, reflexos do processo da consolidação da assistência social como política
pública e do momento de construção de parâmetros mínimos de atendimento e
de trabalho em rede. Nosso objetivo não é relatar cada experiência, mas apresentar
uma fotografia geral do atendimento e dos desafios apresentados pela prática.
169
Escuta de crianças e adolescentes em situação de violência sexual: aspectos teóricos e metodológicos
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Capítulo 9 - A atenção a crianças e a adolescentes vítimas de violência sexual nos Centros de Referência Especializados de Assistência Social (Creas)
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Escuta de crianças e adolescentes em situação de violência sexual: aspectos teóricos e metodológicos
dos canais de denúncia, tais como o Disque 100 e a própria comunidade, ou mesmo
pela procura espontânea do indivíduo ou da família pelos órgãos responsáveis.
A tomada de conhecimento de uma situação de suspeita ou de confirmação
de violência sexual pode desencadear, no processo de atendimento, uma ação
revitimizante da criança ou do adolescente e da família se não forem respeitadas
as devidas atribuições dos órgãos que compõem a rede de proteção social. Daí a
importância de se diferenciar o tipo de escuta de cada um dos espaços de revelação
e das portas de entrada para o atendimento. Os órgãos especializados são as portas
de entrada responsáveis pelo atendimento inicial de crianças e de adolescentes
vítimas de violência. As possíveis portas de entrada, dependendo da realidade e da
organização de cada município, estão predominantemente na saúde, na assistência
social e na segurança pública.
Na assistência social, o Creas se configura como uma das portas de entrada
responsáveis pelo atendimento da criança, do adolescente e de sua família. Cabe
ao Creas a realização da escuta protetiva1, ou seja, uma escuta de acolhimento, de
orientação e de proteção. A delegacia é a responsável, juntamente com a justiça, no
contexto da escuta especial, pela averiguação dos fatos. Não cabe à saúde, aos Creas
e mesmo aos conselhos tutelares buscar a veracidade dos fatos. A criança e a família
devem ser acolhidas, atendidas e terem seus direitos garantidos.
Portanto, o Creas é uma importante porta de entrada. Sua ação se pauta na
atenção especializada aos indivíduos e às famílias, por meio de apoio e de orientação,
promovendo a melhoria nas condições sociais e psíquicas destes no contexto de
violência ou de outra situação de risco social associado.
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Capítulo 9 - A atenção a crianças e a adolescentes vítimas de violência sexual nos Centros de Referência Especializados de Assistência Social (Creas)
Atendimento e acompanhamento
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Escuta de crianças e adolescentes em situação de violência sexual: aspectos teóricos e metodológicos
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Capítulo 9 - A atenção a crianças e a adolescentes vítimas de violência sexual nos Centros de Referência Especializados de Assistência Social (Creas)
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Escuta de crianças e adolescentes em situação de violência sexual: aspectos teóricos e metodológicos
176
Capítulo 9 - A atenção a crianças e a adolescentes vítimas de violência sexual nos Centros de Referência Especializados de Assistência Social (Creas)
177
Escuta de crianças e adolescentes em situação de violência sexual: aspectos teóricos e metodológicos
178
Capítulo 9 - A atenção a crianças e a adolescentes vítimas de violência sexual nos Centros de Referência Especializados de Assistência Social (Creas)
Considerações finais
179
Escuta de crianças e adolescentes em situação de violência sexual: aspectos teóricos e metodológicos
Referências
180
V – A notificação dos
casos de suspeita ou
de ocorrências de
violência sexual
Capítulo 10
Além dessa, existem várias razões pelas quais os profissionais das áreas
de cuidado e de atenção a crianças e a adolescentes devem notificar os casos de
suspeita e as ocorrências de violência sexual. A mais importante é a de que o ato de
notificar tais casos às autoridades responsáveis pode contribuir para interromper o
ciclo da violência sexual que, reiteradas vezes, vem sendo transmitido de geração
para geração. Em casos extremos, a decisão de não notificar pode acarretar sérias
consequências para a vida de crianças e de adolescentes.
Estudos demonstram que crianças e adolescentes que viveram situações
de abuso e de exploração sexual podem desenvolver uma visão muito particular
do mundo e dos relacionamentos interpessoais. Podem apresentar sentimento
de culpa, baixa autoestima, problemas com a sexualidade e dificuldades para
construir relações afetivas duradouras. Por tudo isso, quanto antes as vítimas de
abuso, de exploração sexual e de maus-tratos receberem apoio educacional, médico 1
Adaptado do Guia Escolar
e psicológico, maiores serão as chances de superarem a experiência negativa da (2011).
infância e de terem uma vida adulta mais prazerosa e saudável.
183
Escuta de crianças e adolescentes em situação de violência sexual: aspectos teóricos e metodológicos
184
Capítulo 10 - O percurso da notificação de suspeitas ou de ocorrências de violência sexual contra crianças e adolescentes no Sistema de Garantia de Direitos (SGD)
O serviço funciona diariamente, das 8h às 22h, inclusive aos fins de semana e feriados,
recebendo denúncias anônimas e garantindo o sigilo. As denúncias também podem ser
feitas de todo o Brasil e do exterior pelo número telefônico pago 55 61 3212-8400. A partir
de 2008, o serviço também passou a receber denúncias encaminhadas para o endereço
eletrônico disquedenuncia@sedh.gov.br
185
Escuta de crianças e adolescentes em situação de violência sexual: aspectos teóricos e metodológicos
186
Capítulo 10 - O percurso da notificação de suspeitas ou de ocorrências de violência sexual contra crianças e adolescentes no Sistema de Garantia de Direitos (SGD)
187
Escuta de crianças e adolescentes em situação de violência sexual: aspectos teóricos e metodológicos
Depois dessa fase, o processo volta ao juiz para a aplicação da sentença (fase
final) ou para encaminhamento ao julgamento, o que pode resultar em pena ou em
multa para o autor da violência sexual.
188
Capítulo 10 - O percurso da notificação de suspeitas ou de ocorrências de violência sexual contra crianças e adolescentes no Sistema de Garantia de Direitos (SGD)
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189
VI – A escuta da criança e
do adolescente pelos
conselhos tutelares
Capítulo 11
193
Escuta de crianças e adolescentes em situação de violência sexual: aspectos teóricos e metodológicos
Costa (2004) ensina que esse direito de participação está assegurado pelo
art. 227, § 7º, que trata, especificamente, da proteção da criança e do adolescente.
Esse artigo foi regulamentado pela Lei nº 8.069/90, criando o moderno sistema
de proteção que, como inovação, traz a participação da sociedade civil e da
comunidade na formulação, na fiscalização e na execução da política pública. Neste
sentido, o § 7º citado nos remete ao art. 204, em que as ações governamentais
seguirão duas exigências: a descentralização político-administrativa e a participação
popular. Assim, ao privilegiar espaços de participação paritária e de participação
da comunidade no âmbito do Estado, a lei estabelece a “corresponsabilidade dos
poderes públicos e da sociedade civil na efetivação dos direitos fundamentais,
sociais e civis”. (COSTA, 2004, p. 273). Essa afirmação do direito à participação
na lei visa também a contemplar experiências anteriores à CF e ao ECA, que não
estavam institucionalizadas e que careciam de poder de decisão.
194
Capítulo 11 - Conselheiros tutelares e a escuta da criança ou do adolescente vítimas de violência sexual
O Conselho Tutelar foi instituído pela Lei Federal nº. 8.069/90 e pelo ECA
e é regulado pelos arts. 131 a 140. O primeiro deles conceitua, de forma clara, o que
é este novo órgão:
195
Escuta de crianças e adolescentes em situação de violência sexual: aspectos teóricos e metodológicos
196
Capítulo 11 - Conselheiros tutelares e a escuta da criança ou do adolescente vítimas de violência sexual
197
Escuta de crianças e adolescentes em situação de violência sexual: aspectos teóricos e metodológicos
198
Capítulo 11 - Conselheiros tutelares e a escuta da criança ou do adolescente vítimas de violência sexual
199
Escuta de crianças e adolescentes em situação de violência sexual: aspectos teóricos e metodológicos
200
Capítulo 11 - Conselheiros tutelares e a escuta da criança ou do adolescente vítimas de violência sexual
se também essa postura nos programas executados pela saúde e pela assistência
social, que vão para além da atenção individual.
O Conselho Tutelar, como órgão administrativo de garantia dos direitos,
deve ter claras suas potencialidades e limitações. Como citado acima, ele é a
instância prioritária no Sistema de Garantia de Direitos (SGD) para o recebimento
de denúncias ou de notificações de violência contra crianças e adolescentes,
estabelecendo uma enorme responsabilidade para sua organização administrativa
no que tange à definição de prioridades de atendimento e à articulação com os
órgãos que executarão suas medidas. Esse conselho apura fatos por meio de relatos6
que elucidam a suspeita de violência sexual recebida. Nesse sentido, vale destacar
que o Conselho Tutelar não realiza investigação, muito menos perícias técnicas.
Seu papel se aperfeiçoa pelo desenvolvimento de três habilidades: capacidade de
escuta, de comunicação e de busca e de repasse de informações. Aliado a isso, o
Conselho Tutelar detém alguns elementos que configuram a situação de violência,
mas não o todo, razão pela qual deve desenvolver outra importante habilidade: a de
se reconhecer incompleto, obrigado “a se abrir ao mundo e aos outros à procura de
explicação, de respostas a múltiplas perguntas” (FREIRE, 2002, p. 153).
