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ETRÓPOLE METRÓPOLE METRÓPOLE METRÓPOLE METRÓPOL

RTIGAS E A ARTIGAS E A ARTIGAS E A ARTIGAS E A ARTIGAS E


ETRÓPOLE METRÓPOLE METRÓPOLE METRÓPOLE METRÓPOL

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ETRÓPOLE METRÓPOLE METRÓPOLE METRÓPOLE METRÓPOL

RTIGAS E A ARTIGAS E A ARTIGAS E A ARTIGAS E A ARTIGAS E


ETRÓPOLE METRÓPOLE METRÓPOLE METRÓPOLE METRÓPOL
1A EDIÇÃO
FAU USP
2015

AS VIRTUALIDADES
DO MORAR

ARTIGAS E A
METRÓPOLE

LEANDRO MEDRANO
LUIZ RECAMÁN
ORGS.
14 16 146
APRESENTAÇÃO ABERTURA ENSAIOS AGRADECIMENTOS
LEANDRO HUGO FOTOGRÁFICOS CRÉDITOS
MEDRANO SEGAWA Textos NELSON KON
LUIZ RECAMÁN EU SOU CEM, 148
EU SOU TRINTA 130 CRISTIANO
MASCARO

MESA 1 26 40 52 64
VILANOVA MIGUEL RUTH VERDE LUIZ RECAMÁN ANA LANNA
ARTIGAS E A BUZZAR ZEIN FORA DO AS VIRTUALIDADES DEBATE
ARQUITETURA ARQUITETURA TOM, FORA DO MORAR:
BRASILEIRA E CIDADE EM DA ORDEM O ESPAÇO
VILANOVA (OU, QUANTO IMPOSSÍVEL
ARTIGAS MAIS ARTIGAS, DA CASA
MELHOR)
MESA 2 74 90 106 122
O MORAR E A JOÃO MASAO GUILHERME LEANDRO MÔNICA
CIDADE NA KAMITA A CASA WISNIK MEDRANO JUNQUEIRA
OBRA DE COMO “ATITUDE POR UMA HABITAÇÃO DE CAMARGO
VILANOVA CRÍTICA” URBANIZAÇÃO SERIADA NA DEBATE
ARTIGAS DA VIDA GRANDE CIDADE
DOMÉSTICA
APRESENTAÇÃO ABERTURA
LEANDRO HUGO
MEDRANO SEGAWA
LUIZ RECAMÁN EU SOU CEM,
EU SOU TRINTA
14
escola de arquitetura do país que surge desde
seu início apoiada em princípios modernos.
E os projetos desse arquiteto centralizam as
principais questões estéticas que envolve-
APRESENTAÇÃO riam a atualização da arquitetura moderna
LEANDRO brasileira no enfrentamento do processo de
MEDRANO metropolização do maior polo da indústria
LUIZ RECAMÁN nacional. Seu legado transpassa várias ge-
rações: está presente na releitura realizada
por jovens arquitetos e na obra de seu mais
destacado discípulo, o prêmio Pritzker Paulo
Mendes da Rocha. Afinal, é o novo edifício
da FAUUSP e sua “pedagogia radical” que
O ano de 2015 marca a celebração do nas- estavam presentes na Bienal de Veneza de
cimento do arquiteto João Vilanova Artigas. 2014 e na exposição do MoMA de 2015.
Nascido em Curitiba, Paraná, teve sua vida Esse protagonismo não está, no entanto,
profissional ligada à cidade de São Paulo, adequadamente registrado na reflexão crítica Páginas 4-5 e 6-7,
onde formou-se engenheiro-arquiteto na sobre esse arquiteto, tanto no Brasil como no respectivamente:
Escola Politécnica da Universidade de São mundo. A grande tarefa que se apresenta nes- Conjunto Habitacional
Paulo. Em 1948, foi um dos responsáveis sa efeméride é a compreensão acadêmica des- Zezinho Magalhães
pela criação da Faculdade de Arquitetura se legado tanto na dimensão historiográfica Prado, CECAP
e Urbanismo da USP, locada no antigo ca- quanto no seu entendimento crítico-estético. Guarulhos-SP
sarão da família Penteado, no bairro de Além disso, compreender questões envolvidas 1967
Higienópolis. Desde então, esse arquiteto na sua produção arquitetônica é compreender
tem papel fundamental em diferentes áreas as tensões de “formação” do Brasil moder- Faculdade de
de atuação: a academia (FAUUSP), os órgãos no. Esse é o material artístico de sua obra. Arquitetura e
de classe (IAB SP) e a atividade profissional. Com esse espírito, foi organizado o Urbanismo, FAU USP
Seu nome está essencialmente vincula- Seminário “As virtualidades do morar: Artigas São Paulo-SP
do à FAUUSP como centro difusor de uma e a metrópole”, que é a origem desta publica- 1969
nova fase da arquitetura brasileira a partir ção. Acreditou-se que a verdadeira homena-
dos anos 1950. A FAU se tornou a primeira gem a esse arquiteto-intelectual e crítico social Fotos: Nelson Kon
seria por meio de um debate livre de ideias e
análises de sua produção e legado que contem-
plassem as diferentes - e por vezes antagônicas
- interpretações de sua obra. E assim ocorreu.
Foram convidados pesquisadores de sua
obra e autores de publicações sobre a produção
desse arquiteto ou sobre a “escola paulista”. Os
convidados foram orientados a produzir ma-
terial original que fizesse avançar as análises
conhecidas. Os textos deste livro, portanto,
constituem material inédito e atualizado, que
colocam a obra desse importante arquiteto
na perspectiva do debate contemporâneo re-
lacionado à arquitetura e urbanismo. Mesmo
porque sua obra é a que mais produziu referên-
cias espaciais e construtivas na modernidade
brasileira, facilmente detectada nos dias que
correm. Se Oscar Niemeyer é o grande arquite-
to brasileiro reconhecido internacionalmente,
sua vasta obra não produziu descendência.
Vilanova Artigas é o arquiteto mais influente
de sua geração, ao ter logrado construir um
esquema espacial e construtivo que pode, ao
contrário do mestre carioca, ser utilizado nas
metrópoles emergentes do país, compreensivo
dos impasses socioculturais da modernização
brasileira. Tal importância não foi ainda reco-
nhecida em termos editoriais e críticos; é essa a
tarefa que esta publicação se dispõe a promover.

jul. 2015 •
15
16

Estamos celebrando o centenário de conceder o Notório Saber. Por outro lado,


João Batista Vilanova Artigas, nascido aquela sessão tornou-se um marco histórico
em 23 de junho de 1915. Mas o ano de e político para a FAU e para a arquitetura,
2015 marca também os 30 anos de seu dada a conjunção das circunstâncias de um
passamento, a 12 de janeiro de 1985. Brasil às vésperas da redemocratização, e
Todavia, nesta abertura, não vou me deter dos componentes simbólicos inerentes a
no centenário, mas nestes últimos 30, ou 31 quase um ajuste de contas mal resolvido
anos que nos separam de acontecimentos entre Artigas, a Faculdade e a Universidade.
relevantes para a biografia do nosso home- Talvez para as gerações acostumadas
nageado e para a arquitetura brasileira. com a internet, com as redes sociais, e com
Como todos sabem, no dia 28 de junho notícias, imagens e vídeos virais, o fato de
de 1984 João Batista Vilanova Artigas apre- a maioria dos arquitetos no Brasil só tomar
sentou-se no prédio em que ele projetou, conhecimento da banca de Vilanova Artigas
a FAU, perante uma banca composta de quase dois meses depois de sucedido, traz
notáveis, todos seus amigos, para obter o à memória os limites dos meios de comu-
título de Professor Titular. Essa aparente nicação em meados da década de 1980.
cumplicidade com os arguidores não miti- A defesa de Vilanova Artigas não foi
gava a estúpida situação criada com a nega- matéria nos jornais e revistas em geral.
tiva da Congregação da Faculdade em lhe Apenas a revista Projeto esteve atenta ao
fato. Foi o único veículo de alcance nacio-
nal que pautou o acontecimento com um
suplemento especial na edição de agosto
de 1984, publicando a fala e o diálogo de
Artigas com seus arguidores, num registro
especial feito por Ruth Verde Zein. Esse diá-
EU SOU TRINTA

logo só ganhou nova versão em livro cinco


EU SOU CEM,

anos depois, com o título A função social do


ABERTURA

SEGAWA

arquiteto (VILANOVA ARTIGAS, 1989).


O ano de 1985 teria sido especial para
HUGO

o arquiteto se tivesse resistido à doen-


ça: o Mestre seria contemplado com o
Prêmio Auguste Perret, que se conce-
deria durante o XV Congresso Mundial
da UIA no Cairo, em janeiro; entre ju-
nho e setembro o Centro Cultural São
Paulo dedicaria uma grande exposição
em sua homenagem; a Universidade de
Buenos Aires também lhe prestaria uma
homenagem. Vilanova Artigas sequer
17

soube dessa última reverência, e aquelas Não eram anos propícios para divul-
programadas tornaram-se póstumas. gar e discutir um arquiteto moderno. O
Em torno desses acontecimentos, chamo XII Congresso Brasileiro de Arquitetos,
a atenção ao fato de que a obra arquitetôni- realizado em 1985 em Belo Horizonte,
ca de Vilanova Artigas naquele momento foi dedicado a Vilanova Artigas. Mas foi
era mais um fato boca-a-boca do que um a reunião em que se consagraram as ver-
quadro devidamente estabelecido e conhe- tentes pós-modernistas que vigoravam
cido. Um mosaico formado por inúmeros naquela década em todo o mundo.
projetos publicados nas revistas especia- Por ocasião da morte do Mestre, es-
lizadas e na memória de seus discípulos e crevi um ensaio-depoimento na revista
admiradores. Em 1981, o livro Caminhos Projeto, no qual constatava o seu despres-
da Arquitetura (VILANOVA ARTIGAS, tígio no meio profissional e estudantil em
1981) trouxe à luz uma primeira antolo- geral, relatando episódios do ocaso em
gia somente de textos do arquiteto. Nada que estava relegado, cuja situação o títu-
mais havia enquanto visão de conjunto. lo do texto esclarecia: “Artigas, o Mestre
Nesse sentido, creio que as 13 páginas desconhecido” (SEGAWA, 1985).
do artigo “A Obra do Arquiteto”, publica- Esse vazio e desconhecimento perdu-
do no suplemento dedicado a Artigas na raram por pouco mais de uma década
edição de agosto de 1984, de Ruth Verde até o surgimento, em 1997, do alentado
Zein (ZEIN, 1984), é a primeira tentativa de livro Vilanova Artigas, publicado pelo
sistematização da obra do Mestre, na qual Instituto Lina Bo e P. M. Bardi, sob a
se estabelece uma cronologia e seleção de coordenação editorial de Marcelo Ferraz
projetos executados, ilustrada com fotos e tendo como editores Álvaro Puntoni,
cedidas pelo escritório, e plantas e cortes Ciro Pirondi, Giancarlo Latorraca e Rosa
de autoria do próprio arquiteto, que havia Camargo Artigas (FERRAZ et al, 1997).
então há pouco redesenhado esse material Esse livro decerto inspirou na virada do
à mão livre. O segundo importante docu- século a renovação do interesse editorial
mento produzido na época foi o catálogo e cultural sobre o arquiteto: no ano 2000,
da exposição de 1985 do Centro Cultural João Masao Kamita publicava seu livro
São Paulo, em edição especial da revista pela Cosac Naify (KAMITA, 2000); em
Módulo (MOTTA, 1985), coordenada por Portugal, a Casa da Cerca – Centro de Arte
Ruy Ohtake e Maria Luiza de Carvalho. A Contemporânea em Almada – organizava
pesquisa, o projeto e a coordenação da ex- a exposição “Vilanova Artigas: a cidade é
posição, conduzidos por Dalva Elias Thomaz uma casa. A casa é uma cidade”, aberta entre
Silva, Glória Maria Bayeux e Rosa Camargo novembro de 2000 a março de 2001, com
Artigas, devem ter alimentado a primeira um cuidadoso catálogo (RIBEIRO et al.,
publicação totalmente dedicada ao arqui- 2001), uma antologia de textos, baseada em
teto, com um conjunto de informações e Caminhos da Arquitetura e A Função Social
uma inédita cronologia completa de obras. do Arquiteto (RIBEIRO, 2001) e um álbum
18 AS VIRTUALIDADES DO MORAR ARTIGAS E A METRÓPOLE

de desenhos (ALMADA, 2001); entre setem- fora da vista desta curta apreciação.
bro e novembro de 2003, o Instituto Tomie Outros trabalhos foram produzidos e
Ohtake abriu uma exposição com a curado- publicados, para além deste sucinto levan-
ria de Júlio Katinsky e coordenação de Ruy tamento que apresentei. Ao vasculharmos
Ohtake e Rosa Camargo Artigas, com even- bancos de teses e dissertações e os anais
tos paralelos com cursos, mesas e palestras, de encontros científicos, encontraremos
visitas guiadas, e um catálogo (OHTAKE, dezenas de estudos dedicados a Vilanova
2003). Todas essas iniciativas ostentavam Artigas, nas mais diversas matizes, espessu-
uma visada panorâmica sobre a obra e o ras e profundidades. Não é minha intenção
pensamento do Mestre. As duas exceções apresentar aos leitores infindáveis bibliogra-
nessa fornada do início do milênio foram fias e cansá-los com elas, mas chamar-lhes
as dissertações de Adriana Irigoyen, Wright a atenção, nestes 31 anos de meu recorte,
e Artigas: duas viagens (IRIGOYEN, 2002) e de alguns pontos a meu ver preocupantes:
Artigas e Cascaldi: arquitetura em Londrina, 1. A sistematização de Ruth Verde Zein,
de Juliana Suzuki (SUZUKI, 2003), publi- de 1984, na revista Projeto, e o catálogo da
cadas em 2002 e 2003, respectivamente. exposição de 1985, na revista Módulo, con-
Nova calmaria se estabelece no pano- solidam uma relação de obras de Vilanova
rama editorial até a publicação do número Artigas que elenca um número de projetos,
da revista 2G, da editora Gustavo Gili, da estabelecendo um repertório básico para
Espanha, em 2010, dedicada a Vilanova análises. Decorridos 30, poucas outras obras
Artigas (ver 2G, 2010). Parece ser a segunda foram incorporadas a esse repertório. Se a
grande incursão monográfica sobre Artigas Seção de Projetos da Biblioteca da FAUUSP
no cenário internacional, mas circunscrito começou a disponibilizar, a partir de 1999,
à península ibérica. Como sempre, Mônica uma coleção entre 400 e 450 projetos e cer-
Junqueira de Camargo nos alerta que ca de 4.500 desenhos (informação do ano
Vilanova Artigas é uma ausência em dois 2000), algo como pouco mais de 10% da pro-
dos mais recentes manuais de arquitetura dução de Artigas mereceu atenção e chegou
vertidos para o português: Depois do movi- a ser publicada ou mesmo citada. Será esse
mento moderno: arquitetura da segunda me- restante inexplorado também inexpressivo?
tade do século 20, de Josep Maria Montaner 2. A produção decorrente das come-
(MONTANER, 2001), e Arquitetura mo- morações internacionais do centenário de
derna desde 1900, de William J. Curtis Lina Bo Bardi deve ser vista com atenção
(CURTIS, 2008). E Jean-Louis Cohen dedica historiográfica. Ao examinarmos as várias
nove linhas ao arquiteto brasileiro em seu exposições e publicações sobre a arquiteta,
O Futuro da Arquitetura desde 1889: uma o conjunto que chama a atenção dos pes-
história mundial (COHEN, 2013, p. 368). quisadores brasileiros e estrangeiros é um
E agora, temos as publicações que delimitado repertório de obras e ideias,
vieram ou virão na esteira das come- conduzindo, no geral, a certa redundância
morações do centenário do arquiteto, interpretativa, a ponto de caracterizar quase
HUGO SEGAWA EU SOU CEM, EU SOU TRINTA 19

uma saturação. Fenômeno semelhante ocor- pelo Instituto Lina Bo e P. M. Bardi. Pela
reu há mais tempo com Luís Barragán, cujo autoridade e pelo reconhecimento do au-
ápice de prestígio aconteceu nos anos 1990 tor, sua versão se tornará a interpretação
com publicações em todo o mundo, sempre canônica de consumo internacional. É um
contemplando um determinado número de exemplo de saturação e redundância que
obras, e cujo interesse hoje está arrefecido de outro modo se constituirá em torno de
no panorama internacional. Todavia, efe- Lina Bo Bardi e que atingiu Luís Barragán.
tivamente Lina Bo Bardi e Luís Barragán 5. No conjunto de trabalhos acadêmicos
não realizaram tantos projetos e faz sentido produzidos no Brasil e no exterior, dis-
essa concentração sobre algumas poucas poníveis em anais eletrônicos de reuniões
obras. Nem de longe os dois alcançariam os científicas, observa-se que boa parte desses
mais de 400 projetos de Vilanova Artigas. escritos não se comunicam entre si, não se
3. A seleção e difusão de um repertório referenciam uns aos outros. Se um dos in-
de obras surge também como um recorte cômodos nas Ciências Humanas é a rigidez
induzido pelos próprios arquitetos, ciosos da cientometria e dos indicadores biblio-
de uma autoimagem construída com base métricos, Vilanova Artigas poderia ser uma
em consensos de natureza variada. As lis- palavra-chave para mostrar a dispersão e
tas elaboradas por Ruth Verde Zein e para o desperdício de esforço de pesquisas pelo
a exposição do Centro Cultural São Paulo conjunto de interessados sobre o tema.
são sistematizações pioneiras de consenso 6. Todavia, os recentes livros de Leandro
que consagraram um número de projetos e Medrano e Luiz Recamán (MEDRANO;
alinharam abordagens e análises que ganha- RECAMÁN, 2013) e Miguel Antônio Buzzar,
ram mais corpo na geração de estudos da este referente à dissertação defendida em
virada para o século 21. São leituras pano- 1996 e repaginada para livro (BUZZAR,
râmicas que se sobrepõem, circunscritas a 2014), demonstram que, mesmo operando
um repertório de obras consensuadas cerca sobre um repertório consensual, o cam-
de 30 anos antes, mas decerto tributário de po da especulação intelectual é mais rico
consensos muito anteriores cuja genealogia do que a redução dos objetos em foco.
poderia ser melhor explicada. São exceções É de se lamentar que Vilanova Artigas
as pesquisas de Irigoyen e Suzuki, traba- ainda não tenha alcançado a notoriedade
lhando virtualmente com a micro-história. internacional que sua obra e sua atuação
4. O ensaio de Kenneth Frampton para justificam plenamente. Temo, no entanto,
a revista espanhola 2G é a versão déjà-vu uma precoce delimitação, num consenso
de uma leitura que se cristaliza à margem sem pacto, de um campo de investigação
dos autores que instauraram abordagens, que ainda apresenta universos inexplora-
que se alimenta direta e indiretamente dos. Tenho a esperança de que o centená-
do conhecimento produzido nos estu- rio em sua homenagem traga mais luzes
dos da virada do século. O seu texto traz sobre João Baptista Vilanova Artigas. •
apenas como referência o livro editado
20 AS VIRTUALIDADES DO MORAR ARTIGAS E A METRÓPOLE

Referências bibliográficas MOTTA, Flávio. João Vilanova Artigas


2G: revista internacional de arquitectura, e a Escola de São Paulo. Módulo Especial
Barcelona: Gustavo Gili, n. 54: João Vilanova Vilanova Artigas, Rio de Janeiro: Avenir,
Artigas, 2010. 1985.
ALMADA, Câmara Municipal de. Vilanova OHTAKE, Ricardo. Vilanova Artigas. São
Artigas: desenho. Almada: Centro de Arte Paulo: Instituto Tomie Ohtake, 2003.
Contemporânea; Câmara Municipal de RIBEIRO, Ana Isabel (Cood.). Vilanova
Almada, 2001. Artigas arquitecto: 11 textos e uma
BUZZAR, Miguel Antonio. João Batista entrevista. Almada: Centro de Arte
Vilanova Artigas: elementos para a Contemporânea; Câmara Municipal de
compreensão de um caminho da arquitetura Almada, 2001.
brasileira, 1938-1967. São Paulo: Editora RIBEIRO, Rogério; RIBEIRO, Ana Isabel;
Unesp/Editora Senac, 2014. ROSENDO, Catarina (Coords.). Vilanova
COHEN, Jean-Louis. O futuro da Artigas: a cidade é uma casa. A casa é uma
arquitetura desde 1889: uma história cidade. Catálogo de exposição. Almada:
mundial. São Paulo: Cosac Naify, 2013, p. Centro de Arte Contemporânea; Câmara
368. Municipal de Almada, 2001.
CURTIS, William J. Arquitetura moderna SEGAWA, Hugo. Artigas, o Mestre
desde 1900. 3.ed. Porto Alegre: Bookman, desconhecido. Projeto, São Paulo, n. 72, p.
2008. 42-43, fev. 1985.
FERRAZ, Marcelo Carvalho; PUNTONI, SUZUKI, Juliana. Artigas e Cascaldi:
Álvaro; PIRONDI, Ciro; LATORRACA, arquitetura em Londrina. Cotia, SP: Ateliê
Giancarlo; ARTIGAS, Rosa (Orgs.). Vilanova Editorial, 2003.
Artigas. Série Arquitetos Brasileiros. São Vilanova Artigas, o mestre da arquitetura
Paulo: Fundação Vilanova Artigas, Instituto paulista. Projeto, São Paulo, n. 66, p. 71-101,
Lina Bo e P.M. Bardi, 1997. ago. 1984. Suplemento.
IRIGOYEN, Adriana. Wright e Artigas: VILANOVA ARTIGAS, João Baptista.
duas viagens. Cotia, SP: Ateliê Editorial, Caminhos da arquitetura. São Paulo: Livraria
2002. Editora Ciências Humanas, 1981.
KAMITA, João Masao. Vilanova Artigas: VILANOVA ARTIGAS, João Batista. A
a política das formas poéticas. São Paulo: função social do arquiteto. São Paulo:
Cosac Naify, 2000. Nobel/Fundação Vilanova Artigas, 1989.
MEDRANO, Leandro; RECAMÁN, Luiz. ZEIN, Ruth Verde. A obra do arquiteto.
Vilanova Artigas: habitação e cidade na Projeto, São Paulo, n. 66, p. 79-81, ago. 1984.
modernização brasileira. Campinas, SP:
Editora da Unicamp, 2013.
MONTANER, Josep Maria. Depois do
movimento moderno: arquitetura da segunda
metade do século 20. Barcelona: Gustavo
Gili, 2001.
ARTIGAS E A ARTIGAS E A ARTIGAS E A ARTIGAS E A
A ARQUITETURA ARQUITETURA ARQUITETURA ARQUITETURA
BRASILEIRA BRASILEIRA BRASILEIRA BRASILEIRA

VILANOVA VILANOVA VILANOVA VILANOVA


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A ARQUITETURA ARQUITETURA ARQUITETURA ARQUITETURA
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A ARQUITETURA ARQUITETURA ARQUITETURA ARQUITETURA
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ARQUITETURA ARQUITETURA ARQUITETURA ARQUITETURA
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A ARQUITETURA ARQUITETURA ARQUITETURA ARQUITETURA
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A ARQUITETURA ARQUITETURA ARQUITETURA ARQUITETURA
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A ARQUITETURA ARQUITETURA ARQUITETURA ARQUITETURA
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ARQUITETURA ARQUITETURA ARQUITETURA ARQUITETURA
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A ARQUITETURA ARQUITETURA ARQUITETURA ARQUITETURA
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ARTIGAS E A ARTIGAS E A ARTIGAS E A ARTIGAS E A
MESA 1
VILANOVA MIGUEL RUTH VERDE LUIZ RECAMÁN ANA LANNA
ARTIGAS E A BUZZAR ZEIN FORA DO AS VIRTUALIDADES DEBATE
ARQUITETURA ARQUITETURA TOM, FORA DO MORAR:
BRASILEIRA E CIDADE EM DA ORDEM O ESPAÇO
VILANOVA (OU, QUANTO IMPOSSÍVEL
ARTIGAS MAIS ARTIGAS, DA CASA
MELHOR)
Mesa dedicada
ao debate sobre a
obra e as ideias do
arquiteto Vilanova
Artigas à luz do
estágio atual de
desenvolvimento das
cidades brasileiras,
especialmente a
cidade de São Paulo.
26

