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AS VACAS LEITEIRAS

e os animais que as possuem


Eduardo Almeida Reis

AS VACAS LEITEIRAS
e os animais que as possuem

3ª edição revista e ampliada


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(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Reis, Eduardo Almeida


Asvacas leiteiras e os animais que as possuem / Eduardo AlmeidaReis. — 3ªed. rev. e ampl. —
São Paulo: Nobel, 1998.

ISBN 85-213-0987-2

1. Gado leiteiro — Alimentação 2. Gado leiteiro — Criação 3. Leite — Produção 4. Pastagens


I. Título.

97-4827 CDD-637.1
636.2142

Índicesparacatálogo sistemático:
1. Leite: Produção : Ciências agrícolas 637.1
2. Produção de leite : Ciênciasagrícolas 637.1
3. Vacas leiteiras: Criação 636.2142

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122-130.
Impresso no Brasil / Printed in Brazil
Sumário

Notada3ªedição,6
Introdução,7
Afazendaleiteira,14
Sede,piscina,estábulo,30
Seráoleiteumbomnegócio?, 58
O leite, 72
Organizaçãodaempresa,92
Sistemasdeprodução,111
Climaeproduçãoanimal,128
Bos primigenius ,143
Raças&cruzamentos,153
Osanimais queaspossuem,176
Homo sapiensL.,var.retireiro,187
No bico dolápis, 200
Fazendamodelo,212
Opulodo gato,220
Comes& bebes— naconjuntura, 236
Notasmedicinais,249
Aordemdoburro,262
Glossário,271
N ota3ª daedição
É depraxedizer-sequetodanovaediçãofoi“revistaeconsideravelmente
aumentada”peloautor; masestafoimesmo.E tambémfoiadaptadaàs
novascondiçõesdecriaçãoemnossasbaciasleiteiras,quemudaram
muitonosúltimos18anos.
Olivrofoiescritonofinalde1980numaIBM 82-C,deesferas, que
eu criaseramelhormáquinaelétricadomundo.E quealiestá,quieta,num
cantodoescritório,enquantoreescrevoeamplioesta3ª edição,em1998,
usandoumcomputadorIBM Aptiva486DX2,de540MB dediscorígido
e8MB dememória-RAM,compradooutrodiaejáobsoleto.
Nestaedição,comonovidade,semprequepossívelincluínofinalde
cadacapítuloumacrônica,escritanafazenda.Aocontráriodeumlivro,
queéumnegóciomais oumenospensado,esquematizado,divididopor
assuntos,compostoàdistânciadosacontecimentos,acrônicaéuma
explosãodaalmadiantedeumfatoocorridona fazenda,rabiscadaàs
pressas parabotarnocorreioeaindapegaraediçãodarevista,ou do
jornal,sempreemcimadoprazodefechamento.
Nosanostodosemquemorei nomato,escrevi paraquatrooucinco
jornais, revistas esuplementos agropecuários, geralmenteos mais
importantesdoBrasil.
Creioqueocontrasteentreostextosdascrônicaseodolivroresulta
interessante.E oleitornãodeveestranharamudançadoslocaisdeonde
as crônicas foram escritas; ao longo desses anos todos, as fazendas
foramquatro, Cantagalo,Pau D’AlhoeFloresta,noEstadodoRio,ea
CachoeiraAlegre,emMinasGerais.

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Introdução
Perguntoaomeubomamigo,leitoreventualdemanuaisagropecuários,
sejálheocorreu aidéiadeescrever umlivrinho.
Aempreitadaéfascinante.Aindaquandonãotenhasignificaçãomaior
nahistóriadaliteraturadospovosdoOcidente,nemnosdoOriente,
costumaserdamaiorimportânciaparaquemficasentadodiantedeum
computador,horasafio,feitobobo,persuadidodequepodeimpedir que
avacaváparaoterrenosáfaroeagreste,quesódáurzes, também
conhecidocomourzaloubrejo.
Alguns escribas,maisdesinibidos,pensamtercondiçõesdesalvara
pátria,enãofaltamaquelesque,estimuladospelacaspaabundanteepelos
companheirosdemesadebar,estãorigorosamenteconvencidosdeque
podemconsertarahumanidade.
Pensandocompor seu livrinho,oautorjáseaborrecedevéspera,na
papelaria do bairro, quando não encontra um pacotedepapel A-4
Laserwork,porqueacreditapiamentequesuaimpressoraajatodetinta
requeraqueletipodepapel,paraapresentarserviçoàalgumacoisaescrita
poraquelejumento.
Atéoseditores, àsvezes, afetamdemonstrar certointeressepelo
novolivrinho,interessequedeixadeexistir quandooautoraparecena
empresalevandoapastacomosoriginais,ou mandaodisquetepelo
correio. E ocertoéque,algumasvezes, encaminhamosoriginais para

7
alturadaobraquepretendecompor.E umlivrosupimparequer
impressãodamaiorsupimpitude,pensaoautor,enquantopromete
recorrer aoAurélio,paraver setemsupimpaesupimpitude.
Comaescolhadafonteemquevaicomporsuaobra,tarefadificultada
pelosCD-ROMsquetêmaté10.000 (dezmil!)fontesdiferentes, nosso
amigovaiàlutadepoisdediscutircomamulher, partidáriadaAmerican
BoldBT,comosfilhos,quesedividiramentreasfontesEnglish 157,
DomCasualBTeImpressBT,ecoma sogra,partidáriadaModern,ela
queéumavelhainsuportável.
Fixado,finalmente,naTimesNewRoman,normal, 12,enacerteza
deque,qualquer quesejaafonteescolhida,vaisermudadapeloartista
queoperao page-maker da editora, cujos conceitos estéticos são
naturalmente diversos dos
de um produtor de leite, nosso amigo está em condições
de iniciar seu trabalho pela etapa mais complicada,
qual seja, o primeiro capítulo.
É verdade que os ficcionistas não encontram a menor
dificuldade nessa etapa. Tudo que precisam fazer é
tomar cuidado para não contar a história inteira no
primeiro capítulo, acidente literário que tem destruído
as carreiras de milhares de candidatos a romancistas.
Diferente é a situação dos autores de manuais
agropecuários, que só precisam vencer a inércia,
representada pela soma da preguiça com a falta de
imaginação. E têm pressa, porque todos reclamam o
novo livro. Parentes, amigos, conhecidos e companheiros
de trabalho perguntam sempre pelo novo livro, como
se tivessem, mesmo, a mais remota intenção de ler

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o“leitor”daeditora, geralmenteumintelectualdefundodequintal, que
sehorrorizacomasimplicidadedotextoeavulgaridadebovinadotema
escolhido.
Comamania,muitobrasileira,debotarocarroadiantedosbois,vejo
quechegueiàeditoraemeindispuscomointelectualóidedeplantão,
quandoaindanãohaviacompostooprimeirocapítulo.
Deixe-medizer comotenhofeitoparavencer ainércia. Comecei um
dosmeus livrinhosapresentandoagalinha:AFINAL,O QUE É UMA
GALINHA?egosteidafórmula,tantoassimquefuitratandodeapresentar
umzebuíno,quandoescrevioZEBU PARAPRINCIPIANTES.E agora:
seráqueapresentoavacaleiteira?
Seriamuitofácil dizer quesetratadefêmeadaordemArtiodactyla,
subordemRuminantia, infra-ordemPecora, superfamíliaBovideae
continuarporaí, falandodegêneroseespécies,masdevemosconvir em
queonegócionãotemgrandeimportância,anãoser nostratadosde
zoologia.Todososleitoresjátêmproblemassuficientescomsuaspróprias
famíliasparapreocuparem-secomafamíliadavacaleiteira.
J unte-seofatodequeessenegóciodefalar sobreafamíliadavaca
medáumtrabalhotremendo, porqueprecisocopiar osautoresmais
miudamenteinformadosdosmistériosdasordens,dosgênerosedas
espécies,semquesejaproveitosoamim, aoleitor ou àvaca.
Nocasodestenossolivrinho,noqualsecuidadasvacasleiteirasedos
animaisqueaspossuem,andeiumbompardemesesdepapelcomprado,
semsabercomoiniciar otrabalho.
Quis afortunaqueeu passasseavista,outrodia,numtextopoético
doDr.J oséRibamarFerreira,paraencontrarainspiraçãoquemefaltava.
Ribamar, como sabeo leitor, escrevesob o pseudônimo deFerreira
Gullareégeralmenteconsideradoumrobustíssimotalento.Naopinião
meditadada4ªcapadeseu livroTodaPoesia,Gullaréapresentadocomo
“umdosmais importantesbrasileirosdetodosostempos”;nemmais,
nemmenos...
Masapoesia,comosabeoleitor,requerinfelizmentenomespoéticos

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—Neruda,Pessoa,Drummond,Renault,Vinícius,Bandeira,Bilac—
esuaconcessãomáxima,emquestõesonomásticasoupatronímicas,
deveser o Dr. J oão Cabral deMello Neto.
É forçosoreconhecerqueJ oséRibamarFerreira,nomequeassentaria
feitoumaluvanumgerentedebanco,numauxiliardealmoxarifeounum
chofer deAssembléiaLegislativa,nãocongemina,sequer conjumina
comovateconsiderado,pelainsuspeita4ªcapadeseulivro,umdosmais
importantesbrasileirosdetodosostempos.
Foi,portanto,comopseudônimoFerreiraGullarqueoesguiopatrício
escreveu:

Vai o animal no campo; ele éo campo como o capim, que éo campo sedando para que haja
sempre boi e campo; que campo e boi é o boi andar no campo e comer do sempre novo chão.
Vai o boi, árvore que muge, retalho da paisagem em caminho. Deita-se o boi, e rumina, e olha
a erva a crescer em redor de seu corpo, que cresce para a erva. Levanta-se o boi, é o campo que
se ergue em suas patas para andar sobre o seu dorso. E cada fato é já a fabricação de flores que
seerguerão dopó dos ossos que achuvalavará, quando for o tempo.

Assimmesmo,meubomleitor:comaquelavírguladepoisde“achuva
lavará”eo“quandoforotempo”cuidadosamentecompostonalinha
seguinte.
Eraainspiraçãoquemefaltavaparacomeçarolivrinho.
Senãoforpedir demais,rogo-lheofavormuitoespecialdevoltar um
poucoatrás,pararelerotextodovatemaranhense,doqual emerge,com
meridianaclareza,a explicaçãoparatodososproblemasdapecuária
leiteira, nesta República Federativa doBrasil, quecorreo risco deser
transformadaemBrasil,puroesimples,emprojetodeleiapresentadopor
outroJ oséRibamar, tambémmaranhense,queatendeempolíticapela
alcunhadeSarney.
Não importa que opoeta faleem boi, quando oassunto denossa
preocupaçãoéavaca;éirrelevanteofatodeir oboiaocampo,quando
muitoscriadoresdevacasleiteirasnãodeixamqueseugadotenhaacesso
aospastos;ésecundárioopormenor deovateinsistir naerva,quando
osagrostologistas gostamdeespecificar seestamosdiantedeuma

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gramínea,deumaleguminosaoumesmodeumaciperácea,nospastos
ondeabundaatiririca.
O quemuito meimpressionou no texto deGullar, ejá metinha
impressionadonapecuárialeiteira,éalgoqueambos,textoepecuária,
têmemcomum:ninguémentende.
Masnãohádeser aininteligibilidadequenosimpedirádeestudara
pecuárialeiteira,nestepaísgrandeebobo*.Confusa,hermética,amalucada,
desorientada,esbulhada,quemsabeseela, pecuárialeiteira,nãome
transformanumbrasileiroimportantíssimo,aindaquena4ªcapadeste
livrinho?
Cuidemos,portanto,dasvacasleiteirasedosanimaisqueaspossuem,
com as desculpas que devo aoleitor pelo fato dechamá-lo devocê, ao
correr dapena. Estou certodequeasminhas cãsjámepermitemrecorrer
a esse tratamento pouco formal, quando medirijo aum leitor. Sei que
vocêestá fartodesaber queofemininodecãoécachorra,ou cadela, mas
não mecreia um idiota completo pelo só fato deter dito que as cãs me
permitemchamá-lodevocênestelivro, mesmoporqueseria incapazde
fazer umacachorradacomalguémqueinvestiu umapartedesuapoupança
naaquisiçãodestemanual.
As cãs a quemerefiro são os meus cabelos brancos. E os tenho às
mãos-cheias, depois de tentar viver da produção deleite neste país. E
viverrelativamentebem,tanto assimquecostumoandarcalçado,consegui
formar três filhas emepermito o luxo deum charutinho, vez por outra.
Vamos ao livro, meu bom amigo. Ninguém entendea pecuária leiteira
no Brasil; nem por isso, ela deixa deser divertidíssima. Vamos falar de
suafazendinha, dosseus empregados,dosseusgadosedesuacooperativa.
Presumo quevocêesteja ansioso para proceder à mungidura desuas
vaquinhas. E a mungidura, como vocêestá farto desaber, é o ato de
mungir, ou a porção doleite mungido, como quer o grande Aurélio.
Isso não impedeque os zootecnistas portugueses insistam em quea
mungidura “éa operação pela qual se extrai o leite àfêmea”. Assim,

*. A constatação, queperfilhei, éde Octávio Thyrso de Andrade.

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pensamevitar quealguémseestabeleça,emPortugal, comosombrio
propósito de extrair o leiteaos machos.
Serão castradores, machistas, discriminadores? Não sei. O tema éda
competência das feministas eeu não passo demodesto produtor deleite,
com o hábito de escovar os dentes pelo menos três vezes por dia.
Devo começar um outro capítulo para falar um pouco domuito que
precisamos conversar. Faz um calor terrível aqui na sala onde estou
tentando escrever este livro. Queira, portanto, renovar o gelo do seu
uisquinho, que também vou cuidar do meu. Daqui a pouco nos
encontramos,OK?

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Riscos de julho
F olha de S.Paulo, julho de 1991.

Além do frio de rachar os ossos e do poeirão das estradas, julho é mês de alto risco aqui na
roça. Risco de geada, de fogo nos pastos e de férias dos namorados das meninas.
Hóspedes normais já são uma praga nas fazendas mineiras. Hóspedes com regalias, como
os candidatos a genros, são rigorosamente insuportáveis,
É ovinho mexido no café da manhã, suquinho de lima-da-pérsia, presuntinho, pãozinho
quente — tudo à disposição de Suas Excelências.
Depois, é preciso mandar arrear os cavalos para Suas Excelências. Nunca vi genro, ou
candidato ao posto, que fizesse um passeio a cavalo sem perder metade do arreamento.
Arreios novos, dos melhores fabricantes, perdem loros, estribos, barrigueiras, peitorais —
perdem quase tudo pelo caminho.
Péssimos cavaleiros, que só sabem andar a galope, os genros sãoincaíveis, com licença do
ministro Magri. Um tombinho, só para desconjuntar o marreco pelo prazo de 15 dias, jamais
acontece com Suas Excelências. Só pode ser proteção divina.
Numa região pobre como a nossa, os candidatos a genros não têm Mercedes, BMWs ou
Mitsubishis. Mas podem ter Monzas, Santanas e Veronas, que ficam guardadinhos na garagem
da fazenda, enquanto o carro do futuro sogro, um Opala 79, vai torrar ao sol.
E o curioso da estória é que os donos dos Monzas, dos Santanas e dos Veronas adoram
pilotar o velho Opalão, sob o argumento de que as estradas estão muito esburacadas para seus
carrinhos.
Num país grande e bobo, que deve ter 18 mil leis florestais, faz muita falta um decreto-lei,
uma Medida Provisória, um dispositivo constitucional que proíba o genro de passear na fazenda.
A agropecuária tupiniquim, penhorada, muito agradeceria.