Com base nessa argumentação, podemos definir a escuta em situação de
violência sexual pelo Conselho Tutelar como um diálogo elucidativo, que possibilita
não a verdade e a certeza, mas a fundamentação para a aplicação de medidas que
previnam ou que cessem a situação de violência. A proposta de diálogo elucidativo
implica três posturas ou atitudes do Conselho Tutelar:
1. Garantir a participação e o interesse superior da criança e do adolescente,
atendendo o reconhecimento legal dos princípios que regem a aplicação
das medidas, conforme o Parágrafo Único do art. 100 do ECA. No
entanto, estando o Conselho Tutelar inserido na proposta metodológica
do Depoimento Especial, ele deve preservar os indivíduos de constantes
escutas. Não tendo sido a porta de entrada ou o espaço de revelação,
neste momento deve reconhecer sua incompletude, neste caso específico,
a incompletude institucional. Isto enseja outra postura ou atitude:
sistematizar relatos.
2. Por sistematizar relatos pode-se entender a diminuição da importância do
Conselho Tutelar. Porém, exige, para além das capacidades anteriormente
citadas, também aquelas de interlocução, de articulação e de negociação.
Os relatos que elucidam os fatos e que permitiram a notificação e seus
desdobramentos estão dispersos entre vários setores da rede de proteção à
6
infância. As medidas e os encaminhamentos do Conselho Tutelar tornam- Conselho Municipal dos
Direitos da Criança e do
se mais qualificadas e abrangentes se bem fundamentadas. Adolescente e Conselho
3. A mediação intersetorial de proteção/protetiva se dá em relação ao Tutelar: orientações para
fato concreto. Na perspectiva da formulação e da execução da política criação e funcionamento. Pró-
conselho Brasil. p. 85 e 86
201
Escuta de crianças e adolescentes em situação de violência sexual: aspectos teóricos e metodológicos
202
Capítulo 11 - Conselheiros tutelares e a escuta da criança ou do adolescente vítimas de violência sexual
saliência” ou “não gosto do amigo da minha mãe, pois ele mexe nas minhas coisas e
fica sempre no meu quarto”, que oferecem conteúdo para posteriores averiguações,
orientações e medidas.
O diálogo não deve ser invasivo, principalmente quando a pessoa não
demonstra querer falar sobre sua intimidade, nem indutor, pois pode acarretar
falsas ideias ou memórias em um indivíduo que pode estar bastante fragilizado
emocionalmente. No entanto, o atendimento deve ser abrangente, possibilitando
avaliar a qualidade de vida em suas variadas dimensões: saúde, liberdade, respeito,
dignidade, convivência familiar e comunitária, educação, cultura, esporte, lazer e
trabalho. Os elementos positivos e negativos identificados, por essa análise, poderão
ser confirmadores ou não da suspeita de violência.
Vale lembrar que o conselho deliberará pela apuração desses elementos,
que nortearão a aplicação de medidas de proteção e de medidas pertinentes aos
pais e aos demais responsáveis. No cotidiano da violência, a vítima é colocada
como responsável pelo que sofreu. O Conselho Tutelar deve ser o espaço para a
quebra de preconceitos que inverte responsabilidades e que transforma as relações
humanas em relações sexualizadas.
203
Escuta de crianças e adolescentes em situação de violência sexual: aspectos teóricos e metodológicos
204
Capítulo 11 - Conselheiros tutelares e a escuta da criança ou do adolescente vítimas de violência sexual
Acompanhamento
205
Escuta de crianças e adolescentes em situação de violência sexual: aspectos teóricos e metodológicos
206
Capítulo 11 - Conselheiros tutelares e a escuta da criança ou do adolescente vítimas de violência sexual
Apontamentos finais
Referências
ANDRADE, J. E. Conselhos tutelares: sem ou cem caminhos? São Paulo: Veras, 2000.
BRASIL. Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre o Estatuto da Criança
e do Adolescente e dá outras providências. Diário Oficial da União, Brasília, 13 jul.
1990.
COSTA, T. J. M. Estatuto da Criança e do Adolescente comentado. Belo Horizonte: Del
Rey, 2004.
CURY, M.; AMARAL E SILVA, A. F. do; MÉNDEZ, E. G. (Orgs.). Estatuto da
Criança e do Adolescente comentado. 2. ed. São Paulo: Malheiros, 1996.
FALEIROS, V. de P. A violência sexual contra crianças e adolescentes e a construção de
indicadores: a crítica do poder, da desigualdade e do imaginário. 1998. Disponível
em: <http://www.comitenacional.org.br/files/biblioteca/4UNBQDL8ZOT4D5
O7KAQN.pdf#page=7>. Acesso em: 7 de nov. 2011.
_________. Escola que protege: enfrentando a violência contra crianças e adolescentes.
Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização
e Diversidade, 2007.
207
Escuta de crianças e adolescentes em situação de violência sexual: aspectos teóricos e metodológicos
208
VII – A escuta da criança
e do adolescente pelos
órgãos do sistema de
segurança e de justiça
Capítulo 12
211
Escuta de crianças e adolescentes em situação de violência sexual: aspectos teóricos e metodológicos
212
Capítulo 12 - A atenção à criança e ao adolescente nos órgãos de investigação policial (polícia e instituto de medicina legal)
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Escuta de crianças e adolescentes em situação de violência sexual: aspectos teóricos e metodológicos
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Capítulo 12 - A atenção à criança e ao adolescente nos órgãos de investigação policial (polícia e instituto de medicina legal)
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Capítulo 12 - A atenção à criança e ao adolescente nos órgãos de investigação policial (polícia e instituto de medicina legal)
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Capítulo 12 - A atenção à criança e ao adolescente nos órgãos de investigação policial (polícia e instituto de medicina legal)
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Capítulo 12 - A atenção à criança e ao adolescente nos órgãos de investigação policial (polícia e instituto de medicina legal)
Por isso, tem-se buscado alternativas profissionais para que tais vítimas possam
revelar a violência sofrida, mas sempre com o propósito primeiro de proteção e de
redução dos danos até então sofridos. Quanto à responsabilização do agressor, esta
deve ser uma consequência paralela do processo de proteção.
Muito tem se discutido sobre o modelo ideal de acolhimento, de proteção,
de responsabilização, de acompanhamento e de prevenção. Na nossa visão, nenhum
órgão jamais estará preparado para desempenhar, a contento, todas essas fases. É
certo que cada um tem suas atribuições específicas, as quais devem ser preservadas,
mas é preciso compreender ser plenamente possível estabelecer um sistema
integrado de cooperação em que cada um cumpra suas tarefas, porém, abstendo-
se de práticas que desrespeitem a proteção integral da criança e do adolescente,
como as reiteradas e inábeis escutas das vítimas e a demora nos encaminhamentos
de suas necessidades. Portanto, onde e como tais vítimas serão ouvidas é algo
a ser amadurecido com base no sistema de que se dispõe, mas é certo que essas
vítimas não podem ser ouvidas nos mesmos moldes das inquirições comuns até
pela incompreensão da ilicitude e da reprovabilidade da conduta sofrida.
Para a investigação policial, quanto mais fidedigno o relato dos fatos pelas
vítimas, mais seguras serão as provas carreadas, e, consequentemente, seu bom
aproveitamento para a responsabilização do autor. Isso não significa, contudo, que
a inquirição tenha de ser feita nos moldes da investigação comum. Muito pelo
contrário, como já demonstramos anteriormente. Um protocolo de atendimento
precisa ser adotado pelos profissionais responsáveis pelo atendimento quer
nas delegacias, quer nos institutos médicos legais. Deve-se considerar, ainda, o
treinamento apropriado para a escuta especial – que leve sempre em conta que o
recomendável é que as vítimas sejam questionadas sobre o fato o menor número
de vezes possível – e o modo como o judiciário local tratará tal prova. Daí por
que, mais uma vez, a articulação com a rede de atendimento se faz imprescindível.
Em nossa visão, tal protocolo de atendimento às vítimas poderia seguir alguns
direcionamentos:
a) Informação prévia sobre os fatos para subsidiar a entrevista.
b) Acolhimento da vítima para que ela se sinta segura e protegida; oportunidade
em que lhe seja explicado o que será feito e com que finalidade.
c) Escuta livre, sem interrupções ou solicitações de detalhes desnecessários.
d) Ambiente da entrevista agradável à faixa etária da vítima, podendo se
utilizar alguns brinquedos, lápis de cor, papel, porém, sem exageros, para
evitar a distração.
e) Entrevista a sós com a vítima, visando a minimizar a influência externa e as
consequentes pressões.
f) Incentivo ao relato espontâneo, evitando-se insistir em determinados
assuntos.
g) Identificação de situações de risco; oportunidade em que o profissional
deverá desencadear providências de proteção perante a rede de atendimento.
221
Escuta de crianças e adolescentes em situação de violência sexual: aspectos teóricos e metodológicos
222
Capítulo 12 - A atenção à criança e ao adolescente nos órgãos de investigação policial (polícia e instituto de medicina legal)
Referências
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Escuta de crianças e adolescentes em situação de violência sexual: aspectos teóricos e metodológicos
224
Capítulo 13
225
Escuta de crianças e adolescentes em situação de violência sexual: aspectos teóricos e metodológicos
1
Conselho Municipal dos Ainda sobre a necessidade de equiparação de representação processual da
Direitos da Criança e do criança e do adolescente, o ECA enaltece o instituto da curadoria especial, que nos
Adolescente e Conselho
Tutelar: orientações para
casos de violência sexual torna-se necessário, para que formal e materialmente seus
criação e funcionamento. Pró- interesses sejam respeitados e devidamente ponderados, vejamos:
conselho Brasil. p. 85 e 86 Art. 142. Os menores de dezesseis anos serão representados e
226
Capítulo 13 - O papel da defensoria pública no atendimento extrajudicial e judicial às crianças e aos adolescentes em situações de violência sexual
227
Escuta de crianças e adolescentes em situação de violência sexual: aspectos teóricos e metodológicos
228
Capítulo 13 - O papel da defensoria pública no atendimento extrajudicial e judicial às crianças e aos adolescentes em situações de violência sexual
Em relação ao tema em tela, os anos de 2010 e 2011 foram muito ricos nas
discussões entre defensores públicos que atuam na defesa dos interesses e direitos
das crianças e dos adolescentes. Após evento realizado pela Childhood Brasil no
ano de 2010, o Fórum Nacional de Defensores Públicos Coordenadores de Defesa
da Criança e do Adolescente reuniu-se em julho de 2011 em Belo Horizonte,
Minas Gerais. As seguintes propostas foram elaboradas:
I. Recomendar e proporcionar o acompanhamento de defensor público
às crianças e aos adolescentes em todas as instâncias, em respeito ao
inciso XII, parágrafo único do art. 100 do ECA.