Uma interpretação possível da obra de Esse tipo de operação cuja concep-


Artigas é aquela que distancia a arquitetura ção, limitada pela condição do lote como
da cidade. O volume fechado em relação à parcela do solo urbano, ganharia novas
rua que induz todo o interesse para o seu dimensões com outro projeto, também,
interior. Um mundo distinto daquele que em um lote, mas cuja situação e progra-
se encontra para além da soleira, ou do ma, permitiram a Artigas trabalhar proje-
primeiro pórtico do volume, ou do muro ções de cidade de forma mais profícua.
que demarca o espaço privado do público. O “Projeto para o conjunto edificado
Antes de acompanhar essa interpretação, Louveira” é revelador do entendimento da
vale revisitar rapidamente alguns de seus pro- arquitetura a redesenhar a forma urbana.
jetos. Na Casa Rio Branco Paranhos (1943), Novamente tendo o limite do lote como
para além da relação imediata com a obra de condição, agora com um programa de edifi-
Wright, interessa perceber uma característica cação habitacional multifamiliar, na verdade
do projeto e da obra. A sua relação com a duas, que extrapola a casa unifamiliar.
cidade. Uma residência, burguesa, como a No jogo entre as possibilidades e limita-
literatura de arquitetura gosta de registrar, em ções de edificar no lote e para além do lote,
um lote acidentado. As operações projetuais desenvolve-se a proposta de Artigas. As duas
de Artigas, criando os patamares e dinamica- lâminas, ainda que inscritas no terreno, um
mente os volumes em espiral da residência, grande lote, possuem a vocação de definir
não são atributos exclusivos da edificação,
elas se iniciam na modelação do próprio lote.
Edifício e lote compõem uma unidade. A
arquitetura da casa ganha o lote e o constrói.
Esse lote, arquitetonicamente construído, ain-
da que seja uma fração, resulta de uma ação
de construção da cidade pela arquitetura. O
ARQUITETURA
E CIDADE EM

lote, um elemento artificial fruto de uma ope-


VILANOVA

ração urbana, é um dado, uma contingência,


BUZZAR
MIGUEL

ARTIGAS

um condicionante. A obra de Artigas não


apenas reconhece esse fato, mas o tenciona,
propondo uma forma de construir a cidade
através da arquitetura. Na fração do lote,
redesenhando desde o muro de divisa com a
calçada, é a cidade que também é projetada.
O lote, fruto do parcelamento, representa
um limite à construção de uma nova cidade,
mas não deixa de ser a instância possível,
porque efetiva, de elaboração da relação
entre o construir, a arquitetura e a cidade.
27

a quadra; uma quadra virtual, mas uma o volume conciso, compacto. A noção de
quadra. A implantação das duas edificações compactação é menos relativa à dimensão
propõe uma nova matriz de organização da e mais voltada à precisão. Programa e for-
forma urbana. A grande quadra, cujo centro ma construída se ajustam e originam uma
se abre para a praça, é um protótipo de uma unidade de difícil dissolução. Como um
nova célula urbana a se expandir, criando mecanismo, cada ambiente comporta-se
uma nova morfologia urbana, que inclui ou- como peça de uma engrenagem. Sem uma
tros percursos pelos meandros das quadras, peça, o todo não funciona. Mas não se trata
outras possibilidades de circulação, outros de pensar a forma como produto da função,
espaços e possibilidades de hierarquias entre mas sim de entender a relação que Artigas
as vias de circulação de automóveis, entre as estabelece entre forma, tectônica e função.
circulações de pedestres e as relações dessas Ligada à primeira, a segunda questão
com as edificações. A vocação da quadra, que interessa destacar advém com o pen-
real e virtual, real porque está edificada e vir- tágono irregular da empena frontal que
tual porque as duas lâminas compõem uma propunha uma releitura de casas populares
parte da verdadeira quadra e não a sua tota- de madeira que as fôrmas desenhavam.
lidade, é a de definir o conjunto da cidade. Para Artigas, as marcas das fôrmas deve-
Ambas soluções projetuais indicam um riam remeter às casas que conhecera em
ideário arquitetônico em desenvolvimento, sua infância no Paraná. Ao trazer uma
no qual preocupações modernas, como pro- referência de um circuito cultural retirado
jetar a nova cidade industrial, uma constante, da infância (do passado), mas cujos exem-
ganham novas dimensões na medida em que plares arquitetônicos ainda permaneciam
as interlocuções arquitetônicas que Artigas vivos, Artigas incorporava a margem (o
procurava estabelecer vão se ajustando aos Paraná do passado), como fonte de cultura
seus ideais políticos também em mutação. intensiva, e o centro, a metrópole, como local
As soluções espaciais e a relação com por excelência do desenvolvimento, e assim
a cidade vão adquirir novas resoluções, propunha a arquitetura nacional como a
ou adquirir o aprofundamento das linhas representação da fisionomia dupla do país.
projetuais que desenvolvia com os proje- A forma condensa projeções e simbologias
tos das residências da segunda metade dos postas em relação. A forma e sua tectônica
anos 1950, sobretudo as casas Olga Baeta atribuem significados à função moradia.
(1956) e Taques Bittencourt II (1959). Na Casa Taques Bittencourt II, a arqui-
Na casa Baeta, as empenas de concreto tetura de Artigas, tal qual a reconhecemos,
registravam a impressão “digital das tábuas” definia-se. A residência, conformada pela
através das fôrmas dispostas na vertical. grande estrutura de concreto armado, dida-
Rugoso, o concreto revelava a heterogenei- ticamente demonstrava que o encerramento
dade da produção industrial e as imperfei- de todo o volume era definitivo. Ideia acen-
ções construtivas com as quais o arquiteto tuada pela unidade alcançada através da
tinha que lidar. De início, interessa registrar operação que levava a cobertura nas laterais
28 AS VIRTUALIDADES DO MORAR ARTIGAS E A METRÓPOLE

a dobrar-se, tornando-se empena, que em relação. Seu desenho é preciso, didaticamen-


recortes triangulares descia ao nível do solo te indica o fluxo entre interior e exterior.
e capturava as fundações. O concreto apa- Pôr em relação o edifício e a cidade, o
rente, que na Casa Baeta ficara em grande arcaico e o moderno, o programa e a forma,
parte limitado ao “frontão” (e a empena criando soluções espaciais e a materialida-
posterior), dava forma à edificação volume. de destas: esse parece ser o procedimen-
O projeto, dispondo os serviços na parte to que ilumina o fazer arquitetônico em
frontal do edifício, privilegiou os espa- Artigas. Fazer imbuído naquele período
ços de convívio em sua parte posterior e de pensar a arquitetura participando da
no centro, onde há um jardim através do formação da cultura nacional, no qua-
qual os espaços do andar térreo e superior dro de desenvolvimento e afirmação do
são entrelaçados por rampas que fluíam país como um estado-nação soberano.
visualmente. “Com sua organização e a Com os projetos de equipamentos
“praça-jardim”, a casa era uma pequena ci- públicos do Plano de Ação (PAGE) do
dade funcional, mas sobretudo, ideal, um Governo Carvalho Pinto (1959-1963), em
ambiente de formação” (BUZZAR, 2014, particular com os projetos escolares, o vo-
p. 235). A sua espacialidade, centrada nos lume único definido pela grande estrutura,
espaços de uso coletivo, anunciava a ar- ou a grande laje de cobertura, conheceria
quitetura como o lugar de formação de o seu melhor significado e simbologia.
um sujeito novo, que deveria ser formado O Ginásio de Itanhaém (1959) ratificava
através do convívio e da sociabilidade. soluções anteriores, amplificando seus sig-
A casa, formadora do sujeito, se por um nificados, e congregava outras. A estrutura
lado dinamizava a vida interior, por outro, independente, permitindo a continuidade
manifestava, ao mesmo tempo, uma reação e fluidez espacial, conduzia a localização
e uma forte relação com rua. O muro frontal das atividades internas em três setores: o
de pedras marca a divisão entre a rua e a edi- didático, o administrativo e o central, com
ficação (com o seu jardim frontal), mas tam- serviços, cozinha e cantina. Pelo porte e
bém, ao se dobrar, conduz diretamente os in- pela dimensão da laje, uma forte tensão
divíduos à grande espacialidade interior. Há era estabelecida entre a estabilidade de seu
uma relação dinâmica, no limite dialético, perfil horizontal e o arrojo técnico que os
entre interior e exterior, entre vida privada e pilares de borda, com o formato de triân-
pública, que não deixa de ser uma relação da gulo retângulo invertido, personificavam.
arquitetura com a cidade. Ao mesmo tempo A laje encerrava um universo com uma
em que separa, o projeto convida à “nova es- complexidade maior, recriava a cidade
pacialidade citadina” criada; a reação é parte enquanto espaço projetado e construído.
da relação e não o seu oposto. Novamente, o O edifício, como abrigo social, não era só
lote é o limite, mas o lote não impede a rela- proteção, era convívio, troca de experiên-
ção. Relação é a condição chave. O volume cias. Era organizador e lugar de formação e
autocentrado não impõe um impedimento à de atividades culturais e, particularmente,
MIGUEL BUZZAR ARQUITETURA E CIDADE EM VILANOVA ARTIGAS 29

educacionais. Tudo isso era a representação tório de uma nova espacialidade urbana;
da síntese do progresso social almejado e, pelo porte e pelo programa, a edificação
novamente, o pensamento citadino fazia- situa-se no limite de descolar-se da cidade
-se presente; o edifício abreviava a cidade, e adquirir a condição de arquétipo de ci-
símbolo maior do progresso do homem. dade. Se tal situação podia ser vislumbra-
A funcionalidade era interessada no ho- da nas residências, com os equipamentos
mem que havia de ser e ali se formar. sociais adquire sua melhor expressão.
Do PAGE, também faz parte o Ginásio Essa concepção conheceria um desen-
Estadual de Guarulhos (1960). Aproveitando volvimento maior no edifício da FAUUSP,
uma suave depressão do terreno, o grande projetado em 1961 e inaugurado em 1969.
bloco horizontal da escola aparenta ser um A grande superfície treliçada da cobertu-
edifício ponte unindo as duas extremida- ra se dobra, formando as empenas cegas
des mais altas do terreno. O edifício parece laterais sustadas e sustentadas a meio
completar o horizonte antes seccionado. caminho do solo pela linha de pilares. O
Esse grande bloco possui alguns níveis pilar entre a parede (empena) que descaía
que conformam espaços funcionais, circu- e a fundação que subia traz à luz o enlace
lações generosas propícias a encontros e entre a infraestrutura e a superestrutura.
um grande pátio central. Este rege a espa- Passada a linha de pilares, aden-
cialidade interior, permitindo aos usuários tra-se por uma fresta. Uma falsa fres-
uma riqueza múltipla de situações e visibi- ta. Grande parte do primeiro piso da
lidades. Apesar de todo aberto, a volume- entrada é liberado pelos pilares.
tria dos níveis, a plasticidade dos pilares,
o detalhe dos longos bancos de concreto, Na verdade, a FAU é aberta. É a escavação
a iluminação zenital, geram um interesse no volume, criando um jogo de planos sombrea-
profundo, que corrige o olhar para o in- dos pela empena da fachada que estabelece as
terior da edificação. A cidade está à vista, barreiras, ou melhor, marca as divisas entre o
mas é a cidade/escola/morada da formação exterior e o interior. A sensação de uma passa-
que conquista a atenção de forma plena. gem ritualística para o interior do edifício ocorre
Essa mesma espacialidade, ao mesmo quando já se adentrou: é o complexo espacial do
tempo aberta e interiorizada, convidando à grande saguão, o salão Caramelo, do fosso do
fruição e ao domínio do lugar onde a vida anfiteatro e das rampas - amplamente iluminado
se desenrolava, também pode ser aprecia- através da grelha zenital -, que de forma parado-
da no Ginásio de Utinga e no Fórum de xal, preenche toda percepção, inibindo o exterior,
Promissão (também obras projetadas para independentemente da abertura (falsa fresta)
o PAGE). Nesses casos, a grande dimensão ao nível do olhar. (BUZZAR, 2014, p. 250)
do lote e seu programa social tencionam
o significado de repropor a cidade. Nas A grelha possibilitou a manutenção da
escolas e no fórum, o lote existe, mas não tipologia da “grande estrutura”, e a ilumi-
é o limite. A edificação remete-se ao terri- nação zenital, a exemplo do que Artigas já
30 AS VIRTUALIDADES DO MORAR ARTIGAS E A METRÓPOLE

Edifício Louveira
São Paulo-SP
1946
Foto: Nelson Kon
MIGUEL BUZZAR ARQUITETURA E CIDADE EM VILANOVA ARTIGAS 31

propusera parcialmente na escola Estadual ção material que a arquitetura integra torna-
de Guarulhos, concedia ao espaço uma vam complexas e dinâmicas a representação,
luminosidade que o uso público e a ideia sendo a questão da formação uma delas.
de transparência do saber e das relações O golpe ditatorial de 1964, pelas op-
sociais ordenavam. O que nascia entre as ções políticas de Artigas, delinearia,
empenas e sob a grelha luminosa, a exem- ou viria a acentuar, o entendimento da
plo dos outros equipamentos projetados relação entre projeto de sociedade e
para o PAGE, era a ideia da cidade, ou projeto arquitetônico como uma ação
melhor, de uma nova cidade. O pensamen- política via projeto arquitetônico.
to citadino ganhava sua expressão maior, A noção formadora da arquitetura asso-
mas através de uma chave que elaborava ciada às ações desenvolvimentistas dos planos
uma cidade ideal e, nesse sentido, cada vez governamentais (plano de metas, plano de
mais dissociada da cidade real, o que no ação, reformas de base), os quais carreavam
caso da FAUUSP, no campus da Cidade transformações sociais para além da realida-
Universitária, era uma decorrência direta. de que propunham, adquiriam autonomia
A “cidade” projetada pressupunha o con- frente à concepção antidesenvolvimentista
vívio público, entendido como uma opera- que as análises da época atribuíam à dita-
ção sadia. Aqui, o respeito entre os homens dura militar. Com o golpe, a arquitetura de
e destes para com a cidade era imaginado Artigas não representava mais a nação em
como possível pelo objetivo comum a que o desenvolvimento, mas a nação que fora sub-
edifício deveria dar vazão como ambiente de traída pelo mesmo golpe militar. A natureza
produção e transmissão do conhecimento. do desenvolvimento não está aqui sendo
Os projetos de Artigas, ao adquirirem discutida, mas, certamente, há muitos pontos
definitivamente uma dimensão de uso de conexão entre o desenvolvimento pré e
social, colocam em relação o projeto de pós-golpe militar, mais do que as visões de
sociedade, o projeto de cidade e o projeto esquerda da época gostariam de admitir.
de edificação. Essa unificação, articulada A autonomia da arquitetura, ou melhor,
aos outros procedimentos, estruturou um a autonomia da arquitetura como forma
conteúdo político à sua arquitetura e de de ação política, logrou o seu apogeu. As
uma série de arquitetos daquele período, obras de Artigas e suas espacialidades fo-
interligados sob o rótulo de Escola Paulista. ram reinterpretadas em grande medida
A arquitetura resultante do conjunto de como em oposição à realidade do golpe.
procedimentos deveria representar a nação Realidade que subjugava a sociedade e
em desenvolvimento, incorporando a tarefa roubava sua expressão, ao apresentar-se
de auxiliar o desenvolvimento do setor es- como a verdadeira sociedade brasileira.
pecífico ao qual a arquitetura se ligava, o da A arquitetura de Artigas passou a ser
construção civil. Mas, evidentemente, a força o lócus de uma realidade democrática
e a forma com que as relações eram articula- em oposição à realidade da opressão di-
das em termos arquitetônicos e a representa- tatorial, que reprimia as relações sociais
32 AS VIRTUALIDADES DO MORAR ARTIGAS E A METRÓPOLE

que davam substrato às relações arqui- no interior da categoria e na própria FAUUSP,


tetônicas que Artigas desenvolvera. permitiu e incentivou a exacerbação do fazer
Os sentidos sociais nas obras de Artigas, político através do projeto arquitetônico. Ao
anteriormente presentes, conheceram uma mesmo tempo, incentivou a dimensão polí-
forte inflexão. Todas as soluções arquitetôni- tica do projeto arquitetônico, como na aula
cas que favoreciam experiências formadoras inaugural de 1967, que deu origem ao texto
e de convívio foram tencionadas no limite, “O Desenho” (1967), onde seu significado
para se transformarem em dispositivos de transita em direção à noção de desígnio, e que
transformação de valores e construção de reforçava a visão de momento da arquitetura,
um novo sujeito e de uma outra sociedade não apenas a sua, mas da arquitetura moderna
em oposição à realidade do golpe. O trânsito em oposição à realidade. Dois anos depois
entre o projeto e a inauguração da FAUUSP escreveu o texto “Arquitetura e Construção”
(antes do golpe e depois do golpe) condensa- (1969), no qual, ciente ou não da contraposi-
ram, na edificação, o sentido político-social ção entre arquitetura e cidade que a tensão de
da concepção arquitetônica de Artigas. suas posições políticas acarretavam, recolocou
Essa formulação, ou o entendimen- o fazer arquitetônico a partir da casa em re-
to nunca formalizado explicitamente de lação à cidade. Para tanto, utilizou como re-
uma arquitetura em oposição à realidade, ferência o célebre texto de Martin Heidegger,
gerou um deslizamento de significados, “Construir, Habitar, Pensar” (1954).
conformando uma leitura de uma arqui- Nele, o filósofo alemão buscava es-
tetura desinteressada da cidade, ou que se tabelecer, a partir do estudo semânti-
fechava à cidade. Nesse caso, as empenas co das palavras, as ligações entre o ser
cegas dos volumes, os volumes cerrados, e o habitar. Fazia-o informando:
os muros, favoreceram essa leitura.
Todas as soluções que levavam a cidade As páginas que se seguem são uma tentativa de
à obra arquitetônica, e vice-versa, foram pensar o que significa habitar e construir. Esse pensar
esmaecidas frente à ideia de uma arqui- o construir não pretende encontrar teorias relativas
tetura de representação de uma realidade à construção e nem prescrever regras à construção.
anterior à do golpe e essencialmente de Este ensaio de pensamento não apresenta, de modo
formação em oposição à realidade social algum, o construir a partir da arquitetura e das
vivida, a realidade do golpe. A obra de técnicas de construção. Investiga, bem ao contrá-
Artigas propunha a relação entre cidade e rio, o construir para reconduzi-lo ao âmbito a que
sociedade. Agora a relação era esmaecida a pertence aquilo que é. (HEIDEGGER, 1954, p. 1)
favor de uma noção que foi ganhando força,
que introjetava na edificação significados A primeira questão que vem à mente é por
próprios da relação (a edificação passa a que um texto declaradamente não arquitetôni-
conter a cidade e o projeto de sociedade). co, no qual o que é ser, era e é a pergunta ma-
Artigas, no quadro das disputas políticas nifesta, alicerçaria o pensamento de Artigas
do final dos anos 1960 que se desenrolaram sobre a unidade entre a casa e a cidade.
MIGUEL BUZZAR ARQUITETURA E CIDADE EM VILANOVA ARTIGAS 33

Certamente Artigas era um leitor in- me militar, se por um lado, a reafirmação


formado, mas a utilização de Heidegger, do projeto nacional-desenvolvimentista
como em “Arquitetura e Construção”, era vista como fundamental por Artigas,
parece ser única nos seus escritos. Não por outro, sua viabilidade era questiona-
apenas do autor, mas do tipo de questão da por várias organizações que aderiam,
que ele coloca. Assim, novamente, qual direta ou indiretamente, à luta armada.
seria o significado da utilização do tex- No texto, contra essa postura da inviabili-
to de Heidegger naquele momento? dade, afirmava serem grandes os obstáculos
Vejamos, no texto “Arquitetura e - a própria ditadura militar - para “desenvol-
Construção”, que a semântica entre o habi- ver plenamente a criatividade”. Entretanto a
tar e o ser, entre o ser e a moradia, levava conclusão era precisa: “Mas importante é a
Artigas a inferir a casa como a “univer- atitude”. Atitude derivada de uma estratégia
salizar-se” tornando-se cidade. As outras de longo prazo (“Elas criam-se mutuamen-
edificações, a ponte, o estádio etc., torna- te aos poucos”), que a doutrina política do
vam-se prolongamentos da casa e, dessa Partido Comunista Brasileiro (PCB) ditava.
forma, da cidade. As relações esmaecidas, Para ela, o país deveria inicialmente conhe-
sempre presentes em sua obra, renasciam cer uma revolução burguesa, uma fase de
no texto, com uma simbologia forte: democracia clássica e depois uma revolução
social proletária. Atitude integrada ao fazer
A cidade é uma casa. arquitetônico, como a digressão da casa-
A casa é uma cidade. (VILANOVA -cidade feita com criatividade indicava.
ARTIGAS, 2004, p. 119) Assim, ainda que de forma poética, ou
melhor, valendo-se da forma poética, por-
Citando Alberti sem declarar, “A cidade que através dela instaurava suas concepções
é como uma casa grande e a casa, por sua de sociedade, Artigas utilizou o ensaio de
vez, é como uma cidade pequena”, Artigas Heidegger para fundamentalmente defender
afirmaria: “Encontro com a casa na cidade uma posição que nada tinha de poética e que
para construir com ela a casa da nova so- já havia externalizado em outros momentos,
ciedade...” (VILANOVA ARTIGAS, 2004, a de defesa da orientação do PCB, que inter-
p. 120). Pouco antes de finalizar o texto, pretava o golpe como um obstáculo que seria
esclarecia de que nova sociedade falava: “A superado. As forças políticas que tinham
cidade industrial é a casa da sociedade nova. sustentado as políticas desenvolvimentistas,
Elas criam-se mutuamente aos poucos” a burguesia nacional, o proletariado, setores
(VILANOVA ARTIGAS, 2004, p. 121). avançados da classe média, e mesmo setores
No calor da hora, ou melhor, no calor da das forças armadas, não haviam se afasta-
década de 1960, a urgência por transforma- do dos seus ideais. Os obstáculos criados
ções e definições guiava o debate político pelo imperialismo e setores reacionários
e alimentava o embate político. Em 1969, das oligarquias rurais e agroexportadoras,
no ano seguinte ao decreto do AI-5, que e executados pelos militares, eram grandes,
atribuía poderes quase absolutos ao regi-
Ginásio de
Guarulhos (Escola
Estadual Conselheiro
Crispiniano)
Guarulhos-SP
1961
Foto: Nelson Kon
35

mas a atitude correta devia ser preservada.


Apesar de grandes, os obstáculos não po-
diam impedir o desenvolvimento histórico.

Quase Conclusão
Ainda que o arquiteto devesse con-
tinuar fazendo arquitetura e este fazer
fosse o meio de atuação política do ar-
quiteto, onde ficam, ou ficavam, a arqui-
tetura e a cidade nesse enredo? A pre-
sença de ambas seria apenas retórica?
Para Artigas, em 1969, a sociedade al-
mejada era a democrática-industrial, e esta
era um projeto para o Brasil. Artigas pro-
curava repor, ou postular, a recomposição
dos significados que as várias relações que
sua obra logrou, mas que com o golpe po-
diam se perder, que previam a necessidade
de alinhar arquitetura (a casa), cidade, e
um projeto para além da arquitetura.
No texto que Artigas utiliza, Heidegger
questiona o verdadeiro significado da crise
habitacional, que seria mais antiga do que
as guerras... e a situação do trabalhador
industrial. Para ele, “a crise propriamente
dita do habitar consiste em que os mortais
precisam sempre de novo buscar a essên-
cia do habitar, consiste em que os mortais
devem primeiro aprender a habitar”.
O que o texto de Heidegger explora é a
interdição das conexões entre construir,
habitar, pensar, e nosso modo de ser na
Terra. Trata-se de uma crise da perda do
sentido de como ambos, construir e pensar,
“pertencem ao habitar”. Essa perda de signi-
ficados, que gera em oposição a busca pela
reversão da interdição, delineia o pano de
fundo das preocupações de Artigas. Para ele,
a ditadura militar era o agente da interdição.
36 AS VIRTUALIDADES DO MORAR ARTIGAS E A METRÓPOLE

O que Artigas induz ao utilizar o texto a Casa Domschke, de 1974, Artigas afirmou
de Heidegger é a busca por repor no plano que ela “marcou uma nova fase em todo
poético as relações que a sua obra foi forjan- tratamento volumétrico e formal daquilo
do; relações múltiplas e seus procedimentos que podia chamar fachada, que é a fachada,
arquitetônicos, que colocam a sociedade, que a fachada desapareceu daí para frente.
a cidade, a arquitetura e o fazer arquitetô- Desapareceu”. (VILANOVA ARTIGAS,
nico, incluindo sua dimensão social, em 1958, p. 71). Esse mesmo tratamento, aliado
uma teia de ligações e significados amplos. a uma série de operações espaciais, já visto
Os questionamentos às orientações do em outros momentos, adquiriu, com esta
PCB não levavam apenas à luta armada, mas residência e outras, como a Telmo Porto
também à negação da política de alianças (1968) e Martirani (1969), um sentido pro-
com os setores progressistas das camadas gramático. Nelas, uma de suas marcas foi o
dirigentes (a burguesia nacional) que Artigas distanciamento entre a arquitetura e a cida-
defendia. Essa aliança implicava em uma de, que teve a força de impor uma leitura re-
atuação política sempre restrita, pois os pro- trospectiva ao conjunto da obra de Artigas. •
blemas gerados em razão das contradições
sociais deveriam esperar a fase democrática
para ganharem a possibilidade de serem ex-
plorados. A restrição a uma atuação política
direta (fosse ela qual fosse) levou Artigas a
uma atuação de duplo sentido: no plano da
escrita, encontrou na dimensão poética uma Referências bibliográficas
forma de expressão que procurava conciliar BUZZAR, Miguel Antonio. João
suas ideias entre arquitetura, projeto de ci- Batista Vilanova Artigas: elementos para a
dade e projeto de sociedade, e, no plano das compreensão de um caminho da arquitetura
concepções arquitetônicas, forjou uma radi- brasileira, 1938-1967. São Paulo: Editora
calização em algumas obras, particularmen- Unesp/Editora Senac, 2014.
te, as residenciais no final dos anos 1960 e na HEIDEGGER, Martin. Construir, habitar,
década de 1970. Essas obras conformam o pensar. (1954). Disponível em: <www.prourb.
fazer arquitetônico como fazer político, atra- fau.ufrj.br/jkos/p2/heidegger_construir,%20
vés da radicalização das soluções gestadas habitar,%20pensar.pdf>. Acesso em:
desde os anos 1950 como contraespaços à re- 09/11/2015.
pressão da ditadura militar, que questionam VILANOVA ARTIGAS, João Batista.
valores de toda ordem e impõem novos. Elas Arquitetura e construção. In: LIRA, José
assumiam os deslizamentos de significados Tavares Correia de; ARTIGAS, Rosa (Orgs.).
apontados anteriormente, como a indiferen- Caminhos da arquitetura. São Paulo: Cosac
ça em relação à cidade e à potencialização de Naify, 2004.
um espaço formador de uma nova sociabi- ______. Depoimento. Módulo, Rio de
lidade e de uma nova forma de vida. Sobre Janeiro, n. 9, fev. 1958, p. 71.
40

