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Sombras da Paixão

An Improper Duenna

Paula Marshall

ELA FOI EM BUSCA DA FELICIDADE

A desilusão marcara à vida de Verônica Trensome.


Sem esperanças, ela apenas suportava o fardo que o destino lhe impusera. Mas, quando
sir Patrick Ramsey apareceu em seu caminho, ela decidiu vencer todos os obstáculos
para ter seu amor... Mesmo sabendo que ele
não lhe oferecia a certeza de um casamento...
Quando sir Patrick foi convidado a passar alguns dias na casa de sua atual amante, não
poderia imaginar que lá encontraria o amor de sua vida sob as vestes simples e a
aparência severa de uma dama de companhia...
Mas o destino, às vezes, traça caminhos estranhos para que alguém descubra a paixão...

Disponibilização do livro: Valeria


Digitalização: Joyce
Revisão: Cynthia
Sombras da Paixão – Paula Marshall CH n. 185

Copyright © 1992 by Paula Marshall

Título Original: An Improper Duenna

CAPÍTULO I

— Venha, Serena — disse lady Charlotte Standish a sua sobrinha, lady


Marchingham. — Já é tempo de encontrar um marido para a pobre Verônica. Afinal, o que
poderá vir a acontecer a ela quando Marianne estiver casada, como, com certeza, estará
em breve? Talvez... uma outra ocupação como preceptora ou como dama de companhia
de alguém ainda menos atenciosa que você. È, visto que ela é sua prima, acho que é seu
dever pensar no futuro da moça.
Serena torceu os lábios, não gostando da sugestão, e afastou-se de Charlotte.
— Está me pedindo algo impossível, titia. Quem poderei encontrar que esteja
disposto a desposá-la, se já conta vinte e nove anos? Ora, que ideia absurda!
— Mas deve haver viúvos de meia-idade, pelo menos no interior, que tenha filhos...
Pessoas que necessitem de uma segunda esposa responsável, de boa família. Ou
mesmo oficiais de volta ao lar, após a batalha de Waterloo, que queiram casar-se e viver
tranqüilos pelo resto dos dias, ao lado de uma companheira compreensiva.
As sugestões de lady Charlotte não eram apenas meras ponderações. Seu tom se
mostrava firme, quase severo.
— Faça com que Verônica pondere sobre isso. Acredito que ò bom senso que ela
sempre teve a fará aceitar um desses prováveis candidatos.
— Ah, claro! — Serena exclamou, irônica. — Mas esses "candidatos" costumam
querer um pouco mais que isso, titia. Pode imaginar Verônica na cama? Porque eu não
posso. O infeliz parceiro de minha prima teria de saber travar uma boa e cultural conversa
com ela, em vez de suspirar de paixão. Ainda mais por já ter sido abandonada.
— Serena, minha cara, não vejo razão para falar nesses termos. Afinal, sabemos
que o que aconteceu não foi culpa de Verônica. Além do mais, alguns homens gostam de
garotas iguais a ela.
— "Garotas" não, titia; "mulheres". Há muito tempo Verônica foi uma garota.
Serena estava cansada daquela conversa e também da prima. Havia alguma coisa
nos olhos de Verônica, nos últimos tempos, que ela desprezava, sem saber ao menos do
que se tratava. Continuou, mordaz:
— Ademais, quem, no mundo, iria se interessar por uma devoradora de livros? Não
os fazendeiros do interior, como a senhora já mencionou, com certeza.
— Pois acho que ela cavalga muito bem e...
— Porém, como Verônica não tem sequer condições financeiras para adquirir um
cavalo, quem iria saber como minha prima é boa amazona? Não bastasse, não a quero
procurando maridos por aí quando preciso dela comigo para tomar conta de Marianne. A
propósito, como é cansativo tê-la sob minha guarda! Que falta de consideração de seus
pais terem morrido antes de mim!

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Ao ver a expressão aborrecida no rosto de lady Charlotte, Serena ergueu os


ombros.
— Está bem, titia, está bem, acho que vou fazer o que me sugere. Convidarei
metade do condado para conhecer Verônica. Muito embora ache que será Marianne
quem os atrairá, e não sua preceptora sem graça.
Serena e a tia estavam conversando na agradável sala de chá de sua casa, em
Russel Square. Não era a parte mais em voga em Londres naquela época, mas, como o
marido de Serena, sir Charles, costumava dizer: "O que é bom o suficiente para os
duques de Bedford, e bom o suficiente também para mim".
O ano de 1817 estava quase no fim, e já se faziam os preparativos para que os
Marchingham deixassem a capital rumo a sua residência de campo, junto aos baixios de
Sussex.
Lady Charlotte viera para uma breve visita naquela manhã e soubera que Verônica
Transome estava fora, acompanhando a Srta. Marianne Temple nas compras. Assim, ela
se achara na obrigação de aconselhar a sobrinha quanto ao futuro da moça, o que não
deixava de ser um dever social de Serena para com a prima.
Verônica fora contratada para acompanhar Marianne, uma jovem de dezoito anos,
filha de primos falecidos de sir Charles. Na verdade, a presença dela incomodava Serena,
que, quase aos trinta anos, não se sentia mais tão bela quanto fora outrora; e a juventude
e beleza de Marianne pareciam fazê-la recordar com frequência que já não possuía mais
tantos poderes de sedução.
Tinha quase a mesma idade de Verônica, a qual acabara de criticar, mas não se
considerava, em hipótese alguma, semelhante a ela.
Olhou-se no reflexo projetado sobre a vidraça logo atrás de sua tia, e orgulhou-se
do que viu. Era elegante, dona de um perfil invejável. Isso para não comentar a formosura
de seus trajes matinais, de seu penteado o das jóias que escolhera para combinar com a
cor de seu vestido.
E estava tão encantada com sua própria imagem que por um triz não ouviu o
próximo comentário de lady Charlotte:
— Preste atenção, Serena. Temo que você esteja falhando em seus deveres para
com os que a rodeiam, minha querida. A vida não é apenas diversão, você sabe. Fico
surpresa ao ver que ainda não encontrou um noivo para Marianne! Afinal, a menina está
com dezoito anos, é bonita e tem uma fortuna respeitável. Não entendo como ainda não
apareceu um rapaz interessado nela. Não teria você se descuidado, se distraído?
Serena voltou-se, comentando com azedume:
— Então acha que isso é minha culpa? Estou certa de ter sempre agido da melhor
forma possível para com Marianne. Mas ela é teimosa e voluntariosa demais, sabe disso.
Recusou Trimington e Apsley, além de mais alguns tão aceitáveis quanto os dois. Quer
um nobre, veja só! Meros barões ou senhores de posses respeitáveis não são bons o
suficiente para ela.
— Oh, que inconveniente, não? — Lady Charlotte franziu a testa. — Mas há
poucos nobres disponíveis este ano, acredito. E haverá ainda menos no ano que vem. E
Marianne não deve imaginar que possa se manter tão bela por dois anos consecutivos.
Estou surpresa que Leamington não se tenha oferecido para fazer-lhe a corte...
— Leamington não gosta de garotas muito novas.
— A língua ferina de Serena não poupava ninguém.
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—Ele poderia ser um candidato melhor para Verônica, mas ela não deve tê-lo
encorajado, ou então a senhora não estaria aqui me forçando a encontrar-lhe um marido.
Lembro-me de ouvi-la comentar que não gostava da reputação dele. Como se uma
preceptora sem futuro como Verônica pudesse desconsiderar a proposta de um homem
bem-posto na vida como Leamington, embora de comportamento tão deplorável... Bem,
mas ele ainda está atrás de Emily Brancaster, pelo que ouvi falar. Prefere as casadas.
— É, muitos preferem. Quando não optam pelas chapeleiras simplórias, preferem
esposas de outros homens.
E ergueu um olhar significativo para a sobrinha, que fingiu não entender o que
havia por trás de tais
palavras.
Lady Charlotte deixou passar o desconforto daqueles breves segundos e depois
prosseguiu, pesarosa:
— Convidou alguém que possa servir ao propósito, de casar Marianne para a
temporada que vai passar no campo? Porque deveria.
— Minha casa vai estar cheia de rapazes que a senhora quer que eu entretenha
para resgatar o solteirismo de Verônica, titia. Além, é claro, de bons partidos para
Marianne. Será entediante. Tenho minha própria vida para viver, não sei se está
lembrada. Entretanto, convidei sir Patrick Ramsey. Ele é atraente e rico. Um homem e
tanto. Até se poderia imaginar que Marianne sentiria vontade de jogar-se em seus braços,
mas...
— Você o convidou para Marianne ou para si mesma? Serena riu, mas estava
tensa.
— Então, dá ouvidos a mexericos, titia?
— Apenas quando se referem a minha família. Tenha muito cuidado, Serena.
Charles pode ser muito bom, mas a paciência também tem limites.
— Charles mal sabe ou se preocupa com o que faço ou deixo de fazer. Ele tem seu
herdeiro e uma esposa a seu lado quando se senta à mesa, e isso lhe é suficiente. Se eu
soubesse o quanto meu marido se tornaria aborrecido, teria pensado duas vezes antes de
desposá-lo.
— Charles tem bom coração, Serena. Porém, seria bom não abusar de tanta
generosidade. Até mesmo Charles poderia se aborrecer muito se os falatórios fossem
longe demais.
— Pode confiar em mim, titia. — Serena tentou sorrir — Arranjarei um marido de
meia-idade para Verônica, um rapaz com título nobre para Marianne, e depois vou voltar
tranqüila para minha casa na capital, e poderei ter mais tempo para me dedicar a Charles.
Lady Charlotte assentiu, sem muita convicção. A chegada repentina de Verônica e
Marianne acabou adiando qualquer especulação maior sobre o futuro que as aguardava,
bem como os conselhos que porventura poderiam vir a ser dados a Serena sobre seu
comportamento atual.
As observações que sua sobrinha fizera sobre a aparência de Verônica eram
merecidas, concluiu lady Charlotte, assim que viu a jovem. Tanto que conseguiu apenas
dizer, voltando-se para Marianne:
— Você está muito bem, minha linda!

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As roupas de Verônica davam-lhe um aspecto deplorável, como se, em vez de


trinta, tivesse quase quarenta anos. Além disso, ao lado da jovialidade e das peças
elegantes e alegres de Marianne, ficava apagada, sem viço. Era como se o controle de
Verônica, sua calma e quietude, dessem-lhe um ar glacial ao extremo.
Seus traços clássicos, sua postura ereta, rígida, seus cabelos claros, presos no
alto da cabeça poderiam ser descritos como fora de moda. Era como se ela se recusasse
a estar em evidência, como se colocasse uma barreira entre si mesma e o mundo que a
rodeava, não participando dos atrativos visuais que havia nele.
Nem mesmo lady Charlotte, com todo seu traquejo, poderia perceber que nada
havia de falta de gosto em Verônica, mas, sim, falta absoluta de dinheiro para recompor
seu vestuário, e, assim, seu visual. Fazia grande esforço para manter seus poucos trajes,
e isso não era suficiente para torná-las atraentes, com certeza. Mas Verônica jamais
deixaria que percebessem sua situação, jamais se queixaria.
— Não me sinto nada bem — foi a resposta de Marianne ao comentário de lady
Charlotte. — Verônica foi muito enfadonha hoje, não me deixando comprar o que eu
queria e insistindo em coisas de que não gostava.
— Tudo que apreciou seria mais apropriado a Uma mulher das ruas, e não a uma
jovem em seu primeiro ano na sociedade — Verônica observou, vindo cumprimentar sua
tia com um beijo na face.
— Nada que escolhi estava bem — Marianne continuou a queixar-se.
— Achei que um vestido branco estaria perfeito — Verônica insistiu, sem perder a
calma.
Havia ocasiões em que Marianne quase a fazia descontrolar-se, e essa manhã fora
uma delas, mas era necessário manter a fleuma, pois familiares pobres que queriam
manter sua posição como preceptoras ou damas de companhia a fim de terem o que
comer, na Inglaterra daquela época, não tinham alternativa a não ser aceitar o peso do
fardo que precisavam carregar.
Contudo, Verônica sabia que logo Marianne estaria bem casada e longe de seus
cuidados, o que lhe dava grande alívio. Quando isso acontecesse, partiria em busca de
outra garota para cuidar, e poderia ter seu sossego de volta. No entanto, embora com tais
pensamentos em seu íntimo, ela se comportava de maneira a não deixar transparecer o
que ia dentro de seu coração.
Verônica tinha de saber quais termos usar para ser aceita como uma subordinada
paga, para ser recompensada, e não punida. E isso desenvolvera nela um modo calmo e
sereno, muito diferente da espontaneidade e da alegria que tivera quando estava com a
idade de Marianne.
E, aliadas a seus traços clássicos, a calma e serenidade só faziam acentuar o
aspecto severo que passava aos outros e que afastava os homens de sua companhia.
Mesmo as mulheres eram apenas educadas com ela. Como Serena, que jamais ousara
ser rude com sua pessoa, pelo menos em público.
Imaginando que sua tia deveria estar senil por querer que achasse um marido para
aquela estátua fria e sem graça, Serena indagou, tentando disfarçar o que lhe ia na
mente:
— Estará pronta para partir conosco para o campo, no fim de semana, Verônica?
— Morrerei de tédio lá — Marianne comentou, sem esperar pela resposta.
— Não vai, não. — Verônica, voltou-se para ela, impassível. — Serena encherá a
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propriedade de convidados para entretê-la, tenho certeza.


— É verdade! — Serena confirmou, mostrando-se animada. — E sir Patrick
Ramsey me prometeu ir até lá assim que chegarmos. Portanto, você não vai se entediar,
minha cara.
Marianne e Verônica já conheciam sir Patrick Ramsey. Ele chegara à cidade de
uma hora para outra, após herdar seu título em circunstâncias... digamos... um tanto
românticas, ou apenas dolorosas, conforme a opinião dos observadores.
Verônica mal prestara atenção aos pretendentes de Marianne. Registrara-os
apenas como prováveis cortejadores da moça. No entanto, por alguma razão que não
conseguia explicar, a lembrança de sir Patrick persistia em sua memória.
O fato parecia-lhe um tanto surpreendente; afinal, ele mal a notara, como todos
costumavam reagir em relação às preceptoras das jovens em quem estavam
interessados. E era-lhe incompreensível ter guardado a figura de um homem alto, tão
empertigado quanto ela própria, de ombros largos e fortes, moreno, de olhos cinzentos e
estranhos, cheios de malícia...
Porque fora sem o menor pudor que admirara Serena, Verônica não pudera deixar
de notar. E Patrick não deveria estar olhando assim para outra mulher, já que se
preparara uma situação, de forma tão ostensiva, para que demonstrasse interesse por
Marianne.
Dizia-se que Patrick precisava de uma esposa. Faziam-se especulações sobre seu
passado, quando, de acordo com os comentários, fora um soldado pobre até receber uma
herança inesperada.
Patrick fitara Verônica como todos os demais. Devia ter notado suas roupas
gastas, seus cabelos presos. Depois, observou por alguns instantes Marianne, es-
trategicamente colocada diante dele, como uma esposa em potencial, já que ele era ainda
um solteiro muito conveniente, em seus trinta e poucos anos.
No entanto, não havia dúvidas de que suas pupilas tinham brilhado ao pousarem
sobre Serena, e Verônica a conhecia bastante bem para saber que não deveria ser por
zelo pela reputação de Marianne que ela insistira para que saíssem muito e se
divertissem em locais interessantes de Londres. Ela queria, isso sim, proporcionar
momentos agradáveis a sir Patrick.
E ele parecia usar as mãos como usava os olhos, ponderava Verônica naquele
momento, com certa ironia. Suas atenções para com Marianne, embora muito educadas,
se mostraram frias. Se estava, de fato, pensando na garota como a futura lady Ramsey,
não o demonstrava. E, embora Marianne o achasse belo, pois todo o mundo achava,
chegara a comentar com Verônica: "Mas ele é velho para mim... Tem mais de trinta anos!
E não é nobre".
— Mas é muito rico — Verônica rebatera, deixando de lado a elegância, por um
momento.
— Eu sei, mas grande parte de sua fortuna está na Escócia, e não pretendo ir
morar num país selvagem como aquele.
Verônica não se deixara convencer.
— Sir Patrick é muito rico e tem muitos imóveis em diferentes lugares, alguns delas
no sul, e um nas redondezas de Londres.
Nem mesmo Verônica compreendia por que insistira em empurrar sir Ramsey para
Marianne daquela forma. Ela precisava de um homem de pulso, que a controlasse, que
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acabasse com sua mania de querer fazer o que lhe desse na cabeça, cheia de egoísmo e
falta de consideração para com os outros. Era uma cópia de Serena, com certeza.
Egocêntrica, infiel e frívola.
Talvez fosse tudo o que Patrick Ramsey merecesse, afinal: uma esposa que se
interessasse por outros homens e que lhe desse a punição correta por estar flertando, ou
talvez até mais do que isso, com as mulheres dos outros.
Mais uma vez, a maneira como reagia a Patrick intrigava Verônica. Não deveria ter
tamanha antipatia por alguém que mal conhecia. Talvez estivesse ficando velha e
rabugenta. Afinal, devia ser assim que sir Patrick e os outros homens a viam.
Verônica falara com Patrick uma única vez, num baile na casa de lady Leominster,
quando lhe pedira permissão para dançar com Marianne, dizendo depois:
— Permitiria que eu conduzisse a Srta. Marianne a um passeio até o terraço? Não
estaremos sozinhos, eu lhe asseguro. Há muitas pessoas lá fora.
— Tenho certeza de que Marianne estará a salvo em sua companhia — Verônica
respondera, colocando um tom especial no modo como pronunciara o nome da garota.
E Patrick parecera ter percebido sua intenção, pois seus olhos cinzentos brilharam
de modo diferente. Em seguida, sorriu e disse, também de modo ambíguo:
— Tal confiança me desarma, senhorita. Espero ser digno de merecê-la.
Verônica também fora gentil, mas rebatera:
— Quanto a isso, não tenho dúvida, sir Patrick. Sei que sempre receberá o que
merece.
E ele gargalhara antes de completar e se afastar com Marianne:
— É verdade, senhorita. Como diz o poeta: "Se és merecedor de teu fardo, por que
temê-lo ou refutá-lo? Basta carregá-lo com galanteria e honradez".
Aquilo a deixara perplexa. Sir Patrick parecia versado em livros. Mas não podia
deixar-se convencer por uma simples citação inconseqüente. Não iria se impressionar por
aquele homem, que estava acostumado a exercitar seu poder de sedução e resolvera
gastar algumas migalhas com ela.
Mas era com Serena que Patrick usava toda a força de seu charme. Eram
amantes, claro, embora ele se mostrasse interessado por Marianne.
A cada dia que passava, Verônica estava mais certa de que aquele homem não
servia para a moça.
Verônica sabia que não podia se deixar envolver nem por aquele, nem por
qualquer outro homem. Seu destino era ser preceptora. Fiar lã, levar cães para passear,
cuidar de moçoilas avoadas cheias de dengos e de dinheiro, e cuidar para que não
caíssem na conversa de caça-dotes aventureiros. E entreter senhoras mais velhas, às
vezes, atendendo a todas as suas vontades. Perdera sua única chance fazia muito tempo.
Era estranho, porém, porque, em seus sonhos, um homem alto e moreno, de
ombros largos e fortes, caminhava em sua direção, com um sorriso sedutor e convidativo
nos lábios. Eram sonhos dos quais acordava sempre alerta e trêmula, sabendo que
jamais se tomariam realidade, porque seu destino já fora selado muito tempo atrás.
— Será que poderia me escutar, Patrick? — pedia Hetta, lady Lochinver, a seu
sobrinho, que estava sentado a sua frente, bebendo calmamente seu chá, parecendo
muito aborrecido. — Agora que recebeu essa herança e se fixou como respeitável
cidadão, é seu dever maior produzir um herdeiro! Deve casar-se, e logo! Afinal, já não é
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nenhum garoto!
Patrick achou graça.
— Não me considero tão velho e alquebrado assim, tia.
— Não, mas pode ficar. Sei que deve ter visto as muitas jovens que estão
debutando, este ano. Não se agradou de nenhuma delas? O que acha de Marianne
Temple? Ela não só possui uma fortuna considerável, o que, sei bem, não é uma
necessidade para você, como também é muito bela. Poderia ser pior, não acha?
— Está se referindo àquela que tem uma preceptora?
— Todas as moças de boa posição social têm preceptoras, Patrick. — Hetta não
conseguia atinar com o motivo de tal referência por parte dele. — Mas é sobre ela, sim,
que estou falando. A que tem Verônica Transome como dama de companhia. Verônica é
neta do velho general, não sei se sabe. Pobre como um rato de igreja, como todos os
Transome, coitadinha...
— O general? Aquele da guerra americana? Patrick tinha uma vaga recordação do
rosto clássico do idoso senhor, além de lembrar-se de algumas frases satíricas que ele
pronunciara em determinadas ocasiões, deixando patente que sabia de seu caso com Se-
rena Marchingham e não o aprovava de modo algum.
— Sim, é ele mesmo, mas é de Marianne que deve recordar, Patrick.
— Bem, então é providencial que Serena Marchingham tenha me convidado para
sua casa no campo. Poder dar uma olhada em Marianne Temple mais uma vez, desde
que a preceptora me permita uma aproximação maior com ela. É um modelo de virtude
aquela mulher, pelo que pude perceber. Pior do que um soldado de seu avô, suponho.
— Você deve cumprir com seu dever sem perda de tempo, Patrick. — Lady
Lochinver julgou irritante e inadequado, por parte de seu sobrinho, ter notado a dama de
companhia e ignorado uma possível futura esposa.
— Meu dever... — repetiu ele, o olhar preso à xícara que segurava.
Hetta observava seu charme sedutor. Patrick era a mais nova estrela da sociedade
inglesa, não havia como negar, Era de estranhar, então, que parecesse tão entediado...
Para Patrick também parecia não existir explicação para a sensação de vazio em
seu peito. Jamais esperara sentir-se assim depois de deixar o Exército, quando da morte
de seu irmão mais velho, sir Hugh. Talvez, parte de seu mal-estar atual se devesse ao
fato de ter conseguido sua fortuna justo por causa do falecimento de Hugh e das muitas
outras mortes em sua família, incluindo as de seus dois sobrinhos, todos levados pela
mesma devastadora febre.
Outro irmão mais velho, Roderick, fora morto em Salamanca enquanto servia com
sir Arthur Wellesley, como o próprio Patrick também fazia.
O prazer que Patrick poderia sentir por sua fabulosa herança e sua transformação
de soldado paupérrimo a abastado senhor de terras, um magnata escocês, estava
empalidecido pelo luto e pela dor da perda de tantos parentes queridos.
Patrick era o último dos Ramsey, uma vez que só lhe restava sua tia Hetta como
parente, e ela própria não tivera filhos.
O que era pior, no entanto, era a tristeza que sentia por ter adorado ser soldado. A
existência parecera-lhe tão mais simples então... Bastava apenas alegrar a si mesmo e
desfrutar as delícias simples do mundo.
Lembrava-se de que uma garota, em certa ocasião, lhe dera a alcunha de
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"despreocupado", como se isso fosse uma grande ofensa. Poderia ser para ela, que fazia
parte da sociedade do sul de Gales. Podia ser também para a grande maioria das moças
da sociedade londrina. Mas não era para ele.
Precisava de tempo para se acostumar a certas facetas da nova situação.
Necessitava acostumar-se a advogados, agentes e toda a sorte de interesseiros com que
teria de lidar dali em diante.
— Fico imaginando se Marianne Temple é a garota ideal para viver com você,
Patrick. Sabe, meu querido, acho que precisa de uma mulher jovem o suficiente para lhe
dar filhos, mas velha o bastante para controlar um pouco esse fervor todo que o front lhe
deixou nas veias.
Patrick encarou a tia entre divertido e incrédulo.
— Ora, vamos, tia Hetta! Não sou nenhum menino, mas também não sou um
velhinho. Saberei escolher minha esposa muito bem, fique tranqüila. E logo.
— Logo, não é? Com você, a palavra é sempre "logo"; nunca "já". E, enquanto
isso, anda de namoricos com
Serena Marchingham. Não, não! Não proteste! Sei muito bem por que está alegre
por ir até aquela propriedade em Marchingham Place. E seu motivo não se chama
Marianne Temple. Ela é apenas um disfarce, para suas verdadeiras intenções.
Não havia argumentos contra tal afirmação. E a tia de Patrick não poderia saber
que também Serena já o aborrecia. Afinal, fora uma conquista fácil demais, e algumas
tardes com ela tinham mostrado que Serena podia oferecer muito pouco, quase tanto
quanto qualquer outra mulher que se passava por respeitável, mas não era, ou qualquer
cortesã.
Patrick perguntava-se o que, de fato, queria. Não podia estar cansado de viver.
Isso seria demais!
— Prometo encontrar uma lady Ramsey que possa agradar tanto à senhora quanto
a mim. Combinado, tia Hetta? Seria mesmo uma pena se nossa linhagem terminasse por
aqui, não é mesmo?
E tedioso ter de perseguir Marianne Temple sob a vigilância constante e severa
daquela preceptora fria e amarga. Talvez Verônica precisasse apenas de um amante. Um
soldado, talvez, daqueles que adoram beber e fazer amor o tempo todo. Isso a manteria
mais satisfeita e menos atenta a tudo que se diz ser socialmente correto.
E. Ela precisava de um homem que a fizesse gemer, pedindo clemência...
De repente, a rudeza do pensamento o chocou. De onde tirara tal ideia? E por que
pensara nisso em relação àquela mulher?!
— Sim, seria uma grande pena, Patrick.
Lady Lochinver apreciava os traços do sobrinho. Os Ramsey sempre tinham sido
muito bonitos, mas Patrick, de longe, era o mais belo dentre todos eles.
Hetta lamentava que o pai dele o tivesse preterido porque sua esposa adorada
morrera ao dar-lhe à luz. Ele mandara o filho para o Exército aos dezesseis anos, e lá o
garoto aprendera que seu único dever era para com seus homens e seu coronel, e,
quanto ao resto, se resumiria a prazeres sem maiores preocupações.
Era óbvio que, agora que tinha tudo em suas mãos para viver como bem lhe
entendesse, Patrick não estava se sentindo bem com isso,
Hetta Lochinver achou melhor se calar, não insistir no assunto. Esperava que a
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estada de Patrick em Marchingham Place o ajudasse a pôr a cabeça no lugar e arranjar


uma esposa, e, em breve, o filho de que precisava para motivá-lo a tornar-se a pessoa
que deveria ser.
CAPÍTULO II

Verônica Transome desceu as enormes escadarias da mansão em Marchingham


sabendo ser a única pessoa da família já acordada naquela manhã, embora fosse quase
meio-dia.
Sentia-se tão inquieta que poderia passar uma das pernas pelo belíssimo corrimão
entalhado e escorregar por ali, como costumava fazer quando era bem mais jovem e não
atendia aos apelos de sua mãe para comportar-se de maneira adequada.
Foi bom não tê-lo feito, visto que, ao atingir a ligeira curva das escadas, deparou
com ninguém menos que sir Patrick Ramsey parado no hall, observando-a com um leve
sorriso. Poder-se-ia dizer que estava um tanto surpreso por vê-la descendo com passos
tão lépidos, mas Verônica recompôs-se depressa e aproximou-se, na habitual calma e
frieza que a caracterizavam.
No entanto, ao aproximar-se, notou que sir Ramsey ainda sorria. Parara junto a
uma grande estátua que representava Apoio, nu, e a imediata constatação de que aquele
homem fazia lembrar em muitos aspectos o deus grego deixou Verônica um tanto
embaraçada. Mesmo porque, com o impecável traje que vestia, seria difícil dizer até onde
iam as semelhanças.
Patrick curvou-se devagar, num cumprimento, e saudou-a:
— Espero encontrá-la bem, senhora.
— Sir Patrick... Presumo que esteja à procura de Marianne.
— Sim.
— Ela ainda não acordou. Ou melhor, ainda não desceu. Estivemos dançando esta
noite até altas horas, e o dia não começará por aqui antes do meio da tarde, acredito.
Receio que tenha de ser paciente.
— Entendo. Mas está acordada, senhorita... — Ele parou, como se não recordasse
seu nome, olhando-a de cima abaixo, notando as roupas fora de moda e os cabelos
presos sob a touca característica das damas de companhia da época.
— Transome. Sou preceptora de Marianne. Como se ele não soubesse...
— É verdade! Mas não está tomando conta dela no momento, pelo que vejo. Bem,
ao que parece, vim um pouco antes da hora apropriada. No entanto, encontro-a de pé.
Perdeu o baile de ontem, talvez?
— Não, mas gosto de me levantar cedo, e as festas já não costumam me animar
como antes. Tenho estado muito longe deles.
— "Longe"... — ele repetiu, parecendo estranhar a palavra. — É engraçado como
certos termos de nosso idioma possam ser tão inexatos, não, Srta. Verônica?
Ele a chamara pelo primeiro nome, numa prova de que, de fato, lembrava-se dela,
afinal. O que aquilo significaria?
— A falta de exatidão pode, muitas vezes, ser uma bênção em nossa sociedade,
sir. A precisão é que é sua maldição.
Patrick sentiu vontade de rir diante da observação aguda e inteligente, e decidiu
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não mais destinar aquela mulher ao soldado sedento de prazer que chegara a imaginar
para ela. Talvez a Srta. Transome merecesse algo melhor, afinal.
— Acho que o duque não concordaria com esse seu comentário, Srta. Verônica.
— Mesmo Wellington reconheceria que as batalhas da sociedade são pura mímica,
enquanto as dele foram inconvenientemente reais.
Verônica percebia que Patrick não dava sinais de querer partir, o que lhe causava
certa inquietação. Sendo assim, resolveu levá-lo até uma sala contígua.
Patrick sentiu-se aliviado por ver que Serena aparecia, sorridente e ansiosa,
dizendo tê-lo visto chegar, Havia pouco, da janela de seu quarto.
— Verônica esteve entretendo-o, Patrick... Teve norte em não encontrá-la às voltas
com seus afazeres peculiares.
— Isso me faz lembrar deles, senhora — Verônica observou, gentil e séria,
mantendo o tratamento que, sabia, agradava sua prima diante de convidados. — Ma-
rianne deve estar se levantando agora e, com certeza, deve precisar de minha ajuda para
ser vestir. Ficará aborrecida por ter perdido a chegada de sir Patrick...
— Tem razão. Pode ir, então, Verônica. Sei o quanto é conscienciosa.
E, assim que Verônica se afastou, voltou-se para Patrick para comentar, em outro
tom:
— Ela é muito circunspecta... Prestativa, devo admitir, mas é fácil notar por que é
tão solitária, e deve permanecer assim.
Patrick voltou o olhar para um quadro, fingindo interesse nele, e ponderou, de
modo casual:
— Supõe-se que esse tipo de mulher possa ser do agrado de algum homem
sozinho que precise de sua presença para cuidar de uma mansão.
Serena gargalhou.
— Parece que você compreendeu muito bem a situação, meu caro! Haverá dois
homens assim presentes no grupo que convidei. Quero que vejam Verônica, se é que me
faço entender, e isso foi determinação expressa de minha tia! Mas temo que eles estejam
mais interessados em Marianne do que nela. E Marianne, é evidente, só tem olhos para
você.
A informação em nada o interessou-o. Estaria ali para conquistar uma menina de
dezoito anos que nada tinha na cabeça? E a mulher que estava a seu lado agora, e que
havia pouco fizera um comentário amargo sobre uma dependente paupérrima, valeria
toda aquela perda de tempo para persegui-la? Uma cortesã qualquer de Londres não
poderia lhe dar o mesmo prazer sem ter de se abalar até Sussex e suportar dias abor -
recidos no campo, além da presença de um marido que os dois enganavam?
Patrick poderia estar na Escócia, na Irlanda ou em qualquer outro lugar. Pensou
em seus companheiros de farda no regimento, e nos dias e noites de esbórnia que
passara com eles. Podia ter sido muito pobre naquela época, mas era feliz; mais do que
poderia sequer imaginar.
Marianne apareceu um quarto de hora depois, não para almoçar, mas para tomar
seu chá no terraço, encantadora em seu vestido cor-de-rosa e no chapéu de palha muito
feminino, ornado de minúsculas margaridas do campo.
Verônica colocara-lhe um xale de renda sobre os ombros para protegê-la da brisa
suave. Alguns admiradores seguiam a moça: Jonas Brough, um dono de terras de meia-
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idade que fora chamado para interessar-se por Verônica, mas queria saber de Marianne,
tolo o bastante que era para imaginar que a jovem iria considerar alguém já idoso e de
fortuna pequena para ser seu marido.
No entanto, Brouch fora encorajado a assim pensar porque, sem rapazes
presentes para cortejá-la, Marianne deixara-se seguir por ele, visto que admiração era
algo de que necessitava tanto quanto de ar.
Sentado ao lado de Brough via-se outro fazendeiro, também de meia-idade, Nigel
Shaw. Este era um solteirão que herdara uma pequena propriedade perto de
Marchingham e que, por isso, achava-se agora apto a desposar alguém. Também ele
queria Marianne, ignorando Verônica por completo, o que a deixava mais do que
satisfeita. Afinal, era melhor não ter ninguém a seus pés do que aqueles dois bufões.
Shaw e Brouch, porém, logo perceberam que, com a chegada de sir Patrick,
tinham perdido de vez qualquer oportunidade.
— A cidade estava vazia quando saiu de lá, sir Patrick?
— Creio que sim, Srta. Marianne, sobretudo agora que a senhorita não está lá —
foi a resposta galante.
Marianne abriu um sorriso lisonjeado.
— O senhor é muito gentil, sir...
— De maneira alguma. Quando o sol se põe, fica apenas a escuridão, como sabe.
— Com certeza, a Srta. Marianne é a estrela brilhante de quem os poetas falam —
observou o Sr. Brough, sem muita elegância, mas determinado a não se deixar abater por
um nobre.
— Eu diria que ela é mais como a Lua —- interveio Nigel Shaw, desesperado por
não ser deixado de lado. — É suave e tem um brilho prateado.
"Daqui a pouco teremos constelações flutuando pela sala." Verônica, sem
perceber, começou a esboçar um sorriso zombeteiro. Policiou-se depressa, vendo que sir
Patrick a observava.
Marianne sentia-se envaidecida ao extremo. Estendeu a mão para pegar mais um
pedaço de bolo, junto a sua xícara de chá, ouvindo a repreensão suave:
— Não, minha querida. Doces demais não fazem bem a uma mocinha.
Patrick via a cena, imaginando que uma dama de companhia estaria, decerto,
apenas tentando evitar que a garota viesse a se tornar obesa, no futuro. Mal sabia que
Verônica, assim como ele, estava por demais enfadada com o tipo de conversa reinante.
— Mas eu gosto de bolos, Verônica.
— Pode comer minha parte — o Sr. Brough logo se prontificou. — O que poderia
significar um pedaço de bolo para mim, se ele fosse do desejo de uma jovem tão bela?
Verônica apenas fitou-o, em silêncio. E Patrick imaginou se queria, de fato, ligar-se
para a vida toda com uma menina tão fútil quanto Marianne, que queria porque queria
comer mais um pedaço de bolo...
No entanto, parecia ser esse seu trágico destino, já que todas as moças que
desfilaram diante dele na sociedade londrina nada mais eram do que cópias perfeitas
umas das outras. O que um homem precisava suportar para conseguir um herdeiro!
De repente, notou que Marianne lhe falara, mas suas conjecturas haviam-no
privado de ouvir uma palavra sequer. Verônica, percebendo o que se passava com ele,
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adiantou-se com a resposta, mesmo sem saber ao certo o que a levou a fazê-lo:
— Tenho certeza de que concorda com Marianne, sir Patrick, sobre os dramas
orientais de lorde Byron serem muito superiores a todo o restante de sua obra.
O assunto era-lhe estranho. Passara os últimos quinze anos muito longe da poesia,
mas não queria admitir que as batalhas que fora obrigado a travar do outro lado do mundo
o impediram de conhecer assuntes que alimentavam a banalidade das conversas dos
bem-nascidos.
— Bem, parece-me que aquilo que se passa em terras tão longínquas e
desconhecidas tende a ser muito mais... romântico do que as simples ocorrências de
zonas mais temperadas — comentou, mantendo-se neutro.
Verônica sentiu imensa vontade de rir. Patrick se saíra bem.
Pouco depois, quando o serviço de chá foi retirado, o grupo dispersou-se. Sir
Charles insistiu em jogar cartas com os Srs. Brough e Shaw, tendo Serena como sua
parceira, também desejando que Marianne se sentasse a seu lado a fim de que
aprendesse o jogo.
— Vamos, dê um tempo de folga a Verônica, minha linda — sugeriu Charles, cheio
de bondade e gentileza. — Mais tarde você vai me agradecer por isso, esteja certa.
Mas a moça não estava nada satisfeita, como Verônica pôde observar, divertida,
notando a expressão de tédio no semblante de sua pupila, por ter sido separada de sir
Patrick. Também era cômico perceber o desagrado de Serena, pelo mesmo motivo.
— Pedi a Stapleton para buscar meu cavalo, Sultan, a fim de que dê uma olhada
nele, Patrick — dizia sir Charles, distribuindo as cartas, evitando o olhar enfurecido de sua
esposa. — Talvez uma cavalgada possa animá-lo depois de passar o dia entretendo as
mulheres.
Parecia uma estratégia muito bem planejada para evitar que Serena ficasse perto
de seu hóspede favorito, decidiu Verônica, sem saber ao certo se sir Charles agia de
propósito. Viu sir Patrick afastar-se, após agradecer ao anfitrião, e voltou à leitura do
romance que tinha iniciado naquele mesmo dia.
No entanto, minutos mais tarde, a leitura tornou-se aborrecida pela estupidez
demonstrada pela heroína da história, e Verônica deixou de lado o volume, achando
melhor dar uma breve caminhada.
— Faça isso, sim, Verônica! — sir Charles apoiou sua decisão com entusiasmo. —
Um pouco do ar fresco do campo lhe fará muito bem! Você trabalha demais, minha cara.
Precisa descansar um pouco às vezes.
Verônica voltou-se e sorriu. Sir Charles podia não ser dos mais inteligentes
homens colocados na face da terra, mas tinha um grande coração. Merecia uma esposa
melhor do que Serena.
De repente, uma ideia atormentou-a, como acontecera algumas vezes: por que
nunca encontrara alguém tão gentil quanto Charles? A magnanimidade que ele
demonstrava para com todos era muitíssimo mais valiosa do que a esperteza que lhe
faltava.
Verônica pôs-se a passear pelo bosque que rodeava a propriedade. Sua visão de
si mesma não era nada positiva. Sua profissão não era interessante, sua vida parecia
nada valer. No entanto, agradecia aos céus por ter momentos como aquele, nos quais
podia afastar-se da frivolidade de Marianne e do veneno de Serena.
Caminhava devagar, tão absorta em divagações que mal se deu conta da sombra
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que surgiu diante de si. Era sir Patrick, e Verônica desculpou-se depressa, embaraçada e
incomodada com a sensação de insegurança que experimentava por ter esbarrado nele.
— Não se desculpe, senhorita. Eu é que estava andando depressa demais. É um
hábito antigo, forçado pelas marchas que acostumei a fazer pela Espanha, em meus
tempos de caserna. Pena não ter me encontrado sempre com senhoritas naquela época...
Verônica não conseguia atinar com o motivo da presença de sir Patrick ali,
passeando também. Não devia ter ido cavalgar?
— Venha! Sir Charles tem razão — disse ele, de repente, tomando-a pelo braço,
sem oferecer-lhe ao menos a chance de se desvencilhar. — Ó clima está excelente, e já
inspecionei o cavalo. Vamos encontrar uma bela vista para admirar, está bem?
Andaram um pouco, até chegarem a um pequeno lago, ao lado do qual havia um
banco feito de pedra, junto de uma estátua da deusa Flora. Patrick indicou o lugar e
acomodou-se também.
— Não se detenha por minha causa, sir. — Verônica e perguntava o motivo de o
nobre estar lhe dando tamanha atenção.
— Fique tranqüila. Não me interesso por baralho, e espero que não esteja
interessada em falar sobre obras de lorde Byron, tampouco. Vamos aproveitar este fim de
tarde maravilhoso. E, quando nos dermos por satisfeitos, poderemos caminhar de volta e
fazer um pouco de exercício, certo? Afinal, o jantar nos espera, e precisamos gastar
energia para podermos ter um bom apetite.
O pequeno demônio que parecia atiçar a mente de Verônica cada vez que estava
próxima de sir Patrick parecia se deliciar ao incitá-la a observar:
— A fome é o melhor tempero para todas as emoções, e tenho certeza de que o
senhor sabe disso.
— Fala por experiência própria, Srta. Verônica?
— Garanto-lhe que não há necessidade de ser experiente para sabermos tal coisa,
senhor. Poetas e filósofos sempre afirmaram isso, muito antes de mim.
— Mas eles devem ter aprendido por experimentação. E isso é de admirar, com
toda a leitura e os estudos que lhes tomavam o tempo...
Verônica percebia que, apesar de se afirmar apenas um mero soldado, sir Patrick
tinha sempre boas e espirituosas respostas, e agora parecia estar rindo-se dela. Gostaria
de ser muito mais jovem, mais despreocupada, como Marianne, e assim, qualquer coisa
que dissesse seria tomada sem maiores especulações, mesmo se fossem muito tolas. A
vida, de fato, é bastante injusta.
No entanto, como podia compreender naquele momento, a risada de sir Patrick
não tinha por objetivo deprimi-la ou deixá-la acabrunhada. Ele conseguia fazer com que
se sentisse mais solta, mais alegre, e não parecia haver explicação plausível para isso.
— Parece-me que poetas e filósofos têm uma compreensão quase instintiva para
interpretar o coração humano, senhor.
— Tem razão. Talvez seja por isso que a Srta. Marianne e todas as senhoras
fiquem tão emocionadas com os poetas. Pode ser que tenha de me instruir a respeito,
Srta. Verônica. Passei grande parte de minha existência em campo de batalha, por isso
me afastei dos estudos. Estou começando a perceber que há uma grande falha em minha
educação.
— Tenho certeza, sir, de que, se é de instrução que necessita, estaria muito melhor
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servido com outras pessoas do que comigo.