II. Reafirmar a criação e a implementação das curadorias especiais,
conforme fundamentação de tese nacional aprovada no I Congresso
Nacional de Defensores Públicos da Infância e Juventude.
III. Garantir a oitiva da criança ou do adolescente em todos os processos em
que houver interesse jurídico, consultando-lhes quanto ao interesse de
se verem assistidos, respeitando-se o direito à autonomia.
IV. Buscar a garantia da proteção integral e do melhor interesse da criança
e do adolescente nos procedimentos de escuta especial.
V. Primar pela observância das normas procedimentais, mormente,
nas hipóteses de utilização-padrão de medida cautelar de produção
antecipada de provas, exercendo a defesa técnica para priorizar a
proteção da criança, com estrita observância dos requisitos legais para
229
Escuta de crianças e adolescentes em situação de violência sexual: aspectos teóricos e metodológicos
230
Capítulo 13 - O papel da defensoria pública no atendimento extrajudicial e judicial às crianças e aos adolescentes em situações de violência sexual
231
Escuta de crianças e adolescentes em situação de violência sexual: aspectos teóricos e metodológicos
232
Capítulo 13 - O papel da defensoria pública no atendimento extrajudicial e judicial às crianças e aos adolescentes em situações de violência sexual
Conclusão
Referências
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Escuta de crianças e adolescentes em situação de violência sexual: aspectos teóricos e metodológicos
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Capítulo 14
235
Escuta de crianças e adolescentes em situação de violência sexual: aspectos teóricos e metodológicos
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Capítulo 14 - Casos com depoimentos de crianças e de adolescentes vítimas e testemunhas de violência sexual: – O papel institucional da advocacia: protocolo ético de atuação
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Escuta de crianças e adolescentes em situação de violência sexual: aspectos teóricos e metodológicos
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Capítulo 14 - Casos com depoimentos de crianças e de adolescentes vítimas e testemunhas de violência sexual: – O papel institucional da advocacia: protocolo ético de atuação
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Escuta de crianças e adolescentes em situação de violência sexual: aspectos teóricos e metodológicos
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Capítulo 14 - Casos com depoimentos de crianças e de adolescentes vítimas e testemunhas de violência sexual: – O papel institucional da advocacia: protocolo ético de atuação
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Escuta de crianças e adolescentes em situação de violência sexual: aspectos teóricos e metodológicos
do efetivo acesso à Justiça seja respeitado. Utiliza-se dessa figura nos casos em
que, não havendo defensor público constituído, o beneficiado não puder arcar
com as despesas que são subjacentes à contratação de um advogado particular.
Por esse motivo, o defensor ad hoc é nomeado, não havendo qualquer ônus para
a pessoa assistida, o que não significa dizer que esse profissional desempenhará,
necessariamente, uma atividade pro bono.
Estabelece-se, assim, relação análoga à laboral entre o advogado e o
Estado, de modo que, não obstante não se tratar de tema sem discussões, deve o
poder público arcar com as despesas dos honorários devidos. Assim prevê o art.
22 da Lei nº 8.906/94 (Estatuto da Advocacia), que determina que “a prestação
de serviço profissional assegura aos inscritos na OAB o direito aos honorários”
(BRASIL, 1994, p. 7), fazendo jus a eles mesmo quando indicado a patrocinar
causa de juridicamente necessitado (art. 22, § 1º). Esses honorários, continua o
dispositivo, deverão ser fixados, via de regra, pelo próprio magistrado, segundo
tabela organizada pelo Conselho Seccional da OAB, e pagos pelo Estado.
Repise-se que todas essas formas de atuação do advogado devem ter
como limite e orientação o reconhecimento da condição peculiar de pessoa em
desenvolvimento da criança e do adolescente. Ao assim se pautar, o procurador
não deve olvidar, entretanto, os princípios constitucionais tão caros a todos, como
o da defesa plena. Essencial, pois, a atuação do advogado, de modo a garantir a
observância dos princípios constitucionais do contraditório da ampla defesa em
todos os momentos em que a defesa técnica tenha de ser observada, com as cautelas
de se estar lidando com pessoas em desenvolvimento.
242
Capítulo 14 - Casos com depoimentos de crianças e de adolescentes vítimas e testemunhas de violência sexual: – O papel institucional da advocacia: protocolo ético de atuação
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Escuta de crianças e adolescentes em situação de violência sexual: aspectos teóricos e metodológicos
Conclusão
244
Capítulo 14 - Casos com depoimentos de crianças e de adolescentes vítimas e testemunhas de violência sexual: – O papel institucional da advocacia: protocolo ético de atuação
Referências
245
Capítulo 15
247
Escuta de crianças e adolescentes em situação de violência sexual: aspectos teóricos e metodológicos
2
“As crianças que sofreram Conhecimento específico da sistemática do abuso sexual
abuso frequentemente são
obrigadas a não revelar para
ninguém dentro da família Com efeito, o conhecimento do abuso sexual, como síndrome do segredo2
ou fora dela. Pode ser dito para a criança e para a família, e como síndrome da adição3 para quem comete o
à criança, especialmente abuso4, desperta o profissional para as dificuldades que ocorrem para a revelação
às crianças pequenas, que
aquilo que acontece durante do abuso, por parte da vítima, que, em grande parte das vezes, demora muito
o abuso é um segredo entre tempo para conseguir falar sobre o assunto. A prevalência do abuso intrafamiliar
a criança e a pessoa que e as consequências importantes desse ato no seio de uma família trazem o
abusa. O segredo geralmente
é reforçado pela violência,
conhecimento sobre a forma delicada que se deve ter para lidar com essas situações
ameaça de violência ou castigo. e com o sofrimento que as partes trazem para dentro do processo.
Algumas vezes encontramos Noções simples precisam ser comentadas, como o fato de que, em 87%
uma mistura de ameaças e
suborno, em que o ganho dos casos, o abusador é alguém conhecido da vítima e em quem esta confia
secundário dos subornos e um (SANDERSON, 2008, p. xvi-xvii); que a maioria dos abusadores sexuais de
tratamento especial mantém crianças se apresenta como pessoa simpática e gentil5 porque precisa exibir essa
o segredo que, não obstante,
é basicamente fundado nas
máscara para angariar acesso aos pais e às vítimas6; que os abusadores provêm de
ameaças” (FURNISS, 1993, p. todos os tipos de classes sociais, de grupos étnicos e de faixas etárias; que parecem
30-31). pessoas saudáveis psicologicamente e que, muitas vezes, são considerados pilares
3
Compulsão à repetição, que de sua comunidade, sendo impossível detectá-los, uma vez que apenas uma
serve de alívio à tensão, como parcela reduzida deles sofre de doenças mentais, parece triste ou solitário ou tem
as outras adições conhecidas
(álcool, drogas).
dificuldades para se relacionar socialmente. Além disso, segundo estudos recentes,
4
não é verdade que todo abusador tenha sido abusado na infância, embora seja
Sobre síndromes do segredo
e da adição veja, entre outros,
comum que utilizem esse argumento, quando descobertos, para justificar o ciclo
Furniss e Sanderson. do abuso. Ao contrário, a maioria das pessoas que sobrevive ao abuso quando
5
“Monstros não se aproximam criança não abusa de outras crianças.
de crianças; homens gentis, Destaca-se, ainda, que mulheres também são abusadoras sexuais. Ademais,
sim” (Ray Wyre, especialista
em crimes sexuais).
o abuso sexual em crianças pode ser violento, mas a maioria envolve engodo,
(SANDERSON, 2008, p. manipulação. Muitos pedófilos demonstram, pela criança, uma atenção e um
xvii). carinho especial e, então, chantageiam-na para garantir que ela se submeta ao abuso
6
“Se os pais confiam neles, a e permaneça quieta, com medo de perder tal atenção. A maioria dos pedófilos
criança é conquistada mais prefere crianças inocentes, que se encaixem em suas noções de infância. O que o
facilmente e será menos
abusador pretende é o poder sobre a inocência da criança.
provável que ela revele o
ASC.” (SANDERSON, 2008, Ora, se levarmos em conta tais aspectos, ou seja, de como é difícil para
p. xvii) a vítima revelar o abuso (rectius, o desvelo) muitas vezes praticado por alguém
7
“No caso de abuso familiar, as de quem ela gosta, árdua será a tarefa de relatar essa experiência traumática para
crianças não querem perder estranhos em uma sala de audiências7.
o relacionamento com o
abusador ou vê-lo punido; tudo
o que querem é que o abuso
sexual pare. Os abusadores
sexuais de crianças sabem disso
e tiram proveito dessa situação,
jogando com os medos das
crianças, como meio de reduzir
o risco de serem expostos”
(SANDERSON, 2008, p. xvii).