“O problema é o seguinte: estão querendo po-


liciar a música brasileira... E vocês? Se vocês
em política forem como são em estética, esta-
mos feitos!... Fora do tom, sem melodia…”
Caetano Veloso, Discurso do É Proibido Proibir, 1968

“Eu não espero pelo dia em que todos os homens con-


cordem
Apenas sei de diversas harmonias bonitas possíveis sem
juízo final
[...] Alguma coisa está fora da ordem /
Fora da nova ordem mundial...”
Caetano Veloso, CD Circuladô, 1991

Neste primeiro semestre de 2015, a arqui-


tetura moderna da América Latina está fre-
quentando o ambiente cosmopolita e cada vez
ZEIN FORA DO

MAIS ARTIGAS,
mais latino dos Estados Unidos da América
RUTH VERDE

(OU, QUANTO
do Norte, na exposição “Latin America in TOM, FORA
Construction: Architecture 1955-1980”, orga- DA ORDEM

MELHOR)
nizada pelo Museu de Arte Moderna de Nova
York (MoMA-NY). Com curadoria de Barry
Bergdoll, Patricio del Real, Jorge Francisco
Liernur e Carlos Eduardo Comas, a exposição
apresenta uma produção variada, complexa e
respeitável de quase mil peças, com desenhos
originais, fotos de época e contemporâneas,
maquetes históricas e outras especialmente
realizadas para a ocasião. Naturalmente, a pre-
sença da arquitetura brasileira foi importante.
A extensão temporal da mostra buscou ir além
das já consagradas obras dos anos 1930-60, per-
mitindo destacar trabalhos que, em que pesem
serem bastante conhecidos em seus países de
origem, deles pouco se sabia pelo mundo, ex-
41

ceto em meios acadêmicos especializados. veram e limitaram o entendimento da obra


E entre as “novidades” ali apresentadas, um de Artigas – tanto poderá ajudar a iluminar
dos casos brasileiros mais significativos é o novas facetas, quanto poderá tender a esba-
do arquiteto João Batista Vilanova Artigas. ter seus contornos, cobrindo-o de sombras.
A confirmação internacional de Artigas Mais provavelmente, ambas as coisas se
como membro nato da não pequena lista de passarão. E será preciso muito critério e bom
excelentes arquitetos brasileiros modernos senso para distinguir entre seus produtos.
chega tarde, com pelo menos meio século de O olhar estrangeiro estrito senso – a mi-
atraso. A defasagem foi injusta. Mas não me rada que se aproxima de Artigas via âmbito
cabe lamentar o passado, nem me animo a internacional – não é problemático em si
tentar explicá-lo; ao invés disso, prefiro viver mesmo. Exceto pelo fato de estar, na maioria
o presente possível. Por isso me parece opor- dos casos, ainda demasiadamente limitado
tuno sugerir que, se esse reconhecimento, a considerar aquilo que pouco conhece se-
ainda que tardio, for generosamente apoiado, gundo as mesmas pautas viciadas de sempre,
irá colaborar na ampliação e consolidação propostas e tipificadas pela historiografia eu-
de uma variada e fecunda onda de estudos ropeia do século 20. Trata-se de um conjunto
e pesquisas sobre o arquiteto. E, possivel- nem tão amplo de textos e livros, escritos há
mente, apoiar a revalorização, manutenção e mais de meio século, que não apenas relatam
preservação das obras de Vilanova Artigas. simples fatos, mas consolidam um conjunto
A celebração de sua presença naquela de vieses de interpretação e de práticas teó-
exposição e as festividades e eventos ligados ricas que, apesar de já serem anacrônicas,
ao seu centenário não necessariamente re- ainda são canônicas; e que continuam a pe-
sultam numa efetiva e ampla revisão crítica sar toneladas. Apesar de essas fontes biblio-
de sua obra, a ser reconsiderada agora sob a gráficas conterem inúmeros enganos, erros e
luz contemporânea deste outro século. Para insuficiências (como sabe qualquer bom pes-
que isso ocorra, é preciso também com- quisador de qualquer parte), seguem sendo
preender o que essa defasagem temporal adotadas de plano – talvez por falta de outras
nos proporciona de bom, e aproveitar essa opções, talvez por preguiça – como manuais
vantagem no trabalho cotidiano a ser feito básicos de ensino de arquitetura, em todo
deste ponto em diante. Caso contrário, esta- o planeta. Tais narrativas, mais por mal do
remos, nos próximos anos, apenas repetindo que por bem, consolidaram alguns vieses de
o que já se pensa saber, canhestramente aproximação, precários, mas muito inerciais,
ajudando a repintar um ícone simplificado que limitam o que é admissível ser pensado e
e de baixo relevo, e coletivamente crista- dito sobre aquelas arquiteturas que não per-
lizando mais um outro mito tropical. tencem ao continente europeu, ou à esfera
O risco da banalização do (re)conheci- norte-americana. Nelas, por exemplo, nós
mento sempre existe e precisa ser enfrenta- – os outros – somos sempre, apenas e basi-
do. E o olhar estrangeiro – aquele que vem camente desconsiderados, por preconceito e
de fora dos limites que até agora circunscre- ignorância. Se brevemente considerados, so-
42 AS VIRTUALIDADES DO MORAR ARTIGAS E A METRÓPOLE

mos mencionados à margem: seja na clave da nos considerarmos sempre menos: menos
genialidade, seja na do exotismo, ou de am- modernos, ou modernos atrasados, ou
bas as bizarrices combinadas. Em qualquer modernos incompletos. Não se trata de um
caso, jamais sucede um cotejamento em pé dado objetivo: quando se comparam datas,
de igualdade. Até porque isso fica impedido não há defasagens significativas. Mas de fato
pelo axioma de que nós supostamente temos, talvez nossa modernidade não frequentasse
ou devíamos de querer ter e exibir, antes e o mesmo alfaiate que a deles; e ademais,
primeiro, uma “identidade própria” – coisa suspeita-se que talvez nem usasse o mesmo
que tanto serve para nos caracterizar como pano. Mesmo assim, duvido que hajam tan-
para nos separar. Essas e outras armadilhas tas diferenças: apenas, nosso direito é seu
conceituais tecem o campo das possibili- avesso, e vice-versa. E nosso corte e desenho,
dades do pensar, e o fazem há tanto tempo nem por ter que ser feito com as sobras e
que estão entranhadas no nosso imaginário. as alternativas, é menos elegante: trabalhar
Por isso, se “naturalizaram”, e são frequen- com economia de recursos é, afinal, o que
temente também empregadas, alegremente, as primeiras modernidades já diziam que
pelos pensadores locais como se boas fos- era o que se devia, e o que se queria, fazer.
sem. Nessas limitações indébitas e impostas, Mas, voltemos a New York, e à exposição
frequentemente também acreditamos. De do seu MoMA. Louvando-se o extenso tra-
novo, talvez por falta de outras opções, talvez balho dos curadores latino-americanos na
por inércia ou senão por preguiça. E pouco produção e apresentação do vasto material
nos damos conta de que, assim, fazemos o da exposição, deve-se, entretanto, admitir
jogo da nossa própria exclusão desdenhosa. que ainda predomina, no tom da exposição,
Mas nem tudo vai mal. Nem tudo está um certo olhar “estrangeiro” de base talvez
fora da nova ordem mundial. A partir do já um tanto anacrônica. O tom e a atitude
último quartel do século 20, a arquitetura são muitíssimo mais simpáticos, respeitosos
moderna clássica dessas nossas pretensas e cuidadosos. Mas, nisto e naquilo, ainda
periferias começou a, paulatinamente, resvalam no terreno escorregadio de certas
ganhar mais espaço nos livros e debates preconcepções novecentescas, possivel-
internacionais. Algum destaque vai sen- mente desatualizadas e desnecessárias. O
do aos poucos atribuído a essa produção, motivo alegado pelos curadores para repetir
ainda que limitado a alguns personagens alguns tropos cansados1 é que se trata de
e a algumas de suas obras. Essa mudança uma exposição organizada, basicamente,
não foi espontânea, mas vem ocorrendo para gringo ver. E, para estes, tudo é alta
principalmente graças ao empenho, aos novidade. Então, o jeito para não se produ-
trabalhos e aos esforços de vários colegas zir algo demasiadamente novo, que poderia
da minha geração, ou pouco mais velhos, resultar críptico, seria retomar e repetir
ou das gerações seguintes. Entretanto, ain- alguns discursos já vagamente familiares,
da vige e prospera, nos debates acadêmico, que facilitassem a comunicação e a com-
o pior dos espantalhos: o velho engano de preensão do grande público (e dos críticos),
RUTH VERDE ZEIN FORA DO TOM, FORA DA ORDEM (OU, QUANTO MAIS ARTIGAS, MELHOR) 43

que quase sempre precisam da redundância em 1961: as Escolas Nacionais de Arte de


de discurso para poder algo compreender Havana, Cuba, de Ricardo Porro, e o Edifício
do algo de novo que se apresenta. A postura da FAUUSP em São Paulo, Brasil, de João
relativamente conservadora do MoMA-NY é Batista Vilanova Artigas e Carlos Cascaldi.
coerente: afinal, convenhamos, o museu não Não sei se a aproximação física das
é nem tem obrigação de ser uma entidade maquetes de ambos os edifícios nasce de
acadêmica. Ademais, ele vive e sobrevive alguma segunda intenção de natureza po-
de seu sucesso de público e crítica, e de sua lítica. Pode ser mera coincidência de tem-
capacidade de lançar modas duradouras. poralidades. Mas uma exposição não brota,
Por outro lado, afinal de contas, sejamos organiza-se, e essa se organizou basicamente
também honestos: no caso, todos somos pela “sincronização” de obras latino-ame-
gringos. Quanto é que nós, outros, brasilei- ricanas, de países distintos, indexando-as
ros, conhecemos da arquitetura moderna não apenas por data, mas também por tema,
mexicana, ou argentina, ou chilena, ou co- técnica, material ou programa, conforme o
lombiana? Com exceção, é claro, dos colegas caso. Então, suspeito que também ali, na-
aqui presentes, e dos que aqui nos leem. quele canto, o sentido da aproximação não
Assim, considerando-se suas limitações (que nasceu apenas de um cotejamento de datas
o MoMA-NY também as tem), a curadoria ou de arquiteturas, mas da aproximação
da exposição fez o possível; e o fez muito pelo engajamento político de seus autores.
bem feito. Exigir que venha de fora o que Circunstância talvez relevante em termos
ainda não estamos aptos a fornecer de den- históricos, mas que a passagem do tempo
tro, seria como jogar a responsabilidade de datou, e parcialmente esgotou. As obras, se
ganhar a partida confiando no bom jogo do bem tenham nascido então, e tenham sido
time adversário. Isto posto, e por brevidade, projetadas por pessoas concretas agindo em
voltemos à exposição; e nela, a Artigas. momentos históricos e políticos precisos,
Se examinarmos a planta do ambiente entretanto, não permaneceram sendo o
da exposição, nota-se que há um quadrado que eram. Seguem existindo e, por isso, se
introdutório feito de salas em sequência, limitam a ser apenas aquilo que foram, mas
e um retângulo estendido onde se mostra, passam a ser também aquilo que de fato são.
de maneira mais livre e labiríntica, o mio- Ambas são obras belas, dissimiles e potentes.
lo do assunto, aquilo que é o “novo”, ou Obras que seguiram seu caminho e que hoje
melhor, o ainda pouco mapeado: as obras são também contemporâneas: estão aqui e
latino-americanas modernas dos anos agora. Precisam também ser pensadas no
1960-70. Se dermos um zoom, vê-se junto presente, e para o futuro. Não pertencem
ao começo da parede amarela de fundo, apenas ao passado. A filiação política ori-
onde foi desenhada uma Linha do Tempo, ginal de seus autores é um dado relevante,
um canto relativamente amplo. Tanto que mas é também insuficiente e limitador como
ali foi possível abrigar duas grandes ma- chave exclusiva para sua compreensão, seja
quetes, de duas obras-primas projetadas em seu berço, seja nos dias de hoje. Ainda
Página 39 e acima:
Faculdade de
Arquitetura e
Urbanismo, FAU USP
São Paulo-SP
1969
Foto: Nelson Kon
45

viés recorrente de classificação. A meu ver,


é o pior tipo possível de recorte, porque
pouco ou nada explica. E é certamente o
mais anacrônico: um viés viciado e iner-
cial, que nada tem de contemporâneo, que
mais atrapalha do que esclarece quaisquer
vontades de profundamente compreender
quaisquer obras e, ainda mais, para atuar
na sua valorização e preservação, neste
outro século em que ainda estão vivas.
A belíssima obra cubana passou por vá-
rios infortúnios. Nasceu para dar exemplo,
para ser um marco da Revolução, para dar
notícia da possibilidade de uma autodeter-
minação suficiente, embasada pela sabedoria
construtiva acumulada e consuetudinária
do povo “comum”, que dali em diante iria
tomar o rumo de suas vidas nas mãos – ou
assim parecia. Mal chegou a obra a comple-
tar-se e já foi afetada pelas nuvens negras
da intolerância, e chacoalhada pelas flu-
tuações políticas ao seu redor. Cuba, nem
por ser ilha, estava isolada do mundo. E
devido aos seus novos e complexos rumos
políticos, que nem remotamente pretendo
compreender, seu governo houve por bem
denegrir essa obra e suas irmãs, a ponto
de hostilizar e apagar os feitos de seus au-
mais depois de o mundo ter dado tantas vol- tores da história da sua arquitetura, por
tas, e de muitos muros, arranha-céus e cida- décadas. Decerto, todo esse mal ocorreu
des terem caído, e de muitos outros muros, apenas por motivos torpes: a burocracia
edifícios e cidades terem sido construídos. odeia a criatividade. Seja como for, essa
Seja como for, essa proximidade espacial magnífica obra foi relegada a um ostracismo
das maquetes de ambas as obras, postas ali triste, que jamais deveria ter merecido.
em cotejamento nada inocente, me dá ensejo Podia-se tirar desse exemplo uma boa
a pensar como, em arquitetura, o emprego lição, e não cair de novo na mesma arma-
superficial de enquadramentos ou (des) dilha. Podia-se deixar de pensar que é boa
enquadramentos partidários como chave coisa seguir fazendo ilações e conexões taca-
para explicar arquiteturas segue sendo um nhas, entre concepção arquitetônica e pos-
46 AS VIRTUALIDADES DO MORAR ARTIGAS E A METRÓPOLE

Faculdade de
Arquitetura e
Urbanismo, FAU USP
São Paulo-SP
1969
Foto: Nelson Kon
RUTH VERDE ZEIN FORA DO TOM, FORA DA ORDEM (OU, QUANTO MAIS ARTIGAS, MELHOR) 47

turas políticas; tanto nos dias de hoje, como A tolerância se cultiva para os começos, e o
na vontade de aplicá-las retroativamente. rigor, para as conclusões. Não ao contrário.
Infelizmente, ainda há quem aprecie basear A meu ver, o velho vezo de amarração
suas leituras arquitetônicas sobre o edifício político-partidária estreita e limitante entre
da FAUUSP, de Artigas, seus espaços e usos, a obra de um arquiteto, e sua atuação como
por meio desse viés ideológico, o qual, por cidadão político, especialmente quando se
ser prescritivo, quase sempre termina na visa dar uma explicação simplista daquela
confecção de uma bula. Ou seja, desembo- por esta, é apenas mais um dos infinitos
ca na suposição de que possa haver apenas possíveis reducionismos que diminuem a
uma forma correta de usar e interpretar esse importância cultural e artística das obras de
magnífico edifício: aquela supostamente arquitetura, de um lado; e a importância cul-
atrelada ao posicionamento político de seu tural e complexidade humana de seus auto-
autor. Ou melhor, aquela que o pesquisador res, de outro. Como qualquer redução cultu-
de hoje supõe, ou de forma limitada supõe, ral, é desnecessária. Pior: é empobrecedora.
que tenha sido o posicionamento político Nesse tema – a amarração estrita e estreita
de seu arquiteto. Esse modo de usar e in- entre arquitetura e política – minha posição,
terpretar quer ser absoluto; mas é claro que coincide com a de Francesco Dal Co, quando
se trata de apenas mais uma interpretação, ele considera que “a aparência de uma coisa,
tão boa, ou ruim, como qualquer outra. antes de revelar mecanicamente a ideolo-
É, porém, uma interpretação limitadora gia de sua produção, existe simplesmente
e perigosa, por se arrogar à propriedade como o lugar onde sua absoluta autonomia
da verdade. E donos da verdade são uma do ato que a produziu é revelada”. Reduzir
das coisas mais perigosas deste mundo. a arquitetura a um resultado simplista de
Pessoalmente, prefiro a admissão da pos- algumas equações políticas circunstâncias
sibilidade ativa do debate, e a garantia da e passageiras é um caminho que, a meu ver,
diversidade de aproximações. Horrorizam- sempre e só faz mal ao nosso campo. Não
me quaisquer posturas que impeçam, ou colabora em nada para entender melhor essa
dificultem, a possibilidade de se proporem arquitetura. Especialmente, não colabora
quaisquer abordagens, possíveis e imagi- em nada para entender e propor como se
náveis. Minha postura ética é a de que é pode seguir vivendo dentro dela, hoje. Ou,
preciso, a princípio, aceitar que o campo se assim me parece. E sem querer, ou a propó-
abra. Não necessariamente tudo o que resul- sito, o caso cubano exposto ao lado do caso
tará será adequado: propor é livre, mas para paulista me serviu, talvez meio espertamen-
se chegar a algo bom e embasado é preciso te, para exemplificar o que quero dizer.
haver consequência, seriedade, competên- Mas deixo para o final o que devia es-
cia e consistência. Lançam-se as sementes, tar a princípio, no meio, e em toda parte:
cultivam-se, deixam-se crescer; e só depois, a obra. E suas interpretações: porque se a
quando aparecem os frutos, é que se cortam obra é uma, as experiências de sua com-
os que não apresentam a devida qualidade. preensão são infinitas, e podem e devem
48 AS VIRTUALIDADES DO MORAR ARTIGAS E A METRÓPOLE

ultrapassar aquilo que o autor pensou, ou que, quanto mais variedade de abordagens
não pensou, sobre elas: a dimensão artís- sobre a obra de Artigas houver, melhor será.
tica da arquitetura permite, e incentiva, A ousadia da abordagem e sua falta de orto-
que assim o seja. Olho de novo a obra, doxia podem definir caminhos distintos, e
tomando como viés para acessá-la, sua com boas potencialidades de desenvolvimen-
presença na exposição do MoMA-NY. to. Novas abordagens ajudam, por um lado,
A maquete da FAUUSP, assim como as a certificar o imenso talento de Vilanova
demais maquetes ali expostas, apresentava Artigas, e colaboram, certamente, para
o edifício parcialmente seccionado, per- consolidar seu necessário reconhecimento
mitindo divisar parte de suas entranhas. no panorama internacional da cultura ar-
Surpreendentemente, os autores da maquete quitetônica contemporânea. Por outro lado,
não escolheram fatiá-la segundo uma secção ajuda a evitar e a superar quaisquer limites
transversal, que seria talvez a forma mais tacanhos para a interpretação e o reconheci-
adequada para explicá-la “segundo a ordem mento de suas obras. Há ainda muito traba-
das suas (dela) razões”. Em vez disso, adota- lho pela frente, agora que já podemos, com
ram uma incisão em corte longitudinal. Essa segurança, fazê-lo se desdobrar em muitos
opção, de certa maneira, banaliza o edifício. caminhos; variados, e muito excitantes. •
Pois embora mostre suficientemente bem
suas peculiaridades, facilita a percepção das
suas similaridades com outras obras, bru-
talistas ou não, dos anos 1960 ou não. Por
outro lado, inclusive pela escolha da escala
da maquete, essa escolha também monu-
mentalizou a percepção do edifício; o que
tampouco vai a contrapelo de sua realidade
fática. E, finalmente, explicou-o bastan-
te bem, mesmo se não completamente.
Depois de meditar sobre o assunto, e fazer
alguns breves experimentos comparativos
livres, concluí que gostei. Em vez de mais do Notas
mesmo, os maqueteiros escolheram revelar 1
O principal é o da suposta “decadência”
um outro ponto de vista. Com esse simples da nossa arquitetura após 1960, que não
gesto, abriram-nos a porta para um mundo teria o “brilho” das décadas anteriores.
de outras possibilidades. Gostei porque me Contesto essa interpretação desde 1985;
surpreendi, porque não era o mesmo, e por- mas uma andorinha não faz verão.
52

O tema deste seminário surgiu depois


de alguma pesquisa procurando entender o
urgência do fato "casa" na ponta de lança da
expressão arquitetônica brasileira nos anos
1950. Não que tenham sido feitas apenas ca-
sas, Brasília considerada; mas não é possível
ignorar o fato de que o grande avanço da
pesquisa do espaço arquitetônico moderno,

AS VIRTUALIDADES
LUIZ RECAMÁN
com todas as inevitáveis implicações sociais
e culturais, tenha se dado na cuidadosa

IMPOSSÍVEL
elaboração da casa como um microcosmo,

DO MORAR:
O ESPAÇO
análogo e ativador de um macrocosmo social

DA CASA
em pendência nesse período. Principalmente
se considerarmos o deslocamento das ques-
tões centrais para a conjuntura paulistana. É
mais ou menos fácil imaginar o porquê his-
tórico, as várias mitologias identitárias, além
do fato de os arquitetos modernos e suas ca-
sas prolixas já serem um tópico. Dificuldades
de convencimento, de empreendimento, de
esclarecimento em relação aos projetos de primitiva, absorveu apenas parcialmente a
maior abrangência, somados à tolerância sensibilidade do mundo tradicional agrí-
de amigos cultivados, permitiram que as cola e religioso, em uma combinação de
radicalidades espaciais da modernidade fos- temporalidades que caracterizou desde o
sem ensaiadas em joias residenciais muito início a cultura rústica nacional – como a
conhecidas, no mundo todo. Neste exato analisou Antonio Candido (1964), no livro
momento, esta não é uma dúvida historio- "Os parceiros do Rio Bonito". Motivos não
gráfica, mas uma dúvida sobre as razões da faltam para a problematização da "casa"
permanência da estrutura "casa" no padrão (um feixe semântico) como nó górdio
espacial brasileiro da metropolização. de nosso processo de formação social.
Que a casa tenha fundamentado uma Ela surge na reflexão moderna brasileira
sequência histórica de relações sociais e pro- como o polo de um complexo sistema de
dutivas no Brasil, não resta dúvida. E que relações socioespaciais. Cultura, produção
a longevidade e o isolamento de formações material, hierarquias, escravidão e domina-
sociais rurais tenham produzido um pro- ção geraram formas sociais resultantes da
fundo modo de ser da sociedade brasileira, é interação da "casa" com a natureza, o traba-
consenso. Assim, esse mundo rural, inserido lho, a comunidade, a família, o poder etc.
produtivamente por meio do sistema colonial Uma constelação surgida com a centralidade
em um circuito avançado de acumulação da unidade ecológica, afetiva e produtiva da
53