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A FAZENDA
LEITEIRA

Presumo que o meu bom amigo, cheio das conversas do


capítulo anterior e reconfortado pelo uisquinho mamado com
muito gelo, esteja querendo perguntar: “Afinal, como devo
instalar minha fazenda leiteira?”
O primeiro conselho que lhe posso dar, e você vai se fartar
de receber conselhos neste livro, é o seguinte: procure
estabelecer-se numa bacia leiteira. Tenho visto diversas
tentativas de exploração leiteira fora das chamadas “bacias”
e quase todas deram com os burros n’água.
Transportar o leite por conta própria está inteiramente
fora de cogitação, a não ser que sua fazenda fique nas
imediações da usina compradora. Um pequeno caminhão
diesel, com o inevitável motorista, é capaz de lhe dar mais
aborrecimentos e prejuízos, do que toda uma fazenda. Por-
tanto, corte essa de pensar que você pode transportar o leite
entre a fazenda ea plataforma da usina, missão normalmente
confiada a uma instituição muito singular nos quadros gerais
da nação, chamada caminhão do leite.
Esse veículo, que tanto pode pertencer à usina como ser
propriedade de um particular que trabalha sob Portanto,
não creio que você deva meter-se na aventura de produzir
queijos industrialmente, se o seu sonho é a produção de leite.

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contrato, é um negócio realmente s ui generis , porque
consegue circular em estradas projetadas para o tráfego de
burros de carga (em fila indiana) e é pilotado por um sujeito
sempre disposto a sair de casa às duas horas da manhã,
debaixo de qualquer tempo, 365 dias por ano.
Evidentemente, se o caminhão fosse propriedade do meu
prezado leitor, o chofer da fazenda tiraria férias, teria des-
canso semanal remunerado, horas extras, arrancaria dentes
de siso, operaria as hemorróidas e guardaria todos os dias
santificados, noves fora os feriados. Nessas emergências, que
devem passar de 120 dias por ano, é fácil adivinhar quem vai
tomar o lugar do motorista ao volante do caminhão, às três da
matina, no dia de Natal.
A fabricação de queijos, alternativa dos que se estabe-
lecem fora das bacias leiteiras, também seria muito bonita, se
examinada pela óptica dos fabricantes que foram bem-
sucedidos. Mas é preciso pensar nas milhares de fábricas
malsucedidas, porque a tirotecnia, antes de ser uma ciência,
tem muita coisa de arte. E os artistas devem cuidar de outros
assuntos, quenão a fabricação ea comercialização dequeijos.
J á sei que o meu bom leitor, inteligentíssimo, deve estar
farto de saber que a tirotecnia é a técnica da fabricação de
queijos. Ainda assim, julguei de bom alvitre dar a explicação,
uma vez que a palavra não é encontrada no Aulete, no
Laudelino nem no Aurélio. Encontra-se tiromancia, adivi-
nhação por meio do queijo. Não posso exigir que o leitor tenha
aptidões de tiromante para adivinhar que tirotecnia, antes de
ser uma técnica, é uma arte — e quem o diz são os melhores
tirotécnicos.

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Mesmo porque, para produzir queijos, é muito mais inteligente,
mais simples e mais barato comprar o leite de terceiros.
Como também foi exaustivamente demonstrado que você
não se deve meter a transportar o leite por largas distân-
cias, a solução é adquirir propriedade rural numa bacia
leiteira, que pode ter linhas de leite, usinas compradoras de
leite, cooperativas de laticínios — às vezes pode ter, até, al-
guns retireiros dando sopa.
Como identificar uma bacia leiteira? Nos mapas, você
encontra divisões físicas, políticas, pedológicas (epa! que essa
é dose: pedologia = edafologia, ciência que estuda os solos),
encontra diversas divisões mas não acha uma bacia leiteira,
das muitas que existem em nosso país.
Será que uma bacia leiteira se caracteriza pela existência
de cooperativas e de indústrias compradoras de leite? Não
necessariamente. Será que se caracteriza pela existência de
comércio organizado de vacas leiteiras? Também não. Será
que se caracteriza pela existência de mão-de-obra especiali-
zada? Infelizmente não.
Seria, então, chamada de bacia leiteira pelo fato de
apresentar condições ótimas para a produção comercial de
leite? Não e não! Então, seria porque a região tem diversos
médicos-veterinários especializados em vacas leiteiras?
NÃO! É porque tem nutricionistas? Não. É porque tem far-
tura de rações balanceadas e medicamentos? Outra vez, não!
É porque está próxima dos mercados consumidores? Nada
disso.
Afinal, que diabo caracteriza uma bacia leiteira? A
explicação é fácil: é uma região que não se presta para
nenhuma outra forma de exploração agropecuária.
Fosse boa para o gado de corte e todos os produtores só
trabalhariam com o gado decorte; fosse boa para a agricultura
e toda gente iria agricultar; fosse boa para o reflorestamento
e ninguém deixaria de reflorestar. Assim também com a

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olericultura: logo teríamos uma invasão de produtores de
legumes.
Mas quando uma região não dá para o gado de corte, nem
para café, cana, laranja, soja, feijão, eucalipto, cenouras e
pimentões, é quase certo que dela emergirá pujante bacia
leiteira, cheia de revendedores de remédios e rações balan-
ceadas, de veterinários que se dizem especializados em gado
leiteiro e de usinas compradoras do produto lácteo.
Não falei da abundância de retireiros, porque os bons
profissionais da mungidura estão cada vez mais raros e menos
profissionais. Mas esse é um problema a ser tratado mais
adiante, em seu devido capítulo. Por ora, cuidamos da bacia
leiteira, que tanto pode ser muito próxima dos centros
consumidores, como pode ser bem distante. Pouco importa.
É quase certo que o leite do Rio vá ser vendido em Goiás,
enquanto o leite de São Paulo é vendido em Minas, o de Minas
em Santa Catarina e por aí fora. Portanto, o fator “distância”
acaba se tornando irrelevante, diante da bagunça que vai
pela economia tupiniquim.
Houve tempo em que os currais eram instalados dentro
das cidades, com todos os inconvenientes imagináveis, o menor
dos quais era a espantosa propensão para a tuberculose das
vacas presas em locais imundos, sem sol e sem qualquer tipo
de exercício.
Mais tarde, a falta de estradas de rodagem limitava as
bacias leiteiras às proximidades das ferrovias. E o espetáculo
do leite sendo transportado em pedras geladas, nos vagões
infectos de uma ferrovia qualquer, era dedesanimar qualquer
cristão, sem prejuízo de também desanimar budistas,
maometanos, judeus, agnósticos e ateus.
Nesse tempo, muitas bacias leiteiras viram-se obrigadas a
transformar em queijo todo o leite que produziam. Queijo que
era transportado em jacás e em lombo deburro, por distâncias
enormes.

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Recentemente, a técnica do transporteem carretas isotérmicas
e as melhores condições das estradas federais e estaduais
têm permitido o transporte do leite in natura desde as bacias
leiteiras até os centros de consumo. Apesar dos preços dos
combustíveis, as imensas carretas isotérmicas chegam a
transportar o leite gelado e pasteurizado por distâncias tão
absurdas como 1.000 quilômetros, ou mais.
Evidentemente, isso não parecefazer sentido para pessoas
dotadas de um mínimo de bom senso. Mas é o que se vê por
aí. E nós não estamos aqui para reformar o mundo, nem para
prejudicar os patrícios que ordenham suas vaquinhas a
centenas de quilômetros dos centros de consumo. É tudo
uma questão de ter, ou não, condições de concorrer co-
mercialmente com os produtores estabelecidos em regiões de
distâncias mais educadas.
Talvez fizesse sentido secar o leite naquelas regiões
longínquas, estocando-o sob a forma de leite em pó, para ser
reidratado nos grandes centros. Sobretudo se considerarmos
que, nessas regiões distantes, a produção é marcadamente
sazonal e tem relação estreita com as chuvas e a explosão
vegetativa das pastagens.
Entretanto, as coisas que fazem sentido não costumam ter
aplicação num país grande e bobo, em que ésempre da maior
conveniência deixar boa margem para negociações, que
acabam resultando na importação anual de milhares de
toneladas de leite em pó de países tão estimáveis como o
Canadá, a Nova Zelândia e a França.
Afinal, a instituição da mamata, na forma como deve ser
entendida, não poderia ter curso nas compras feitas à base de
30 litros do Zé, 50 litros do Adolfo, mais 30 litros do Antônio,
pela razão muito simples de que essas comprinhas, com os
respectivos vales das cooperativas, não deixam margem para
as comissões de praxe.

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Contudo, quando um patriota tem condições de fechar
importação de 18 mil toneladas (18 x 1.000 x 1.000)
de leite em pó, de um país que esteja doido para
livrar-se de seus estoques, é muitíssimo compreensível
que as comissões respectivas sejam creditadas
diretamente na conta numerada do benfeitor da pátria.
Os espanhóis chamam o produto de leche en polvo, como
que insinuando os muitos tentáculos do negócio
anualmente repetido pelas autoridades tupiniquins.
Deixamos de lado a bacia leiteira para falar de
tetas outras, de que se dependuram, vorazes, alguns
burocratas dos primeiros escalões, com o apoio
entusiasmado da indústria de laticínios, que está no
seu papel de ganhadora de dinheiro, e de certa parcela
da administração cooperativista, esquecida da
“filosofia” do negócio que dirige.
Receio que o meu bom leitor, assustado com a
tirotecnia, a pedologia e outras complicações
emergentes deste IBM, ao correr do texto, esteja
querendo contestar minha definição de bacia leiteira, com o
argumento indiscutível de que em Campinas, e noutras
regiões formidáveis, também se produz leite.
Ora, Deus meu! — não me venha com exceções, nem com
o propósito de descobrir imperfeições no livrinho que
lá vou tentando compor. Li alguma vez, em algum lugar,
que só os espíritos medíocres procuram imperfeições
nas obras de arte. Portanto, peço-lhe o obséquio de
não contestar o meu texto, mesmo porque sei que, de
medíocre, você não tem nada. Até pelo contrário, é
cidadão da melhor qualidade, cujo único defeito é
justamente a vontade de se transformar em produtor
de leite.
Console-se dessa ressalva com a notícia de que

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conheço muita gente boa, mas boa de verdade, tirando
leite neste país. Gente honesta, trabalhadora, ordeira, digna,
informada — cujo defeito maior consiste em se amarrar no
mojo de uma novilha, ou acreditar que o negócio leiteiro,
entre nós, poderá vir a conhecer melhores dias.
Anos atrás, um presidente do Banco do Brasil fez qualquer
referência desabonadora sobre os produtores rurais, o que
me levou a fazer uma comparação entre a diretoria daquele
banco e os produtores de minha região. Saiba o leitor que,
num só município do Rio de J aneiro, entre os produtores de
leite, encontrei gentemuito mais inteligente, culta, esclarecida
e bem-sucedida na vida do que entre os diretores do BB. Dei
conta da comparação num jornal, tendo o cuidado de omitir
o nome do banco, ao qual devia o equivalente ao dobro do
valor de minha fazendinha — e muitas dívidas já estavam
vencidas havia meses.
De qualquer forma, a comparação era inquestionável. E
não vai nisso nenhuma vantagem para os produtores rurais,
porque o Banco do Brasil tem tido diretorias, de 1964 para
cá, que não se distinguem da administração de uma escola de
samba, a não ser, talvez, pelo fato de trabalharem de terno e
gravata. Há exceções, é certo, que não fazem mais do que
confirmar a regra.
Por isso, se vocêestá mesmo querendo transformar-se num
produtor de leite — e parece que está, a julgar pela velocidade
com que está devorando as páginas deste livro —, não se
acanhe nem se envergonhe. E trate de arranjar uma
propriedade rural numa região que não sirva para qualquer
tipo de exploração agropecuária: Parabéns! Você estará
estabelecido numa bacia leiteira.
Viu como foi fácil encontrar? J á sei que você deve estar
preocupado, porque ainda não sabe qual deve ser o tamanho
ideal de sua fazenda. Afinal, depois de comprar o primeiro
pedaço de terra, surgiu a oportunidade de anexar o sítio de

20
um vizinho, para dobrar sua área. E já ouviu aquela con-
versa de que “terra de rumo não tem preço”.
Acho que vou ficar credor de mais um favor, dos muitos
que pretendo lhe prestar nas páginas seguintes. Não vou fa-
lar em alqueires, para não confundir sua pobre cuca, ator-
mentada por problemas que vão desde a recessão, que se
seguiu à inflação galopante, atéa onda de violência que tomou
conta de nossas cidades e que, infelizmente, está chegando
aos campos.
Sei que você vai dizer, com ar superior: “Bobagem sua,
doutor Eduardo, porque estou farto de saber que o alqueire
paulista mede 24.200 m 2 e o alqueiremineiro, ou geométrico,
48.400 m2.
Eta erudição alqueiral! Pois, então, fique sabendo que
existem alqueires mineiros, que não são necessariamente
geométricos, como também existem alqueires goianos,
fluminenses, capixabas — existem alqueires de todos os
tamanhos, para todos os gostos.
Se eu quisesse, poderia maçá-lo com alqueires de 50 x 50
braças, que têm 1,21 hectare; e poderia falar de alqueires de
1,82ha, 2,90ha e 3,02ha, que têm 79 x 79 braças. E poderia
falar de alqueires de 3,10ha, 3,63ha e 9,68ha, de 100 x 200
braças.
E o meu alarmado fazendeiro vai perguntar se existe
alqueire de 200 x 200 braças. Existe, sim: é o
alqueirão do nordeste de Minas, que tem 19,36 hectares.
Portanto, um sujeito que lhe diga que tem 200
alqueires de terra tanto pode ter 240 hectares como
também pode ter quase 4 mil hectares formados em
colonião, lá para os lados de Pedra Azul, região onde
foi descoberta aquela água-marinha gigantesca, chamada
Marta Rocha.
O número mínimo de hectares que você deve adquirir,
para iniciar uma exploração leiteira, é extremamente