248
Capítulo 15 - O papel institucional do Ministério Público nos casos de violência sexual contra crianças e adolescentes: protocolo ético de atuação
249
Escuta de crianças e adolescentes em situação de violência sexual: aspectos teóricos e metodológicos
sendo verdadeiras. Essas acerca das experiências internacionais na tomada do depoimento de crianças e de
pesquisas sobre a sugestão da
adolescentes vítimas de violência que validam, em outros países, essa manifestação
memória foram conduzidas
por Alfred Binet (1900), na como prova. Ressalte-se que, no levantamento realizado pela Childhood do Brasil,
França. Uma das importantes em 2008, havia 28 países que realizavam a inquirição de crianças e de adolescentes
contribuições deste vítimas do abuso sexual com a intermediação de profissionais especializados em
pesquisador foi categorizar a
sugestão da memória em dois entrevistas cognitivas ou investigativas seja pelo método da closed-circuit television13,
tipos: autossugerida (isto é, seja pela Câmara Gessel14.
aquela que é fruto dos processos
Importa destacar que, no Brasil, a Convenção sobre os Direitos da Criança
internos do indivíduo) e
deliberadamente sugerida foi aprovada pelo Decreto Legislativo n° 28/1990 e promulgada pelo Decreto n°
(isto é, aquela que provém 99.710/90, o que satisfaz os requisitos constitucionais para sua incorporação ao
do ambiente). As distorções direito positivo brasileiro e, em razão disso, vincula e obriga, no plano positivo
mnemônicas advindas
desses dois processos foram interno, o país a cumprir o que assinou. Também as Diretrizes do Conselho
posteriormente denominadas Econômico e Social das Nações Unidas (Ecosoc), em matéria de justiça para
de FM espontâneas e sugeridas crianças e testemunhas de violência (Resolução n° 2005/20), estabelecem a proteção
(Loftus, Miller e Burns,
1978).” (STEIN, 2010, p. 23).
da criança e do adolescente contra o sofrimento durante o processo judicial como
12
direito a eles assegurado.
Lei n. 12.318, de 26 de agosto
de 2010. O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), em seu art. 28, § 1º,
13
Método inglês: circuito determina que, sempre que possível, a criança e o adolescente deverão ser
fechado de televisão, de previamente ouvidos por equipe interprofissional, respeitados seus estágios
gravação de videoimagem, de desenvolvimento e graus de compreensão sobre as implicações da medida.
com comunicação à sala da
assistência.
Determina, ainda, que eles terão suas opiniões devidamente consideradas. No
14
art. 111, inciso V, é assegurado ao adolescente, entre outras garantias, o direito de
Método americano: duas salas
divididas por um espelho ser ouvido pessoalmente pela autoridade competente. Esses direitos, respeitada a
unidirecional. condição peculiar de criança em desenvolvimento, são atendidos com a utilização
da metodologia do depoimento especial.
Metodologia de entrevista
250
Capítulo 15 - O papel institucional do Ministério Público nos casos de violência sexual contra crianças e adolescentes: protocolo ético de atuação
251
Escuta de crianças e adolescentes em situação de violência sexual: aspectos teóricos e metodológicos
252
Capítulo 15 - O papel institucional do Ministério Público nos casos de violência sexual contra crianças e adolescentes: protocolo ético de atuação
ou não abusada e também que não há sintomas externos de que o abuso ocorreu.
Mesmo que haja evidências físicas do abuso, é a vítima quem pode dizer quem foi
o autor.
A urgência da prova decorre da condição própria da idade da criança
ou do adolescente e do efeito devastador, caso comprovada a ocorrência, no
desenvolvimento e no aparato psíquico da vítima que assumem os casos de abusos
sexuais. Com efeito, toda a literatura acerca de abuso sexual recomenda que se
colha a palavra da vítima tão logo o fato chegue ao conhecimento dos adultos,
justamente para evitar esquecimentos, influências e a possibilidade de a criança
ser encaminhada para o acompanhamento psicológico, se for o caso, e afastada da
necessidade de reiterados relatos do abuso nos sistemas de proteção e de justiça.
Além disso, devem estar presentes os pressupostos de adequação, de
necessidade e de proporcionalidade. A modalidade de produção antecipada de
prova, assegurados o contraditório e a ampla defesa, é a providência pertinente
e adequada à coleta do depoimento infantil da vítima de abuso sexual. A
propositura da medida cautelar faz-se necessária pela exigência fática de que a
situação seja esclarecida em tempo hábil, com as medidas de proteção à vítima e de
responsabilização do agressor. Por fim, a proporcionalidade da produção antecipada
de prova é aferida sopesando-se a gravidade do fato criminoso atribuído ao autor e
a resposta penal que terá se, de fato, vier a ser condenado.
Em outras palavras, o que se pretende aqui afirmar é que, nas hipóteses
de abuso sexual contra crianças e adolescentes vítimas, a produção antecipada de
prova deve ser analisada como a medida que atende aos interesses de proteção
da vítima e da sociedade em ver apurado, com brevidade, um crime, em tese,
contra criança ou adolescente. Deve ser utilizada18 preferencialmente se a vítima
não tiver sido ainda ouvida formalmente em outros espaços, justamente para que
não precise fazê-lo e para que sua versão esclareça, no menor prazo possível, se o
abuso aconteceu ou não. 18
Habeas Corpus. Produção
Com base em tal depoimento, o Ministério Público encaminhará, antecipada de prova. Atentado
prontamente, a questão sob os seguintes aspectos: 1) oferecer, desde logo, a violento ao pudor cometido
contra infante. Decisão
denúncia, caso já possua elementos suficientes para isso; 2) pedir o arquivamento que defere antecipação do
do feito, uma vez esclarecido que não houve qualquer ato atentatório à dignidade depoimento da ofendida.
da vítima; 3) requerer a instauração de inquérito policial, caso não tenha ainda tal Medida que se reconhece
relevante e urgente. Respeito
providência sido efetuada, justamente para que sejam ouvidos o suposto autor do
aos princípios do contraditório
fato e eventuais testemunhas, bem como para colher outras provas imprescindíveis; e da ampla defesa, assim como
4) requerer a realização de diligências imprescindíveis ao oferecimento de à garantia do devido processo
denúncia. Em qualquer das hipóteses, o depoimento da vítima não deverá ser legal. Ordem denegada. (habeas
corpus nº 70031084791, Sétima
repetido, e a mídia (áudio e vídeo) servirá para embasar eventuais ações cíveis (ação Câmara Criminal, Tribunal
de destituição do poder familiar, por exemplo, se essa providência não advier como de Justiça do RS, relator: João
efeito anexo da sentença criminal) envolvendo o fato noticiado. Batista Marques Tovo, julgado
em 13/8/2009).
253
Escuta de crianças e adolescentes em situação de violência sexual: aspectos teóricos e metodológicos
254
Capítulo 15 - O papel institucional do Ministério Público nos casos de violência sexual contra crianças e adolescentes: protocolo ético de atuação
255
Escuta de crianças e adolescentes em situação de violência sexual: aspectos teóricos e metodológicos
abuso. Deve-se reconhecer que o Brasil já avançou na proteção das crianças e dos
adolescentes vítimas de abuso sexual, com o estabelecido na normativa internacional,
com a recomendação do Conselho Nacional de Justiça para que os tribunais adotem
o depoimento especial como forma de inquirição dessas crianças e adolescentes.
Há, ainda, projeto de lei em tramitação no Congresso Nacional para utilização
preferencial da sistemática do depoimento especial onde houver salas instaladas para
esse fim. O princípio da vedação do retrocesso19 permite, ao membro do Ministério
Público, manifestar-se de forma muito enfática no sentido de não concordar com a
ouvida da vítima de outro modo que não seja com a utilização da metodologia do
depoimento especial, quando é possível utilizar-se desta.
Por fim, o limite do agir do Ministério Público estará calcado na dignidade
da vítima em não ser inquirida quando desejar silenciar, em não prosseguir com as
perguntas quando for visível seu desconforto em prosseguir ou quando demonstrar
ausência de lembranças sobre o ocorrido, ou seja, quando, de qualquer modo, for
perceptível maior sofrimento da vítima com o processo de apuração do abuso.
O abuso sexual, na maior parte das vezes, não deixa vestígios materiais,
não é apurável por perícia (auto de exame de corpo de delito) e é cometido ao
abrigo de olhares de testemunhas, sendo, portanto, a vítima quem detém melhores
informações sobre o que ocorreu. Todavia, o respeito a essa vítima exige que se
possa, com base nos conhecimentos acima elencados, medir o quanto perquiri-la
em busca da verdade real e quando parar, para não revitimizá-la, mesmo utilizando-
se a melhor técnica.
Poderíamos, assim, de uma forma pragmática, elencar os seguintes tópicos
a serem observados:
• Zelar para que a vítima tenha assegurado o direito de ser ouvida em um
ambiente acolhedor, afastado da sala de audiências (depoimento especial),
sem se encontrar com o suposto autor do fato nas dependências do foro.
• Zelar para que a vítima seja orientada sobre a forma como o ato vai se
realizar.
• Zelar para que a vítima seja entrevistada por profissional capacitado e com
a utilização de técnica de entrevista adequada.
• Aguardar, durante o ato da audiência, que o técnico consiga trabalhar com
a vítima pelo relato livre, suportando os eventuais silêncios e manifestações
emotivas dela.
19
É princípio constitucional • Respeitar o direito da vítima de manifestar-se, de manter o silêncio e de
implícito. Instituído direito
ou garantia, legislativa ou não falar sobre o ocorrido.
administrativamente, fica • Não realizar perguntas fechadas a fim de não sugestionar a resposta.
vedada a sua posterior
supressão, porquanto se • Não insistir em aspectos que já tenham sido abordados ou respondidos,
incorpora ao patrimônio para não confundir a criança.
jurídico da cidadania.