"casa". E com ela – e com o universo social & Senzala, Raízes do Brasil e Formação
que representa – era necessário o ajuste de do Brasil Contemporâneo. O tema da mo-
contas da modernização, já desde os anos dernização enfrentava assim o "arcaico",
1920. A radicalidade modernista em São compreendido ora como alavanca, ora como
Paulo, tornando positivos em algum grau entrave. Esse também seria o grande tema
aspectos da herança colonial e rural, inau- da pesquisa social do momento posterior,
gura "um novo momento na dialética do principalmente aqui nesta Universidade, ao
universal e do particular" (CANDIDO, 1980, perscrutar a escravidão e o sistema colonial,
p. 119). O "desrecalque localista" foi um pro- a base de sustentação da sociedade brasileira
cesso fundamental de atualização cultural, durante séculos. Assim, o trabalho intelec-
seguido de renovação política e econômica a tual e artístico, ocupado com a Revolução
partir de 1930 – nacionalismos diferentes e Brasileira, tratava de compreender, para
conexos. Indicava que a modernização brasi- superar, o mundo rural e suas heranças que
leira poderia ser alcançada por um caminho, conviviam com processos avançados de pro-
ou atalho, distinto daquele que constituiu dução em escala de capitalismo mundial.
a revolução burguesa na Europa – ética do Quando a Revolução Brasileira, incom-
trabalho, esfera pública e impessoalidade. Os pleta, se apresentou inteira, quer dizer, sua
vínculos entre as sensibilidades primitivas e feição conservadora se mostrando hegemô-
avanços industriais era matéria já elaborada nica a partir do Golpe de 1964 e posterior
pela vanguarda europeia, e aqui adquiriu um redemocratização vacilante, a "casa" volta
significado histórico distinto, na descrença a ocupar parte das reflexões sobre as difi-
da via liberal e burguesa de modernização culdades de constituição da esfera pública
– à direita e à esquerda – pelo menos no entre nós. Roberto DaMatta (1997) explica
que se refere à sua superestrutura. O século a sociedade brasileira pela relação entre
XIX – a modernização do segundo Império "casa" e "rua", e as distintas éticas que são
e da Primeira República e as suas formas acionadas para a resolução de problemas
intelectuais, culturais e artísticas – foi refu- do convívio e dominação, em diferentes
tado. E também, mas sem a mesma clareza e escalas. Ora a "casa", lugar da intimidade e
autonomia, a cidade reformada segundo os pessoalidade máximas, "engloba", totaliza
princípios do urbanismo burguês oitocentis- a "sociedade", ora a "rua", lugar da impes-
ta. Todas essas características questionadas soalidade e da autoridade cega, "engloba"
encontravam-se prioritariamente reunidas a vida privada. Essa dicotomia e disjunção,
na única metrópole brasileira das primeiras para o antropólogo, criam impossibilida-
décadas do século XX, a Capital Federal. des sociais que são ritualizadas na terceira
A persistência da ordem tradicional ru- entidade do esquema, a "festa", com suas
ral, tornada uma potencialidade social, foi inversões e suspensão momentânea das con-
lida e compreendida de diferentes maneiras, venções e seus códigos (DAMATTA, 1997).
tendo sido o foco dos grandes ensaios crí- De maneira análoga, diante dos impasses
ticos do período da formação: Casa Grande de constituição de uma sociedade moderna
54 AS VIRTUALIDADES DO MORAR ARTIGAS E A METRÓPOLE

e pública, Fernando Novais inicia a cole- já tantas vezes tratada, serve agora apenas
ção "História da vida privada no Brasil", para apontar que esses objetivos ideológicos
de 1997, citando Frei Vicente do Salvador, – naturalização do universo maquinista –
em sua "História do Brasil (1500-1627)": academicismo estético renitente, na análise
"Então disse o bispo: verdadeiramente que de, ou o "formalismo integral" do funcio-
nesta terra andam as coisas trocadas, por- nalismo (ARANTES, 2001, p. 82) serviram
que toda ela não é república, sendo-o cada a diferentes propósitos em diferentes con-
casa" (NOVAIS, 2012, p. 140). Novais explica junturas. Aqui, a "forma livre" modelou-se
a síntese de Frei Vicente, apontando seu às peculiaridades nacionais, afirmando a
acerto em perceber na colônia a "profunda modernidade intrínseca do país desatavia-
imbricação das duas esferas da existência" e do não burguês. Curvas, leveza, paisagem
a sua curiosa "inversão". Segue o autor cha- tropical e todos os bordões da arquitetura
mando a nossa atenção para dois aspectos moderna brasileira nos anos 1940 afirmavam
da História da vida privada no Brasil: de um a propriedade do moderno entre nós, em
lado, "sua inserção nos quadros da civiliza- uma síntese que prescindia da técnica, da
ção ocidental; de outro, a sua maneira pe- indústria e das utopias de massa. Como esse
culiar de integração nesse universo". Ambas era um projeto do Estado unificado, forta-
as análises indicam que não é suficiente lecido depois de 1930 e formador de iden-
perceber a prevalência da ética intimista na tidades ad hoc, a infraestrutura "simbólica",
constituição da sociedade brasileira, mas consignada à arquitetura, era a combinação
sim como a ordem metropolitana, europeia, entre o poder centralizado e moderno e as
é apropriada e transfigurada na colônia, características mais profundas da naciona-
embaralhando, para melhor funcionar, as lidade construída. Ou seja, estamos de volta
distintas energias da sociedade e individuali- às estratégias de "desrecalque localista",
dade modernas. Não termos historicamente mas no registro da "rotinização" do moder-
perseguido o caminho "clássico" da "civili- nismo na era Vargas (CANDIDO, 1984).
zação" (esfera pública, Estado e revolução O Brasil arcaico era reinterpretado como
burguesa) nos condena à constante elabo- pureza formal, natureza e invenção; fato
ração dessas energias que nos estruturam, que só poderia ser formalmente realizado
mas que dependem de muita imaginação à distância das cidades, seu antípoda, e
para serem formalizadas em arranjo diverso. da história social do país e suas contradi-
• ções. Um fundo-paisagem idealizado para
Importante, agora, é pensar esse enredo fazer destacar o emblema de uma nação
na arquitetura brasileira. A modernidade particularmente moderna. Essa operação,
arquitetônica é a representação do espaço da aparentemente banal porque dramatica-
técnica, da revolução industrial e suas de- mente ideológica, requisitou talento único
mandas, consideradas emancipadoras. Disso de alguns protagonistas, empenhados em
decorrem seus princípios fundamentais e as resolver contradições que sub-repticiamente
suas distintas formulações. Essa contradição, emergiam na composição arquitetônica.
LUIZ RECAMÁN AS VIRTUALIDADES DO MORAR: O ESPAÇO IMPOSSÍVEL DA CASA 55

A sequência é extraordinária: do MESP à pesquisa em projetos de residências, essen-


Pampulha, a equação estética das energias cialmente. A análise dos princípios desse
expansíveis em choque com os limites so- paradigma espacial já foi realizada em outras
cioespaciais intransponíveis. Extroversão ocasiões, seguindo um roteiro de conquis-
sem enfrentamento do real gera grande tas formais em algumas casas que projetou
conjunto, mas não espaço social e urbano. e construiu na cidade de São Paulo. Esse
Mas o que nos traz aqui não é essa equa- roteiro pretendeu mostrar a inovação alcan-
ção, e sim seu ultrapassamento no momento çada e detectar a singularidade do que ali se
em que a realidade industrial e metropoli- construía. Fragmento urbano, propriedade,
tana se impõe, no final dos anos 1940. São privacidade, descontinuidade, não paisagem
Paulo se consolida como o centro industrial compondo o novo espaço social do país,
do país, com crescimento populacional anual que deveria ser representado arquitetonica-
acima de 5%; sua mancha urbana se expande mente. O esquema anterior, niemeyeriano,
para os limites administrativos do municí- conceitualmente inadequado a essa nova
pio, com loteamentos regulares e irregulares. condição produtiva e espacial, confirmou
Esse novo patamar de ocupação territorial sua inviabilidade nas experiências realizadas
exige enfrentamento dos diferentes campos pelo arquiteto carioca na capital paulista.
institucionalizados de conhecimento, como Depois de algumas tentativas tipologica-
a Arquitetura e o Urbanismo, duas áreas que mente hesitantes, é no Parque Ibirapuera
se desenvolviam rapidamente na cidade, e que o espaço metropolitano pensado pela
que refletiam a peculiaridade do meio no arquitetura brasileira se produz: um con-
potente esquema arquitetônico nacional. junto desmedido de edifícios em meio ao
Da mesma maneira que as características parque verde. As relações internas suficien-
da cidade marcaram os escritores que nela tes entre os volumes alcançam geografia
viviam ainda no século XIX, como diz limite, que faz surgir a marquise conectora
Antonio Candido sobre as influências do de visualidades inalcançáveis. É o limite do
meio nos escritores da cidade, no contexto esquema que cria seu próprio vazio do in-
de uma literatura nacional. Se esses foram terior da metrópole para funcionar. Depois
marcados pela assimetria do meio rústico disso, só a imensidão do serrado no planalto
e pela presença da Academia do Largo São central do país permitiria alcançar cone-
Francisco, os arquitetos dos anos 1940 de- xões estritamente formais autorreferentes.
vem ter se empolgado e assombrado com Mas o que interessa é que a reposição
a máquina de produção de espaço urbano do "atraso", realizada no primeiro momen-
e construído que parecia sem controle e, to ideológico pela alegoria da identidade
ao mesmo, tempo esperando inteligência nacional, é atualizada industrialmente,
para realizar-se plena e socialmente. na realidade da exploração e da ocupação
Nesse ambiente efervescente, Vilanova do território metropolitano. Ocupar sem
Artigas ensaia um novo paradigma espacial planejar – ou melhor, a impossibilidade
para a arquitetura brasileira por meio de sua de prefigurar o que escapa ao imediato – é
Página 51 e acima:
Casa Vilanova
Artigas II
São Paulo-SP
1949 determinação nacional. O plano é outro,
Foto: Nelson Kon da ordem da performance da acumulação.
Assim foi a ocupação inicial extrativista, na
qual as construções perseguiam a fertili-
dade de terras novas, em seminomadismo,
e assim é nas cidades, com as exceções de
praxe. Na São Paulo industrial, o território
é preenchido pela imediaticidade do uso,
na precariedade e na abundância. Ao fazer
a crítica ao pensamento dual que estrutu-
rava as análises sobre o Brasil moderno,
Francisco de Oliveira, em 1972, deixa clara
a razão funcional entre atraso e progres-
so. As permanências das relações sociais,
idealizadas ou não, do Brasil tradicional,
tinham papel fundamental na dialética da
nossa modernização industrial. As favelas
e a autoconstrução são ao mesmo tempo o
barateamento dos salários – característica
LUIZ RECAMÁN AS VIRTUALIDADES DO MORAR: O ESPAÇO IMPOSSÍVEL DA CASA 57

principal do subdesenvolvimento – como mente, mas cuja referência é fundamental


são a atualização do atraso da ocupação rural para o argumento, podemos focalizar duas
na metrópole: construir a casa com os meios questões que talvez ajudem a compreen-
disponíveis e as lógicas da "economia natu- der o lugar dessa obra, e o porquê de sua
ral" para aumentar a exploração do trabalho. repercussão e influência, ao mesmo tempo
A "casa paulista" ideologiza a prática aceitas, mas em grande medida omitidas.
privatista e do "atraso" em chave industrial, O primeiro foco é local. Das ousadias
minorando o paradoxo de uma Großstadt formais principescas, no dizer de Mário
composta de "casas". Uma inversão que Pedrosa a respeito da afamada arquitetura
possibilita, como dizíamos antes, seguindo brasileira até Brasília, encaminhávamo-nos
Novais, a inserção de nossa ambígua vida para um colapso espacial nas grandes cida-
mental no mundo moderno. Fato necessário des, do ponto de vista arquitetônico e urba-
para a produção de valor em ritmo de mo- nístico. Isso a passos largos nos anos 1950. O
dernização conservadora. À racionalidade Estado titubeante acelerava na construção de
produtiva associamos tanto a racionalidade símbolos cada vez mais vigorosos na medi-
e sobriedade ético-construtiva da "casa" da inversa de sua força política (Juscelino e
tradicional, herdando ao mesmo tempo sua Brasília). Restava a realidade social, também
introversão, isolamento e hostilidade ao ela em grande efervescência cultural, mas
que lhe é exterior, quanto a necessidade e cada vez mais claramente diante de um im-
precariedade do mundo rural miserável. passe político e econômico. O mal-estar da
Essas contradições não foram formal- modernização é, ao contrário da fuga para o
mente elaboradas a não ser pela pesquisa infinito de Niemeyer, aceito e enfrentado por
de Vilanova Artigas, no período assinalado. Artigas em São Paulo, do ponto de vista de
Porque nela, à equação arquitetônica dispo- sua obra e sua pesquisa espacial. Sem pers-
nível, acrescentou-se a necessidade, política pectivas para o futuro, que poderiam ser re-
talvez, de representar, inventar, o espaço presentadas pela industrialização socializan-
urbano nacional, ou o espaço brasileiro. te cada vez mais distante no horizonte, tratou
Essa busca, um tanto quanto irrealizável, de liberar o passado, dando novo significado
foi incentivada pela influência de Frank à "casa", em uma arqueologia das formas
Lloyd Wright, e renovada, então com maior do amparo social e pessoal. Transformou-a
autonomia estética e intelectual, na viagem em um sucedâneo de utopia, ao alcance das
realizada por Artigas aos Estados Unidos de mãos, ainda que para isso aprofundasse o
1946 a 1947. Essa viagem ajudou a deflagrar fosso em relação ao que a ela era estranho.
um processo de inquietude intelectual com Se a nossa ordem social era a unidade da
o desenvolvimento nacional, que não era casa, essa deveria ser liberada para expressar
apenas expresso na militância política, mas a sua potência emancipadora, e se tornar o
também na renovação estética em curso. padrão do espaço social brasileiro. A pesqui-
Com os projetos do período em mente, sa de Artigas desenvolveu um vocabulário
que não podemos aqui discutir direta- de soluções, todas muito conhecidas e re-
58 AS VIRTUALIDADES DO MORAR ARTIGAS E A METRÓPOLE

plicadas, mas principalmente desenvolveu uma conjuntura de subdesenvolvimento.


uma sintaxe construtivo-espacial que só tem O eixo de expansibilidade wrightiano pas-
sentido se considerada a busca de uma nova sa, portanto, a rodar em sentido inverso,
espacialidade urbano-moderno-brasileira, centripetamente, na medida em que a con-
um novo paradigma espacial. À ousadia da tinuidade espacial da casa para o subúrbio,
tarefa corresponde a construção do país mo- possível naquele momento de afluência ao
derno, e são as mesmas as suas vicissitudes. Norte, se constituía como a grande impos-
A essa imagem emancipadora da "casa" sibilidade local. O universo espacialmente
deve ser confrontada também a influência suficiente da casa está, portanto, equacio-
moderna em outra via, que nada tem de eu- nado, e se expandirá para as Instituições,
ropeia, e que se consolidava nesse momento, indicando as dificuldades, já presentes no
os anos 1940, que era a ocupação suburbana momento de centralismo estatal anterior,
americana. É fácil hoje reconhecer os con- de universalização moderna do espaço
flitos sociais, ecológicos e políticos dessa político e urbano na república brasileira.
alternativa, mas ela era original, americana •
e independente de tradições do espaço ur- Mas a sua inquietude estava também in-
bano de uma Europa em crise de hegemonia serida em uma crise disciplinar mais ampla
cultural. Lembremos que o modelo urbano que ele não poderia voltear. O pós-guerra
europeu havia sido amplamente criticado era todo reconstrução dos instrumentos e
pelas ações da vanguarda. Essa perspectiva, da linguagem da arquitetura depois das van-
digamos, "continental", paradoxal em rela- guardas e seu radical processo de anulação
ção à luta contra o “imperialismo", tem algo do sentido histórico ou tradicional. Em toda
de jeffersoniano, ou de uma releitura das parte, nos anos 1950, tratou-se de repovoar
casas usonianias de Frank Lloyd Wright. A de conteúdos os elementos destituídos de
influência americana, já bastante discutida significação pelas operações da moderni-
em vários trabalhos, bem como a neces- dade. Manfredo Tafuri é o crítico que mais
sidade de "modificar a divisão interna da longe vai com as implicações dessa anulação
casa de classe média paulista" (VILANOVA de possibilidades da arquitetura vinculada
ARTIGAS, 1984), devem, no entanto, ser aos processos produtivos do capitalismo,
relativizadas. Pois esse modelo, espacialmen- não mais detentores de energia utópica do
te ensaiado desde os anos 1940, passa por período do fordismo ideológico, os anos
modificações espaciais radicais com o avan- 1920. O silêncio imposto ao signo arquite-
ço da década de 1950 e o confronto político tônico e linguístico em geral não pode ser
com a realidade urbana da modernização mais convertido em música, ou afirmar sig-
metropolitana brasileira. É nesse contexto nificações sociais unificadoras e históricas.
de conflito que o novo paradigma espacial Não hesitaria em colocar, em determinado
é imaginado. Portanto não se trata apenas sentido aqui pretendido, a obra de Artigas
de uma revisão da casa paulista, e de subur- no contexto dos embates dos anos 1950,
banização da expansão da mancha urbana na Europa e nos Estados Unidos. Por nexo
da cidade, mas dessa lógica "americana" em direto de influência ou por "espírito da épo-
LUIZ RECAMÁN AS VIRTUALIDADES DO MORAR: O ESPAÇO IMPOSSÍVEL DA CASA 59

ca", a pesquisa de Artigas pode ser também heterodoxo, talvez tenhamos realizado
entendida como correspondente, com todas ambos destinos no mesmo gesto, afeitos em
as ressalvas necessárias, aos impasses da ge- embaralhar lógica, história e ideologias.
ração de arquitetos que se propôs a construir Artigas pretendeu criar emblemas para
a disciplina no segundo pós-guerra. Todos ativar a possibilidade libertadora e huma-
se confrontaram com a incomunicabilidade na da vida próxima e fraterna, ao mesmo
dos signos arquitetônicos. Para Tafuri, Louis tempo considerando sua iniquidade sub-
Kahn procurava desesperadamente a recupe- jacente . Essa operação foi elaborada no
ração da "dimensão do mito", que não con- espaço, e atingiu um patamar único na
tava mais, segundo o crítico, de "fundações experiência arquitetônica brasileira, uma
coletivas" (TAFURI, 1976). O ápice desse complexa conexão entre forma e conteúdo.
paradoxo foi unificar o vocábulo arquitetô- Estabeleceu um novo paradigma espa-
nico à criação artificial de uma "mitologia cial a partir das casas, e que se estende às
das Instituições". Mutatis mutandis – pois Escolas – Instituição suprema no subde-
trata-se nesse caso do país que Toqueville senvolvimento –, ao espaço urbano, e à
descreveu – operação correspondente à de cidade que lhe é hostil. Esse é um paradoxo
liberar as energias "democráticas" da casa formalmente intransponível, porque o que
pela revolução de seus vocábulos espaciais, está fora desse esquema espacial – a cidade
no território que Frei Vicente descreveu. real – é também um elemento negativo da
A "arquitetura da alcova" – título sádico equação proposta, na medida em que a ela
com o qual o crítico italiano intitulou outro os signos reagem material e espacialmente.
texto do período –, implica uma elaboração Não se trata, portanto, de mais um exem-
infinita de signos esvaziados de significação, plo de desígnios humanistas que falham
um isolamento correspondente à revolução ao encontrar a dura realidade do mundo
libertina operada pela reclusão burguesa amesquinhado, o que é bem frequente em
na intimidade. À renúncia de expectativas arquitetura, sempre bem-intencionada. O
iluministas resta ao projeto moderno uma caso em análise se distingue porque o passo
elaboração intransitiva de seus elemen- dado, de grande significado estético, foi de
tos. A nossa alcova é outra, pré-burguesa escapar da utopia, do novo radicalmente
e familiar. Mas mesmo considerando suas diverso, ao mesmo tempo em que incidia
potencialidades freyreanas libertárias e criticamente na realidade social existente,
solidárias, tampouco pode tomar o lugar utilizando-a matéria negativa. Uma dialética
de relações políticas modernas, neutraliza- limite, e por que não dizer atormentada,
doras de sua dimensão patriarcal. Estamos, de um arquiteto conhecedor dos impas-
segundo os argumentos dos críticos em ses históricos de seu tempo e lugar. •
sua desalentadora perspectiva na metade
dos anos 1970 sobre os "restos no campo
de batalha da vanguarda", ora condenados
ao jogo sintático silencioso, ora à mito-
logia esvaziada. Aqui, em ambiente mais
60 AS VIRTUALIDADES DO MORAR ARTIGAS E A METRÓPOLE

Referências Bibliográficas
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VILANOVA ARTIGAS, João Batista.
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64
Página 63:
Faculdade de
Arquitetura e
Urbanismo, FAU USP
São Paulo-SP
1969
Foto: Nelson Kon

ANA LANNA
DEBATE
A tarefa que me cabe nesta sessão do Ao contrário, os processos de mitificação
Seminário “Artigas e a metrópole” é propor implicam em construir explicações que se
questões para iniciarmos um debate, com baseiam na constituição de um mito de
base nas falas e nos textos dos palestrantes, origem que se fundamenta na grande ca-
todos estudiosos da obra do arquiteto. O pacidade criativa, na excepcionalidade e na
desafio é procurar articular, a partir das genialidade do personagem estudado, reti-
apresentações de Miguel Buzzar, Ruth Verde rando esses atributos das condições e con-
Zein e Luiz Recamán, temas que perpassem tingências pessoais e sociais que confor-
reflexões tão diversas entre si. Mais ainda, mam as possibilidades de produção e re-
procurar propor questões que coloquem as flexão como prática social. Os palestrantes,
falas em diálogo com o tema específico deste ao incidirem suas análises sobre aspectos
seminário. da obra, da trajetória e das apropriações da
Gostaria de começar destacando um produção de Vilanova Artigas nessas últi-
aspecto que me parece central e que foi men- mas décadas, nos propuseram caminhos e
cionado nas falas da professora Maria Angela possibilidades de distanciamento dessa ex-
Faggin Pereira Leite e do professor Hugo plicação mítica. As reflexões apresentadas
Segawa, na abertura desta jornada de tra- convergem nos seus temas e distanciam-se
balhos. Trata-se do desafio de realizar uma em suas análises, possibilitando um debate
reflexão sobre a obra do arquiteto evitando que, a partir do reconhecimento da impor-
o risco da mitificação. A imperiosidade de tância do arquiteto, explicita a necessidade
estudar, conhecer e refletir deve nos auxiliar da problematização.
a evitar o risco da mitificação que, via de Seguindo as análises apresentadas, vou
regra, acontece quando há o reconhecimento retomar duas questões que me parecem
da importância do personagem e seus temas presentes nas três falas e depois propor
e uma ausência da reflexão. algumas questões mais específicas relacio-
Sabemos todos que a pesquisa e os de- nadas também aos temas propostos para a
bates de ideias são o caminho operativo reflexão nesta sessão.
essencial para que possamos elaborar e pro- Inicialmente gostaria de discutir a
blematizar o reconhecimento das práticas e ideia de que a análise desenvolvida sobre
das reflexões, assim como da permanência o arquiteto deve partir de procedimentos
da importância referencial do arquiteto. que enfatizem a necessidade de “colocar
65
66
em relação”, ou seja, compreender a obra ta anos depois de sua morte, a partir dos pre-
arquitetônica no contexto do pensamento de ceitos e desafios, nesse caso quase míticos,
seu autor, reconhecendo como o arquiteto que ele definiu. Artigas é, como ele mesmo
e sua obra (arquitetônica, textual, prática afirmava, construtor de uma escola de ensi-
etc.) dialogam e carregam as marcas do seu no e não apenas de um edifício que abriga
tempo e como este parametriza os desafios uma faculdade de arquitetura. A FAUUSP
e as respostas fornecidas. Se esse desafio de ainda hoje reitera a centralidade do arquite-
“colocar em relação” conduz mais fortemente to, colocando-o no lugar de mito fundador.
a estrutura do texto apresentado por Miguel Os palestrantes destacaram a dificuldade de
Buzzar, ele pode ser reconhecido nas outras elaborar reflexões sobre a obra arquitetônica
apresentações. e o desconhecimento que ainda hoje impera
Outra aproximação possível entre as sobre a produção projetual. Essas dificulda-
três falas trata da enorme dificuldade, tal- des dialogam com a necessidade de “colocar
vez mesmo impossibilidade, de dissociar, em relação” a arquitetura e o pensamento
em Artigas, a obra arquitetônica de suas político do arquiteto. Esses desconhecimen-
dimensões políticas. Mais uma vez os pes- tos e essas desarticulações não impediram
quisadores lidam com essa relação de formas que a presença de Artigas seja crescente na
AS VIRTUALIDADES DO MORAR ARTIGAS E A METRÓPOLE

divergentes e antagônicas. Se toda produção formação de gerações sucessivas de arquite-


é social e política, nesse caso essa perspectiva tos urbanistas. Nessa perspectiva, parece-me
é intrínseca à condição do profissional em que a permanência de Artigas está fortemen-
análise, e é por ele mobilizada como argu- te ligada ao fato de ele ser construtor de uma
mento e justificativa de suas ações, escolhas, escola de ensino que ainda hoje o enaltece
realizações. e reafirma os conteúdos por ele definidos
A partir dessas questões mais gerais, como essenciais na formação dos nossos
gostaria de propor alguns temas mais direta- alunos.
mente relacionados aos conteúdos dos traba- 2. As relações entre a casa e a cidade cons-
lhos expostos nesta sessão. tituiriam uma segunda ordem de questões
1. Sobre a permanência e a centralidade presentes, sobretudo, nas falas de Miguel
de Artigas estarem diretamente relacionados Buzzar e Luiz Recamán. Para Miguel, pensar
ao fato de ele ter constituído uma Faculdade a conexão entre casa e cidade implica, na
de Arquitetura, que continua operando, trin- análise realizada sobre Artigas privilegiar o
lote. É sobre o lote que Buzzar faz incidir completa ou inconclusa. Para ela, a obra do
maior atenção para pensar como Artigas arquiteto deve ser analisada não apenas pelo
elaborava a relação entre obra arquitetônica projeto em si, mas a partir dessas décadas
e cidade. Recamán, de maneira distinta, de incidência de vida e experiência social
incide o foco de sua reflexão sobre a casa, que atualizam os significados da obra trans-
e não sobre o lote. Isso implica em diferen- formando seus sentidos e sua percepção.
ças entre os dois autores na compreensão Recamán toma esse mesmo tema - o da mo-
das relações entre a obra do arquiteto e os dernidade incompleta - para afirmar que,
processos de modernidade, modernização e segundo essa compreensão do processo de
industrialização. modernização, o arquiteto Artigas se reco-
3. O trabalho de Ruth Verde Zein cons- lhe para o interior das casas.
titui-se a partir da análise da construção de Por outro lado, Verde Zein afirma que
sentidos e significados que se fazem sobre pensar a relação entre o político e a obra é
a arquitetura de Artigas e de como esses uma redução. Advoga que deveria ser ope-
múltiplos significados alteram as percepções rado um distanciamento entre arquitetura
sobre os projetos e as obras. A fala de Verde e política. Mais ainda, afirma que a análise
Zein destaca um tema presente nos outros da obra deveria ser o centro da dimensão
dois autores, que é a necessidade não apenas artística e, portanto, é a partir dela que as
da elaboração de interpretações, mas da ex- relações com outras obras e com o próprio
plicitação de que se tratam de análises possí- contexto de produção arquitetônica deveria
veis e que possibilitam múltiplas abordagens se dar. Nessa perspectiva, o talento é a chave
e formas de aproximação com a obra. para a análise. Como realizar essa análise
A autora toma como exemplo a realiza- distinguindo a idéia do talento da genialida-
ção da recente exposição no MoMA sobre de, termo este negado pela autora no início
arquitetura moderna na América Latina. de sua reflexão?
Analisa a exposição destacando como o 4. Recamán afirma que a compreensão da
olhar estrangeiro nos inclui por sermos modernização sem revolução, ou da moder-
“gênios” ou “exóticos”. Afirma, ainda, que nidade como reinterpretação de um Brasil
ANA LANNA DEBATE

nós reagimos a essa percepção procurando arcaico, expressão do fracasso da moderni-


uma identidade própria, sempre ancorada dade, explicaria a estratégia do arquiteto em
em uma modernidade percebida como in- escapar da utopia e incidir na realidade.
67
68
Parece-me que não é possível pensar a
cidade como uma casa. Nesse sentido, te-
nho dificuldade em reconhecer, nas análises
apresentadas, a presença da cidade e a sua
importância na obra de Vilanova Artigas.
Não me parece suficiente afirmar que o de-
sencantamento com os processos de moder-
nização explicaria uma atitude que poderia
ser compreendida a partir da ideia de que,
se o mundo me frustra, eu me recolho na
minha obra e na minha obra eu constituo,
isolado do mundo, a modernidade ou a cida-
de que eu desejaria que existisse. No prédio
da FAUUSP, essa posição se traduziria nos
planos livres, na convivência, nos trânsitos e
em encontros possibilitados por um projeto
que nega a cidade ou o exterior. Essa lógica
AS VIRTUALIDADES DO MORAR ARTIGAS E A METRÓPOLE

estaria, de alguma forma, também presente


nos projetos de muitas de suas casas.
Assim, mediante uma negação radical da
cidade, o arquiteto, reafirmando o seu talen-
to e a sua capacidade criativa, inventa um
espaço que não pretende nem transformar
nem incidir sobre a cidade. Pensando no
tema desta mesa, parece-me que talvez este-
jamos pedindo da obra do arquiteto, não do
seu pensamento, mais do que efetivamente
ela é capaz de nos oferecer. •
CIDADE NA CIDADE NA CIDADE NA CIDADE NA C
OBRA DE OBRA DE OBRA DE OBRA DE O
VILANOVA VILANOVA VILANOVA VILANOVA V
ARTIGAS ARTIGAS ARTIGAS ARTIGAS A