21
variável, conforme o tipo de negócio que pretenda montar. Vi
fotos de uma granja leiteira de pouco mais de 20 hectares, na
Califórnia, que produzia 18 mil litros de leite.
O fazendeiro mantinha 800 vacas num pátio de terra, sem
qualquer calçamento, e comprava fora toda a ração de que
precisava: feno, concentrados, verde e silagem. Escusado é
dizer que na tal região quase não chove; caso contrário, o
lamaçal impossibilitaria a continuidade do negócio, porque
a lama anda de mãos dadas com as vacas leiteiras.
Você vai descobrir esse fato quando resolver pavimentar a
entrada de seu curral, que é onde se forma quase toda a lama
da fazenda. Logo, logo, o barro muda de lugar. Você vai lá e
pavimenta. Mas a poça de lama não se conforma e anda um
pouquinho mais, transferindo o atoleiro de local. De duas,
uma: ou você pavimenta a fazenda inteira, ou deixa a lama
quieta lá no lugar dela.
Não pense queessenegócio de pavimentar a fazenda inteira
seja licença literária; há precedentes. Um bicheiro do Rio,
muito rico, cimentou um laranjal de bons 100 hectares, na
Baixada Fluminense, deixando apenas uma rodinha de terra
para cada pé de laranja. O grande problema do fazendeiro
que lhe sucedeu, e resolveu produzir leite, era quebrar o
cimento a marretadas, para conseguir alguns metros de terra
em que pudesse plantar pastos e capineiras.
Falei de uma exploração californiana de 20 hectares, com
18 mil litros de leite por dia, mas espero que você não tenha
tomado o exemplo como sugestão. Sou meio reticente no que
respeita à experiência norte-americana em questões leiteiras,
quando se trata de sua adaptação às condições brasileiras.
É certo que, de vez em quando, vou citar os americanos,
como também vou falar dos israelenses e dos neozelandeses.
Mas peço que você atente ao fato de que sua fazenda não vai
ser montada nos Estados Unidos, em Israel ou na Nova

22
Zelândia.
Você precisa levar em conta que vai produzir leite na
República Federativa do Brasil e essa república, em questões
agropecuárias, é inteiramente diferente dos EUA, do clima
desértico de Israel e do clima temperado neozelandês. É
diferente, também, do clima tropical australiano, apesar do
que disso possam pensar alguns bocós, que vivem querendo
transferir para cá, sem qualquer verificação preliminar, toda
a tecnologia australiana.
Quem quer que examine a carta climática de De Martonne
verá que o trópico australiano é inteiramente diferente do
brasileiro, apesar das dimensões continentais dos dois países,
ambos tropicais.
Nossa meteorologia, como diz Rubens J unqueira Villela,
“não tem paralelo em nenhuma outra área tropical, nem
mesmo na África!” Isso deve servir de advertência aos que
pretendem aplicar dados climatológicos à agrozootecnia:
podem coincidir as cifras das temperaturas médias, da
quantidade de chuvas, etc., mas a distribuição, a freqüência
e os mecanismos atmosféricos costumam apresentar
diferenças essenciais, que invalidam as comparações
estatísticas.
Portanto, a experiência que vale, em termos de pecuária
leiteira, é aquela que deu certo em São Paulo, em Minas, no
Estado do Rio, no Espírito Santo ou em Catolé do Rocha, com
os Zés retireiros, os bernes e os carrapatos, os vírus e as
mazelas que a gente encontra por aqui.
Voltando ao tamanho de sua fazendinha, posso plagiar o
conselheiro Acácio, dizendo que vocêpodeencontrar melhores
condições de exploração numa área de 60 hectares do que em
fazendas de 600 hectares. Elementar, meu caro Watson.
Fazenda de 150 hectares, como a velha Pau D’Alho da família
Dutilh, em Campinas, produzindo 720 mil litros deleite/ ano,
vendendo reprodutores de alta qualidade, era organização

23
modelar no tempo em que a conheci.
Muito mais importante do que a área necessária para
instalar a fazenda é a adequação do negócio leiteiro
à área disponível. Você pode ser bem-sucedido em 100
hectares e quebrar a cara em 5.000 hectares, conforme
instale um negócio adequado aos 100 hectares ou meta
os pés pelas mãos na tal área imensa.
Sem querer insistir nos conselhos acacianos, parece óbvio
que, em igualdade de condições, uma fazenda maior é muito
melhor do que uma pequena. Mas só em condiçõespar ecidas
de clima, fertilidade do solo, distância do mercado, etc.
Vejo que escrevi, escrevi, falei uma porção de coisas e não
disseda área necessária para vocêinstalar um negócio leiteiro;
pudera: não existem regras a esse respeito. E, se não existem,
não sou eu que vou inventar, mesmo porque tenho coisa mais
importante para fazer, nos próximos capítulos, do que ficar
por aqui elucubrando sobre o número de alqueires, perdão,
hectares, que o meu ilustre
amigo deve adquirir.
A partir dos 20 metros quadrados, área geralmente
considerada mínima para instalar uma vaca em razoáveis
condições de conforto, já sei que você vai se considerar
fazendeiro, cuidando de arranjar indumentária
compatível com a nova profissão, além de sacrificar
o espaço disponível para a vaca — e logo com quê? Ora,
com a construção de um silo!
Feliz proprietário de razoáveis 500 metros quadrados, você
já pensa em construir dois silos, para prolongar a agonia
carencial em que vão viver as 30 vacas instaladas no
seu estábulo. Disse estábulo? Esquece. O recinto vai ser
apelidado de free stall, qualquer coisa como estabulação livre
em inglês, para desespero do Zé retireiro, que mal fala o
português.
punho, tentavam convencer uma vaca a subir na tal

24
Depois de ouvir dizer da lotação de nossos trens
suburbanos e do metrô de Tóquio, você acabou por se
convencer de que as leis da física são bobagens
inventadas pelos físicos. Portanto, aquele negócio
de que dois corpos não podem ocupar, ao mesmo tempo,
o mesmo lugar no espaço, é papo furado. Se é preciso botar
50 vacas num estábulo, perdão, free s tall de 300 metros
quadrados... dá-se um jeito.
Se os japoneses, com seu PIB formidável, conseguem
acomodar-se nos carros do metrô, ainda que para isso
precisem contar com as botinas dos policiais empurrando
suas bundas — não é de espantar que suas vaquinhas
também tenham de se conformar com pouco espaço e
comida escassa, na tarefa meritória de transformar
seu ilustre proprietário num autêntico produtor de
leite.
Free stall ou estábulo convencional, eu poderia
encher sua cachola de números e conselhos tão
importantes como os do prof. A. Maton, doutor em
ciências, do centro de pesquisas de Merelbeke-Gant,
que, como todo mundo ignora, fica na Bélgica. Publicado
com o título De Huisvesting Van Dieren , o livro do
pesquisador belga tem mil e um conselhos sobre
construções rurais. Contudo, acho melhor que você
visite umas quatro ou cinco fazendas, fotografe as
instalações, anote as medidas, converse com os donos
(e com os empregados!), para terminar construindo um
free s tall muito próprio, muito seu, inteiramente
diferente de tudo aquilo que viu e anotou.
J á fiz viagem de mil quilômetros para visitar uma
fazenda em que as vacas eram mungidas à mão, sobre
uma plataforma, de tal sorte que os retireiros
trabalhavam em pé. Por sorte, cheguei ao estábulo na
hora em que quatro retireiros, laços e ferrões em

25
plataforma, para permitir que eles trabalhassem em pé.
Vá em frente, meu bom amigo, e não se abespinhe com
essas considerações joviais, que não têm o menor intuito
de ofender. Se eu lhe contar que já vi um idiota, proprietário de
modestíssimos 60 hectares de pirambeiras, construir uma
bateria de silos, estábulo, currais, esterqueiras, dividir os
morros em piquetes, comprar algumas dezenas de vacas e
intitular-se “fazendeiro”, você pode pensar que é mentira. Eu
também pensaria, se não fosse o próprio idiota.
Tenho um bom amigo, proprietário de quatro hectares de
terras acidentadas, numa região de veraneio, que tem vacas,
silos, botas, jipe, caminhão e administrador! Dirá você que
quatro hectares, racionalmente explorados, são capazes de
produzir muito capim. Certo. Mas eu me esqueci de dizer que
o excelente cidadão ocupa três dos quatro hectares com uma
belíssima casa de campo, com piscinas, quadras de tênis e
gramados maravilhosos. O movimento pecuário com as botas,
os silos, o jipe, o caminhão, as vacas e o administrador está
confinado no hectare restante. E sou capaz de jurar que, se ele
contasse com a comodidade de um pátio de manobras, já teria
comprado um trator.
Trator é um negócio importante, um negócio que dás tatus
de fazenda a uma propriedade rural. Negócio de ferro,
financiado, até a década de 70, a juros convenientes. Nin-
guém penseque esses juros se destinam a estimular a pecuária
ou a produção rural; eu não disse isso. Os juros subsidiados
do tal financiamento destinam-se a proteger a muito mais do
que duvidosa.

26
Também embarquei nessa do trator: comprei um, imenso,
vermelhíssimo, com gigantescos pneus importados de
Luxemburgo... Afinal, um trator dá s tatus à fazenda, assim
como a fazenda dá s tatus ao ricaço da cidade, que procura
disfarçar sua condição deagiota, bicheiro, traficante, senhorio
ou banqueiro sob a capa simpática do fazendeiro. E fazendeiro
produtor de leite, o que é ainda mais simpático.
Não, não se ofendam os bicheiros com as companhias que
lhes arranjei no parágrafo anterior. Não tive a intenção de
ofendê-los, como também não tive a intenção de agredir uns
quatro ou cinco banqueiros meus amigos, os únicos que se
salvam na selva dos manipuladores do mercado financeiro.
Pensando bem, não devem salvar-se, mas como
são meus amigos fico procurando uma forma de dizer
que são diferentes do resto da classe.
Veja o meu bom leitor que estou falando de uma
porção de coisas que não têm a menor relação com A s
vacas leiteiras , nem com os animais que as possuem
— a não ser o fato de que todos os banqueiros que
conheço, mas todos mesmo, também são produtores de
leite. E só conseguiram sê-lo porque são banqueiros.
Quase todos montaram negócios leiteiros ruinosos
para qualquer sujeito que não seja feliz proprietário
de um enorme banco, dos chamados de varejo; bancos
de investimentos também servem.
Acho que já é hora de examinarmos alguns aspectos
da montagem de sua fazendinha. Vamos a eles, mas só
no próximo capítulo. Continua fazendo um calor infernal
e eu preciso provar de um tal de Catto’s, uísque de
12 anos, com muito gelo e soda. Ganhei a garrafa ontem
à noite. Será que é bom?

27
Mecanização da Pau D´Alho -
O Produtor de Leite CC PL, 1976.
Quando o caminhão encostou no barranco e despejou o imenso trator, ao preço
de 84 mil cruzeiros, que fiquei devendo ao Banco do Brasil por intermédio de uma
cédula rural pignoratícia — tive a nítida sensação de estar sendo furtado. Afinal, o
veículo não tem material para custar 8.500 dólares, mormente quando se sabe que
seus pneus são fabricados num tal de Luxemburgo, pequeno e misterioso país que
ninguém sabe onde fica.
Qual não foi minha surpresa quando, 22 dias depois, o mesmíssimo trator, que
eu já achava um furto por 8.500 dólares, passou a ser vendido por 12 mil dólares.
Isso, de certa forma, serviu de consolo, porque descobri que, três semanas depois
do assalto de que fui vítima, outros agricultores brasileiros passaram a ser pungados
numa escala bem mais alta.
O certo é que um veículo desse preço só poderia ser operado por três pessoas:
pelo presidente da fábrica de tratores, pelo presidente da República e pelo signatário
da cédula rural pignoratícia. Como o presidente da fábrica é um executivo muito
ocupado, que não vai deixar sua indústria para tratorar nestas serras, e o presidente
da República, evidentemente, tem mais o que fazer —
tocou ao Eduardo a tarefa de manobrar o monstro nos minguados pedaços planos de
que dispomos, com o propósito louvável de preparar o terreno para
o plantio da aveia.
Nessa hora, tendo verificado que o arado do velho Cockshut não congemina com
os três pontos do novo veículo, recorri ao estoque de implementos de um vizinho,
cujo pátio de máquinas rivaliza com o de empreiteiras famosas, como a Camargo
Corrêa e a Mendes J únior, e obtive por empréstimo um arado de três discos, reversível,
implemento muito original na medida em quereverte quando menos se espera, e não
reverte nas horas necessárias, nem com o adjutório entusiasmado de quatro crioulos
reforçados.
E o curioso da história é que o tal arado tem uma alavanquinha, dirigida para
os lados do tratorista, como que insinuando que a reversão deve ser feita pelo próprio
operador da máquina, com a mão disponível — se é que existem mãos disponíveis
para um sujeito que tem de manejar as 200 alavanquinhas de um trator.
Montado o arado, sob a supervisão de um experimentado fazendeiro de Valença,
o excelente Vito Pentagna, parti para o trabalho de aração reversível, tendo consumido
quatro horas de segundas e marchas a ré reduzidas, no primeiro dia.
Evidentemente, para um sujeito que tem dores crônicas nos rins e na coluna,
onde conta com a companhia de veneranda hérnia de disco — uma empreitada de

28
quatro horas deve significar a morte. Pelo que me despedi da família, tomei
algumas cervejas e fui deitar-me sonhando com dores terríveis em todas as juntas
do corpo.
Dia seguinte, cedo, surpreendi-me inteiro e intacto, sem dor de espécie alguma.
Até as dores renais e vertebrais desapareceram, como que por encanto. O vizinho
que emprestou o arado tinha vaticinado horríveis dores no pescoço, mas o meu
pescoço nunca amanheceu tão bom como agora, nem mesmo nos tempos do boxe
praticado na academia, que me obrigava a ter todos os músculos desenferrujados.
Sendo assim, deixei passar um dia, para ver se não aparecia alguma dor atrasada,
e resolvi atacar firme de tratorista, com os tanques cheios de 120 litros de óleo diesel.
Mandei levar meu almoço, o que é chique para um operador de máquina, e pedi à
condutora da refeição que melevasse, também, duas latinhas de cerveja, estupidamente
geladas, que o tratorista não é de ferro.
Sob um sol de rachar e com um chapéu de feltro que voava toda hora, comecei
os serviços na manhã de uma quinta-feira. E devo confessar que os trabalhos corriam
muito bem, tanto assim que, ao cabo de três horas de aração, eu já me considerava
um tratorista nato.
Quando a várzea começou a minar água, num lugar aparentemente seco,
descobri que, passando despinguelado, em terceira, com o “reversível” levemente
enterrado, o serviço podia ser feito. E já me considerava um gênio da operação de
máquinas, por trabalhar naquelas condições com excelentes resultados.
Tudo isso até a hora em que, no lugar de mover a alavanquinha do hidráulico
para cima, movi para baixo, e o belo reversível enterrou firme no barro molhado.
Tracionado pelos pneus de Luxemburgo e pelo motor de 82 cavalos SAE (?), o arado
empacou irremediavelmente. E o trator começou a afundar.
A partir daí, afundou numa velocidade espantosa, o que me leva a indagar dos
motivos pelos quais os tratores de rodas não são utilizados como sondas
de petróleo, pois não há sonda americana, russa ou japonesa capaz de rivalizar em
velocidade com um trator, quando se trata de afundar terra adentro.
Engoli o almoço, a que faltavam as duas cervejas, por esquecimento da senhora
mãe de minhas filhas, e voltei possesso ao serviço, para tomar um banho de lama
que nem ao menos é medicinal, como a do Araxá.
E o resultado é que, hoje, no lugar onde esperava plantar aveia, plantei um trator
de 84 mil contos (já está custando 120), depois de peripécias várias, a
que não faltou, nem mesmo, a perspectiva de uma capotagem.
Resta saber se, a exemplo das sementes de aveia, os tratores brotam e frutificam,
hipótese em que, dentro de pouco tempo, além de vender bezerros pitangueiras estarei
vendendo filhotes de tratores nacionais.