256
Capítulo 15 - O papel institucional do Ministério Público nos casos de violência sexual contra crianças e adolescentes: protocolo ético de atuação
Considerações finais
Referências
257
Capítulo 16
Todos aqueles que têm a experiência de lidar, no meio forense, com alguma
rotina, sabem que esse cotidiano é repleto de situações para algumas das quais os
operadores do Direito que nela atuam (juízes, promotores de justiça, advogados,
servidores da justiça) não receberam qualquer preparo, tampouco os ambientes
em que elas ocorrem, as salas de audiência tradicionais, foram projetados para
receberem as pessoas de forma mais acolhedora e humana. Dentro do campo
processual específico que regula a produção da prova no processo penal, a atividade
forense que consiste na escuta de crianças e de adolescentes, como vítimas ou como
testemunhas, é assaz difícil e delicada, mormente quando a matéria a ser enfrentada
se constitua em violência ou em exploração sexual.
Isso porque a legislação nacional não diferencia essa escuta em nada, por
exemplo, de um depoimento realizado em um caso de delito de furto, no qual
apenas o patrimônio restou atingido pelo ato ilícito. Embora todos concordem que
são momentos completamente distintos, com características totalmente diversas e
com bens jurídicos de diferentes valores, a legislação processual penal nacional trata
a ambos de forma igual, desconsiderando por completo que crianças e adolescentes
são seres em estágio de desenvolvimento e que, por isso, devem, com absoluta
prioridade, receber tratamento mais adequado às suas vivências e realidades.
259
Escuta de crianças e adolescentes em situação de violência sexual: aspectos teóricos e metodológicos
260
Capítulo 16 - A atenção à criança e ao adolescente no judiciário: práticas tradicionais em cotejo com práticas não revitimizantes (depoimento especial)
261
Escuta de crianças e adolescentes em situação de violência sexual: aspectos teóricos e metodológicos
Deverá, ainda, haver apoio técnico qualificado para uso dos equipamentos
tecnológicos instalados nas salas de audiência e de depoimento especial;
b) o ambiente deverá ser adequado ao depoimento da criança e do adolescente,
assegurando-lhes segurança, privacidade, conforto e condições de
acolhimento.
II – Os participantes de escuta judicial deverão ser especificamente capacitados
para o emprego da técnica do depoimento especial, usando os princípios
básicos da entrevista cognitiva.
III - O acolhimento deve contemplar o esclarecimento, à criança ou
ao adolescente, a respeito do motivo e do efeito de sua participação
no depoimento especial, com ênfase à sua condição de sujeito em
desenvolvimento e do consequente direito de proteção, preferencialmente,
com o emprego de cartilha previamente preparada para a finalidade.
IV – Os serviços técnicos do sistema de justiça devem estar aptos a promover
apoio, orientação e encaminhamento de assistência à saúde física e emocional
da vítima ou testemunha e de seus familiares, quando necessário, durante
e após o procedimento judicial.
V – Devem ser tomadas medidas de controle de tramitação processual que
promovam a garantia do princípio da atualidade, garantindo a diminuição
do tempo entre o conhecimento do fato investigado e a audiência de
depoimento especial.
Tais orientações apresentam-se como principais vantagens do depoimento
especial em cotejo com o depoimento tradicional de crianças e de adolescentes
vítimas e testemunhas no sistema processual nacional. Isso sem explicitar que o
espaço físico projetado para o acolhimento, a preparação específica de profissionais
para esse delicado momento e um olhar do sistema de justiça que se volte mais para
o exercício de um direito são características que, sem dúvida alguma, já qualificam,
positivamente, essa forma diferente de intervenção, passando a ser questão
secundária a produção da prova. Além dessas orientações, estão as de:
262
Capítulo 16 - A atenção à criança e ao adolescente no judiciário: práticas tradicionais em cotejo com práticas não revitimizantes (depoimento especial)
Hoje, na maior parte das cidades, consignando-se que o Brasil possui mais
de duas mil e setecentas comarcas (unidades judiciárias) instaladas e em operação,
os juízes são, em regra, generalistas. Tratam de todas as matérias – cível, penal,
previdenciária, fiscal, família, infância e juventude – o que determina não apenas
uma baixa qualidade do trabalho desenvolvido, mas também um desgaste da pessoa
e da instituição, enfim, uma reduzida quantidade de trabalho finalizado.
Quando se trata da implementação do depoimento especial, a questão é
ainda mais preocupante. Eis que, na atualidade, as comarcas que contam com esse
tipo de serviço não superam o número de cem, ainda assim, mais da metade delas
situadas no estado do Rio Grande do Sul. Seguindo o modelo de outros países,
concluir-se-á que, ante a intensa especialização que esse tipo de atividade exige,
nem sempre será viável que se conte com ela em todas as comarcas, mormente
naquelas que possuem pequena demanda judicial e que apenas eventualmente
utilizarão o serviço de depoimento especial.
Países como os Estados Unidos da América, que há mais de 20 anos
possuem esse tipo de atendimento a crianças vítimas e testemunhas nos processos
judiciais, regionalizam o serviço, assim viabilizando que um número maior de
pessoas, mediante pequenos deslocamentos, possam ser adequadamente escutadas.
Nesse país, para uma população aproximada de 308 milhões de pessoas existem,
aproximadamente, 900 centros de escuta especializada de crianças e de adolescentes
vítimas e testemunhas nos processos judiciais, o que perfaz o resultado de que
exista uma sala para aproximadamente cada 342 mil pessoas.
No Brasil, como já referido, esse trabalho ainda é incipiente, apresentando-
se o estado do Rio Grande do Sul como aquele que possui o maior número
de equipamentos instalados e de equipes capacitadas. Atualmente, para uma
população aproximada de 10,7 milhões de pessoas, existem 26 salas de depoimento
distribuídas pelo estado, existindo a previsão de que, em 2012, com recursos da
Secretaria Especial de Direitos Humanos, esta ligada diretamente à Presidência da
República, sejam instaladas mais 10 unidades no interior do estado, com o que,
263
Escuta de crianças e adolescentes em situação de violência sexual: aspectos teóricos e metodológicos
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Capítulo 16 - A atenção à criança e ao adolescente no judiciário: práticas tradicionais em cotejo com práticas não revitimizantes (depoimento especial)
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Escuta de crianças e adolescentes em situação de violência sexual: aspectos teóricos e metodológicos
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Capítulo 16 - A atenção à criança e ao adolescente no judiciário: práticas tradicionais em cotejo com práticas não revitimizantes (depoimento especial)
267
Escuta de crianças e adolescentes em situação de violência sexual: aspectos teóricos e metodológicos
crianças e a seus responsáveis legais quando das intimações (no Reino Unido, na
Argentina, em Porto Alegre-RS), todos singelos, de baixo custo, de fácil confecção
e que se constituem em importante instrumento de sensibilização, para que os
depoimentos sejam realizados de forma tranquila e salutar.
Conclusão
268
Capítulo 16 - A atenção à criança e ao adolescente no judiciário: práticas tradicionais em cotejo com práticas não revitimizantes (depoimento especial)
Fonte: O AUTOR
269
Escuta de crianças e adolescentes em situação de violência sexual: aspectos teóricos e metodológicos
Referências
270
VIII – Preparação
da criança e do
adolescente para a
entrevista forense,
protocolos de entrevista
e acompanhamento
pós-depoimento
especial
Capítulo 17
A preparação da criança e do
adolescente para a entrevista na fase de
instrução processual
Vanea Maria Visnievski
273
Escuta de crianças e adolescentes em situação de violência sexual: aspectos teóricos e metodológicos
274
Capítulo 17 - A preparação da criança e do adolescente para a entrevista na fase de instrução processual
275
Escuta de crianças e adolescentes em situação de violência sexual: aspectos teóricos e metodológicos
276
Capítulo 17 - A preparação da criança e do adolescente para a entrevista na fase de instrução processual
277
Escuta de crianças e adolescentes em situação de violência sexual: aspectos teóricos e metodológicos
Comportamentos do entrevistador
Deve-se ter em mente que não é comum, para uma criança, ir ao tribunal
ou fórum para testemunhar sobre uma situação íntima e constrangedora, vivenciada
por ela, para pessoas estranhas, como o entrevistador, o juiz e demais agentes
jurídicos. Por isso, ao iniciar a interação com a criança ou com o adolescente, o
entrevistador deverá conduzir-se em uma postura tranquila, segura, acolhedora e
estabelecer uma boa comunicação com a criança e com a pessoa que a acompanha.
É possível que a criança ou o adolescente cheguem assustados e expressem
sentimentos de insegurança, de tristeza, de ansiedade, de confusão, de raiva, de
vergonha e de ambivalência ao falar sobre os abusos sofridos. Acolhê-los e manejar
esses sentimentos é a tarefa inicial do entrevistador.
Indicação importante do comportamento adequado e eficiente do
entrevistador é a observação do princípio de sincronia. Segundo esse princípio,
em uma relação interpessoal, as pessoas tendem a agir de maneira semelhante ao
seu interlocutor. Assim, se o entrevistador estiver tranquilo, o entrevistado tem
maior chance de se manter tranquilo. Outras indicações são: “sente-se de maneira
relaxada, incline seu corpo em direção ao entrevistado; expresse cordialidade e
suporte; use contato ocular frequente, mas não olhe fixamente; fale devagar e use
frases curtas; expresse atenção e interesse através de movimentos de assentimento
com a cabeça, porém não qualitativos; evite movimentos agitados; não interrompa
e permita pausas” (MEMON, 2007, p. 6).