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OBRA DE OBRA DE OBRA DE OBRA DE
VILANOVA VILANOVA VILANOVA VILANOVA V
ARTIGAS ARTIGAS ARTIGAS ARTIGAS A
Mesa dedicada ao
debate sobre as
dimensões sociais
do espaço do morar
como fundamento da
organização urbana
e social no processo
de metropolização
de São Paulo.
MESA 2
O MORAR E A JOÃO MASAO GUILHERME LEANDRO MÔNICA
CIDADE NA KAMITA A CASA WISNIK MEDRANO JUNQUEIRA
OBRA DE COMO “ATITUDE POR UMA HABITAÇÃO DE CAMARGO
VILANOVA CRÍTICA” URBANIZAÇÃO SERIADA NA DEBATE
ARTIGAS DA VIDA GRANDE CIDADE
DOMÉSTICA
74

A arquitetura moderna depositou na cé- como ideologia. O módulo industrial vis-


lula habitacional a base do urbanismo. Esta to pela ideologia da arquitetura moderna
seria um módulo abstrato que poderia ser como liberatório, para Artigas, não passa de
replicado tornando-se habitação coletiva. assimilação da metodologia do projeto às
Num processo exponencial, casas associadas necessidades da produção, ou seja, o ideário
se converteriam em quadras, e estas forma- moderno cooptado pelo sistema produtivo
riam bairros, e assim, progressivamente, transformou suas legítimas aspirações de
tudo tenderia para o desenho total da cidade felicidade e beleza em expressões do poder
moderna. O fundamento dessa estratégia é a dominante. Daí a afirmação contundente
estética do elementarismo (tal como o neo- de que “a arquitetura moderna, tal a conhe-
plasticismo e o construtivismo russo), que cemos, é arma de opressão, arma da classe
reduz o confuso a condições de inteligibilida- dominante, uma arma de opressores contra
de por meio da decantação química daquilo oprimidos” (VILANOVA ARTIGAS, 2004).
que é misturado até atingir a forma pura e Não obstante, a alta temperatura dos de-
elementar, alcançando condição irredutível. bates da época, sobretudo no contexto do
O procedimento classificatório e redutivo é pós-guerra, da ameaça do “Imperialismo” e
típico das metodologias cientificistas e fun- da Guerra Fria, a contestação dos altos ideais
cionalistas, a partir do qual se poderia con- da arquitetura moderna era sintoma de sua
ceber e praticar uma nova e redimida com- própria crise, da impossibilidade do idea-
binatória de elementos, motivados agora por lismo manter-se imune e confiante de que
princípios de racionalidade. Essencialismo suas soluções de desenho sejam suficientes.
(mito da pureza e da essência interna) e Se Artigas foi sempre um projetista-cons-
evolucionismo (desenvolvimento progres- trutor nato, portanto ligado aos processos
sivo e intelegível) subsumem as práticas de construtivos, também como pensador dialéti-
vanguarda. A célula elementar é o módulo co seu raciocínio crítico incidia sobre as con-
básico para a construção do conjunto urba- dições da ação e transformação do mundo.
no, o que resulta, segundo Tafuri (1985, pp. Do mesmo modo que não concebe a ação da
71-72), numa configuração espacial perfor- arquitetura desligada da materialidade eco-
mada por volumes puros e vazios funcionais. nômica e social, igualmente procura situar as
A célula elementar é igualmente a base do condições locais no campo mais geral do de-
sistema de produção na medida em que é senvolvimento do capitalismo internacional.
resultante da montagem de componentes re- É no projeto da casa Olga Baeta, de 1956,
produtíveis. Como tal, independem do lugar que esses dilemas começam a ganhar ex-
e da situação específica em que deverão se pressividade. Ela atualiza a revisão crítica do
inserir. Daí o corolário de que o planejamen- movimento moderno na forma da poética
to da produção é o planejamento da cidade. do brutalismo, porém numa versão de to-
No célebre artigo de 1952, “Caminhos nalidade regionalista – a citação da casa de
da Arquitetura Moderna”, Vilanova Artigas madeira do Paraná na empena de concreto
faz uma violenta crítica ao planejamento – e expõe sua recusa à forma de organização
75

do espaço brasileiro ao bloquear a continui- O conceito de habitar moderno, distin-


dade e transparência entre interior e exterior. tamente, pressupõe a superação das contra-
Com tudo isso, Artigas não poderia dições pelo desenho, pelo reequilíbrio entre
acatar a tese moderna da “célula habita- natureza e artifício, ou pela reestruturação
cional” como fundamento para a reconfi- técnica da produção, seja a solução formal
guração da cidade. Módulo, serialidade e de Le Corbusier, a transformação orgânica
abstração são contestados e a arquitetura de Wright, ou a metodologia do design da
retoma a sua condição unitária de cons- Bauhaus. O regresso da utopia no século
trução com densidade física e social. XX é forte e estabelecido na crença de que
Em seus projetos residenciais, Artigas se poderia chegar a uma solução para o caos
faz questão de denominá-las “Casas”. urbano e industrial e assim resolver as desi-
Para o arquiteto é a Casa e não habita- gualdades sociais inerentes ao capitalismo.
ção como módulo urbanístico. Muito Na realidade, a ânsia por soluções fina-
menos o genérico “residência”. listas, que resolvem as contradições entre as
Não apenas como insistência na língua forças produtivas e as relações de produção
nacional – como ocorrera com o termo “de- com soluções exclusivamente estéticas, não
senho” como correspondente à design (ensaio perfazem outra coisa que “falsas promes-
de 1967) – ou seja, como atitude polêmica de sas”, não poderiam ser cumpridas, logo não
defesa da cultura nacional contra a penetração passam de embustes ideológicos. O plane-
do imperialismo americano (conf. Arquitetura
e Cultura Nacional), mas “Casa” como aquilo
que se conserva como uma singularidade
concreta, realidade material na qual hábitos e
convenções sociais estão implicados, na qual
a imagem primordial de abrigo se conserva,
KAMITA A CASA
COMO “ATITUDE
JOÃO MASAO

na qual sobretudo como aquilo que não se


separa do lugar em que se encontra. A aten-
ção do arquiteto é a casa histórica, a morada
CRÍTICA”

brasileira, não tanto para recuperá-la nostal-


gicamente, mas apenas para compreender seu
processamento, suas contradições internas.
Ou seja, pode ser entendida como um
campo de forças contraditórias, de forças
progressivas que procura emancipar todo e
qualquer traço de patriarcalismo, que quer
liberar o espaço de hierarquias e conven-
ções morais, que busca superar tipologias
classicistas ou as normas da privacidade
burguesa em favor da morada democrática.
76 AS VIRTUALIDADES DO MORAR ARTIGAS E A METRÓPOLE

jamento, portanto, não passa de puro artifí- rentes de leis mecânicas ou metafísicas. Daí
cio ideológico para dar a impressão de que o materialismo dialético estar na origem do
“alguma coisa está sendo feita”, mas que na materialismo histórico, isto é, da compreen-
verdade serve apenas para ocultar as verda- são da história pelo desenvolvimento das
deiras causas da desigualdade e da segregação forças produtivas e do modo de produção.
sociais. Essas são algumas das conclusões A visão de história aí implicada conside-
do célebre artigo “Caminhos da Arquitetura ra que não há como isolar nos fenômenos
Moderna” (VILANOVA ARTIGAS, 2004). as tendências opostas, decantá-las, enfim,
Se as posições de 1952 pareciam demasiada- uma vez que as contradições se condicio-
mente radicais e sectárias, à luz das análises nam mutualmente. Não há como separar
críticas que Manfredo Tafuri desenvolveu capital e trabalho, na medida mesmo em que
no final dos anos 1960, percebe-se o movi- constituem o cerne da contradição fundan-
mento crítico de Artigas ao, naquele mo- te do capitalismo e a base para a diferença
mento, colocar em questão as aspirações do de classes entre burguesia e proletariado.
planejamento e da ideologia modernos. Assim, a análise dos fenômenos não pode
Segundo Tafuri, o arquiteto, de produtor se dar apenas por uma via, sem considerar
de objetos torna-se planejador do futu- os focos de resistência e oposição. A visada
ro, ou, mais precisamente, propositor de estética deve se justapor à consideração po-
modelos de organização (TAFURI, 1985, lítica e econômica para que o domínio do
p. 74), mas mantém sua crença humanis- conhecimento humano se dê sem prejuízos.
ta de permanecer imune e neutro frente à Um esboço de método se anuncia: para
luta política. Sob condições de laboratório ressaltar a singularidade de um fenômeno,
– Le Corbusier –, ou de pura abstração – é necessário que os aspectos contraditó-
Hilbeseimer – para pensar e desenvolver rios que lhe são inerentes sejam expostos
soluções para a cidade moderna, não passa no seu conjunto para justamente revelar
de assumir a condição de total generalida- sua interdependência. Só assim se pode ter
de e, assim, pretender validade universal. a compreensão do processo histórico em
Na definição marxista, a contradição é curso e, assim, flagrar o momento presente
o núcleo da dialética, aquilo que, enquanto do desenvolvimento de um fenômeno.
força material (não idealista – esta supõe a Uma diferenciação estabelecida pelo
existência de forças exteriores como agentes próprio Artigas a respeito de sua rela-
da produção do existente), produz desen- ção com outro artista comunista – Oscar
volvimentos, mudanças, transformações. Niemeyer –, ajuda a esclarecer a questão:
A tese materialista dialética afirma que o
desenvolvimento dos fenômenos é deter- Oscar e eu temos as mesmas preocupações e
minado pela tensão das contradições inter- encontramos os mesmos problemas... mas enquanto
nas, ou seja, estas são constitutivas de todo ele sempre se esforça para resolver as contradições
o fenômeno. São internas porque sociais, numa síntese harmoniosa, eu as exponho clara-
historicamente determinadas, e não decor- mente. Em minha opinião, o papel do arquiteto
JOÃO MASAO KAMITA A CASA COMO “ATITUDE CRÍTICA” 77

não consiste numa acomodação: não se deve cobrir O grande mérito de Vilanova Artigas foi
com uma máscara elegante as lutas existentes, é nunca ter aberto mão da linguagem da arqui-
preciso revela-las sem temor. (NIEMEYER apud tetura. Seu célebre texto sobre “O desenho”,
BRUAND, 1999, pp. 300-302, grifo nosso) de 1967, num contexto político dos mais
adversos, é prova cabal de sua consciência
Para um artista de esquerda, as tensões da autonomia do fazer arquitetura, o que de
poéticas da arte se entrelaçam à dimensão modo algum comprometeria a função social
política para, assim, realizar, enfim, a tensão do arquiteto, muito pelo contrário, só a real-
dialética entre interioridade e exterioridade. çaria. O desenho na concepção de Artigas
Artigas tem plena consciência de que se por seria aquilo que conecta o homem ao mundo
um lado a arquitetura é uma arte autôno- através do fazer, um trabalho humano que é
ma, por outro é arte com finalidade; sua tanto dominação da natureza, quanto fazer
realização depende de uma ampla cadeia de história conforme seus desígnios. Na conclu-
produção e, por consequência, encontra- são do texto, o arquiteto assim se expressa:
-se constrangida por um campo de forças
político e ideológico, na medida em que Como se viu, ninguém desenha pelo desenho.
se apresente como fato cultural e social. Para construir igrejas há que tê-las na mente, em pro-
a arquitetura A importância de Artigas foi ter ampliado jeto. Parodiando Blateau, agrada-me interpelar-vos,
soviética o campo de alcance da arquitetura para além particularmente aos mais jovens, os que ingressam
não fez isso?
de seu domínio disciplinar, sem, contudo, hoje em nossa Escola: que catedrais tendes no pensa-
reduzi-la a mero comentário de teses socio- mento? Aqui aprendereis a construí-las duas vezes:
lógicas. O viés ideológico e crítico de textos aprendereis da nova técnica e ajudareis na criação
e projetos de modo algum significava que se de novos símbolos. Uma síntese que só ela é criação
criara uma relação hierárquica, de subordina- (VILANOVA ARTIGAS, 1997, p. 136, grifo nosso)
ção, entre o estético e o social, como se fossem
instâncias externas um ao outro. Artigas Gostaria aqui de ensaiar a hipótese de
percebeu com grande agudeza e de modo que Artigas teria compreendido a lingua-
inédito a tensão dialética entre arquitetura e gem naquele sentido que Theodor Adorno
sociedade no contexto da arquitetura moder- definiu em sua famosa “Conferência so-
na no Brasil, e isso vem, como é conhecido, de bre a Lírica e Sociedade”, de 1965.
seu engajamento político. Contudo, entendeu
também que arquitetura como arte é expres- O paradoxo específico da formação lírica, a
são lírica, poética, domínio de uma indivi- subjetividade que se transforma em objetividade,
dualidade contundente. O realismo socialista prende-se àquela primazia da configuração da
seria, por mais surpreendente que pudesse ser, linguagem na lírica, de que procede o primado da
o exato oposto dessa posição, na medida em linguagem na poesia propriamente, até a forma de
que arte e sociedade, indivíduo e coletividade, prosa. Pois a própria linguagem é de dupla nature-
encontravam-se sob o jugo do social, o que za. Mediante suas configurações ela corresponde
justificaria e explicaria a arte pela sociedade. totalmente às motivações subjetivas; falta pouco
para se poder pensar que a linguagem, propria-
78 AS VIRTUALIDADES DO MORAR ARTIGAS E A METRÓPOLE

mente as realiza. Entretanto, ela, por outro lado,


permanece como o meio dos conceitos, aquilo que
estabelece a referência necessária ao universal e à
sociedade. As mais altas formações líricas, por-
tanto, são aquelas em que o sujeito, sem resto de
matéria pura, soa na linguagem, até que a própria
linguagem se faça ouvir... desse modo a linguagem
mediatiza, da forma mais íntima, lírica e socie-
dade. (ADORNO, 1975, p. 206, grifos nossos)

A linguagem teria essa capacidade media-


dora e ao mesmo tempo força de expressão
– seria mesmo capaz de, simultaneamente,
falar de algo e falar de si mesma, revelar a
presença do artista na obra de arte e abrir-
-se e apreender o que lhe é exterior. E não
há como esperar uma possível conciliação
ou mesmo uma perfeita identidade entre
indivíduo e sociedade (essa talvez tenha
sido uma das limitações das vanguardas ar-
tísticas modernas de cunho construtivista,
incluindo-se naturalmente o racionalismo
arquitetônico), pois o verdadeiro conteúdo
e a verdadeira função social da obra de arte
é justamente compreender a arte como o lu-
gar por excelência da evidência das tensões
sociais e de sua necessidade de superação.
Tal consciência da linguagem como drama
lírico entre interior e exterior evidencia-se
nas declarações que o arquiteto proferiu no
final de sua longa carreira, por ocasião do
concurso para professor da FAUUSP, jus-
tamente ao responder à arguição de Flavio
Motta sobre a famosa coluna da faculdade. A
questão era a expressão de forças contrárias
– peso e suspensão – no ponto de apoio que
Artigas, pelo desenho, dá a forma de uma
conjunção entre dois triângulos invertidos,
um plano, outro um volume piramidal. A
JOÃO MASAO KAMITA A CASA COMO “ATITUDE CRÍTICA” 79

Casa Baeta
São Paulo-SP
1956
Foto: Nelson Kon
80 AS VIRTUALIDADES DO MORAR ARTIGAS E A METRÓPOLE

tal colisão física o arquiteto atribui a cono- começa pelas casas da firma construtora em
tação de um encontro poético, recorrendo sociedade com Marone, segue pelas casas
à metáfora musical extraída de Auguste do F. L. Wright das praire houses, passa sob a
Perret: o cantar dos pontos de apoio. influência do racionalismo de Le Corbusier
e pela leitura regionalista carioca e, ao fim e
(...) o que o arquiteto (Perret) diz é “Não tenho ao cabo, à fase que definiria o encontro de
nada a ver com a força da gravidade, é um obstáculo uma personalidade própria, de um dialeto
absurdo, que a ideia, o pensamento e a sensibilidade pessoal após tantas línguas experimentadas.
podem negar dialeticamente”. E negam-no cantando! Se tais fases podem até ter alguma utili-
Quanto a mim, confesso-lhes que procuro o valor dade didática, muita coisa há para se pensar
da força da gravidade, não pelos processos de fazer e sobre a qual indagar. Gostaria aqui de me
coisas fininhas, uma atrás das outras, de modo que o deter no modo de conjugação do vocabulário
leve seja leve por ser leve. O que me encanta é fazer racionalista e na transformação operada para
formas pesadas e chegar perto da terra e, dialetica- a arquitetura das formas da “atitude crítica”.
mente, negá-las. (VILANOVA ARTIGAS, 1989, p. 72) Artigas passa pelo vocabulário e pela
sintaxe moderna, em destaque pelas articu-
Assim, é unicamente pela reafirmação lações formais de Le Corbusier, mas opera
da linguagem da arquitetura que as ten- gradativamente transformações e especifi-
sões sociais se materializam na forma dos cações críticas até alcançar o seu partido.
espaços e das estruturas. Se a casa assume O ponto de inflexão localiza-se nas Casas
uma forma reativa à cidade, nada mais faz Baeta e Tacques Bittencourt (1956 e 1959),
do que ecoar nessa espécie de “solipsismo” no qual se verifica uma enfática rearticulação
voluntário numa sociedade que valoriza o entre arquitetura e construção, com a reapro-
individualismo e a propriedade privada; se ximação entre arte e técnica. A rigor não se
inversamente anseia a construção de uma tratava de um movimento localizado, uma
espacialidade interna como se fosse um vez que a estética do brutalismo internacional
lócus coletivo, nada mais faz do que acu- operava em direção similar. O que, a princípio,
sar a segregação dos espaços da cidade. pareceria um passo atrás, ou seja, o retorno
A questão da linguagem, portanto, à matéria e a técnicas artesanais, nas quais o
merece consideração para se fechar a concreto aparente simbolizaria o gesto síntese,
equação dialética, pois se arte e política ou uma demonstração de virtuosismo técnico
não se encontrarem na linguagem arqui- e narcisístico (vide crítica de Sergio Ferro)
tetônica, a obra de arte pode se tornar no limite de um expressionismo formal, na
mero apêndice de posições ideológicas. interpretação de Artigas, conforme explicita
• em “Uma falsa crise”, de 1965, significava,
O centenário de nascimento de Vilanova ao contrário, reinvindicação de autonomia:
Artigas impõe uma avaliação sobre o sen-
tido e a importância de uma trajetória. A É preciso não confundir, em qualquer análise do
periodização comumente aceita diz que tudo movimento, a técnica da construção, cujo domínio
JOÃO MASAO KAMITA A CASA COMO “ATITUDE CRÍTICA” 81

pela arquitetura é potencialmente possível, com a téc- forma clássica implicava não apenas operar
nica em geral, cuja necessidade de comando, na lin- distorções na morfologia da figura humana,
guagem dos pioneiros, não nos comovia com os mes- mas, sobretudo, provocar a disjunção de seu
mos overtones. (VILANOVA ARTIGAS, 2004, p. 105,) princípio construtivo, ou seja, do código
geral que definia a figura no espaço. A linha
Sinal claro de que o arquiteto desen- de contorno que garantia a unidade da forma
volvia uma “atitude crítica” para com o se rompe e isso leva à contaminação entre
primeiro funcionalismo que nutria espe- figura e fundo. Os acentos de claro e escuro
rança em humanizar a técnica em geral. que também davam sensação de relevo se
É preciso, contudo, esclarecer com maior desconectam da fonte de luz e aparecem ten-
rigor essa sintonização entre arquitetura sionando áreas fora da lógica de uma e única
e construção para além da “estereotipada” fonte de luz. Nesse processo, a disjunção
exposição dos materiais in natura. A meu cubista opera a liberação da linha da ideia
ver, o brutalismo é um momento de síntese. de contorno, as manchas assinalam campos
Para compreender essa passagem, vale uma de vibração luminosa, e a profundidade se
breve comparação com uma das passagens contrai e se confunde com o plano frontal.
fundamentais da arte moderna: a transição A liberação dos elementos plásticos impõe
do cubismo analítico para o sintético. O um novo princípio construtivo da forma e
momento analítico supõe a decodificação do do espaço – a forma da montagem –, na qual
sistema de representação clássico, cuja vigên- figuras genéricas, ou se se quiser, abstratas,
cia fora tão longa que sua aceitação se dava não têm significação prévia nem lugar a prio-
naturalmente, como verdade indiscutível. O ri determinado. Antes, dependem da função
modo de representar forma e espaço se dava que devem cumprir no sistema plástico.
de maneira automática. Linhas, figuras, tons O paralelo em arquitetura pode ser ob-
lançados no plano de projeção logo faziam servado na formulação de Le Corbusier
surgir e realçavam a contraposição entre for- para os cinco pontos da nova arquitetura,
mas cheias, sólidas, portanto, presentes con- verdadeira operação analítica de disjunção
tra o vazio. O quanto este vazio se propagava, que rompe a unidade orgânica da forma
se aprofundava, era medido por relações de clássica, em que desenho, construção e es-
proporcionalidade entre o sujeito que via e as paço formavam uma mesma entidade em
coisas representadas conforme se afastavam. dependência mútua. A independência da
O cubismo compreendeu que se trata- estrutura da vedação libera a planta e a facha-
va não do modo natural de representar a da. O que antes formava um conglomerado,
realidade, e sim de um sistema histórico agora abre-se para novas possibilidades de
de representação com regras e hierarquias arranjos formais, espaciais e construtivos.
precisas e lógicas. Desfazer essa sistemática A fase sintética começa justamente com
e explicitar sua condição de artificialidade esse grau de consciência e aquilo que fora
foi o passo inicial do cubismo analítico. O analiticamente depurado; agora pode ser
árduo e gradativo processo de ruptura com a experimentado em livres arranjos, confi-
82 AS VIRTUALIDADES DO MORAR ARTIGAS E A METRÓPOLE

gurações e acentos. Na pintura, a cor pode berado, converte-se em área de participação


finalmente se liberar dos tons ocre e cinza da social e continua pelos pisos do interior,
fase analítica, encontrar novo acordo com a como na paradigmática FAUUSP. Esse seria,
linha autônoma, já que ambos se conjugam a meu ver, o grande legado de Wright sobre
na superfície planar. Na arquitetura, não se a poética de Artigas; a liberação espacial do
faz mais obrigatório seguir a cartilha dos 5 chão dos limites da construção, não exclusiva
pontos, estes podem se fundir ou mesmo como liberação do solo urbano convertido
encontrar uma nova hierarquia e ênfase. No em jardim, como em Le Corbusier, mas térreo como
espaço de
caso de Artigas (algo semelhante poderia tal- como espaço de interação e sociabilidade, daí interação e
vez se dizer de Niemeyer), a síntese acontece a definição sempre de um núcleo espacial de sociabilidade
por procedimentos de fusão ou condensação, solidariedade de onde o espaço se expandiria.
fazendo com que um mesmo raciocínio arti- O primeiro gesto, enfim, desse partido,
cule, de modo simultâneo, volume, estrutura se dá pelo modo como se define a implan-
e planta livre. Enquanto na fase analítica era tação do edifício no lote, o que quer dizer
possível decompor os elementos de lingua- que o lote não é um vazio neutro à espera da
gem de modo a perceber sua articulação obra, antes, pelo contrário, é produto de uma
sintática, na fase sintética a ênfase desloca-se lógica de mercado que rege o uso do solo,
das questões linguísticas para a unidade da logo, campo de forças atuante que é preciso
experiência fenomenológica do espaço. atacar. Transformá-lo é a primeira tarefa
O ponto decisivo para a definição do imposta: de área privativa a espaço comum.
partido de Artigas, a meu ver, encontra-se Contudo, a suspensão da arquitetura
na “desleitura criativa” da genial invenção de deixa de ser exclusivamente a do volume
Le Corbusier: a suspensão da arquitetura em como unidade prévia para se tornar a sus-
relação ao solo. Para Artigas, a realização des- pensão da cobertura.1 Esta não mais se
se desejo requer o voo da imaginação, o en- apõe às paredes, antes se ergue, de modo
genho da técnica, e a consciência de que não que, com um único gesto, define a espacia-
se vence a força da gravidade sem ação física. lidade do todo. Vemos isso nas extraordi-
Ou seja, não há como escapar da realidade nárias escolas projetadas pelo arquiteto.
da construção em favor de uma forma ideal O que se evidencia é uma mudança
(essa seria justamente a alternativa assumi- estética – ao atribuir força material aos
da por Oscar Niemeyer). O peso não é algo elementos da arquitetura –, tetos, paredes,
que possa ser apagado em favor da graça. apoios, instalações: ele estaria promoven-
Se a definição do bloco suspenso deriva do uma reaproximação brutalista entre
do partido corbusieriano, dele se distingue a linguagem da arquitetura moderna, de
quando o volume se veda para o exterior. A origem abstrata, e as formas da construção.
janela em fita é negada em favor das abertu- Assim como a edificação não se separa do
ras na cobertura. Assim, o teto jardim se vê lote, a arquitetura se vincula à construção.
excluído. O seu contraponto, o piso térreo, Paredes perdem condição de entes
ao contrário de ser um apenas um chão li- abstratos – o caráter de puros planos lu-
JOÃO MASAO KAMITA A CASA COMO “ATITUDE CRÍTICA” 83