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SEDE, PISCINA,
ESTÁBULO

Estabelecido o fato de que sua fazenda deverá situar-se


numa bacia leiteira, podendo variar de uns poucos hectares
atémilhares deles, deixe-mefalar das construções necessárias
para as vacas leiteiras e para os animais que as possuem.
Antes, porém, quero dizer que, ao escrever A arte de amolar
o boi (Manual do proprietário de sítios e fazendas), fiz dos
corretores de imóveis o seguinte juízo:
“Confesso que não sei qual é o melhor sistema para se procurar uma fazenda: se
diretamente, se por intermédio de um corretor. Eu prefiro procurar diretamente,
ou por intermédio de um amigo, porque não tenho tido sorte com os corretores
que encontrei até hoje. Estou certo de que devem existir corretores honestos,
profissionais que se preocupam quase tanto com a qualidade da coisa vendida,
como com a sua comissão de 5%. Mesmo sem ser muito amigo das máximas e
das conclusões definitivas, vou mais longe quando afirmo que existem corretores
honestos. Devem existir. Só não tive, até hoje, a oportunidade de conhecer um
deles.”
Pois muito bem: quiseram os fados que, depois deter escrito
e publicado o trecho aí de cima, que ainda maledicência de
alguns amigos, que viam no fato de eu ter feito, e fazer ainda,
alguma intermediação de imóveis rurais, um crime
imperdoável, pelo que havia escrito no tal livrinho. Assumo a
condição de corretor bissexto de fazendas, leiteiras ou não, e
desdejá medisponho a procurar comprador para sua fazenda,
na hipótese de você ficar desgostoso com o negócio leiteiro.
30
hoje assino de cruz, eu acabasse fazendo alguma
intermediação profissional, em negócios de compra e venda
de fazendas. É a tal coisa: aqui se faz, aqui se paga.
O leitor tem todo o direito de perguntar se mudei de idéia
a respeito dos corretores de fazendas. Não, não mudei. Os
“colegas” parecem muito mais interessados nas comissões
do que na qualidade das fazendas vendidas. E os que
trabalham nas bacias leiteiras não têm mesmo muitas opções,
já que as condições regionais variam de ruins a péssimas,
como vimos no capítulo anterior.
Só devo mudar, naquele trecho de A ar te de amolar o boi ,
a frase que diz: “Só não tive, até hoje, a oportunidade de
conhecer um deles (corretores honestos)”. Afinal, depois de
ter vendido algumas fazendas, posso dizer que já vi corretor
honesto. Fico meio vermelho, desconverso, não chego a
desiludir um comprador que pretende ficar rico em 150
hectares de morros cobertos de sapé, mas também não tenho
a coragem de dizer que a fazenda é excelente e o negócio,
magnífico.
Tenho visto coisas deliciosas no ramo, porque um corretor
agropecuário se caracteriza, basicamente, pelo fato de sevestir
de cowboy e de afirmar, com a cara mais limpa deste mundo,
que não é corretor .
A indumentária não é privativa dos corretores de imóveis,
porque os criadores de cavalos quarto demilha também fazem
tudo para imitar J ohn Wayne. Mas se você encontrar um
cowboy tupiniquim, ainda que encarapitado na sela de um
quarter hors e, afirmando que “não é corretor de fazendas” —
podeficar certo deque está diantedeum autêntico profissional
do ramo.
A explicação se fazia necessária, para acalmar a

31
Prometo não usar botinhas bicudas, que me apertam as
unhas encravadas, ou de salto alto, que faz mal à coluna.
Também desgosto das calças jeans, cujo fecho à cremalheira
pode beliscar-me as partes baixas. Por fim, devo dizer que
prefiro o chapéu de palha ao imponente Stetson de feltro, que
é quente, pesado e é coisa de cowboy, quando já passei da
idade de agüentar o pulo mais desanimado do mais
desanimado dos cavalos.
E tem mais uma coisa: boné, só se for com a pala sobre os
olhos. Bonévirado ao contrário écoisa debandido, ou, quando
menos, de sujeitos vocacionados para a bandidagem.
Cuidemos, agora, de alojar convenientemente os animais
de sua fazenda. De todos eles, os mais importantes, com todo
o respeito, naturalmente, continuam sendo o meu preclaro
fazendeiro e sua ilustre família.
Sendo o meu bom amigo um bilionário, permito-mesugerir
a compra de uma casa imensa e velhíssima, do tempo dos
barões do café. Essas casas têm a enorme, a indizível vantagem
de dar s tatus . Cá entre nós, que ninguém nos ouça: o que é
que você andava procurando quando se transformou em
produtor de leite?
Dinheiro você tem bastante, graças aos seus esforços
empresariais. Estive para escrever “graças a Deus”;
sendo embora ateu, não achei justo misturar o Criador
com os seus negócios empresariais. Afinal, o
contrabando de café, a sonegação de impostos, as contas
fantasmas, a venda fraudulenta do controle acionário daquele
banco, que atédeterminou modificações na Lei das Sociedades
Anônimas, as comissões creditadas lá fora, o
superfaturamento e outras velhacarias, em que o meu ilustre
amigo costuma exceler, não chegam a ser modelos de
atividades decentes e produtivas.
No almoço do J óquei, no bar do Country, na quadra de
tênis do Harmonia, vocênão podedizer: “Muito prazer, Fulano
de Tal, contrabandista”. Mas pode dizer que é produtor de
leite e pode mesmo convidar o interlocutor para visitar sua

32
fazenda, no próximo final de semana. Como também pode
esquecer-se de convidar, sem ficar livre de receber a visita
assim mesmo, porque o instituto da hospedagem é uma
das maiores pragas da agropecuária.
O presidente da Volks, o diretor da Bangu, o procurador
do Estado, o dono da multinacional de bebidas estão
desobrigados de hospedar pessoas na Volks, na Bangu, na
Procuradoria enas fábricas deaperitivos amargos, instaladas
pelo mundo todo. Contudo, não se livram dos hóspedes em
suas fazendas. Sei disso porque fui freqüentador assíduo das
fazendas do J oaquim Guilherme da Silveira, do Ro
berto Salgado e do Fritz Underberg. E só não visitei a fazenda
do presidente da Volks porque ela fica em São Paulo e eu
moro em Minas.
Perguntará o leitor: “E vocêéamigo do presidenteda Volks?”
Não, nem o conheço. Mas o conhecimento e a amizade são
absolutamente dispensáveis quando se trata de invadir as
fazendas dos outros. Sempre recebi dezenas de hóspedes que
não conhecia. Nem por isso deixavam de exigir uísques de 12
anos, vinhos importados, banhos depiscina, passeios a cavalo
e outras comodidades.
Quando se trata de gente de nossa geração, tudo bem: o
fazendeiro ainda tem o consolo de ser cumprimentado pelo
hóspede e de trocar, com ele, duas palavras. Pior é quando se
trata de gente jovem, das relações deamizade denossos filhos:
ouvem músicas absolutamente idiotas, no volume máximo,
e são quase sempre incapazes de dar “bom dia” ao dono da
casa.
Na fúria que me dá um bando de idiotas, ouvindo músicas
cretinas no máximo volume de minha vitrolinha, acabei
perdendo o fio da meada, quando estava querendo dizer que
você procurou sua fazendinha em busca de s tatus , não foi?
E a casa enorme, dita estilo colonial, ou estilo império, conforme
tenha sido construída antes, ou depois de 1822, tem a
vantagem de não deixar o meu bom amigo com sentimento de
inferioridade, desses que vão roendo o sujeito por dentro e

33
podem se transformar numa úlcera perfurada.
Afinal, o Sérgio, o Pedro, o Olavo, o Nílton, o Lineu, o Ronaldo
— todos têm fazendas com sedes maravilhosas e você, que é
amigo e sócio deles, ainda não tinha comprado a sua. Não era
justo. De-fi-ni-ti-va-men-te não era justo
que os seus amigos se afazendassem com sedes deslumbrantes
e você ficasse a ver navios, ou, o que ainda seria pior, a ver os
barcos do Iate Clube.
Casas antigas têm a sublime vantagem de ser ecológicas,
sobretudo e principalmente nestes dias de histeria ecológica.
Nelas, você convive com milhares de bichos: cupins, lagartos,
lagartixas, ratos, cobras e gambás. E participa, ativamente,
dos temporais, correndo pelos cômodos a distribuir baldes,
bacias e panelas, nos lugares em que as goteiras são
inevitáveis. Depois de muito matutar, descobri o
motivo pelo qual os arquitetos do Brasil Colônia não
usaram lajes de concreto armado no forro das casas
que projetavam: éque a primeira notícia daquela técnica data
de 1854, quando o francês J oseph Lambot construiu um
barco deconcreto. Ainda assim, só em 1873 o concreto armado
começou a ser divulgado por Monier. No Brasil, as referências
mais antigas ao concreto datam de 1904. Daí os tetos de
madeira e esteira de taquara, usados nas casas coloniais,
permitindo que os gambás possam mijar sobre nossa
literatura.
No duro, mesmo: havia um gambá, morador no sótão
lá da fazenda, que sofria de tosse. Tossia a noite
inteira. E tinha especial aptidão para mijar sobre
os artigos que eu escrevia para cinco importantes
revistas agropecuárias. Mudei máquina e papel, do
escritório para a sala de jantar. O excelente marsupial,
como que avisado, começou a mijar sobre a mesa da
sala. Mas vinha dormir sobre a esteira do forro do
meu quarto, que era para me acordar com sua tosse de O

34
tuberculoso.
Outra vantagem soberba das construções antigas é que
você fica livre de cair nas mãos de um desses arquitetos
“geniais”, que abundam por aí, inventando materiais de
construção rigorosamente incompatíveis com a nossa
realidade climática, descobrindo “soluções” que só fazem
complicar a vida de quem vai morar nas casas que arquitetam
eterminando por projetar, comovi nas serras do Rio deJ aneiro,
um banheiro em que não cabia um simples e singelíssimo
lavatório.
Um lavatório desses que você utiliza, na antemanhã
serrana, para apoiar o birro enquanto vai fazendo a
barba. E já que o birro está apoiado, não custa
livrar-se dos uísques da véspera.
Dirá você, indignado, que é sujeito educadíssimo
e jamais faria xixi na pia; não sabe como desce bem.
Há coisas que todo mundo faz, mas ninguém confessa.
Tive uma boa amiga, desiludida com os rendimentos do leite,
que desabafou na reunião da cooperativa: “Prejuízo de leite
é feito hemorróida; todo mundo tem, mas ninguém confessa”.
J á que a problemática anorretal veio à baila, deixe-me
dizer-lhe da conveniência e oportunidade de instalar bidês
em todos os banheiros, e bidês dotados de esguichinhos, por
favor. Fuja dos telefoninhos instalados nas paredes,
aparentemente para lavar o fiofó, que esguicham água na
roupa, nos cabelos, no chão e no teto do banheiro, com risco
de molhar o gambá que reside por lá. Molham tudo e não
limpam o principal, que me abstenho de citar, porque sou o
mais pudico dos escribas.
Vista e examinada a vantagem de sua fazenda contar com
uma belíssima sede colonial, para deixar Olavo, Sérgio e
Ronaldo roídos de inveja, vou arriscar um palpite: se fosse eu,
não construiria a piscina.
“Sem piscina eu não vou!” explodirá aquela jovem senho-
ra, que lá está diante da novela das oito, enquanto vocêlê este
livro no escritório, mamando respeitosamenteum belo Cohiba.

35
certo é que você vai acabar construindo a piscina, como eu
também já fiz uma, de 6 x 10m, azulejada, contando os
tostões.
A construção não tem mistério, a não ser que se recorra a
um calculista. Sei disso, porque construí sem calculista e a
piscininha agüentou firme. Um amigo meu, que tinha 360
(trezentos e sessenta!) engenheiros empregados em sua firma
de consultoria, caiu na besteira de encomendar os cálculos
da piscina ao departamento competente.
Como se tratava do dono da quitanda, o negócio foi
preparado em três dias e veio impresso em papel da
melhor qualidade, encadernado. Só que tinha três
vezes mais ferragens do que o dono da firma, da
fazenda e da piscina, efetivamente usou.
Se a construção é simples e pode ser feita com os pedreiros
rurais, a limpeza de uma piscina também não é bicho-de-
sete-cabeças. Evidentemente, o ideal é que tenha todo aquele
equipamento de filtragem, um negócio que custa quase o
preço da piscina. Na falta dos filtros, mas com um sifão, sulfato
de alumínio, sulfato de cobre, alguns quilos de cloro e um
jardineiro analfabeto, você pode conservar a traquitana
perfeitamente piscinável.
O constrangimento maior residenos banhos quevocêpossa
tomar, abordoado a um belo copo de uísque, ao alcance e à
vista dos retireiros, que lá estão no estábulo, desde as quatro
horas da manhã, como propósito mal-remunerado demungir
e alimentar suas vaquinhas.
Encontro mil e uma razões para justificar o fato de você
estar de calção, com o uisquinho a tiracolo, à beira de uma
piscina que custou o seu dinheirinho, honestamente ganho.
“Ninguém tem nada com isso”, dirá você, piscineiro em
perspectiva. Mas eu me permito lembrar que sempre existe
uma situaçãodeconstrangimento, que leva muitos produtores
de leite a jamais utilizarem os seus tanques azulejados, com
as bordas calçadas em pedra de São Tomé.