2
Rapport é uma palavra francesa Procedimentos no dia da audiência: desenvolvimento da preparação da
que significa empatia. Nos criança ou do adolescente para a participação na audiência
protocolos de entrevista
forense, é a etapa da entrevista
em que o entrevistador Apresente-se e personalize a entrevista
“desenvolve uma atmosfera
psicológica favorável para que
É recomendado o uso da primeira pessoa – “eu” – durante os diálogos
a testemunha consiga relatar como forma de humanizar a entrevista. O entrevistador poderá iniciar a preparação
minuciosamente o evento dizendo, por exemplo: “Olá, bom dia! Você deve ser a ............ Muito obrigado (a)
vivido”. (FEIX; PERGHER,
por ter vindo! Meu nome é ........Quero convidá-la a ir para a sala onde converso
2010, p. 213).
278
Capítulo 17 - A preparação da criança e do adolescente para a entrevista na fase de instrução processual
279
Escuta de crianças e adolescentes em situação de violência sexual: aspectos teóricos e metodológicos
amigos na escola, animal de estimação, músicas, jogos podem desencadear uma boa
interação entre o entrevistado e o entrevistador. Falar sobre si mesmo como forma
de criar empatia com a criança pode ser outra boa estratégia. Exemplos: “Eu gostaria
de saber o que você gosta de fazer na hora do recreio na sua escola.” ou “Você tem
bichinho de estimação? Eu tenho uma cachorrinha poodle, o nome dela é........”.
Perguntas introduzidas com as palavras quem? o que? quando? como? onde? são
perguntas abertas e propiciam respostas com maior quantidade de informações,
com relato livre e com menos risco de indução por parte do entrevistador. As
perguntas fechadas, por sua vez, restringem a resposta a uma palavra ou a uma frase
curta e podem dificultar a continuidade de uma entrevista.
280
Capítulo 17 - A preparação da criança e do adolescente para a entrevista na fase de instrução processual
281
Escuta de crianças e adolescentes em situação de violência sexual: aspectos teóricos e metodológicos
Explique o que será feito, por que isso será feito e quanto tempo demorará
O entrevistador deverá explicar, à criança ou ao adolescente, todas as etapas
da entrevista e o motivo de eles falarem em separado como medida de proteção.
Deverá ainda informar, à criança ou ao adolescente, a previsão de quanto tempo
demorará a entrevista completa.
Não se encontra, na literatura, limite de tempo para a preparação ou o
transcurso de todas as fases da entrevista. Entretanto, há de se observar o ritmo da
criança e o quanto ela poderá sentir-se cansada ou desconfortável. É desejável que
todo o procedimento da entrevista ou audiência não exceda 1h30min.
282
Capítulo 17 - A preparação da criança e do adolescente para a entrevista na fase de instrução processual
Considerações finais
Referências
ASSOCIAÇÃO PORTUGUESA DE APOIO À VÍTIMA. Manual CORE para
atendimento de crianças vítimas de violência sexual: proceder. Disponível em <.http://
www.apav.pt/pdf/core_proceder.pdf>. Acesso em: 4 set. 2011.
CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. (Brasil). Recomendação nº 33 de 23
de novembro de 2010. Recomenda aos tribunais a criação de serviços especializados
para escuta de crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violência nos
processos judiciais. Depoimento Especial. (Diário justiça Eletrônico. Brasília, 25
nov. 2010, p. 33-34. Disponível em: <www.cnj.jus.br>. Acesso em: 4 set. 2011.
DECLARAÇÃO DE ESTOCOLMO, 1972. Disponível em: <http://www.mp.rs.
gov.br/infancia/documentos_internacionais/id101.htm>. Acesso em: 4 set. 2011.
DEPARTAMENTO DE JUSTIÇA DO CANADÁ. Disponível em: <www.
courtprep.ca>. Acesso em: 4 set. 2011.
DOBKE, V. Abuso sexual: a inquirição das crianças – uma abordagem interdisciplinar.
Porto Alegre: Ricardo Lenz, 2001.
ECOSOC. Conselho Econômico e Social das Nações Unidas. Resolução 20/2005.
Disponível em: <http://www.un.org/docs/ecosoc/documents/2005/resolutions/
Resolution%202005-20.pdf>. Acesso em: 2 set. 2011.
283
Escuta de crianças e adolescentes em situação de violência sexual: aspectos teóricos e metodológicos
284
Capítulo 18
285
Escuta de crianças e adolescentes em situação de violência sexual: aspectos teóricos e metodológicos
286
Capítulo 18 - Procedimentos éticos e protocolares na entrevista com crianças e adolescentes
287
Escuta de crianças e adolescentes em situação de violência sexual: aspectos teóricos e metodológicos
A Entrevista Cognitiva
288
Capítulo 18 - Procedimentos éticos e protocolares na entrevista com crianças e adolescentes
O Protocolo NICHD
289
Escuta de crianças e adolescentes em situação de violência sexual: aspectos teóricos e metodológicos
discutir verdade e mentira está apoiada em evidências de pesquisa que indicam que
solicitar a uma criança que somente relate “as coisas que realmente aconteceram
com ela” diminui a possibilidade de relatos fabricados (LAMB et al., 2008).
O investimento no rapport também é estimulado pelo Protocolo NICHD.
Nesse protocolo, o rapport se faz por meio da discussão de temas prazerosos à
criança e do estímulo à produção de narrativas detalhadas sobre eventos positivos.
Essa ação pressupõe que o entrevistador conheça os interesses da criança com base
em pelo menos uma entrevista com o cuidador não agressor.
Em seguida, há a técnica do treino da memória episódica, isto é, a técnica
de treinar a pessoa a falar, em detalhes, sobre os eventos acontecidos no passado. O
treino ocorre com o estímulo da narrativa sobre um evento positivo previamente
abordado, sobre o dia anterior e sobre “o dia de hoje”, com ênfase no detalhamento
de cada um desses eventos com perguntas abertas, tais como: “E depois, o que
aconteceu?”.
Na próxima etapa, há a transição para os eventos significativos, com
questionamento do conhecimento da criança sobre o objetivo da entrevista.
Nesta etapa, o entrevistador introduz, deliberadamente, o assunto, por exemplo,
perguntando: “Você sabe por que veio conversar aqui hoje?” Se não houver a
revelação, o Protocolo NICHD solicita que sejam realizadas tentativas de introduzir,
gradualmente, informações conhecidas sobre a denúncia: “Eu soube que sua mãe
está preocupada com você. Fale-me por que sua mãe está preocupada.” ou “Eu
soube que você contou para a professora que alguém estava te incomodando. Fale-
me sobre isso.”
Em seguida, ocorre a avaliação dos incidentes, no caso de haver qualquer
revelação na etapa anterior, com base na maneira como a criança narrou o evento
e com a formulação de perguntas abertas, focais, como: “Você me disse que o tio
João pegou no seu piu-piu. Conte-me como foi isso”. Em seguida, o protocolo
solicita que sejam explorados os vários incidentes, desde “a última vez em que isso
aconteceu”, até “a primeira vez em que isso aconteceu”. Nesse modelo, há a avaliação
de incidentes não mencionados pela criança, mas necessários ao entendimento da
situação, por exemplo: “Ele tocou você por debaixo da roupa?” Ressalta-se que,
apenas nesta etapa do protocolo, admitem-se perguntas fechadas, porém, seguidas
de questões abertas: “Conte-me como isso aconteceu”. O uso de convites para a
narrativa também é empregado visando a ajudar crianças que não conseguem falar
sobre experiências já conhecidas pelo entrevistador: “Eu ouvi dizer que você falou
com a tia Maria sobre quando o papai pegou na sua florzinha. Conte-me o que
você contou para a sua tia Maria”. Também se estimula a obtenção de informações
sobre a revelação anterior, como: “Como foi que você contou para o tio João sobre
isso que aconteceu?”
290
Capítulo 18 - Procedimentos éticos e protocolares na entrevista com crianças e adolescentes
O Protocolo Ratac
291
Escuta de crianças e adolescentes em situação de violência sexual: aspectos teóricos e metodológicos
Idade
Questões Indiretas &
Fechadas
Abertas
Habilidade Narrativa
(Favorece o uso de questionamentos abertos)
Trauma Emocional
(Desfavorece o uso de questionamentos abertos)
Sugerida
Narrativa Limitada / pelo
Narrativa Selecionada
Focalizada Selecionada Entrevistador
292
Capítulo 18 - Procedimentos éticos e protocolares na entrevista com crianças e adolescentes
293
Escuta de crianças e adolescentes em situação de violência sexual: aspectos teóricos e metodológicos
294
Capítulo 18 - Procedimentos éticos e protocolares na entrevista com crianças e adolescentes
295
Escuta de crianças e adolescentes em situação de violência sexual: aspectos teóricos e metodológicos
3 anos
4-6 anos
7-8 anos
9-10 anos
11-12 anos
296
Capítulo 18 - Procedimentos éticos e protocolares na entrevista com crianças e adolescentes
Conclusão
297
Escuta de crianças e adolescentes em situação de violência sexual: aspectos teóricos e metodológicos
Referências
298
Capítulo 18 - Procedimentos éticos e protocolares na entrevista com crianças e adolescentes
299
Escuta de crianças e adolescentes em situação de violência sexual: aspectos teóricos e metodológicos
Avaliação psicossocial
300
Escuta de crianças e adolescentes em situação de violência sexual: aspectos teóricos e metodológicos
Antes da audiência
301
Escuta de crianças e adolescentes em situação de violência sexual: aspectos teóricos e metodológicos
No dia da audiência
302
Escuta de crianças e adolescentes em situação de violência sexual: aspectos teóricos e metodológicos
303
Escuta de crianças e adolescentes em situação de violência sexual: aspectos teóricos e metodológicos
Observações
304
Capítulo 19
O processo de acompanhamento e
de apoio a crianças e a adolescentes
vítimas de violência sexual – uma breve
discussão sobre o pós-depoimento
Sandra Santos
1
Sistema de Garantia de
Direitos (SGD) - O Sistema
de Garantia de Direitos,
Introdução
constitui-se na articulação
e integração das instâncias
Nos últimos anos, muito se tem debatido sobre a escuta de crianças públicas governamentais e da
sociedade civil, na aplicação de
e de adolescentes vítimas de violência sexual nas diversas instâncias do Sistema instrumentos normativos e no
de Garantia de Direitos (SGD1). Esses debates têm sido relevantes no sentido de funcionamento dos mecanismos
reafirmar princípios estabelecidos em normativas internacionais e nacionais de de promoção, defesa e controle
para a efetivação dos direitos da
proteção integral a crianças e a adolescentes. Reconhecer que estes são sujeitos criança e do adolescente, nos
de direitos e que devem ser tratados como pessoas em condição peculiar de níveis Federal, Estadual, Distrital
desenvolvimento constituem etapas imprescindíveis no processo de atendimento, e Municipal. Fonte: http://www.
de acompanhamento e de apoio a crianças e a adolescentes em situação de violência sedh.g ov.br/clientes/sedh/
sedh/spdca/sgd - Acesso em: 19
sexual. Nesta perspectiva, a busca de alternativas técnicas e de procedimentos mar. 2012.
humanizados deve ser fundamentada nas disposições contidas no Cap. II do 2
Aprovado pela Lei Federal nº
Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA2), que trata do Direito à Liberdade, ao 8.069/1990.