Casa Mário Taques


Bittencout
São Paulo-SP
1959
Foto: Nelson Kon
84 AS VIRTUALIDADES DO MORAR ARTIGAS E A METRÓPOLE

minosos –, ganhando evidência física e ambientes e usos, precisa investir também


matérica. Deixam de ser entre desencar- nos pontos de ligação. Estes deixam de ser
nados – formas ideais –, por isso despren- meras conexões mecânicas (funcionais), para
dem-se da conotação idealizante associada se tornarem efetivos fatores de continuidade
à forma da geometria. Embora claramente espacial (rampas, pátios, acessos, mezaninos).
geométricos, os projetos não idealizam O programa é uma demanda social, ou um
a geometria como ordem a priori. padrão tal como demonstrou John Summerson,
Assim, embora cúbico, aparecem como faz parte do campo histórico de necessidades
volumes unitários, mas sem o debate entre dos homens em sociedade. A implantação regu-
linhas geratrizes e diretrizes a definir as re- la a mediação entre o arranjo urbano e a exclu-
lações entre parte e todo, logo sem se valer sividade do espaço privado, mediação regulada
de estruturas de proporcionalidades. Com por diversos imperativos (morais, econômicos,
os fechamentos tornando-se rijos e opacos, o culturais). Ambos, no entanto, apesar de deter-
volume se retrai em relação ao exterior, assi- minações exteriores, se convertem em domínio
nalando um explícito desacordo. Mas a esse disciplinar, portanto, internos à autonomia do
movimento se contrapõe a sua elevação de projeto, convertem-se na língua da arquitetura.
modo a liberar o chão. Em síntese, o volume A arquitetura de Artigas se nutre e se vitaliza
se fecha, o espaço interno se dilata e o chão da interação entre programa e espacialidade.
se libera, e a tensão se estabelece entre dois A introspecção da arquitetura assinala uma
movimentos opostos: contenção e liberação. ruptura entre exterioridade e interioridade,
O debate ensejado pela arquitetura de um limite irreconciliável entre essas duas
Artigas se concentra fundamentalmente em dimensões. Se o interior ganha conotações
torno de dois eixos do processo projetual: o de espacialidade coletiva, se o exterior é a
programa e a implantação. E a razão é que realidade do privado – contradição básica do
se tratam de itens que forçam a arquitetura subdesenvolvimento brasileiro –, essa con-
ao debate com aquilo que não é exclusi- tradição não pode ser apagada, muito menos
vo ao seu campo disciplinar autônomo. resolvida exclusivamente com a arquitetura.
Voltando ao exemplo das casas, é pos- Esta deixa de ser uma modalidade de retórica
sível perceber, com relação ao programa, metafórica de uma sociedade renovada pelo
que o partido tradicional é recusado com desenho, e torna-se agente de propagação de
sua planta hierarquizada e classicista. Se consciência histórica. Enfim, “atitude crítica”. •
o espaço do trabalho doméstico, antes re-
cluso, agora se põe em continuidade com
o espaço social, em contraponto o espaço
de trabalho – estúdio ou biblioteca – ga-
nha importância, bem como a área social
se converte em campo de convergência.
Mas essa regenerada espacialidade, para
evitar a estanqueidade e o isolamento dos
JOÃO MASAO KAMITA A CASA COMO “ATITUDE CRÍTICA” 85

Edifício Louveira
São Paulo-SP
1946
Foto: Nelson Kon
86 AS VIRTUALIDADES DO MORAR ARTIGAS E A METRÓPOLE

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Vilanova Artigas, Instituto Lina Bo e P.M. Niemeyer, mas, neste, interior e exterior se dão
Bardi, 1997. na continuidade da superfície (na afecção da
TAFURI, Manfredo. Projecto e utopia. curvatura sem fim), enquanto que em Artigas a
Lisboa: Editorial Presença, 1985. diferença se agudiza.
90

A nova casa paulista “posição crítica”, naquele contexto, não signi-


No início dos anos 1950, a carreira de ficava abandonar a carreira, nem tampouco
Vilanova Artigas havia chegado a um impasse. defender de modo proselitista as correntes
Tendo renegado os exemplos de Frank Lloyd ligadas à estética popular ou colonial, como
Wright e Le Corbusier, seus antigos mestres, sendo traduções locais de uma arte/arquite-
em nome de um verdadeiro engajamento po- tura nacional e socialmente comprometida
lítico e social, e, ao mesmo tempo, se decep- (ver VILANOVA ARTIGAS, 2004b, pp. 163-
cionado com o realismo socialista soviético, 164). Tentando manter uma possível lucidez
Artigas parecia não encontrar caminhos para dentro do métier, Artigas adota uma posição
a prática da profissão de arquiteto naquele ruminante de espera e maturação. Uma visão
momento. Muito a propósito, seu texto mais crítica recuada, que afinal preparará o grande
polêmico e combativo, publicado em 1952 na salto autoral de sua obra subsequente. Obra
revista Fundamentos, lança a seguinte pergun- que inaugura e conduz a produção da chama-
ta: da “escola paulista” dos anos 1960.
A guinada decisiva em sua carreira ocorre
(...) onde ficamos? Ou: que fazer? Esperar por sobretudo através de obras residenciais e es-
uma nova sociedade e continuar fazendo o que faze- colares feitas em parceria com Carlos Cascaldi
mos, ou abandonar os misteres de arquiteto, já que entre 1956 e 60, e que culminam numa sequ-
eles se orientam numa direção hostil ao povo, e nos ência de projetos cruciais feitos em 1961, nos
lançarmos na luta revolucionária completamente? quais se incluem também alguns edifícios de
(VILANOVA ARTIGAS, 2004c, pp. 49-50) clubes recreativos, como veremos.
Seria preciso, no entanto, entender esse
Sua resposta, contudo, é inconclusiva: “É processo à luz da sempre importante relação
claro que precisamos lutar pelo futuro de entre arquitetura e política para Artigas. O
nosso povo, pelo progresso e pela nova so- que explicaria a repentina superação de tama-
ciedade” (VILANOVA ARTIGAS, 2004c, pp. nho impasse? Embora não haja uma explica-
49-50), afirma. ção unívoca, alguns fatores podem ser elen-
cados em apoio a essa reflexão. De um lado,
Mas é claro também que, enquanto a ligação entre a surpreendente denúncia de Kruschev aos
os arquitetos e as massas populares não se estabelecer, abusos do regime stalinista, somada à sua de-
não se organizar, enquanto a obra dos arquitetos não fesa pessoal de uma arquitetura mais voltada
tiver a suma glória de ser discutida nas fábricas e nas à eficiência tecnológica, tiveram grande im-
fazendas, não haverá arquitetura popular. Até lá… pacto sobre os artistas de orientação marxista
uma atitude crítica em face da realidade. (VILANOVA naquele momento, tais como Artigas. E, de
ARTIGAS, 2004c, pp. 49-50, grifo nosso). outro, o projeto de reeducação moral da bur-
guesia brasileira veio a se tornar um elemento
Em depoimento dado quase no final da importante do projeto político do PCB. Sendo
vida, o arquiteto afirma que essa conclusão assim, na interpretação do partido, o sujeito
ambígua foi o que o salvou. Pois tomar uma da transformação social do país não era ainda
91

o proletariado ou o campesinato, mas a bur- É importante notar que as grandes mudan-


guesia nacional, tida então como progressista. ças introduzidas por Vilanova Artigas em pro-
Seria preciso realizar primeiro a revolução de- jetos como os das casas Baeta (1956), Rubens
mocrático-burguesa no país, dizia o partido, e de Mendonça (1958), Taques Bittencourt
para tanto era vital a reeducação moral dessa (1959) e Ivo Viterito (1962), não se restringem
classe com vistas à consolidação de ideais mais ao plano formal. Antes de tudo, elas partem
coletivistas do que privativos, desdobrando-se de uma revisão da relação tradicional entre
em costumes mais ascéticos e despojados do programa doméstico e lote urbano em São
que superficiais e decorativos. O projeto da Paulo, herdeira tanto do modelo dos palacetes
casa burguesa assumia, portanto, contornos ecléticos da elite, quanto da acanhada tipo-
revolucionários. logia rural importada sem mediações para a

URBANIZAÇÃO
GUILHERME

DOMÉSTICA
POR UMA
WISNIK

DA VIDA

cidade. Desse modo, o arquiteto se propõe a ção sobre os limites do lote, absorvendo-o no
constituir um novo modelo residencial para a interior da casa, que ganha assim atributos de
classe média com um sentido verdadeiramen- paisagem construída.
te citadino, contestando a hierarquia entre a Nessas novas residências projetadas por
frente e o fundo da construção, e abolindo o Artigas, muitas vezes as áreas de convívio so-
longo corredor lateral que costumava levar o cial se deslocam para os fundos dos terrenos,
automóvel para uma garagem situada na parte ou então para pátios ao ar livre vazados em
de trás das casas, junto aos aposentos de ser- sua parte intermédia, enquanto programas
viço. Ao mesmo tempo, à medida que unifica considerados de serviço acabam voltando-se
toda a construção sob uma cobertura única, para a frente, isto é, para a antiga fachada
Artigas avança ao máximo possível a constru- principal. Ao negar de certa forma a realidade
92 AS VIRTUALIDADES DO MORAR ARTIGAS E A METRÓPOLE

contingente da cidade com suas empenas ce- as lutas existentes, é preciso revelá-las sem
gas voltadas para a rua, os projetos de Artigas temor” (BRUAND, 1981, p. 302).
passam a construir casas e escolas como se É possível identificar nessa incorporação
fossem cidades em si mesmas. Para tanto, o tensa do materialismo histórico, por Artigas,
arquiteto lança mão de materiais dotados de tanto o esforço interno de fundação de um
um caráter marcadamente urbano, ao mesmo ponto de vista autônomo em relação aos gran-
tempo em que constrói espaços de circulação des centros mundiais, tendente à afirmação
tão generosos que se configuram também de uma soberania nacional, quanto o espelha-
como lugares de estar, ou passagens públicas. mento inevitável de um novo contexto inter-
Como é óbvio, essa reorientação de rumos nacional surgido no pós-guerra europeu, em
na obra de Artigas significou uma negação que a ideologia moderna fazia sua autocrítica.
tácita do otimismo implícito na sua fase “ca- O que se mostra tanto na fantasia tecnológica
rioca”, correspondente às obras que construiu das megaestruturas, que abandonavam as
em Londrina (1948-50). Pode-se dizer que o soluções pontuais para pensar as construções
que se arma, nesse momento, é praticamente como invólucros de múltiplos programas, in-
uma inversão daquele ideal anterior, caracte- cluindo-se as obras de infraestrutura urbana,
rizado pelo desenho dinâmico da cobertura, e quanto na angústia grave do brutalismo, que
por formas francamente exteriorizadas. Nessa colocava a nu a ingenuidade precedente de
superação do idealismo utópico moderno, há, uma visão neutra da técnica, como vimos.
segundo João Masao Kamita, uma percepção Há nesse momento, portanto, nas obras
da “premência do presente” como fator deter- de Artigas, uma forte entronização da crítica
minante (KAMITA, 2000, p. 23). Isto é, uma dialética na forma construída, fazendo com
compreensão nova da forma, vista agora como que esta deixe de ser entendida como volume
um campo de tensões, um arcabouço de rela- geométrico abstrato para ser pensada como
ções materiais em permanente conflito. Vem estrutura. Vem daí a necessidade de tornar vi-
daí a incorporação contundente da opacidade síveis as entranhas da construção, e de deixar
em suas obras, numa problematização explíci- à vista tanto a sua mecânica, “expressa na for-
ta, e até didática, da relação entre o interior e ma dos fluxos vetoriais que a atravessam (car-
o exterior do edifício. Ou, em outros termos, gas, empuxos, pesos, ventilação, iluminação,
entre indivíduo e sociedade. Comparando, movimento das águas)”, quanto as “marcas do
certa vez, a sua atitude projetual à de Oscar seu ciclo produtivo pela utilização franca dos
Niemeyer, Artigas declarou o seguinte: “Oscar materiais e pelos sinais dos processos de exe-
e eu temos as mesmas preocupações e encon- cução” (KAMITA, 2000, p. 34).
tramos os mesmos problemas”, mas “enquanto Percebe-se, assim, que o seu raciocínio vai
ele sempre se esforça para resolver as contra- na direção de se estabelecer uma identidade
dições numa síntese harmoniosa, eu as expo- fundamental entre a estrutura espacial e a es-
nho claramente. Em minha opinião, o papel trutura portante, caminho que se mostra claro
do arquiteto não consiste numa acomodação; pela primeira vez na casa Taques Bittencourt
não se deve cobrir com uma máscara elegante (1959), cuja configuração se torna o princípio
GUILHERME WISNIK POR UMA URBANIZAÇÃO DA VIDA DOMÉSTICA 93

do partido que Artigas adotará em seguida colégios de Itanhaém (1959) e de Guarulhos


nas soluções de grande porte, como as escolas (1960), que, ao lado de suas casas, viriam a se
e clubes, e que pode ser resumido da seguinte tornar referências fundamentais para a reo-
maneira: o uso de pórticos estruturais, ram- rientação de rumos da arquitetura paulista.
pas, jogos de pisos defasados em meios níveis Dada a importância estratégica dessas
e pés-direitos variáveis, e a criação de um obras, cuja escala permitia a criação de um
vazio central iluminante que incorpora uma novo modelo construtivo e pedagógico para o
natureza controlada. Assim, na casa Taques estado, era preciso alcançar uma forte unidade
Bittencourt, enquanto o terreno se movimen- de conjunto entre os projetos, voltada para
ta, replicando-se no movimento diagonal dos uma ênfase na tecnologia construtiva capaz
apoios, a continuidade espacial é garantida de alavancar o desenvolvimento industrial do
pela extensão abarcadora da grande cobertura país. Daí a sua opção radical pelo concreto
uniforme, bem como pela repetição serial do armado, cuja indústria encontrava-se bem
sistema estrutural. Desse modo, enquanto o avançada no Brasil, parecendo descortinar,
exterior do edifício se reduz a uma volume- naquele momento, promissoras promessas de
tria simples, a um invólucro rígido, o espaço pré-fabricação, protensão etc. Vem dessa cir-
interno se torna complexo e fluido, criando cunstância a primeira percepção palpável de
uma relação de certa indeterminação ativa uma “escola paulista”: a reunião de um grupo
entre os ambientes. Ambiguidade fundamen- afirmando em uníssono as mesmas ideias com
tal para a riqueza espacial desse modelo, e vistas à criação de uma clara política para a
que é uma característica essencial do prédio área. Pois, como deixou claro Paulo Mendes
da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da da Rocha, “a necessidade de uma unidade
Universidade de São Paulo (FAUUSP). sobre o problema da escola” terminou por
constituir “um verdadeiro grupo de trabalho
Escolas e clubes e de troca de informações”, fazendo com que
Em 1958, o governo do estado de São os projetos resultantes revelassem “um notável
Paulo criou um “plano de ação” para suprir avanço geral, na prática profissional no nosso
em pouco tempo a enorme carência de equi- meio” (ROCHA, 1970, p. 35).
pamentos escolares no estado, tendo chegado No colégio de Itanhaém, à semelhança do
a construir efetivamente mais de 600 novas que havia feito na casa Taques Bittencourt, do
unidades entre 1959 e 62. Foi por essa ocasião mesmo ano, Artigas agrupa todo o programa
extraordinária que os arquitetos sediados em sob uma grande cobertura, e unifica o sistema
São Paulo receberam, pela primeira vez, en- construtivo pelo uso de pórticos estruturais
comendas públicas relevantes, diferentemente seriais em formatos angulosos que se afinam
do que acontecia no Rio de Janeiro, onde em direção ao chão, o que sinaliza uma apro-
desde os anos 30 a arquitetura moderna lá se ximação de Artigas à vertente mais constru-
havia estabelecido e frutificado sob o forte tiva da arquitetura carioca – notadamente a
patrocínio estatal. Vilanova Artigas projetou exemplos como o Museu de Arte Moderna
dois importantes edifícios desse conjunto: os (1953), de Reidy, e a fábrica da Duchen
94 AS VIRTUALIDADES DO MORAR ARTIGAS E A METRÓPOLE

(1950), de Niemeyer. Aproximação esta que já do conjunto, congregando os seus usuários.


se delineava no seu elogio exaltado à famosa Porém, enquanto em Itanhaém o edifício é
autocrítica feita por Niemeyer em 1958, em térreo e o seu pátio aberto, em Guarulhos
que este se propunha renunciar à “tendência a construção se desenvolve em três níveis,
excessiva para a originalidade” em nome da aproveitando o declive do terreno. E o pátio,
valorização da estrutura na definição plástica situado no plano intermediário, é coberto por
do edifício (NIEMEYER, 1958). domos translúcidos.
Nos colégios de Itanhaém e Guarulhos, no Em 1961, Artigas realiza três projetos
entanto, Artigas reduz ao máximo os pés-di- extraordinários para centros recreativos: as
reitos dos cômodos com o objetivo de evitar a instalações de vestiários do São Paulo Futebol
monumentalidade e aproximar a construção Clube, que incluem áreas como restaurante,
do solo. Com isso, refuta a propalada leveza administração e quadras, a sede do Anhembi
da arquitetura carioca em favor da explicita- Tênis Clube, e a Garagem de Barcos do Iate
ção do peso, do componente telúrico da cons- Clube Santa Paula, nas margens da repre-
trução, ou até, se quisermos, do materialismo sa de Guarapiranga. Nos três, percebe-se a
social por oposição ao idealismo utópico. E grande maturação de um raciocínio que faz
ainda de modo mais evidente em Guarulhos, coincidir forma e estrutura de grande porte,
a esgarçada horizontalidade da construção transformando os seus elementos construtivos
problematiza a leitura externa da forma do em peças escultóricas. É interessante notar o
edifício. Isso reduz mais uma vez a importân- movimento complementar que se dá, nesses
cia das fachadas em favor da riqueza interna projetos, entre a grande simplificação dos es-
dos espaços, construídos menos por obstru- paços e sistemas de circulação, por um lado, e
ções verticais do que por meios níveis, taludes a complexificação – quase barroca – do dese-
e bancadas, capazes de manter a sua fluidez nho dos apoios, por outro. Esse processo pas-
contínua, donde se percebe a persistência de sa pelo edifício da FAU e culmina na Estação
uma matriz mais wrightiana do que corbusia- Rodoviária de Jaú (1973), cujos pilares citam
na no cerne da intuição projetual de Artigas, explicitamente as nervuras góticas.
ultrapassando a fase inicial de sua carreira e Tanto no Vestiário do São Paulo quanto
alcançando a sua obra madura de modo me- no clube Anhembi, um sistema dinâmico de
nos literal, porém essencial. módulos triangulares usados na composição
Com esses dois projetos, o arquiteto das grandes peças de sustentação tensiona a
combate a tipologia fragmentada do modelo estrutura, revelando através da sua forma os
escolar que vigorava até então em São Paulo, esforços a que estão submetidas. Ao mesmo
e separava os espaços de convivência coletiva tempo, a redução da fachada do Vestiário a
em blocos anexos ou em áreas de piso térreo uma enorme viga-empena linear quase solta
sob pilotis. Em contraposição a isso, o seu do chão – a maior parte dos apoios foi recua-
partido opta por organizar a escola em torno da e pintada de preto – dá uma função repre-
a um pátio comum de convivência, que ganha sentativa (fachada) a um elemento meramente
atributos de uma generosa “praça central” técnico (viga), de modo semelhante ao que o
GUILHERME WISNIK POR UMA URBANIZAÇÃO DA VIDA DOMÉSTICA 95

Foto anterior e
abaixo:
Rodoviária de Jaú
Jaú-SP
arquiteto fará depois na casa Mendes André 1973
(1966), considerada carinhosamente por ele Foto: Nelson Kon
uma “viga habitável”.
Aparece também nesse edifício do
Vestiário um outro tema caro à poética cons-
trutiva de Artigas: o bloco de fundação que
aflora do solo para receber, sem a transição
do pilar, a enorme viga de concreto. Uma
poética certamente partilhada com o mestre
de Taliesin, de inspiração marcadamente
anticlássica. Essa ideia da “coluna sem fuste”,
96 AS VIRTUALIDADES DO MORAR ARTIGAS E A METRÓPOLE

que promove o encontro direto da base (ou rais em seus edifícios –, no caso de Artigas a
fundação) com o capitel, também orienta o noção materialista de conflito é determinante,
sugestivo desenho dos pilares da FAU, e che- mesmo quando mobiliza entidades cosmoló-
ga à sua essencialidade tectônica no singelo gicas como o céu e a terra, isto é, o imperativo
edifício da Garagem de Barcos, onde a grande telúrico e a promessa de transcendência.
cobertura de concreto pousa diretamente nos Bem à propósito, ao responder à arguição de
muros de arrimo de pedra, articulando-se a Flávio Motta em sua banca no concurso para
eles por atrito, e construindo uma topografia Professor Titular na FAUUSP, em 1984, o ar-
coberta e comprimida. Vale lembrar que esse quiteto observa o seguinte:
projeto constitui, certamente, um preceden-
te fundamental para a solução do Pavilhão procuro o valor da força da gravidade, não pelos
Brasileiro para a Expo’70 em Osaka (1969), processos de fazer coisas fininhas, uma atrás das
em que Paulo Mendes da Rocha recria, através outras, de modo que o leve seja leve por ser leve. O
de terraplenos que apoiam a cobertura ilumi- que me encanta é usar formas pesadas e chegar perto
nante, a monumentalidade de uma geografia da terra e, dialeticamente, negá-las. (VILANOVA
original. ARTIGAS, 2004a, p. 225)
Ao saber que receberia o prêmio Auguste
Perret, conferido pela UIA em 1985, Artigas Guerrilha estética
não deixa de associar esse reconhecimento à O golpe militar de 1964 impõe grandes
famosa máxima do arquiteto francês, tanto dificuldades pessoais ao arquiteto. Depois de
prezada por ele: “l’architecture c’est l’art de faire ficar preso por 12 dias, Artigas foge para o
chanter le point d’appui”. E declara: Uruguai, onde permanece exilado em torno
de um ano. Na volta, sob inquérito, vive por
é como se eu tivesse deixado uma marca da atitu- algum tempo na clandestinidade. Como é fácil
de que sempre me comoveu, que é colocar a obra na imaginar, produz muito pouco nesse período.
paisagem, com um certo respeito pela maneira como Contudo, mesmo nessa incômoda condição
ela ‘senta’ no chão; como ela se equilibra, se exprime de “arquiteto-presidiário”, realiza uma obra de
através da leveza, a marca dessa dialética entre o fazer forte expressividade, cujas características des-
e a dificuldade de realizar. (VILANOVA ARTIGAS, toam do conjunto, e, por isso, marcam a sua
2004d, p. 181) carreira. Refiro-me à casa Elza Berquó (1967),
na qual Artigas organiza a planta em torno
Aqui, a referência à dialética entre o fazer de um pátio interno de desenho irregular, e
e a dificuldade de realizar define muito bem o decide apoiar a laje de cobertura sobre qua-
ímpeto agonístico de sua obra, bem como de tro troncos de árvore. Surpreendentemente
sua visão de mundo. Diferentemente de Oscar iconoclasta, essa solução é qualificada por ele
Niemeyer, para quem o marxismo é uma como “sarcástica”, “irônica” e “meio pop”, por-
filosofia política completamente desligada de que feita com a intenção deliberada de mos-
sua atividade profissional – daí a recorrente trar que, naquela ocasião, “essa técnica toda,
sublimação da matéria e dos esforços estrutu- de concreto armado, que fez essa magnífica
GUILHERME WISNIK POR UMA URBANIZAÇÃO DA VIDA DOMÉSTICA 97