36
Ainda quando possa parecer meio covarde, a melhor
solução, para aqueles que não podem prescindir de uma
piscina, é escondê-la num pátio interno, longe do
alcance da vista dos que estão no curral ajudando
a impedir que a vaca vá para o terreno sáfaro e
agreste, que só dá urzes.
O conjunto das atividades desenvolvidas dentro, e
em torno, de uma piscina prima sempre pelo ridículo:
são os gritinhos, as corridinhas, os empurrões, os
caldos e as constatações térmicas “está gelada!”;
“vem, que está uma delícia!”. Tudo isso e mais as tangas, e os
biquínis, não combina com a seriedade de um
empreendimento agropecuário visando à produção comercial
de leite.
Ponha-se no lugar do Zé retireiro, que só come a comadre
bexigosa e desdentada, e veja que não merece o castigo de
contemplar, lá do estábulo onde se encontra desde as quatro
horas da manhã, o espetáculo representado pela mulher
daquele seu amigo, muito liberal — como é mesmo o nome
dele? —, que éboa pra dedéu eusa aquela tanga transbordante
de pêlos louros, com a bunda de fora e uns peitinhos (o Zé
diria mojinhos...) que cabem, inteirinhos, dentro da boca.
O tempora! O mores! diria o Zé, setivessea metade do latim
de Cícero. Não, não devemos, não temos o direito de submeter
o retireiro ao suplício de ver, lá do curral, a desbundante e
sapeca mulher do seu amigo. Alieno culo piper refr igerium,
já dizia Cícero, mas é muita pimenta para o pobre Zé.
Em sete anos de fazendeiro-piscineiro, tomei uns três ou
quatro banhos, e olhem lá. O Roberto Salgado só mergulhou
duas vezes, em 18 anos de fazenda com piscina. Conheço
inúmeros fazendeiros que jamais pularam nas águas azuis
de suas piscinas rurais, muito embora não lhes desgostem as
piscinas urbanas. Se o negócio não corre por conta do tal
constrangimento, não entendo mais nada.
Deixo a seu critério a construção da sede de sua empresa

37
rural, ou a reforma da casa colonial que você comprou
numa bacia leiteira, isto é, numa região em que os barões do
café derrubaram a mata, ganharam dinheiro plantando café
nas pirambeiras com a mão-de-obra escrava, mandaram cons-
truir casas belíssimas e deixaram uma porção de netos na
mais negra das misérias.
Recomendo, com o maior entusiasmo, a construção deum
quarto de vestir compatível com as exigências do negócio,
onde, não raro, vocêvai ser obrigado alevantar-sepelo dilúculo
da madrugada, ou pelo crespúsculo matinal, que significam
exatamente a mesma coisa: o dealbar da aurora, a hora em
que branqueia, ou clareia, a aurora.
Nessas condições, é de toda conveniência construir um
quarto de vestir onde você possa calçar suas botinas sem a
necessidade de acordar uma santa, que está pouco ligando
para currais e vacas, e já faz muito quando concorda em
passar os fins de semana na fazenda, cozinhando para 80
pessoas, arrumando dezenas de quartos de hóspedes, pro-
videnciando gelo para o uísque, salgadinhos para o pessoal
da piscina, refrigerantes para as crianças, remédio para dor
de cabeça de um chato que bebeu demais, repelex para outro
chato, que não se dá com os mosquitos locais; enfim, uma
atividade fascinante.
Poupei-me o trabalho de dar conselhos diversos na
construção e na reforma de sua casa, meu caro
fazendeiro, mas não posso e não devo deixar de falar
sobre as casas dos seus empregados.
As boas casas de colonos costumam constituir-se
num fator de atração a mais (quais são os outros?)
na difícil tarefa de fixar a mão-de-obra no campo.
Quem chamou minha atenção para esse fato, de resto
indiscutível, foi um amigo que tinha ótimas casas de
colonos e não costumava ter qualquer dificuldade para
arranjar empregados, ou para conservar os muitos que
tinha.

38
Dizia ele, com inteira razão, que uma boa casa, espaçosa,
bem localizada, com água abundante, luz elétrica e quintal
era fator de atração para a mulher do obreiro; e que estando
a comadre satisfeita, o resto se arranjava. O sábio produtor
rural, dono dediversas fazendas nas serras do Estado do Rio,
tinha mulher e filhos morando numa das sedes e a namorada
residindo noutra fazenda, a três quilômetros de distância.
Constava, por lá, que seu dinheiro fora subtraído deum desses
institutos oficiais de previdência: pouco importa. O que
importa é que foi muitíssimo bem aplicado.
O brasileiro do campo, ao contrário do seu irmãoda cidade,
que paga milhões de dólares para viver numa prateleira de
granito e vidro fumê, prefere habitar uma casa razoavelmente
afastada da residência do seu vizinho.
Ainda quando essa preferência não seja um ato consciente,
resulta do próprio nível de educação do patrício e de sua
cara-metade. Portanto, meu bom amigo, fuja, mas fuja feito
um desesperado, das casas geminadas, das casas muito
próximas e das vilas de casas, que apresentam inúmeras
vantagens na construção e na distribuição de água e energia
elétrica, mas acabam da pior maneira possível, já porque as
comadres se ofendem, já porque a televisão deuma incomoda
a outra, ou porque o leitão deuma terceira fuça as couves das
demais.
Uma boa distância, de uns largos 200 metros, entre uma
e outra casa de colonos, é coisa que nunca fez mal à fazenda
de ninguém. E a sua não vai fugir à regra.
Boa providência, também, é construir as casas à beira das
estradas municipais, porque a residência do trabalhador rural
brasileiro, a exemplo dos túmulos famosos, vive exposta à
visitação pública. São centenas de sujeitos, milhares de
amigos, compadres, companheiros e parentes, que vivem
visitando nossos empregados rurais. Nessas condições, é da
melhor conveniência tirar a multidão de dentro da fazenda,
construindo as casas à beira das estradas, ao preço de

39
algumas galinhas atropeladas.
Falei, aí atrás, da conveniência de levar força e luz às casas
rurais. Não são muitas as fazendas brasileiras em regiões
servidas pelas redes de energia elétrica, mesmo porque o
fenômeno é relativamente novo na história da humanidade.
Ainda em 1902, que foiontem em termos dehistória, anúncios
publicados no jornalO E stado de S.Paulo, tentavam convencer
o público das vantagens do uso doméstico deenergia elétrica.
O crescimento efetivo do sistema elétrico data do governo
Kubitschek. Ainda em 1945, nossas três maiores hidrelétricas,
Cubatão e Ituporanga, em São Paulo, e Fontes, no Estado do
Rio, somavam 479.400 kWA, pouco mais da metade da
capacidade de cada uma das unidades geradoras de Itaipu.
E Itaipu tem 18 unidades geradoras...
Onde há luz e força, o serviço deve ser estendido às casas
de colonos e faz parte do s alário indireto, mesmo porque
ninguém tem a coragem de descontar no fim do mês. Tenho
amigos que instalaram relógios medidores de luz em cada
uma das casas da colônia, mas terminam bancando as contas
mensais.
E o curioso é que as lâmpadas do trabalhador rural,
inspiradas talvez nas piras dos monumentos militares,
ficam acesas dia e noite, como se os interruptores
não existissem. Esse gosto pela iluminação permanente,
que é explicado pelo fato de o trabalhador rural não
pagar a conta do fim do mês, envolve também uma
espantosa despesa com as lâmpadas que se queimam e
são substituídas da maneira mais simples possível:
trocando pelas outras, das partes comuns da fazenda
— escritórios, galpões, oficinas, estábulos e a casa
do doutor.
Não penso que a providência constitua um abuso, porque
o trabalhador rural encara as lâmpadas da mesma forma
como o funcionário público vê o material da repartição.
Acompanhei, durante muitos anos, as compras mensais dos

40
empregados da fazenda, porque lhes dava carona, e não
melembro, jamais, em tempo algum, de ter visto um compadre
adquirindo lâmpadas elétricas. Compravam de tudo, menos
lâmpadas, enquanto a fazenda adquiria os bulbos pelo
atacado, em pacotes enormes, de 100 ou 200 unidades.
Empresário de escol, preocupadíssimo com o “social”, não
creio que você deva preocupar-se com essa despesinha extra,
mesmo porque uma fazenda leiteira tem despesas bem mais
pesadas. No capítulo dos caminhões de ração, você vai tomar
cada susto que vou lhe contar. E vai descobrir que as vacas
dão conta, em pouquíssimo tempo, de um caminhão com
500 sacos de 40 quilos de ração: 20 toneladas de ração
balanceada. Mesmo porque os porquinhos e as galinhas dos
compadres sempre ajudam as vaquinhas a dar cabo daquela
montoeira de farelo. E o negócio das lâmpadas acaba correndo
por conta dos fringe benefits .
Chique, né? O Zé retireiro com fr ing e benefits... Aí, vocêse
lembra daquele diretor do seu banco, almofadinha que tem
salário de US$ 20 mil, mais US$ 10 mil pelo caixa 2, automóvel
e motorista pagos pelo banco, só viaja de primeira classe e
sempre traz as notas das refeições, de todas as refeições, para
o banco pagar. Nessa hora, sabe qual é sua reação? Vai ao
armário, escolhe seis camisas que já não usa há muito tempo,
algumas até com os colarinhos puídos, e leva de presente
para o Zé. As camisas e um vinho nacional, horrível, que
ganhou de presente de um contínuo do banco.
Vistas a sede e as demais residências de uma fazenda
leiteira, éhora decuidar das construções necessárias; emesmo
das desnecessárias.
Silos costumam ser da maior utilidade, desde que você
tenha algo para ensilar e encontre quem ensile, isto é, desde
que a fazenda tenha capim, milho ou sorgo; econsiga descobrir
uma turma disposta a cortar, transportar e socar aquelas
gramíneas no seu silo, mediante remuneração compatível
com o valor final do produto ensilado. Não se iluda com o

41
desemprego nas grandes cidades, ou mesmo com o
desemprego rural: não têm a menor relação com a
disponibilidade de mão-de-obra rural. Mesmo porque, na
fazenda, você precisa de gente para trabalhar e os estimáveis
patrícios andam atrás de um emprego, o que é coisa muito
diferente.
Sorgo, milho e capim, gramíneas sim, meu bom amigo. Sei
que você, desde que se afazendou, andou lendo uma porção
de livros sobre agricultura e pode ter pensado que milho e
sorgo, tendo caroços, pertencem à família das leguminosas,
como a soja perene, o carrapichinho-de-beiço-de-boi e o feijão
que você vai temperar com toucinho de fumeiro, muito alho,
cebola dourada, lingüiça e caldo de carne, quando me
convidar para almoçar em sua fazenda.
Existem silos de diversos formatos. Os que mais
impressionam são os aéreos, que dão à fazenda um
aspecto de empresa rural norte-americana, ou canadense.
J á fiz vários deles, quadrados uns, cilíndricos na
maioria, que me obrigaram a calcular aquela história
do pi , que é igual a 3,1416, ou coisa que o valha.
Hoje, se fosse fazer um silo, não fugiria dos
modelos de trincheira, que são mais fáceis de socar
com um trator e mais fáceis de descarregar, sempre
que a gente não disponha de equipamentos sofisticados,
como aqueles usados para encher, socar e descarregar
os silos cilíndricos aéreos. Sem falar do fato, importantíssimo,
de que um silo trincheira é de construção muito mais barata.
Uma traquitana que me parece da maior utilidade numa
fazenda, mesmo leiteira, que trabalha com gado manso, é
uma seringa, ou corredor, terminando num tronco para
vacinação, ferra, castração, inseminação, transplante de
embriões, curativos, diagnósticos de gestação, lavagens
uterinas e o mais que se possa pensar.
Se o gado tem sangue zebuíno, o tronco é indispensável;
se é gado de puro-sangue europeu, o tronco é da maior

42
utilidade. E lá vem você com os exemplos do Fulano e do
Beltrano, que sempre tiraram muito leite e jamais tiveram
troncos em suas fazendas. Está bem. Também conheçouma
porção de gente que nunca fez um tronco — mas é gente que
não sabe da utilidade do equipamento eda economia detempo
e mão-de-obra. Em última análise, economia de leite, porque
não há rebanho que não quebre o leite depois de passar uma
tarde, num curral, a galope, enquanto a vacinação é feita a
laço, ou no cambão.
Tem gente que prefere a máquina de escrever, como eu
também preferia, antes de me acostumar com o computador.
Hoje, quando pifa o computador, fico de pés e mãos atados,
mesmo tendo aqui no escritório, instalada sobre uma bela
mesa de sucupira, uma bela máquina IBM 82-C.
Acho que já instalamos os animais de duas patas, com
piscina e esguicho de bidê, e começamos a cuidar das
instalações necessárias para os quadrúpedes, como a seringa
e o tronco. Sei que vocêestá louco para começar a construção
do seu estábulo, onde pretende mostrar aos idiotas da
vizinhança, e mesmo aos cretinos de outras regiões, como
deve ser construído um estábulo supimpa.
Nas livrarias, você já comprou dois ou três livros de
construções para o gado, como o do já citado professor belga,
e o excelente C ons truções rur ais , um verdadeiro clássico do
professor Orlando Gomes.
Há estábulos para todos os gostos, de todos os feitios e
tamanhos, telhados em diversos estilos e material de
acabamento que pode variar do prosaico cimento aos pisos
caríssimos esupostamente à prova de ácido láctico. É forçoso
admitir: mesmo um empresário vitorioso, como você,
acostumado a decidir, acaba ficando numa dúvida dos
diabos...
Será que uso telha de barro? Mas o madeiramento está
pela hora da morte... Quem sabe o cimento amianto, para

43
economizar no engradamento? Logo aparecem dois amigos,
engenheiros competentes, com opiniões diametralmente
opostas: o primeiro diz que o fibrocimento esquenta pra
chuchu, enquanto o segundo jura que não existe qualquer
motivo técnico para o fibrocimento esquentar um curral. Na
emergência, depois de ouvir que o alumínio é ótimo para
climas quentes, mas faz muito barulho, vocêpensa seriamente
num telhado de ardósia, caríssimo, ao melhor estilo dos
castelos europeus. O dinheiro é seu. Ninguém tem nada com
isso.
Quais seriam os melhores métodos de contenção debovinos
leiteiros? A corrente quedesliza sobre outra corrente? O canzil
de madeira? O canzil de ferro? O canzil automático alemão
(esse é supimpa!)?
Eis o nosso candidato a produtor deleite na maior sinuca...
Copiar o estábulo do vizinho está inteiramente fora de
cogitações. É crimeainda mais gravedo quesua mulher copiar
o vestido de sua melhor amiga.
Além do mais, você precisa dar vazão aos seus complexos
de arquiteto frustrado, sobretudo e principalmente depois
que ouviu que alguns dos melhores e mais famosos
profissionais brasileiros, Zanine, Claudinho Bernardes e
Alfredo Brandi, não se formaram em arquitetura.
Além disso, o apartamento da Vieira Souto foi projetado
pelo Musa, pelo Casé, pelo Pecegueiro, pelo Paulo Villela. E
você não fez mais do que se mudar com sua mala de execu-
tivo, mesmo porque a decoração ficou a cargo do Hélio Fraga,
que não aceitou nenhum dos palpites do dono da casa.
A sededa fazenda foi construída há 150 anos: é linda, mas
vocênão deu palpites. Quando se tratou de escolher a pintura
da fachada, vocêainda insinuou que gosta muito deum rosa-
império, comjanelas brancas, mas sua mulher fechou questão
em torno do azul forte, chamado azul-colonial justamente
porque não tem nada de colonial.

44
Por mal dos pecados, aquele arquiteto que você contratou
a peso de ouro para redesenhar o interior da sede inventou
maldita chaminé, que mais parece um pombal. E teve o
descoco de plantar imensa lareira no salão principal, lareira
que só poderá ser acesa no dia em que vocêinstalar um sistema
de ar-condicionado central. Lareira... no Vale do Paraíba?
Agora, chegou a vez do estábulo. Você rilhou os dentes
postiços: esse, ninguém me tira! E foi tratando de comprar
dúzias de folhas de papel milimetrado, canetas de nanquim,
esquadros, compassos, réguas, prancheta... Prancheta?
Comprou, sim senhor!
Temo-lo às voltas com o projeto, depois de ter visitado
mais de cem estábulos-modelo. Esse é um fenômeno que só
acontece com os estábulos: todo estábulo é considerado
modelo. Neles, seu espírito crítico excelia, com todo o respeito
devido ao dono da fazenda, projetista da construção rural.
Você viu estábulos de 4 (quatro!) andares numa fazenda
de 500 hectares, como se fosse preciso construir um prédio
de quatro pavimentos numa propriedade de 5 milhões de
metros quadrados. Viu estábulos construídos no mais puro
estilo colonial espanhol; viu cópias de estábulos canadenses,
hermeticamente fechados, para proteger o gado de um frio de
30 graus negativos — eisso no trópico brasileiro. Viu estábulos
com 1,80m de pé-direito e saiu de um deles com um galo na
testa; viu estábulos de todas as cores, formatos e tamanhos.
E chegou a uma conclusão definitiva: não existe um modelo
padronizado de estábulo. Deve ser por isso que todos são
estábulos-modelo.
Portanto: papel milimetrado, tabelas, nanquim e mãos à
obra!
Se me fosse dado palpitar sobre o assunto, e apesar do
receio de o decepcionar, eu me atreveria a dizer que não
encontro justificativa para a construção de estábulos nas
fazendas brasileiras, a não ser o desejo de que o fazendeiro
tem de fazer um estábulo maior e mais bonito que os outros.