— Ao contrário. Acredito que não possa haver ninguém melhor do que a senhorita
para atender a meus propósitos. E estou certo de que lady Marchingham adoraria ver-me
satisfeito. No que se refere a conhecimentos culturais, quero dizer.
Como se ela, Verônica, pudesse ousar imaginar-se em outro campo de assunto
com ele, pensou, amargurada.
— Devo deixá-lo agora, sir. Não é conveniente que eu fique aqui fora em sua
companhia. O que lady Marchingham poderia supor? Não seria nada apropriado para
uma preceptora agir do modo como aconselha sua pupila a não fazer.
Sei que sempre fará o que é correto, Srta. Verônica. Lady Marchingham já me
assegurou várias vezes sobre absoluta confiança que deposita em sua discrição. E, corno
deve estar a par, acredito piamente nela. Verônica inclinou-se, numa reverência.
— Então, com sua licença, sir. Ah! Quanto a sua vontade de implementar sua
cultura, eu poderia sugerir-lhe esmerar-se no hábito da leitura. Comece com Viver e
Morrer em Santidade, de Jeremy Taylor. Há pensamentos belíssimos nessa obra, tão
interessantes que poderiam tornar até um exército em um modelo de comportamento,
quanto mais um capitão que já se tenha reformado.
E Verônica deu-lhe as costas, afastando-se por entre as folhagens que invadiam a
trilha do pequeno bosque. Ao longe, ouviu a risada abafada de sir Patrick, percebendo
que ali estava um homem onde o atrevimento e a malícia eram fartos, mas a boa
educação, em seu sentido mais amplo, perdia terreno.

CAPÍTULO III

Os vários membros do grupo convidado por Serena estavam aborrecidos e um


tanto calados, mas esperavam que seu bom traquejo social evitasse que seu verdadeiro
estado de espírito fosse notado.
Por sorte, o fato de estarem todos nas mesmas condições ajudou muito. Cada um
se ocupava de tal maneira com a própria desdita que dava pouca atenção aos demais.
Verônica era, talvez, a única exceção, mas mesmo sua habilidade em permanecer
apenas como uma observadora distante estava sendo testada naqueles dias. Marianne
mostrava mal humor porque deixaram Londres e o ano terminava, e assim não mais
poderia apresentar-se socialmente com tanta frequência.
Serena mantinha o azedume porque convidara sir Patrick achando que Charles iria
visitar várias outras de suas propriedades, deixando-a livre para divertir-se com o
convidado preferido. Charles, no entanto, mantinha-se presente o tempo todo em
Marchingham Place e não mostrava a menor intenção de partir.
Sir Patrick se entediava porque sentia-se enfadado de tudo o que o rodeava, além
de perceber que Serena não estaria disponível enquanto seu marido estivesse por perto.
Charles se sentia posto de lado pela esposa, percebendo o excesso de atenção
que ela dedicava a Patrick, o qual ele considerava um bom camarada. Não sabia se
conseguiria suportar aquela atitude de sua mulher por muito mais, entretanto.
Os Srs. Brough e Shaw se magoaram porque percebiam com clareza que
Marianne estava ocupada demais com sir Patrick, e Verônica não era bem o tipo de ninfa
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que poderia substituí-la em seus favores.


O Sr. Atyeo e sua esposa, convidados para fazerem parte do grupo, deprimiram-se
porque todos os demais pareciam assim também estar.
E o clima piorara um pouco, o que os obrigava a permanecerem dentro de casa.
Verônica imaginava que deveria julgar-se a mais infeliz de todos. Porém, uma
estranha sensação de euforia mantinha-a alegre por dentro. E isso, ela entendia, devia-se
à presença de sir Patrick.
Sempre que se via perto dele, uma espécie de veia satírica a invadia, tornando-a
provocativa a ponto de agir de modo inadequado. O problema era que, após os minutos
ao lado dele, a vida parecia-lhe vazia e sem outros interesses, pois as frases que trocava
com aquele homem faziam-na perceber tudo o que perdia o que perderia ainda mais
quando o lorde partisse.
Mesmo porque Verônica achava que sir Patrick não ficaria na propriedade muito
mais, visto que Serena não se encontrava disponível... O aborrecimento que ele mostrava
ao lado de Marianne era visível a todos, exceto à própria Marianne.
Outro problema que perturbava Verônica era a impressão de que, em meio a uma
das conversas com Patrick, poderia acabar dizendo algo impróprio para sua posição
naquela família.
Fosse como fosse, Patrick que continuasse a perseguir Serena para levá-la para a
cama e Marianne para o altar, mas que lhe falasse, visto que estava conversando muito
mais do que deveria com a preceptora de sua provável noiva.
Continuaria a instruí-lo sobre poesia e filosofia, como o próprio sir Patrick lhe pedia,
e deixaria o resto acontecer.
Certa noite, à hora do jantar, após um dia chuvoso, Verônica e Marianne se
preparavam para descer e encontrar os outros na sala de visitas. A garota usava um
vestido especial, escolhido por Verônica, no qual minúsculos miosótis acentuavam sua
beleza suave. No entanto, tanta formosura era, muitas vezes, subjugada pela absoluta
falta de interesse de seu discurso, como seus pretendentes já haviam notado.
Serena estava belíssima naquela ocasião, mais desejável do que o habitual. Seu
traje exaltava suas formas voluptuosas, e o leque que ostentava com graça era elegante e
refinado, devendo ter custado, ele apenas, muito mais do que todas as roupas que
Verônica vestia. O que não era de se admirar, uma vez que seu vestido fora ajeitado de
um outro, que lady Charlotte lhe dera após ter se cansado de usá-lo.
Sir Patrick olhou com atenção para as duas mulheres que adentravam a sala e as
diferenças entre ambas, em especial em suas vestimentas, saltavam a seus olhos. A cor
usada por Verônica eliminava qualquer combinação com a cor de sua pele e de seus
cabelos. E a touca de renda que colocara sobre a cabeça deixava-a envelhecida e sem
graça. Mal sabia ele que aquele era outro presente usado com o qual lady Charlotte
agraciara sua sobrinha pobre.
O jantar transcorreu com certa animação geral.
Louis, chef francês contratado por Serena, caprichara nos pratos. Verônica, porém,
não apreciou o sabor da comida e estranhou-se por isso. Fazia alguns dias que as
refeições servidas naquela mansão deixavam-na com uma espécie de nó no estômago,
que quase a impedia de respirar direito.
Sentada diante de sir Patrick, quedou-se em devaneio, vendo-se a abrir a camisa
dele e descobrir se seu peito era, de fato, tão parecido com o daquele Apoio aos pés da
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escadaria...
Tais pensamentos não só atrapalhavam seu apetite como também tornavam-na
mais corada, a ponto de chamar a atenção de Serena.
— Meu Deus, Verônica! Não me diga que está com febre! Era só o que nos faltava
depois destes dias de tempo tão ruim!
Mais uma vez, Verônica exercitou sua paciência impedindo-se de indagar quais
graves conseqüências poderiam advir se estivesse, pela febre, impedida de tomar conta
de Marianne ou de passear com o irrequieto poodle de Serena pelo jardim molhado,
atividades estas pelas quais era tão mal paga. Seria apenas impressão sua, ou sir Patrick
a olhara com certa simpatia após o comentário de sua prima?
— Poderíamos abrir as janelas — sugeriu ele. — Afinal, acredito que não só a Srta.
Verônica esteja com calor neste ambiente abafado.
— E estranho que Verônica esteja se incomodando com algo — Serena rebateu de
imediato. — Ela é sempre a única que se mantém de pé quando alguma doença aflige a
família.
Tanto o Sr. Brough quanto o Sr. Shaw olharam para Verônica com certo interesse
ao ouvirem tal comentário. Poderia não ser uma esposa tão ruim assim, já que quase
nunca ficava adoentada...
Após o jantar, na varanda, sir Charles aproximou-se dela. A lua nova no céu
tranqüilo tinha um brilho suave e fascinante.
— Não está adoentada, minha querida, está? — indagou, bastante preocupado. —
Entretanto, se estiver, não busque manter-se firme apenas para nosso agrado. Pense
mais em si mesma.
Verônica sentiu as lágrimas encherem-lhe os olhos diante de tamanha
compreensão. Mais uma vez doeu-lhe lembrar-se do modo abominável com que Serena
tratava um marido tão bom.
Procurou disfarçar seus sentimentos, porém, assegurando que seu mal-estar não
era nada sério.
— Mas insisto em que me ouça — sir Charles prosseguiu. — Não quero que
continue trabalhando demais. Anda muito pálida, Verônica. Será que Marianne tem sido
um fardo tão pesado?
Charles se voltou para olhar para a garota, que estava sentada a poucos metros de
distância, entre sir Patrick e Nigel Shaw, fixando-os como se desejasse que ambos
fossem os nobres mais nobres da Inglaterra. Meneando a cabeça, sir Charles sorriu para
Verônica e entrou na casa.
Tendo ouvido o que dissera o tutor, Marianne replicou, com um sorriso forçado:
— Tenho certeza de que Verônica não precisa ficar cuidando de mim como um
dragão à porta do castelo da donzela.
— Lindas princesas precisam de dragões que as protejam — comentou sir Patrick,
evitando olhar tanto para Serena quanto para Verônica, e, pela primeira vez, conseguindo
aborrecer as três mulheres ao mesmo tempo.
Marianne e Serena fuzilaram-no com o olhar, imaginando como pudera referir-se à
preceptora mais uma vez; e Verônica, desgostosa, indagava-se se seria assim, como um
dragão, que ele, de fato, a via.
Patrick se conscientizou de imediato da gafe que prometera e começou a tentar
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restabelecer seu charme, respondendo a uma pergunta sobre uma de suas campanhas
em Sydney, Austrália. Descreveu-a com tamanha vivacidade, bem como ao cotidiano da
cidade, que todos acabaram por esquecer o que falara antes.
— Ora, vejam! — Marianne exclamou, mais animada. — E eu que pensei que lá só
havia cangurus e condenados!
Verônica apenas ergueu os olhos do crochê em que trabalhava, um enfeite para as
cadeiras da sala de estar de Serena, que naquele momento pediu licença e se afastou.
— E quanto aos aborígines, sir Patrick? Imagino que os tenha encontrado em suas
muitas aventuras pelo país.
— Bem, Srta. Verônica, eles não incomodam, e ninguém se preocupa com sua
presença, devo dizer. São apenas parte do cenário.
— Bom para o senhor, mas, talvez, não muito para eles, não acha? — Examinou o
trabalho perfeito que desenvolvia.
Por algum motivo, essa última observação o irritou. E1a estava sendo irônica, sim,
procurando deixá-lo em uma posição desconfortável diante dos demais.
A maioria das mulheres que Patrick conhecera haviam sido vítimas rápidas de seu
poder de sedução, e não estava acostumado a ser tratado assim, ainda mais por uma...
dama de companhia. O que Verônica faria a seguir? Indicaria alguma leitura interessante
sobre as belezas do sul da Oceania?
— Aqueles aborígenes são imundos, Srta. Verônica. E seus hábitos são, eu diria,
desagradáveis.
— Ah, entendo... No entanto, se o que acabou de dizer é, de fato, verdade,
acredito que devam combinar muito bem com a paisagem. Se não combinam, devem ser
notáveis.
Verônica não conseguia explicar por que estava sendo tão impertinente com o
amante de Serena e provável futuro marido de Marianne. Muito antes de conhecê-lo, já
ficara a par de sua reputação de conquistador, e agora que reconhecia nele todo o
encanto sedutor de que ouvira falar sentia-se excitada de uma forma como jamais
estivera.
Isso em nada seria um bom exemplo para Marianne. Afinal, Verônica jamais
poderia imaginar que Patrick tivesse intenções sérias para com ela. Estava ali apenas
para fingir interessar-se pela moça e despistar seu real objetivo, que era Serena.
Uma pena Charles ser, mais uma vez, enganado... Todos acabariam rindo às suas
costas, como já acontecera muitas vezes antes.
Verônica também não se importava em descobrir por que o relacionamento de sir
Patrick com Serena incomodava-a tanto, já que todos os outros, anteriores, haviam sido
indiferentes para ela.
— Você é sempre tão severa, Verônica! — queixou-se Marianne, num muxoxo. —
Não ligue para ela, sir Patrick. Verônica sempre critica tudo. Nem eu escapo de sua língua
ferina!
A intenção de Marianne, ao fazer tal afirmação, foi mal-interpretada por ele. Ela
esperava que Patrick agradecesse por sua observação, mas, ao contrário, seu comentário
foi:
— É parte do trabalho de uma preceptora ser crítica quanto ao comportamento da
moça de quem cuida, senhorita. Como é parte de sua reação não gostar dessas críticas.
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— Percebo que ter estado na caserna conferiu-lhe uma visão muito apropriada do
que é certo e errado, senhor.
Verônica se surpreendeu pela defesa que ele, talvez sem querer, lhe fizera. —
Acredito que deva estar seguindo o exemplo de seu superior, o duque de Wellington.
Patrick não compreendeu bem se aquilo era um elogio ou um comentário satírico,
mas percebeu que Marianne não estava gostando de ter sua dama de companhia incluída
na conversa.
Serena apareceu naquele momento, ainda mais deslumbrante do que quando
saíra.
— Todos parecem tão solenes! Posso saber qual era o assunto que discutiam?
— Sobre nativos. — Patrick foi rápido e mordaz.
— Que criaturas entediantes eles devem ser... — Marianne interferiu, mais
petulante do que nunca. — E não estávamos falando propriamente deles. Verônica foi
quem insistiu no assunto.
Patrick olhou para a garota, achando-a, de novo, desagradável. Sua simpatia
estava com a preceptora, a qual, com tranqüilidade, parecia ignorar tanto o que se falava
a seu respeito quanto o que lhe ia no íntimo no momento.
— Bem, não tenho a menor intenção de conversar sobre aborígenes com ninguém
— Serena afirmou, categórica. — Charles acabou de me informar que irá, enfim, visitar
algumas de nossas propriedades em Asheworth amanhã. Que pena! Sentirei tanto sua
falta aqui... E, como ele mesmo me pediu, devo convidar seu irmão James para participar
de nossa reunião. E, como James mora com sua adorável mãe, suponho que ela também
venha. Espero que me ajude a recebê-los, Patrick. James é um homem um tanto rude
para meu gosto.
Tal atitude gerou diferentes reações nos que a ouviam.
— Acho que é sério, sim, sir Patrick, mas só de vez em quando. E tenho motivos
para crer que suas atenções estejam voltadas para outra pessoa.
Patrick quase soltou um assobio de admiração. Verônica estava sendo franca ao
extremo.
— Quanta severidade, Srta. Verônica! E, além disso, não acho que a Srta.
Marianne pudesse ser enganada ou ferida com tanta facilidade.
— No entanto, continuo não acreditando em suas boas intenções, senhor. Poderia
jurar que estou enganada?
Patrick demorou a responder. Então, deu de ombros e manteve o bom humor.
— Bem, não importa o que eu diga, acho que vai continuar me hostilizando,
senhorita. Isso, parece, já se tornou um hábito. Lady Marchingham, convidou-me para que
conhecesse Marianne melhor. Como deve saber também, tanto eu quanto ela somos
bons partidos.
— Sim. Sei muito bem porque está aqui, sir Patrick, e não tenho dúvida de que
alcançará sucesso em seus objetivos. Mas agora acho que deveria afastar-se e conversar
com outra senhora. Já falou o suficiente com a preceptora. Se continuar, poderá causar
estranheza aos hóspedes.
Ele gargalhou.
— Por favor, pare com essa agulha, senhorita, e preste atenção a mim. Não tenho
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a menor intenção de deixá-la ordenar o que devo ou não fazer. Nós, do septuagésimo
terceiro regimento, nunca fugimos, nem no campo de batalha nem em nenhum outro lugar
ou situação. Sempre recebemos nossos ferimentos no peito. E não pretendo receber seus
dardos pelas costas. Continuarei aqui, sim, e minha campanha será vitoriosa, como
sempre. Um homem deve vencer a preceptora de sua provável noiva, e vejo que terei
uma refrega com a senhorita daqui em diante.
Verônica levantou-se.
— Visto que não acredito em uma palavra do que diz sobre Marianne, julgo que
devo me retirar e levá-la comigo, E, se crê que temos uma batalha a travar, teremos de
lutá-la em outra ocasião. Sei que acabará vitorioso, porém, o que deverá satisfazê-lo
sobremaneira — Ela agora sorria, consciente de sua ironia. — Boa noite, milorde.
— Para a senhorita também, já que se recusa a lutar agora. Amanhã será um novo
dia, como nosso duque sempre costumava nos dizer no front.
Patrick se ergueu, inclinou-se numa saudação e devolveu o novelo que caíra mais
uma vez dos joelhos dela. Completou, então, num sorriso malicioso:
— Como vê, continua precisando de roeu braço forte... Em silêncio, Verônica
afastou-se e falou com Marianne, levando a garota emburrada para o quarto.
Patrick, em seus aposentos, desabotoou o paletó para sentir-se mais à vontade, e
encaminhou-se para a ansiosa Serena.
Deveria estar tão alegre quanto ela, mas sentia-se entediado. Ali estava, prestes a
desfrutar daquilo pelo que viera a Marchingham Place, contudo, ao dirigir-se para o
corredor, nada havia em seu coração que o animasse.
Talvez fosse melhor esquecer Serena e voltar para sua própria cama, mas nem
isso parecia-lhe agradável. Além do mais, como Serena iria encarar tal desfeita?
Por algum motivo, não conseguia tirar Verônica da cabeça, embora ela lhe
parecesse fria como gelo.
Um bocejo surpreendeu-o. Sentia sono quando deveria estar prestes a cair nos
braços de Serena!.Ela ficaria furiosa se não fosse vê-la. Era preferível enfrentar a vontade
de dormir e a falta de disposição do que a fúria de uma mulher rejeitada.
Sem entender por que, indagou-se quantos outros homens teriam feito aquele
mesmo caminho antes dele. Isso, até então, nunca havia lhe importado, mas naquele
momento o pensamento causou-lhe náusea.
Bateu de leve na porta e foi atendido de pronto. Serena colocou o indicador sobre
os lábios e conduziu-o para dentro, com um sorriso feliz.
Patrick respirou fundo; era tão fácil... Serena ajudou-o a despir-se e logo estavam
entre as cobertas. Mais uma vez, Patrick recordava o olhar frio de Verônica. Tentou
afastar a imagem.
Minutos depois, partilhava momentos de intenso desejo com Serena, pois não
havia como negar que ela era belíssima e sabia amar muito bem. Estavam já envolvidos
em afagos e gemidos quando, de repente, uma comoção do lado de fora os fez parar e
prestar atenção. Luzes de tochas, gritos, cavalos, rodas de carroças no pátio da frente e
homens falando palavras ininteligíveis. Dentro da mansão, passos apressados no cor-
redor indicavam que os criados, acordados de repente, acudiam o que quer que fosse.
Serena sentou-se, afastando-se de Patrick, a volúpia esquecida por completo.
— Meu Deus! — exclamou, pálida. — Charles está de volta! Não podem encontrar
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você aqui!
— Lógico que não!
Patrick saltou do leito e se pôs a recolher suas roupas. Não sabia como poderia
escapar daquela situação, visto que não havia possibilidade de sair para o corredor, pois
poderiam vê-lo.
Vestiu depressa a calça, e estava a ponto de colocar a camisa, quando Serena
puxou-a de suas mãos, protestando:
— Não há tempo para isso! Deve sair imediatamente! Oh, meu Deus, acha que
Charles voltou de propósito?
Patrick sabia muito bem que um marido ultrajado era algo perigoso demais para
ser enfrentado. Uma retirada estratégica era sempre melhor do que uma refrega com
poucas chances de vitória. Olhou para, a janela e sentiu as mãos de Serena empurrando-
o para ela.
— E o único caminho possível, Patrick. Depressa ou estarei arruinada! — E pegou
o resto dos trajes dele, empurrando-os com o lorde.
Mesmo num momento de tanta urgência, o bom humor não o abandonava. Fora
assim desde que tivera de deixar seu lar para juntar-se ao Exército, e jamais e deixara
abater pelo perigo.
Tão diferente de Serena, que o expulsara, jogara suas roupas janela abaixo e não
se importara em deixá-lo ali, na sacada estreita que cercava a volta toda da residência, no
frio, descalço e vestindo apenas a calça.
— Vá! — insistiu ela, com a janela já quase fechada. — Ande! Há um quartinho de
despejo logo ao lado. Entre lá pela vidraça e espere até essa confusão passar. Depois
volte a seu dormitório sem ser notado!
— E se a janela estiver trancada?
— Ora, nem pense nisso!.
E Serena voltou para dentro, trancando a gelosia atrás de si e enfiando-se de volta
na cama.

CAPÍTULO V

Patrick encontrava-se numa sacada estreita, com uma elegante balaustrada de um


lado e a parede da casa de outro. Por sorte, a noite estava calma e bonita, e o aroma das
flores nos jardins abaixo chegava, suave, a suas narinas.
Os sentimentos que o tinham invadido pouco antes de se dirigir ao quarto de
Serena estavam em seu peito outra vez mas seu bom humor não o abandonava. Sentia-
se um tolo, mas agradecia a Deus por ter conseguido um modo de escapar. Precisava ser
cuidadoso agora, ou não teria atrás de si as balas do inimigo, mas o ódio de um marido
ultrajado.
Continuou caminhando muito devagar, pé ante pé, imaginando se as pedras que
pisava suportariam seu peso até que atingisse a janela a que Serena se referira. Não
podia deixar de ter pensamentos trágicos e engraçados ao mesmo tempo: e se o
encontrassem morto, lá embaixo, seminu? O que poderiam pensar?
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Achou graça. O perigo sempre o excitara ao extremo, e não se podia furtar à


comicidade de tudo aquilo.
Sentiu alívio quando, ao alcançar o parapeito, viu o vidro meio aberto. Esgueirou-
se por ele, em silêncio, entrando para a escuridão do outro aposento.
Um arrepio passou por sua pele. O suor devido a se breve e ardente encontro com
Serena secava, frio, em seu torso nu. Era necessário esperar que os ruídos
desaparecessem e a casa voltasse a quietude para poder ultrapassar os poucos metros
de corredor que o separavam de seu quarto.
De onde estava, ouvia os ruídos da chegada de sir Charles ao dormitório de sua
esposa. Parecia estar num ambiente vazio, o que era perfeito na atual situação. Não
queria sequer imaginar o que poderia fazer, caso aquele cômodo providencial não se
encontrasse ali.
Cruzou-o, a visão acostumando-se aos poucos à escuridão. Queria achar uma
cadeira ou coisa parecida onde pudesse sentar-se e aguardar até conseguir uma
oportunidade para sair. Desde que, é claro, a porta não estivesse trancada pelo lado de
fora...
Encontrava-se alguns passos distante da janela quando ouviu uma voz vinda do
leito recoberto por um fino véu:
— Quem está aí?
Patrick parou onde estava, o coração aos pulos. Definitivamente, aquela não era
sua noite de sorte. Muito menos a de Serena. O sobrevivente de tantas batalhas fora
capturado, afinal.
Ouviu ruídos de fósforos e, antes que pudesse atingir a porta, uma pequena chama
de vela se acendeu.
Viu uma mulher loira, de cabelos compridos e soltos sentada na beirada do leito.
Reconheceu-a de imediato: era a preceptora de Marianne!
Mas seu rosto, sempre impassível, tinha um sorriso vago a iluminá-lo. Entretanto,
mesmo assim, Patrick indagava-se se ela iria gritar e sair correndo a qualquer momento
ou ficar ali, olhando-o, sem ação. Afinal, Verônica tinha a vida de Serena, e a dele, em
suas mãos.
Verônica apenas observava a imagem que lhe era projetada pela luz fraca em meio
à escuridão. Sabia que sir Patrick devia achar que começaria a gritar a qualquer
momento.
— Sir Patrick Ramsey... Não está em quarto errado, milorde?
A frieza dela era exemplar, e fez Patrick engolir em seco.
— Bem, com certeza, não estou no lugar certo...
— Mas estava, minutos atrás, eu suponho. Até que sir Charles chegou, de modo
tão inesperado... Espero que tenha sentido falta dele também. — Verônica falava num
tom tão sardônico que poderia ser desagradável.
No entanto, para surpresa de Patrick, não era.
Verônica admirava o sangue-frio, a audácia e o corpo másculo que vislumbrava na
penumbra. A parte moral podia ser deixada de lado por enquanto.
— Olhe, se eu ficar aqui por mais tempo, receio que seja sua reputação que
poderá ser posta à prova, senhorita.
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Verônica puxou um xale e colocou-o sobre os ombros, cobrindo parte de seus


cabelos, o que Patrick achou uma pena. As longas ondas douradas suavizavam a
expressão do semblante, que ele achava muito bonito agora.
Verônica decidiu exercitar um pouco sua veia irônica com sir Patrick. Afinal, era o
que ele merecia por seu mau comportamento.
— Não deixou o resto de suas elegantes roupas no aposento ao lado, suponho...
Charles poderia encontrá-las.
Os lábios dele se curvaram num sorriso malicioso.
— Lady Marchingham jogou-as janela abaixo, senhorita.
— Que pena! Sorte do jardineiro, que virá pela manhã. Os arbustos que trata com
tanto carinho o recompensarão produzindo lindas peças masculinas.
— Está se divertindo porque a despesa para repô-las não será sua, senhorita.
— Mas o senhor é rico o suficiente para suportar a perda.
Patrick ponderou por instantes, sem poder deixar de admirar o autocontrole
daquela jovem.
— Posso indagar o que está fazendo aqui? — perguntou, por fim. — Serena me
disse que este lugar estava vazio.
— E estava, de fato. Mas aquele que eu ocupava foi considerado bom demais para
uma preceptora, quando outros hóspedes precisaram dele. Portanto, fui removida para
cá. Suponho que Serena não tenha sido informada a respeito. Aliás, ela não foi informada
de muitas coisas.
— Incluindo o retorno de sir Charles — Patrick completou, próximo da saída.
— Estou emocionada por sua preocupação por minha reputação, milorde, e não
pretendo detê-lo, mas acho que ir agora não seria prudente. Há criados circulando pela
mansão, ainda. Acredito que não gostaria de ser visto saindo daqui... Por que não se
senta e espera um pouco mais? Talvez queira conversar sobre algum assunto erudito,
como expressou que gostaria, outro dia. Se assim for, estarei a seu inteiro dispor.
Verônica se admirava consigo mesma. Chegara a desejar vê-lo daquela maneira,
pouco antes de adormecer, e agora que o tinha ali, diante dos olhos, sentia vontade de ir
adiante com a situação...
Rindo diante de tal impertinência, Patrick assentiu e sentou-se numa velha poltrona
de canto, procurando não se expor demais aos olhos dela. Afinal, precisava manter um
mínimo de compostura, embora entrar nos aposentos de uma donzela, no meio da noite,
estivesse longe de ser considerado de bom-tom.
— E sobre o que propõe que conversemos, Srta. Verônica? Sou todo ouvidos.
— O que acha do Cristianismo como crença racionalmente determinada no país?
— Eu adoraria — mentiu ele, ainda sorrindo.
— Pois bem, como diz o reverendo Paley...
— Senhorita, acaba de me surpreender — Patrick interrompeu-a. — Posso
imaginar a defesa do Cristianismo, é claro, mas as ideias do reverendo Paley são um
tanto... estranhas para mim.
— Como vê, precisa mesmo de instrução a respeito, senhor. Uma vida inteira como
soldado deve ser muito cansativa, e decerto deixa o cérebro de um homem sem muitas

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opções para se exercitar. Embora, lógico, eu esteja convencida de que o imperador


Bonaparte possua poderes racionais e analíticos que estejam além
do normal.
— Mas sou muito semelhante a ele! Para começo de assunto, Napoleão é corso e
tem um pouco mais de um metro e meio de altura.
Verônica fitou-o de cima abaixo, tentando evitar a forte impressão que seu tórax
largo e seus músculos lhe provocavam. Era melhor fixar o pensamento em coisas mais
elevadas.
— Não acredito que haja uma ligação entre o intelecto e a estatura, senhor —
ponderou, séria.
— Então seria interessante saber qual é a altura do reverendo Paley. A propósito, a
senhorita ainda não me disse as ideias dele.
— Não creio que eu consiga, já que se ocupa em discutir e comparar sua
compleição com a do imperador Napoleão e a do reverendo Paley, senhor.
— Mas é um ponto tão interessante! O reverendo Paley ainda vive? Seria possível,
por exemplo, para mim, sentar-me a seus pés e aprender direto da fonte sobre as
maravilhas que ele falou?
— Não. Ele morreu em 1805. Mas o senhor poderia ir até sua tumba e adorá-lo ali
mesmo.
— Que pena! — ele continuava, com o sarcasmo. — Porém, tenho certeza de que
a senhorita poderá repor a perda desse nobre pároco antes que eu tenha tempo para me
deslocar até lá. Agora, por favor, fale-me o que ele pensava, sim?
O jeito de Patrick, ao dizer aquilo, foi de uma malícia tão séria que a fez rir.
Verônica teve de cobrir os lábios com as mãos para não gargalhar e, assim, despertar a
curiosidade dos demais, em especial de Serena e Charles, logo ao lado.
Ao vê-la rir com tanto gosto, Patrick a imitou, contagiado. Sua situação ali era tão
absurda quanto sua conversa.
— Ora, esqueça o ensinamento maior do reverendo, milorde. Ele apenas falou que,
se alguém encontrasse um relógio em seu caminho, deveria imaginar que havia, no
mundo, um relojoeiro. E ele se referia a Deus, com certeza.
— Oh! Mas, como não sou muito bom em lógica, não me fascinam tais assuntos.
Será que não tem algo mais interessante sobre o que poderia me ensinar?
Verônica sorriu.
— O senhor consegue derrubar qualquer assunto com as coisas engraçadas que
diz. Por que não tenta me entreter, desta vez? Conte-me algo real, já que leve uma vida
tão intensa.
— E se o que eu tiver a relatar não for de seu agrado por ser, digamos...
indecoroso?
— Sir Patrick, o senhor não me parece ser do tipo que tenha passado a existência
apenas procurando e exercitando prazeres. Longe disso.
Ele se tornou sério de repente.
— Como pode saber, senhorita?
— Não sei. Sou apenas uma grande observadora. Patrick assentiu, voltando a se

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mostrar alegre.
— Está bem. Vou lhe falar sobre o tempo em que estive na Espanha, então.
— Ótimo! Houve uma retirada de suas tropas por lá, não? — ela brincou.
— Houve, sim. Mas posso lhe assegurar que minha vida não foi só feita de
retiradas.
E, para sua própria surpresa, Patrick passou a revelar-lhe como fora guerrear na
península. Falou sobre os momentos difíceis, os medos, os bons companheiros, o cenário
selvagem, os amigos que acabou fazendo, a perda de outros e a liderança de seu
general, sir Arthur.
— A senhorita não seria capaz de imaginar o que era vê-lo aparecer, sempre frio e
altivo. O momento podia ser difícil e o clima, chuvoso e gélido, mas o general queria
vencer, e colocava em nossas cabeças essa mesma vontade, era essa certeza que nos
empurrava para a frente, para vencermos o inimigo.
Então, um silêncio profundo envolveu o quarto. Patrick calou-se, a cabeça um tanto
inclinada sobre o peito, pensativo.
Verônica, pelo que acabara de escutar, começava a conhecê-lo de outro modo,
muito diferente do fanfarrão amante de Serena. Ali estava um homem a ser admirado por
sua bravura, sua força, sua vontade de viver. Emocionara-se ao falar dos tempos do
Exército. Tinha sido um soldado valoroso, sem dúvida.
— E quanto ao sul de Gales, milorde? O que pode me contar sobre o que houve?
— Lá, foi tudo muito diferente. Éramos corno policiais procurando manter a
obediência à lei. Mas também isso não era simples. Tivemos de enfrentar uma pequena
rebelião, mas matar camponeses desgostosos com sua miséria não é minha ideia de
fazer parte do Exército. Contudo, fiz bons amigos, também. Um deles, um ex-condenado,
imagine só. Mas isso é outra história, não para hoje.
— Sente falta daqueles tempos, não é? — Verônica olhava-o, atenta, começando a
gostar dele, além do apelo físico, que era o que, até aquele instante, a impressionara em
Patrick.
— Sinto, sim. Meu tempo no front, como Otelo, acabou. Como vê, não sou assim
tão iletrado. Jack Macandrew sempre carregava seu livro com algumas obras de
Shakespeare, e leu algumas partes para mim. Como quando pedi baixa porque herdara
minha fortuna. Jack disse que minha melhor fase acabara. E estava certo. Acho que não
fui feito para a paz e o lazer.
Patrick percebia que, falando sobre o passado, se dera conta de sua insatisfação
com o presente. Não era mais um soldado, mas não se sentia como um civil. E ainda não
encontrara um objetivo novo.
Verônica notou que, além das paredes do quarto, tudo voltara ao normal.
— Acho que já é hora de o senhor partir, milorde. Patrick levantou-se e fez um
cumprimento.
— Boa noite, Srta. Verônica.

CAPÍTULO VI

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Verônica estava na varanda, em um de seus poucos momentos de paz, onde pre-


tendia ler as três cartas que recebera, que lhe haviam sido entregues por sir Charles.
Pegou primeiro a missiva de seu avô. A cada seis meses, mais ou menos, ele
achava que era seu dever escrever à neta. Não tinha carinho por ela, nem por sua irmã
mais nova e já casada, Mary, que eram filhas de seu único filho, um jovem oficial muito
pobre, que, com sua morte numa batalha de menor importância, deixara às garotas
apenas dívidas. Verônica saldara-as todas, com grande dificuldade.
O general Transome também não tinha posses. Nada deixaria para as netas; nem
em dinheiro, nem em amor. Muitas vezes, Verônica chegara a imaginar que, caso fosse
obrigada a mendigar pelas ruas, seu avô nada mais diria do que: "O que mais eu poderia
esperar dela?".
Talvez, se fosse um homem, na posição em que se encontrava, sempre à beira da
miséria, Verônica imaginava que poderia ser dada a beber.
A carta do general era quase uma cópia da anterior. Esperava encontrá-la bem,
estava, ele mesmo, com boa saúde, mesmo já sendo idoso, e tinha contratado um novo
contador. O final da missiva transcorria como sempre: "Dê minhas lembranças a minha
sobrinha-neta, lady Marchingham, e a seu marido, sir Charles. E também agradeça a eles
por mim, já que estão cedendo um lar a você. Sinceramente, seu avô Alastair Transome".
A outra mensagem era de sua irmã, e em nada melhor do que a que acabara de
ler, nos moldes de uma longa queixa sobre sua vida infeliz. Ela assim a terminava: "E,
para piorar tudo, as crianças estão com sarampo. Você não pode imaginar como é
afortunada por ser livre e não ter um marido ingrato e quatro crianças choronas às quais
tem sempre de agradar".
"Livre? Livre para fazer o quê? Para passar fome ou atender às ordens de todos,
dia após dia, usando uma touca horrível sobre os cabelos, que acaba por tirar qualquer
atrativo que eu possa ainda ter?!", pensava Verônica, amargurada.
Mas, logo em seguida, arrependia-se: "Preciso deixar de reclamar de meu fardo.
Passei os últimos dez anos suportando-o com certa alegria, e não vou vacilar agora. Não
quero sentir autopiedade, como Mary".
Então, endireitou a coluna, procurou sorrir, mesmo sem motivo algum e voltou a
ser a Verônica de sempre.
A terceira carta era de sua antiga governanta, Srta. Eleanor Mabbs, e Verônica a
deixara por último por saber, de antemão que pelo menos aquela lhe traria certa alegria.
Abriu o envelope e sorriu assim que viu a caligrafia perfeita da senhora idosa, a qual a
ensinara, bem como a sua irmã, as primeiras letras. Dizia a mesma:
"Querida Verônica, tenho novidades que, espero, sejam de seu agrado. Meu irmão
solteiro faleceu há pouco, o pobrezinho, e me deixou suas posses, as quais, embora não
muitas, são suficientes: um chalé e terras perto de Alnwick e uma boa quantia em
dinheiro. É incrível que tais coisas possam trazer felicidade, querida, mas trazem.
Doce menina, sei por experiência própria o quanto sua vida deve ter sido infeliz até
o momento. Abandone tudo, eu lhe peço, e venha morar com sua Mabbs. O que tenho é
suficiente para manter-nos instaladas com conforto. Seremos companheiras uma da outra
e poderemos fazer longas e adoráveis caminhadas à margem do lago.
Não consigo imaginar outra pessoa cuja companhia possa me fazer mais feliz,
além de você. Sempre nos demos tão bem! A Nortumbria é uma região muito pitoresca,
tenho aqui uma boa biblioteca e há uma loja de livros na cidade, que, tenho certeza,
suprirá a contento sua voracidade pela boa leitura. Sua existência será calma, mas muito
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harmoniosa, pode acreditar.


Tudo o que tenho será seu quando eu morrer, já que não possuo mais parentes. E,
quem sabe, talvez algum proprietário das redondezas se encante com sua doçura e sua
esperteza, minha cara, e a tome por esposa. Portanto, peço-lhe mais uma vez, pense
com carinho em minha oferta. Estaria livre da penúria e das humilhações que sei que
deve passar aí, Verônica. Não precisará mais viver da caridade de seus parentes ricos.
Venha e faça Uma velha amiga feliz. Espero ter notícias suas em breve.
Com muito afeto,
Eleanor Mabbs".
A diferença entre aquela carta e as outras duas trouxe lágrimas aos olhos de
Verônica. Não duvidava da sinceridade dos sentimentos da Sra. Mabbs, e a ideia de ver-
se livre da servidão era-lhe por demais agradável. Era como se tivesse nas mãos um
passaporte para sair de um mundo onde sempre vivera na periferia, sendo mais um
objeto a ser usado e abusado por todos do que um ser humano com sentimentos.
Mais animada, sua expressão tornou-se maio suave, e seus passos, mais leves e
ligeiros.
Uma vaga sensação de irresponsabilidade tomou-a.
O que lhe importava como iria agir ali de agora em diante, já que tinha uma nova
vida acenando-lhe, cheia de alegria e paz? Pois não havia dúvidas de que aceitaria
oferecimento, mesmo que tivesse de envelhecer ao lado de Mabbs e jamais vir a ter a
oportunidade de se casar e ter sua própria família. Deixou a varanda, dobrando as folhas
e sentindo-se uma nova mulher.
Encontrou sir Patrick no hall. A mudança que se processara nela era por demais
evidente para que ele não a notasse.
Patrick vestia seus trajes de equitação e pareceu-lhe um centauro, metade homem,
metade cavalo, uma força e uma masculinidade exalando de seu corpo em ondas
magnéticas. Seus modos eram impecáveis como sempre, e inclinou-se assim que a viu.
— Parece que dormiu bem, Srta. Verônica.
— Com certeza, senhor. Fui muito bem incentivada a tanto.
O rosto de Patrick se animou diante daquela resposta.
— Imaginei que os acontecimentos de ontem fossem por demais sem precedentes
para que ficasse um tanto... chocada com eles.
— De modo algum. Um pouco de tempero sempre deixa nossos dias mais
interessantes. E uma conversa animada à meia-noite é algo que eu recomendaria a
qualquer pessoa.
— Concordo, mas... eu diria que tais frases deveriam sair mais da boca de um
soldado do que de uma preceptora.
— Sou filha de um soldado e neta de outro.
— Ora, ora! Cavalga também, então? Porque nunca a vi ao ar livre...
— Não tenho montaria, senhor.
Alguma coisa no tom de voz dela o atingiu.
— Há estábulos cheios de cavalos aqui, senhorita.
Vou falar com sir Charles para que possa cavalgar comigo antes que eu parta. É
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permitido que preceptoras cavalguem, eu presumo.


