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34 EXPANSÃO | 9 de Fevereiro 2024

GESTÃO CONSULTORIA

CAPITAL HUMANO

Eu não quis que


ele se sentisse mal…
Nós ensinamos as crianças, desde cedo, a fazer os outros felizes, como se tal fosse sua responsabilidade. “Vai dar
um beijinho à avó, que está triste”; “Vai com o tio, ele quer a tua companhia”; “Dá um abraço à tia, que gosta
tanto de ti, para ela ficar contente” (...) Aprendemos que somos responsáveis pela felicidade dos outros”.

FÁTIMA SAMPAIO Ajudar é bom.


FERNANDES Sentir empatia
é importante. Mas
nunca a ponto de
colocarmos em risco
a nossa integridade

nós podemos usar uma ferra-


menta incrivelmente poderosa:
a conversa interna distanciada.
Psicóloga da Saúde Nós podemos falar connosco na
terceira pessoa, colocando-nos
na equação: “Patrícia, não te sin-
A Patrícia viajou com alguns cole- tas mal. Ele é adulto. Não em-
gas do seu departamento para Por- prestes o teu computador”; “Flo-
tugal, em formação. O Ricardo jun- rentina, calma. Tu tens de cuidar
tou-se à equipa um dia depois. Ti- de ti primeiro. Ele não é mais im-
nha tomado a decisão um pouco portante do que tu, minha ami-
mais tarde e não conseguira viajar ga!”; “Hermengarda, tapa a mão
com os colegas no mesmo vôo. No quando estás a digitar o pin do
regresso foi a mesma coisa: regres- cartão! Tens tanto dinheiro, que
sariam todos a Luanda no mesmo o queres oferecer a alguém que te
dia, mas não à mesma hora. O Ri- roube a carteira? Então, vá lá, juí-
cardo quis acompanhar os colegas zo e amor-próprio”!
ao aeroporto, e depois pediu à Pa- Também podemos falar con-
trícia: “Pat, se não te importas, dei- nosco na primeira pessoa. Pode-
xas-me ficar com o teu laptop para mos dizer a nós mesmos: “Eu não
poder fazer o relatório? Ainda vou quero que ninguém tenha acesso
ficar uma horas por aqui, e tenho aos meus dados pessoais. Não
de enviar o documento ainda hoje, vou emprestar o meu computa-
e o meu laptop tem um problema dor ou o meu telemóvel, porque
qualquer de sistema…”. A Patrícia eu tenho o direito de preservar a
olhou para ele. “Não te preocupes, minha intimidade. Quem me
Pat, sou de confiança, não vou me- está a pedir é adulto, deverá en-
xer em nada!”, disse o Ricardo, sor- contrar outra solução”; “O carro
ridente e simpático. “Está bem. Vê é meu e não o quero emprestar.
D.R.

lá se não mexes em nada mesmo” – Ele é adulto. Se ficar chateado:


riu a Patrícia, um pouco desconfor- terá de aprender a lidar com as
tável. O Armando chegou perto da não queria que ele pensasse que Norwood, em “Mulheres que tem delas. A autora refere tam- suas emoções, mas eu não me
Patrícia: “Porque é que lhe em- eu desconfiava dele! Eu não que- amam demais” (2009), ao fala- bém que as crianças que foram devo colocar em segundo lugar”;
prestaste o teu laptop?”. “Ah” – res- ria que ele se sentisse mal!”. rem de pessoas que sempre ten- humilhadas na infância (ridicu- “Espero que a moça compreen-
pondeu a Patrícia, nervosa – “Não O Marco perguntou à Hermen- tam agradar e que não conse- larizadas, envergonhadas em da, mas eu vou tapar quando digi-
quis que ele se sentisse mal…” garda, ao saírem da loja: “Como é guem dizer “não”, sacrificando as público) podem desenvolver, to o pin. Não quero ser assaltada
A Florentina foi ter com o RH que tu digitas o pin do teu cartão suas próprias necessidades e de- mais tarde, um certo prazer na por alguém que ficou a conhecer
da empresa. Tinha ficado quase multicaixa assim, sem tapar?”. sejos, explicam que são pessoas dor e na humilhação (masoquis- o pin do meu cartão”.
dois meses em casa e fora convo- “Ora” – exclamou a Hermengar- que, regra geral, vêm de lares dis- mo), expondo-se a situações po- Sabem como é que Ted Bundy,
cada para explicar o que se pas- da – “Não queria que a moça pen- funcionais, onde não receberam tencialmente danosas. um famoso e prolífico assassino
sava. Assim que se sentou diante sasse que eu desconfio dela! Não atenção e amor, aprendendo que Mas há outra razão. Nós ensi- em série atacava as suas vítimas?
da Maria e da Rita, do RH, come- quis que ela se sentisse mal”. só agradando aos outros podiam namos as crianças, desde cedo, a Fazendo-se de “coitadinho”, com
çou logo a chorar. “Oh, Dona receber algum tipo de validação. fazer os outros felizes, como se tal gesso no braço, pedindo ajuda
Florentina, então o que se pas- E quem nunca? Lise Boubeau, em “As cinco fe- fosse sua responsabilidade. “Vai para colocar algo no carro. A situa-
sa?” – perguntou, delicadamen- Porque é que isso acontece? Me- ridas emocionais” (2020), por dar um beijinho à avó, que está ção era estranha? Claro! Porquê
te, a Maria. A Florentina expli- lody Beattie, em “Vencer a code- sua vez, explica que crianças que triste”; “Vai com o tio, ele quer a pedir ajuda a uma jovem sozinha, e
cou que começara a namorar no pendência” (1986), e Robin se sentiram abandonadas na in- tua companhia”; “Dá um abraço à não aguardar para pedir ajuda a
ano passado e que se envolvera fância, geralmente por genito- tia, que gosta tanto de ti, para ela um homem ou a um grupo de jo-
com o companheiro sem preser- res do sexo oposto (e o abandono ficar contente”; “Empresta o teu vens? As jovens que foram estu-
vativo. Descobrira, há cerca de pode ser a chegada de um irmão carrinho, não vês que o menino pradas e mortas pensaram nisso?
dois meses, que ele, afinal, tinha mais novo; a ausência dos pais está a chorar?”. Aprendemos que Provavelmente. Mas o medo de fa-
mulher, que além disso era mu- Como podemos devido a longas horas de traba- nós somos responsáveis pela feli- zer aquele homem jovial e bonito
lherengo, e, pior, que tinha HIV e lho; ficar em casa da avó ou da cidade dos outros. E aprendemos sentir-se mal era muito maior que
que lhe tinha passado a doença. deixar de nos tia, para estudar; a morte do pai que a felicidade dos outros é mais o instinto de preservação.
“Oh Dona Florentina, mas então colocarmos em risco ou da mãe; ficar no hospital; importante que a nossa. Ajudar é bom. Sentir empatia
envolveu-se sem preservativo, por preocupação etc.), tornam-se, muitas vezes, Como podemos deixar de nos é importante. Mas nunca a pon-
sem antes fazerem testes e sem o dependentes, com medo de erra- colocarmos em risco por preocu- to de colocarmos em risco a nos-
conhecer bem?” – perguntou, com os sentimentos rem e serem abandonadas de pação com os sentimentos do ou- sa integridade física, a nossa paz,
suavemente, a Rita. A Florenti- do outro? novo, esforçando-se o tempo tro? Ethan Kross, em “A voz na a nossa vida. Para reflexão. For-
na desatou a chorar de novo: “Eu todo por agradar, para que gos- sua cabeça” (2021), explica como ça. Fique bem.

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