45
Epa! J á sei que essa caiu feito uma bomba. Sugiro que
você relaxe, faça um xixi (no vaso, por favor), reforce a dose de
uísque e acomode o traseiro naquela poltrona gostosa do
escritório, para acompanhar meu raciocínio e me dar toda a
razão.
Quero dizer, deinício, que já construí um estábulo coberto
de telhas francesas, feitas em Marselha, com engradamento
em peroba rosa. As telhas, é verdade, comprei-as numa
demolição emecustaram quatro vezes menos queas nacionais
novas. São as tais “abelhinhas” que dão de dez a zero nas
melhores telhas brasileiras. E a esnobação foi de arromba.
Também construí um estábulo coberto de alumínio, com
as paredes da sala de ordenha azulejadas, exigência para a
produção do leite tipo B, e o resto em madeira de lei. O exagero
foi exigência do Banco do Brasil, que só me emprestava o
dinheiro subsidiado do Condepe-Leite se eu fizesse estábulo
para 60 vacas, numa fazenda em que só cabiam 30.
É, portanto, com a autoridade de construtor de dois
estábulos, modéstia à parte funcionais, que me permito
discordar daqueles que recomendam esse tipo de
construção no trópico brasileiro, ainda quando se
pretenda trabalhar com gado europeu puro de origem.
Quase todas as coisas que se fazem num estábulo
podem ser feitas, com vantagem, num sistema de
arraçoamento livre. Evito escrever “estabulação livre”,
et pour cause.
As sombras das árvores, dos bambus, das trepadeiras,
são muito mais naturais e bem mais frescas do que a
maioria das sombras dos telhados. O arraçoamento de
volumoso (capim verde picado, silagem, feno, etc.)
pode, perfeitamente, ser feito em vários cochos, onde
as vacas se alimentam à vontade.
É conveniente pavimentar o local, não só pelo
aproveitamento do estrume, como também para não ficar
intransitável na época das chuvas. Mas o calçamento
com cimento áspero não é nenhum bicho-de-sete-cabeças

46
lavados sob pressão, para serem distribuídos pelas
capineiras e pelos pastos.
Numa sala de ordenha, limpíssima, arejadíssima, com um
eficiente equipamento derefrigeração do leite, você pode fazer
a mungidura e dar o concentrado, quando for o caso.
Evidentemente, se você tem um lote de alta produção, que
precisa comer grande quantidade de concentrado, talvez seja
preciso recorrer ao arraçoamento individualizado controlado
pelo computador. Não se assuste: écomputadormesmo. Cada
vaca leva uma coleira com um transmissor que a identifica e
libera a ração, individualmente, várias vezes por dia, deacordo
com a produção de leite. É equipamento corriqueiro, hoje,
nas fazendas que trabalham
com gado de alta produção.
Nas fazendas de produção média, o concentrado pode
ser dado durante a ordenha.
De qualquer maneira, tudo que eu possa dizer do
estábulo como construção cara, ineficiente, para ser
usada poucas horas por dia, é pouco, diante de sua
vontade de construir um estábulo-modelo. Enfio,
portanto, a viola no saco, o que sempre é melhor do
que enfiar uma agulha, e deixo que você construa seu
monumento à inutilidade.
Não faço à sua inteligência a descortesia de dizer
que tudo que foi escrito contra o estábulo, modelo
ou não, deixa de ter cabimento nos casos de free
s tall, quando, pela própria filosofia do negócio, o
estábulo é o único lugar com que contam as vacas para
passar dia e noite, não raras vezes a vida inteira.
Penitencio-me de já ter construído um negócio
chamado canzil sueco e, o que é mais sério, ter
influenciado uma porção de gente para copiar aquela
asneira.
Levei horas e horas estudando as “larguras” de

47
e ainda permite que se recolham esterco e urina, diversas
vacas, até descobrir um livro que trazia as características
biológicas da espécie, com o espaço ocupado por uma vaca
deitada, uma vaca em pé, um bezerro dormindo: tudo
bobagem.
Calculei os bezerreiros para 20 animais novos, 20 na faixa
de três a seis meses e mais 40 maiores — e construí aquele
besteirol, só Deus e o Banco do Brasil sabem como. Pois muito
bem: na pressa de lavarem o recinto, os empregados enfiavam
100 bezerros num compartimento cientificamente projetado
para abrigar 20 animais recém-nascidos. E misturavam tudo,
de tal forma que sempre me pareceu um milagre que os
bezerros quase desmamados não esmagassem os recém-
nascidos.
Dizem que pé de égua não mata potro, mas o negócio é
discutível, porque já vi potrinho, num dos nossos melhores
haras, com a perna quebrada por um coice de sua excelen-
tíssima genitora. Agora, que obezerrinho novoéextremamente
resistente ao pisoteio dos mais velhos, lá isso é!
Depois de muitos anos de fazenda, você vai acabar
descobrindo que a comida é muito mais importante que
o cocho. Há criadores vitoriosos porque têm abundância
de comida, servida no chão ou em cochos de bambu,
enquanto há milhares de criadores ineficientes, que
se lembraram de revestir seus cochos com a melhor
cerâmica, mas não têm capim para a encomenda.
Sem a interferência do homem, a vaca é um bicho que
tem condições de nascer, crescer e produzir sem
jamais travar conhecimento com um pedaço de cerâmica,
ou com meio metro de piso cimentado. Mas uma vaca,
instalada num estábulo de ouro e pedras preciosas,
não tem condições de sobrevivência se não tiver
comida.
Como não posso impedir que você construa um estábulo,
a campo, pastando um honesto capim, que tanto pode ser

48
fico meio constrangido de sugerir uma visita à Fazenda
Fortaleza, em Nova Odessa, SP, onde vi instalações da melhor
inteligência para quem explora gado leiteiro de raça européia
pura de origem.
Informado de que a fazenda, que visitei nos anos 70, é
propriedade do Dr. Aloysio Faria, você vai chegar a duas
conclusões precipitadas: primeira, de que estou elogiando as
instalações porque devo dinheiro ou favores ao Banco Real;
segunda, que as instalações são muito bem boladas porque
o Aloysio é milionário.
Creio que você perdeu bela oportunidade de ficar sem
concluir coisa alguma, porque não devo um ceitil ao Real,
nem ponho lá os pés, depois que os marrecos me recusaram
um Realmaster. Por fim, o fato de ser o Aloysio um homem
rico não quer dizer absolutamente nada, já que, em questões
de pecuária leiteira, os milionários são os que fazem
as maiores besteiras, entre outros motivos porque têm o
dinheiro para fazer.
As instalações que vi na Fazenda Fortaleza eram
primorosas: valiam a visita. E desmitificavam o
estábulo profissional, o que venho tentando fazer há
três ou quatro páginas.
Outra visita que sempre recomendei, com o maior
entusiasmo, era à Fazenda Três Barras, em Pitangueiras,
SP. Quando reescrevo a terceira edição deste livro
já não sei como ficaram aquelas instalações, pois o
Frigorífico Anglo, proprietário da fazenda, sofreu
modificações em seu controle acionário e a maioria
de suas fazendas foi posta à venda. É verdade que as
instalações da Fazenda Três Barras só funcionavam à
maravilha por causa da notória resistência da raça
pitangueiras ao meio tropical. De qualquer forma,
funcionam com qualquer gado euroindiano, ou com gado
puro sangue zebu.
Suas bezerras, isto é, as bezerras da fazenda que
você está montando, se forem mestiças de zebu, viverão

49
uma braquiária, quanto o meloso, o jaraguá, o colonião, a
estrela-africana, as bermudas, como pretendo explicar no
devido tempo, quando tratar dos diversos aspectos da
medicina veterinária.
Não, não se trata de erro de impressão: escrevi medicina
veterinária, mesmo. É que os veterinários das bacias leiteiras
têm insopitável vocação para o exercício da agrostologia,ciência
normalmente restrita à agronomia e à zootecnia, talvez pelo
fato de muitos deles freqüentarem uma universidade onde
também se ensinava a ciência agronômica.
A contrapartida, isto é, os agrônomos sempre dispostos a
fazer uma operação cesariana e uma lavagem uterina, sendo
embora menos freqüente, também existe. Freud explica.
Para aumentar a confusão, é bom lembrar que os
zootecnistas acusam agrônomos e veterinários de se
imiscuírem nos assuntos da competência exclusiva da
ciência zootécnica. E o caldo entorna de vez quando
você, que só tirou o primário completo, ou tem o
mestrado em economia, o que é mais ou menos a mesma
coisa — quando você, fazendeiro de fim de semana,
começar a opinar sobre adubação química, fisiopatologia
da reprodução, nutrição de ruminantes e os testes de
Rhoad.
Falei que suas bezerras devem viver a pasto, o que
não exclui a conveniência do arraçoamento suplementar,
sobretudo na primeira seca depois da desmama. A
receita é baseada em dois pressupostos: 1 — existência
de pasto;
2 — gado adaptado ao meio.
Se você não tem pastos, nem trabalha com um gado
adaptado ao meio, e quer criar boas garrotas, vejo
q u e
estou diante de um candidato a freguês das multinacio-
nais que dominaram o mercado das rações balanceadas.

50
É chegada a hora de instalarmos os seus bezerros. Aliás,
é chegada a hora de eu ir dormir, porque passa de meia-noite
eamanhã preciso levantar cedo. Sevocêtambémestá cansado,
sugiro quedeixe a leitura do final deste capítulo para amanhã,
porquevai levar nova bordoada em suas ilusões arquitetônicas
e a dose pode ser fatal. Boa noite. Amanhã tem mais.
Pronto: cá estou de banho e café tomados, barba feita, com
o número 1 e o número 2 tempestivamente processados.
Muitíssimo a propósito do número 1, deixe-me contar-lhe
o caso de um produtor de leite, o coronel J uca, que saiu em
excursão automobilística, nos anos 30, com seu amigo doutor
Evaristo. As estradas eram de terra e pontificava o Ford de
bigodes.
Na frente, o doutor E varisto com toda a família num For-
dinho; atrás, o coronel J uca, mulher efilhos, noutro Fordinho.
Quando passaram pela primeira cidade, o doutor Evaristo
parou num botequim e a família inteira foi ao banheiro. Do
carro do coronel não desceu ninguém.
Mais adiante, outro botequim ea turma do doutor Evaristo,
em fila, no banheiro. O coronel e família, firmes, não arredavam
pé do Fordinho.
Quando parou pela terceira vez, o doutor Evaristo lembrou-
se de perguntar: “Como é, seu J uca, ninguém vai ao
banheiro?” E o excelente coronel, produtor de leite dos mais
considerados das Gerais, gritou lá do volante de seu carro:
“Não senhor, doutor Evaristo. Meu pessoal, quando sai, já sai
tudo cagado e mijado”.
Falávamos de quê? Ah, dos bezerros. J á sei que você não
abre mão da construção deum bezerreiro, ainda que eu possa
dizer que se trata de alojamento perfeitamente dispensável.
Dispensável, como? — perguntará o meu paciente leitor,
certo de que está lendo um livrinho escrito por uma
cavalgadura. Como dispensável? — se vocêestá farto de saber

51
que os bezerreiros devem ter gaiolas individuais, com dois
baldinhos pendurados em cada portinhola, com uma
plaquinha de identificação do nascituro, tudo construído
dentro de um cômodo amplo, arejado, soalheiro e protegido
dos ventos e das chuvas.
É assim que faz o Dr. Beltrano, criador famoso, com dois
baldinhos estanhados diante de cada bezerro; éassim que faz
o Dr. Fulano, famoso e rico, muito caprichoso, o doutor, tanto
assim que mandou fazer baldes de aço inoxidável; é assim
que fazem todos os criadores, que passam por caprichosos e
competentes na arte, difícil, aliás, deproduzir leitenos trópicos.
Gaiolas... gaiolas... É típica da espécie humana essa mania
deengaiolar os animais. Criam-se galinhas em gaiolas, coelhos
em gaiolas, porcos em gaiolas, passarinhos em gaiolas. Salvo
engano, é de Desmond Morris, famoso zoólogo inglês, a
seguinte constatação: “Toda gaiola é biologicamente imoral”.
Imoral... Sai dessa, meu bom produtor de leite: imoral,
indecente, indigna, a gaiola dos bezerros nem ao menos é
eficiente, como a das galinhas. Criados em gaiolas, os be-
zerros estão sujeitos a uma série de complicações, quando,
finalmente, são postos no chão, em contato com a realidade
do ambiente.
Criadores menos “evoluídos” mantêm seus bezerros em
baias coletivas, sobre piso de palha, ou sobre ripado de ipê,
que é das madeiras mais indicadas para o mister de construir
ripados modelares. Eu também já tive bezerreiros com piso
concretado, para ser usado com palha por cima. Escusado é
dizer que a palha, escassa, acaba sendo substituída pelo
capim-gordura encharcado ainda das últimas chuvas.
J á tive bezerreiros de ipê, em ripado, tudo calculado de tal
forma que o pé do bezerrinho não entrasse no vão das ripas,
por onde deveriam entrar o cocô eo xixi. Deveriam, mas o cocô
acaba se acumulando sobre as ripas.