— Estou tentando esquecer o que as preceptoras podem ou deixam de poder,
senhor. — Verônica ainda estava sob a influência da carta de Mabbs. — E pretendo
cavalgar com o senhor se Charles me emprestar uma égua, e se meus trajes de
equitação ainda me servirem.
— Esplêndido! Vejo-a mais tarde, então, talvez no almoço.
— Se Marianne conseguir se levantar até lá, acho que todos almoçaremos juntos.
— E se afastou, sentindo-se ótima, como se os grilhões da servidão lhe tivessem sido
arrancados dos pés.
Patrick ainda guardava nos olhos o sorriso que Verônica deixara no ar, um tanto
ousado, sensual, até. Animada, ela era muito mais bonita, e alguma coisa acabara com
aquela sua atitude tão severa.
O que poderia ter sido? Sua entrada abrupta em seu quarto, na véspera? Seria
aquela dama de companhia uma mulher fogosa que ocultava sob as vestes sóbrias um
corpo cheio de ardor e sensualidade?
Já admirava sua sagacidade, sua cultura, e estava ansioso por vê-la cavalgar. Que
mulher maldosa e mesquinha era Serena por manter sua prima vivendo sob tamanha
humilhação! Seria, quem sabe, por isso que Verônica não podia vestir-se um pouco
melhor. Gostaria tanto de vê-la num traje da moda...
Riu de si mesmo por estar tão impressionado. E, mesmo sabendo que era, quase
sempre, o alvo da língua afiada que Verônica possuía, sentia-se alegre e animado como
nenhuma outra mulher jamais o fizera sentir-se.
E, além disso, por que não podia dar-se ao luxo de aproveitar a situação? Já
fantasiara o suficiente para imaginar Verônica nos braços de um soldado sedento por
sexo... Se estivesse no lugar do tal soldado enquanto passava aqueles dias ali, seria
maravilhoso! Poderia até suportar melhor o fardo de ter que mostrar-se gentil para com
Marianne Temple, com a qual, agora estava mais do que certo, jamais se casaria.
Verônica indagava-se se deveria ser mais cuidadosa, percebendo com clareza a
mensagem que o olhar de Patrick lhe enviava. Estava prestes a deixar a vida que levava,
e a ideia de vê-lo cortejando-a, fosse pelo motivo que fosse, agradava-a.
Patrick era um homem fabuloso, e Verônica sentia cada parte de seu corpo se
inflamar com a ideia de pertencer a ele, mesmo que fosse apenas por alguns momentos
de prazer.
Não estava acostumada a conceder-se tais pensamentos, e as sensações fluíam,
soltas, dentro de suas veias, deixando-a tonta.
Não entendia o que se passava em seu íntimo. Uma ansiedade extrema a tomava,
como se fosse a preferida de um sultão prestes a entrar nos aposentos dele...
Sentia-se, ao mesmo tempo, uma tola. Todos aqueles anos de solidão, de
distância do sexo oposto, punham-na agora à mercê de um rapaz que lhe inspirava uma
paixão sem freios. Se estava tão agitada apenas por se ver perto dele, como seria se
Patrick a levasse para a cama?!
Procurou afastar tal ideia, sabendo que suas faces em brasa deviam estar rosadas
demais. Encaminhou-se ao quarto de Marianne, apresada, ainda imaginando-se livre,
tanto para viver quanto para amar.
A hora do almoço, conforme descia as escadas, Marianne percebeu que sir Patrick
ainda vestia seus trajes de equitação. Apressou-se, então, a pedir-lhe que a levasse para
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um passeio.
Brough e Shaw, de imediato, convidaram-se para acompanhá-los. Serena e Lídia
Oughton trocaram olhares divertidos diante da situação, e ambas, mais a Sra. Atyeo,
anunciaram não ter interesse em participar de tal atividade.
Serena detestava cavalos, outra atitude sua que a afastava de seu marido, para o
qual aquelas eram as criaturas mais belas da natureza.
Patrick fitou a garota com especial desinteresse, ainda mais quando soube que a
montaria dela seria a mais velha e dócil égua das cocheiras.
— E a senhorita? — indagou ele, voltando-se para Verônica. — Estou certo de que
virá conosco.
Serena olhou-o de pronto. Não gostava da situação que se estava criando.
Convidara Patrick para gravitar em torno de Marianne, e não para se envolver em
conversas ou passeios com Verônica. Pelo que podia lembrar, sua prima era uma
excelente amazona na época em que ainda lhe era permitido cavalgar, e não queria que
suas habilidades fossem agora admiradas pelo homem que julgava seu.
— Verônica já não cavalga — praticamente ordenou. — Além do mais, ela não tem
montaria própria.
Patrick ia retrucar, mas Charles foi mais rápido:
— Lady Marchingham, minha esposa adorada, obrigado por ter me lembrado de
quanto tenho sido mau com nossa querida Verônica. E lógico que ela deve ter um cavalo.
Nossos estábulos estão cheios deles. E, pelo que recordo, Verônica costumava ser uma
excelente amazona.
— Duvido que ela tenha trajes para tanto — Serena rebateu, querendo colocar um
ponto final na conversa.
— Então, deve emprestar-lhe um dos seus, meu amor, já que, como todos aqui
sabem, você é tão gentil.
— Apesar de minha gentileza, querido, é mais do que óbvio que Verônica é bem
maior do que eu. Sua sugestão, portanto, é ridícula.
— Então... temos de arranjar outra solução para nossa querida Verônica —
Charles insistiu, com cândida indiferença à posição da esposa.
Verônica mal podia acreditar que toda aquela discussão fosse por sua causa.
Jamais fora tão importante assim para despertar a atenção dos demais. Até Marianne a
estava fixando com raiva, disposta a não dividir as atenções de um cortejador com sua
preceptora.
Por alguns segundos, Verônica chegou a pensar em se retratar, em dizer que
agradecia a bondade de todos, mas que preferia não ir. No entanto, a carta de Mabbs
ainda palpitava dentro dela. Assim, com inesperada alegria, decidiu aceitar:
— Ainda guardo minha antiga roupa de montaria, e, embora esteja velha e um
tanto apertada para mim, creio que não haverá problemas em usá-la. Além do mais,
montar um bom cavalo outra vez seria maravilhoso! Obrigada, sir Patrick! Obrigada,
Charles!
— Muito bem, Verônica! — sir Charles aprovou, entusiasmado. — Vá se trocar
agora mesmo. Stapleton encontrará um belo animal para você.
Verônica subiu correndo a escadaria, rindo das feições furiosas de Marianne e
Serena. Não se importava mais. Seria delicioso poder cavalgar de novo e, se tinha
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alguma dúvida quanto a seduzir sir Patrick, ela já não existia mais em seu peito. Não
depois de um ato tão gentil por parte dele.
Usaria seu velho traje, mesmo estando ele apertado onde não deveria estar.
Assim, sir Patrick poderia ter uma ideia melhor do que estava escondido por baixo dos
panos e que, por muito tempo, ela ocultara em vestes velhas e sem graça.
Pouco depois, voltava, sem fazer ideia de que maravilhosa amazona parecia, com
as peças mais justas do que mandava o decoro da época. Sentia-se excitada, e não sabia
dizer se por efeito da carta de Mabbs ou pela possibilidade de ter sir Patrick em sua
cama. Suas conjecturas libertinas surpreendiam-na ao mesmo tempo que enchiam-na de
um contentamento intenso.
Stapleton trouxe-lhe um bonito animal, sob ordens de sir Charles, e Verônica
montou-o com graça e leveza, enquanto Marianne se emburrava em sua égua velha e
gentil.
— Tome cuidado, Verônica querida — aconselhou Charles. — Você não tem
praticado. Procure controlar o animal, acostumar-se a ele, e talvez mais tarde possa voltar
a cavalgar Prince.
Verônica apenas sorriu. Não haveria oportunidade para cavalgar o puro-sangue de
Charles, já que iria aceitar o convite de Mabbs, em breve. Contudo, aceitou a opinião do
primo, sabendo-o experiente com os animais.
Após um ligeiro passeio, Verônica voltou com os demais para os estábulos,
exalando um ar de suavidade e alegria que era contagiante.
Patrick sorria ao vê-la assim, imaginando por que Serena mostrara-se tão rude e
mesquinha para com a prima. Sentiu vontade de acompanhar Verônica até dentro da
mansão, mas não ousou fazê-lo para não expô-la à zanga de lady Marchingham mais
uma vez.
Já em seu quarto, Verônica mirou-se no espelho, vendo-se corada e satisfeita.
Tornou a reler a missiva de Mabbs, para ter certeza de que não estava sonhando, e
murmurou:
— Meu Deus! Liberdade! Estão me oferecendo liberdade! — E chorou de pura
felicidade.

CAPITULO VII

A alegria de Verônica perdurava ainda hora do jantar, quando se dirigiu a seu


quarto para vestir-se de modo mais apropriado, ignorando por completo sua obrigação de
estar ajudando Marianne a escolher um vestido sedutor para agradar a sir Patrick.
Verônica imaginava, com razão, que o interesse dele pela jovem, fraco desde o
princípio, agora já não mais existia. E, se era nela própria que sir Patrick estava
interessado, ou em Serena, não importava. Na opinião de Verônica, Marianne não
aceitaria casar-se com alguém cujo título de nobreza não fosse condizente com sua
ambição.
Era um pensamento duro, mas Verônica já o tivera antes, e agora, diante da
perspectiva da liberdade, sentia-se à vontade para ter as ideias que quisesse, sem
arrependimento algum.
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Sombras da Paixão – Paula Marshall CH n. 185

Colocou sua melhor roupa, que não era tão bela assim, mas que, pelo menos, era
bem mais alegre do que as de costume. Quanto à touca de preceptora, decidiu deixá-la
de lado, já que seu futuro projetava-lhe dias muito melhores.
Quando contasse a Serena sobre sua decisão de ir embora, sabia que a notícia
causaria tamanho transtorno que mal podia esperar o momento de dá-la. Afinal, Serena a
via como propriedade sua, como algo que poderia usar e explorar o quanto quisesse para
depois passar adiante quando já não lhe fosse mais útil.
Estava tão animada com sua nova perspectiva que chegava a fazer planos
absurdos: se ficasse grávida devido a um provável caso com sir Patrick, não haveria
problemas, pois poderia chegar a Alnwick como uma viúva que esperava uma criança
deixada em seu ventre pelo marido recém-falecido... Seria até bem vista se inventasse tal
história! Choraria um pouco, para que todos se compadecessem de sua situação, depois
teria o bebê, o qual daria muita felicidade a ela e a Mabbs, com certeza.
Tais conjecturas, um tanto imorais e estranhas, ficaram com Verônica até que
desceu para o jantar, tendo um muito leve sorriso nos lábios, logo notado por sir Patrick.
Ele já se dera conta de sua ansiedade em relação a Verônica. Queira vê-la em
cada cômodo que entrasse, queria estar com ela, conversar por mais tempo e mais
vezes. Tal descoberta o divertia e surpreendia ao mesmo tempo.
A expressão de Patrick foi percebida também, e logo, por Serena, que imaginava o
que poderia estar agradando tanto o nobre, visto que sua verdadeira razão para estar em
Marchingham Place não estava tendo bons resultados.
Os dois haviam conversado por alguns minutos, antes da refeição, mas fora uma
conversa vaga, que deixara Serena inquieta, e na qual ela apenas tivera oportunidade de
perguntar-lhe se tudo transcorrera bem depois que o colocara correndo para fora de seu
quarto, na véspera.
— Foi tudo ótimo, posso lhe assegurar — respondera ele, com um brilho estranho
nos olhos. — Melhor do que eu esperava.
Patrick não comentara nada sobre sua decepção por seu interlúdio amoroso ter
sido interrompido, e a deixara para ir ter com sir Charles para falarem sobre cavalos.
Então, Verônica chegou, depois ,de ter se excedido tanto durante a tarde, recebendo
atenção demasiada dos homens por sua elegância em cavalgar e tendo deixado seus
afazeres com Marianne de lado.
Serena cerrou os lábios, enraivecida, ao ver que a prima não usava a touca. Na
verdade, sua raiva vinha se acumulando desde a chegada inoportuna do marido e a
aparente indiferença de Patrick.
— Parece-me que se esqueceu de algo, Verônica! — Serena a repreendeu de
imediato, em voz alta, para que todos na sala se voltassem para ver e ouvir melhor.
— É verdade, prima? — Verônica fez um ar inocente, usando o termo familiar que
jamais utilizava, mas que agora se sentia no direito de proclamar. — Poderia me dizer o
que é, pois não creio que eu esteja vestida de maneira imprópria.
— Para mim, ela está muito bem! — interferiu sir Charles, olhando Verônica de
cima abaixo. — Aliás, esse seu vestido está muito melhor do que os outros que costuma
usar. Deveria colocá-lo com mais frequência, querida.
Patrick fez o mesmo, e não pôde furtar-se a expressar sua opinião:
— Concordo, Marchingham. Eu diria que está usando tudo o que deveria.
— Ora, parem com isso! — Serena protestou, sentindo-se ultrajada. — Cavalheiros
Projeto Revisoras 31
Sombras da Paixão – Paula Marshall CH n. 185

não devem notar certas coisas, mas Verônica não colocou sua touca!
— O que acho excelente! — sir Charles tornou a rebater. — Você fica muito melhor
sem aquela coisa horrorosa, Verônica. Parece até muito mais jovem, se me permite dizer.
Eu já tinha me esquecido de como é bonita, priminha. Não coloque aquela droga outra
vez, peço-lhe. Seria um erro.
Tanto Verônica quanto Patrick sorriram diante de tal afirmação, ainda mais porque
ela acabou de enfurecer Serena.
— Não se trata disso, Charles! — argumentou, não querendo dar-se por vencida.
— Verônica é preceptora de Marianne, e não é correto que abandone os trajes e
adereços que lhe são típicos dentro de tal função! As pessoas poderão não compreender
bem quem ela é.
— Mas que assunto confuso! — queixou-se Charles, fazendo uma careta. — Todos
nós sabemos muito bem quem Verônica é. Acho pouco provável que pudéssemos
confundi-la com Marianne, minha cara. São duas moças tão diferentes! Quer me
convencer de que não conseguiria distingui-las se Verônica não estivesse usando sua
touca?! Isso me parece esquisito demais.
E, voltando-se para Verônica, acrescentou:
— Você está muito bem esta noite, querida. Acho que deveria queimar a tal touca.
Patrick esforçava-se por não rir do jeito de Serena e de Marianne. E, para piorar
ainda mais a situação, sir Charles ofereceu o braço a Verônica, para levá-la à sala de
jantar, prosseguindo em seus elogios:
— Não sei qual de vocês duas está mais jovem esta noite, Verônica. Cuidado,
Marianne, para que sua dama de companhia não acabe ofuscando você. — E sua gar-
galhada acompanhou-os, conforme se afastavam.
Patrick tinha de admitir que seu anfitrião estava certo. Apesar de a roupa estar um
tanto fora de moda, Verônica ficara muito bonita nela. E, baseando-se nas palavras de sir
Charles, era-lhe fácil imaginar que Verônica deveria ter sido um encanto ainda maior na
idade de Marianne.
Como ele mesmo dissera certa vez, era uma pena que os Transome fossem tão
pobres e que as coisas" tivessem ido de mal a pior para Verônica e sua irmã.
Essas tais "coisas" que tinham ido de mal a pior aguçaram a curiosidade de Patrick
sobre Verônica, mas não lhe foi possível esclarecer de que se tratavam em meio à
refeição. Além do mais, estava muito entretido em vê-la falar e agir com mais
desenvoltura do que antes.
Até mesmo os dois homens convidados para se interessarem por ela mostravam-
se bastante mais atentos a sua formosura. No entanto, Verônica não lhes dava grande
atenção e, assim, os fez desistir de seu propósito, voltando a cortejar Marianne, que,
afinal, estava mais aliviada por tê-los de volta a sua própria órbita.
— Você tem razão — segredou Lídia a Serena, vendo a animação com que
Verônica e sir Charles conversavam. — Essa mulher está se comportando muito mal! Que
mau exemplo para nossa querida Marianne! Ela parecia tão recatada e séria até esta
tarde!
— Pois Verônica não voltará a sê-lo se Charles continuar a instigá-la dessa forma
— Serena observou, entre os dentes. — Se os homens estivessem com as rédeas sociais
nas mãos, não haveria decoro algum. Aposto que chegariam a trazer suas amantes para
a mesa de suas próprias esposas!
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Todas as senhoras casadas que a rodeavam assentiram, graves. A Sra. Atyeo


ponderou, num suspiro:
— Eu mesma posso dizer como é difícil manter meu marido no caminho correto.
Preciso estar sempre alerta com ele, ou a devassidão acabaria por ultrajar nosso
casamento. Hoje em dia, a ameaça de Sodoma e Gomorra nos persegue!
Verônica aproximou-se, naquele momento, chegando a ouvir o comentário e,
olhando fixo para a senhora que acabara de falar, disse, alegre: — Eu sempre quis saber
o que se fazia em Sodoma e Gomorra para provocar tamanha ira do Senhor sobre
aquelas cidades. Poderia me dizer, Sra. Atyeo, já que parece tão bem informada a
respeito?
A mulher quase engasgou, ficando vermelha como um pimentão, e Patrick, logo
atrás dela, mais uma vez teve de conter o riso.
— Asseguro-lhe que não sei — respondeu a Sra. Atyeo, sem encarar Verônica. —
E estou chocada por vê-la indagar tal coisa.
— É que sempre procuro aumentar meu saber, senhora. E imagino como pode
considerar minha indagação imprópria se não tem a menor ideia do que os desafor-
tunados cidadãos de Sodoma e Gomorra faziam de ruim.
Dessa vez, Patrick teve que disfarçar a risada com uma tosse forjada.
— Realmente, senhorita! Deveria saber tão bem quanto eu que, se Nosso Senhor
enviou o fogo dos céus sobre aquela gente, é porque sua conduta deveria ser a mais
baixa e vil possível!
— Sim, mas seria bom se soubéssemos direito o que evitar, não acha? — Verônica
insistiu, expondo-a ainda mais. — Porque posso sempre ficar imaginando se eu mesma
estou agindo de modo correto. Suponho que, se eu vir uma bola de fogo descendo do
firmamento, isso se deva a um mau comportamento de minha parte, mas, então, já será
tarde demais...
Àquela altura, Patrick tomou-a pelo braço. Tinha receio de que, enfurecidas diante
de tamanha audácia, uma daquelas mulheres pudesse voar sobre Verônica e colocá-la
em seu devido lugar.
— Venha, Srta. Transome. Sir Charles acabou de me dizer que é uma excelente
pianista e que a Srta. Marianne canta como um anjo. Por favor, deleite-nos com uma
performance.
E ele levou-a, em direção ao instrumento, que se encontrava num dos cantos da
enorme sala.
— Devia considerar a tendência da Sra. Atyeo à apoplexia, senhorita. A mim, um
velho soldado, nada mais choca, mas ela é feita de um material mais suave, por se assim
dizer. Espero que não tenha sido minha entrada abrupta em seu quarto ontem à noite que
acabou desencadeando este seu comportamento um tanto... in-comum. Precisa tomar
cuidado com Serena também, que não está acostumada a ser desafiada. E não quero vê-
la vítima de uma síncope causada pela ira.
— É claro, sir Patrick. Sei que seus princípios morais, em especial os que se
referem às outras pessoas, possuem raízes profundas. Vou procurar melhorar minha
conduta e, sem dúvida, tocarei para o senhor, e Marianne cantará também. Só espero
que não se arrependa de ter nos pedido tal coisa. Vá buscar Marianne, sim? Ela está
ainda rodeada por aqueles dois patetas. E, quanto a sua voz, posso garantir que, de fato,
é uma cantora fantástica.

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Charles mostrou-se encantado ao saber que Verônica tocaria, como nos velhos
tempos. Sentou-se próximo ao piano, à espera, com um sorriso satisfeito.
— É uma pena quê não tenha mais tocado para nós, minha querida. Lembra-se de
quando... — E Charles se interrompeu, um tanto corado, talvez por ter se dado conta de
que não era apropriado ficar recordando os tempos em que uma moça era feliz.
Mas ficou aliviado ao perceber que Verônica não se importara com sua gafe. Muito
ao contrário, tomou-lhe a mão e, muito doce, murmurou:
— Sempre gosto de me lembrar de como você é generoso e sincero, Charles.
Ele recostou-se no espaldar, enquanto a melodia começava a encher o ambiente.
Marianne tinha voz fraca, mas muito afinada. E os pensamentos de Charles
começaram a voar, a imaginar, como algumas vezes antes, como sua vida teria sido di-
ferente, muito mais plena, caso, dez anos antes, não se tivesse deixado levar pela beleza
agressiva de sua mulher.
Podia ser que, se tivesse enxergado melhor e escolhido Verônica... que belo
casamento teria feito! Uma pena Verônica ainda estar solteira e viver espezinhada pela
inveja de Serena, que fazia questão de mostrar a todos o quanto a prima era pobre e
desfavorecida pela sorte.
Quando o número acabou, Marianne desculpou-se, modesta pela primeira vez:
— Acho melhor eu não cantar mais. Minha voz é boa, mas não suporta melodias
muito longas.
Charles, então, pediu a Verônica que continuasse tocando. "Como nos velhos
tempos", comentou mais uma vez, agora sem embaraços.
E assim ela prosseguiu, dedilhando o teclado com graça e habilidade. Uma mão
masculina apareceu, para virar-lhe as folhas da pauta musical, e ela reconheceu logo a
figura alta e imponente de sir Patrick junto ao instrumento.
As sensações começaram a aflorar de novo dentro de Verônica. A presença dele
despertava-as. Seu perfil clássico, seu corpo forte, os dedos longos que viravam as
partituras, a lembrança de vê-lo seminu na noite anterior, em seu quarto...
Quando terminou, Verônica baixou a cabeça, ouvindo-o aplaudir de leve.
— Por favor, continue — pediu Patrick em voz grave. — A música traz tanta alegria
a nossos corações!
Verônica ergueu os olhos e encontrou os dele, sentindo-se de imediato tocada. O
que havia por trás daquelas pupilas, capazes de provocar-lhe tamanho arrepio?
— Que tipo prefere, senhor? Diga e eu tocarei.
— Ora, sou apenas um soldado ignorante. Quero alguma coisa bonita. Tenho
certeza de que conhece muitas peças belíssimas.
Verônica indicou uma prateleira próxima.
— Vai ser meu assistente, então.
E para lá dirigiram-se ambos, com a intenção de trazerem um dos livros. Verônica
sentia a pulsação acelerar a cada instante com mais força.
De repente, na escolha dos livretos, suas mãos se tocaram e um frêmito de prazer
perpassou a coluna de Verônica. Era um sentimento novo que experimentava, e lhe dava
uma agradável sensação de tontura.

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Sombras da Paixão – Paula Marshall CH n. 185

— O que diria se eu sugerisse que perdemos uma excelente oportunidade ontem...


— ela indagou, de supetão, sem poder conter-se. — ...e que poderíamos remediar tal
situação hoje, em meu quarto?
Surpreso e muito lisonjeado, Patrick a encarou, procurando não soltar o livre to que
segurava, sentindo as mãos trêmulas.
:— Trata-se de é uma sugestão muitíssimo interessante, Srta. Verônica. E que
poderia trazer uma gratificação maravilhosa para nós dois.
— Estou certa disso. Que tal esta peça? — Ela ergueu uma das obras que
escolhiam. — É mais triunfante do que bela, mas acho que é apropriada à situação.
A carta de Mabbs ainda tinha suas conseqüências em Verônica. Desejava
aproveitar tudo o que perdera. Queria usufruir a presença e a companhia daquele
cavalheiro tão atraente, tão sedutor. Sentia-se como o condenado a quem é dada a
liberdade após vários anos nas galés.
— Espero que continue naquele mesmo aposento, sem outras trocas de última
hora — Patrick observou, sorrindo, malicioso.
— Não se preocupe, sir. Encontrarei meios de informá-lo, caso me transfiram para
outro lugar. Estou certa de que um soldado versátil como o senhor encontraria meios de
me achar em qualquer cômodo no qual viessem a me instalar, mesmo que fosse num
canto frio da adega.
— Srta. Verônica, nada pode deter um homem determinado, eu lhe asseguro. E,
como sabe, querer é poder.
Feliz, Verônica voltou ao piano e executou com prazer a música escolhida.
Ao final, Charles cumprimentou-a, entusiasmado. Patrick, por sua vez, tomou-lhe a
mão, conforme ela se levantava, e, virando-a para cima, beijou-lhe a palma, em lugar
sensível.
Mais uma vez, um frêmito percorreu Verônica, levando-a a uma quase
inconsciência. No entanto, precisavam preservar as atitudes formais diante de todos e,
com calma controlada, ela soltou-se dele e sorriu.
— Tocará para mim outra vez, no futuro, senhorita?
— Sempre que quiser, milorde.
Marianne aproximou-se, amuada. Verônica monopolizara o único rapaz atraente
naquela casa por tempo demais.
— O clima está ótimo lá fora, sir Patrick. Um passeio seria tão bom para amenizar
o ar abafado daqui... — E, voltando-se para Verônica, acrescentou, deixando de ser
gentil: — Os Atyeo vão nos acompanhar. Assim, não há motivo para que venha conosco,
Verônica. Não estarei em perigo, e você poderá se ocupar com seu crochê ou recolher-
se, se assim preferir.
Tal impertinência e maus modos aborreceram Patrick. No entanto, sempre um
gentleman, ele decidiu oferecer seu braço à moça. Agradeceu mais uma vez a Verônica e
afastou-se, rumo às portas duplas de vidro que davam para a varanda. De lá voltou-se e,
como ninguém o estivesse observando no momento, movimentou os lábios de modo
afetado, para que Verônica compreendesse sua mensagem sem som: "Esta noite!". E ela
sentiu-se mais uma vez presa de uma estranha e selvagem euforia...
E não era apenas pelo espírito jovial e descompromissado de sir Patrick ou por sua
conversa agradável que estava disposta a dormir com ele. Não podia se esquecer das
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formas bem-proporcionadas, dos músculos que adivinhava por baixo de seus trajes
sempre tão elegantes. Sua atração era, sim, muito física. Que melhor jovem poderia
escolher para tirar-lhe a virgindade para que depois se recolhesse à paz e ao sossego de
Nortumbria, em companhia da boa governanta Mabbs?
De repente, batidas suaves quase a fizeram parar de respirar. Já era tarde para
mais ponderações. A sorte estava lançada. Além do mais, não queria voltar atrás.
Quanto a sir Patrick, em sua mente treinada de militar, muitas dúvidas pairavam,
inquietando-o.
O que aconteceria quando cruzasse aquela soleira? Nunca estivera com uma
preceptora antes... Estava ansioso. Muito mais do que estivera algum dia, ao se ver
prestes a entrar no quarto de uma mulher.
Patrick a viu sentada no leito, os cabelos ainda presos, os olhos brilhantes, e
caminhou até ela, acomodando-se devagar. Verônica colocou o dedo indicador sobre os
lábios e sugerir, num misto de ironia e troça:
— Não devemos perturbar os pombinhos aqui ao lado. — E fez um leve movimento
de cabeça, indicando a parede que os separava de Serena e sir Charles.
E ali ficaram ambos, por intermináveis segundos, experimentando uma sensação
de insegurança, quase de desamparo. Duas pessoas sempre no comando de sua própria
inteligência agora colocadas frente a frente, e sem saber ao certo o que fazer.
Verônica recostou-se nos travesseiros, com um sorriso maroto.
— Está tão quieto, sir Patrick...
— Tanta compostura, que sempre demonstra, acaba deixando-me sem ação.
— Não acredito. O senhor, com certeza, deve saber sempre como agir.
Verônica se surpreendia com sua própria tranqüilidade. Era como se conseguisse
dizer as palavras certas para o momento, embora não tivesse a menor ideia do que se
conversava numa ocasião como aquela. Se é que, de algum modo, havia conversas em
tais oportunidades...
Imaginava que cabia ao homem a iniciativa, e não havia dúvidas de que era assim
que sir Patrick pretendia agir. No entanto, tendo sido sempre instintivo e rápido, ele
tomou-lhe o rosto nas mãos e beijou-a com ardor, procurando mostrar-lhe o que podiam,
de fato, usufruir naquela noite de paixão.
A experiência mostrava-se desnecessária de repente para Verônica. Sua boca
abriu-se sob a dele, aceitando o beijo com um desejo que desconhecia em seu corpo.
Deixou-se levar pelas sensações alucinantes que a conduziram em ondas a um
estado de quase êxtase. Sentia-se livre para entregar-se aos carinhos dele, e a alegria de
estar em seus braços, de sentir sua língua quente em seu pescoço, arrepiava-a,
relaxando seus músculos num abandono delicioso.
Sentia as mãos de Patrick, habilidosas, ávidas, livrando-a da camisola
desnecessária e acariciando-a de um modo que poderia levá-la à loucura.
E, a cada novo centímetro de pele que descobria, Patrick sentia-se recompensado
pelos sonhos que tivera desde que a vira naquele traje de montaria tão justo, revelador,
insinuante das curvas maravilhosas em que se perdia agora.
Apressado, mas sem deixar de ser gentil e carinhoso, ele despiu-se, deixando que
Verônica o ajudasse e tivesse oportunidade de observá-lo e compará-lo ao Apoio do fim
da escada, mais uma vez.
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Patrick em nada ficava a dever ao deus. Seu peito largo, acariciado por Verônica,
seus braços musculosos, sua masculinidade eram um contraste gritante e, por isso
mesmo, provocante, para as formas suaves e femininas.
Os afagos continuavam, cada vez mais exigentes, mais íntimos, e Verônica se
deixava levar, certa de que era aquilo o que queria, gratificada por ter tomado a decisão
de entregar-se a um homem tão belo.
Os lábios de Patrick sabiam beijar, e muito mais... Roçavam-na, causando arrepios
intensos, que a tiravam da realidade e a faziam se esquecer de qualquer receio que
pudesse ter tido antes.
Patrick estava também perdido de paixão. A maneira como Verônica acompanhava
o ritmo de seu desejo, como correspondia a seus beijos cálidos, dava-lhe a certeza de
que estava junto de uma moça experiente na arte do amor e da sedução.
— Você é uma feiticeira — sussurrou-lhe ao ouvido, rouco, embriagado pelas
fortes sensações.
Não havia mais a jovem pudica que conhecera e que, a princípio, lhe parecera fria.
A que ele destinara, em pensamento, ao soldado rude. Ele era o soldado agora, e a fazia
gemer baixinho, presa de uma volúpia jamais conhecida ou imaginada.
Ali, entre os braços de Patrick, vivendo sensações de delírio que nunca antes
pudera conhecer, Verônica esqueceu-se de todas as crueldades que lhe haviam feito vida
afora. A dor, a mágoa, a pobreza... tudo desaparecera de sua mente. E fora Patrick quem
a libertara de seus tormentos.
Quando ele a tomou de fato e a súbita dor a invadiu, havia, também, uma lascívia
além de sua imaginação. Algo que jamais pudera supor.
Luxúria e tormento criavam um encantamento que era apenas dela, porque agora
pertencia a alguém, porque sua carne unira-se à de Patrick, eternizando era sua memória
um momento maravilhoso.
E Verônica tinha consigo, naquele instante, algo que nunca sonhara ter: um
homem que lhe proporcionava delícias que poucos eram capazes de oferecer a uma
mulher, tão poderosas que tinham deixado a realidade para fora de sua consciência, para
longe de seu quarto.
Aquela Verônica Transome que vivera até então apenas para servir e suportar
fardos do destino não mais existia. Estava perdida numa nova jovem, certa de seu poder
enquanto fêmea, pois um valente soldado a ensinara os prazeres da matéria, mas
também a deixara pronta para esquecer as mágoas do passado e encarar o futuro com
mais esperança e energia.
Estavam deitados lado a lado, em silêncio, apenas deixando que seus corpos se
acalmassem, saboreando sensações de cansaço e relaxamento.
Patrick sentia-se como jamais antes. Era como se uma mistura de vergonha e
ternura o tivesse tomado, porque a moça que tinha a seu lado, e com a qual acabara de
fazer amor de um modo maravilhoso, não era experiente como imaginara, mas, sim, uma
donzela que estava amando pela primeira vez.
Lembrava-se de quando seu desejo explodira numa intensidade fantástica e a
abraçara com força, como se não quisesse separar-se de Verônica nunca mais. Era
estranho recordar isso agora, pois suas conquistas amorosas quase sempre eram
também envolvidas pelo perigo e, com frequência, após o amor, Patrick levantava-se e
deixava a parceira, ansioso por ficar sozinho outra vez.

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Sombras da Paixão – Paula Marshall CH n. 185

Agora, no entanto, sabia que não era o perigo que o fazia afastar-se das mulheres
que acabara de amar, mas sua absoluta falta de carinho por elas. Porque não queria
deixar Verônica; muito ao contrário, era como se quisesse estar com ela para sempre...
Estava feliz apenas por se ver deitado ali, na semi-escuridão, apreciando os
momentos de quietude que partilhavam. Olhou-a, vendo os cabelos claros, que ele soltara
em um momento de paixão, espalhados por sobre o travesseiro e parte dos ombros dela.
Tão bela, quem diria, por baixo de tanta austeridade! Sentia-se culpado por tê-la
julgado mal, e procurava lembrar-se de tudo o que lhe dissera desde que se tinham
conhecido, para descobrir se, em algum momento, soara rude, se fora indelicado, pois
não imaginava, então, o quanto Verônica podia ser maravilhosa.
Apertou mais o abraço que a prendia, sentindo-a amoldar suas formas às dele, e
murmurou:
— Não devia ter me provocado. Eu não sabia que era virgem.
Verônica voltou-se um pouco. Aquelas palavras estavam soando como se Patrick
estivesse arrependido do que fizera, mas ela não era mais uma criança, e quisera estar
com ele tanto quanto o próprio Patrick.
— Decepcionou-se?
— Não, não é isso! Mas acabei julgando-a mal por não me ter dito nada. Achei que
tivesse experiência, quando era inocente em termos de amor.
— Entendo que reserve seus favores para mulheres casadas e aborrecidas, bem
como para cortesãs, e preceptoras que já passaram da idade de casar não devem fazer
parte de sua longa lista. Sinto muito se não fui de seu inteiro agrado.
— Por que está sendo tão dura comigo, Verônica, se estou apenas me
desculpando? E, quanto a ser de meu agrado, quero que saiba que jamais me senti tão
bem ao lado de uma mulher. Em todos os sentidos. Mas creio que esta nossa conversa
não nos levará a lugar algum, afinal.
Mais uma vez o silêncio caiu entre ambos, e ficaram apenas a usufruir a
companhia um do outro, os corpos próximos, aquecidos.
Verônica ergueu os olhos, admirando-o. Sua imaginação voava, mostrando-o em
um campo de batalha, brandido sua espada contra o inimigo, forte, resoluto, obstinado.
— Fico imaginando se usou sua espada nas batalhas da Espanha... — sussurrou,
os olhos parecendo ver além do devaneio.
Patrick voltou-se para vê-la, surpreso.
— Estou aqui preocupado por tê-la desonrado e você pensa... em espadas?!
Verônica ergueu a mão e tocou de leve os lábios dele, como se quisesse pedir-lhe
que falasse mais baixo.
— Usou-a, ou não?
— Não, Verônica, não usei. E não foram batalhas fáceis, posso lhe assegurar. Não
houve nada de galante ou de fácil por lá. Apenas gente morta ou ferida e, depois dos
combates, um esforço muito grande para evitar que meus homens...
Patrick se interrompeu, consciente de que o que iria dizer em seguida era pouco
apropriado, devido às circunstancias em que se encontravam.
Verônica, porém, completou por ele, as pupilas ainda mais brilhantes do que antes:

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— Evitar que seus homens estuprassem donzelas inocentes.


Patrick assentiu, aborrecido com o rumo da conversa.
— Este não é o lugar nem o momento certo para falarmos sobre tais coisas,
Verônica. A moral da guerra não me interessa agora. Estou preocupado com a sua.
Ela sorriu.
— Verdade?
— Verônica, por favor, você me atraiu a seu quarto, fazendo-me crer que era uma
mulher experiente, e agora age como se não se importasse com o fato de, eu tê-la... ora,
sabe o que quero dizer.
— E por que eu me importaria se foi tão agradável? E para você, também,
suponho.
— Não vou desmenti-la, mas não é essa a questão.
— Não? Que estranho... Achei que a questão fosse exatamente essa. Muito bem,
posso ser inexperiente, mas, com certeza, pode me ensinar melhor sobre as artes da
cama, não?
Patrick olhou-a durante alguns segundos, fascinado. Depois, beijou-a, ardente
como sempre, tomado de uma alegria enorme por estar ali, com ela.
Em seguida, abraçados e felizes, beijaram-se. Era como se estivessem juntos fazia
muito tempo, como se estar no leito fosse algo que apreciavam e partilhavam havia
muitas noites. Uma cumplicidade imensa começava a nascer entre eles, e agradava-os
sobremaneira.
— Bem, acho que podemos dizer que estou muito bem arruinada, certo? —
Verônica brincou.
Mesmo rindo, Patrick respondeu:
— Não entendo como isso não aconteceu antes para você. Quero dizer, chegar
aos vinte e nove anos sem ser tocada ou amada por um homem...
Verônica lembrou-se do noivo, o qual se afastara dela por ser muito pudica e não
ter permitido uma intimidade maior entre ambos antes do casamento.
— Talvez eu nunca tivesse encontrado alguém que pudesse, de fato, gostar de
mim.
— Eu poderia tomar isso como um elogio?
— Considere a rigidez com que tenho conduzido meus passos nos últimos dez
anos e a facilidade com que você acabou com tudo isso em apenas uma noite... um fato
espetacular. Não acha?
— Mas que conversa mais imprópria!
— Sendo assim, veja nossa situação como imprópria. Você está aqui, na cama,
com a preceptora da garota com quem talvez vá se casar. Uma mulher que é, ao mesmo
tempo, criada da dona da casa, que também é sua amante e à qual acaba de ser infiel.
Se é que alguém pode ser infiel a um amante... Há um ponto moral a se discutir aqui,
além, é claro, do problema que o ser humano tem para enfrentar as tentações da carne.
Fico imaginando se o que acabou de acontecer entre nós será apenas motivo de
arrependimento amanhã de manhã, quando a rotina desta mansão se restabelecer.
— Arrependimento... — repetiu ele, percebendo o tom de mofa de Verônica. —

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Acredito que tal sentimento esteja muito longe de seu coração, minha querida. — E
beijou-lhe o ombro.
— Ah, mas a culpa foi toda da luz tremula da vela, e também de nossa falta de
roupas! Agora percebo por que somos considerados civilizados. Porque abandonamos
nosso estado original de nudez.
Verônica virou-se, encostando-se nele e acariciando seu torso nu.
— Eu jamais poderia imaginar, enquanto nos sentávamos tão educados, tomando
chá, que poderíamos estar como estamos neste momento. Preciso tomar cuidado com
minhas roupas, no futuro. Tirá-las perto de você será sempre um problema. Mesmo que
seja apenas um par de luvas.
Patrick achou graça, avaliando a habilidade de Verônica em usar uma entonação
tão leve e divertida, dizendo absurdos engraçados, e, ao mesmo tempo, seduzindo-o
tanto... Tomou-lhe a mão, que ainda passeava por sua pele, e beijou-lhe a palma.
— No entanto, é bom pensar no lado mais racional do que acabamos de fazer,
Verônica. E se você engravidar?
— Essa ideia o perturba? Isso me espanta. Quantos pequenos Patricks você já
colocou no mundo em suas andanças pelos leitos de tantas namoradas? E com quantos
deles já se preocupou?
— Está pensando mal de mim, Verônica e eu lhe asseguro que...
— Já sei! Que não é seu costume seduzir virgens. Mas duvido que seja um hábito
seu dar nome a todos os seus rebentos espalhados por aí... Sua consciência não chega a
se preocupar com isso, não é?
— Não sei o que mais me agrada em sua pessoa: seu corpo em meus braços, ou
sua maneira de rebater todos os meus argumentos, seja qual for o teor de nossas con-
versas. Jamais sairei vencedor de uma discussão com você.
— Sairá, sim, em um único assunto. — E Verônica aproximou-se mais, até
encostar seus lábios aos dele para murmurar: — Este.
E passou a beijá-lo e acariciá-lo com frenesi, agora na liderança do jogo de
sedução que recomeçavam a viver.
— Muito bem — disse ele, pouco depois, quase num gemido, subjugado pela
volúpia. — Se me concede o privilégio de vencer esta batalha, deixe-me demonstrar-lhe
como se faz da melhor maneira possível.
E assim dizendo, Patrick enlaçou-a mais uma vez, com força e ardor, mas agora,
mais suave e carinhoso, soube levá-la ao delírio da luxúria.
Bem mais tarde, exaustos das refregas do amor, adormeceram, como se
estivessem acostumados a isso. O antes entediado sir Patrick Ramsey e a solitária Srta.
Verônica Transome, parceiros tão improváveis na lascívia, a qual, dali em diante, para
eles, seria também o jogo da vida.