arquitetura”, não passava “de uma tolice irre- sempre severa, quase puritana” (BARDI, 1950,
mediável em face de todas as condições po- grifo nosso).
líticas que se vivia” (VILANOVA ARTIGAS, Chegado aqui, seria interessante relacionar
2004a, p. 211). esse projeto revolucionário da casa paulista
Como mostra Pedro Fiori Arantes, a dúvi- – ao qual podemos acrescentar outras referên-
da de Artigas espelha a perplexidade do PCB cias marcantes, como as residências que Paulo
diante do golpe, que fora afinal apoiado pela Mendes da Rocha fez para si mesmo (1964) e
burguesia nacional, fato que deixava sem sen- para Fernando Millan (1970) –, com as ações
tido o projeto ideológico da “casa burguesa”, transgressivas e contemporâneas de artistas
tal como formulado antes (ver ARANTES, plásticos que fizeram trabalhos ambientais,
2002, pp. 40-42). Sua dúvida, no entanto, como Lygia Clark e, sobretudo, Hélio Oiticica.
é momentânea. Mais uma vez em concor- Em 1969, Oiticica realizou uma grande retros-
dância com a visão do partido, os textos e pectiva na galeria Whitechapel, em Londres,
projetos que Artigas faz em seguida, durante constituída por instalações vivenciais que
os chamados “anos de chumbo” da ditadura, podiam ser habitadas pelos visitantes, logran-
revelam uma aposta renovada no avanço das do domesticizar o espaço público. Ali, as “ca-
forças produtivas nacionais como motor do mas-bólide”, e os “penetráveis” com chão de
crescimento econômico e, consequentemente, espuma, cobertas-saco e telas de náilon, onde
de democratização social, mesmo que a longo se podia deitar após pisar descalço campos
prazo. Tal crença é que está na base do projeto de areia, feno e água, serviam como módulos
para o grande conjunto habitacional de baixa experimentais para a construção de “espaços-
renda CECAP Zezinho Magalhães Prado -casa”, como dizia o artista, figurando a ideia
(1967), cuja escala tornava possível imaginar intimista e libertária de um “novo mundo-la-
que a demanda gerada pelo projeto seria zer” (OITICICA, 1986, pp. 115-116).
capaz de impulsionar a indústria de pré-fa- Talvez uma das marcas mais notáveis dessa
bricados de concreto em São Paulo, o que na geração de artistas brasileiros que emergiram
prática não ocorreu. do neoconcretismo e passaram a fazer traba-
Suas obras residenciais, nesse momento, lhos ambientais tenha sido a proposição de
investem-se de profunda negatividade. É o um curto-circuito entre as esferas pública e
caso, sobretudo, das residências Telmo Porto privada, trazendo a público de forma osten-
(1968) e Martirani (1969), em que a áspera siva experiências radicais de subjetividade.
clausura se torna sombria, denunciando um É o que declara, por exemplo, Vito Acconci,
ponto-limite do seu projeto de urbanizar a quando admite a importância que o trabalho
vida doméstica. Para esses exemplos, encai- de Oiticica teve no meio de arte underground
xa-se muito bem a caracterização dúbia feita norte-americana na virada dos anos 1960 para
muito antes por Lina Bo Bardi. “Uma casa os 70, depois que os seus “Ninhos” instalados
construída por Artigas não segue as leis di- no MoMA permitiram o desenvolvimento de
tadas pela vida de rotina do homem”, diz ela, prolongadas vivências íntimas em espaço pú-
“mas lhe impõe uma lei vital, uma moral que é blico.2 Conta-se, inclusive, que na visita guiada
98 AS VIRTUALIDADES DO MORAR ARTIGAS E A METRÓPOLE

da família Rockefeller à exposição um casal


foi surpreendido fazendo sexo no interior de
uma das celas, o que Oiticica veio a classificar
como o máximo em termos de participação
do público na obra de arte (ver OITICICA,
2009, p. 271).
Do ponto de vista cronológico, esses tra-
balhos de Hélio coincidem com as casas mais
radicais de Artigas e Paulo Mendes da Rocha,
não por acaso o momento de maior tensão
social e política no país, situado ao redor do
AI-5. Momento esse em que nossa melhor
produção artística e arquitetônica radicaliza a
sua negatividade experimental, combinando a
guerrilha política a uma espécie de guerrilha
estética. À primeira vista, essa comparação
direta entre os grandes paradigmas artísticos
e arquitetônicos do Brasil na época, revela um
claro antagonismo de princípios, baseado na
oposição binária entre categorias tais como
coletividade e intimidade, aspereza e acolhi-
mento, indústria e artesanato, trabalho e lazer,
puritanismo e hedonismo etc. Oposição que
espelha um grande afastamento intelectual
entre arte e arquitetura no país, numa etapa
seguinte à inauguração de Brasília, que tinha
se apresentado ao mundo sob o signo ecumê-
nico de uma “síntese das artes”.3 Ao longo dos
anos 1960, enquanto a corrente dominante sementes duradouras na Escola Politécnica.
Como se
da arquitetura se manteve atrelada ao projeto Hoje, do ponto de vista do discurso, pode-se
radicalizou?
nacional-desenvolvimentista do período an- dizer que o seu conteúdo moral constituiu um Exemplos?
terior, as demais artes adotaram em geral as difícil obstáculo para a atualização crítica das Como isso se
linhas da contracultura, formulando imagens gerações seguintes, formadas por essa tradi- relaciona com a
pesquisa?
mais sincréticas do país. ção. Por outro lado, do ponto de vista espacial,
O forte recalque da intimidade nas casas esse modelo atingiu uma radicalidade tal que
paulistas é fruto de uma combinação ímpar fez com que ele persistisse no tempo, e pu-
entre a militância comunista de Artigas e o desse ainda alimentar a produção dos jovens
positivismo que regeu uma corrente expressi- arquitetos que hoje se formam em São Paulo e
va da arquitetura moderna, deixando também no Brasil como um todo.
GUILHERME WISNIK POR UMA URBANIZAÇÃO DA VIDA DOMÉSTICA 99

Casa Elza Berquó


São Paulo-SP
1967
Foto: Nelson Kon
100 AS VIRTUALIDADES DO MORAR ARTIGAS E A METRÓPOLE

Com efeito, voltando aos exemplos do


final dos anos 1960 e início dos 70, se de um
lado os arquitetos buscavam transformar ca-
sas em espaços públicos, reduzindo ao limite
sua condição doméstica, de outro os artistas
plásticos construíam células vivenciais que
subjetivariam o espaço público. Eis aí uma
curiosa inversão, e, ao mesmo tempo, penso
eu, uma significativa contribuição da arte bra-
sileira (arquitetura incluída, evidentemente)
ao mundo. Ações transgressivas que forçaram
os limites clássicos da fronteira entre público
e privado, vindas justamente de um país em
que, muito a propósito, a esfera pública parece
nunca ter se constituído plenamente como um
valor social afirmado (ver WISNIK, 2012).
Pode parecer curioso, mas se olharmos
para os amplos espaços internos da FAU, com
seu jogo ativo de planos soltos e defasados,
opacos e o transparentes, e estruturadores
de um sistema de circulação contínua, pode-
mos pensar também nos Núcleos (1960-63)
de Hélio Oiticica: ambientes formados pela
explosão do suporte bidimensional, e, con-
sequentemente, pela autonomia dos planos
cromáticos, suspensos no ar. Com grande
intuição artística, apesar de discursos dis-
tintos, ambos formularam um espaço novo,
mais generoso e democrático. Um ambiente
que recusa o caráter fortemente determinado
por limites e convenções a priori, e se abre ao
condicionamento intersubjetivo dos múltiplos
usuários, onde, como dizia Artigas a respei-
to da FAU, “todas as atividades são lícitas”
(FERRAZ et al, 1997, p. 101). •
GUILHERME WISNIK POR UMA URBANIZAÇÃO DA VIDA DOMÉSTICA 101

Casa Elza Berquó


São Paulo-SP
1967
Foto: Nelson Kon
102 AS VIRTUALIDADES DO MORAR ARTIGAS E A METRÓPOLE

Referências bibliográficas arquitetura. São Paulo: Cosac Naify, 2004a.


ARANTES, Pedro Fiori. Arquitetura nova: ______. As posições dos anos 50 –
Sérgio Ferro, Flávio Império e Rodrigo entrevista a Aracy Amaral (1980). In: LIRA,
Lefèvre, de Artigas aos mutirões. São Paulo: José Tavares Correia de; ARTIGAS, Rosa
Editora 34, 2002. (Orgs.). Caminhos da arquitetura. São Paulo:
BARDI, Lina Bo. Casas de Vilanova Cosac Naify, 2004b.
Artigas. Habitat, São Paulo, n. 1, out./dez., ______. Caminhos da arquitetura
1950. moderna (1952). In: LIRA, José Tavares
BRAGA, Paula. Conceitualismo e vivência. Correia de; ARTIGAS, Rosa (Orgs.).
In: BRAGA, Paula (Org.). Fios soltos: a arte Caminhos da arquitetura. São Paulo: Cosac
de Hélio Oiticica. São Paulo: Perspectiva, Naify, 2004c.
2008. ______. Tradição e ruptura (1984). In:
BRUAND, Yves. Arquitetura LIRA, José Tavares Correia de; ARTIGAS,
contemporânea no Brasil. São Paulo: Rosa (Orgs.). Caminhos da arquitetura. São
Perspectiva, 1981. Paulo: Cosac Naify, 2004d.
FERRAZ, Marcelo Carvalho; PUNTONI, WISNIK, Guilherme. Public space on the
Álvaro; PIRONDI, Ciro; LATORRACA, run: brazilian art and architecture at the end
Giancarlo; ARTIGAS, Rosa (Orgs.). Vilanova of the 1960’s. Third text, Londres, vol. 26, n. 1,
Artigas. Série Arquitetos Brasileiros. São jan., 2012, pp. 117-129.
Paulo: Fundação Vilanova Artigas, Instituto ______. Vilanova Artigas y la dialéctica
Lina Bo e P.M. Bardi, 1997. de los esfuerzos. 2G: revista internacional de
KAMITA, João Masao. Vilanova Artigas: arquitectura, Barcelona: Gustavo Gili, n. 54:
a política das formas poéticas. São Paulo: João Vilanova Artigas, 2010, pp. 11-25.
Cosac Naify, 2000.
NIEMEYER, Oscar. Depoimento. Módulo,
Rio de Janeiro, n. 9, fev. 1958, pp. 3-6.
OITICICA, Hélio. A última entrevista
(1980). In: OITICICA FILHO, César (Org.). Hélio Notas
Oiticica. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 1
Este texto é uma adaptação do ensaio
2009. “Vilanova Artigas y la dialéctica de los
OITICICA, Hélio. Aspiro ao grande labirinto. esfuerzos” (WISNIK, 2010).
Rio de Janeiro: Rocco, 1986. 2
O depoimento de Vito Acconci está no filme
ROCHA, Paulo Mendes da. Edifícios “Héliophonia” (2002), de Marcos Bonisso, e
escolares: comentários. Acrópole, São aparece citado em BRAGA (2008, p. 268).
Paulo, n. 377, set., 1970, p. 35. 3
Segundo o grande crítico Mário Pedrosa,
VILANOVA ARTIGAS, João Batista. A que organizou o Congresso Internacional
função social do arquiteto – quarta arguição Extraordinário de Críticos de Arte em 1959, na
(1984). In: LIRA, José Tavares Correia cidade ainda em construção, e escreveu os
de; ARTIGAS, Rosa (Orgs.). Caminhos da principais textos sobre o projeto da cidade.
106

A moldura, limite definido de uma formação por que a disciplina enfrentava naquele momen-
retroceder sobre si mesma, possui para o grupo so- to — quando o desgaste dos fundamentos da
cial um significado muito semelhante àquele que tem Arquitetura Moderna já era evidente e as for-
para uma obra de arte. Nesta, a moldura exerce as mulações ditas pós-modernas ainda pouco
duas funções que, na verdade, apenas são dois lados compreendidas.
de uma só: isolar a obra de arte do mundo circun- Nas pesquisas realizadas para o livro
dante e encerrá-la em si mesma. A moldura anuncia “Vilanova Artigas. Habitação e cidade na
que em seu interior se encontra um mundo sujeito Modernização Brasileira” (MEDRANO;
apenas às suas próprias normas, não envolvido nas RECAMÁN, 2013), duas questões nos pa-
determinações e movimentos do mundo circundan- receram fundamentais na obra do arquiteto:
te. (SIMMEL, 2013/ 1903, p. 79) em primeiro lugar, sua capacidade de com-
por um repertório de soluções formais e
1. espaciais que influenciaria várias gerações, o
Este ensaio pretende contribuir com o que não foi comum à moderna arquitetura
debate sobre a obra do arquiteto Vilanova brasileira; em segundo, suas relações com o
Artigas e seus projetos de grande escala, de desenvolvimento urbano da cidade de São
escala urbana, realizados sobretudo nos anos Paulo, que no momento mais profícuo de sua
1960 e 1970. Procurar-se-á compreender obra crescia intensamente, a reboque de sua
suas formulações teóricas à luz das tensões peculiar industrialização tardia. Buscava-se
107

GRANDE CIDADE
SERIADA NA
MEDRANO
HABITAÇÃO
LEANDRO

na articulação dessas questões – a cidade e timadas pelo clima pós-crítico que


a disciplina arquitetônica – revelar a singu- marcara o ciclo social, econômico e
laridade e a complexidade do trabalho desse cultural posterior à queda do muro
arquiteto exemplar, por meio de uma minu- de Berlim. Também as expressões
ciosa análise de suas obras, em contraste com redentoras de uma suposta moder-
suas ideias, as dinâmicas sociais da época e nidade inconclusa, formuladas a
sua permanência como modelo contempo- partir de alguns textos do filósofo e
râneo. Nesse sentido, os constantes entraves sociólogo Jürgen Habermas ou de
que seus projetos suscitavam com “as tradi- desejos diversos – ideológicos ou
ções” da disciplina – sincrônicos e diacrôni- utópicos – não faziam sentido, visto
cos com suas essências históricas e teóricas que a dimensão crítica do objeto
– levaram à revisão dos métodos e conceitos em análise já havia superado esse
utilizados na pesquisa. A crítica às arquite- dilema peculiar dos anos 1980 e
turas decorrentes do Movimento Moderno, 1990. Essas formulações e suas de-
além de desgastadas e autonomizadas em corrências, muitas delas centradas
pleno século XXI, não pareciam suficientes em espectros ou virtualidades e não
quando consideradas suas decorrências nas na realidade da obra, não resolviam
ambiências onde a euforia neoliberal dos as questões colocadas pela pesquisa,
anos 1990 decantou obras voluptuosas, legi- que eram urbanas e sociais, pois
108 AS VIRTUALIDADES DO MORAR ARTIGAS E A METRÓPOLE

pretendia-se compreender a dimensão de te no prodigioso ambiente acadêmico da


sua obra diante dos conflitos disciplinares da Universidade de São Paulo, naqueles tempos
época – e assim estender esses conflitos às de sua consolidação como uma das maiores
suas decorrências contemporâneas. universidades do Brasil e da América Latina.
Qual seria a cidade de Artigas? Uma E o alcance de sua obra só pode ser compre-
questão difícil de compreender diante do endido nesse sentido, como consequência de
movimento de “implosão” que identifica- quem ensina e pesquisa, e procura transfor-
mos na análise de suas obras. O urbano se mar a prática em conhecimento generalizável
expressava como retórica – ou o seu avesso – em teoria. Compreender o sentido urbano
–, a cidade era a casa e não o contrário. Um dessa teoria foi o desafio pretendido em pes-
habitat sem o habitar, nos termos lefebvria- quisas anteriores, nas em andamento, e nesta
nos (LEFEBVRE, 2001). Nesse contexto, minha fala neste seminário que comemora o
optou-se por identificar os processos teóricos seu centenário.
em jogo mediante a análise das suas obras e Assim, a relação da obra do arquiteto
de suas interfaces com os embates conceitu- Vilanova Artigas com a cidade será o ponto
ais que ocorriam no âmbito da modernidade de partida dessa minha apresentação. Como
nacional e estrangeira – contemporâneos ou também foi o ponto de partida do livro lan-
não aos períodos em que foram projetados. çado em 2014, quando, para falar das casas,
Pois a evolução de sua obra, desde a casinha foi referida a máxima albertiana da relação
até chegar a seus legados mais emblemáti- entre a casa e a cidade no Renascimento: “A
cos, como o CECAP ou a FAUUSP, revela cidade é uma casa. A casa é uma cidade”.
uma trajetória que surpreende por não ser Mas de que cidade estamos falando? E
restrita à evolução histórica das formas de qual é essa arquitetura que se pretende cida-
seus projetos, como era comum a muitos de?
arquitetos do período, mas por seus vínculos Trata-se da grande cidade, da metrópole.
com um ideário conceitual constantemente De uma Grande São Paulo em plena expan-
atualizado. Artigas partilhava sua prática são industrial, cuja abrupta transformação
profissional, como sabemos, com seus ideais em sua fisicalidade se daria em simultaneida-
políticos e sociais; mas também suas pre- de com a transformação de sua sensibilidade
missas projetuais, ou seu processo de projeto social, e da própria vida do espírito.
estavam em diálogo com os debates internos
à disciplina, que compreendia desde a revi- 2.
são dos arquétipos canônicos da moderna Entre os anos 1950 e 1970, a cidade de
arquitetura brasileira até o diálogo sincrônico São Paulo já havia se distanciado dos seus
com autores que representavam a vanguarda vínculos com os tempos de vila e expande
da crítica internacional, como Manfredo sua mancha urbana, muito rapidamente, sob
Tafuri e Giulio Carlo Argan. Não por acaso, a égide do capitalismo industrial – em sua
Artigas, além de arquiteto praticante, foi um versão desigual e combinada – naquele mo-
professor e intelectual respeitado e influen- mento em difusão nos países periféricos. Seu
LEANDRO MEDRANO HABITAÇÃO SERIADA NA GRANDE CIDADE INDUSTRIAL 109

crescimento pode parecer excêntrico em re- CACCIARI, 2004; LEFEBVRE, 2001) – e


lação a outras cidades nacionais, mas seguia passa e ser um “mal”, um problema geral,
uma lógica econômica muito bem alinhada um efeito colateral do capitalismo industrial.
com as demandas dos países desenvolvidos, Demais, o crescimento demográfico poste-
que dependiam de novos ciclos produtivos rior aos anos 1950, alavancado por grandes
acertados com os países periféricos – estra- ondas migratórias em busca de empregos
tégicos ao capitalismo em fase que antecede e melhores condições de vida, provocou o
a globalização da economia (FURTADO, espalhamento disforme e pouco eficiente
1978). da cidade, o que acentuou seus problemas
Com altas taxas de crescimento popu- relacionados às tecnicidades cotidianas e a
lacional, São Paulo vivia um momento de segregação geral do território. Tudo em con-
explosão demográfica sem precedentes no texto acirrado pelas relações patrimonialistas
Brasil, decorrente de sua rápida industria- que incidiam, de modo decisivo, nas resolu-
lização tardia que acelerava os processos de ções práticas ou políticas em curso (FAORO,
urbanização de seu território, supostamente 2001). O Estado e a nova burguesia urbana se
em processo de modernização. Poderíamos ajustavam em prol da manutenção dos es-
presumir que o atraso de mais de um século quemas de privilégios que modelaram as re-
desta Revolução Industrial local, em relação lações sociais e econômicas do Brasil arcaico
ao seu movimento original, permitiria avan- e rural. E os problemas urbanos decorrentes
ços nas práticas urbanas – já consolidadas do processo de industrialização não foram
pela expertise desenvolvida pela nova dis- priorizados nessa equação que é perversa,
ciplina em exercício desde o século XIX, o principalmente para os mais pobres, que não
urbanismo. Entretanto, tal qual ocorrera nos podem substituir “a cidade” (a obra coletiva
países do centro-europeu, os instrumentos e social) pelos prazeres “da casa” (o recinto
urbanos disponíveis não foram suficientes privado, que no Brasil se confunde com a
para controlar as consequências do avanço própria república).
da indústria e das práticas capitalistas que fez Nesse sentido, as periferias da grande São
do espaço-cidade mercadoria. Em São Paulo, Paulo foram ocupadas desordenadamente e
não se identifica nem o desenho planejado de sem infraestrutura adequada, conformando
uma estética urbana de tradição idealizada, uma versão peculiar de spraw city norte-a-
nem a eficiência técnica das infraestrutu- mericano – com todos os problemas do espa-
ras projetadas para organizar o território lhamento, como a dificuldade de locomoção
por estratégias do mercado (que, no caso, e a segregação, sem os supostos benefícios
foram mediadas por acordos espúrios que da casa-jardim, da habitação que aceitava a
acentuavam o processo de transformação do metrópole por estar mediada pelo campo em
território em puro valor de troca). A cidade versão simulada (a casa no jardim idílico,
não se torna “obra” – um saber e um bem a família em seu núcleo moral, o sistema
construído coletivamente, assentado pela econômico vinculado à propriedade). Ao
cultura e pela história (e.g. ARGAN, 2005; contrário dessa ilusão da casa-no-lote rode-
110 AS VIRTUALIDADES DO MORAR ARTIGAS E A METRÓPOLE

ada pela natureza, a periferia de São Paulo é Wirth (WIRTH, 1938) ou mesmo de Max
urbanização desenvolvimentista intensificada Weber (WEBER, 1966), que transformasse os
pela precariedade e sedimentada pela segre- modos de vida da tradição (o rural, o arcaico,
gação. Por outro lado, o centro e os bairros o patronal) por meio de novas sínteses decor-
ocupados pela elite burguesa buscavam aco- rentes da racionalização das práticas sociais,
modar-se nos arranjos “modernizadores” da políticas ou produtivas (a ruptura dos antigos
legislação urbana que atualizava suas diretri- estamentos).
zes de acordo com os instrumentos normati- Assim, é nesse período de avanços, expec-
vos que chegavam do exterior, sobretudo dos tativas e frustações que o arquiteto Vilanova
EUA, e que permitiram flexibilizar as bases Artigas elabora suas hipóteses e metodolo-
de uma cidade planejada em função da auto- gias urbanas e arquitetônicas. Trata-se de um
nomia do edifício (ou da casa) em sua parce- contexto peculiar, de país periférico singular,
la territorial. A relação entre a propriedade e no qual a cidade e a modernização de seu
o edifício (com seus recuos e gabaritos) de- sistema de produção concentravam as expec-
terminariam o novo desenho-livre das áreas tativas de uma transformação necessária e
legalmente urbanizadas de São Paulo. redentora – a base da construção de um país
Essa “autonomia do lote” se desenvolve moderno e novo.
dos bairros centrais à periferia, cada qual Contudo, os entraves herdados de seu
com sua lógica interna. O sistema já nasce passado colonial e as relações acordadas
colapsado, pois o urbanismo rodoviarista – entre as classes dominantes e o Estado
estratégia da técnica que daria suporte ao es- moderno em desenvolvimento não permi-
quema – não consegue superar os problemas tiram ao país – e à cidade de São Paulo – a
de mobilidade e de sociabilidade que surgem formação de uma ordem social competitiva,
em compasso com avanço do processo de como revela o sociólogo Florestan Fernandes
urbanização. A violência e a segregação são em a “A Revolução Burguesa no Brasil”
exemplos dessas mazelas em contraste com (FERNANDES, 1975). Para Fernandes as
as possibilidades estéticas das arquiteturas ordens hierárquicas do Brasil rural foram
que aceitam o limite do lote como o seu instrumentadas para o aparato burocrático
infinito possível. O resultado é um sistema das forças do Estado – o que manteve os
urbano assentado entre esse limite possível esquemas de privilégios patronais pretéritos
e o caos. Não há cidade ou urbanidade. Ou ao desenvolvimento urbano e industrial das
seja, a Cidade como esfera de socialização, cidades brasileiras. Portanto, o Brasil in-
de convergências, de ideias, de conflitos – o dustrializado e urbano não resultou na sua
lugar da filosofia, da ciência e das revoluções modernização, como também as estruturas
–, não prosperou no ambiente político, social urbanas e sociais de suas cidades (ulteriores
e econômico da São Paulo da primeira me- e posteriores à industrialização) não produ-
tade do século XX. Também por aqui não se ziram os espaços adequados para tal transfor-
pode ver o desenvolvimento de uma urba- mação. Em termos lefebvrianos, poderíamos
nidade “ecológica”, como nas teses de Louis dizer que não alcançamos a Cidade – obra
LEANDRO MEDRANO HABITAÇÃO SERIADA NA GRANDE CIDADE INDUSTRIAL 111