52
Depois de ter visto centenas de bezerreiros de todos os
materiais possíveis e imagináveis, bambu, borracha, azulejo,
tela de aço, peroba do campo, acabei por encontrar em
Pindamonhangaba, SP, um bezerreiro genial, queapresentava
sempre os melhores resultados zootécnicos e sanitários: o
pasto.
A fazenda de Pinda trabalhava com gaiolas de madeira,
feitas com madeira de marinha, tudo muito limpo, enver-
nizado, higienizado, sem frestas nem arestas, num capricho
total. Quando os bezerros eram postos no chão, depois de
dois ou três meses metidos nas tais gaiolas, davam marcha a
ré.
Diante disso, o fazendeiro aposentou as tais gaiolas
construídas pelo melhor marceneiro de São Paulo
(estavam à venda, quando a primeira edição deste
livro foi publicada) e botou seus bezerros no pasto,
desde o primeiro dia de vida. Mesmo trabalhando com
gado holandês puro de origem, das melhores e mais
famosas linhagens americanas, o fazendeiro obtinha
índices de desenvolvimento dos bezerros iguais ou
superiores aos norte-americanos: vi as fichas
comparativas, com o padrão da raça e as curvas de
crescimento de cada animal.
No sistema de Pinda, os bezerros mais novos eram
protegidos do sol nas horas mais quentes do dia: num
dos cantos do piquete há uma coberta rústica, sempre
muito limpa. Os animais com mais de 20 dias também
contavam com um rancho coberto de palha, muito limpo,
piso de areia, mas ficava a seu critério recorrer,
ou não, à sombra, nas horas mais quentes do dia.
O resto era um piquete bem drenado, muito bem
empastado, com um cochinho para mistura mineral, um
bebedouro e uns cochos ao ar livre, que recebiam capim
picado, feno e ração balanceada, tudo de acordo com
o desenvolvimento dos animais, fêmeas e machos, estes
últimos vendidos como reprodutores.
53
Os resultados obtidos eram excelentes e infinitamente
melhores do que a fazenda conseguia, quando trabalhava
com as tais gaiolas feitas em madeira de marinha. Duasvezes
por dia, os bezerros eram amamentados num sistema
de baldes dispostos em espinha-de-peixe, numa
construção situada entre os vários piquetes usados como
bezerreiros.
O fundamental, no método de Pinda, é que os bezerros
ficavam no chão desde o primeiro dia de vida, um chão
bem empastado, sem poças de lama, perfeitamente
saudável, porque desinfetado pelo sol, que continua
sendo o melhor desinfetante que existe.
Com bezerros mestiços, ou com os indianos puro-
sangue, o sistema de Pinda deve funcionar mil vezes
melhor. De qualquer forma, o essencial é ter piquetes
muito bem gramados e empastados — a base física para
a criação de seus bezerrinhos, qualquer que seja a
raça.
Mistura mineral e água de boa qualidade são indis-
pensáveis. Feno é ótimo e ração balanceada deve ser
fornecida de acordo com suas disponibilidades
financeiras e os objetivos de sua criação, sempre
tendo em vista a relação preço do leite/ preço da
ração. Na alimentação dos bezerros, não faz sentido
substituir o leite pela ração, nos períodos
em que esta última está mais cara do que o leite.
Espero que o meu bom amigo não se esqueça de dar
um leitinho para o filho de sua vaca, que não tem culpa de ter
nascido bezerro leiteiro, numa bacia leiteira, e logo na fa-
zenda de um cidadão que resolveu fazer economia na criação
de bovinos jovens.
O método de Pinda, da Fazenda São Francisco da Boa Vista, deve ter sido abandonado com
a morte do fazendeiro Fernando Alencar Pinto, depois das duasInspeção de Produtos de Origem
Animal, com a deliciosa sigla ETIPOA.

54
primeiras edições deste livro. Foi o que vi de melhor e mais
inteligente, para criar bezerros. Mas tinha o inconveniente de
ser muito simples, muito óbvio, muito eficiente emuito pouco
sofisticado.
Vai daí quea tecnologia leiteira tupiniquim resolveu inventar
a criação de bezerros leiteiros em gaiolas individuais móveis,
parecendo casinhas de cachorros, em que os bezerros ficam
acorrentados, com direito a uma coleira, cada um na sua
casinha.
Abstraindo a trabalheira de mudar de lugar, todo santo
dia (é fundamental), todas as casinhas, com cada um dos
bezerrinhos acorrentados; a trabalheira de levar água, leite e
ração a cada uma das casinhas; o ridículo daquela “cidade de
bezerros acorrentados”; o custo das casinhas e tudo mais —
é possível que, com as gaiolinhas loucas o criador obtenha
resultados semelhantes aos alcançados, durante anos e anos,
em Pinda, com os bezerros soltos nos pastos desdeo primeiro
dia de vida.
Mas o método da gaiolinha é recomendado, até, por
institutos de pesquisas sérios, de relevantes serviços
prestados ao país, como a Embrapa. E é sofisticado.
Daí o sucesso que vem alcançando entre os criadores
de gado europeu puro de origem. Se bem que a Embrapa,
em matéria de bezerros, já tenha inventado um sistema
de lavar bezerreiros pelo método da imersão que foi
um desastre total. Conseguiu, a um só tempo, dar com
os bezerros e os burros n’água.

Walter Pitkin e o leite tipo B — O Pr odutor de


Lei te CCPL, março de 1974.
Num país que já possuiu, ou possui ainda, em seu Ministério da Agricultura,
um órgão denominado Comissão Executiva da Mandioca, não chega a causar
espanto a existência de uma Equipe Técnica de Padronização, Classificação e

55
Inspeção de Produtos de Origem Animal, com a deliciosa sigla ETIPOA.
E foi essa mesma ETIPOA que baixou as Instruções Sobre a Regulamentação
da Produção do Leite Tipo B, trabalho admirável pelo que encerra de lógica e
vínculo com a realidade brasileira. Devidamente interpretadas pelos técnicos
encarregados da fiscalização regional, as Instruções constituem a prova cabal da
existência de vida em outros planetas. Se alguém ainda tinha dúvidas sobre a
existência de vida em Marte, ou em Plutão, deixou de tê-las com a leitura das
Instruções e a notícia de sua interpretação em diversas regiões do território
brasileiro, todas inteiramente de acordo com a pecuária leiteira marciana.
Não sei se o meu bom leitor trabalha em zona que já p roduz o leite tipo B
devidamente misturado com a inevitável solução de hipoclorito de sódio, em que os
ordenhadores devem lavar as mãos cerca de 1.500 vezes (!) por mês. O certo é que
todos os que se estão habilitando para a produção daquele tipo de leite já devem ter
tomado conhecimento da obra da ETIPOA e da fúria interpretativa
dos técnicos regionais, capazes de sustentar que lajotas de pedra rejuntadas não são
similares do piso concretado; capazes, ainda, de exigir que um produtor pinte os
caibros de seu estábulo com tinta a óleo, enquanto seu vizinho é autorizado a dar
uma caiação e um terceiro vizinho, também candidato a produtor de leite tipo B, não
precisa pintar coisa alguma.
Evidentemente, instruções em 10 laudas não podem ser analisadas por inteiro
no espaço de uma crônica. Desde já me penitencio do crime de deixar passar sem
comentário alguma bobice importante. Mas os pontos principais, que vêm dando teto
para os vôos interpretativos dos técnicos regionais costumam ser os seguintes:
1) O curral deve ser devidamente cercado de réguas. Pronto: é régua e estamos
conversados. Com isso, um fazendeiro que tinha seu curral cercado de cabos de aço
— que são o tipo de fecho mais eficiente e mais inteligente que existe, porque os
cabos são resistentes, duráveis, higiênicos e tudo mais — foi obrigado a substituir
a cordoalha de aço por uma régua mambembe, que lasca e fere uma vaca ao primeiro
esbarro.
2) Desacons elha-s e o us o do canzil de madeira. E eu pergunto qual é a relação
existente entre um canzil de madeira e a higiene do leite? E pergunto mais: desde
quando um canzil é menos limpo que uma corrente?
3) ...acons elha-s e o us o de tubos de fer ro galvanizado, ou corr entes , como
substitutivos dos muros e paredes do estábulo, porque permitem maior ventilação,
iluminação e melhor limpeza. Contudo, quem aconselha o uso de correntes para
substituir os muros do estábulo proíbe que se usem cabos de aço para cercar o curral.
4) ...ter pé-direito mínimo de 3,00 metros, a contar da face inferior do tensor da
tesoura. No dia em que o pé-direito for sinônimo de higiene do leite, o leite mais limpo
do mundo será aquele tirado no pasto, onde o pé-direito é infinito, ou quase, se o Dr.
Einstein não me deixa mentir. Nos Estados Unidos, onde muitos estábulos são

56
fechados, hermeticamente fechados por causa do frio, o pé-direito pode ser importante,
porque está relacionado com os metros cúbicos disponíveis por vaca. Aqui no Brasil,
contudo, esse negócio de fixar o pé-direito em 3,00 metros, no mínimo, é uma bobice
do tamanho de um bonde. Existem estábulos limpíssimos, arejadíssimos e soalheiros
com um pé-direito de 2,00 metros, como também existem verdadeiras pocilgas com
5,00 metros de pé-direito, como qualquer um poderá verificar.
5) A sala de ordenha deve atender às condições fixadas no RISPOA. Não deveria
atender a coisa alguma, quando se sabe que uma sala de ordenha forrada, azulejada,
com as janelas teladas, é das coisas mais contra-indicadas que existem num clima
como o nosso. A não ser que o objetivo da ordenha seja dar uma sauna caprichada
nos retireiros, não vejo como justificar uma sala telada, quando as moscas entram
pelas portas, junto com as vacas, e ficam presas lá dentro. Não vejo como justificar
uma sala de ordenha forrada, com o forro envernizado, ou pintado a óleo, se a barriga
da vaca não for também envernizada, ou pintada a óleo. Em outras palavras, não
adianta o teto limpo, limpíssimo, brilhando, se a vaca está suja — e todos sabem que
não é possível lavar uma centena de vacas, enxugá-las e deixá-las em condições de
ordenha, de madrugada, para vender leite a 12 centavos de dólar o litro.
No capítulo da divisão do trabalho no estábulo, o legislador pensou na Lua, ou
em Plutão, quando disse que o pessoal encarregado dos trabalhos deve apresentar
hábitos higiênicos, mas não disse onde é possível contratar esse pessoal. E todos
sabemos que uma das maiores dificuldades com que se defrontam os fazendeiros,
de modo geral, é encontrar empregados que tenham noções mínimas de higiene no
estábulo, quando em casa não têm higiene de espécie alguma.
Para encurtar conversa, a verdade é que o leite tipo B — um leite tirado com alguma
higiene, misturado com hipoclorito e transportado depressa para a plataforma da
Usina — já seria um passo importante, em termos de qualidade de leite, no Brasil,
se não fosse complicado pela baboseira de azulejos, pés-direitos e outras tolices.
A tal análise periódica das vacas é melhor do que nada, mas não garante que os
animais fiquem livres das doenças, sobretudo quando se conhece a trapalhada dos
reagentes para a soroaglutinação e se conhece a orientação oficial do governo, que
insiste nos títulos e suas persistências, deixando as vacas adultas, não vacinadas,
sujeitas a contraírem a brucelose a qualquer tempo.
Muito antes de todos os azulejos recomendados pela ETIPOA, o que precisa
funcionar no leite B é o controle da Usina. Se o leite chega à Usina dentro dos padrões
do tipo B, pouco importa que a vaca tenha ficado presa num canzil ou numa corrente,
e que o bezerreiro fique a cinco, dez, vinte ou cinqüenta metros do local de ordenha.
A não ser que o objetivo da ETIPOA e de seus representantes regionais seja
acrescentar mais um capítulo, inteiro, completo e acabado, ao livro do professor
Walter B. Pitkin A short introduction to the history of human s tupidity , ou, como
foi editado no Brasil: B reve introdução à his tória da estupidez humana.
57
SUMERÁBOM
O LEITE
NEGÓCIO?

Lá vem você com essas perguntinhas inconvenientes. E eu


me vingo falando, falando e não dizendo nada, no melhor
estilo de muitos patrícios que se notabilizaram por sua
capacidade de discursar durante duas horas, ou escrever 18
laudas datilografadas, em espaço dois, sobre a influência da
poeira das estradas municipais na problemática do cultivo
da mandioca forrageira.
J á sei que você deve estar preocupado com o retorno do
investimento, mas aqui na roça a gente diz que retorno é
preocupação de chofer de caminhão. Um homem de seu
gabarito intelectual e financeiro não se deve preocupar com
essas bobagens, sob pena de passar por onzenário, o que é
quase tão grave como ser tachado de usurário ou agiota.
Leite é um bom negócio? Depende...
Para as usinas compradoras, que transformam o leite em
iogurtes e outros produtos caríssimos, deve ser um belíssimo
negócio. Queo diga osucesso empresarial detodas elas: Nestlé,
Parmalat & Cia. Ltda.
Pela óptica e pelo bolso do fazendeiro o negócio semanais,
ou de férias anuais, mas de um único dia, um diazinho só, de
folga, num ano inteiro.
Disso resulta que a carga de serviços dos empregados não

58
não é tão simples de explicar. Tenho amigos que
abandonaram o leite sob o argumento de que é o pior negócio
do mundo. Outros mantêm-se no negócio com a desculpa de
que não sabemfazer outra coisa. E há um grupo quesustenta,
com inteira razão, que vaca mestiça e terra boa nunca deram
prejuízo a ninguém.
Esse é um detalhe importante: gado adaptado e terra boa.
O negócio, ainda quando não seja brilhante — e
definitivamente não é —, tem dois fundamentos:
terras e vacas. As terras boas, quando bem compradas,
s e m p r e
foram bom investimento. E as vacas são bichos
abençoados. Uma vaca nova deixa quatro crias, produz
leite em quatro lactações e ainda é vendida como vaca,
a preço de vaca. Deu para entender?
Se não deu, torno a explicar: aquela novilha que
você comprou amojando, deixou quatro crias em sua
fazenda, geralmente dois machos e duas fêmeas, encerrou
quatro lactações e ainda foi vendida como vaca
leiteira, por ótimo preço, para deixar outras crias
em outras fazendas. Como negócio, acho que rivaliza
com as blue chips .
É preciso notar que o leite é um dos produtos de
uma fazenda leiteira. Os outros são as crias e a
comercialização, na hipótese de você ter queda para
o comércio.
O maior defeito da produção comercial de leite —
além do fato de deixar o produtor meio mesquinho,
pens ando pequeno — está na escravidão a que sujeita
o fazendeiro e sua empresa rural. Neste final de
milênio, de semanas inglesas e indústrias do lazer
e do turismo, chega a ser inimaginável um negócio que
não permite que se tenha um único dia de folga por
ano! Veja o meu bom leitor que não falo de folgas