CAPITULO IX

Patrick acordou um tanto sobressaltado, encontrando-se numa cama estranha, os


braços ainda passados ao redor do corpo de Verônica. De repente, deu-se conta da
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situação, sabendo que deveria sair dali o quanto antes. A madrugada já estava no fim, e
não poderia ficar ali por mais tempo, ou acabaria por arruinar a reputação de uma mulher
que fora tão maravilhosamente carinhosa com ele.
Afastou-se com cuidado, para não despertá-la, imaginando que Verônica precisaria
estar bem descansada para poder cumprir suas obrigações diárias com a pupila e com a
prima mesquinha.
Vestiu-se com pressa e, ao terminar, voltou-se para vê-la ainda uma vez, nua e
bela. A verdadeira representação da paixão e do desejo satisfeito diante de seus olhos.
Sentiu uma ternura imensa invadi-lo, algo muito diferente dos fortes sentimentos
que o tinham tomado na véspera, que jamais sentira antes. Sempre estivera com
mulheres que não pretendiam ter nenhum compromisso, que se encontravam à procura
só de momentos de luxúria, como ele próprio. Mas Verônica inspirava-lhe uma coisa
muito diferente, com a qual quase sentia vontade de lutar, já que o desconhecido de seu
teor o assustava.
Vacilante, inclinou-se e deu um beijo por demais suave na face dela. Mal podia
acreditai que estivesse fazendo tal coisa. Então, pé ante pé, afastou-se e saiu dos
aposentos.
Verônica acordou bem mais tarde, e viu logo que estava sozinha. Não desaprovou
a atitude de Patrick, porém, em sair bem cedo de seu quarto. Lamentou, entretanto, por
não ter podido despedir-se.
Viu que o relógio dele ainda estava sobre sua mesa-de-cabeceira e sorriu,
lembrando-se do que Mabbs lhe dissera, uma vez: as pessoas que deixavam algum per-
tence faziam-no sempre com um propósito, mesmo que não tivessem consciência disso;
era porque queriam voltar, ou porque pretendiam dar uma parte de si...
Pegou o objeto e examinou-o de perto. Era uma peça antiga, muito usada. Talvez
ele o tivesse recebido quando ainda era um garoto. Viu o minúsculo botão de abertura da
parte de trás e apertou-o. A tampa abriu-se, mostrando a inscrição: "Pat, de seu irmão,
com carinho. Hugh. 1800."
Verônica imaginara que a peça podia ter sido um presente do pai, mas era do
irmão de Patrick. Justo aquele cuja morte trouxera-lhe a fortuna que possuía agora. E,
mesmo na riqueza, ele o conservava, agora que podia adquirir o mais belo relógio que o
dinheiro pudesse comprar. Devia haver algum significado em tal atitude.
Acariciando o visor, Verônica imaginava que precisaria devolvê-lo de maneira
apropriada e discreta. Colocou-o em seu saquinho de costura, algo que uma boa
preceptora sempre carregava preso à cintura, e, mais tarde, ao descer para o desjejum,
levou-o consigo.
Quando Verônica apareceu na sala de jantar, Patrick e Charles já estavam
tomando seu café. Ambos usavam seus trajes de montaria e cumprimentaram-na com
sorrisos diferentes, mas nos quais havia, com certeza, ternura.
— Você me parece muito bem esta manhã, Verônica!
— Charles exclamou, em sua costumeira animação.
— Os ares daqui estão lhe fazendo muito bem, suponho! Afinal, Londres é
fatigante para todos, não acha? E a cavalgada de ontem a alegrou, com certeza. Não
concorda, Ramsey?
— Ah, sim, Marchingham! A Srta. Verônica está deslumbrante.
— Isso mesmo! Essa era a palavra que eu estava procurando: deslumbrante! Você
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Sombras da Paixão – Paula Marshall CH n. 185

deveria cavalgar com mais frequência, Verônica. Fica esplêndida com o exercício.
E, mais uma vez, Charles arrependeu-se da escolha errada que fizera anos antes.
Verônica estava muito mais bela do que Serena naquela manhã. Aliás, em sua opinião,
sua esposa andava um tanto enfadonha demais nos últimos tempos.
Como se os pensamentos dele pudessem tê-la chamado, Serena também entrou
na sala, seguida de perto por Lídia e pela Sra. Atyeo. Sentou-sé em seu lugar costumeiro,
fitou Verônica, que, mais uma vez, não usava a touca, e seus lábios cerraram-se, com
raiva.
Nada disse, porém, já que seus esforços para colocar a prima em seu devido lugar
mostraram-se infrutíferos. Tinha de encontrar outras táticas para humilhá-la.
Pegou um pêssego da fruteira e começou a descascá-lo, como se estivesse
esfolando um inimigo vivo e, após alguns segundos, murmurou, sem erguer os olhos da
fruta:
— Verônica, precisa sempre estar tão desinteressante? E como se preferisse fazer
parte do grupo de criados, em vez de estar no meio de nós... Suas roupas são tão antigas
e gastas...
Verônica saboreava um cacho de uvas e, dando absoluta atenção a cada uma
delas, respondeu, as palavras entrecortadas por cada frutinha, como se elas fossem
muito mais importantes do que a presença de Serena:
— Bem, prima, seria difícil eu poder me vestir melhor com o parco salário que me
paga. — Ela acabara com o cacho e agora escolhia outro menor, para depois prosseguir
da mesma forma: — Se pudesse aumentar um pouquinho meus ganhos, estou certa de
que me vestiria como uma dama da alta sociedade.
Terminando as uvas, Verônica limpou os lábios, com graça, no guardanapo,
levantou-se e fez uma saudação elegante.
— Bem, tenho meus afazeres. Se me derem licença, terei de encerrar esta
conversa sem propósito. — E se foi.
Patrick estava encantado com tal demonstração de insolência. Se ela tivesse
lançado uma granada à mesa, o efeito não teria sido mais desastroso. E, se era assim
que se comportava após uma noite de amor, ele podia fazer ideia do que viria pela frente
após uma semana.
Serena voltou-se para o marido.
— Charles, vai permitir que ela se dirija a mim nesses termos? Verônica deve a
nós todas as migalhas de pão que coloca em sua boca, e reclama do generoso salário
que lhe pagamos como se ele fosse uma ninharia!
Charles encarou-a com uma expressão de absoluto desgosto.
— Não foi com as migalhas de pão que tentou humilhá-la, senhora. Foi com suas
vestes. E, se estamos mesmo lhe pagando tão pouco, é de se admirar que, ainda assim,
consiga estar tão bem nos trajes que a senhora desconsiderou. Cuide para que o
pagamento de Verônica seja aumentado, e rápido, antes que possa comentar sobre sua
aparência mais uma vez!
Charles se ergueu, saindo da sala, mas gritando ainda:
— Venha se juntar a mim, Ramsey! Minha mulher está arrumando uma excursão
aborrecidíssima pela propriedade, e eu vou até os estábulos agora, mas estarei de volta
para discutir tal passeio com ela em alguns minutos.
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Patrick nada disse. Retirou-se, um tanto hesitante, sabendo que Serena estava a
ponto de explodir, e teria gostado de ficar para vê-la furiosa.
Serena voltou-se para as outras mulheres assim que se viram sozinhas.
— Podem ver agora o que tenho de suportar. Primeiro, foi a insolência dela, e
agora isso! Já viram uma dama ser tão maltratada? Foi sorte Marianne não estar aqui
para presenciar tal comportamento de sua preceptora. Uma mal agradecida, isso é o que
ela é! Quem mais lhe teria dado casa e comida depois do que aconteceu há dez anos?!
— Nem me diga! — concordou a Sra. Atyeo. — Que provação a sua em ter de
aturar tal criatura! Não pode mandá-la para outra casa, para que seja criada de outra
pessoa? A chapeleira que freqüento me disse que precisa de alguém para pespontar
chapéus. Parece que está difícil encontrar alguém que faça o serviço com dedicação, hoje
em dia. Pelo menos, me pareceu que sua preceptora é hábil no manuseio de agulhas.
Gostaria que eu perguntasse a minha chapeleira se a aceita em sua loja?
— Meu marido faria um escândalo se eu sequer sugerisse tal coisa, minha amiga.
Não consigo imaginar o que tem passado com ele. Parece fazer tudo o que pode para me
aborrecer, e depois reclama que estou sempre mal-humorada.
— Isso é porque sir Charles não reconhece a sorte que tem em tê-la por esposa,
querida — Lídia afirmou, aduladora. — Poucos homens têm uma mulher tão bela e tão
bem-educada. Eu mesma vou começai a observar a Srta. Transome. Não gosto do que
vejo nela.
O objeto da conversa delas estava tão fascinada por sua reação quanto elas
próprias. Verônica não conseguia atinar com o que a fazia fazendo agir assim. A ideia de
ser livre, talvez, ou o que acontecera no dia anterior...
Já não era uma donzela e não usava sua touca, símbolo de um tempo de
subserviência e humilhação. Mas onde estava seu senso de responsabilidade? E o que
Serena estaria dizendo a suas amigas naquele instante?
Tinha certeza de que a prima deveria estar ansiosa por ver-se livre de sua
presença.
Decidiu dedicar-se a seus afazeres mais uma vez, acordando Marianne e
preparando-a para o desjejum.
Já no andar de embaixo, a garota percebeu logo o que se passava entre Verônica
e as outras senhoras, e aproveitou o ensejo para contrariá-la por várias vezes, até que
teve de calar-se diante da repreensão que recebeu:
— Não teve tanto sucesso assim com os homens, pelo que me parece, para julgar-
se apta a não aceitar minhas recomendações, mocinha. — Verônica estava firme e muito
séria. — Além do mais, foi apresentada à sociedade este ano, e, no próximo, não vai
causar sensação alguma. Por que não se torna um pouco mais dócil, então, e pára com
esses achaques sem graça?
— Está me criticando por causa de seu sucesso com seus pretendentes, não é? —
Marianne rebateu. — E, visto que sua experiência em matéria de namoros, noivados e
casamentos é tão profunda, poderia me explicar como se agarra um bom partido?
Verônica a encarou. Tal indagação poderia ter sido muito dolorosa na véspera,
mas agora não a atingia.
Tinha a carta de Mabbs em seu bolso, e as lembranças de seus gemidos de amor
com Patrick ainda estavam em sua mente, frescas e felizes.
— Quando tiver minha idade, Marianne, talvez possa me informar sobre seus
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próprios sucessos amorosos, e então compararemos nossas experiências. Até lá, é me-
lhor manter seus comentários presos atrás de sua língua.
O rosto de Marianne tornou-se, aos poucos, vermelho.
— Ora, você é uma criatura abominável, Verônica! Não estou preparada para
aturar as reprimendas de uma mulher seca e sem atrativos como você! Pedirei para
Serena demiti-la assim que voltarmos a Londres!
Verônica deu de ombros. Sentia-se tentada a pedir à garota para que a demitissem
de imediato, o que só a faria ir para Alnwick mais depressa.
No entanto, apenas a ideia de um provável reencontro com Patrick a deteve de
assim proceder. Chegara a achar que poderia despertar arrependida do que vivera com
ele, mas, ao contrário, sua vontade era apenas de repetir os momentos de paixão que
partilharam.
No entanto, sabia que nada significava para Patrick além de um passatempo e,
mesmo querendo-o muito, conhecia seu lugar. Sabia também, o que a deixava um tanto
entristecida, que começava a se apaixonar, e isso significava muito mais do que
momentos de prazer intensos.
Jamais poderia amar alguém daquele modo; jamais se deitaria com outro. E isso
era desesperador, pois, para Patrick, sua entrega fora apenas mais uma como tantas
outras. Para Verônica, contudo, o mundo começava a se reduzir a um nome: Patrick.
Após o desjejum, todos se haviam afastado da sala, mas, uma hora depois,
estavam de volta.
Serena vinha à frente do grupo e tinha Charles e seus hóspedes logo atrás. O
passeio que planejara poderia ser maravilhoso, já que a manhã clara e fresca prometia
um lindo dia.
— Vamos todos a Prentice Knoll — anunciou ela, fingindo ter esquecido o incidente
do início da manhã. — De lá, tem-se uma vista esplêndida de todo o vale. Charles irá
conosco até Heyforde, onde tem alguns negócios a resolver, mas nós seguiremos, nas
carruagens, mais adiante. Meu cozinheiro preparou-nos um piquenique, e seria um
desperdício permanecermos trancados aqui dentro num dia lindo como este.
Todos pareciam animados com a perspectiva, menos sir Charles, que observou:
— Terei de pedir sua permissão, querida esposa, para levar sir Ramsey comigo.
Preciso dos conselhos dele em Heyforde.
Verônica sorriu, diante da habilidade do primo em afastar Patrick de Serena.
Decidiu apimentar ainda mais a ira que notou nos olhos da prima:
— Posso lembrá-la de que hoje é dia de sua visita mensal aos chalés de
Knapworth? Eles a estarão aguardando, bem como aos presentinhos que costuma levar.
Serena fuzilou-a com o olhar.
— Você é ótima em lembrar-se do desnecessário, Verônica. E eu não me esqueci
de minhas obrigações para com eles, obrigada. Mas tenho uma solução, que, sem dúvida,
vai agradá-la, já que adora ocupar-se das atividades dos outros. Vamos deixar você em
Knapworth, com alguns mantimentos, e, assim, poderá tomar meu lugar. Na volta, a
apanharemos. Estou certa de que vai se entreter muito por lá. Além do que, teremos
muito mais espaço nas carruagens sem sua presença.
Charles voltou-se, indignado, mas achou melhor calar-se por enquanto.

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CAPÍTULO X

Assim, Verônica foi deixada em Knap-Lworth, carregando duas cestas cheias de


produtos dos laticínios em Marchingham, para que fossem doados a vovó Phelps, bem
como a outros habitantes dos chalés vizinhos.
Serena sempre agradecia a Deus pelo fato de os habitantes pobres do lugar
viverem afastados de Marchingham Place. Isso evitava que ela presenciasse sua miséria
nos anos em que as colheitas não eram favoráveis, o que acontecia com frequência.
Por outro lado, suas incursões às casas haviam se tornado uma tarefa que Serena
detestava, e não era a primeira vez que Verônica fora escolhida para substituí-la na visita
aos menos afortunados. Era, porém, a primeira em que era lá deixada para que passasse
o dia inteiro.
As carruagens se afastaram, deixando-a no meio da única vila da aldeia, e
Verônica começou a descê-la, devagar. Iria até a residência de vovó Phelps, sabendo que
a velhinha a convidaria para uma xícara de chá, preparado com folhas que já tinham sido
usadas para outra infusão. Também o pão que a pobre mulher oferecia era feito com
farinha adulterada, e a manteiga, de tão velha, era rançosa.
Havia, porém, o encargo de estar ali e ajudar a amenizar um pouco o padecimento
daquela gente com os mantimentos que levava, e Verônica não se sentia aborrecida por
ter mais essa tarefa a cumprir. Quanto a Serena, sabia que, mesmo que a prima se
divertisse no passeio, ele não seria tão bom assim, já que Charles havia levado Patrick
consigo para Heyforde.
As horas passaram, tranqüilas, e, após longas caminhadas em Knoll, o grupo de
Serena estava cansado e um tanto calado, em sua volta a Marchingham. Aborrecida pelo
dia que imaginara maravilhoso e que fora de repente estragado pelo marido, Serena
pretendia descontar seu rancor em Verônica assim que a visse. Ao se aproximarem de
Knapworth, o cocheiro pareceu se esquecer de que Verônica saltara ali. Serena, apro-
veitando-se da situação, não o fez lembrar-se da prima, saboreando antecipadamente a
imagem dela, aguardando, imaginando que, talvez, tivesse sido esquecida.
Mais tarde, depois que tivessem chegado a Marchingham, um coche poderia voltar
para apanhá-la, e Serena arranjaria a desculpa de ter se esquecido também da presença
de Verônica ali. Como todos na carruagem estivessem cochilando devido à exaustão, a
entrada para a estrada foi deixada para trás, e Serena recostou-se no banco, um ligeiro
sorriso de satisfação aflorando em seus lábios.
Se Charles a recriminasse, daria o cansaço como desculpa pelo esquecimento,
mas estava certa de que, com tal castigo, Verônica jamais se atreveria de novo a queixar-
se de seu salário em público...
Charles e Patrick aproveitaram bem o dia, mesmo com a preocupação constante
sobre Verônica e sua espera em Knapworth. Inspecionaram a pequena propriedade que
Charles possuía em Heyforde, trocaram ideias sobre a melhor maneira para fazer
melhoramentos aqui e ali e depois retornaram à carruagem para fazerem uma breve visita
a um amigo de Charles, em Monks Acre.
O homem era um solteirão que tinha inúmeros cavalos em estábulos muito bem
equipados. Os três conversaram e beberam, muito animados.
Já passava das cinco da tarde quando retornaram a Marchingham Place. Assim

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que entraram, encontraram Serena, Marianne e o grupo de convidados tomando chá e


saboreando alguns biscoitos caseiros. A garota estava rindo alto, conforme conversava, e
Charles, que não gostava muito dela, embora jamais tivesse deixado de ser cortês,
observou:
— Parece que fez um passeio excelente, não, minha cara?
— Oh, sim, sir! E esquecemos Verônica! Patrick e Charles olharam-se de imediato.
— Esqueceram-se dela?! — murmurou Charles, mas o tom baixo de sua voz nada
tinha de amigável. — Iam pegá-la no caminho de volta e a deixaram lá?!
Patrick lembrava-se de vê-la afastando-se da carruagem, as cestas nas mãos,
tranqüila, linda, humilde...
— Como puderam fazer tal coisa?! — ouviu-se repreendendo, percebendo que sua
entonação era mais de um oficial para um soldado do que de um hóspede para seus
iguais.
Marianne pareceu não se preocupar com a reação deles. Era como se ainda
encarasse o fato como uma grande brincadeira.
— Estávamos todos cochilando, e Serena, cansada demais. O cocheiro não tomou
o caminho da entrada, e só nos lembramos de Verônica quando chegamos aqui.
— Serena, você abandonou a pobre Verônica naquele lugar? Se foi isso, presumo
que já tenha enviado um dos criados com um coche para buscá-la.
— Na verdade, meu querido, tive de cuidar do bem-estar de nossos convidados.
Estava prestes a enviar alguém para buscá-la quando você chegou. — Estendeu o braço
para pegar a sineta.
Aquela atitude tão desconsiderada, abandonando Verônica num local distante, sem
abrigo ou comida, desconcertou Patrick. Como pudera, um dia, deitar-se com tal mulher?
Pobre Charles, por ter de conviver com tamanha víbora.
— Não há necessidade de chamar criado algum — adiantou-se. — Vou pegar meu
cavalo. Eu mesmo irei buscar a Srta. Transome.
— Não se preocupe com isso — Serena tentou dissuadi-lo. — Um dos empregados
irá.
— Não! — Charles quase gritou. — De modo algum. É claro que pode ir, Ramsey.
E quanto antes, melhor. Lady Marchingham — chamou, voltando-se para a esposa —,
quero dar-lhe uma palavra a sós.
Assim dizendo, saiu da sala com passos pesados.
Patrick preparou seu pequeno coche e saiu, rápido, atrás de Verônica. Antes,
porém, passou pela cozinha, pedindo ao chef francês que preparasse alguns lanches.
Charles, vendo-o ir para lá, alcançou-o. Trazia uma garrafa de vinho e entregou-a
ao amigo, com um sorriso, aconselhando-o:
— Já que vai levar comida para nossa querida Verônica, leve um bom vinho
também. E não precisa ter pressa em voltar. — Com uma piscadela marota, Charles se
afastou, deixando Patrick intrigado.
A caminho, imaginava quanto seu anfitrião saberia, e como, mas a preocupação
com Verônica acabou sendo maior e dominando todos os seus outros pensamentos.
Como estaria ela, imaginando-se abandonada?
Pela primeira vez, Verônica estava tensa e aborrecida. Seu dia fora longo e
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cansativo, muito diferente da alegria que vivera na noite anterior.


Vovó Phelps fora gentil, como sempre, e ficara muito agradecida pelas provisões,
bem como os outros moradores da aldeia.
Verônica comera da refeição frugal que a velha senhora lhe oferecera, e que, nas
vezes em que estivera lá, Serena sempre recusara. Verônica, porém, sabia muito bem o
que era ser pobre e considerada como pária na sociedade, muito embora reconhecesse
que sua posição, mesmo tão difícil, sempre fora privilegiada em comparação à dos
habitantes de Knapworth.
Tinha estado na minúscula capela ao lado do cemitério onde repousavam os
antigos habitantes locais, donos das terras numa época em que os Marchingham eram
apenas pobres empregados de Henrique VIII, antes da dissolução dos monastérios que
lhes proporcionara terras e poder.
Agora, sentada no jardim de vovó Phelps havia horas, imaginava o que poderia
estar atrasando aqueles que tinham prometido pegá-la.
O cansaço começou a abatê-la, e a depressão pelo que vinha acontecendo nos
últimos dias começou a aquebrantar seu ânimo.
Recusava-se a crer que Serena pudesse ser tão mesquinha a ponto de largá-la ali,
mas, conhecendo a prima como conhecia, não via mais por que duvidar. Restava saber
quanto tempo mais teria de esperar.
Sentia-se humilhada, e as lágrimas que reprimira por dez anos começavam a vir,
teimosas, a seus olhos. Levantou-se, afastando-se do jardim de vovó Phelps para poder
chorar e sentir o peso de sua tristeza em privacidade.
Os soluços vieram, salientando ainda mais sua má sorte. Chorava por ser o que
era, por estar onde estava, por viver num mundo que parecia não aceitá-la de forma
alguma. Até mesmo a carta de Mabbs e o amor que vivera com Patrick não eram
suficientes para dar-lhe algum conforto.
Patrick aproximava-se da pequena estrada e foi com alívio que divisou o vulto de
Verônica à beira do caminho. Refreou o cavalo e desceu depressa do coche, quase
correndo em direção dela.
— Espero que não esteja desesperada — conseguiu sussurrar, tocando-lhe os
ombros.
Verônica ergueu a cabeça, surpresa.
— Estou feliz que esteja aqui! Como foi que passou justo por este caminho?
A visão das lágrimas no rosto de Verônica afetou-o mais do que poderia esperar.
— Charles me enviou quando aquela... Bem, quando Serena nos contou que a
tinha deixado aqui sem se importar com sua espera. Pode andar ou quer que eu a
carregue até o coche?
Verônica olhou para o veículo elegante, que, como tudo o mais que Patrick
possuía, combinava tão bem com ele.
— Não, não! Estou bem, posso caminhar! Foi bobagem minha ceder ao pranto. E
que, de repente, senti-me tão sozinha!
— Não está mais. Quando comeu pela última vez? No café da manhã, aposto. Eu
trouxe uma cesta com lanches. Vamos encontrar um local para que possa comer e beber
antes de retornarmos. Charles enviou-lhe uma garrafa de vinho.

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Sorrindo, feliz e agradecida, Verônica deixou-o ajudá-la a se levantar e, com as


cestas vazias que levara, acompanhou-o até o coche, sentindo-lhe a mão forte
amparando-a, conforme subia para a boleia.
Patrick pegou os arreios e pôs o cavalo em movimento, para que saíssem das
cercanias da aldeia.
Um ou dois quilômetros adiante, uma clareira surgiu, e dirigiram-se para lá.
Seguiram por mais alguns metros, até visualizarem um riacho, ao lado do qual Patrick
parou.
Patrick auxiliou Verônica a descer e pegou a cesta, bem como um pequeno tapete
e duas almofadas que Charles também mandara providenciar antes de sua partida.
Até o momento, Verônica não se dera conta do quanto estava faminta. Quase de
imediato começou a desembrulhar os sanduíches.
Patrick tirou o paletó, arregaçou as mangas da camisa de seda e acomodou-se ao
lado dela, pondo-se em abrir a garrafa para depois encher dois copos, oferecendo um a
Verônica.
— Não estão nos esperando em Marchingham Place, Patrick?
— Está se preocupando de novo com o que é certo... Não deve, contudo.
Ninguém, além de mim e de Charles, se preocupou com seu bem-estar, hoje. Além disso,
se Serena teve tanto trabalho em arranjar para que você ficasse aqui, tão longe de casa,
só posso agradecer por ela ter providenciado este nosso encontro, concorda? Mesmo se
seus propósitos tenham sido tão vis. Agora, por favor, coma alguma coisa. A falta de
alimento em seu estômago pode trazer-lhe transtornos à saúde, sabia?
Verônica sorriu e mordeu um pedaço do lanche.
— Por falar em faltas, milorde, deixou seu relógio em meu quarto esta manhã, e
estou com ele aqui.
Verônica abriu a bolsinha que pendia de sua cintura.
— Corno eu poderia imaginar que o recuperaria em circunstâncias tão agradáveis?
— Patrick lhe sorria. — E agora entendo bem o que o reverendo Paley queria dizer. Se
meu relógio estava em seus aposentos, isso significa que eu estive lá.
— Diz ser apenas um soldado, mas tem respostas para tudo...
— Espero que sim. E espero ter sempre a resposta que você espera de mim. — Os
olhos dele brilhavam, maliciosos. — E, se comer e beber bem depressa, poderemos
verificar aqui mesmo se minhas respostas são o que procura. Afinal, estamos a sós, com
o tempo todo a nosso dispor, de um modo que jamais poderíamos ter imaginado. Estou
cada vez mais agradecido a Serena!
A fome já passara, o vinho a estava inebriando de um doce abandono, e as
palavras dele aqueciam-na por dentro.
Patrick tomou-lhe a mão, voltou-a, dentro da sua e beijou-lhe a palma, como já
fizera antes. Um arrepio poderoso percorreu Verônica diante daquele carinho, fazendo-a
cerrar as pálpebras.
Quando as ergueu, viu que Patrick terminava seu copo de vinho e olhava-a fixo, o
desejo cintilando em suas pupilas. Com calma e controle, ele a fez deitar-se sobre o
tapete e aproximou seus lábios dos de Verônica, entreabrindo-os assim que os tocou.
O beijo carregado de paixão levou-os logo a um ardor poderoso. Verônica sentia-
se muito mais abandonada nos braços dele do que na véspera.
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O cheiro da terra, das árvores, estava em suas narinas e parecia excitá-la ainda
mais. Entregou-se com a mesma intensidade, correspondendo a cada carícia, juntando
seu corpo ao de Patrick, para que apreciassem os sabores do amor. Pertenciam-se por
inteiro, e suas peles pareciam ter sido feitas para estar daquele jeito, ligadas, como se
fossem de uma única pessoa.
Mais tarde, quando a volúpia já fora saciada e os dois descansavam, unidos ainda,
Verônica disse, o olhar voltado para o céu que escurecia devagar:
— Pensei ter sido esquecida, mas não fui.
— Eu jamais a esqueceria, minha querida.
Verônica abraçou-o, escondendo as faces em seu pescoço, como se quisesse pôr
de lado tudo o mais. Viveria cada momento que tivesse com Patrick, não importando se
ele a amava de fato ou se a via apenas como mais uma conquista. Ainda teria tempo
antes de ir morar com Mabbs, e levaria consigo as mais lindas lembranças de seu amor
com Patrick.
— Está cansada devido ao dia difícil que teve, Verônica. Talvez não queira que eu
vá até seu quarto hoje...
— Não! Vá, sim, eu lhe peço. Sorrindo, ele fitou-a.
— Então, está combinado. Agora, porém, acho melhor voltarmos, ou logo enviarão
alguém para procurar por nós.
Instantes depois, estavam prontos para retornar a Marchingham Place. Satisfeitos,
sim, e felizes pelos momentos deliciosos que haviam partilhado.
Mas um sentimento maior parecia perturbá-los, embora não tivessem coragem de
revelar um ao outro: a necessidade de continuarem unidos, a falta que já faziam um ao
outro, a tristeza por não poderem continuar lado a lado.
No entanto, certas formalidades eram necessárias no convívio em sociedade. Uma
delas era fingirem que nada acontecera, que eram apenas conhecidos e que nada havia
entre eles que pudesse ser desaprovado pela moral e pelos bons costumes.

CAPÍTULO XI

Verônica não costuma se demorar tanto assim para vir tomar o desjejum — Serena
observou, com severidade, na manhã seguinte. — Em especial quando preciso de seu
serviço. Afinal, ela não é apenas preceptora de Marianne. Deve sempre manter-se
disponível a minha vontade. E como pode me servir se continua na cama?! Já que, a
pedido de meu marido, aumentei seu salário, o mínimo que pode fazer é corresponder a
ele!
Lídia e a Sra. Atyeo assentiram, graves, aprovando-a, como sempre. Sua anfitriã
sabia, lógico, qual era o lugar dos criados e dos parentes pobres da família:
sob seu jugo.
Como sir Charles previra, sua reação indignada e sua admoestação à esposa na
véspera, devido a seu comportamento deplorável para com Verônica, só servira para
aguçar ainda mais a raiva de Serena contra a prima.
E tudo ainda piorara quando, ao voltarem para mansão, sir Patrick e Verônica
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foram recebidos com amabilidade excessiva por parte de Charles, o qual recomendara
que o jantar de Verônica fosse servido nos aposentos dela naquela noite, pois ela devia
estar por demais exausta...
Quando Patrick e Charles voltaram de sua cavalgada matinal, Serena refreou um
pouco suas palavras contra Verônica. Olhou para o marido, achando-o mais desajeitado e
rústico do que nunca ao lado de Patrick. Este parecia revigorado, mais alegre do que
lembrava, com um bom humor que Serena jamais vira.
Imaginou que ele deveria estar gostando demais de sua estada em Marchingham
Place, apesar de não poder usufruir bons momentos a seu lado.
E Verônica continuava atrasada para o café da manhã. Até Marianne já se
levantara, o que demonstrava que, mesmo como preceptora, Verônica estava negli-
genciando seu serviço.
Quase meia hora mais tarde, quando ela desceu, Serena notou-a simples como de
costume, mas parecendo, de alguma forma, diferente, com os olhos um pouco mais azuis
talvez, ou mais cansados...
— Está um tanto abatida, minha querida — Charles comentou, assim que a viu. —
Teve um dia difícil ontem, não? Não cometa excessos hoje. Tire a manhã para descansar,
está bem? E, à tarde, vá cavalgar outra vez. Vai lhe fazer bem.
— De forma alguma! — Serena interferiu, protestando. — Belton precisa de alguém
que o ajude a limpar os livros na biblioteca, e eu prometi que Verônica faria esse serviço.
— Pois desfaça a promessa. — Charles nem sequer olhou para a esposa. —
Quero que Verônica descanse com os pés mais altos do que o corpo, numa poltrona
confortável. Percebo que está exausta. Aliás, nós, homens, notamos essas coisas melhor
do que as mulheres.
E, virando-se para Patrick, indagou:
— Não é fato, Ramsey? Patrick observou Verônica.
— É verdade, Marchingham. A Srta. Verônica é tão devotada a seus afazeres que
muitas vezes se esquece de si mesma para levá-los a bom termo. Tenho certeza de que
lady Marchingham também percebe isso muito bem e não iria sobrecarregá-la com mais
trabalho. Suas atividades mais recentes foram cansativas demais, não, Srta. Verônica?
Serena estava achando absurdo todo aquele interesse numa preceptora que não
cumpria com suas obrigações. Nada disse, apenas observando a atitude do marido e de
Patrick enquanto Verônica baixava os olhos sobre a impecável toalha branca.
— Tem razão, sir Patrick, os acontecimentos de ontem me deixaram um tanto
exaurida — Verônica assentiu, suave. — E devo dizer que, pela primeira vez em muitos
anos, tive uma noite... inquieta.
E, dirigindo-se a Charles, completou:
— Agradeço por estar me oferecendo uma manhã sossegada, senhor.
A habilidade que tinha em responder às provocações de Patrick, que apenas ela
podia entender, nada tinham de modestas, como sua atitude em geral. Verônica sabia
que deveria evitar fitá-lo, ou não conseguiria controlar a vontade de rir.
E, quanto à maneira como Charles lhe falava, certas dúvidas começaram a surgir
em sua mente sobre o quanto, de fato, o dono daquela mansão estaria ciente do que se
passava entre seus hóspedes, parentes e criados...
Ainda mais quando Charles a tomou pelo braço, com extrema gentileza, após a
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refeição, e levou-a até a sala de estar, instalando-a num sofá e ajeitando um pufe para
que esticasse as pernas numa altura acima dos quadris, como ele mesmo sugerira antes.
— Preste atenção ao que digo, Verônica. — Charles colocou uma manta leve
sobre os ombros dela. — Não se sobrecarregue. Seja entusiasmada com suas atividades,
mas não exagere. Cuide primeiro de sua saúde.
Verônica evitou olhar para os demais ao ouvir tal comentário, em especial para
Patrick, o qual agora já tinha quase certeza de que Charles entendia o que se passava ali.
Havia muitos empregados por toda a casa e, decerto, algum deles já teria alertado
o patrão sobre o relacionamento entre Patrick e Verônica.
Vendo-a, Patrick ponderou sobre o abatimento que, de fato, percebia nela. Não era
para menos, julgou, considerando-se o ritmo que vinham se impondo...
Sentiu-se culpado, de repente. Verônica tinha responsabilidades e obrigações que
não podia menosprezar, enquanto ele, Patrick, vivia com muito conforto, quase sem nada
para fazer. Era um homem livre para divertir-se como bem entendesse, não tinha mais um
regimento do qual cuidar... o que era uma pena.
Sentou-se numa poltrona, a certa distância de onde Verônica se encontrava, mas
de onde podia divisá-la, se quisesse, e se pôs a conversar com Serena, certo de que,
com tal atitude, ela deixaria de se exasperar com a prima.
Compreendia, porém, que a única coisa que Serena podia querer dele não mais
teria; nunca mais. No atual momento, Patrick não se sentia em posição de trair Charles, e
muito menos Verônica. Não importava o que viesse a acontecer no futuro, jamais faria
amor outra vez com Serena, por causa de seu novo amigo e de sua nova amante.
Marianne ficou muito mais aborrecida por Verônica ser poupada de seus serviços
do que Serena. Olhava com raiva para ela, que se abanava de leve com um gracioso
leque, ainda sentada no sofá.
Verônica notava a atitude dela e esforçava-se para não gargalhar de sua
expressão furiosa. Os demais hóspedes, querendo agradar o anfitrião, passavam por ela
e sorriam, perguntando, solícitos, se estava se sentindo melhor. Era cômico, pensava
Verônica.
Bem mais tarde, quando Patrick retornara de sua ida aos estábulos em companhia
de Charles, ele se aproximou de Verônica 6, vendo que apenas Marianne os vigiava,
disse, os olhos cinzentos fixos nos de Verônica:
— Pelo que posso notar, parece bem melhor. Eu não gostaria de vê-la tão cansada
que não pudesse mais habilitar-se a suas atividades habituais...
— Não precisa se preocupar comigo, senhor — respondeu ela, em sua parte na
farsa que estava adorando representar. — Sinto-me já bastante recuperada e pronta a
assumir com ânimo redobrado qualquer tarefa a que me proponha.
Marianne, aborrecida com tudo aquilo, afastou-se, quase correndo, deixando-os a
sós e livres para falar com sinceridade.
— Não há nada de errado comigo. — Verônica tomou-lhe a mão. — Estou apenas
um tanto abatida, talvez pelo nervosismo por que passei ontem, ao ser deixada por tanto
tempo em Knapworth. Quanto ao resto...
Ela se interrompeu, mais corada.
— Sim? — Patrick insistiu, carinhoso.
— É como se eu não tivesse, de fato, vivido até o presente, milorde. Como se
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todos os meus sentidos estivessem renovados, e eu começasse a me inteirar do mundo


que me rodeia apenas agora. Noto as teias de aranha que não foram removidas dos
cantos das paredes, a barba que sir Charles deixou de fazer ao acordar, o botão solto no
vestido de Serena... E tão estranho! Diria que estou fazendo parte de um sonho, caso não
tivesse absoluta certeza de estar acordada. E não tenho apetite. Quanto a isso, acho que
os poetas estavam todos certos, afinal...
Patrick não pôde deixar de rir diante daquela análise da situação. Jamais ouvira
uma mulher falar assim de si mesma e do fato de estar apaixonada.
— Alegro-me por ouvir isso, Verônica. É ótimo saber que tenho parte nessa sua
nova maneira de encarar a existência.
Naquele instante, sir Charles apareceu, vindo da varanda, e abriu logo um sorriso.
— Ah, está aqui a entreter uma senhorita, Ramsey! Ou será que ela quem está lhe
ensinando uma de suas muitas facetas intelectuais?
— É sempre bom aprender, meu amigo. — Patrick levantou-se. —Além do mais, fui
um soldado por muito tempo. Posso saber muito sobre a ciência da guerra, mas as artes
da paz são bastante interessantes também, e estou adorando aprendê-las.
— No entanto, Ramsey, quero que me conte suas aventuras no front sempre que
puder. Adoro histórias de caserna.
— Sem dúvida, Marchingham, mas não aqui, nem agora. Certos relatos não devem
ser feitos na sala de estar... — E voltando-se para Verônica, completou: — Espero que
entenda.
— Entendo, sim, mas... onde tais histórias devem ser contadas, sir Patrick?
Charles achou graça da pergunta impertinente e respondeu pelo amigo:
— Havia me esquecido de como você é espirituosa, Verônica. Olhe, se este é o
resultado de seu descanso, apelo para que o faça com mais frequência. Vou lhe dizer
como deve proceder: tinha sugerido que fosse cavalgar esta tarde. Eu mesmo não
poderei acompanhá-la, pois tenho um encontro de negócios com um fornecedor vindo de
Heyforde. No entanto, estou certo de que Ramsey terá prazer em acompanhá-la. O que
acha, sir? Um sorriso satisfeito se abriu nos lábios de Patrick.
Mas essa alegria durou apenas até a tarde, quando, ao saber que Verônica e
Patrick iriam cavalgar, Serena anunciou, tentando mostrar-se tranqüila:
— Todos nós iremos andar a cavalo hoje.
Ela percebia que alguma coisa não estava bem naquela casa, mas jamais lhe
passaria pela cabeça a ideia de que um relacionamento amoroso estivesse acontecendo
entre sua prima e Patrick. Seria algo tão ousado por parte de Verônica que Serena nunca
poderia acreditar.
Além do mais, para ela, Verônica era apenas uma criada sem atrativos. Como
poderia o amante fogoso que conhecera estar envolvido por tal poço de desinteresse?
A sensação que tinha de que algo não estava certo começou a guiá-la por um
caminho errôneo em suas maquinações. Charles mimava Verônica demais, e isso a
irritava. Tudo em Charles a irritava, na realidade. Deveria ser por isso que estava inquieta,
nada mais.
Continuaria mantendo Verônica no pequeno quarto para que ela reconhecesse seu
devido lugar. Não podia lhe passar pela cabeça que tal arranjo favorecia os encontros de
Patrick e sua prima.
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Marianne também parecia sentir algo diferente no ar. Reconhecia que não deveria
esperar nenhum pedido de casamento por parte de Patrick, pois sentia-o distante demais
de si. Entretanto, jamais pensaria, como Serena, que ele já tinha seu interesse voltado
para outra mulher ali presente.
Além do mais, mesmo aborrecida por saber que sir Ramsey não faria proposta
alguma, estava ainda mais zangada pelo fato de não ter a oportunidade de dizer "não" a
um pedido formal. Seu desapontamento era demonstrado na maneira cada vez mais
hostil com que tratava Verônica, mas ela não fazia caso das agressões verbais que sofria.
Afinal, estava apaixonada, muito embora soubesse que Patrick a via apenas como
mais uma aventura. Verônica não se importava. Amava-o cada dia mais, e vivia cada
minuto na angustiante espera e na euforia de saber que, à noite, receberia mais uma
visita dele.

CAPÍTULO XII

Patrick barbeava-se, em seu quarto, ainda recordando os momentos maravilhosos


que passara nos braços de Verônica. Como pudera, um dia, imaginar que houvesse uma
mulher fria por baixo das roupas sóbrias e pobres que ela usava?
Deixara-a quando o dia já surgia, ainda assim não satisfeito, querendo permanecer
mais tempo a seu lado. Agia como se fosse um garoto que queria aproveitar ao máximo
seu primeiro amor... Era um homem que já vivera muito, que sempre olhara o sexo oposto
como objeto de seu desejo, apenas, e, no entanto, àquela altura da vida, pensava sem
parar em Verônica, querendo saber sobre ela, se estava bem e tão feliz quanto ele
próprio.
Preocupava-se com ela, queria estar junto dela, conversar, trocar ideias. Jamais se
preocupara em saber se uma mulher raciocinava...
Hanson, o criado particular de Patrick, entrou, trazendo a camisa que o lorde pedira
para ser passada. Um sorriso quase maroto surgiu nos lábios do rapaz, que saiu logo em
seguida, deixando no ar a ideia de que todos os empregados poderiam estar sabendo do
que se passava no dormitório de Verônica, à noite. No entanto, os convidados pareciam
ignorar tudo.
Bem como Serena e Marianne. Quanto a sir Charles, permanecia ainda uma
incógnita para Patrick.
Na cozinha, Hanson, sentou-se, servindo-se de um copo de leite.
— Milorde está "fisgado" — comentou para os demais, que se atarefavam na lida
do dia.
Só havia homens ali, após o café, quando as mulheres ficavam numa sala
contígua, onde preparavam as carnes que seriam servidas no almoço.
— Não consegue parar de pensar nela, tenho certeza. Vi o modo como milorde se
olhava no espelho. Parecia estar sonhando... E a Srta. Verônica, que parecia tão fria,
hein? Quem diria...
— Não é fria onde lhe interessa, Hanson — opinou o mordomo, rindo. — E
estranho, porém. Verônica tem vindo com os patrões para cá todos os anos e nunca se
mostrou interessada em homem algum. Cheguei a vê-la afastá-los de si com frases rudes,
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até. E era tão severa!


— Pois é, mas agora está cheia de atenções para com sir Patrick.
— Será que espera que ele a peça em casamento?
— Acho que não. Ela deve saber que um lorde como ele não se uniria a uma moça
sem eira nem beira. Além do mais, sabemos que milorde foi convidado por outros
motivos...
— E, mas preferiu a preceptora. Deve gostar de suas conversas também.
— Disso e de algo mais. — Hanson terminou seu leite. — Ficaram tempo demais
por aí, ao entardecer, quando o lorde foi buscá-la em Knapworth, lembra-se? E quem
pode saber o que aconteceu por esses campos? Ele levou-lhe comida, vinho... E
demoraram para voltar. Devem ter feito um piquenique.
— Piquenique... — o mordomo repetiu com um sorriso maldoso nos lábios. — Tem
outro nome agora, não é?
— Acho que podemos levantar algumas apostas entre os criados todos sobre
quanto tempo esse romance vai durar. O que acha?
— Ótima ideia!
Alguns convidados novos chegaram naquele dia e logo saíram a passear com
Marianne pelas redondezas.
Verônica foi deixada ali, sem ter o que fazer, como se não passasse de uma peça
de mobília usada apenas quando era útil.
Serena mantinha sua atitude de indiferença para com ela, esperando que isso a
punisse ainda mais. Verônica, por sua vez, esperava apenas pela ocasião em que Patrick
teria de partir para poder dar a notícia de sua demissão à prima. Isso colocaria um ponto
final à perseguição implacável que Serena lhe impunha.
Patrick, enfadado com o passeio, arranjou uma desculpa qualquer e voltou para a
mansão, procurando por Verônica assim que chegou. Encontrou-a no jardim onde certa
vez já se haviam falado.
Uma chuva muito fina começou a cair, garantindo, assim, que ambos ficariam
distantes do outro grupo, o qual deveria ter se abrigado numa espécie de galpão que
ficava próximo do local por onde passeavam.
Animado com a súbita privacidade, Patrick sorria. Viu quando Verônica ergueu os
olhos do bordado que fazia para depois baixá-los de novo, mostrando-se recatada e
severa como convinha a uma preceptora.
Trocaram algumas palavras triviais, até que Patrick pediu, aproximando-se:
— Deixe esse trabalho de lado. Está dando mais atenção a essa agulha do que a
mim.
— Você deve voltar a sair assim que parar de chover. Vão sentir sua falta se não o
fizer.
— Não me importo com o que pensem ou sintam.
— Patrick tirou-lhe a agulha e o pano das mãos, deixando-os de lado. — Olhe para
mim. Se sentirem minha falta, eu...
— Por favor, não insista. Não quero que nos vejam juntos. — Verônica queria
manter sua reputação intacta.