Anterior e acima:
Conjunto Habitacional
Zezinho Magalhães
Prado, CECAP
Guarulhos-SP
1967
Foto: Nelson Kon
112 AS VIRTUALIDADES DO MORAR ARTIGAS E A METRÓPOLE

coletiva –, e nem a urbanidade, como virtua- com os arquitetos Paulo Mendes da Rocha e
lidade de uma forma social correspondente à Fábio Penteado. A solução proposta previa a
uma forma urbana (LEFEBVRE, 2001). ordenação de “edifícios bloco”, agrupados de
• modo a formar núcleos de vizinhança (cha-
Vilanova Artigas, como professor e in- mados de freguesias pelos autores do projeto)
telectual engajado, certamente percebeu os conectados a equipamentos comunitários,
entraves expostos no complexo processo de serviços e áreas de lazer. O desenho urbano
urbanização no qual a cidade de São Paulo seguia o esquema difundido pelas edições
se inseria: as soluções urbanas e arquitetô- mais influentes dos CIAMs, e os edifícios –
nicas que decorriam do âmago dos círculos Modernos em sua linguagem – destacavam-
uspianos deveriam ser exemplares, tanto -se pela tentativa de aproximar o desenho da
pela tecnicidade de sua proposta produtiva habitação coletiva das possibilidades técnicas
– novos materiais e processos –, como pela da indústria, sobretudo pela otimização do
urbanidade de suas soluções – espacialidades sistema construtivo e pela racionalização
e formas em acordo com uma ordem social dos seus espaços internos. O projeto cau-
transformada. Pois já se via uma cidade pre- sou celeuma à parte do meio acadêmico da
cária e fadada aos problemas da forma – da época, pois parecia reivindicar um modelo
incapacidade de elaborar uma interface prá- de urbanidade e ocupação territorial próxi-
tico-sensível adequada ao trato coletivo, ao ma aos ideais arquitetônicos e urbanos do
direito comum, às esferas públicas plenas, ao Movimento Moderno, naquele momento já
convívio amplo, diverso e estimulante espe- amplamente combalido pela crítica especiali-
rado por uma urbe moderna e original. zada. Se a linguagem moderna na arquitetura
Ademais, o contexto geral dos anos 1960, ainda permitia acenos com um ideal de pu-
singular tanto em relação às transformações reza estética simétrica à sua potência ideo-
no âmbito da cultura quanto aos avanços tec- lógica ou política, o mesmo não poderia ser
nológicos e científicos, foi ainda mais amplo dito em relação ao urbanismo desenvolvido
e estimulante que os avanços da cidade que pela vanguarda da disciplina na primeira era
“não podia parar”. da máquina. Destarte, quando a proposta foi
apresentada à FAUUSP, em evento registrado
por estudantes, o urbanista Candido Malta
3. Campos Filho arguiu:
Em 1967, nesse ambiente de uma São
Paulo Großstadt– uma metrópole que A observação que tenho a fazer é em relação à
concentrava parte dos grandes avanços concepção básica do plano. Me parece que o tipo de
da indústria nacional e, por conseguinte, urbanismo, como está formulado, que coloca a fre-
suas riquezas e seus conflitos estruturais – guesia como uma unidade bem definida e que coloca
Vilanova Artigas projeta uma de suas obras a zona comercial entre as freguesias, corresponde a
mais emblemáticas, o CECAP de Guarulhos um urbanismo que poderíamos chamar de tradicio-
(projeto de 1967), cuja autoria foi partilhada nal, isto é, corresponde ao que se fez em Brasília. Ao
LEANDRO MEDRANO HABITAÇÃO SERIADA NA GRANDE CIDADE INDUSTRIAL 113

meu ver, esse tipo de urbanismo está sofrendo hoje uma inovação envelhecida quando em com-
uma forte crítica do ponto de vista das implicações paração com o ambiente internacional de
que ele tem com a ordem social. A velocidade de neovanguardas, contracultura, experimenta-
mudança que se apresenta hoje nas sociedades mo- lismo tecnológico, e desdém hippie, que resul-
dernas, principalmente naquelas que estão se indus- tou em fenômenos arquitetônicos e culturais
trializando, me leva sempre a procurar um tipo de como o Ant Farm, Matta Clark, Superstudio,
organização do espaço físico que permita a absorção Archigram, Metabolistas, entre outros. Para
dessas transformações que são inevitáveis e também não falar nos que apostavam, naqueles anos,
desejáveis. Se nós queremos conceituar um urba- em um urbanismo contextual, amparado na
nismo que acompanha as tendências da sociedade, tradição histórica, nos valores locais e em
ele já teria que acompanhar as tendências de trans- processos políticos e projetuais bottom-up.
formação que estão aí. Se pensamos em urbanismo Ademais, entre o seu projeto e sua execução
progressista, que procura propor, eu acho que deve- (anos 1960 e 1970), Jane Jacobs, Aldo Rossi,
ria se acentuar ainda mais a ideia de transformação Christopher Alexander, Christian Norberg-
da sociedade. Ao meu ver o urbanismo que está Schulz, Colin Rowe, Robert Venturi, entre
consubstanciado neste projeto não tem a necessária outros, já haviam lançado suas principais te-
flexibilidade para permitir a transformação. Ele orias e manifestos, acertados com o urbanis-
procura constranger, mas constrange no sentido de mo chamado “culturalista” (CHOAY, 1979),
impedir a transformação, ou melhor, não chegará a que viriam por transformar definitivamente a
impedir porque as forças sociais não são limitáveis arquitetura e o urbanismo de todo o mundo.
ao espaço físico. Qualquer alteração que se processar Mas então qual seria a grande novidade
na organização das famílias, na organização social, proposta pelo CECAP?
e a prejudicar a concepção plástica do conjunto. Para a crítica local, o CECAP foi consi-
Qualquer ampliação de espaços, tanto horizontal derado uma experiência promissora, por
como vertical, colocará em cheque a posição formal aproximar a produção habitacional em
do projeto. (CAMPOS FILHO, 1972) grande escala com as técnicas industriais de
construção seriada – um objetivo há tempos
O que fora apresentado como uma inova- almejado pelos arquitetos engajados nas
ção em relação à ortodoxia do racionalismo novidades da disciplina. O esquema deveria
do entreguerras – as freguesias – realmente garantir a replicabilidade do modelo em lar-
pouco acrescentou ao conceito de superqua- ga escala, e assim definir um novo momento
dra, experimentado em Brasília, por exem- na política habitacional brasileira. Suas am-
plo. E a intenção de aproximar o desenho plas vigas pré-moldadas, a racionalidade dos
urbano de certas características “populares” e meios de circulação, a moderação dos planos
locais acentuou as contradições de um mode- compositivos e a engenhosidade dos uten-
lo situado entre a vanguarda e a tradição, que sílios domésticos projetados, confirmavam
não poderia acompanhar as modificações que seu desenho estaria por perseguir uma
estruturais desejadas a uma sociedade que se certa adequação tardia à modernidade. Uma
urbanizava. Nesse sentido, o CECAP parecia modernidade paulista original, comprome-
114 AS VIRTUALIDADES DO MORAR ARTIGAS E A METRÓPOLE

tida com o processo de industrialização que críticos e teóricos da disciplina. Ademais,


caracterizava a cidade e sua região metropo- esse ambiente de mudanças, certa rebeldia e
litana. Contudo, a mão de obra abundante e muitas controvérsias, tanto em relação aos
barata compunha um sistema econômico e novos temas que emergiam do pensamento
produtivo conveniente, que prevaleceria em crítico (pós-estruturalismo, e mesmo a pós-
relação à evolução das técnicas na construção -modernidade) quando no que diz respeito
civil, e não implicaria em grandes transfor- às práticas culturais e sociais, resultaram em
mações aos esquemas “desigual e combina- outros modelos e metodologias que somente
do” que distinguiam a sociedade brasileira. se consolidariam nas últimas décadas do
Nesse sentido, os ensaios técnicos feitos pelo século XX. Tais procedimentos disciplinares
CECAP pouco afetaram a produção habita- estariam alinhados pela percepção de uma
cional da época – o que tornou evidente os sabedoria histórica-disciplinar que deveria
impasses do capitalismo local, que permane- ser utilizada como instrumento de criação
cem até os dias atuais. Demais, o projeto de (como processo e método); ou mesmo o seu
Artigas e equipe teve que acertar contas com contrário: a radicalização do uso da tecnolo-
a própria disciplina arquitetônica, em um gia para a construção de novas possibilidades
período de amplas transformações. Naqueles espaciais no futuro que se seguia à “segunda
tempos, as tensões e contradições dadas era da máquina” (uma “tecnoutopia” radical).
entre os fundamentos ideológicos da mo- Nesse contexto peculiar, algo de velho e ob-
dernidade e sua versão arquitetônica, que já soleto parecia ecoar daquele grande conjunto
haviam sido questionados por autores como habitacional construído em terras pouco ur-
Meyer Schapiro nos anos 1930 e Manfredo banizadas da Grande São Paulo.
Tafuri nos anos 1960, acentuavam-se com a Ainda em relação às suas implicações no
formação da chamada sociedade de massas, âmbito dos saberes da disciplina, a própria
que introduziu novos temas ao ideário cultu- tecnicidade dessa experiência projetual sin-
ral moderno, como a indústria do consumo, gular reflete sua condição histórica específica
a televisão e a publicidade. Essa reviravolta – a de ser concebida nos tempos do regime
intensificada após a Segunda Grande Guerra, militar, que teria acentuado o atraso local,
chamada por alguns críticos por postutopian tanto pelas intenções da ditadura quanto pelo
turn (BOOKER, 2002; SCOTT, 2010), sina- isolamento cultural e científico decorrente
lizava que tanto a crítica quanto as práticas das restrições impostas às universidades e
disciplinares deveriam adequar-se a essa à indústria. Ou seja, o que foi apresentado
nova condição: pós-moderna. As contradi- como “avanço da técnica” naqueles anos, hoje
ções do capitalismo e do próprio racionalis- pode ser visto como um exercício deslocado
mo acentuava-se, e o debate que se seguiu dos saberes da própria técnica, pois seus pro-
pelos anos seguintes – por autores como cedimentos não se ajustavam aos da produ-
Frederic Jamenson, David Harvey, Gilles ção seriada em grande escala, e sua estética
Lipovetsky, Andreas Huysen, entre outros – conformava-se por compor linhas retas de
mudaram significativamente os parâmetros feições maquínicas, tal qual ocorrera na ori-
LEANDRO MEDRANO HABITAÇÃO SERIADA NA GRANDE CIDADE INDUSTRIAL 115

Abaixo e a próxima:
Faculdade de
Arquitetura e
Urbanismo, FAU USP
São Paulo-SP
1969
Foto: Nelson Kon
116 AS VIRTUALIDADES DO MORAR ARTIGAS E A METRÓPOLE

gem centro-europeia da Nova Arquitetura. no Richard Buckminster Fuller. As aspirações


Por certo, o Brasil dos anos 1970 não permi- funcionais das linhas retas, das estruturas se-
tiu tanta fluidez no pensamento sensível e riadas, do pilotis, dos espaços geometrizados
crítico como se viu seguir em outros países, etc., seguidos pelas ideias de Banham, não
e as contradições exaltadas centravam-se nos seriam suficientes para representar os avan-
entraves do sistema capitalista, com ênfase ços e as possibilidades de uma arquitetura
nos mecanismos de produção atrelados à engajada em reverter a inexorável pressão das
exploração da classe trabalhadora. A espera- forças produtivas e tecnológicas, e formular
da modernização da sociedade perdia-se nos alternativas para a vida em sociedade.
entraves de sua racionalização precária e pe- Também por essa via, vemos que as novi-
riférica, enquanto outros temas disciplinares dades técnicas do CECAP não funcionaram
eram tratados na busca por ajustar a arqui- no âmbito local ou mesmo na esfera disci-
tetura do século XX a seu próprio desenvol- plinar (internacional). A possibilidade de se
vimento. Apenas como exemplo, retomo as transformar em modelo parcelar disciplinar
teses de Reyner Banham sobre a relação entre esgotou-se em sua realização, dada a fragili-
a evolução dos meios produtivos – a máqui- dade da técnica e da teoria urbana apropria-
na versus o homem –, e sua repercussão na das.
sensibilidade estética e nas posições formais Por fim, ressalto que o diálogo entre as
da arquitetura. Em seu livro mais conhecido, propostas habitacionais de Artigas para a
“Teoria de design na primeira era da máqui- habitação coletiva seriada deparam-se com
na”, Banham (1980) procurou demonstrar uma cidade em explosão – na qual eviden-
como os grandes mestres da arquitetura mo- ciava-se a crise, a “crise das cidades”, con-
derna, como Walter Gropius e seus compa- forme procurei demostrar na primeira parte
nheiros da Bauhaus, utilizaram-se das técni- desta apresentação. Não se poderia esperar
cas da indústria para desenvolver um “novo apaziguamento nessa relação que surge pelo
estilo” – não necessariamente coerente com conflito. E a radicalização da forma e da pro-
o novo sistema produtivo e econômico que posta da equipe do professor Artigas, nesse
avançava por meio das técnicas mecanizadas caso, deve ser compreendida em seu hic et
de produção e gerenciamento de processos. nunc radicalmente intenso. Trata-se de uma
Uma operação linguística (semântica) e não pesquisa urbana e arquitetônica, com suas hi-
uma verdadeira “revolução” na disciplina, tal póteses claramente colocadas, e cujos resulta-
qual proclamado por alguns historiadores dos permitiram que a academia e a disciplina
que se dedicaram à arquitetura do século XX desenvolvessem novos saberes – por meio da
(como Nicolau Pevsner, seu orientador). Em crítica ou pelo aprendizado direto.
oposição a esse acordo formal e estilístico
com os métodos de produção da indústria, 4.
Banham propunha a radicalização da lingua- Se o CECAP pode parecer uma proposta
gem em decorrência das técnicas, tal qual se extemporânea em relação às buscas teóricas
via no grupo Archigram e no norte-america- e formais do autor de “O Desenho”, o mesmo
LEANDRO MEDRANO HABITAÇÃO SERIADA NA GRANDE CIDADE INDUSTRIAL 117

não pode ser dito de seu outro grande proje-


to dos anos 1960, o edifício da FAUUSP.
Na FAUUSP a extensa pesquisa desen-
volvida nos projetos de suas famosas casas e
escolas, utilizadas como ensaios para novas
possibilidades urbanas e sociais, chega ao seu
apogeu conceitual e formal. Se o isolamento
do corpo doméstico poderia ser justificado
pela privacidade desejada às relações coti-
dianas do habitat, o mesmo não deve ser dito
no caso de um edifício público dedicado à
pesquisa e ao ensino de temas arquitetônicos
e urbanos. A “fortaleza” de concreto cons-
truída no campus da USP acentua a possível
aversão de seu projetista à cidade capitalista
burguesa que se consolidara no decorrer do
século XX – cuja morfologia e sociedade
pouco assemelhavam-se aos ideais políticos
ou ideológicos que guiaram a trajetória polí-
tica e profissional do professor Artigas.
Com imagens atuais desse edifício exem-
plar recém restaurado, finalizo minha apre-
sentação.
Neste ensaio, a relação que procurei fazer
entre o desenvolvimento urbano da cidade
de São Paulo, o projeto do conjunto habita-
cional CECAP de Guarulhos e os conflitos da
disciplina, procura indicar que a cidade de
Artigas é o edifício da FAU, e não o CECAP.
Agora só nos resta saber se a FAU é cida-
de. Ou é casa. •
118 AS VIRTUALIDADES DO MORAR ARTIGAS E A METRÓPOLE

Referências bibliográficas WEBER, M. The city. Free Press, 1966.


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CAMPOS FILHO, Candido Malta.
Depoimento [1972]. São Paulo: Revista
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Grêmio Estudantil FAUUSP. Disponível em:
< http://fauinverso.blogspot.com.br/2007/01/
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CHOAY, F. L’Urbanisme: utopies et réalités.
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LEFEBVRE, H. O direito à cidade. São
Paulo: Centauro, 2001.
MEDRANO, L.; RECAMÁN, L.
Vilanova Artigas. Habitação e cidade na
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SIMMEL, G. Sociology of space. Estudos
Avançados, v. 27, n. 79, p. 75–112, jan. 2013.
122
Foto anterior:
Faculdade de
Arquitetura e
Urbanismo, FAU USP
São Paulo-SP
1969
Foto: Nelson Kon
O tema do seminário “As virtualidades do trabalho desse arquiteto desperta.
morar: Artigas e a metrópole” corrobora o A seção sobre o tema O morar e a cidade
protagonismo que o espaço doméstico tem na obra de Vilanova Artigas, que contou com
assumido nas análises sobre a arquitetura de a participação dos pesquisadores Prof. Dr.
um dos mais importantes arquitetos brasi- Guilherme Wisnik, Prof. Dr. João Massao
leiros. O interesse acadêmico que sua obra Kamita e Prof. Dr. Leandro Medrano, contri-
tem suscitado é prova da importância de suas buiu para a explicitação da perseverança de
ideias, cujo primeiro trabalho defendido na algumas de suas ideias e também das contra-
Universidade de São Paulo, em 1996, então dições entre teoria e prática ao longo de sua
o único curso de pós-graduação existente no trajetória. As comunicações dos três pesqui-
país, foi o de Miguel Buzzar - João Batista sadores partiram das relações entre as ideias
Vilanova Artigas: Elementos para a compreen- de Artigas e de alguns teóricos para discutir o
são de um caminho da arquitetura brasileira tema acima proposto.
–, no qual o autor construiu uma imbricada Construir, pensar e habitar, de Martin
rede de relações das ideias de Artigas com o Heidegger, foi uma recorrente referência,
contexto social, político e econômico de sua destacada em algumas apresentações neste
época, dando ao programa da casa importan- seminário, a partir da qual Wisnik buscou MÔNICA
te papel nessa articulação: “casa e lote urbano compreender a importância da casa na obra JUNQUEIRA
eram interpretados como partes indissociáveis de Artigas. Tal como para o filósofo alemão, DE CAMARGO
de uma construção, ou de uma unidade maior, a casa não é um abrigo inocente, mas o re- DEBATE
que era cidade” (BUZZAR, 2014, p. 333). flexo de conflitos existenciais. Entretanto, se
As pesquisas seguintes, que já ultrapassam para Heidegger o refúgio em uma cabana na
duas dezenas, tratam de outros temas como Floresta Negra era o seu habitat ideal para
escolas, ideias ou dimensão política de sua repensar sua própria existência e a vida nas
obra; entretanto, mantêm nas casas uma cidades, para Artigas o embate direto com
forte referência. E o mais recente Vilanova a metrópole foi seu campo de reflexão exis-
Artigas: habitação e cidade na modernidade tencial. Para esse arquiteto, projetar uma
brasileira, dos professores Leandro Medrano casa, portanto, era também pensar sobre si
e Luis Recamán (MEDRANO; RECAMÁN, mesmo, sobre a sociedade e seu modo de vi-
2013) confirma essa imbricada relação entre ver, ou seja, um programa adequado para se
o espaço doméstico e a cidade moderna que o contribuir à revolução social que se pretendia
123
124
naquele momento, fazendo da casa um ma- o lote, problemas ancestrais da arquitetura.
nifesto contra o conforto burguês, segundo Medrano, valendo-se de vários autores,
Wisnik, numa atitude consciente de desco- entre eles Florestan Fernandes e Ortega y
nexão com a realidade e uma conexão com o Gasset, e concentrando sua análise em uma
ideal, a poética. obra específica – o conjunto habitacional
Na contramão de certo consagrado reper- Zézinho Magalhães Prado, que trouxe como
tório moderno que se valeu de fachadas trans- novidade a produção industrial –, situou, em
parentes, colocando os moradores literalmen- boa hora, a cidade com a qual Artigas se rela-
te em plena rua, expondo sua privacidade, cionou – a São Paulo de meados do século 20,
Artigas optou pelo volume fechado, criando que acirrava seu processo de metropolização,
uma tensão interna e externa, ao mesmo vivia uma desenfreada expansão imobiliária,
tempo em que isola o ambiente doméstico do enfrentava o fenômeno da sociedade de massa
convívio público e constrói um espaço que e da televisão, ao mesmo tempo em que as
valoriza a dimensão urbana por meio de ram- soluções urbanas modernas eram questiona-
pas, espaços coletivos e áreas de convivência. das e os manifestos críticos eram publicados.
A aproximação com os estruturalistas evo- Frente a esse contexto, a análise do projeto
AS VIRTUALIDADES DO MORAR ARTIGAS E A METRÓPOLE

cada por Kamita enfatizou o perfil de Artigas para esse conjunto habitacional, realizado em
como um intelectual engajado, com assumida parceria com Fábio Penteado, Paulo Mendes
participação política tanto partidária como de da Rocha e grande equipe, em 1968, já sob a
classe, buscando inserir suas ideias nas teorias vigência do governo militar e desenvolvido
da história, por meio da associação da sua com Artigas cassado de sua atividade como
arquitetura à ideia de irredutibilidade, de dar professor, trouxe questões inéditas ao debate.
inteligibilidade ao que não está claro, de trazer Vale destacar que esta foi a única apresentação
à luz o que está oculto. Trabalhar somente que fugiu ao espaço burguês unifamiliar e que
com o que é essencial, sem se permitir qual- trouxe ao debate um conjunto multifamiliar
quer devaneio secundário, teria sido, segundo para trabalhadores de baixa renda em uma
Kamita, o princípio básico de Artigas, que o área ainda não urbanizada, e que permitiu
levou a trabalhar com um número restrito de aferir, de modo mais pertinente, as ideias de
materiais e a expô-los na sua rusticidade. Para Artigas sobre a relação entre a casa e a cidade,
Kamita, refletir sobre a casa e a cidade signifi- sobre a industrialização da construção civil e
caria, na essência, pensar sobre o programa e o papel da arquitetura nesse imbricado pro-
cesso. Cabe lembrar um aspecto quase sempre pendentes de arquitetura – FAUMackenzie
enuviado quando se analisa este, projeto sua e FAUUSP –, concomitantemente à criação
trajetória e o qual permite estabelecer outras desses museus, é indicador do interesse da
e novas relações de seu trabalho: o fato de ter sociedade por essa área do conhecimento.
realizado a maior parte de seus projetos para O bem lembrado texto de Lina Bo Bardi,
o estado nas décadas de 1960 e 1970, quando “Casas de Vilanova Artigas” (BARDI, 1950),
tinha sido cassado pelo governo militar. publicado no primeiro número da Revista
À complexa conjuntura delineada pelas Habitat, de 1950, traz como referência as casas
questões levantadas nas três apresentações – o de Mário Bittencourt e Benedito Levi, e pre-
enfretamento do processo de modernização coniza, com muita precisão, o que se acirraria
de uma cidade na periferia do capitalismo, a nos seus projetos futuros: “citamos uma moral
moradia burguesa e a habitação operária fren- de vida sugerida pelas casas de Artigas, uma
te à transformação social e o papel do arquite- moral que definimos como severa, e esta é a
to nesse processo – cabe acrescentar que a São base de sua arquitetura. Cada casa de Artigas
Paulo na qual Artigas projetou suas casas mais quebra todos os espelhos do salão burguês.”
revolucionárias vivia grandes transformações (BARDI, 1950)
artísticas, culturais e sociais, das quais a arqui- Se é possível afirmar, conforme enfatiza-
tetura buscava participar. As comemorações do neste seminário, que as casas de Artigas
do seu IV Centenário, em 1954, comprovam buscavam transformar a vida burguesa, há
essa efervescência. Um empreendimento do que se reconhecer que essa burguesia, ou pelo
Estado, que buscou impor a capital paulista menos parte dela, também estava a demandar
não apenas como centro econômico do país, transformações na forma de viver, às quais os
mas como um polo cultural, que vinha se arquitetos deveriam responder e que Artigas
constituindo desde o final da década de 1940, não apenas respondeu com muita inventi-
com a criação dos dois museus: o Museu de vidade, mas, como bem lembrou Medrano,
Arte de São Paulo (MASP), e o Museu de Arte Artigas, como professor, tomou seus projetos
Moderna (MAM). O fato de Artigas ter sido como problemas e conseguiu formular pa-
o responsável pelo projeto de instalação desse drões formais. •
MÔNICA JUNQUEIRA DE CAMARGO DEBATE

último dá a dimensão de seu entrosamento na


dinâmica da cidade e de seu reconhecimento
profissional. A criação de dois cursos inde-
125
126
Referências bibliográficas
BARDI, Lina Bo. Casas de Vilanova
Artigas. Revista Habitat, São Paulo, n.1, p.
2-16, out./dez., 1950.
MEDRANO, Leandro; RECAMÁN, Luiz.
Vilanova Artigas: habitação e cidade na
modernização brasileira. Campinas: Editora
da Unicamp, 2013.
AS VIRTUALIDADES DO MORAR ARTIGAS E A METRÓPOLE
U USP FAU USP FAU USP FAU USP FAU USP FAU USP FAU USP
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FAU USP FAU USP FAU USP FAU USP FAU USP FAU USP
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U USP FAU USP FAU USP FAU USP FAU USP FAU USP FAU USP
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ENSAIO
FOTOGRÁFICO

CRISTIANO
MASCARO

FAU USP
2015
131
146
Este livro resulta do seminário “As virtu-
alidades do morar. Artigas e a Metrópole”,
realizado em junho de 2015 no MAC USP.
Gostaríamos de agradecer aos auto-
res: Ana Lanna, Guilherme Wisnik, Hugo AGRADECIMENTOS
Segawa, João Masao Kamita, Miguel Buzzar,
Monica Junqueira, Ruth Verde Zein, que
colaboraram tanto para o seminário “As vir-
tualidades do morar. Artigas e a Metrópole”,
realizado em junho de 2015, quanto para este
livro. Agradecemos também ao MAC USP,
na figura de seu diretor Hugo Segawa, por
ter abrigado o evento; à diretora da FAUUSP,
Maria Ângela Faggin, pelo apoio ao semi-
nário e a esta publicação; ao Laboratório
de Recursos Audiovisuais da FAUUSP, pelo
registro audiovisual; aos fotógrafos Cristiano
Mascaro e Nelson Kon, pelas fotografias
utilizadas; ao Leandro Leão, pela concepção
gráfica do livro; ao LPGFAU, pela produção e
impressão.
Esta edição conta também com o
apoio do CNPq, por meio de Bolsa de
Produtividade.

Leandro Medrano Na próxima página:


Luiz Recamán cartaz do seminário
148
Seminário
Organizadores
Luiz Recamán
Leandro Medrano
Cartaz CRÉDITOS
Leandro Leão Design Gráfico
Ricardo Iannuzzi Fotografia
Apoio
Faculdade de Arquitetura e Urbanismo
da USP
Instituto de Arquitetos do Brasil –
Departamento de São Paulo
Docomomo Brasil - Núcleo São Paulo
Museu de Arte Contemporânea da USP

Páginas 150-151 e 152-


Livro 153, respectivamente:
Organizadores Faculdade de
Luiz Recamán Arquitetura e
Leandro Medrano Urbanismo, FAU USP
Design Gráfico São Paulo-SP
Leandro Leão 1969
Revisão
Flávia Orci Conjunto Habitacional
Fotografias Zezinho Magalhães
Nelson Kon Prado, CECAP
Cristiano Mascaro FAU USP 2015 Guarulhos-SP
1967

Fotos: Nelson Kon


V819
As virtualidades do morar. Artigas e
a metrópole / Organizado por Leandro
Medrano e Luiz Recamán. - São Paulo:
FAU/USP, 2015.
156 p.
ISBN: 978-85-8089-071-6
1. Arquitetura Moderna - Brasil 2.
Impressão digital e em tipos móveis (capa) Habitação (aspectos sociais) - Brasil
Laboratório de Programação Gráfica da 3. Arquitetos - Brasil I. Medrano,
Faculdade de Arquitetura e Urbanismo Leandro, org. II. Recamán, Luiz, org. III.
da USP Artigas, João Vilanova (1915-1985) IV.
Papel Título
Alta Alvura 90g/m2
Alta Alvura 240g/m2 CDD: 724.981
Pólen Soft 90g/m2
Tiragem
1.000 exemplares Ficha catalográfica elaborada
Dezembro 2015 pelo Serviço Técnico de Biblioteca da
Fontes FAU/USP
149

Univers e Minion Pro

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