3
Redes de Proteção – As redes
Respeito e à Dignidade, para evitar a revitimização dos sujeitos atendidos. são uma aliança de atores/forças
É do conhecimento dos profissionais que atuam na área da infância e da num bloco de ação político
operacional (...). O foco do
adolescência que a Rede de Proteção3, composta por segmentos da Assistência
trabalho em redes não é um
Social, da Saúde, da Educação e do Sistema de Segurança e de Justiça, não tem problema imediato, isolado,
conseguido realizar essa escuta, de forma a garantir os direitos de crianças e de mas a articulação de sujeitos/
adolescentes vítimas. O que tem sido observado é que ocorre a repetição da história atores/forças para propiciar
poder, recursos e dispositivos
da violência sofrida a cada um dos atores que compõem essa rede, em ambientes para a ação, auto-organização
os mais diversos possíveis e, quase sempre, sem o cuidado devido com quem está e a auto-reflexão do coletivo
sendo ouvido – no caso, a criança ou o adolescente –, com quem está ouvindo (FALEIROS, 1998).
305
Escuta de crianças e adolescentes em situação de violência sexual: aspectos teóricos e metodológicos
306
Capítulo 19 - O processo de acompanhamento e de apoio a crianças e a adolescentes vítimas de violência sexual – uma breve discussão sobre o pós-depoimento
307
Escuta de crianças e adolescentes em situação de violência sexual: aspectos teóricos e metodológicos
308
Capítulo 19 - O processo de acompanhamento e de apoio a crianças e a adolescentes vítimas de violência sexual – uma breve discussão sobre o pós-depoimento
309
Escuta de crianças e adolescentes em situação de violência sexual: aspectos teóricos e metodológicos
310
Capítulo 19 - O processo de acompanhamento e de apoio a crianças e a adolescentes vítimas de violência sexual – uma breve discussão sobre o pós-depoimento
311
Escuta de crianças e adolescentes em situação de violência sexual: aspectos teóricos e metodológicos
A autora continua:
312
Capítulo 19 - O processo de acompanhamento e de apoio a crianças e a adolescentes vítimas de violência sexual – uma breve discussão sobre o pós-depoimento
313
Escuta de crianças e adolescentes em situação de violência sexual: aspectos teóricos e metodológicos
Considerações finais
314
Capítulo 19 - O processo de acompanhamento e de apoio a crianças e a adolescentes vítimas de violência sexual – uma breve discussão sobre o pós-depoimento
315
Escuta de crianças e adolescentes em situação de violência sexual: aspectos teóricos e metodológicos
316
IX – O cuidado dos
cuidadores
Capítulo 20
Definição de cuidado
319
Escuta de crianças e adolescentes em situação de violência sexual: aspectos teóricos e metodológicos
Dimensões do cuidado
320
Capítulo 20 - O cuidado com o profissional que toma o depoimento
321
Escuta de crianças e adolescentes em situação de violência sexual: aspectos teóricos e metodológicos
322
Capítulo 20 - O cuidado com o profissional que toma o depoimento
dissemos, a verdade do sujeito que cometeu um delito não pode ser revelada.
Assim, o criminoso trabalhará no sentido de se inocentar e não de esclarecer, ao
juiz, a verdade dos fatos.
Em caso dos crimes sexuais contra crianças e adolescentes, a questão se
complica um pouco mais, pois a única testemunha do fato muitas vezes é a própria
criança, sobre quem o suposto abusador tem total domínio. Ele não se furtará em
usá-lo para persuadi-la a manter o suposto crime em segredo e, portanto, a não
produzir provas contra ele.
Segundo Dobke (2001), é notória a dificuldade dos operadores de
Direito, ou seja, de juízes, de advogados e de promotores em lidar com os casos
de suspeita de abuso sexual contra a criança e o adolescente. A autora pesquisou
seis inquirições feitas por juízes a crianças supostamente abusadas sexualmente.
Em todas elas, observou a dificuldade dos juízes, dos defensores e dos promotores
em estabelecerem laço com a criança – laço esse que permitisse a ela se colocar
–, bem como a dificuldade em falarem sobre o tema, elaborando perguntas de
difícil interpretação. Assim, acredita que “os operadores do direito, para ouvir a
criança, precisam estar emocionalmente preparados para não rejeitar a experiência
abusiva e, em consequência, a própria criança” (DOBKE, 2001, p. 96). A autora
acrescenta que
323
Escuta de crianças e adolescentes em situação de violência sexual: aspectos teóricos e metodológicos
324
Capítulo 20 - O cuidado com o profissional que toma o depoimento
Traumatismo Vicarious
3
Pesquisadores da Universidade
Stress traumático secundário
de Ulster, Jordanstown, Co
Antrim, Irlanda do Norte,
Stress traumático secundário tem sido definido por Figley como: Reino Unido.
4
Não há tradução deste termo
Uma consequência natural de comportamentos e emoções para o português. Refere-se às
resultantes do conhecimento de um trauma vivido por um situações de baixo nível social:
outro significativo - o estresse decorrente de ajudar ou querer o escravo de um escravo, ou
seja, alguém completamente
ajudar uma pessoa traumatizada ou em sofrimento (FIGLEY
dominado. Por ser palavra
1995, p.7 apud COLLINS; LONG, 2003, p.234). estrangeira, estará neste texto
em itálco.
325
Escuta de crianças e adolescentes em situação de violência sexual: aspectos teóricos e metodológicos
b) Mudanças cognitivas
O trabalhador pode vivenciar oscilações em seu pensamento, tais como:
da confiança à suspeita crônica dos outros; da segurança à grande sensação de
vulnerabilidade; do poder extremo ao sentimento de impotência; da independência
326
Capítulo 20 - O cuidado com o profissional que toma o depoimento
c) Distúrbios relacionais
Estudos demonstraram que a exposição ao trauma secundário pode
ter um impacto sobre os relacionamentos tanto pessoal, como profissional dos
trabalhadores. As relações pessoais podem sofrer por causa do aumento do estresse
ou de dificuldades relacionadas à confiança e à intimidade (CLARK; GIORO,
1998; BRANCO, 1998 apud COLLINS; LONG, 2003).
A relação profissional entre o terapeuta e o cliente pode ser afetada quando
os terapeutas respondem aos seus clientes pela dinâmica de distanciamento
do relacionamento ou pela superidentificação. Descolar-se ou distanciar-
se emocionalmente dos sobreviventes de traumas é utilizado consciente ou
inconscientemente, para permitir ao trabalhador evitar que seus sentimentos sejam
esmagados ou tornados vulneráveis ao trauma material, daí o bloqueio a certas
reações emocionais. No entanto, o uso desse mecanismo de defesa pode fazer com
que os clientes sintam-se emocionalmente solitários e novamente abandonados,
mesmo que a intenção da pessoa seja a de ajudá-los (DUTTON; RUBINSTEIN,
1995 apud COLLINS; LONG, 2003).
O uso da dinâmica do descolamento ou do afastamento pelos trabalhadores
como uma resposta secundária ao trauma também pode assumir a forma de
distanciamento da família, dos amigos ou dos colegas, talvez pela crença de
que ninguém entende a angústia provocada pelo seu trabalho (HARBERT;
HUNSINGER, 1991 apud COLLINS; LONG, 2003).
Traumatismo contratransferencial
327
Escuta de crianças e adolescentes em situação de violência sexual: aspectos teóricos e metodológicos
Figley (1995 apud COLLINS; LONG, 2003) afirma que o stress traumático
secundário é uma consequência natural da dinâmica de cuidado que acontece
entre duas pessoas, uma das quais foi inicialmente atônita, e outra, afetada pelas
experiências traumáticas da primeira. Esses efeitos não são necessariamente
um problema, mas mais um subproduto natural do cuidado com pessoas
traumatizadas. Explicar a diferença entre as concepções de contratransferência e
de stress traumático secundário é complicado, no entanto, a nossa tentativa de fazê-
lo demonstra que a contratransferência diz mais respeito a como os trabalhadores
da assistência são afetados pelos clientes e pelo seu material traumático. O stress
pós-traumático, por sua vez, refere-se às modalidades traumáticas das condições
de vida dos trabalhadores, de suas relações pessoais e redes sociais e à forma como
seu trabalho é afetado pelo trauma.