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Sua vida pessoal, a intimidade que tinha com Patrick, era maravilhosa, mas, em
público, queria manter-se como sempre fora. Sua mudança para Alnwick deveria ser
tranqüila e discreta.
— Mas eu não me incomodo com o que pensem! — Patrick insistiu, mais alto. —
Não suporto mais ter de manter uma conversa idiota com Serena ou com Marianne.
Quero estar com você! E agora!
— Agora? — Verônica se levantou, afastando-se um pouco. — Não estamos em
Knapworth, e muito menos a sós. Há criados por todo lado. Não pode esperar? Afinal, a
noite não tardará a chegar...
— Para mim, o tempo que levar será longo demais.
— Patrick tomou-a pelos ombros, de repente, puxando-a para si. — Não me faça
aguardar mais, eu lhe peço. Olhe bem para mim e diga, com toda a sinceridade, que não
está ardendo de paixão como eu estou.
A volúpia chegava a causar-lhe dores. Estava diante dele, sentindo suas mãos
poderosas em seus braços, olhando-o bem de perto, ouvindo sua voz rouca e suplicante.
Toda ela o queria, com uma intensidade que jamais pensara que pudesse sentir. -— Eu...
— Eu sabia! — Patrick sussurrou, triunfante. — Aqui, e já, bem depressa, antes
que sejamos descobertos!
E, com um movimento rápido, Patrick levou-a consigo até a parede, para longe de
onde alguém os pudesse ver através da janela.
Passaram a beijar-se com sofreguidão, como se jamais se tivessem tocado e
estivessem ardendo de luxúria pela primeira vez; como se a noite anterior não tivesse
acontecido.
Ali se acariciaram e se amaram, famintos, como dois criados que tivessem de se
contentar com um momento de amor muito rápido entre seus afazeres domésticos.
Mal podiam manter-se em pé quando sua lascívia estava saciada. Seus corpos se
apoiavam um ao outro, suados e trêmulos.
— Meu Deus, Verônica, acho que nunca foi tão bom! — Patrick murmurou, os
lábios colados a seu pescoço.
— É verdade... Por quê?
— O perigo de sermos descobertos, minha querida. Não há nada como esse
estímulo para temperar a vida e o sexo. Acredite na palavra de um soldado. — Ele
acariciava-lhe o rosto, tomado por infinita ternura, mas sabia que não tinham tempo para
aquilo.
O barulho de vozes se aproximando os fez afastarem-se e recomporem as roupas
da melhor forma possível.
— É mais fácil para você, não? — comentou ele, divertido, vendo-a baixar as saias
com presteza. — É uma das vantagens que as saias têm sobre as calças.
E, quando Serena e seus convidados entraram na sala, tudo estava no lugar.
Verônica bordava, em silêncio, e Patrick mantinha-se recostado na parede onde, havia
pouco, ardera de prazer. Lia versos de Byron com tanta maestria que a própria Verônica
teve de admirá-lo.
— Então, encontrou abrigo, sir Patrick — Serena observou, olhando para ambos.
Alguma coisa parecia avisá-la, mas não sabia do quê. Verônica, muito submissa,
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respondeu por ele:


— Sir Patrick está usando um casaco tão elegante! Como poderia permanecer na
chuva com ele?
— Muito bem observado, Srta. Verônica! — ele aprovou, continuando: — Mas isso
é um aspecto da vida mundana que não parece preocupar muito aos poetas. Concorda,
senhorita?
— Acredito que o cotidiano comum jamais ocupe as mentes de pessoas tão
brilhantes quanto os poetas, sir. Para eles, apenas os grandes sentimentos contam. Botas
molhadas e paletós umedecidos pela chuva não fazem parte de seu mundo de belezas.
Patrick sorriu, amável, imaginando que, para uma mulher que fazia pouco gemera
entre seus braços, Verônica era uma excelente atriz.
Serena, irritada, comentou, seca:
— Se é sobre isso que estavam falando até agora, Verônica, fico feliz por a garoa
ter atrasado nossa chegada.
— Com certeza, prima. — Verônica ergueu o tecido, admirando o que já bordara.
— Eu e sir Patrick sempre conversamos sobre esses assuntos, que nos agradam muito,
mas que, eu sei, aborrecem as demais pessoas.
Serena voltou-se para Patrick.
— Eu não sabia que se interessava por poesia, senhor.
— Não? Pois saiba que a Srta. Verônica é muito hábil em instruir a todos, além de
nossa adorável Marianne, no que se refere ao conhecimento intelectual. E fiquei longe da
civilização por tanto tempo que preciso me inteirar do que está em moda hoje em dia em
nossa sociedade. As conversas, a literatura... Tenho de saber o que é falado e lido.
— Sempre supus que já tivesse uma boa cultura — Serena insistia, movida por
uma compulsão cujo motivo ignorava.
— Há sempre mais espaço para o saber na mente humana, minha cara lady
Marchingham — ele rebateu, sem perder a classe. — Desde que, é claro, eu não esteja
aborrecendo a Srta. Verônica com minha sede de saber.
E, voltando-se para Verônica, perguntou, em duplo sentido:
— Tenho incomodado a senhorita com meu interesse?
Com uma vontade imensa de gargalhar diante daquela situação, Verônica baixou a
cabeça sobre seu trabalho, respondendo, num murmúrio:
— De forma alguma, sir Patrick. Considero muito produtivo conversar com o
senhor. Tem tanta vontade de aprender mais!
Aquilo tudo era entediante demais para Marianne, que, além do mais, achava de
muito mau gosto terem sempre de incluir Verônica. Já a suportava em particular; em
público, era-lhe terrível ficar escutando a preceptora discorrer sobre coisas que a
aborreciam. E seu enfado estava tão evidente em sua expressão que Patrick não pôde
furtar-se a adorar daquele instante. Serena deu-se por satisfeita, e o resto do dia
transcorreu tranqüilo, sem nenhum incidente mais importante.
Verônica teve que ajudar Belton com os livros na biblioteca, tarefa que algumas
semanas atrás ela teria apreciado muito, mas que, nas atuais circunstancias, apenas
deixou-a triste por ter de ficar longe de Patrick por mais tempo.
Belton, um rapaz, muito mal remunerado, filho caçula de um cavalheiro que
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perdera grande parte de seus bens, era gentil e educado, e muito admirava Verônica, a
distância. Sabia que jamais poderia sonhar em desposá-la, pois nunca chamara sua
atenção, além de não ter condições financeiras para sustentar uma família.
A mãe de Belton costumava dizer-lhe que deveria escolher uma moça que o
ajudasse a subir socialmente, mas onde poderia encontrá-la? Verônica o considerava
apenas um amigo, além do fato de ser mais novo que ela. Além disso, também ele sabia
o que andava ocupando a cabeça e o coração dela, pois, como os demais criados,
embora não fosse um deles, Belton sabia mais do que deveria.
E, vendo o modo ansioso com que Verônica se voltava a cada vez que alguém
abria a porta, na esperança de que fosse sir Patrick, decidiu que não gostava daquele
elegante e bem-apessoado lorde.
Ramsey, para Belton, era como todos os outros que sempre vinham, tomavam o
que não lhes pertencia, em especial as mulheres, e depois partiam de novo, descartando
suas vítimas pelo caminho, como se elas nada significassem.
O que um homem assim poderia saber sobre os sofrimentos e as agruras de
pessoas como ele, Belton, ou como Verônica, que viviam à margem da sociedade, com
receio de cometer o menor deslize, pois este poderia lançá-los para sempre à sarjeta?
Verônica, entretida em copiar títulos num volume grosso, de capa dura, confortava-
se com a ideia de que a noite chegaria em breve e lhe traria Patrick. Seu quarto era seu
céu, e nele pretendia viver seu amor da melhor maneira possível.
Depois... Bem, depois seria uma outra história...
Patrick, em seus aposentos, lia a correspondência que lhe chegara e que avisava-o
de que sua presença era necessária em Londres, primeiro, e depois em Harley Vale, sua
propriedade em Kent. Não poderia permanecer em Marchingham Place por muito mais
tempo.
Respirou fundo, colocou as cartas sobre a mesa-de-cabeceira e desceu para a
sala, onde comunicou a sir Charles o que acabara de ler.
— E uma pena que a vida não seja feita apenas de cavalgadas e retiros
agradáveis, meu amigo. — Charles, que acariciava dois de seus cães, olhou, sério, para
seu hóspede. — Vai sentir muito era ter que ir, não é fato? Sei que foi feliz aqui.
Patrick franziu as sobrancelhas. Se pudesse levar
Verônica consigo, torná-la sua amante perante todos...
Mas isso acabaria com a reputação de ambos. Afinal, ela era um boa moça, mas
nunca mais seria respeitada.
Como o destino podia ser cruel!
Como Verônica imaginara, Patrick não considerara a possibilidade de casamento
em momento nenhum.
Pensativo, assentiu.
— É verdade, Marchingham. Você tem uma bela casa aqui.
Evitou falar sobre Verônica, embora soubesse que Charles tinha conhecimento do
caso. Era óbvio, pelo modo com que ele vinha tratando os dois.
Se Charles estava aborrecido pelo fato de Patrick nada dizer sobre Verônica, não o
demonstrou.
— Que tal uma última cavalgada, Ramsey? — convidou, chamando os cachorros,
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que se afastavam, com um gesto apenas. — Acho que vai querer sair bem cedo.
Sua preocupação, contudo, se concentrava em Verônica, em quanto ela iria sofrer.
Pelo menos, consolava-se, ela vivera momentos lindos ali, e Patrick seria discreto o
suficiente para manter seu nome intacto.
Verônica achou Patrick diferente naquela noite. Seu amor foi intenso como sempre,
mas seu sexto sentido parecia dizer-lhe algo mais, que a deixava inquieta.
— Está tão distante, Patrick! — observou, tentando
parecer alegre, embora seu coração estivesse começando a doer. — Já se cansou
de mim?
— Não! — respondeu ele, depressa, como se tal ideia jamais lhe tivesse passado
pela cabeça. — Não é isso.
— Não? Sempre achei que conquistas fáceis levassem a uma rejeição apressada.
— Você não foi uma conquista fácil, Verônica, e não estou cansado de sua
companhia. O fato é que... precisarei partir amanhã.
Uma pontada aguda atingiu-a no peito diante de tal revelação. Contudo, precisava
continuar usando a máscara à qual já se acostumara, e que, só com ele, deixava ceder
um pouco.
— Ah, entendo... Então, este é nosso fim. Vamos nos despedir hoje. A cortina vai
cair e o resto será apenas silêncio — brincava para disfarçar seu sofrimento.
Patrick tomou-a pelos ombros, de súbito zangado.
— Tem sempre de brincar? Gostou de estar comigo, não?
Verônica mal podia falar. Seu coração estava se despedaçando.
— Muito, Patrick. Mas as boas coisas chegam ao fim. O que ela poderia ter
esperado? Casamento? Por que Patrick se casaria com a mulher que se entregara em
seus braços sem a menor reserva, sem a necessidade de ser esposa? O soldado teria de
ir para novas batalhas e conquistas e, se tivesse de se casar, seria com alguém jovem
como Marianne, que lhe daria dinheiro e filhos, não com uma que lhe dera a virgindade
sem relutância e nada mais tinha a oferecer.
— E melhor não falarmos mais sobre isso, Patrick. Ainda temos algumas horas. O
amanhã não existe ainda. Podemos desafiá-lo a jamais chegar...
— Não quero levá-la comigo como minha amante, Verônica. Isso não seria justo
com você.
Patrick dissera adeus muitas vezes antes, mas nunca sentira tanta tristeza.
Compreendia mal o jeito leve e descomprometido com que Verônica encarava sua
partida. Parecia que, também para ela, seu romance fora apenas um passatempo.
Poderia e deveria ficar aliviado com isso, mas não era assim. Mesmo jamais tendo
desejado assumir um compromisso. O prazer era para ser apreciado de maneira suave e
irresponsável. Não podia transformar Verônica em sua esposa.
Uma esposa, para ele, era um objeto decorativo, mãe de seus filhos e nada mais,
para que pudesse dar continuidade a sua liberdade fora do matrimônio. E Verônica, com
certeza, queria e merecia muito mais do que isso. Patrick, porém, não se sentia pronto
para dar-lhe tanto. Não a considerava como uma possível consorte, mas como alguém
que lhe ofertara muito mais do que qualquer mulher já dera ou poderia vir a dar. No
entanto, seu relacionamento não poderia ser permanente.
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Fizeram amor como loucos, como se soubessem que a morte os aguardava ao


raiar do sol.
Verônica sabia que não teria outra oportunidade, e encarava aquilo como sempre o
fizera: com uma determinação fria, quase cruel, mesmo tendo sua alma sangrando.
Patrick, por sua vez, abraçava-a, pensando que poderia haver outras mulheres no futuro,
que encontraria alguém igual a ela, mas sabia estar se enganando. O menino que fora
rejeitado com tamanha rudeza pelo pai era incapaz de aceitar que outro amor pudesse
ser correspondido. Aquela rejeição do passado não seria redimida, e seu peito, mesmo
dolorido, deixaria Verônica para trás, para ser apenas alguém de quem lembrar.
Hanson imaginava quem ganharia a aposta, entre os criados, afinal. De
madrugada, ajudava a arrumar as coisas de sir Patrick, estranhando sua demora em
deixar o quarto da Srta. Trensome. Devia estar sendo difícil dizer adeus...
No corredor, tendo um dos cães a seus pés, sir Charles aguardava. Levantara-se
muito cedo para se despedir do amigo. Os dois lordes se olharam, e Charles repreendeu,
com simpatia:
— Descuidado... Não deve estragar a reputação de Verônica, agora que tudo
terminou.
Pela primeira vez, Patrick não soube o que dizer.
— Espero que tenha sido gentil com ela, Ramsey. Verônica merece receber um
pouco de bondade.
— Gentil?! Só isso?
— Sim. Porque seria muito difícil para ela se fosse de outra forma.
— Conhece Verônica, Marchingham. Ela é uma mulher forte.
— E. Bem, seja como for, é melhor ter sido você do que ninguém. Não quero que
venha a esta casa outra vez se ela estiver aqui. Não seria bom para Verônica. É uma
pena, no entanto. Acho que nos damos bem, nós três...
— Não vai me recriminar e me expulsar daqui?
— Para quê? Verônica é adulta, sabe o que quer. Eu mesmo deveria tê-la
desposado, mas fiz uma escolha errada. Um sujeito jovem, às vezes, não sabe querer as
coisas certas. Creio que o mesmo se pode dizer dos mais maduros... Bem, o dia está
amanhecendo bonito. Terá uma boa viagem. Como precisarei ir a Heyforde daqui a
pouco, não o verei mais por hoje. Mas nos encontraremos, com certeza, quando eu
estiver de volta a Londres. Agora, é melhor se apressar, ou será visto. Não quero que
Serena saiba o que vocês dois andaram fazendo. Uma criatura deplorável, minha
esposa...
E, com um aceno breve, Charles dirigiu-se às escadas, deixando Patrick com um
certo sentimento de vergonha.
Aquele cavalheiro, que se fazia passar por tolo para muitos, era muito honrado. Um
grande companheiro, na verdade.
Patrick retornou a seu quarto. Ao chegar diante da porta, quis voltar aos aposentos
de Verônica, mas sabia que não seria correto. Hanson já deveria estar a sua espera, com
suas malas prontas, estranhando, talvez, sua ausência no dormitório que deveria ocupar.

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CAPÍTULO XIII

— Quero que vá até meus aposentos esta tarde, Verônica — ordenou


Serena, assim que a viu no jardim, acompanhando Marianne. — Precisamos
conversar.
Tanto sir Patrick quanto sir Charles já tinham saído, e Serena estava sentada num
dos bancos, junto de suas amigas.
Verônica assentiu, ela própria tendo suas razões para também querer falar com a
prima em particular.
— A que horas quer que eu esteja lá?
— Acho que às duas estará bem. — Serena olhou-a de modo duro. — Aonde está
indo?
— Achei que Marianne gostaria de sentar-se diante do lago para bordar.
Aproveitarei para ensinar-lhe um ponto novo. E depois, o dia está começando tão lindo...
— Não há necessidade disso. Marianne pode ficar conosco. Retorne à biblioteca.
Sua presença não é necessária aqui, e Belton necessita de ajuda. Pretendo eu mesma
cuidar de Marianne, no futuro. Depois do almoço, quando seu trabalho estiver terminado
na biblioteca, você poderá ajudar meu cozinheiro na preparação da geléia de uvas. Há
poucas ajudantes por lá, já que duas das empregadas se foram.
E Serena deu-lhe as costas sem, ao menos, importar-se em dispensá-la. Sem
Patrick ou Charles para apoiarem Verônica, podia tratá-la como bem entendesse. Já
entristecida pela partida de Patrick, o coração de Verônica estava mais aberto a
sentimentos ruins, e não pôde evitar sentir raiva da prima pela maneira como falara com
ela.
Cerrou os olhos, lembrando-se da partida de Patrick com uma grande mágoa. Não
o acompanhara à porta, como as outras pessoas da mansão. Permanecera à janela de
seus aposentos, vendo-o de longe, até que sua carruagem fizesse a curva distante da
estrada.
Agora, tendo perdido seus protetores, era mandada à cozinha... No entanto, ainda
havia o consolo de saber que a carta de Mabbs estava em seu bolso, como um
passaporte sem volta para a liberdade.
Sua situação naquela casa estava se tornando insustentável. Passaria a ser
considerada uma criada, e nem mesmo sir Charles poderia auxiliá-la diante dos
propósitos de Serena. Afinal, não arriscaria uma cena de aberto desentendimento com
sua esposa perante os convidados.
— Acredito, então, que queira levar o bordado de Marianne, já que passará a
instruí-la — Verônica observou, fazendo a prima voltar-se.
— Não. Leve-o de volta consigo. Não sou preceptora ou governanta para estar
carregando essas coisas. O que me faz lembrar: o pequeno Charles está prestes a iniciar
seu aprendizado das letras. Gostaria que você se preparasse para fazê-lo. Já mandei
arrumar a sala com a lousa, nos fundos, bem como o aposento logo ao lado, para onde
você deverá se mudar.
Ao caminhar de volta à residência, Verônica estava bem consciente de que as
risadas que ouvia eram a sua custa. No entanto, continuava de cabeça erguida.
Podia ter sido humilhada de novo, mas não demonstraria fragilidade alguma.
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Sombras da Paixão – Paula Marshall CH n. 185

Na biblioteca, tratou Belton com a mesma simpatia de sempre, chegando, mesmo,


a ser alegre, o que fez o rapaz imaginar que ele e os outros deviam estar enganados
quanto ao que se passara entre ela e sir Patrick. Não deveriam ter desfrutado um
romance e, se o tivessem tido, este não deveria ter significado nada para ela, ou Verônica
estaria portando-se de modo diferente.
Em dado momento, Belton aproximou-se, observando o trabalho caprichoso de
Verônica num dos livros de registro.
— Seu serviço é um desperdício, aqui. Não sei por que a maioria das mulheres não
é educada de maneira apropriada. Seria uma professora ou uma bibliotecária estupenda.
Tem uma inteligência brilhante, é dona de um discernimento sem igual, e sua imaginação
é fértil.
As palavras amáveis quase provocaram as lágrimas de Verônica, objetivo que a
severidade e a torpeza de Serena não alcançaram.
Mais tarde, à hora do almoço, Verônica se levantou, levando as mãos às costas,
que doíam devido à posição forçada na cadeira durante as longas horas que estivera
sentada na biblioteca, escrevendo. Também seus dedos doíam.
Quando chegou à porta da sala de jantar, o mordomo estava lá e colocou-se em
seu caminho, esclarecendo, com delicadeza:
— Srta. Trensome, milady deu-nos ordens para que, de hoje em diante, a senhorita
faça suas refeições na saleta de estudos que foi preparada para o menino Charles.
Deverei enviar-lhe uma bandeja assim que uma das copeiras esteja livre.
Ele não era um homem de má índole, muito ao contrário, mas jamais tivera a
oportunidade de destratar qualquer um "deles", como se referia aos que não eram criados
na mansão, e Verônica, a parente pobre da família, serviria como alvo contra o qual
pudesse abusar do poder que lhe fora conferido por sua patroa.
Verônica assentiu e afastou-se. Tinha certeza de que, quando Charles retornasse
de Heyforde, dentro de poucos dias, mudaria tais ordens, mas, por enquanto, era
necessário esperar e resignar-se.
Serena estava deixando bem claro o que pensava a seu respeito e tentava
empurrá-la para fora, feliz por acreditar que Verônica não tivesse para onde ir.
Serena a aguardava, sentada na bela antecâmara de seus aposentos. Às duas
horas em ponto, Verônica bateu de leve à porta e, ao ouvir a permissão, entrou.
Serena fingia ler um livro, e deixou Verônica esperando por longos minutos antes
de erguer os olhos para vê-la.
— Pelo que posso notar, está malvestida, como sempre. No entanto, isso não vem
ao caso. No futuro, não serei mais obrigada a olhar para seus trajes deprimentes. O que
me perturba, na verdade, e precisa ser remediado são seus modos. Parece que se
esqueceu de quem é, Srta. Trensome. Não gosto da maneira como vem se comportando
e falando com meus convidados. Você nada mais é do que uma criada paga que aqui
está para desempenhar certas tarefas. Uma delas é proteger e dar bons exemplos para
uma jovem. E, com certeza, não é isso o que vem fazendo. E, a não ser que esteja pronta
a melhorar sua atitude, vou pedir a sir Charles que a demita. Ele me parece, como um
idiota, estar a seu favor, mas sei que meu marido não ousaria ir contra mim, caso o
pressionasse.
Verônica ouvia em silêncio. Seu coração batia descompassado, e seus punhos se
fecharam, tendo de ocultá-los atrás de si.

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— Bem, continua insolente, pelo que vejo! Ainda não me respondeu. O que tem a
dizer?!
— Eu não sabia que já tinha terminado, prima.
— E não me chame de prima! — Serena gritou entre os dentes. — Sou "milady"
para você! Devo lembrá-la mais uma vez de que é apenas uma empregada?
— Não, não é necessário me fazer recordar isso, prima. — Enfatizou a última
palavra, obrigando-se a permanecer fria e calma. — Seus modos me fazem lembrar a
cada vez que se dirige a minha pessoa. Gostaria que eu usasse um dos uniformes das
criadas, ou, quem sabe, uma faixa em minha testa onde se pudesse ler o nome de minha
função? Isso lhe pouparia o aborrecimento de ter de informar aos hóspedes sobre quem
sou, deixando-lhe mais tempo livre para ensinar Marianne a arte do insulto.
Serena fuzilava-a com o olhar.
— Está querendo me enfurecer?! — O rosto de Serena ficava cada vez mais
vermelho. — Quem acha que vai querer empregá-la se eu der más referências suas, se
disser que é insolente ao extremo? E pare de me chamar de "prima"!
— Mas você é minha prima! Embora eu desejasse me esquecer disso. Quanto a
onde eu poderei ir, ao sair daqui, não acho que lhe interesse. No entanto, tenho algo a lhe
mostrar.
E tirou a carta que recebera de Mabbs do saquinho preso a sua cintura,
estendendo-a a Serena.
— Não tem a menor vontade de que eu permaneça aqui e eu não tenho a menor
vontade de ficar. Aceite meu pedido de demissão, prima!
Serena arrancou-lhe a missiva da mão, lendo-a, apressada. Depois, amassou-a e
jogou-a aos pés de Verônica, para que ficasse bem claro o que pensava a respeito.
— Alnwick! Com aquela odiosa Mabbs! Bem, não pretendo detê-la aqui, mas não
partirá antes de cumprir sua quinzena e, depois disso, poderá ir para o inferno até, se
quiser! Não me importo. Você e sua irmã me encheram de vergonha há dez anos, e
minha caridade para com vocês tem sido muito mal reconhecida!
— Prima Serena, tem me oferecido um teto e, talvez, muitas outras pessoas não o
teriam feito, e sou-lhe agradecida por isso. Mas trabalhei demais e durante muito tempo
para você, e acredito que a gratidão deva ser recíproca. Entendo, também, que deva
servi-la até o dia estipulado e manter-me desempenhando minhas tarefas a contento.
Agora, se me der licença, preciso ajudar sua cozinheira com a geléia. — Inclinou-se numa
mesura e saiu sem olhar para trás.
Naquela noite, bem como na manhã seguinte, Verônica sentiu náuseas e acreditou
que jamais seria capaz de comer geléia de uvas em sua vida. No entanto, mais um dia se
passou, o cheiro do doce já não estava impregnado em suas narinas, e o enjôo persistia,
sobretudo logo cedo. Olhou-se no espelho, após vomitar, e imaginou que Patrick não
poderia desejá-la se a visse naquele instante. Como sempre, ele era seu único
pensamento.
Precisava ficar na cama. Não se sentia forte o suficiente para descer e
desempenhar seus afazeres, que, com certeza, a obrigariam a fazer. Respirou fundo, po-
rém, sentindo-se melhor, e achou por bem resistir. Serena poderia imaginar que a estava
vencendo, e isso Verônica não queria que sequer passasse pela cabeça da prima. Seu
orgulho falava mais alto.
Ao descer as escadas, entretanto, outra onda de ânsia, mais leve e controlada,
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contudo, causou-lhe uma ideia que a fez estremecer. Procurou afastá-la, pelo menos por
enquanto.
Naquele mesmo dia, bem mais tarde, trancada em seu minúsculo quarto no sótão,
onde agora se acomodava, Verônica pôde dedicar toda a atenção ao que acontecia com
seu corpo. Pegou o diário que deixara de escrever fazia três semanas, após sua primeira
e delirante noite com Patrick. O que vivera com ele estava gravado em sua memória e em
seu coração, não precisava de registros por escrito.
Não se arrependia do que fizera, pois sempre estivera consciente do risco que um
romance poderia trazer, e não recriminava Patrick por ter voltado a Londres. Afinal, ele
tinha sua própria vida e jamais lhe dera esperanças de que poderiam ficar juntos.
Assim, voltou algumas páginas escritas, releu as datas ali marcadas, e
encaminhou-se para a cama estreita, dura, no sem cortinado, cujas cobertas estavam
remendadas, sendo nada mais do que sobras de outras camas da mansão, mas muito
apropriadas para a coisa na qual ela se transformara ali.
Retirou de dentro da roupa, na altura do peito, um lenço que Patrick esquecera em
seu quarto, uma última lembrança que lhe ficara, além do filho que devia levar dentro do
ventre, e levou-o aos lábios. Havia a liberdade diante dela, na residência de Mabbs. Seria,
afinal, uma mulher como qualquer outra. A criança que poderia tê-la arruinado era, para
Verônica, uma salvação.
Patrick, de volta a Londres, sentia-se pior do que nunca. Aborrecido e solitário,
conduzia seus negócios com indiferença, visitava pessoas que precisava, mas nada o
interessava.
Caminhando por Piccadilly, encontrou-se com um velho amigo.
— Ramsey! Pat Ramsey! Disseram-me que tinha herdado uma fortuna e que
estava levando uma vida nababesca! Jamais pensei encontrá-lo por aqui. Achei que
estivesse na Escócia. — Tratava-se de Angus Mackay, que servira com ele no
septuagésimo terceiro regimento e que também se reformara ao herdar do tio materno
uma propriedade em Surrey.
— Não, não. — Patrick apertou a mão de Angus com força. — Não na Escócia.
Nunca lá, aliás. Aquele lugar me faz mal. E tenho casas na Inglaterra.
— Você as tem por toda parte, ao que parece. — Angus riu, conforme
caminhavam. — Ainda é o solteirão inveterado de antes? Não se casou?
— Bem, minha tia quer porque quer que eu me case logo e arranje um herdeiro,
mas as jovens demais não me atraem e as que têm experiência no leito não são do tipo
desposável, você sabe.
Patrick sentiu um certo arrependimento por dizer tal coisa, lembrando-se de
Verônica, mas seu amigo nada percebeu.
— E você, Angus?
— Estou em Londres pela última vez como um homem solteiro. Vou me casar com
uma moça cujas terras fazem limite com as minhas. Uma boa garota, mas um tanto
medíocre. Tive um caso com Rosana Knight, não sei se soube, antes de me tornar um
cavalheiro respeitável e casadouro. Irei visitá-la esta noite. O que acha de me
acompanhar? Há muitas moças interessantes por lá. Irmãs de Rosana.
Patrick considerava a proposta. Rosana Knight e suas irmãs eram cortesãs muito
conhecidas em Londres, e tão famosas e procuradas que tinham o privilégio de escolher
seus acompanhantes.
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Sombras da Paixão – Paula Marshall CH n. 185

— Por que não, Angus? Acha que vão gostar de minha presença?
— Elas não recusariam o dono das maiores propriedades a oeste das Terras Altas.
Então, está acertado. Agora, tenho que ir ver um outro amigo, e você vem comigo.
Parece-me um tanto abatido, e não deveria estar, já que passou de capitão mal
remunerado a proprietário abastado... Venha, Pat, Fisticuffs vai melhorar seu ânimo.
No entanto, o alegre e bem-humorado amigo de Angus não conseguiu fazer com
que Patrick se esquecesse de seu aborrecimento, nem ao menos com as piadas
engraçadas que sabia contar.
O mesmo aconteceu com as irmãs Knight, mais tarde. Seu desânimo, aliás, passou
a ser notado e chegou a se tornar embaraçoso.
Laura, uma das garotas, uma morena muito bonita e cheia de curvas, estava
satisfeita por poder divertir Patrick, já que Angus o recomendara tão bem. Entretanto, algo
mais forte dó que Patrick o detinha. Não conseguia soltar-se, agir com naturalidade, e
acabou frustrando-se, não sendo capaz de desempenhar seu papel no ato sexual.
Entre ele e a sedutora Laura surgira a imagem de Verônica. Era como se ainda
pudesse vê-la, em seus braços, os olhos incendiados de paixão.
Laura, exímia conhecedora do sexo oposto, afastou-se e, com um sorriso
compreensivo, aconselhou:
— Hoje, não. Talvez... talvez nunca.
Patrick sentia-se um tolo. Tentou abraçá-la mais uma vez, teimoso, mas Laura o
afastou.
— Não, sir. Ramsey. E não precisa me pagar. Não vou para a cama com um
homem que não me queira, e acho que, com você, também é assim, não? Mas, afinal,
quem é ela? Não, não me diga seu nome. Fale apenas se é, de fato, em outra mulher que
está pensando. Ele assentiu.
— Sim, e sou um tolo. Achei que poderia ficar com ela ou abandoná-la sem
maiores preocupações, mas estava enganado.
Laura levantou-se, vestiu-se e caminhou até sua penteadeira, em cuja banqueta se
sentou.
— Pode conversar comigo, se achar que isso vai aliviá-lo, sir. Sei que sou apenas
uma cortesã, mas talvez queira me contar o que não consegue dizer aos outros.
— Não há nada a revelar. Eu me apaixonei, apenas isso. E era essa última coisa
que queria que me acontecesse neste mundo.
— E ela é uma boa mulher?
— É a melhor que se poderia encontrar. Sou eu quem não consegue se adaptar a
nada nem a ninguém. Sempre fui irresponsável em matéria de amor, e agora... acho que
deixei a única que poderia me fazer feliz.
Patrick caiu num profundo silêncio, o olhar parado a sua frente, como se pudesse
ver algo que mais ninguém podia.
— Ela o ama?
— Não sei, Laura.
— Há alguma razão pela qual não possa se casar com ela?
— Não. Apenas eu mesmo.

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— Então, deve lutar contra si, milorde. Só você pode se ajudar, ao que me parece.
— Tem razão. — Patrick tentou sorrir para a sábia cortesã. — Mas não sei
conseguirei.
Laura esperou que Patrick se vestisse, para depois acompanhá-lo até a saída.
— Não se preocupe, milorde. Serei discreta e ninguém saberá sobre o que
aconteceu. Ou, melhor dizendo, sobre o que não aconteceu entre nós. E, se é que sou
alguém para dar-lhe um conselho, sir Patrick Ramsey, ouça seu coração. Confie nele.
Tenho certeza de que lhe dará a resposta certa se souber entender o que lhe diz.

CAPITULO XIV

Uma semana depois de seu encontro embaraçoso com Laura, Patrick dirigiu-se a
sua casa em Chelsea. Despedira-se do amigo Angus e prometera estar presente a seu
casamento, mas duvidava que conseguisse suportá-lo.
Em Chelsea, também parecia não haver alegria possível. Lá existiam recordações
demais. Vivia dizendo-se que mandaria tirar vários quadros das paredes, já que eles o
faziam lembrar-se de sua infância. Um em especial, que retratava seu irmão Hugh, feria-o
sobremaneira.
Hugh, que o carregara nas costas quando ainda era bem pequeno, e que, muitas
vezes, tentara compensar com seu próprio carinho a falta que o amor do pai fazia a
Patrick. Hugh, que ele vira apenas duas vezes depois que fora mandado embora de casa
aos dezesseis anos, rumo ao Exército.
Hugh, tão querido, que, no primeiro desses dois encontros, oito anos depois de sua
partida, abraçara-o com força, exclamando que estava orgulhoso por ver Patrick já
transformado num homem.
Deixou-se cair numa poltrona, observando, sem interesse, as paredes.
Amara tanto aquela casa quando ainda era pequeno! Aquele era seu lar, afinal.
Brincara nas pastagens e nos penhascos, andara por toda a região, fora um filho
temporão, nascido quando sua mãe já tinha certa idade e seus irmãos eram, todos, bem
mais velhos. A mãe morrera no parto. Mais tarde, alguém lhe contara que seu pai dera
ordens explícitas para que o médico salvasse sua esposa e deixasse a criança morrer,
mas ocorrera o contrário, e ele jamais perdoara Patrick.
E agora estava ali, de volta, e um sobressalto o atingiu, como se, de fato, tivesse
voltado ao passado com suas lembranças. Todos tinham morrido. Só ele, o garoto
indesejado, estava naquela propriedade.
Cabia a Patrick a responsabilidade pela continuação do nome dos Ramsey. Os
votos que fizera ao partir pareciam estar ameaçados agora; ainda mais porque Verônica
habitava demais seus pensamentos e seu coração. Pela primeira vez em todos aqueles
anos sozinho pelo mundo, Patrick encontrava-se, embora contra sua vontade, preso pelas
garras do amor. E, bem no íntimo, sempre achara que aquele seu juramento de jamais
amar ninguém nunca seria quebrado. Ledo engano...
Ao contrário do que imaginara a princípio, Verônica pudera andar à vontade por
Marchingham Place nos últimos dias. Nem mesmo o mal-estar, todas as manhãs, a
afetava.
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Sombras da Paixão – Paula Marshall CH n. 185

Realizava com perfeição as tarefas domésticas que lhe eram destinadas, não se
importando mais se estava relegada à posição de simples criada pronta para qualquer
serviço.
Se era intenção de Serena fazer com que Verônica sofresse, não estava
conseguindo seu intento. Na verdade, ela se sentia felicíssima por não ter mais de cuidar
de Marianne e de seus ataques de pedantismo.
Além do mais, o encargo que lhe era imposto na biblioteca, longe de cansá-la, era-
lhe por demais agradável, já que adorava livros.
Quanto a ensinar o pequeno Charles, adorava crianças, e o menino era esperto e
carinhoso, tornando seus afazeres como professora muito mais fáceis e eficientes.
Verônica nunca pensara com mais cuidado sobre os dois filhos de Charles e Serena.
Agora, porém, que estava grávida, via-os de modo diferente. Além do mais, era
muitíssimo mais agradável estar com o pequeno Charles do que com as fúteis senhoras
que partilhavam a sala de estar com Serena.
Como era de se esperar, quando sir Charles retornou, ralhou um pouco com a
esposa, mas não foi muito além disso. Fez com que Verônica voltasse a comer à mesa
com os demais e deixou o resto como estava, para não se indispor com Serena.
Certa manhã, ele foi até a biblioteca e mandou Belton sair, pedindo-lhe que fizesse
um serviço qualquer, para poder estar a sós com Verônica.
Junto à grande janela colorida que dava para os jardins, Charles tomou a mão
dela, parecendo um tanto preocupado.
— Não me agrada sua nova posição nesta casa, querida. Acho que sabe disso.
— Sei, sim, Charles, e compreendo tudo. — Verônica entendia que, mesmo não
gostando do que Serena fazia, Charles precisava manter seu casamento, pelo menos nas
aparências.
— Mas não vai demorar muito, não é, meu bem? Sei que partirá para Alnwick, em
breve. Tem certeza de que quer ir?
— Absoluta.
— Tentei fazer com que Serena a deixasse partir antes de terminar seu período de
obrigações aqui, mas... você sabe como minha mulher é...
— Sim, sei. Mas não importa, Charles.
Ele olhou-a por longos momentos, sua mente divagando, voltando ao passado. Até
que disse, amargurado:
— Talgarth foi um tolo, minha querida. E eu fui outro. No entanto, certos erros não
poderão jamais ser consertados...
Verônica sabia que Charles não se referia apenas ao que sir Harry Talgarth fizera a
ela no passado, mas preferiu calar-se. Assentiu, reconhecendo que Charles, afinal, era
um homem honrado.
— Você é uma moça corajosa, Verônica. Prometa-me uma coisa, sim? Que, se
precisar de ajuda, de qualquer natureza, virá me procurar. Serena jamais saberá, esteja
certa. Ela nunca entenderia.
— Prometo, sim, e agradeço, Charles. Mas, uma vez em Alnwick, estarei bem.
Mabbs tem sua herança, e minha pensão, embora pequena, vai se somar a ela.
— Ora, sei que não recebe mais do que uma miséria! Entretanto, Mabbs é uma
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boa senhora, e tomará conta de você. — Charles soltou-a, mas continuou próximo, para
dizer: — Que grande erro, meu Deus! E não há nada que se possa fazer a respeito!
Procure não se importar com o que Serena diz ou faz, sim? Farei o que estiver a meu
alcance para mantê-la sob controle, prometo.
Charles tornou a tomar-lhe a mão, beijou-a e depois encarou Verônica como se
quisesse expressar algo mais, um vago pensamento de que poderia ter sido bom se
tivessem ficado juntos no passado, talvez. Era-lhe fácil constatar que, em sua juventude,
não teria proposto casamento a Verônica, e nem ela o teria aceitado.
— Devo ir, querida. Preciso trabalhar. O trabalho ajuda bastante, não é, Verônica?
— E saiu da biblioteca, deixando Verônica com inúmeras conjecturas.
Charles fora um amigo que, de repente, poderia ter sido algo mais. Jamais sentira-
se atraída por ele, mas tinha certeza agora de que Charles sentia algo mais forte em
relação a ela. Mas era um cavalheiro, e não diria nem faria nada que a ferisse.
Porém, estivera ali para oferecer-lhe ajuda, caso seus planos futuros com Mabbs
não dessem certo.
Dias depois, numa manhã ensolarada, Verônica ensinava o pequeno Charles a ler
quando Serena entrou de repente no cômodo adaptado para servir de sala de aulas.
Estava magnífica, tanto na aparência quanto nas roupas.
O menino olhou para a mãe e virou o rosto para o outro lado. Verônica, que o
segurava ao colo, colocou-o ao chão, ordenando em voz suave:
— Diga "olá" à mamãe.
Mas o garoto encolheu-se nas saias de Verônica, recusando-se. Serena, então,
aproximou-se, altiva como sempre, dizendo com voz glacial:
— Pelo menos ensine-o a ser cordial com sua mãe! Suponho que deve achar muito
interessante fazê-lo evitar-me. Não fosse pelo fato de saber que irá embora daqui logo, eu
a deixaria na cozinha e contrataria alguém mais experiente para dar aulas a meu filho e
educá-lo de maneira apropriada.
Serena tentou arrancar o menino aos braços de Verônica, mas Charles resistiu,
protestando aos gritos:
— Não! Não quero você! Quero Verônica!
Serena ergueu os olhos faiscantes em direção a Verônica. Mas encontrou nela
uma força interior que não a deixou seguir adiante em sua intimidação. Soltou o menino,
pelo qual jamais tivera o menor interesse antes, e voltou à porta, à qual se deteve para
encarar Verônica mais uma vez.
Viu que Charles voltara para o colo dela e que a abraçava com afeto. Algo dentro
dela a fez estremecer. Era como se aquela imagem fosse, de alguma forma, simbólica.
Como se o pequeno estivesse a lhe mostrar algo que já deveria ter percebido, mas que se
recusava a ver.
Um sentimento mais forte do que ela a fez pronunciar, cheia de rancor:
— Vejo que tiraria de mim tudo o que pudesse. — E, dando-lhe as costas, Serena
se foi.
Verônica, mesmo pobre, rejeitada, tendo sempre de viver de favores, abraçou a
criança e sentiu pena da mulher que acabara de sair dali. Serena parecia ter tudo: um
bom nome, dinheiro, posição social, um excelente marido, filhos saudáveis, beleza, mas
que, na realidade, não tinha absolutamente nada. A ela fora apenas destinada a amargura
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de odiar tanto uma parente menos afortunada.