Burn-out
328
Capítulo 20 - O cuidado com o profissional que toma o depoimento
329
Escuta de crianças e adolescentes em situação de violência sexual: aspectos teóricos e metodológicos
330
Capítulo 20 - O cuidado com o profissional que toma o depoimento
331
Escuta de crianças e adolescentes em situação de violência sexual: aspectos teóricos e metodológicos
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Capítulo 20 - O cuidado com o profissional que toma o depoimento
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Escuta de crianças e adolescentes em situação de violência sexual: aspectos teóricos e metodológicos
não apenas como quem obtém alimentos ou utensílios, mas também como quem
cria mundos, como quem faz cultura. Agir, praticar o inesperado. Interromper
o maquinismo material ou social. “Conversar, mover-se por motivos políticos,
motivos de cidade, que abraçam e ultrapassam motivos só de casa” (GONÇALVES
FILHO, 2007, p.219).
Por essas razões, o estudo deste tema pode trazer algumas contribuições
demonstrando que a gestão coletiva da organização do trabalho permite a
transformação do sofrimento em prazer e possibilita o engajamento do trabalhador
na atividade sem maiores prejuízos à sua saúde mental. Nesse sentido, Dejours
(1987) considera “a possibilidade do trabalhador, por não suportar o sofrimento,
de transformá-lo em criatividade, e, consequentemente, em prazer, ao invés de
utilizar como único recurso as estratégias defensivas” (DEJOURS, 1987, p.45).
O prazer no trabalho inclui a capacidade de “ter loucuras sem ser doida”
(LISPECTOR, 1999, p. 253). É poder relaxar diante das situações difíceis, “é
devaneio sem pressa de integração ao ambiente” (LISPECTOR, 1999, p. 253).
A cena está então preparada para uma aparição pessoal. Surge uma sensação, um
impulso vago, mais ou menos angustiante. Aos poucos, o impulso é assumido. A
direção começa a esboçar-se. “A vida adquire forma e sentido, ações e obras vão
desabrochar” (LISPECTOR, 1999, p.196).
Referências
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Depoimento de autoridades e
profissionais
O projeto de escuta de crianças e adolescentes em situação de violência sexual, sem
sombra de dúvida, é dos projetos mais relevantes em nosso atual sistema de justiça.
O chamado “depoimento especial” revela a justiça em que acreditamos: acessível,
democrática, eficiente, humanitária e em prol dos direitos humanos. Além disso,
enfatiza também a importância da cuidadosa atuação multidisciplinar, integrando o
mundo do direito à psicologia e assistência social.
A Childhood está de parabéns pela iniciativa do projeto, colaborando, de forma
definitiva, para a proteção judicial às crianças e adolescentes vítimas de violência sexual.
Flávio Crocce Caetano - Ex-Secretário de Reforma do Judiciário
Os textos aqui apresentados trazem uma grande contribuição para o profissional que
atende crianças e adolescentes no sistema de justiça, especialmente aquele que realiza
entrevista forense. Vemos a abordagem de temas desde o desenvolvimento infantil
até os diversos protocolos de entrevistas adotados em outros países. O resultado é
uma criteriosa coletânea elaborada para dar subsídio a uma prática que ainda está em
construção no nosso país.
Rosimery Medeiros – TJPE Pedagoga e Entrevistadora Forense
Este material de leitura nos leva a pensar sobre os fenômenos sociais de forma
contextualizada, mas sem desconsiderar as particularidades existentes. O processo
histórico, as normas, as declarações e outras posições que visam garantir a proteção
das crianças e adolescentes como sujeitos de direitos fazem parte de seu conteúdo.
Todos esses temas buscarão correlacionar o contexto da Justiça como mais um espaço
de proteção das crianças e adolescentes vítimas de violência sexual, ressaltando
a interdisciplinaridade entre os atores envolvidos na construção de uma prática
transdisciplinar. O depoimento especial vem contribuir, dessa forma, como mais
uma metodologia de intervenção, que permite assegurar uma atenção especial a esses
sujeitos de direitos.
Marcia Maria Borba Lins – TJDFT – Assistente Social e Entrevistadora Forense.
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metodologia da Escuta Especial de Crianças que, se ainda não atende a todos os anseios
de proteção, transforma o cenário atual da criança que precisa depor sobre crime sexual
do qual foi vítima.
A Escuta Especial de Crianças tem duas funções: oferecer o ambiente mais protegido
possível para a criança depoente e garantir a recuperação fidedigna dos fatos vividos
por ela. Essas funções só serão cumpridas caso a metodologia seja bem construída e a
técnica, utilizada com perfeição.
Esta publicação, escrita por profissionais que há anos pensam, estudam e utilizam essa
metodologia, é um marco importante para o desenvolvimento de uma atuação judicial
que garanta os direitos de vítimas e acusados.
Portanto, o Guia de Escuta Especial de Criança é essencial para entrevistadores e
operadores do Direito que precisam se constituir em uma equipe com princípios
filosóficos e protocolo compartilhados, para bem desempenhar sua missão: realizar a
difícil tarefa de resguardar uma criança que relata vivências inadequadas para sua idade
e garantir a produção de um depoimento que resgate a memória do que de fato ocorreu.
Marília Lobão – TJDFT, Psicóloga e Secretária da Secretaria Psicossocial Judiciária
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Escuta de crianças e adolescentes em situação de violência sexual: aspectos teóricos e metodológicos
Margarete Marques
Psicóloga, mestre em Psicologia Social pela Pontifícia Universidade Católica de
São Paulo; especialista em Gestão de Equipamentos de Saúde Pública pela Unifesp.
Ex-coordenadora do Programa de Referência a vítimas de violência sexual da zona
Sul de São Paulo; professora universitária convidada; consultora da Childhood
Brasil desde 2005, capacitando profissionais das redes de diversos municípios
para o trabalho qualificado e em rede com crianças e adolescentes em situação de
violência sexual. Apoiadora da Saúde no município de São Bernardo do Campo
(SP).
Curriculum Lattes: http://lattes.cnpq.br/8198431217563505
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Rita Ippolito
Formada em Pedagogia e especializada em Psicologia do Desenvolvimento Infantil
na Itália. Desde 1987, trabalha com projetos de desenvolvimento humano e social
com crianças, jovens e mulheres em países como Equador, Peru, Colômbia e
Brasil. Desde 1992, reside no Brasil. Coordenou projetos e programa com foco
na infância com a Cooperação Italiana e pela USAID. Participou da elaboração do
Plano Nacional de Enfrentamento do Abuso e Exploração Sexual de Crianças e
Adolescentes e idealizadora do PAIR-Secretaria dos Direitos Humanos. Mentora
do Projeto de Política de Prevenção com a elaboração do Guia Escolar, (MEC-
SDH). Atualmente é pesquisadora da UFRJ e consultora da Childhood-Brasil para
o Programa de Educação e Grandes Empreendimentos e Proteção de Crianças e
Adolescentes em parceria com a FGV. Tem uma trajetória ampla de consultorias
para Secretaria Especial dos Direitos Humanos, UNESCO, OIT, MEC, MINC,
CIEDS, AECOM, Casa da Arte de Educar e empresariais como Odebrecht,
Chevron, Petrobras, Itaipu.
Curriculum Lattes: http://lattes.cnpq.br/1601607363701003
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Escuta de crianças e adolescentes em situação de violência sexual: aspectos teóricos e metodológicos
Sandra Santos
Graduada em Psicologia pela Universidade Federal da Bahia. Especialista em
Administração e Planejamento de Projetos Sociais pela Universidade Gama Filho
(RJ). É consultora do Programa de Ações Integradas e Referenciais de Enfrentamento
da Violência Sexual de Crianças e Adolescentes no Território Brasileiro (PAIR) –
Secretaria dos Direitos Humanos da Presidência da República (DF) e membro da
equipe técnica do Instituto Aliança (BA). Atuou no gerenciamento de programas
e projetos tanto no setor público quanto no terceiro setor e em consultorias na
área de promoção e defesa dos direitos humanos de crianças e adolescentes em
instituições tais como: Centro de Atenção Psicossocial Infância e Adolescência
(CAPSia), Saúde Mental – Secretaria Municipal de Saúde de Salvador, Centro de
Defesa da Criança e do Adolescente Yves de Roussan (Cedeca, BA) e Ministério
do Desenvolvimento Social e Combate à Fome.
Curriculum Lattes: http://lattes.cnpq.br/9316905560599197
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Escuta de crianças e adolescentes em situação de violência sexual: aspectos teóricos e metodológicos
Silvia R. M. Lordello
Psicóloga e pedagoga pela Universidade de Brasília. Doutora em Psicologia
Clínica e Cultura e mestre em Psicologia do Desenvolvimento além de especialista
em Psicopedagogia. É docente do curso de Psicologia da Universidade Católica
de Brasília. Integra o Núcleo de Saúde de Adolescentes da Secretaria de Estado
da Saúde do Distrito Federal e atua como psicoterapeuta de crianças e adolescentes
em clínica particular.
Curriculum Lattes: http://lattes.cnpq.br/4220453020134352
Vanea Visnievski
Graduada em Serviço Social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande
do Sul, possui treinamento específico em entrevista forense com crianças vítimas de
violência. Aposentada com vinte e três anos de experiência como Assistente Social
Judiciária no TJRS. Participou da formulação, implantação e desenvolvimento
do Projeto Depoimento Sem Dano na Comarca de Porto Alegre, denominado
atualmente Depoimento Especial, tendo conduzido mais de 500 entrevistas com
crianças e adolescentes. É tutora e conteudista de EAD, tem ministrado cursos e
participado como expositora em seminários com tema sobre a Infância e Juventude.
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Esta obra foi editorada pela Editora da Universidade Católica de Brasília - EdUCB
Impressão: Miolo: Papel offset 90g/m2 — Capa: Papel Supremo 250g/m2
Formato: 210x260mm — Fontes: Aldine 401 Bt, Myriad pro
Tiragem: 500 Exemplares