Verônica se deu conta de que, mesmo em relação a Serena, quanto mais cedo
partisse de Marchingham Place, melhor seria.
Era tolice de Serena mantê-la ali, sem dúvida, mas entendia seus motivos. Só o
que lhe restava era a posição de dona da casa e, nela, o poder de humilhar e de ferir seus
subordinados.
Verônica continuou com a lição do menino, depois almoçou ali mesmo com ele,
lembrando-se de fatos passados que a tinham levado àquele tipo de existência.
Mais tarde, quando o garoto foi colocado para dormir pela ama-seca, Verônica
refugiou-se em seu pequeno e modesto quarto, deixando o serviço da biblioteca para
depois.
Estava determinada a forçar a memória e tentar entender o que, na realidade,
acontecera naquele terrível verão, dez anos atrás.
Verônica era a mais velha de duas irmãs, e também a mais bonita, e tinha
dezenove anos quando tudo acontecera. Era uma moça esperta e de uma inteligência
vivaz, que agradava e entretinha todos a seu redor.
Sua irmã Mary era mais recatada e mais encantadora. Havia um espírito rebelde
em Verônica que a tornava mais vivaz, mais alegre.
Esperava-se que Mary fosse a primeira a se casar e, quando o jovem sir Harry
Talgarth apareceu na cidade, aproximando-se das duas garotas, logo se pensou que seu
interesse estivesse na jovem. Entretanto, foi Verônica quem chamou-lhe a atenção.
A prima de ambas, Serena, casada havia pouco tempo, apresentara ambas à
sociedade londrina, já que a mãe delas mostrara-se mais um estorvo do que uma ajuda
em colocá-las como moças casadouras.
A Sra. Trensome era como Mary: bonita, mas muito tola, muito ingênua. Quanto a
Verônica, parecia-se mais com seu avô em força de espírito.
O general não se importava em nada com as netas, visto que eram fruto do
casamento que seu filho fizera, contra sua vontade, com uma jovem sem posses.
O fato de Verônica ter herdado certas qualidades intelectuais do avo, porém, não a
tornava mais querida dele; muito ao contrário. Se houvesse uma neta que Alastair
Trensome pudesse vir a preferir, seria Mary. Naquele verão, o primeiro que passava em
sociedade, Verônica fez muito sucesso. E o ponto máximo foi quando Harry lhe propôs
casamento.
A princípio, ela imaginara, como todos, que ele estivesse interessado em Mary.
Mas Verônica o fizera rir, saíra em cavalgadas alegres ao lado dele, e, mesmo usando
suas roupas gastas, seduziu seus sentidos. Mais tarde, Verônica chegara a pensar que
fora sua extrema alegria de viver que acabara atraindo a ira dos deuses sobre sua
pessoa, por sua presunção. Mas, naquela época, não se preocupava com o futuro,
apenas aproveitava seu presente e desfrutava o que lhe trazia.
Para Harry Talgarth, aquela proposta de matrimônio era o melhor investimento que
poderia fazer. Sem dinheiro, mas recebendo uma mesada polpuda de seu avô materno, o
velho marquês de Minard, e à espera do falecimento deste, Harry almejava apenas a
fortuna dele, nada mais.
O marquês aprovou a escolha do neto por Verônica, o que a deixou ainda mais
feliz. Naqueles tempos, Verônica tinha certeza de que amava Harry e de que seu amor
era correspondido na mesma intensidade.
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Ele era tão bem-apessoado, alto e esperto! E, se não era muito inteligente, pelo
menos, também não era estúpido. "Verônica tem cérebro por vocês dois", chegara a dizer
o marquês, demonstrando sua aprovação pela escolhida do neto.
Harry não sabia ao certo se tal afirmação era de seu agrado, já que, algumas
vezes, o fato de Verônica ser tão inteligente e letrada o incomodara bastante. Não achava
que uma moça devesse ter o intelecto tão erudito. Para ele, uma esposa devia ser
submissa ao marido, e não ser páreo para sua esperteza. Verônica tinha opiniões demais
às vezes. Imaginava que o casamento e um punhado de filhos pudessem amenizar tal
problema, entretanto.
Quanto à parte financeira, se Verônica era, por natureza, econômica, Harry era um
esbanjador, para quem a mesada fornecida pelo avô nunca era suficiente, fazendo
dívidas aqui e ali. Seria herdeiro de uma fortuna em breve, e isso o confortava quando se
via em palpos de aranha para pagar os credores.
O casamento ficou acertado para logo depois do verão, e, como os Trensome eram
paupérrimos, Charles e Serena ofereceram sua mansão em Marchingham Place para que
lá se realizasse a cerimônia.
— E o mínimo que podemos fazer — explicara Serena, maravilhada com a
possibilidade de ligar sua família ao nome aristocrático do marquês de Minard.
Sabia da riqueza que ele possuía e que seria de Harry e Verônica assim que o bom
homem partisse desta para a melhor.
Nada deveria ser poupado na festa de Verônica. Tudo devia ser do melhor
possível.
As coisas, porém, não continuaram caminhando de modo tão suave, e Verônica,
mesmo percebendo que havia algo de errado, não se deu conta, na época, do que
poderia ser. Estava contente, e certas frases que ouvia de relance preferia deixar de lado;
ignorar, e pronto. Era noiva, Harry lhe dera o maior diamante que uma moça já recebera
em Londres e vinha a Marchingham todos os dias para vê-la.
Naquela tarde, estavam os dois sozinhos, aproveitando do relaxamento nas regras
de etiqueta entre rapazes e moças, uma vez que estavam noivos e iriam se casar em
breve. Tinham começado a trocar beijos e abraços cada vez mais ardentes. Verônica
ainda se lembrava do local exato onde se encontravam, sob algumas árvores do jardim,
junto ao lago.
Harry tornava-se aos poucos mais e mais ousado, exigente, às vezes até grosseiro
quando ela não o deixava avançar demais em seus carinhos. Apesar de seu ar so-
fisticado, Verônica era ainda muito inocente, e Harry adquiriu muita vivência amorosa com
mulheres de virtude duvidosa. E, de repente, a insistência dele tornou-se cruel. Verônica
ainda podia lembrar: afastara-o, assustada e surpresa, não querendo consumar o ato que
Harry queria forçá-la a praticar ali mesmo, na grama.
Harry a deixou, a contragosto. Assim não fosse, teria sido um estupro, já que
chegou a machucar-lhe os braços e o colo, tamanha fora sua violência. Também os lábios
de Verônica estavam sangrando devido aos beijos famintos e vorazes que lhe deu.
Aborrecido, Harry se afastou, cansado de tanto insistir. Jamais fora recusado
antes, nem com tanta veemência. Então, sentiu algo estranho em relação a Verônica; era
como se detestasse tudo nela, em especial sua castidade.
— Está bem, mas vai ser muito diferente quando nos casarmos, ouviu? Você fará o
que eu quiser sem contestar. Conterá essa sua língua, também. Acho-a um pouco livre
demais.
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Verônica ficou estática diante daquilo. Mal pôde acreditar. Até aquele instante, vira
apenas o lado simpático de Harry, e não pôde evitar a resposta:
— Acho que não fui livre demais há pouco, não é?
— Exato. E é disso que estou reclamando. Você é um bastante espevitada, e acho
que precisa de rédeas curtas. — Harry ergueu-se, e, abotoando a camisa, despediu-se,
dizendo não ter mais o que fazer ali.
E se foi, deixando-a desiludida e aturdida.
Verônica conheceu, ali, uma faceta dele que nunca imaginara poder existir. Estava,
no entanto, em dúvida, por causa de sua inexperiência. Perguntava-se se deveria tê-lo
deixado agir, uma vez que estariam casados em breve. Por outro lado, se apavorou
diante do que ouvira do noivo. Já não tinha a mesma impressão sobre ele, e isso acabaria
por provocar o rompimento de seu compromisso.
No entanto, os preparativos para o enlace prosseguiam, pois ninguém sabia sobre
o que houvera entre eles. Harry voltara a se comportar como um cavalheiro, de
acusações mútuas sobre quem deveria ser o mais culpado pela infelicidade que estavam
condenados a viver. Aos poucos, a necessidade financeira e o desgosto acabaram por
matar a Sra. Trensome. Ela, também, sempre culpara Verônica por tudo de mal que acon-
tecera à família.
Órfã, sozinha e sem um tostão, Verônica tornou-se dependente dos favores
alheios. Em especial dos de Serena e de sir Charles. Passou a trabalhar como acom-
panhante de moças, como preceptora e dama de companhia com várias famílias amigas
dos Marchingham. Sua única alegria, daí em diante, foi o fato de não ter se casado com
Harry. Que vida poderia ter tido com um homem como ele? Seria rica, pois Harry não teria
sido deserdado, já que seu avô a adorava, mas sua intimidade se transformaria num
inferno, tinha certeza. E os anos que se seguiram foram, para Verônica, da mais absoluta
solidão. Até conhecer Patrick...
Pensando nele, agora, sentia uma vontade louca de revê-lo, de tocá-lo, de estar
em seus braços. Se o tivesse encontrado dez anos antes... Mas ele estava na Espanha,
na ocasião.
A única lição que lhe ficara do passado, da desilusão com Harry, fora a de sempre
saber aceitar e suportar os fardos impostos. Como agora: tivera momentos maravilhosos
com Patrick, seu grande amor, mas eles tinham acabado. Era preciso aceitar a realidade
e saber que, afinal, devia sentir-se graça à sorte por ter conhecido o esplendor de viver
uma paixão avassaladora, embora tivesse terminado tão cedo...

CAPÍTULO XV

Patrick estava a caminho de sua propriedade em Frenborough, que ficava a al-


gumas milhas de Marchingham Place. Hanson, seu criado, meneou a cabeça assim que
recebeu suas ordens, comentando para si mesmo:
— Ele pensa ainda estar na Espanha. Não consegue ficar por muito tempo num
mesmo lugar.
A razão, no entanto, para mais esta viagem, era outra; Patrick preparava-se para
estar perto do local onde Verônica se encontrava. Pretendia propor-lhe casamento. Sabia
que, assim, estaria quebrando um antigo juramento seu, mas precisava colocar um ponto
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final naquela situação.


Sentia-se assombrado pela imagem de Verônica, por seu sorriso, sua inteligência.
Ela estava o tempo todo em sua mente.
Era como se a vida estivesse se vingando da maneira como Patrick encarara as
mulheres até então, sempre sem maiores compromissos, sem querer se prender, se
apaixonar. No entanto, seu peito explodia num sentimento que bloqueara durante anos e
que agora brotava com toda a força.
Esteve em casa de sua tia Hetta e contou-lhe sobre suas intenções, que afirmou:
— É claro que receberei Verônica nesta casa. Isso, se ela quiser vir.
Patrick sentiu-se mais aliviado. Estava certo de que Verônica aceitaria o convite da
tia para hospedar-se em sua mansão antes do casamento. Sua dúvida estava no fato de
ela aceitar seu pedido. Podia não ter passado de uma simples diversão para Verônica...
Na manhã seguinte, enquanto se preparava para dirigir-se a Marchingham Place,
Patrick sentia um frio estranho percorrer-lhe a espinha de vez em quando. Estava tenso e
ansioso demais, experimentando sensações que jamais o haviam atingido antes.
Preferiu ele mesmo tomar as rédeas de seu coche, embora levasse Samson, seu
cocheiro, ao lado.
Assim que chegaram, os criados de Marchingham acorreram para dar-lhes as
boas-vindas. Charles apareceu logo na varanda, sorrindo e estendendo-lhe a mão direita.
— Patrick Ramsey! O que o traz aqui? Parece que chegou em boa hora, já que
Serena levou seu grupo de convidados enfadonhos para um passeio pela propriedade.
Vamos, entre!
— Verônica foi com eles? Preciso falar com ela. Charles preferiu não revelar que,
nos últimos dias, Verônica não mais acompanhava os hóspedes porque não lhe era
permitido, passando suas manhãs a ajudar Belton na biblioteca. Na última vez em que a
vira, Verônica estava no topo de uma escada, com vim avental empoeirado ao redor da
cintura e um espanador nas mãos.
— Vou lhe dizer o que faremos, Ramsey: vá até a sala de música. Mandarei avisar
Verônica de que está aqui, e ela irá encontrá-lo lá.
Charles tinha uma vaga ideia dos motivos que tinham trazido Patrick de volta a
Marchingham, e dava graças a Deus por Serena não estar presente.
Dirigiu-se à biblioteca, animado, assobiando uma canção antiga, imaginando que,
se tudo corresse bem, ninguém mais se referiria à prima como "a pobre Verônica", pois
um futuro maravilhoso estaria a sua espera.
Verônica, naquele exato momento, não se sentia nem rica nem pobre, mas
enjoada. Suas náuseas matinais ... não estavam tão fortes quanto já estiveram, mas
ainda persistiam, embora seu estado de espírito parecesse muito bem. Sentia-se, na
verdade, revitalizada, talvez, até, devido à gravidez.
No entanto, ficar no topo de uma escada, respirando o pó que se acumulara sobre
os livros velhos, provocara-lhe uma certa vertigem, e Belton, atento a seu menor
movimento, apressara-se em socorrê-la e ajudá-la a descer. Trouxe-lhe, então, um copo
d'água, e Verônica a estava bebendo quando sir Charles entrou. Bastou um olhar para
que ele confirmasse a dúvida que já tinha fazia alguns dias. Tanto melhor que Patrick
tivesse vindo para vê-la, pensou.
— Verônica, querida, tire esse avental horrível. Isso pode ser útil, mas não faz jus a
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sua beleza. Ramsey está aqui, acabou de chegar, e deseja falar-lhe. Pareceu-me urgente,
devo dizer. Ele a espera na sala de música.
Verônica sentiu o coração bater descompassado. Não conseguia pronunciar uma
só palavra. Apenas ouvia Charles dando ordens a Belton:
— Arranje outra pessoa para ajudá-lo. Este não é o tipo de trabalho que a Srta.
Trensome deva fazer.
— Mas lady Marchingham disse que...
— Esqueça o que Lady Marchingham disse! Sou eu quem paga seu salário, e deve
agir como ordeno! Aliás, não sei o que anda acontecendo a minha esposa nos últimos
dias. Santo Deus! Mandar Verônica se meter com todo esse pó!
E, voltando-se, acrescentou:
— O que está esperando, minha cara? Um homem a aguarda. Vá depressa antes
que Ramsey mude de ideia e vá embora!
A caminho, muitas indagações ocorriam a Verônica, em especial o motivo da visita
inesperada de Patrick. O enjôo teimava em atormentá-la, fazendo-a parar de vez em
quando pelos corredores para controlar-se.
Quando chegou à sala de música, que estava aberta, viu-o logo, parado diante das
portas duplas que davam para o jardim.
Patrick voltou-se assim que a sentiu chegar. O rosto de Verônica ficou muito
vermelho quando o viu tão impecavelmente trajado. Ela vestia-se com a mesma
simplicidade de sempre. Afinal, não havia por que arrumar-se melhor se ia passar a
manhã limpando livros velhos...
Patrick, porém, não notou nada disso. Tinha olhos apenas para sua Verônica, mais
pálida do que de costume, e ali, a sua frente, como desejara vê-la desde que a deixara.
Estavam ambos muito ansiosos, com a pulsação disparada, mas a máscara de
austeridade que o mundo e a vida os tinham forçado a usar permanecia, ocultando o que
lhes ia no íntimo.
— Srta. Trensome... — ele cumprimentou, com uma leve inclinação de cabeça.
— Sir Patrick... — respondeu Verônica por sua vez, mostrando-se calma.
— Espero que esteja bem — foi tudo que Patrick conseguiu dizer, embora quisesse
dar alguns passos à frente e tomá-la em seus braços.
Verônica sentiu vontade de responder: "Considerando-se o fato de eu estar grávida
e com náuseas, estou ótima".
— Tudo bem, sir, obrigada. E milorde? Achei que estivesse em Londres...
— Estive, sim, de fato. Mas agora estou em minha casa, em Frenborough. Bem...
gostaria que pudéssemos fazer uma breve caminhada pelos jardins. Se não estiver muito
ocupada, claro.
— Verônica! — corrigiu, sem suportar mais ouvi-lo chamá-la daquela forma.
— Está bem... Verônica.
Patrick engoliu em seco, imaginando o que o poderia estar detendo, já que, no
trajeto todo, viera pensando no momento em que a veria, em que poderia abraçá-la e
pedir-lhe, emocionado, que o desposasse.
Ofereceu-lhe o braço, que Verônica aceitou, com toda a educação e propriedade

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possíveis, e ambos encaminharam-se para fora da residência.


O enjôo piorou um pouco, fazendo com que Verônica se sentisse ainda pior diante
de Patrick, não deixando de notar, um minuto sequer, o quanto ele estava mais bonito,
mais elegante do que ela.
E, de repente, foi como se o mundo se apagasse a seu redor. Caiu de joelhos,
sobre a grama, sem conseguir controlar mais a sensação angustiante que a dominava.
Patrick acudiu-a depressa, sabendo o que fazer para auxiliá-la com os vômitos, já
que muitas vezes estivera ao lado de soldados bêbados que eram vítimas de in-
controláveis espasmos estomacais.
E ele soube de imediato o que havia de errado com ela. Já vira muitas esposas de
colegas ficarem daquele jeito devido à gravidez.
Quando o mal-estar passou, Verônica não tinha sequer forças para se levantar.
Patrick ergueu-a nos braços, então, e levou-a até o mesmo banco de pedra onde, um mês
antes, haviam conversado pela primeira vez. Tirou um lenço do bolso e passou-o com
delicadeza pelas faces dela, onde gotículas de suor frio apareciam. Verônica sentia-se
muito envergonhada, e não erguia a cabeça para vê-lo.
— Está grávida, não? — Patrick murmurou, buscando ver-lhe os olhos. — É meu?
Ia me contar antes de seu mal-estar?
Patrick não queria dizer nada daquilo. Seu desejo era apertá-la contra o peito e
revelar-lhe o quanto estava feliz e orgulhoso.
— Não precisa se importar com meu estado, sir. Isto é apenas o fruto de algumas
noites de loucura.
— Está esperando um filho meu... — ele repetiu, como se ainda não acreditasse. E
acrescentou, num tom que nada tinha de carinhoso: — Precisa se casar comigo
imediatamente.
— Pensa mesmo assim? — Verônica estava sentindo sua conhecida veia satírica
aflorar. — Para quê? Por que deve se preocupar com uma mulher e uma criança
inconvenientes? Afinal, teve inúmeras aventuras antes, e jamais soube se, como fruto de
alguma delas, restou um bebê.
Patrick podia ter tido vontade de ajoelhar-se diante dela e, com extremo
romantismo, propor-lhe casamento, mas aquilo o aturdiu.
Encarou-a, sentindo-se como na primeira noite em que se tinham amado. A língua
dela, afiada como sempre, parecia agora proferir palavra cruéis demais para o momento.
— Já que gosta tanto de falar com franqueza, Srta. Verônica, tenho mesmo de
escolher uma esposa, e ela pode ser a senhorita ou qualquer outra. Provou que pode
gerar antes mesmo de nos casarmos, então, não preciso ter receio de me ligar a uma
moça infértil. Sei que a criança que carrega é minha, e muitas pessoas vivem me dizendo
que preciso me casar para garantir um herdeiro. Verônica empalideceu um pouco, e ele
notou, mas não fez caso.
— A senhorita vem de uma boa família, seu avô foi um herói nas guerras contra a
América, e sua mãe procede de uma família nobre, embora muito empobrecida. Além do
mais, não é feia, Srta. Verônica, e sabe se comportar muitíssimo bem em público,
embora, em particular, seus modos sejam... digamos... deploráveis. E eu poderia fazer
muito pior, casando-me com Marianne ou com alguém parecida com Serena. Ah! E há
ainda mais uma coisa: estou farto de ver beldades sendo expostas a minha frente para
que eu escolha uma delas e me case. A senhorita me parece ser inteligente, apesar do
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temperamento péssimo. Sendo assim, vai se casar comigo e salvar-se, bem como ao pe-
queno ser que traz consigo, da penúria e da vergonha? Tal pedido era o completo oposto
do que Patrick imaginara fazer. Não havia nele o menor traço de amor, muito embora a
única vontade dele ao dirigir-se para Marchingham Place fora abraçar Verônica e beijá-la
até quase sufocá-la de paixão.
De repente, Verônica caiu em lágrimas. Aquilo era a última coisa que Patrick
poderia esperar. Não queria magoá-la ou fazê-la pensar que falara por absoluta falta de
afeição.
Olhou para longe, para a paisagem maravilhosa que se descortinava diante deles,
e se acalmou.
— Chorar faz bem — comentou e, se Verônica não estivesse tão perturbada,
poderia ter percebido a ternura em sua voz. — O que foi que eu disse que provocou seu
pranto?
— Nada... e tudo. E, visto que estamos sendo francos, e eu lhe agradeço por isso,
minhas lágrimas se devem ao fato de que este é o segundo pedido de casamento que
recebo na vida. O primeiro foi terno e romântico, como toda moça sonha, mas o que se
seguiu a ele foi uma sucessão de desgostos. E depois, nada mais mereço além disso, já
que quase vomitei em suas roupas... e fui um pouco indelicada.
— Isso significa que aceita? Porque, se assim for, sua resposta é tão incomum
quanto meu pedido.
Verônica não pôde deixar de rir diante daquela observação, em especial porque
Patrick estava tão sério ao fazê-la.
— Talvez devêssemos começar de novo, milorde. Você poderia ficar de joelhos e
dizer algumas bobagens açucaradas, e me lembraria do que os livros de etiqueta
recomendam a moças virtuosas. Mesmo eu não sendo mais moça, nem virtuosa... O que
acha?
— Quero uma definição de sua parte: aceita ou não casar-se comigo?
— Não me decidi ainda.
Patrick encarou-a, perplexo. Qualquer mulher grávida aceitaria de imediato uma
proposta vinda de um homem tão bem posto. Pelo jeito, aquele não era o caso com
Verônica.
— Não vai ter muito tempo para ponderar, minha cara. A criança está crescendo
em seu ventre... — E tomou-lhe as mãos, passando a beijar-lhe as palmas, com carinho.
— Não, não — rebateu ela, num sorriso muito doce. — Já fiz meus planos. Vou
partir para a Nortumbria, onde passarei a viver em companhia de minha antiga
governanta. Terei meu filho lá, onde ninguém me conhece. Serei uma viúva solitária a
quem restou a semente do marido falecido.
— Raciocine bem, Verônica. Não condene nosso bebê a uma existência que ele
poderia não querer. Não o prive do que poderia possuir: um pai, um título e muita riqueza.
Apesar de como possa estar se sentindo agora, deve considerar as prioridades desse
pequeno.
Verônica tentava manter o bom humor, mas havia um nó se formando em sua
garganta de novo.
— Vamos lá, Verônica, use seu conhecido bom senso. Não sou tão feio assim, e
sou um bom sujeito. — Ele se sentia aliviado por não ter de confessar o amor que sentia,
o que, de certa forma, fazia a quebra de seu juramento menos trágica.
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— Tem certeza de que quer, de fato, que eu me case com você? — Verônica
buscava se manter distante, porém.
Patrick estaria lhe propondo casamento se não fosse pelo filho que esperava e de
que necessitava tanto? Afinal, não era a ela que Patrick queria, mas ao bebe dentro dela.
Mais uma vez, as lágrimas subiram-lhe aos olhos, ameaçando cair.
Contudo, sua racionalidade prevaleceu. Estava sendo tola. A vida com Mabbs
poderia ter parecido agradável quando nada mais tinha a esperar, mas agora via-se
diante do homem que amava e, mesmo não tendo esse sentimento correspondido, ele lhe
oferecia seu nome, o que tornaria o filho legítimo.
Na primeira vez em que fora pedida em casamento, deixara-se levar pelo coração
e sofrera muito por isso, depois. Agora deixaria que a inteligência a guiasse para poder
usufruir o futuro que, de outra forma, jamais poderia ter. Esperar que pudesse ser amada
já era pedir demais do destino. Portanto, aceitaria o que lhe estava sendo oferecido.
— Já que me fez uma oferta tão maravilhosa, sir Patrick, acho que não tenho
alternativa a não ser aceitar.
Patrick estivera aguardando, um tanto nauseado também, achando que poderia
estar perdendo Verônica para sempre, se ela não o aceitasse por marido. E naquele
momento, ouvindo-a dizer "sim", seu peito se iluminava.
.
Apesar de Verônica não o amar, imaginava, havia a criança, que tinham gerado
juntos e que seria muito amada quando viesse à luz. Passou o braço esquerdo pelos
ombros de Verônica, mais aliviado, e disse, antes de beijá-la de leve:
— Estou certo de que não vai se arrepender do que acaba de fazer, Verônica.

CAPITULO XVI

Assim que lhe deram as boas novas, sir Charles abriu um largo sorriso e exclamou:
— É o melhor que eu poderia ouvir!
Verônica já não parecia tão abatida. O fato de saber que Patrick seria seu acabara
com toda a indisposição que a castigava antes.
Charles abraçou-a com carinho, depois aproximou-se de Patrick para dar-lhe um
vigoroso aperto de mão.
— Você é um sujeito de sorte, Ramsey. Verônica devia ter se casado há muito
tempo. Mas acho que, por sorte também, isso não aconteceu naquela época. — Charles
os fitava com um certo jeito paternal, como se fosse muito mais velho, como se não
tivesse quase a mesma idade de Patrick. De repente, indagou, sem maiores preâmbulos:
— Veio em seu próprio coche, não?
Mesmo sem entender a pergunta, Patrick assentiu.
— Ótimo. Acho que lady Marchingham precisa ser informada sobre a novidade.
Como sabe, Serena está fora, e seria bom se Verônica não fosse a portadora da notícia,
se é que entende... É melhor que eu mesmo lhe conte. Enquanto isso, pedirei ao
cozinheiro que prepare um pouco de comida e lhes darei uma garrafa de champanhe para
que comemorem. E você vai levar nossa querida Verônica para um piquenique, Ramsey.
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E, sem esperar por mais nada, Charles tocou a sineta e chamou o mordomo, que
apareceu com suspeita presteza para receber as ordens, bem como para buscar o
champanhe na adega.
Da janela de seu escritório, minutos depois, Charles via o casal partindo. Respirou
fundo, como que aliviado, passou o lenço pelo rosto, recostou-se em sua cadeira estofada
e tirou um cochilo até o momento em que o mordomo veio informá-lo de que lady
Marchingham retornava e que estava a caminho para falar-lhe, como ele mesmo pedira.
Serena apareceu pouco depois, parecendo preocupada ou aborrecida por aquela
inesperada conversa. E ficou ainda mais intrigada quando o marido pediu-lho para que se
sentasse.
— Tenho muitas coisas a fazer, Charles. Há um jantar a ser organizado, como bem
sabe. O que pode ser tão urgente que exija minha presença com tanta presteza"
Charles era um homem bom, mas tinha certo prazer em aborrecer a esposa,
reconhecendo lhe a mesquinhez. Achava que Serena merecia ser provocada ó vez em
quando.
— O fato, minha querida, é que Verônica me informou de que pretende se casar. E
tenho certeza de que você adoraria partilhar da alegria dela.
Serena levantou-se de imediato.
— E esse é o motivo pelo qual pediu que eu viesse tão rápido! — quase gritou. —
Imagino que aquele idiota do Belton por fim tenha conseguido coragem para se declarar.
Ele tem olhado com a paixão de um cão de guarda para sua musa tão mais velha, desde
que entrou aqui pela primeira vez.
— Queira sentar-se outra vez, minha cara. Creio que seria aconselhável. Não foi
Belton quem propôs casamento a Verônica. Longe disso. Ela conseguiu um homem muito
melhor do que ele.
— Shaw ou Brough? Engraçado, nenhum dos dois parecia interessado nela...
Ainda não entendo por que se deu ao trabalho de me chamar aqui para dar-me tal nova,
meu marido.
— Serena, torno a dizer: a pobre Verônica conseguiu alguém ainda melhor.
Deseje-lhe sorte, pois ela está para se tornar lady Ramsey.
Charles ficou ali, parado, sentindo um prazer enorme em ver cada gota de sangue
desaparecer do rosto de sua esposa.
— Não... — Serena sussurrou, os olhos muito abertos. — Não acredito no que está
me dizendo. Deve estar brincando. Ele jamais a notou! Por que está me falando isso,
afinal, Charles?
— Porque é a verdade, Serena. Patrick esteve aqui esta tarde e fez-lhe a proposta.
E Verônica aceitou. Acredito que ele a tenha levado para dar um passeio até Knapworth.
Parece-me que foi lá que o interesse de Patrick em Verônica nasceu. Pelo menos, foi isso
o que depreendi de suas palavras.
Knapworth! Aquele nome rebatia na mente de Serena como um projétil
ricocheteando. Fora lá que ela deixara Verônica, e isso só fizera chamar a atenção de
Patrick sobre ela! Atirara Verônica nos braços do homem que queria para si!
— Não...
— Sim. — Charles foi até uma mesa de canto e serviu dois cálices de vinho do
Porto. Entregou um deles a Serena e bebericou do seu. — Vamos brindar, lady Mar-
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chingham. A Verônica, que está encaminhada na vida.


Sem alternativa, Serena aceitou a bebida e sorveu-a de um só trago, arrepiando-se
a seguir.
— Não quero que ela saia daqui vestida de noiva.
— Mas é claro que não, minha cara! — Charles entendia muito bem o que ia na
alma da esposa. — Vamos deixar que Ramsey decida o que fazer. Talvez o velho general
acabe soltando fogos, não acha?
Serena pareceu pensar um pouco, até que perguntou:
— Sir Patrick ainda não sabe sobre o que aconteceu no passado, com Talgarth,
suponho.
— Não. E você não vai contar. Agora já não importa mais. Passaram-se vão dez
anos, e Verônica sofreu o suficiente. Deixe-a ser feliz agora, lady Marchingham, ou o pior
ainda poderá advir.
Tal aviso mais parecia uma ameaça, e fez Serena fitar o marido. Viu algo mais em
suas pupilas, talvez a mesma coisa que pressentira na sala de estudos, quando seu filho
preferira o colo de Verônica. Notava agora que era por Verônica que Charles se
preocupava, que era por ela que se preocupara sempre.
Lembrava-se bem de como ele ficara amargurado quando, naquela época, Talgarth
a traíra com Mary... E ainda pior: Charles deveria ter ajudado no que estava acontecendo
entre Patrick e Verônica!
— Bem, acho que podemos dar boas gargalhadas sobre isso — comentou,
amarga. — Afinal, quem poderia esperar que um homem tão requisitado pelas mulheres,
um partido tão desejado, acabasse atraído por uma governanta sem mais esperanças de
se casar? O rosto de Charles, porém, não mostrava sinais de riso. — Ao contrário, meu
anjo. Ninguém rirá de ninguém. E, como eu disse antes, comporte-se, ou coisas piores
poderão acontecer. Cumprimente sua prima com bons modos quando ela retornar de seu
passeio com o noivo e encoraje seus hóspedes idiotas a fazer o mesmo. E pode ir.
Veremo-nos no jantar.
E, pela primeira vez desde que se conheceram, Serena deixou-o, sem contestar.
Estavam no mesmo lugar em que se haviam amado antes, naquela tarde em que
Verônica fora abandonada pelo grupo de Serena. No entanto, os sentimentos que os
dominavam agora eram diferentes.
Não havia a alegria, a paixão de antes. Aquele devia ser, talvez, seu último
encontro antes do casamento e, ainda assim, não conseguiam agir com naturalidade. A
conversa que tinham tido em Marchingham era a culpada disso.
Comeram e beberam, comentaram sobre coisas triviais, e depois um silêncio
constrangedor os circundou. Até que Patrick a olhou e, puxando-a para si, sussurrou a
seu ouvido:
— Venha, minha querida. De agora em diante poderemos usufruir nossos
momentos juntos da forma que quisermos, pois estaremos protegidos com a capa do
decoro e do respeito.
Tinham conversado sobre o futuro, e Verônica concordara em hospedar-se com
lady Lochinver. Falara pouco sobre o general e sobre sua irmã, dissera apenas que não
via Mary fazia muito tempo.
Patrick imaginou o que as poderia ter separado, mas não chegou a conclusão
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nenhuma, e Verônica não se abriu mais do que isso.


— Acho que terei de convidá-la para o casamento. — Verônica tomou mais um
gole de champanhe. — Pedirei conselhos sobre isso a sua tia e a lady Charlotte.
Como era de se esperar, abraçaram-se e beijaram-se, porém, para Verônica, havia
algo de diferente entre ambos agora. Entregava-se com o mesmo ardor, mas uma mágoa
profunda habitava seu coração.
Sentia os carinhos suaves de Patrick, que a faziam estremecer, e lembrava-se da
brutalidade de seu primeiro noivo. Sentiu lágrimas virem a seus olhos e cerrou-os, para
que elas não escorressem por suas faces.
Patrick, que beijava os seios de Verônica, compreendia, mais uma vez, que já não
poderia viver sem ela. Tinha vontade de dizer-lhe o quanto a amava, mas preferiu apenas
murmurar:
— Cuidado, minha querida. Agora temos uma criança a proteger.
Aquilo só serviu para assegurar mais uma vez a Verônica o quanto ele estava
interessado no filho, e não nela. Mas não importava. Tinha os dois, e aquele seu segundo
encontro no bosque de Knapworth foi como uma comemoração pelo que haviam feito
antes e que lhes deixara uma vida preciosa, que crescia em seu ventre.
Não houve risos de deboche, como Serena insinuara, quando se soube do futuro
casamento de Verônica e Patrick. Surgiu a surpresa, e comentários também, já que
muitas pessoas se lembravam do que acontecera um dia, mas, como Verônica passara a
viver reclusa desde então, os fatos que abalaram seu relacionamento com a irmã tinham
acabado por desaparecer devagar da memória coletiva.
Dez anos depois, Verônica surpreendia a todos mais por estar muito mais bonita
agora do que pelo que ocorrera um dia.
Mary Talgarth tomava seu desjejum, em sua casa velha e pobre, perto de Chelsea,
quando soube das boas novas. Lia sua correspondência, tendo o marido, Harry, logo a
sua frente, que se ocupava do jornal.
Pela primeira vez, não estavam em penúria extrema.
Uma velha tia de Harry falecera, deixando-lhe dinheiro suficiente para pagar
algumas contas, além de haver uma pensão que deveria ser recebida todo mês, para que
Harry não acabasse com ela.
Para ele, era um tormento, mas, para Mary, uma bênção, num casamento de dez
anos no qual nem um instante sequer fora feliz, exceto aquele em que conseguira tirar o
noivo da irmã.
Harry teria apenas aquele parco provento para se manter, já que a rejeição do
marquês de Minard acabara com qualquer oportunidade que pudesse vir a ter. Além do
mais, a maneira como se uniram, o escândalo que sua união com Mary provocara,
haviam-no arruinado por completo, fato que Harry sempre fazia questão de lembrar à
esposa.
Mary soltou um gemido tão estranho que o fez erguer os olhos da leitura para
contemplá-la. Mais uma vez o rosto envelhecido de Mary não o agradou, mas continuou
observando-a mesmo assim, para saber o que se passava.
— Meu Deus! Outra carta de Verônica! O que será que diz? Sempre me
surpreendo por ela manter a raiva contra mim desde que roubei você de seus braços...
Harry jamais lhe contara sobre os outros motivos pelos quais Verônica e ele nunca
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tinham se casado. Voltou a ler, ignorando-a, até escutar outro gemido, agora mais alto.
Tornou a olhá-la, aborrecido, e se voltou ao periódico pela terceira vez. Mais um gemido,
desta vez agudo, o obrigou a deixar de lado o matutino.
— Não vai acreditar, Harry! Bem, acho que jamais acredita ou sequer ouve o que
digo.
— É porque você fala demais, minha cara. E a maior parte do que diz não vale a
pena serem escutada.
— Ora, deixe de ser grosseiro! Vai querer ouvir isto. Verônica vai se casar. Não é
espantoso? Quem poderia querê-la agora?! Um velho que precisa de uma enfermeira,
talvez...
— Verônica deve estar com quase trinta anos — Harry ponderou, tentando
imaginar a agora cunhada. — É de se estranhar que alguém ainda a queria.
— Não vi o nome do noivo ainda, está na outra página.
— Devemos estar agradecidos por Verônica ter encontrado alguém. Pelo menos,
poderemos ter certeza de que ela não será mandada para nós algum dia.
Mas Mary não lhe dava atenção. Seus olhos estavam arregalados, e foi com
esforço que comentou:
— Nisso não posso acreditar! Ela deve estar brincando conosco! Fazendo-nos de
tolos!
— Pare de falar bobagens, Mary. Como Verônica poderia fazer-nos de tolos?
— Porque ela afirma estar noiva de sir Patrick Ramsey! Agora, diga-me: como um
homem como ele, o mais desejado por todas as moças casadoiras de Londres, o mais
rico, quer ter por mulher uma coitada horrorosa como Verônica?!
— Como pode chamá-la de coitada ou de horrorosa se não a vê há dez anos?! O
fato de você estar horrível não significa que sua irmã também esteja.
— Nunca perde uma oportunidade para me espezinhar, não é, meu marido? É
claro que ela deve estar péssima. Uma década se passou! E isso é o que torna esta
notícia incrível. Verônica deve estar zombando de nós, por algum motivo.
— Pare de ser tola, Mary! Por que ela iria fazer tal coisa? Embora essa novidade
seja, de fato, esquisita...
Harry tinha uma sensação estranha no peito. Achava que, tendo se mantido
solteira até então, Verônica ainda deveria estar chorando por sua causa.
— Esquisita, Harry? É tudo o que tem a dizer? Patrick Ramsey é um conquistador
famoso! Todas as mulheres de Londres estão a seus pés, casadas ou não, todas as
moças o querem para marido! E ele escolhe uma sem eira nem beira, seca, feia! O que
Verônica deve estar pretendendo com isso?!
Harry respirou fundo e voltou ao jornal, abrindo-o na seção que anunciava notas
sociais. Então, para atingir ainda mais a esposa, comentou:
— Não é mentira, minha querida. Verônica vai ser, de fato, uma das mulheres mais
ricas do reino. Está publicado aqui. Receio que você tenha escolhido o partido errado,
Mary. Devia ter esperado por Ramsey. Terá de dar parabéns a sua querida irmãzinha,
afinal...
— Você era bastante rico quando nos casamos, pelo que me lembro, Harry. E mal
podia esperar para pôr as mãos nas posses que iria receber.
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Sombras da Paixão – Paula Marshall CH n. 185

— Exato. Eu ia ser dono daquela riqueza imensa. Mas meu avô detestou você e
me deserdou. Portanto, sua irmã é quem vai ter parentes pobres agora. Acha que vai nos
convidar para o enlace? — O tom de ironia de Harry começava a tirar Mary do sério.
— Isto não é uma piada, senhor meu marido! Verônica quer nos ver "antes" do
matrimônio. Está hospedada na casa de lady Lochinver e vai nos escrever de novo com
um convite. Depois se tantos anos sem uma palavra sequer! Pois Verônica pode esperar
sentada, porque não irei!
— Engano seu, meu anjo. Se Verônica vai se tornar milionária, vamos adulá-la,
sim. E, seja o que for que aconteceu um dia, ela ainda é sua irmã, e vamos nos aproveitar
desse fato. Verônica pode vir a ser nossa salvação, ainda.
— Não. Eu não vou fazer isso, Harry. Não me peça para ver minha irmã em triunfo.
Harry levantou-se, foi até o outro lado da mesa e segurou a pulso da esposa com
brutalidade. O desejo de ferir física e moralmente, que Verônica descobrira nele,
intensificara-se ainda mais, e Mary era sua vítima predileta.
— Já devia ter aprendido que, quando mando, exijo obediência, Mary! — disse ele,
por entre os dentes, ameaçador. — Pode haver alguma vantagem para nós na união de
sua irmã. E você vai escrever uma longa e chorosa carta para ela, dizendo o quanta está
feliz por ver que o mal que lhe fez está, por fim, reparado pelo próprio destino. E, é claro,
quererá ir, sim. Até os convidará para virem a nossa casa. Ramsey pode não ser um bom
jogador, e espero poder tirar dele muito dinheiro nas cartas.
Mary começou a chorar.
— Você está me machucando! — E, como o aperto da mão dele se tornasse mais
forte, aquiesceu: — Está bem, está bem! Farei o que quer. Afinal, até poderei rir um
pouco, não é? Como estará a aparência de minha irmã?
— Com certeza, bem melhor que a sua. — Harry largou-a com um repelão,
fazendo-a bater com o pulso na mesa. — Mas isso não seria assim tão difícil, não é
mesmo?
E a encarou com desprezo. Devido a suas constantes agressões, Mary acabara
perdendo o encanto e o viço da garota adorável que fora na juventude.
"Sempre fui sem sorte", Harry pensou, ignorando o fato de que um homem pode ou
não traçar um caminho pior para si mesmo se agir de maneira errada. Mas via uma luz no
fim do túnel. Se Verônica os convidasse, poderiam ser recebidos na sociedade outra vez,
e sua vida poderia melhorar muito...
"Aliás, como Verônica estará, depois de tanto tempo?"

CAPÍTULO XVII

— Estou bem, Patrick? — Verônica perguntou, apresentando-se diante dele.


Com um olhar ressentido, pois imaginava que ela não era mais sua Verônica de
antes, mas uma moça admirada por todos, Patrick assentiu de leve. "Bem" não era a
palavra certa, ponderou, mas sim "radiante", "linda", a mulher em que adivinhava que se
transformaria quando cuidados e dinheiro pudessem lhe ser oferecidos para garantir boas
roupas, boa comida, bons tratos.

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— Sei que não deveria ter aceito um vestido tão lindo, mas você insistiu tanto...
Ora, é tão bom poder usar bons trajes outra vez!
Verônica estava feliz e, ao mesmo tempo, sentindo certa tristeza por poder passar
pouco tempo com seu noivo. Mas os preparativos para um casamento exigiam muito de
ambos, e quase sempre se encontravam distantes. Não fosse pelo fato de Patrick morar
tão perto de sua tia, mal poderiam se ver.
Ainda fitando-a, encantado, Patrick sorriu, fingindo uma felicidade que estava
bloqueada por outros sentimentos. Queria Verônica apenas para si, mas sabia que ela
necessitava estar sempre bela, agora que seria a famosa e requisitada lady Ramsey.
Usava um vestido azul-claro, que evidenciava sua pele clara, e a única peça de
valor que possuía: um colar de pérolas que um dia pertencera a sua mãe. Seus cabelos,
presos com graça no alto da cabeça, pareciam ter adquirido um brilho novo, como toda
ela. Estando no jardim da mansão de lady Lochinver, apreciavam a beleza do rio que
passava nos fundos da propriedade, aguardando seus convidados do dia: o general
Trensome e os Talgarth. Dois coelhos com uma cajadada só, dissera Verônica, sem se
preocupar em ser discreta para com os membros de sua família. Na verdade, não queria
ver nenhum deles, mas lady Lochinver afirmara que era o mais apropriado a fazer, como
parte dos contatos sociais indispensáveis antes de um bom enlace. Afinal, ela precisava
ter algum familiar presente, além dos Marchingham e da distante, mas sempre fiel Mabbs,
que viria para se hospedar em Richmond com outra senhora que também herdara alguma
coisa, tempos atrás. Mabbs ainda não chegara, e era aguardada a qualquer momento.
Lady Lochinver também dissera que seria conveniente para Patrick se ele
conhecesse os parentes de sua futura esposa antes dos esponsais. Hetta quisera
perguntar a Verônica se Patrick fora informado sobre o escândalo de que fora vítima,
mas, pela maneira como ele falava, pareceu-lhe óbvio que ignorava toda a história.
Estava na Espanha, na época, tendo mais o que fazer além de inteirar-se sobre futricas
sociais. Era melhor que não soubesse, concluiu, visto que o que acontecera parecia sem
maior importância.
Verônica tinha consciência de sua beleza recém-descoberta, temperada na medida
certa com sua vivacidade e sagacidade. Conseguira ver o olhar admirado de muitos
rapazes nos últimos dias, e sentia-se feliz, como se estivesse voltando à vida. Era, afinal,
uma mulher bonita, e gostava de ser vista como tal.
Ao aguardava pela chegada de Mary e Harry, a náusea que parecia tê-la
abandonado voltou. Procurou controlá-la, sorrindo para Patrick.
— Você está lindíssima — disse ele, querendo muito falar "eu te amo", mas
incapaz de fazê-lo.
— Devo estar parecida com um coronel, então — brincou. — Coronéis são sempre
admiráveis.
— É mesmo? E o que são os capitães?
— São capitães. Corajosos, valentes, destemidos. Lideram seus subordinados nas
batalhas, brandem suas espadas maravilhosas e dominam cidades.
Como capitão que era, Patrick achou graça, deliciado com o elogio. Poderia tomá-
la nos braços e mostrar-lhe o que de fato sentia, mas preferiu segredar-lhe ao ouvido:
— Feiticeira... Se capitães dominam cidades, eu poderia dominá-la agora mesmo.
— Não, não. Pense em nossos convidados e em como ficariam surpresos em ver-
nos rolando pelo chão, deliciando-nos com a paixão...

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A brincadeira fez Patrick gargalhar. O ruído de carruagens chegando, de portas se


abrindo, de pessoas falando o fez conter-se.
O general foi um choque para Verônica. Não esperava vê-lo tão envelhecido e
alquebrado. Alastair tomou-lhe a mão, mas não fez menção de ir além disso.
— Bem, espero que tudo corra bem desta vez, menina.
— Vou tentar, avô. — Verônica procurou não se magoar com tal observação e,
num impulso, aproximou-se para dar um beijo rápido na face do velhinho.
Uma espécie de tremor percorreu o corpo dele, que o fez retesar-se.
— Você sempre foi uma boa menina. — O general a fitou, imaginando que
cometera um grande erro ao afastá-la de si.
Não pela riqueza de agora, mas por alguma coisa que via em seus olhos, sua
integridade, sua capacidade de suportar a adversidade que a fustigara por tanto tempo.
Verônica fora um bom soldado, Alastair surpreendeu-se concluindo. Uma guerreira
que não batera em retirada diante do inimigo, que reagira bem sob fogo cerrado e que,
por fim, recebia sua merecida recompensa.
O general voltou-se para Patrick.
— E você esteve no septuagésimo terceiro, pelo que soube. Com Lachlan
Macquarie, em Convictland.
— Sim, senhor — Patrick admitiu, como se estivesse dando uma resposta a um
superior imediato.
— Parece-me um rapaz decente. Espero que seja bom para minha neta.
Bem mais tarde, chegaram os Talgarth. Estavam atrasados, pois tinham discutido
antes de sair de casa. Harry ralhara com a esposa por ela estar com aparência pior do
que de costume. Mary se ofendera e defendera-se, dizendo que o dinheiro de que
dispunham não era suficiente para que se arrumasse melhor, que o que conseguira
guardar fora gasto com o médico que viera a sua casa para tratar das crianças que
ficaram doentes.
Naquele instante, no jardim, eles foram recebidos por Hetta, passavam para
cumprimentar Patrick e, em seqüência, Verônica.
Ela sentiu o enjôo voltar, mas esforçou-se por controlá-lo. Não tivera a menor ideia
de como seria quando estivesse diante deles de novo.
Diante da irmã, era quase impossível para Verônica deixar de verificar os estragos
que o tempo e os muitos abortos, além dos dois partos difíceis, causaram a Mary.
Depois, observou Harry e horrorizou-se ao pensar que, um dia, amara aquele
homem recurvado, que perdera quase todos os cabelos e possuía rugas demais no rosto.
Procurou a mão de Patrick, que estava a seu lado, e ele a apertou, tranqüilizando-a. Seu
noivo estava com a mesma idade de Harry, mas que diferença havia entre ambos!
Mas os Talgarth se ocupavam em reparar em Verônica. Portanto, não prestavam
atenção ao físico bem-proporcionado de Patrick, seu semblante vivo, inteligente, sua
postura elegante e firme.
Era difícil dizer qual dos dois, marido ou mulher, ficara mais chocado diante do que
viam. Mary poderia enfiar-se num buraco no chão, se ali houvesse algum. Jamais
esperara encontrar a irmã tão bela. E nunca imaginara que Verônica seria capaz de
conquistar um homem tão impressionante quanto sir Patrick Ramsey. Por alguns
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segundos, Mary achou que iria desmaiar, tamanho o mal-estar que sentia.
Verônica, por sua vez, encheu-se de compaixão ao perceber a admiração, o
embaraço e a dor estampada no semblante de sua irmã e de seu cunhado. Estava, em
especial, magoada pelo que os maus-tratos haviam feito a Mary.
De repente, foi como se todas as humilhações por que passara na casa de Serena
nada significassem, mesmo tendo sido conseqüências do ato impensado de sua irmã.
Mary percebia a compaixão de Verônica, e isso só fez aumentar sua própria
miséria. Não deveria ter vindo, decidiu, angustiada. E, pior do que tudo o mais, Harry
olhava para Verônica como se a quisesse devorar, da mesma forma aberta e
despudorada com que a mirara quando tinham se conhecido outrora.
Comportando-se como mandava a etiqueta, Verônica disse e agiu de acordo com
os costumes da boa sociedade. Patrick, ignorando os fatos tão tristes, foi gentil e
educado, sem se preocupar com os olhares flamejantes que Harry lançava a Verônica,
arrependido por ter se casado com a irmã errada.
Outros hóspedes chegaram ainda, todos convidados também para a cerimônia que
se realizaria em breve.
— Você não está bem, Mary? Parece-me um tanto pálida...
— Se estou bem, Verônica? Encontro-me em meu estado natural: grávida, como
sempre. Você saberá o que é isso quando se casar. Se tivéssemos dinheiro, tudo seria
diferente. Mas não terá de se preocupar com isso, não é? Sabe, a atitude do marquês de
Minard nos arruinou.
"Foi você mesma quem se arrumou, bobinha." Mas Verônica se manteve calada.
Lady Lochinver aproximou-se, para levar Mary consigo, livrando Verônica da
presença angustiada da irmã. Pouco depois, vendo que Harry vinha em sua direção,
Verônica ameaçou afastar-se, mas ele tomou-a pela mão, com suavidade, dizendo, sem
preâmbulos: — Fui um grande tolo, Verônica. E agora vejo isso ainda com maior clareza.
Com um aperto no peito, Verônica indagava a si mesma se Harry ainda acharia
isso se a tivesse encontrado como Patrick: paupérrima, sem esperança, sem graça; uma
preceptora obrigada a usar uma touca horrível e a servir a todos com humildade e
resignação.
— Não, Harry. Você apenas estragou três vidas naquela ocasião. Nada mais.
— Pelo que pude perceber, seu noivo não sabe do que houve. — Harry fitou
Patrick, que conversava com um amigo, a pouca distância, com um sorriso maldoso.
— Isso não importa. Você e Mary estão aqui porque, embora me desagrade, são
parte de minha família.
— Não, minha querida, não pode simplesmente apagar o que significamos um para
o outro.
— Tem razão, Harry. Nunca me esquecerei do que você fez. Jamais. Agora vejo
muito bem quanta estupidez a minha em achar que o tinha amado. E sempre me senti
aliviada por Deus tê-lo tirado de meu caminho. Sinto apenas que meu alívio tenha custado
o sofrimento de minha irmã. Bem, creio que esse assunto está morto. Estamos aqui
apenas para cumprir uma formalidade e, se não souber comportar-se de maneira
apropriada, devo pedir que se retire o quanto antes. Já conheceu meu futuro marido e sei
que conhece a reputação que o acompanha. Patrick é um soldado que nada teme. Como
acha que reagiria se soubesse que você está me importunando com sua ousadia?

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Harry estava fascinado com a nova Verônica que tinha diante de si. Sua paixão e
seu sentimento de perda aumentaram ainda mais, diante da firmeza e da formosura que
ela exibia.
— Muito bem, mas você não vai escapar com tanta facilidade, Verônica. Está muito
mais bela agora, mais
desejável...
Naquele momento, Mary aproximou-se, observando-os, desconfiada. Harry não se
deixou abalar.
— Eu estava acabando de cumprimentar sua irmã pela beleza que ainda mantém,
minha querida — disse, jocoso, para ferir não só a esposa, mas Verônica também, por
intermédio dela.
Verônica, então, passou o braço pelo da irmã e levou-a consigo para longe daquele
homem que lhe provocava asco.
— Quero que me conte sobre seus filhos. Mary. Cuidei das crianças de Serena, e
imagino que os seus sejam adoráveis também.
Mary podia odiar Verônica e Harry, mas adorava seus filhos, e foi com entusiasmo
que falou deles à irmã.
Patrick observava-as, de longe. Vira quando Harry conversara com Verônica e
notara a maneira como seu olhar a tinha seguido pelo jardim, conforme as irmãs se
afastavam. O ciúme que já o atingira antes, quando outros homens fitavam Verônica,
encantados, surgiu, mais uma vez.
Mas como poderia culpar alguém por encantar-se com ela? Verônica era como o
sol entre estrelas de menor brilho. Lembrou-se da obra de Shakespeare, à qual gostava
de recorrer sempre, e tentou recordar se, ali, haveria alguma passagem que fizesse jus a
Verônica e sua formosura radiante.
Esqueceu-se de que deveria ler Otelo outra vez para descobrir o que o ciúme
irracional podia fazer, e estar preparado para não ser cegado por ele.

CAPÍTULO XVIII

Depois que os convidados se foram, Patrick veio sentar-se junto de Verônica no


jardim.
— Talgarth só tinha olhos para você. Senti pena de sua irmã. Vocês não se
parecem em nada.
— De fato. Mary faz lembrar minha mãe, enquanto eu, sinto dizer, sou mais
parecida com meu avô.
Rindo de tal observação, Patrick acrescentou, brincalhão:
— Não creio que Talgarth tivesse olhado para o general do mesmo jeito com que
olhou para você, minha querida. — Mesmo brincando, sentia o ciúme percorrer-lhe o
corpo todo.
Verônica nem sequer podia imaginar quais eram os sentimentos dele. Nunca
imaginaria que Patrick pudesse enciumar-se por causa de uma pobre criatura como Har-

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ry. Era-lhe quase impossível acreditar que um dia se deixara apaixonar, que o venerara,
até a tarde em que, de maneira tão brutal, Harry a atacara perto do lago. E a tentativa
torpe e sem fundamento que o levara a querer reviver o relacionamento de ambos
deixava-a perplexa, senão abismada com tanta estultice.
Os maus tempos que vivera, reconhecia, tinham-na modificado muito. Já não era a
garota despreocupada de dez anos atrás, que imaginara amar com loucura Harry
Talgarth, quando, de fato, tudo o que amara fora o sonho juvenil que fizera do homem
ideal.
— Sinto tanto por Mary, Patrick... Ela me pareceu tão abatida! Quase doente, eu
diria. Espero que não se aborreça comigo, se, após nos casarmos, eu vier a ajudá-la um
pouco. Eles nada possuem, como deve saber.
Patrick tomou-lhe a mão e beijou-a. Virou-se para o banco mais próximo, onde sua
tia cochilava, um livro sobre o colo, cansada das atribulações daquele final de tarde.
— Faça como quiser, Verônica. Mas não sei como eles conseguiram ficar tão
pobres. Lembro-me de que, quando ainda estava na Inglaterra, antes de ir para a
Espanha, Talgarth era apontado como o único herdeiro do marquês de Minard. O que
teria acontecido para que não recebesse toda aquela fortuna? Ele me parece um homem
cuja vida tenha sido uma série de enganos.
O próprio Harry buscara seu infortúnio, concluíra Verônica. E ver sua irmã e o
marido dera outro aspecto aos fatos passados.
Começara a desprezar Harry desde o dia em que recebera a carta de despedida
dele, explicando que fugia com sua Mary. E jamais poderia supor que sentiria pena de
Mary, a quem odiara ainda mais do que a ele.
Por um instante, viu-se tentada a revelar a Patrick toda a triste história, mas achou
melhor calar-se. Passaria a ver sua irmã e o cunhado muito raramente, e seria melhor
deixar o velho escândalo morrer. Afinal, muitas pessoas já o haviam esquecido, ou não
lhe davam mais importância.
Patrick ainda segurava-lhe a mão. Em sua companhia, sem mais ninguém ao
redor, ela era de novo sua Verônica, e não havia outros olhares admirados e cheios de
desejo em sua direção.
Talgarth a desejara, tinha certeza, mas como culpá-lo, já que vivia com uma
criatura tão sem encanto? Jamais faria ideia de que os maus-tratos de Harry tivessem
reduzido a bela Mary de outrora no que restava agora.
Verônica sentia o calor da mão dele e imaginava que, se não havia amor entre
ambos, pelo menos existia paixão.
— Em que está pensando, Verônica?
— Que tenho sorte, afinal. Certa vez, cheguei a achar que Mary fosse mais
afortunada que eu.
Mas sabia que mentia, porque, quando Harry e Mary tinham fugido juntos, ela
como que pressentira que, um dia, eles viriam a se culpar um ao outro e a fazer de suas
existências um inferno.
Baixou a cabeça e beijou com suavidade os que apertavam os seus.
— Não é só pela criança que aceitei me casar com você, Patrick — murmurou,
sentindo que suas palavras o tocavam.
Patrick puxou-a de leve para si, interpretando aquela velada declaração de amor
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como um quase pedido para que continuassem a se amar com o desejo de sempre.
Mas, fosse o que fosse que Verônica sentisse por ele, e mesmo sendo-lhe difícil
confessar seu amor por ela, sabia que deveriam esperar por seu casamento para estarem
outra vez unidos num leito de delícias.
Serena recordava as palavras de sua criada particular, revelando-lhe que, para os
criados, a notícia do enlace de Verônica e Patrick não causava estranheza. Ficou
surpresa e intrigada com tal revelação, e mais ainda quando Louise lhe contou que
Patrick freqüentava a cama de Verônica desde a noite em que Charles voltara de repente
de viagem.
A criada parecera divertir-se em explicar o que sabia. Em especial quando lhe
falara sobre Patrick sair atrasado do quarto de Verônica na manhã de sua partida. Ele
arriscara tanto por ela!
Serena sempre soubera, sempre sentira que alguma coisa estava errada, mas não
imaginara que pudesse ser tanto. Patrick a deixara, e agora estava de casamento
marcado com Verônica!
Não, não poderia deixar que eles se safassem assim de tamanha infâmia contra
sua pessoa. Teriam de pagar, e bem caro, pelo que lhe haviam feito. Por isso, contara
tudo a Charles, na esperança de vê-lo reagir contra o ultraje e tomar uma atitude.
Chegara a dizer que Verônica devia receber muitos outros hóspedes em seus aposentos,
que deveria ser uma depravada.
Chegara a ameaçar que acabaria com a reputação de ambos em Londres, que
nenhuma casa os receberia no futuro, devido ao que haviam feito.
E Charles tornara a tomar o partido de Verônica. Proibira Serena de fazer o que
quer que fosse contra o casal. Chegara a ameaçá-la com o divórcio, alegando que sabia
sobre suas traições ocasionais. Então ele sempre soubera...
Charles dissera ter voltado naquela noite de propósito, porque sabia que Patrick
estava com ela. Afirmou também que imaginava ter Patrick fugido pelos aposentos de
Verônica, o que deveria ter dado início ao relacionamento deles.
Como aquilo calara fundo no coração de Serena! Que atroz vingança o destino
lançara sobre ela!
— Apenas as crianças e o fato de eu não querer me tornar um pobre-coitado diante
da sociedade é que a têm mantido dentro desta propriedade — dissera ele,
aborrecidíssimo. — Mas nada irá salvá-la se magoar Verônica. Seja discreta e aja com
prudência, e nada lhe acontecerá. Poderemos continuar com uma união de aparências, já
que me arrependo tanto por tê-la desposado. Mais uma vez, Serena compreendera que
era com Verônica que Charles se preocupava. E, mais uma vez, seu ódio contra a prima
aumentou. Seu juramento de vingança ainda estava de pé; mas agora sabia que teria de
ser prudente em seus atos, para que Charles não percebesse o que estava fazendo.
Verônica quisera muito conhecer a casa de Patrick em Chelsea, e aceitou o convite
de lady Lochinver para que fossem, as duas, até lá. No entanto, podia ainda sentir a
distância que parecia haver agora entre ambos e se ressentia disso; em especial porque
percebia que Patrick não estava muito satisfeito com o sucesso que da noiva na
sociedade londrina.
Verônica amava-o tanto que prestava atenção a todas as suas atitudes, por mais
simples que fossem, e apreciava quando ele era atencioso, mas Patrick sempre co-
mentava algo a respeito da criança que ela esperava, dizendo-lhe para não se exceder
em caminhadas, para não usar vestidos com o espartilho muito apertado... Tudo por
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causa do bebe. Nada por ela própria...


Não tinha como se enganar sobre o real motivo pelo qual Patrick iria desposá-la, e
era muito difícil para Verônica ver seu casamento como um tipo de negócio, quando a
cada dia amava mais Patrick.
A propriedade de Patrick em Chelsea não era muito grande, mas era perfeita, e
encantou Verônica. Havia pequenos tesouros por toda parte, pinturas pelas paredes,
representando gente da família, e objetos pessoais muito interessantes.
Verônica sabia que Patrick possuía muitos outros imóveis, em particular na
Escócia, onde uma grande casa e muitas terras eram sua constante preocupação.
— Nem tanto, minha cara — observou lady Lochinver, um pouco aborrecida. —
Meu sobrinho anda negligenciando aquilo tudo, bem como os fiéis empregados que
moram lá.
Era de se estranhar, visto que Verônica sabia, por ter ouvido comentários dos
criados de Marchingham, que os serviçais de Patrick o adoravam por ser ele um
excelente patrão.
— Eu sei, Verônica — prosseguia lady Lochinver —, mas já falei com Patrick, e
não consegui fazê-lo ir até a Escócia para cuidar de seus negócios. Parece-me que os
criados estão tendo problemas com a compra e venda de provisões, bem como com o
comércio de gado ovino. Hetta pensou em contar a Verônica sobre o passado triste de
Patrick naquela mansão, mas achou melhor nada dizer, pelo menos por enquanto. Se o
sobrinho não tinha comentado nada com a noiva era porque queria que assim fosse.
Completou apenas:
— É difícil crer que um soldado, que sempre coloca o dever antes de mais nada,
esteja vacilando tanto em fazê-lo agora. Ainda mais porque sabemos que Patrick é, por
demais, responsável.
Verônica pôs-se a estudar as pinturas que representavam Innisholme. Admirou-as
de perto, encantada com cada detalhe.
Outro quadro chamou a atenção de Verônica. Mostrava uma família e, abaixo,
junto à moldura, o nome da obra dizia em letras caprichadas: "A família de sir Ian
Ramsey. Feito em Innisholme, em 1800".
Verônica logo reconheceu o pai de Patrick, sir Ian, e Hugh, seu irmão, ao lado dele.
Havia também uma garotinha, que morrera pouco tempo depois, irmã de Patrick, e um
outro rapaz, mais jovem, que Verônica pensou tratar-se de Roderick. Havia cães de caça
deitados aos pés de todos. Ao fundo, um castelo antigo, que ela supôs ser Innisholme. O
que a intrigava, porém, era a ausência de Patrick.
Voltou-se, vendo que o noivo acabara de entrar e estava assinando alguns papéis
que seu secretário trouxera naquela manhã.
— Você estava doente quando este quadro foi pintado? — ela indagou, inocente.
— Não está entre seus familiares...
A expressão dele, de repente, se transformou.
— Não, Verônica. Eu já devia ter mandado tirar isso da parede. — E, voltando-se
para o criado, ordenou: — Quero aquele quadro fora dali amanhã. Ponha qualquer coisa
no lugar. Qualquer uma!
Ao tornar a encará-la, o semblante de Patrick parecia menos tenso. Verônica
observou-o bem, chegando a compará-lo ao de sir Ian, na pintura, e achando-os muito
parecidos. Mas preferiu nada comentar a respeito.
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O que ela não poderia saber era que, na época em que o artista produzia aquela
obra, desenhando um rascunho de todos os membros da família, sir Ian colocara o dedo
sobre a figura de Patrick, logo ao lado de Roderick, e ordenara:
— Este você pode deixar de fora. Não o quero com o grupo.
Sem receber maiores explicações, o pintor obedecera. E Patrick, entrando,
ansioso, no ateliê, certo dia, para ver o andamento da pintura, fora informado pelo em-
baraçado artista que sir Ian ordenara que ele não fizesse parte da representação da
família. Patrick nada dissera, então. Apenas saíra, calado.
— Sinto muito, Verônica. O erro foi meu, não deveria ter deixado esse quadro aí.
Lady Lochinver murmurou algo incompreensível, depois voltou a conversar com o
sobrinho, sobre o assunto que estavam abordando antes:
— Então, não pretende voltar a Innisholme. Verônica aproveitou a oportunidade
para interferir:
— Ah, Patrick, eu gostaria tanto de conhecer a Escócia! Li tantos livros e poemas
sobre aquelas terras...
— Não, Verônica. Não me peça isso. Já me decidi, e acho que a Inglaterra é boa o
suficiente para mim. Você vai gostar de tudo o que tenho por aqui.
Patrick estava firme em sua resolução, mas pareceu embaraçar-se diante da
negativa a Verônica. Devolveu os papéis que segurava ao secretário, mas suas mãos
tremiam e, ao entregá-los, eles acabaram por cair e espalharem-se pelo chão.
Verônica logo abaixou-se para ajudar a recolhê-los, assim como o criado e Patrick.
Notou uma carta, aberta, e não pôde furtar-se a ler o que estava diante de seus olhos: um
advogado avisava que já estava tudo pronto para que as terras de Innisholme fossem pre-
paradas para a criação de gado e que os empregados de lá seriam demitidos em breve.
O advogado acrescentava, ainda, que os pobres servidores não tinham para onde
ir, que suas famílias haviam trabalhado para os Ramsey por gerações, e que estavam
arrasados com o que estava sendo feito àquelas terras.
Antes que ela pudesse terminar de ler, Patrick tirou-lhe a missiva da mão.
— São negócios, Verônica. Não deve se preocupar com isso.
— Não pode se recusar a ir até lá, Patrick... Não é típico de você tamanho
descaso!
— Nada sabe a respeito, Verônica. E a única coisa a fazer, pode ter certeza.
Patrick imaginava se, entre os serviçais de agora, estariam descendentes de
Ruaraidh, seu grande companheiro de infância. Mas não tinha por" que importar-se com
isso. Jurara jamais voltar a Innisholme, e assim seria.
Verônica não insistiu. Não compreendia os motivos que levavam Patrick a agir
daquela forma, mas sabia que era melhor deixá-lo em paz, por enquanto.
Lady Lochinver, mais uma vez, sentiu vontade de revelar a Verônica sobre o
passado do sobrinho, mas de novo preferiu deixar que os acontecimentos seguissem seu
curso normal. Conhecia os motivos de Patrick, porém, não concordava com suas atitudes
atuais.
Ao voltarem para a mansão de Hetta, Verônica ainda pensava no assunto. Era
estranho, mas Patrick, que lhe pedira conselhos sobre o que fazer em todas suas outras
propriedades, mantinha Innisholme como um livro fechado a sete chaves para ela.
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No dia seguinte, Verônica ainda se incomodava com o mesmo tema, quando


Patrick a levou a uma grande loja para que escolhesse tapeçarias e tecidos para a
decoração de sua casa, em Frenborough. Depois, foram até um homem especializado em
fabricar estufas, e Patrick disse a ele, alegre, que sua noiva era uma apreciadora de
plantas e flores.
Patrick parecia normal, como se nada houvesse acontecido na véspera, como se
tivesse se esquecido de Innisholme por completo.
No entanto, ele agradecia a Deus por Verônica não mais falar a respeito, porque as
palavras dela, ao ler a mensagem, tinham-no tocado fundo.
Algo, porém ainda viria para perturbá-lo ainda mais: um sonho que tivera, no qual
um repreensivo Ruaraidh vinha a seu encontro, acompanhado de Verônica...

CAPÍTULO XIX

A oportunidade para que Serena pudesse se vingar chegou mais cedo do que ima-
ginara. Ela e sir Charles encontravam-se em Londres, para o casamento de Verônica, e
Charles concordara em receber os Talgarth, mesmo a contragosto, pensando em
Verônica, pois, assim, estaria ajudando a diminuir a má impressão que ainda pairava
entre a família, pelo escândalo de dez anos antes.
Os Marchingham também se chocaram com o estado do casal Talgarth. Serena
convidou Mary para um pequeno passeio nos jardins de sua propriedade, em Piccadilly, e
aproveitou a oportunidade para que pudessem falar sobre Verônica.
— O que não entendo, Serena, é como sir Patrick pôde se encantar por Verônica,.
Serena vacilava. Tinha medo, pelas ameaças de seu marido, de revelar a Mary o
caso amoroso entre Patrick e Verônica em sua casa. No entanto, era mais forte do que
ela a vontade de destilar ura pouco de veneno contra a prima.
Charles jamais saberia, pois os Talgarth, após o enlace de Verônica, não mais
seriam recebidos socialmente na capital inglesa.
— Bem, creio que sua irmã tenha se transformado muito desde que a viu pela
última vez, Mary. É perigosa para os homens em geral, e não me pergunte como con-
segue. Eu manteria Harry afastado dela, se fosse você. Lembre-se do que aconteceu no
passado, de como sua irmã conseguiu roubá-lo, pois, se bem me recordo, foi você quem
primeiro chamou a atenção dele...
Mary engoliu em seco. Notara os olhares de desejo que seu marido lançara a
Verônica dias antes, e Harry agora vivia atormentando-a com desaforos e comentários
maldosos, comparando-a a Verônica e magoando-a muito ao apontar-lhe os defeitos.
Mary, no entanto, nada respondeu, e Serena imaginou que suas palavras não
tinham surtido efeito. Enganara-se, porém, pois Mary se encontrava pronta para entrar em
ação, caso seu marido a ferisse mais uma vez usando Verônica como parâmetro.
Dias depois, Verônica andava pelas ruas de Londres, fazendo compras, quando
deparou com o cunhado. Mesmo tendo trocado apenas breves palavras com ele, Harry
chegou a sua residência vangloriando-se do encontro, dizendo a Mary que sua intimidade
com Verônica crescera muito, porque ela jamais o esquecera.
Quanto a Verônica, não mais recordava tê-lo encontrado, porque estava muito
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mais preocupada com a propriedade de Patrick na Escócia, não tendo tempo para intrigas
familiares daquele tipo.
Nem ela nem Patrick voltaram a falar sobre Innisholme. Ele não lhe falara que,
após o sonho que tivera, naquela noite, deixara de assinar o documento que autorizava a
entrada das ovelhas e destituía os criados de seus lares. Decidira ponderar melhor a
respeito e, para sua própria surpresa, começava a sentir falta do quadro que banira da
sala.
Ele era, afinal, tudo o que lhe restara de lembrança de Roderick e de sua irmã,
Helen, e Patrick sentia-se constrangido por deixá-los de rostos voltados para a parede do
sótão.
O semblante de seu pai era o que mais o incomodava, porém. O destino fora cruel
ao dar-lhe tamanha semelhança física com o homem que o tratara tão mal. Às vezes,
chegava a achar que isso era uma faca de dois gumes, pois também devia ter ferido
muito sir Ian.
Precisava assinar alguns documentos na capital. Nos últimos dias, ele e Verônica
haviam feito muito disso devido ao casamento que se aproximava.
Existiam particularidades legais que precisavam ser acertadas agora, como a
pensão que Verônica passaria a receber e a divisão de bens que se faria assim que um
herdeiro viesse ao mundo.
Foi até Bond Street, passou por uma joalheria, comprou um broche em forma de
pássaro para Verônica e tentou sentir-se melhor, mas havia um estranho sentimento de
culpa que o acompanhava, sem saber por quê. Achou, de repente, que aquele presente
poderia representar seu interesse em comprar o amor de Verônica. Afastou, entretanto,
tais pensamentos, achando que as atribulações demasiadas estavam acabando com seus
nervos.
Logo que chegou, de volta a casa, seu mordomo interpelou-o, ajudando-o a tirar o
sobretudo e avisando-o de que lady Talgarth estava ali fazia horas, aguardando sua
presença. Ela nem mesmo aceitara um chá ou um refresco. Patrick encontrou-a na
biblioteca, sentada numa poltrona logo abaixo do quadro que representava Hugh. Mary
era um contraste incrível naquele ambiente de elegância e luxo, o que a fazia sentir-se
ainda pior e com mais raiva da irmã.
Patrick estranhara aquela visita, e mais intrigado ainda ficou quando Mary
levantou-se e veio a seu encontro, parecendo fora de si.
— Precisa detê-la, sir! Verônica vai ser sua esposa! Isso não pode acontecer outra
vez!
Atônito, Patrick a fez sentar-se de novo e ofereceu-lhe seu lenço de seda. Mary
olhou-o, achando-o lindo. Tão refinado... Verônica não o merecia!
— Poderia explicar-se melhor, lady Talgarth?
— Você não sabe... — Mary prosseguiu, com lágrimas nos olhos. — Não conhece
a verdade. Diga a Verônica para deixar Harry em paz! Não quero perdê-lo de novo!
— Poderia ser mais clara? Afinal, a senhora é esposa de Talgarth.
—Não graças a Verônica.
Mary o encarou, notando, por sua expressão, que Harry tinha razão quando
dissera que sir Patrick nada sabia sobre o que acontecera entre eles. Iria contar-lhe, mas
não a total verdade. Diria a história que a consolara naqueles anos todos pelo mal que
impusera à própria irmã.
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— O senhor é inocente... — Depois baixou as pálpebras e prosseguiu, na forma


mais cândida que conseguia impor a sua maldade: — Eu e Harry nos conhecemos pri-
meiro, mas Verônica acabou tirando-o de mim. Milorde deve saber como minha irmã
consegue, com um olhar, seduzir um homem. Contudo, eu lutei e o reconquistei, e
Verônica jamais me perdoou por isso. E agora ela o quer como um troféu, não o deixa em
paz. Eles se encontraram ontem e... Oh, meu Deus, meus filhos ficarão sem pai, porque
não há como comparar Verônica a mim! Ela é tão linda, tão esfuziante! Enquanto não
passo de um trapo maltratado pelo destino!
Se tivesse parado para raciocinar, Patrick teria percebido logo que era impossível
Verônica desejar uma coisa sem vida como Harry, mas, diante do estado lastimável de
Mary, tal lógica passou-lhe despercebida. Não questionou as palavras de Mary. Sempre
tivera dúvidas quanto aos sentimentos de Verônica para consigo, e estava cego de ciúme.
— Procure não se desgastar, milady. Acredito que seu marido e Verônica sejam
apenas amigos.
— Não, não! Tenho certeza de que estão se encontrando às escondidas! Esta
manhã mesmo Harry me disse que se arrependia por ter me desposado, que é por
Verônica que seu coração pulsa, mesmo estando ela de casamento marcado com o
senhor! Oh, estou perdida! — E Mary caiu em prantos, de novo.
O ciúme de Patrick o avassalava com uma força sem igual. Além disso, o dolorido
sentimento que carregara durante toda a existência de que era uma pessoa que não
merecia amor algum o arrasava.
— Minha cara, não sofra assim. Fique tranqüila. Falarei com Verônica e lhe pedirei
para que se afaste de seu marido. Não tenho dúvida de que ela me ouvirá.
— Oh, o senhor conhece Verônica! Ela sempre faz o que bem lhe apraz!
— Não quanto a isso, pode estar certa. Agora, enxugue esse pranto. Vou pedir um
chá para acalmá-la. E depois... bem, andou até aqui? Posso lhe oferecer meu coche.
Mary agradeceu, ainda soluçando. Sir Patrick era um homem bom. Ele falaria com
Verônica, e ela pararia de ver Harry. Assim, Harry não mais a humilharia, fazendo
comparações tão ofensivas. Sabia que seu casamento não se tornaria um mar de rosas
só por isso, mas, pelo menos, tinha Verônica fora de seu caminho.
Assim que Mary se foi, Patrick deixou-se cair numa poltrona, furioso. Como
Verônica agia mal! Era evidente a situação terrível em que Mary vivia. E Verônica tornava
a vida daquela pobre mulher ainda pior, lançando seu charme sobre Harry.
E agora, que sabia o que houvera, seu ciúme era ainda maior. Conhecia, sim, o
olhar encantador de Verônica, e imaginava quantas vezes ela o teria lançado para fazer
Harry sucumbir a sua beleza.
Mandou preparar seu coche. Precisava falar com Verônica ou iria explodir. E o
presente que comprara para dar a ela foi deixado, esquecido, sobre a escrivaninha.
Verônica estava particularmente feliz nesse dia. O casamento se daria dentro de
uma semana, e ela se sentia um pouco mais próxima de Patrick. Tinha certeza de que,
assim que a cerimônia acabasse e eles estivessem a sós outra vez, tudo voltaria a ser
como antes, como em Marchingham Place. Passariam a lua-de-mel em Frenborough e lá
voltariam a ser como dois pombinhos.
Pela manhã, lady Lochinver lhe entregara várias cartas e, entre elas, estava uma
de Mabbs. Dizia que ela já chegara para as bodas e que estava instalada na residência
de sua amiga, em Richmond, ansiosa por rever Verônica.

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Ela se voltou, muito alegre, para lady Lochinver e sorriu. Gostava de viver ali, com
aquela senhora, com quem tinha um ótimo relacionamento. Lady Lochinver, por sua vez,
não se cansava de agradecer a Deus por Patrick ter encontrado uma mulher tão bela e
agradável para ser sua esposa.
— Minha querida, tenho certeza de que quer me dizer alguma coisa.
— Bem, milady, minha antiga governanta, a Srta. Mabbs, acabou de chegar a
Richmond, e eu estava imaginado se a senhora poderia me emprestar sua carruagem
para ir visitá-la. Já faz alguns anos que não a vejo, e ela foi uma das poucas pessoas que
demonstrou bondade para comigo quando mais precisei.
— É claro que pode usar minha carruagem, Verônica. E convide sua amiga para vir
jantar aqui antes do casamento.
Verônica levantou-se e foi até Hetta, dando-lhe um beijo no rosto.
— Uma das coisas melhores em meu casamento com Patrick é que vou ganhar
uma tia! Tias são pessoas tão maravilhosas! E jamais tive uma. Não são tão severas
quanto as mães, nem tão condescendentes quanto as avós. Não que eu tenha tido
alguma delas, também... Mas sei que as tias escrevem cartas, encorajam em momentos
difíceis e oferecem carruagens a suas sobrinhas!
Lady Lochinver sorria, observando a maneira doce como Verônica encarava a
existência.
Viu-a sair da sala de jantar cantarolando baixinho e imaginou como aquela criatura
tão especial podia ter estado sozinha até então. Seu sobrinho era um afortunado por
desposá-la.
Com a carruagem se dirigindo a Richmond, Verônica admirava a paisagem colorida
do outono, lembrando-se de que completaria trinta anos em breve. Lembrava-se, também,
com certa tristeza, de que o pai, que mal conhecera, lhe enviara uma carta, num de seus
aniversários, o de cinco anos, pouco antes de morrer.
Imaginava como suas vidas teriam sido diferentes se ele não tivesse falecido tão
cedo... Era um homem educado, um soldado valente, mas casara-se com sua mãe contra
a vontade do general, que jamais lhe abrira porta alguma para que alcançasse sucesso.
Aquele também fora um casamento infeliz, ponderou, imaginando que Mary era muito
parecida com sua mãe. Possuía uma determinação forte, embora estivesse voltada para o
lado errado. Isso a fazia ter uma ideia de como sua mãe se casara com seu pai...
Mas estava chegando à casa onde Mabbsjse hospedara, e o contentamento de
rever a governanta desfez qualquer outra ideia em sua mente.
Mabbs era uma senhora forte, de quase sessenta anos, mas muito bem apanhada
para a idade. Sua amiga, bem mais baixa e idosa, era também muito agradável, e logo
cobriu Verônica de beijos.
— Mas que linda! — comentou, entusiasmada. — E tão viçosa! Seja fosse casada,
eu diria que... — Mas interrompeu-se, percebendo que cometeria uma gafe.
Verônica, no entanto, corou de imediato.
Bem mais tarde, quando Verônica já contara quase tudo o que lhe acontecera
naqueles anos todos, Mabbs observou:
— Percebo que está feliz, minha menina.
— Estou, sim. O único senão é saber que não vou morar com você. Mas Deus não
nos dá tudo, não é?
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Mabbs assentiu, satisfeita por ver que a garotinha que ajudara a criar se
transformara numa mulher bonita e simpática, que, apesar de todos os tormentos que
tivera de enfrentar, conseguira manter-se viva e sensata. Queria muito conhecer o homem
que conseguira resgatar Verônica das garras da adversidade.
— Fica para almoçar conosco, não? — convidou a Srta. Wilkes, amiga de Mabbs.
— Não aceitaremos um "não" por resposta!
E assim aconteceu. A tarde, contente e despreocupada, Verônica voltou para a
mansão de lady Lochinver, ansiosa com a próxima visita de Patrick, à noite. Iria contar-lhe
sobre a visita que fizera e sobre sua satisfação em rever Mabbs. Estava alegre como
nunca.

CAPITULO XX

Lady Lochinver não se encontrava em casa. Uma amiga viera buscá-la para darem
um passeio em Kew naquela tarde.
Verônica sentou-se na sala de estar, bordando uma peça fina de seda, para seu
enxoval. Tinha ainda um sorriso feliz nos lábios. Sabia que iria ficar a sós com Patrick
antes que sua tia chegasse, e estava ansiosa pelos momentos que poderiam desfrutar.
Quando ouviu uma voz masculina no hall, animou-se, mas estranhou-a, já que não
era tão profunda quanto a de Patrick.
Logo a porta da sala se abriu, e o mordomo de lady Lochinver apareceu para
anunciar quem chegara, mas Harry seguiu-o, sem necessidade de maiores apresen-
tações, como se temesse não ser recebido.
O mordomo, aborrecido com tais modos, retirou-se discreto, olhando com certo
ressentimento para o recém-chegado.
Verônica sabia que deveria recebê-lo, nem que fosse por mera cortesia apenas,
ainda mais porque não se encontrava em sua própria casa. Levantou-se, formal, e
indagou:
— Sir Harry, deseja ver sir Patrick?
Harry vestira-se com esmero, ela notava. Estava longe de se parecer com o que
fora dez anos atrás, mas era óbvio que tentava impressionar.
— Ver Ramsey, Verônica? Não, não. Estou aqui para falar com você, minha
querida. Você, que jamais esqueci.
— Ora, poupe-me dessas bobagens! Teve sua oportunidade para se casar comigo,
um dia, e jogou-a fora. E procure ter mais respeito quando se dirige a mim, pois não lhe
dou o direito, sequer, de tratar-me por meu primeiro nome.
— Verônica, minha amada — insistiu Harry, ignorando-lhe as palavras. — Quem,
além de mim, poderia ter o direito de chamá-la por seu primeiro nome? Pense no que já
significamos um para o outro.
— Prefiro não lembrar.
— Não diga isso. Eu fui um tolo. Cada vez que a vejo, meu coração sangra pela
escolha errada que fiz. Diga que me perdoa, e estará aliviando meu sentimento de culpa!

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Verônica sentia-se dividida entre a vontade de chamar o mordomo e pedir-lhe que


expulsasse aquele homem dali e a compaixão por sua irmã. Se o mandasse embora, es-
taria aumentando a distância entre ambas, e sabia que Mary precisava de uma chance
para sair de sua miséria.
— Devo pedir-lhe que saia, sir Harry. Vou me casar em breve com outro homem, e
o senhor não deveria portar-se dessa forma. Lembre-se de sua esposa e de seus filhos,
pelo menos, já que não quer considerar minha posição.
Mas Harry não a ouvia. Aproximou-se, de repente, ajoelhando-se a sua frente,
escondendo o rosto em sua cintura, como um alucinado, dizendo:
— Não me recuse, pelo amor de Deus! Eu não suportaria! Por favor, mostre
alguma piedade! Tenho suportado as reclamações dela por dez anos, Verônica!
E desde então a vi engravidar sem parar! Não pode imaginar o que isso significou
para mim, o tormento que foi! Que ainda é!
Verônica lutou por se afastar, mas seus esforços acabaram por fazê-la perder o
equilíbrio e cair de costas no sofá. Harry não a largava, e agora se jogou sobre seu corpo.
Verônica, desesperada, sabia que qualquer pessoa que ali entrasse poderia
imaginar que estavam se abraçando, tamanha era a expressão de desejo de Harry.
Como já acontecera antes, a resistência dela apenas o inflamava ainda mais. Harry
estava fora de si, esquecendo-se do que sir Patrick poderia fazer caso os visse ou
soubesse que estivera lá. Tinha a mulher que sempre desejara nos braços, e nada
poderia detê-lo.
Sua boca buscava a de Verônica, suas mãos procuravam segurar-lhe a nuca.
Harry não se importava com nada além de sua própria paixão.
Verônica lutava, tentava gritar, mas os lábios dele ou suas mãos acabavam por
abafar sua voz. Estava desesperada, sabendo que sua felicidade se encontrava a um
passo da ruína.
E então sua salvação apareceu. A porta se abriu, e Patrick entrou, correndo para
Harry, segurando-o como podia e lançando-o longe, para o outro canto da sala.
Verônica tentava levantar-se, angustiada. Sentia náuseas e tinha receio de que
aquele ataque pudesse ter machucado a criança que trazia no ventre. Ouviu Patrick gritar
com Harry, empurrá-lo para fora da sala e depois voltar.
Lá estava ele, agora, olhando-a, muito sério. O que vira fora o oposto do que, de
fato, acontecera. Viera direto de sua casa, após a conversa com Mary e, ao chegar, fora
avisado pelo mordomo de que sir Talgarth estava a sós com a Srta. Verônica na sala.
Patrick entrara e, ao vê-los daquele modo, compreendera que as suspeitas de
Mary se confirmavam. Atirara Harry para longe, e ele, talvez assustado demais, tivera o
bom senso de não reagir, nem protestar.
Agora estava ali, diante dela, vendo-a recompor-se dos abraços com o outro,
procurando esconder as marcas que haviam ficado em sua pele após os delirantes
momentos de prazer.
Verônica ainda se sentia mal. Parecia estar em choque. Tremia, e demorou muito
para conseguir falar.
— Graças a Deus você chegou!
— Bem, eu não diria isso... Pelo menos, não depois do que vi.

Projeto Revisoras 94
Sombras da Paixão – Paula Marshall CH n. 185

A principio, Verônica não compreendeu o que Patrick queria dizer; até que ergueu
os olhos e encarou-o.
— Por quê, Verônica? Por quê?!
— Patrick, não está pensando que eu e Harry... Mas a perturbação dele era
bastante óbvia e eloqüente. Verônica abraçou-se, angustiada. Não sabia o que era pior: a
segunda tentativa de estupro de Harry ou a reação de Patrick.
— O que esperava que eu pensasse, Verônica? Estava a sós com ele, em seus
braços. Você e o homem que, um dia, tirou de sua irmã... A irmã que me procurou
pedindo para que eu a fizesse deixar o marido em paz...
— Não pode estar falando sério! Não pode estar achando isso de mim!
— Não?
— Patrick, não é verdade... Mary procurou-o para que evitasse um caso entre mim
e Harry? Isso é ridículo! — E uma vontade estranha de rir apoderou-se dela. — Que
vergonha! Como Mary pôde fazer tal coisa? E como o senhor pôde acreditar nela?!
— Parece esquecer que acabei de vê-los juntos... Verônica não conseguia
raciocinar direito. O mundo desabava sobre sua cabeça de novo! Eles a estavam
destruindo outra vez!
— E se eu lhe dissesse que Harry me atacou e que esta não foi a primeira vez que
isso aconteceu? — revidou, sem saber mais como se defender.
Patrick mal conseguia respirar. Amava-a tanto e presenciara sua traição! Jamais
sentira dor maior.
Bem mais tarde, Verônica poderia ponderar melhor e imaginar que haveria outras
maneiras de convencê-lo de sua inocência. Mas naquele instante estava ferida demais
para pensar em qualquer coisa. Magoava-a sobremaneira a desconfiança de Patrick, a
facilidade com que acreditara em outra pessoa, contra ela...
— Crê, mesmo, que eu seria capaz de traí-lo, Patrick?
— A única coisa que sei é que ainda a quero por esposa. Que sinto-me capaz de
perdoá-la. Mas exijo que me prometa que jamais verá aquele homem de novo.
— Quer que eu seja sua esposa... — Verônica repetiu e aquele antigo senso de
ironia e sarcasmo voltou a tomá-la. —Vai me perdoar... Por causa de nosso filho,
suponho. Está tão certo assim de que esta criança é sua? Afinal, a seu ver, não sou mais
que uma rameira.
— Verônica, pare com isso! — Patrick experimentava um estranho sentimento de
culpa diante daquele rosto amargurado. — Não a vejo assim. Jamais seria capaz.
— Não? Que surpresa! Mas precisa tanto de um herdeiro que vai aceitar até esta
mãe inconseqüente para tê-lo...
Tirou do dedo o anel que simbolizava seu compromisso de noivado.
— Não podemos nos casar, sir Patrick — anunciou, mais firme do que poderia
imaginar que conseguiria. — Já que prefere acreditar em minha irmã, e não em mim.
— Verônica, eu vi...
— O que viu?! Diga. E o que ouviu? Viu ou ouviu a mim? Ou preferiu ater-se a
minha irmã e suas mentiras? Como acha que poderemos construir uma união sólida com
estas bases? Aqui está seu anel.

Projeto Revisoras 95
Sombras da Paixão – Paula Marshall CH n. 185

— Não. — Patrick percebia que a estava perdendo, e o pavor começava a tomá-lo.


Não sabia o que dizer.
— Pegue a jóia, sir Patrick. Não serei traída pela segunda vez. Agora posso
decidir, e decido que não ó quero mais.
E, visto que Patrick se recusava a pegar o anel, soltou-o sobre o espesso tapete.
Podia estar acabando com sua vida e sua esperança de ser feliz, mas não havia nada
mais que pudesse fazer.
Passou por ele, encaminhando-se para a porta, mas Patrick a deteve pelo braço.
— Queria soltar-me, por favor Não deixarei que homem algum me toque, hoje. Já
sofri o bastante.
— Não — murmurou Patrick, sem querer deixá-la ir, mas, como não era Harry
Talgarth, soltou-a. — Verônica, pegue aquele anel de volta... Nada mais importa. Apenas
pegue-o. Não vá embora. Oh, Deus, por que isso teve de acontecer?! Eu poderia matar
aquele infeliz do Talgarth!
— Que ato prestativo seria esse! Resolveria algum problema ou criaria muitos
mais? E, quanto ao motivo de tudo isso ter acontecido, sir Patrick, pergunte a Harry e
Mary. Mas não a mim. Nada mais temos a nos dizer, milorde.
— Pela criança, Verônica... — Patrick insistiu, angustiado.
— Não me diga isso. Não vai me comprar ou me chantagear com meu filho,
senhor. Não quero seu nome, nem seu título de nobreza, nem sua vasta fortuna. Gostaria
de ter seu amor e sua confiança, mas isso me parece ter sido negado.
E Verônica se foi, calma e silenciosa. Patrick olhou para a jóia, ainda no tapete, e
cerrou os olhos com força, para não chorar.

CAPITULO XXI

Se, para Verônica, era como se o mundo 'tivesse acabado, para Patrick a situação
não parecia nada melhor.
Ele a perdera. Bem, jamais a tivera, pois o grande amor que ficara no passado de
Verônica, em sua opinião, era ainda Talgarth. Não conseguia pensar de outra forma
depois do que presenciara, e sentindo-se tão enciumado.
Sentou-se numa poltrona e enfiou as mãos por entre os cabelos, desesperado.
Lembrava-se da determinação dela ao afirmar, categórica, que nada de duvidoso tinha
acontecido entre ela e o antigo noivo. Quis subir as escadas, ir até o quarto que ela
ocupava naquela mansão e pedir-lhe mais uma vez que ficasse. Prometeria qualquer
coisa, tamanho era seu amor por Verônica. Sentia que estava perdendo o bom senso,
que sua infelicidade lhe turvando suas ideias.
Pensava em si mesmo, em sua incapacidade de inspirar amor verdadeiro nas
pessoas. Fora assim com seu pai, e era assim com Verônica também. Jamais lhe
ocorrera, contudo, que, se tivesse confessado seu amor por ela, pudesse tê-la convencido
a ficar. Estava confuso demais para tanto.
Afinal, como podia uma mulher, e, acima de tudo, uma infiel, inspirar-lhe tamanho
Projeto Revisoras 96
Sombras da Paixão – Paula Marshall CH n. 185

sentimento?
Além do mais, teria de falar com sua tia, explicar o que acontecera, cancelar o
casamento...
Aquilo o deixou ainda mais arrasado. Precisava raciocinar com clareza. No podia
revelar a lady Lochinver que quase surpreendera Verônica nos braços de um amante.
Havia muito a preservar, em especial sua integridade de homem.
E não queria que mais um escândalo abalasse Verônica. Teriam de fingir um
rompimento mais formal, mais sensato, sem emoções.
Respirou fundo. Imaginava para onde Verônica poderia ir. Decerto, não de volta a
Marchingham Place. Talvez fosse viver em Alnwick, com a antiga governanta sobre a qual
já lhe falara. E a ele bastaria retornar à solidão.
Verônica começou a fazer as malas, guardando nelas as roupas velhas que
trouxera de Marchingham Place. Tirou o vestido novo que usava e que Harry acabara de
estragar, depois as roupas de baixo, finas e delicadas, que passara a colocar depois de
se tornar noiva de Patrick, e voltou aos trajes sóbrios e severos de antes.
Vira as marcas em seu corpo, ao se despir. Harry fora grosseiro e bruto em seu
desejo asqueroso. Lembrava-se do episódio de dez anos antes, e as lágrimas afloraram,
embora se esforçasse por detê-las.
Passou sálvia pelas manchas em seus seios e olhou-se no espelho, mas não
conseguiu encarar a si mesma por muito tempo. Sentia-se a tola de sempre, enganada
três vezes de forma irreparável: duas vezes por Harry e uma por si mesma, por ter
acreditado num sonho sem futuro. Quis descer as escadas, pedir o perdão de Patrick e
aceitar o que ele propusera, ficando, apesar de tudo. Mas não havia um "tudo". Nada
acontecera e não se deixaria trair dessa forma. Não. Precisava ser firme e manter seu
orgulho intacto. Já que Patrick a julgara tão mal, não merecia tê-la.
Quando terminou de arrumar seus parcos pertences, sentou-se na cama,
desanimada. Quando lady Lochinver retomasse, contaria a ela uma mentira: diria que ela
e Patrick haviam chegado à conclusão de que tinham cometido um erro, que não
poderiam se casar. E, num último favor, pediria que a bondosa senhora lhe emprestasse
a carruagem para levá-la mais uma vez à casa de Mabbs.
Talvez houvesse lugar no chalé da Sra. Wilkes, e poderiam permanecer lá até que
voltassem a Alnwick. Caso contrário, possuía dinheiro suficiente para pagar um quarto
simples até que acompanhá-la na viagem de volta à Nortumbria.
Precisava ser forte. Afinal, fora sua força interior que sempre a empurrara para
adiante, com determinação e coragem.
Como era de esperar, Hetta ficou surpresa e atordoada com as novidades nada
bem-vindas. Quis revelar a verdade sobre Patrick a Verônica, mas achou que aquela não
seria a melhor ocasião. Assim, decidiu escrever-lhe uma carta, onde esclarecia tudo, e
pediu ao cocheiro que a levasse aonde quisesse ir.
— Peço-lhe que leia isto apenas amanhã, Verônica querida, quando estiver mais
calma. Após ter dormido e ponderado melhor sobre tudo o que aconteceu hoje.
Verônica apenas assentiu, guardou a missiva em sua bolsa e engoliu em seco:
Tinha vontade de chorar, mas controlava-se a duras penas. Sabia que o pranto seria
inútil.
— Obrigada por todo seu carinho, milady. — Verônica beijou a face de Hetta, e se
foi.
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Sombras da Paixão – Paula Marshall CH n. 185

Estavam no início do caminho que levaria ao chalé onde Mabbs se encontrava,


quando Verônica colocou a cabeça para fora da janela e pediu ao cocheiro para fazer um
pequeno desvio até a residência de Mary, no "lado errado" de Chelsea, como sua irmã
mesma costumava dizer, amarga.
A casa, embora grande, estava em péssimas condições. Era tudo o que restara
aos Talgarth, e Mary a detestava.
Encontrava-se em sua sala de estar, rodeada pelos filhos e, quando Verônica foi
anunciada, mandou-os brincar com a babá. Verônica ainda podia ouvi-los reclamando,
conforme eram afastados da mãe.
Ao vê-la, Mary arregalou os olhos.
— Por que está vestida assim, Verônica?
— Isso não importa, Mary.
Verônica não tinha a menor intenção de prolongar aquela conversa. Na verdade,
mal sabia por que estava ali. Talvez para repreender Mary, para gritar e esbravejar como
tantas vezes antes. Ou até para colocar sobre as costas de Mary o fardo e a culpa por ter
perdido o homem que amava. Porque, afinal, era vítima das mentiras dela.
Entretanto, ao vê-la, Verônica ficou quase sem fala.
— Duas vezes, Mary. Você teve de destruir minha vida duas vezes. Não podia ter
me deixado Patrick?
Mary. vacilou por instantes, depois murmurou, desconfiada:
— Não sei do que está falando...
— Você mentiu para Patrick sobre o que aconteceu, em nosso passado. E quando
lhe pediu para protegê-la, para me fazer deixar Harry em paz. Como pôde? Eu,
perseguindo Harry! Isso é algum tipo de piada?! Você, melhor do que ninguém, sabe que
não o suporto! Apenas concordei em tornar a vê-lo por sua causa, para que não ficasse
de fora da família quando eu me casasse com Patrick. O que disse a ele? Porque, seja o
que for, deixou Patrick louco a ponto de me encontrar quando estava sendo atacada por
Harry, seu marido! Porque o bom e devotado Harry foi me procurar e quase me estuprou,
como há dez anos!
Mary levou as mãos ao rosto, parecendo desesperar-se.
— Oh, não! Não!
— Sim, Mary! E Patrick, porque lhe deu ouvidos, achou que eu estivesse
consentindo, que estivesse feliz por ter Harry de volta!
Mary soluçou. Em sua mente, quatro palavras se repetiam, atrozes: "Como há dez
anos!".
— Você disse... que Harry a atacou... como há dez anos?
— Sim. Porque ele tentou me violar em Marchingham Place, antes de nosso
casamento, quando eu ainda era uma garota tola e inocente. Quando lutei contra Harry,
com todas as forças e o rejeitei, ele se voltou para você, porque poderia lhe dar o que
queria. E foi o fez, não é, Mary?
— Você está mentindo...
— Não. Estou dizendo a mais pura verdade. Encare-a. E agora Patrick e eu nos
separamos; não vamos mais nos casar. E não vou repreendê-la, minha irmã. Deixarei
isso a cargo de sua consciência. Vim aqui porque queria que você soubesse. E entender
Projeto Revisoras 98
Sombras da Paixão – Paula Marshall CH n. 185

por que me fez isso agora e daquela vez. Diz ter uma vida difícil, mas, pelo menos, possui
um marido, filhos, um lar... Alguma vez pensou no que fez de minha vida? Nos tormentos
e humilhações que tive de passar estes anos todos? Fique sabendo que jamais nos
veremos de novo, minha irmã. Não pretendo continuar em Londres. Não serei mais uma
criada dispensável como fui até agora. E saiba que você é a responsável por minha
infelicidade, Mary. Sempre foi.
Verônica olhou-a, altiva, e completou, antes de dar-lhe as costas e sair dali:
—Não precisa me acompanhar até a porta. Sei o caminho.
— Jamais tramei isso!
Verônica ouviu sua irmã gritar, mas não lhe deu ouvidos.
— Eu não queria que vocês se separassem! Juro! Ao entrar na carruagem,
Verônica só conseguia se lembrar de um velho ditado: "A inveja é tão cruel quanto a
sepultura". Como eram sábios todos os provérbios que conhecia...
A sabedoria do povo era algo incomensurável. Mary, desde pequena, quisera o
que era seu; agora via isso com clareza, lembrando-se de muitos incidentes de infância
que, na época, haviam passado despercebidos, mas que retornavam, cheios de
significado. Até seu noivado desfeito com Harry e o rompimento com Patrick. Tudo fora
fruto da inveja mortal de Mary.
Mas estava terminado. Mary seria apenas uma sombra negra, bem distante. Tinha
todo um futuro a sua frente, com o fruto de seu grande amor. Afinal, restava-lhe seu filho,
e ele, com certeza, ninguém lhe poderia tirar.
As duas senhoras receberam Verônica de braços abertos. Depois, quando se
encontrava a sós com Verônica, Mabbs tomou-lhe as mãos nas suas e olhou, triste, para
o rosto que ela procurava manter ainda altivo.
— Não me pergunte nada, por favor, Mabbs. Acho que não conseguiria falar a
respeito ou entrar em maiores detalhes. Só posso dizer que Mary contou uma enorme
mentira a Patrick, que ele achou motivos para acreditar nela devido à conduta imprópria
de Harry, e que está tudo acabado entre nós. Imagino que eu deveria ter contado a
Patrick sobre o que aconteceu naquela ocasião, mas não queria que nenhuma mágoa
pairasse sobre a felicidade que estávamos vivendo. Achei que poderia colocar uma pedra
sobre o passado. Não consigo imaginar o que possa ter feito minha irmã arruinar minha
vida pela segunda vez...
— Mary sempre sentiu muita inveja de você, querida. E sua mãe jamais entendeu
isso. Encorajava-a, ainda. Que duas criaturas tolas, meu Deus! Acho que as assustava
um pouco por ser tão diferente, Verônica. Foi uma pena seu pai ter morrido tão cedo!
— Agora entendo isso. E quero dizer que sinto muito por estar atrapalhando sua
estada aqui em Londres, Mabbs. No entanto, espero que não demore muito para
podermos ir para Alnwick.
Na manhã seguinte, ao despertar, Verônica, de imediato, lembrou-se da carta de
Hetta. Abriu o envelope, curiosa.
"Querida Verônica, não sei o que separou você e Patrick. Talvez pequenas coisas,
talvez algo bem maior. Só entendo que não poderá compreender meu sobrinho por
completo a menos que saiba o que aconteceu a ele quando criança e quando rapaz.
Foi o que o tornou tão incrédulo diante da vida e que pode, quem sabe, ter
contribuído para o rompimento de seu noivado. Esperei que você pudesse ajudá-lo a re-
cuperar-se das marcas profundas que Patrick ainda carrega consigo."
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E a missiva prosseguia, explicando sobre o que o pai de Patrick fizera ao filho,


desde seu nascimento até sua expulsão de casa.
"Agora pode entender por que meu sobrinho não quer voltar à Escócia, embora
devesse, e também porque um homem tão bem apanhado permaneceu solteiro até então,
sem nunca ter tido um relacionamento mais sério ou duradouro.
Cheguei a pensar que Patrick nunca se casaria e fiquei muito aliviada quando
soube sobre você. Muito mais ainda porque é uma moça maravilhosa.
O que acabei de lhe contar pode não ser suficiente para fazer com que vocês
reatem o noivado, mas tenho certeza de que fará com que você entenda Patrick um
pouco melhor. Não é meu desejo influenciar em suas decisões, mas devo dizer que temo
pelo que possa causar a meu sobrinho essa segunda rejeição."
Verônica sentiu vontade de chorar. Sua existência já não lhe parecia tão triste
diante do que acabara de ler.
Pensava em Patrick, ainda tão jovem, privado da mãe e sem o amor do pai,
lançado ao mundo para enfrentá-lo sozinho. Claro que isso não justificava seu
comportamento para com ela, mas era suficiente para explicá-lo. Sua desconfiança, sua
recusa em se ligar a alguém, em entregar-se a um relacionamento sincero, tudo mostrava
seu medo diante de um novo abandono.
Patrick a amaria, afinal, mesmo sem jamais ter confessado seus sentimentos? Ele
dissera que, apesar de tudo, mesmo considerando-a culpada, ainda a queria por esposa.
Não mencionara a criança até trocarem suas últimas palavras.
Verônica e Mabbs haviam conversado, antes de se recolherem para dormir.
Lembrava-se do que dissera a Mabbs e do que ouvira da bondosa governanta. Se Patrick
viesse procurá-la, e ela imaginava que isso seria impossível, teria de reconsiderar sua
decisão e avaliar muito bem o que poderia lhes acontecer doravante.

CAPITULO XXV

— Ramsey. Patrick ouviu a voz surpresa que o chamava. — Não reconhece mais
os velhos amigos?
Patrick andava pela praça Piccadilly, tendo os pensamentos tão profundos, que
mal se dera conta de quem passava junto a si. Vinha do escritório dos advogados que
cuidavam dos papéis do casamento, fora dizer-lhes que Verônica estava adoentada e não
poderia comparecer naquele dia para assinar o que era necessário. Tencionava tentar
sua sorte com ela primeiro antes de divulgar o rompimento do compromisso.
Passara a noite em claro, e decidiu que era um perfeito idiota. Deixara-se levar
pelo ciúme, e o preço seria perder o grande amor de sua vida. No entanto, ainda havia
uma tênue esperança de reconquistá-la, embora as dúvidas continuassem a mortificá-lo.
Quem o chamara na praça era sir Charles, e agora Patrick o encarava, ainda um
tanto absorto.
— O que houve, meu amigo? Parece mais estar prestes a ir a um funeral do que a
um casamento!
— Foi Verônica... Eu a perdi...

Projeto Revisoras 100


Sombras da Paixão – Paula Marshall CH n. 185

— Perdeu?! O que quer dizer com isso, homem? Vai se casar em uma semana!
— Fui um grande cretino, Marchingham. Achei que ela pudesse estar apaixonada
por Talgarth. Pensei que Verônica fosse se casar comigo apenas por causa da criança.
Sabe que ela está esperando um filho, não? Embora ninguém mais saiba... E eu me
deixei levar pelo ciúme.
— Talgarth... — Charles repetiu, ainda tentando entender o que se passava. —
Passou por sua cabeça que Verônica estivesse apaixonada por Talgarth? Deve estar
louco, Ramsey!
— Eu ouvi alguém dizer algum dia, não me lembro onde nem quando, que Talgarth
se casara com a irmã errada. Não dei maior importância, mas lady Talgarth me procurou
e me pediu para que falasse com Verônica, para que ela deixasse seu marido em paz.
Mary disse também que Verônica já tentara tirá-lo dela antes de se casarem. Parecia
estar certa de que Verônica se interessara nele de novo.
— E você acreditou nesse absurdo? Como pôde?! Ninguém contou-lhe a verdade?
Nem mesmo Verônica?
— Não, ninguém me contou nada. E o que eu poderia concluir se, ao chegar à
mansão de minha tia, encontrei Verônica e Talgarth numa posição, digamos...
comprometedora?
— Ah, meu Deus, não outra vez! — Charles murmurou, respirando fundo. — Pobre
Verônica! Aquela irmã dela merecia ser mandada em degredado para a África, com
Talgarth junto! Verônica parece jamais estar a salvo quando aquele biltre está por perto.
E, pelo amor de Deus, Ramsey, está mais do que na hora de alguém esclarecer o que
realmente houve. Aposto que não quis dar ouvidos a Verônica depois de tê-la visto com
Talgarth, não? Ande, venha comigo.
E Charles tomou Patrick pelo braço, levando-o até um clube masculino das
imediações, do qual era sócio fazia muitos anos.
Num aposento discreto, logo depois da entrada, fez com que Patrick se sentasse
diante da lareira e voltou-se para trancar a porta, a fim de que tivessem mais privacidade.
— Não sei ao certo o que anda pensando, Ramsey, já que não conhece os fatos
sobre Verônica e aqueles dois indecentes aos quais ela tem que chamar de parentes.
Mas vou contar-lhe tudo.
Com seu modo direto e simples, Charles expôs a Patrick toda a história de
Verônica.
— Isso tudo aconteceu quando você estava na Espanha, suponho. Foi o escândalo
da época e continuou sendo lembrado por muitos anos ainda, Ramsey. E arruinou
Verônica, pois os mexeriqueiros da sociedade espalharam aos quatro ventos que Harry
tinha se deitado com as duas irmãs e escolhido a melhor delas na cama. E agora você
sabe que isso não é verdade, meu amigo.
Charles olhava-o de modo firme, duro.
— Acabou de arruiná-la, sabia? Justo Verônica, uma garota maravilhosa... Aposto
que era virgem quando aceitou deitar-se com você. Não me importei com isso, achando
que seria um cavalheiro e a desposaria. Acreditei que não seria como aquele canalha que
se casou com a irmã dela. O infeliz, depois de fazer Verônica passar a maior vergonha de
sua vida, pois fugiu para se casar com Mary, ainda voltou para estragar a única chance
que Verônica poderia ter de ser feliz... Harry nunca prestou. Sabia que ele tentou estuprar
Verônica quando eram noivos?

Projeto Revisoras 101


Sombras da Paixão – Paula Marshall CH n. 185

Patrick sentia um aperto enorme no peito diante daquelas revelações. Ficou


arrasado por ter desconfiado de Verônica e sentia uma raiva imensa crescer contra
Talgarth.
Charles prosseguia, satisfeito por poder trazer à razão o homem que tivera a sorte
de possuir Verônica e depois a perdera, por ser tão néscio.
— Tenho mais a lhe dizer, meu caro: quase um ano depois de deixá-la, Talgarth
voltou a Marchingham Place. Na época, Serena estava grávida, e Verônica era sua dama
de companhia. Como Serena não estivesse presente no momento, Harry atacou Verônica
mais uma vez, mas foi detido pelo mordomo, que teve de esmurrá-lo para conter seu furor
sexual. Corri a tempo de presenciar a cena e de ver o infeliz murmurar que arrependia-se
de ter fugido com Mary, porque sempre desejara Verônica. Ele dizia que Mary era uma
idiota, que estava sempre grávida, que não tinha nada na cabeça, e queixava-se dos
credores que começavam a bater em sua porta. E, quando o pressionei, acabou
revelando que fugira com Mary apenas porque ela concordara em se deitar com ele
depois que Verônica havia se recusado a fazê-lo.
O semblante de Patrick mostrava todas as cores, à medida que ouvia Charles.
— Como Mary tivesse engravidado, Harry vira-se obrigado a fugir em sua
companhia, mas ela sofrera um aborto depois, e ele começou então a arrepender-se. Mas
saiba, Ramsey, que Verônica lutou com todas as suas forças naquela ocasião para evitar
que Harry a possuísse ali mesmo, como já fizera antes. E eu, para preservar seu nome e
poupá-la de outro escândalo, nunca revelei nada a ninguém, pedindo absoluto silêncio ao
mordomo. Ninguém jamais soube, nem mesmo Serena. Aliás, muito menos Serena. E,
pelo que sei, Verônica nunca tocou nesse assunto, tentando, talvez, esquecer.
Charles fez uma pausa, notando que o que dizia causava um profundo impacto em
Patrick. Depois, retomando seu tom sério e compenetrado, continuou:
— Lembro-me bem do que ela disse assim que Talgarth se foi. Verônica se deu
conta de que fora noiva de um idiota e que Talgarth não tinha caráter.
Patrick suspirou e murmurou, cheio de ódio:
— Ele tentou mais uma vez.
— O que está me dizendo?! Então, o infeliz voltou a atacá-la, ainda mais porque
agora Verônica estava exuberante, não? Deve ter ficado ainda mais arrependido por ter
se casado com Mary, que, pobrezinha, nada mais é do que um trapo hoje em dia.
Talgarth se esquece de que ela só está nesse estado por sua culpa!
Patrick não sabia qual de seus sentimentos o atormentava mais: ira pelo que
Talgarth e Mary haviam feito contra Verônica, tanto no passado quanto agora, ou
vergonha de si mesmo por ter duvidado da dignidade dela.
— A única coisa boa em tudo isso, Charles, é que, se Mary não tivesse vindo até
mim com suas mentiras, eu não teria ido procurar por Verônica, e Talgarth teria
conseguido o que queria com ela. E isso faz meu sangue ferver!
— Agora entende por que fiquei tão feliz quando vi vocês dois juntos, meu amigo?
— Charles percebeu que Patrick voltava a ser o homem de bom senso que sempre fora.
— Vai procurá-la, não vai?
— Se ela me aceitar de volta... Não tenho certeza do amor de Verônica por mim,
em especial agora. O que fiz foi imperdoável.
— Patrick, comece a prestar mais atenção a Verônica. Ela é a melhor mulher do
mundo! Eu mesmo daria qualquer coisa para tê-la como esposa, embora jamais tenha
Projeto Revisoras 102
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deixado que percebesse tal coisa. Verônica o ama, Ramsey! O pior cego é aquele que
não quer ver! Minha prima tinha olhos apenas para você em Marchingham Place, seu
rosto se iluminava quando o via por perto! Eu tinha até receio de que Serena percebesse,
mas ela é cega também. Siga meu conselho. Procure por Verônica e peça-lhe que volte
para você. Charles falava de um modo tão natural, em sua constante simplicidade, que
Patrick sentiu-se animar.
— Acha mesmo que ela me aceitaria de volta? Crê que Verônica me ama?
— É claro que sim! Verônica vai perdoá-lo, com certeza. É uma garota muito
sensata.
— Pois é isso o que vou fazer, Charles! Minha tia disse que Verônica foi para
Richmond, hospedar-se com Mabbs e uma amiga.
— Você pensa demais, Ramsey. Verônica também. Confie em seu coração! Eu
mesmo devia ter confiado mais no meu. E, mais uma coisa: diga a ela que a ama.
Sempre. As mulheres gostam disso e, no seu caso, é a mais pura verdade, ou não estaria
tão desesperado por tê-la perdido.
Patrick apertou-lhe a mão, sorrindo, certo de que aquele homem seria seu amigo
para sempre. Depois, quase correndo, afastou-se, na intenção imediata de ir até Verônica
e pedir-lhe perdão.
Ao passar por sua casa, Patrick teve uma surpresa. Mary Talgarth o aguardava
mais uma vez. Respirou fundo, já que não tinha o menor interesse em falar com aquela
mulher, mas decidiu saber o que a levara até ali.
Mary se levantou assim que o viu entrar no escritório. Parecia mais fraca e abatida
e, quando ergueu um pouco os braços diante de si, Patrick notou que havia marcas neles.
Engoliu em seco, achando que fizera bem em não se recusar a vê-la.
— Como está? —cumprimentou-a, frio.
Mas Mary dispensou as saudações e foi direto ao assunto:
— Vim para dizer-lhe que menti ontem, sobre Verônica.
— Eu sei. E foi uma maldade muito grande o que fez.
— Não sabe nada sobre mim, senhor.
— Mas nada ficará melhor se tentar arruinar Verônica. Ela pretendia ajudá-la,
aliviar seus tormentos e, no entanto, fez o que fez.
— Enganei minha irmã um dia, sir Ramsey, e não tenho tido um único momento de
felicidade desde então. Foi tudo um erro, desde o princípio. E, quando vi Verônica e o
senhor, um casal tão elegante, tão cheio de alegria, e comparei sua vida à minha, que é
tão miserável, não consegui controlar a inveja. Estou arrependida, mas sei que nem o
senhor nem Verônica jamais me perdoarão. Serena me avisou sobre isso...
Mary não tivera intenção de dizer o nome da prima, viu a expressão de Patrick
mudar e acrescentou, receosa:
— Eu não devia ter dito isso. Por favor, não conte nada...
— Não há necessidade de falar mais nada, lady Talgarth. Volte para sua casa e
tente descansar. Mandarei meu cocheiro conduzi-la. E quero lhe pedir algo: reze por mim,
senhora, porque estou prestes a sair daqui e procurar sua irmã para pedir-lhe perdão.
Mary fitou-o por instantes.
— Sabe que ainda a odeio, não?
Projeto Revisoras 103
Sombras da Paixão – Paula Marshall CH n. 185

— Sei, sim.
— Se eu não tivesse agido errado com Harry, poderia ter esperado e encontrado
alguém tão gentil quanto o senhor para me casar.
Patrick a encarou por segundos, depois murmurou:
— Não sou um homem devoto, nem Mesmo sei rezar, mas tentarei fazer uma
prece pela senhora.
Patrick abriu a porta e, com um gesto elegante, apontou a saída para Mary. Sua
mente, agora, não conseguia pensar em mais nada, em mais ninguém que não fosse
Verônica.
Mabbs não se surpreendeu quando viu, pela janela, o homem elegante e bem
vestido que descia da carruagem diante da casa de sua amiga. Notou que tratava-se de
um rapaz de muito boa aparência, mas que trazia no rosto e nos olhos, em especial,
marcas de cansaço e tristeza.
"Bom sinal!"
— Meu nome é Patrick Ramsey, senhora. E vim porque preciso falar com a Srta.
Verônica Trensome.
— Ela não se encontra aqui — Mabbs explicou, com um sorriso amável. — Meu
nome é Eleanor Mabbs, como suponho que deva saber. Verônica achou que precisava se
exercitar um pouco e saiu para caminhar.
Patrick assentiu, um tanto decepcionado.
— Verônica está bem?
— Tanto quanto possível, senhor.
— Bem, deve saber que eu e ela... estamos separados. Espero que isso não a
influencie contra minha pessoa. Sei que a magoei demais, mas estava enganado,
acredite. E vim para tentar desfazer o erro que cometi ao deixar que Verônica me
abandonasse. Eu... amo Verônica demais.
Patrick mal acreditava que tivesse conseguido verbalizar o que lhe ia no íntimo. No
entanto, precisava ainda declarar-se a Verônica.
— Entendo... — Mabbs permanecia neutra. — Não vou influenciá-la, senhor. De
forma alguma.
— Ótimo. Tem ideia de quanto tempo vai demorar para voltar?
— Verônica gosta muito de andar. Mas espere, se quiser. — Apontou para uma
poltrona próxima.
— Não, não, obrigado. Deve saber para onde foi. Estou com minha carruagem,
posso encontrá-la em alguns minutos. Quero falar com ela, e tenho urgência!
Mabbs compreendeu a alusão, embora estivesse um tanto surpresa com ela.
Patrick estava sofrendo e merecia tal sofrimento, mas merecia também uma ajuda.
Mabbs piscou, contente, e indicou a ele a direção a seguir.

CAPÍTULO XXVII

Projeto Revisoras 104


Sombras da Paixão – Paula Marshall CH n. 185

O ruído das rodas de uma carruagem e dos cascos dos cavalos sobre as pedras
da estrada chamaram a atenção de Verônica, que se voltou um pouco para ver quem se
aproximava. Sorriu, surpresa e feliz ao reconhecer o veículo, que avançou mais rápido e
parou próximo a uma árvore. Patrick saltou e correu a seu encontro.
— Você está bem, Verônica? Andar sozinha não é perigoso?
— Não. Tudo aqui é tão calmo...
Ele olhou ao redor e assentiu. Parecia tenso, como se estivesse a ponto de dizer
algo, mas se detivesse, receoso. Até que, encarando-a de novo, começou:
— Preciso falar com você ou vou explodir. Não me mande embora, por favor.
— Eu não faria tal coisa. — Por mais que se ressentisse do que Patrick lhe dissera
na véspera, o simples fato de vê-lo ali fora suficiente para assegurar-lhe, mais um vez, o
quanto o amava.
Patrick voltou-se para a carruagem, onde o cocheiro aguardava, paciente, e
ordenou:
— No caminho para cá passamos por uma estalagem. Volte até lá e espere por
nós. Não sei quanto vamos demorar, mas o encontraremos lá, de qualquer modo.
Sem pestanejar, o criado assentiu e manobrou os cavalos para que dessem meia-
volta. Logo em seguida, Verônica recomeçou a andar, e Patrick acompanhou-a quase
sem sentir.
— Vamos continuar nossa conversa de ontem de . onde paramos ou devo supor
que tem novas ideias a meu respeito, sir?
— Vim para conversarmos, Verônica. Para esclarecermos o que houve e para
muito mais também. Quero que saiba que estive com meus advogados esta manhã. Disse
a eles que você estava indisposta e que não poderia assinar os papéis para nosso
casamento. E também que iria fazê-lo comigo, mais tarde... Verônica, achei melhor agir
assim porque cheguei à conclusão de que fui um idiota por não tê-la ouvido, por ter du-
vidado de você, e jurei que a procuraria para implorar seu perdão, embora saiba que sou
merecedor de qualquer coisa que faça contra mim. Mereço até seu desprezo, minha
querida, mas espero sinceramente que não me queira mal.
— Não o quero mal, Patrick...
Mas ele não a deixou prosseguir, tão ansioso estava em explicar-lhe tudo.
— Quando estava voltando do escritório dos advogados, encontrei Charles
Marchingham e ele me contou toda a verdade sobre você, Mary e Harry. Agora sei de
tudo o que ocorreu dez anos atrás. Pode imaginar como me senti quando soube o que
aquele crápula fez a você?! Será que, um dia, poderá me perdoar por ter achado que
estava interessada naquele infeliz? Meu ciúme acabou por me cegar, Verônica. Poderia
voltar a confiar em mim?
Verônica parara de caminhar, e Patrick a imitara. Quando ela se virou para vê-lo,
seus olhos estavam marejados, e isso provocou um aperto dolorido no peito dele.
— Verônica...
— Está sendo sincero, milorde? Falou com os advogados arranjando um desculpa
que nos desse tempo para nos entender? E fez isso antes que Charles lhe contasse
sobre meu passado?
— Eu não mentiria para você, minha querida. Lembrei de sua coragem, sua
sinceridade, e, em como me deixei cegar pelo ciúme, como Otelo, do qual sempre ri por
Projeto Revisoras 105
Sombras da Paixão – Paula Marshall CH n. 185

não entender o quanto ele adorava sua mulher.


Verônica sentia o coração bater forte. As mãos de Patrick buscaram as suas, e ela
deixou que as segurasse, olhando com carinho para as íris cinzentas que tanto amava.
— Devia ter lhe dito, desde o princípio, o que houve entre mim e Harry, Patrick.
Mas não queria que nada atrapalhasse nossa felicidade. Achei que meu passado estava
morto e enterrado, porém, estava enganada. E, quanto a você, agora sei por que reagiu
daquela forma. Entendo tudo o que sente e faz, meu querido. Sua tia me escreveu uma
carta e entregou-a a mim antes de minha partida. Ela dizia que...
— Antes que prossiga, quero que saiba que te amo. Acho que a amei desde o dia
em que desceu as escadas de Marchingham Place daquele seu modo, tão... tão vivo, tão
natural... E fazer amor com você foi o ponto máximo de toda a alegria que tenho quando
estou a seu lado, meu amor. Quero que entenda que te amo muito. E que não quero me
casar apenas porque vai me dar um filho, mas também por isso. Acredita em mim?
— Com todo meu coração, meu querido! E, depois do que soube através da carta
de sua tia, fiquei imaginando o quanto sofreu e o quanto eu poderia estar fazendo com
que sofresse, com minha rejeição. Não, Patrick, jamais o rejeitaria! Jamais! Você é tudo
para mim!
Patrick enlaçou-a e deu-lhe um beijo, no qual havia paixão, ternura, amor, volúpia
e, acima de tudo, o ponto de final para tanto sofrimento.
— Precisamos voltar, querido, ou logo Mabbs irá achar que fugimos juntos.
Patrick riu, abraçando-a de novo, satisfeito por ter conseguido o perdão que viera
pedir.
— Pois eu poderia passar o resto do dia aqui com você. E sabe de uma coisa?
Esta manhã decidi que iremos à Escócia, como você queria, e, quem sabe, poderemos
até construir nosso futuro por lá. Já fui soldado, cumpri meu dever, e agora devo cuidar
dos criados de Innisholme. Não posso deixar que sejam demitidos e deixados à própria
sorte só porque um bando de ovelhas vai ser criado em minha propriedade...
Verônica não poderia estar mais feliz.
— Vamos à Escócia — dizia ele, entre os beijos. — Mandarei recolocar aquele
quadro na parede, em lugar de destaque, pois, se eu tiver de suportar a presença de sir
Ian só porque não tenho outra maneira de rever meus irmãos, enfrentarei tal
inconveniência sem reclamar...
Agora estavam aptos a seguirem seu destino, lado a lado, enfrentando sombras e
cicatrizes, porque havia em ambos uma força interior muito grande e uma vontade de
amar maior ainda.
De mãos dadas, seguiram adiante, seus passos a levá-los para a felicidade futura.
Verônica carregava em si o pequenino ser que já tanto amava. Se fosse menino, seria
batizado em Innisholme com o nome de Hugh, como seu tio, ao qual Patrick sempre
amara, como amava agora sua querida Verônica.

Projeto Revisoras 106

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