59
é de brincadeira. Está cada dia mais difícil arranjar quem se
submeta a um esquema detrabalho dessa ordem. Seo negócio
não é brilhante, você não podeter um corpo funcional que lhe
permita pensar em rodízios, folgas, férias, licenças e outras
comodidades trabalhistas. Até pelo contrário, quando folga
um empregado, por motivo de força maior, o trabalho dos
outros triplica.
Depois, há o problema dos domingos, ou a síndrome
dominical, que é um negócio seriíssimo numa fazenda
leiteira. Os obreiros levam muito a sério o fato de
Deus ter descansado no sétimo dia: “Deus abençoou o
sétimo dia e o santificou, pois nele descansou depois
de toda a sua obra de criação (Gênesis)”.
Aí é que está: depois de toda a sua obra de criação.
Antes, Deus disse haja luz, separou a luz das trevas,
separou as águas que estão sob o firmamento das águas
que estão acima do firmamento, e disse: “Que a terra
verdeje de verdura”. Fez o homem, as feras, os animais
domésticos, as aves do céu: em seis dias, Deus fez
o diabo a quatro. Alfim e ao cabo, era justo que
descansasse no sétimo dia.
O trabalhador rural, que não fez obra de criação
alguma, limitando-se a leitear umas vaquinhas, apartar
uns bezerrinhos, varrer o curral e cortar o capim,
também se acha no direito de descansar no domingo.
E tem por si as leis do país. Mas as vacas ainda não
foram informadas do fato e continuam produzindo
leite, normalmente, aos domingos e feriados, exigindo
que se façam todos os serviços normais de uma fazenda.
Não adianta estabelecer um sistema de folgas
semanais, porque o obreiro quer mesmo, e tem razão,
coitado, a folga dominical, o joguinho defutebol, a brilhantina
nos cabelos, a bicicleta e o radinho de pilhas.
Disso resulta uma confusão que não tem mais tamanho.
Na Fazenda Pau D’Alho, durante a semana, os serviços é o
60
começavam normalmente às 5h30 da matina e terminavam
por volta das 16h, sem correria, sem afobação, dentro de um
esquema tranqüilo de trabalho.
Aos domingos, justamente por causa do futebol no
campinho da venda, da brilhantina, da bicicleta e...
do domingo, os serviços começavam às 2h da manhã! Não
raras vezes, antes das 2h, eu já podia ouvir a imensa
máquina de picar capim urrando no curral, embalada
pelo motor elétrico de 20 cavalos.
O barulho assusta o fazendeiro, entre outros motivos
porque ele sabe que o retireiro, que lá está no
escuro, às voltas com as lâminas de aço da forrageira-
ensiladeira, ainda está completamente bêbado! Afinal,
veio da venda direto para o curral...
Essa é uma realidade de que ninguém pode fugir: o
trabalhador rural bebe. E bebe muito, como também são
pinguços os executivos das firmas americanas e os
cidadãos da Rússia.
Diga-se, em favor do nosso trabalhador rural, que
bebe com o seu dinheiro, produto do seu trabalho,
enquanto o executivo americano tem seus martínis
pagos pela empresa. Diga-se, ainda, em favor de nosso
trabalhador rural, que habita o mato, onde as distrações
não são muitas, para não dizer que são nenhumas. A
venda, onde bebe sua cachacinha, é o clube inglês,
onde bate papo, confraterniza e fica sabendo das
últimas novidades. E bota novidade nisso!
A bem dizer, não há nada que aconteça num raio de
300 quilômetros, envolvendo as famílias dos fazendeiros
e dos trabalhadores, de que um empregado rural não dê
notícia. É a mulher do doutor Fulano que fugiu com o marido
dedona Sicrana; éo filho do doutor Beltrano quefoi apanhado
com 10 quilos de cocaína pura; é o doutor Sicrano que foi
indiciado na Polícia Federal pelos trambiques do seu banco;

61
Zezinho que está comendo a mulher do Fagundes atrás do
barracão do açude.
Ainda quando a notícia do indiciamento pela Polícia Federal
tenha saído na televisão, os outros acontecimentos, todos
verdadeiros, não saíram nos jornais ou nas televisões. Mas o
trabalhador rural sabe . Como? É um mistério que talvez só
possa ser explicado na venda. Mas eu nunca fui à venda,
mesmo porque bebia em casa.
Sempre tive empregados que bebiam muito e a turminha
sempre foi muito boa. Dois goles no almoço e uma
garrafinha depois do expediente, quase todo dia. Não
faço a apologia da cachaça, mas constato um fato. E
um fato preocupante, quando se sabe que, aos sábados,
os retireiros emendam da venda para o estábulo, onde
vão mexer com a perigosíssima forrageira, animada por
um motor de 20 cavalos.
Pois muito bem: tendo começado os serviços domini-
cais três horas e meia antes do horário normal, só
r a r a m e n t e
os empregados conseguiam terminar, à tarde, meia hora
antes do normal. Deu para entender? Seguinte: durante
a semana, das 5h30 às 16h; domingos, das 2h às 15h30.
É um mistério só explicável pelo fato de o retireiro
não ter cursos de sistemas, organização & métodos,
nem ser um “Homem de Harvard”. O coitado, para ganhar
meia horinha, trabalha três horas e meia a mais, e
trabalha risonho, de boa vontade, porque é domingo,
dia de descanso do Criador.
E assim temos as madrugadas geladas do inverno, os dias
santificados, os inúmeros feriados municipais, estaduais e
federais, a sexta-feira da Paixão, o sábado de Aleluia, o
domingo de Páscoa, sem esquecer Natal e Ano-novo: todos
festando nas cidades e os retireiros, os capineiros e demais
empregados ocupados na tarefa inadiável de mandar o leite

62
para a plataforma das usinas compradoras. Em outras
palavras: agarrados aos peitos das vacas, mediante salários
que orçam pelos 250 dólares, mesmo assim nas melhores
fazendas.
Uma greve dessas dos metalúrgicos do ABC paulista é
coisa inimaginável numa fazenda leiteira. Tenho um amigo
que se viu diante de problema parecido, quando ficou sem 12
retireiros da noite para o dia. E não é maneira de dizer, porque
foi da noite para o dia mesmo. Na véspera, todos deixaram o
serviço normalmente e, à noite, com as famílias e as mobílias,
embarcaram nos caminhões que os levaram para São Paulo.
Nesse tempo, meu amigo tirava cerca de 4.000 litros de
leite por dia. Passou um aperto dos diabos. Para início de
conversa, todos os bezerros que já não corriam o risco de
morrer de diarréia foram soltos nos pastos com suas mães.
Depois, o fazendeiro com a mulher e os filhos foram para o
curral tentar mungir as vacas restantes, com o adjutório de
uns poucos empregados de confiança. O serviço, no primeiro
dia, terminou depois das 11h da manhã e não mungiram
mais que uns 800 litros, nos diversos currais da fazenda. A
empresa levou meses para se recompor da paulada.
Outra coisa que muito me desgosta, na produção de leite,
é o fato de o fazendeiro pens ar pequeno. Não é a Ford quem
diz: pense forte, pense Ford? Pois o fazendeiro pensa pequeno
quando raciocina em termos de preços de leite — e sempre
raciocina nesses termos.
A “unidade”, para o grande pecuarista, é a arroba decarne;
para o cafeicultor é a saca de café; para o sojicultor é a saca
de soja — e o coitado do produtor de leite só pensa em termos
do precinho que recebe por litro do seu produto, deduzidos
carreto, Funrural, segundo frete e o mais que houver para
deduzir, não sendo possível esquecer os leites desclassificados
do padrão, seja porque estão mesmo sujos, seja porque
entraram no sistema de “rodízio” da usina compradora.

63
Veja que não estou deduzindo outros custos, como ração,
mão-de-obra, medicamentos, juros, etc. Estou pensando
numa “unidade leite”representada pelo preço líquido recebido
pelo produtor, deduzidos carreto, Funrural e
desclassificações, justas ou injustas.
Deixem-me contar o que fiz ontem (dados da primeira
edição deste livro), para tentar estabelecer uma
relação com a unidade-leite, ao preço recebido pelo
produtor, com aquelas deduções já citadas. E faço a
ressalva de que os preços, recém-reajustados, estão
sendo considerados suportáveis pela maioria dos
produtores de minhas relações.
Vou lá dentro buscar uma daquelas calculadoras que
sabem fazer a misteriosa conta de dividir, para falar
sobre o dia de ontem, que passei no Rio de J aneiro,
pelas festas de fim de ano.
Comecei mandando comprar dois jornais: 3,63 litros
de leite. Depois, fui ao calista: 45,45 litros de
leite. Fui de táxi, porque os calos me apertavam:
13,63 litros de leite. E olhem que o consultório do
quiropodista fica bem perto aqui de casa. Voltei a
pé, aproveitando para comprar uma caixa de 25 charutos
nacionais, de boa qualidade, para fumar na passagem
do ano: 236 litros de leite.
Fui almoçar com uma de minhas filhas, num restaurante
simples: gastei 140,90 litros de leite e não cheguei a beber
seis chopes duplos. Botei gasolina no carro: 163 litros de
leite. Comprei um livro de arte sobre fazendas de café no RJ :
590 litros de leite. E o livreiro me garantiu que o livro estava
baratíssimo, devendo subir de preço nos próximos dias. À
noite, fui jantar com o Bernardo Winckler e o Carlos Augusto
Mesquita, dois excelentes amigos, depois de bebermos alguns
muitos uísques em casa do Carlos Augusto, o que explica o
fato de bebermos pouco no restaurante, que é tido como um

64
dos mais baratos dos bons: 272 litros foi a cota de cada
um, na divisão da nota. Antes de dormir, paguei ao porteiro
que me lavou o carro durante uma semana: 136 litros de leite.
Fosse a lavagem feita com leite, em vez de água do Guandu,
e talvez saísse mais em conta.
No dia em que reescrevo este livro para a terceira edição, os
dois jornais custam 8 litros de leite, o corte das unhas custa
80 litros e uma caixa de charutos de boa qualidade continua
custando os 236 litros. J ornais e calistas encareceram à beça.
Outro número de amargar: acabo de mandar buscar, na
padaria da esquina, um litro de leite tipo B e um litro de suco
natural delaranja, ambos pasteurizados, gelados, embalados
em cartolina pela mesma multinacional. Preços: leite, R$ 0,70,
e suco de laranja, R$ 2,39. Que tal?
Portanto, o cafeicultor que vai jantar num restaurante de
certa categoria pode gastar uma ou duas sacas de café; o
pecuarista gasta de cinco a dez arrobas de carne. Pecuarista
e cafeicultor saem do restaurante muito satisfeitos. E o
produtor de leiteéobrigado a jantar no restaurantede comida
a quilo, com as filas enormes e a indignidade suprema de ver
seu prato na balança, coisa que, até então, só era feita com as
comidas dos porcos, das galinhas e das vacas leiteiras, para
ver se estavam dando lucro...
Mas o bom, mesmo, é quando o produtor resolve comprar
um jipe Cherokee, animado pela tração nas quatro rodas,
ótima para as estradas de barro da fazenda: 330.000 litros de
leite. Um Mercedes 600 V12 custa, hoje, um pouquinho mais:
quase 1.000.000 (um milhão!) de litros. É mole ou quer mais?
Numa atividade tremendamente difícil, como é a produção
comercial de leite nos trópicos, você é obrigado a trabalhar
com insumos caríssimos e mão-de-obra de qualidade
duvidosa.
É costume dizer-se, com o propósito de anarquizar com o
produtor nacional, que os preços do leite nos EUA são

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parecidos com os preços recebidos pelo produtor brasileiro,
na fazenda, e queum empregado americano ganha mil dólares
por mês, às vezes um pouco mais, enquanto o salário direto
de um retireiro brasileiro anda pela casa dos 200 dólares
mensais, ou pouco mais, um pouco menos.
Vistos assim, os números são mesmo de amargar. Mas se
vocêexaminar a eficiência do trabalhador nos Estados Unidos
(não falo “trabalhador americano”porqueos retireiros, muitas
vezes, são portugueses, mexicanos ou... mineiros) e a
produtividade do obreiro tupiniquim, verá que nos EUA a
relação empregado/ leite vendido é da ordem de 1/ 1.500,
podendo chegar a 1/ 6.000, enquanto por aqui raramente
chega a 1/ 100 litros por dia. Com isso, um empregado
americano, ganhando dez vezes mais, acaba saindo mais
barato que o nosso.
Será o empregado ianque mais inteligente que o brasileiro?
Não creio. Afinal, a burrice dos americanos é proverbial em
quase todos os níveis, enquanto a esperteza do nosso obreiro,
às vezes, toca pelas raias do inacreditável. Aí adiante devo
falar de algumas diferenças que se podem encontrar entre o
fazendeiro americano e o fazendeiro nacional. Não custa
esperar.
Mas já que estamos no terreno das comparações, deixe-
me dizer que andei vendo as estatísticas das descobertas e
das inovações nas áreas da química, da física, da biologia e da
medicina. E descobri que os americanos entraram com 45
cientistas, contra 28 ingleses, 27 alemães e NENHUM
brasileiro. Vejamos os outros países: França 13, J apão 1,
Dinamarca 4, Áustria 3, Holanda 2, Suécia 3, Rússia 2, Suíça
2, Itália 4, Grã-Bretanha 2, África do Sul 1 (Dr. Barnard),
Canadá 1, Escócia 2, Irlanda 1, Bohemia 1, Nova Zelândia 1,
Polônia 1, Índia 1 ePortugal 1, o Dr. Egas Moniz, que inventou
a lobotomia.
Presumo que você esteja curioso acerca das descobertas e

66
inovações nas áreas que citei. Veja algumas: geometria
analítica, lei da gravitação universal, genética, circulação do
sangue, anestesias, vacina anti-rábica, aspirina, teoria
atômica, classificação das plantas e dos animais, cortisona,
estrutura do DNA, radioatividade, as sulfas, as penicilinas, o
reflexo condicionado, a fissão do plutônio e os raios X.
Voltando ao problema de ser, ou não ser, o leite um bom
negócio, quero dizer que nem tudo deve ser examinado na
conta do DEVE & HAVER apenas. Se a receita operacional
fossea mola-mestra da humanidade, o mundo seria composto
apenas de bicheiros, agiotas, banqueiros e senhorios. Mas
também existem os cientistas, os idealistas, os artistas e os
produtores de leite...
É certo que, em determinadas condições de exploração, o
leite pode transformar-se num negócio brilhantíssimo.
Admitamos, num raciocínio ab absurdo, que a terceira
edição deste livrinho estoure na praça, vendendo que
nem pão quente, ou livro esotérico. Puxando, junto
com ela, os meus outros livros. O leite seria, então,
um ótimo negócio.
É assim, também, com os cidadãos que têm uma
fazendinha, onde produzem algum leite, e por via
disso fazem outros negócios com a cooperativa que
compra seu leite, vendendo pneus, baterias ou fatos
de macaco brancos.
Dirá você que uma cooperativa tem meia dúzia de
caminhões, que não gastam 120 pneus por ano. Certo.
Mas todas as cooperativas de uma região, ou mesmo uma
cooperativa central, têm centenas de caminhões, que
gastam milhares de pneus. Assim, pelo fato de mandar
um leitinho para a cooperativa, você fatura uma
fortuna. Ai daquele que possa dizer, na sua frente,
que leite não é um ótimo negócio.
Pode acontecer, também, que por via de cinco dúzias

67
de litros de leite, que produz por dia, meu caro amigo se
transformenum brilhante dirigente decooperativa, atingindo
as culminâncias dos postos de direção numa cooperativa
central, onde os vencimentos podem passar dos 100 salários
mínimos por mês, além de fring e benefits como automóvel
com chofer, apartamento na cidade e outras conveniências.
Nesse caso, a produção de leite é o melhor negócio do
mundo.
Lá de cima, papando aí seus US$ 10 mil por mês, para
fazer um sucesso tremendo na administração da central,
porque trabalha com matéria-prima baratíssima eainda paga
com atraso, é compreensível que você comece a dizer que os
preços do leite são altamente remuneradores e que todo o
problema do fazendeiro se resume na baixa produtividade.
Deixa estar que a produtividadedesua fazenda ébaixíssima
e os tais preços remuneradores não chegam, nem sequer, a
pagar sua folha deempregados. Mas vocêtem as tetas urbanas,
que rendem um dinheirão, e se esquece de sua própria
condição de produtor, para acusar seus colegas de "baixa
produtividade": alienoculo piper refrigerium.
Tive um amigo, diretor de cooperativa central, que foi à
Europa 43 (quarenta e três!) vezes, em 11 anos. Não lhe digo
o nome, porque era meu amigo e já morreu. Mas que foi uma
orgia de Europa, um excesso de Europa, sempre por conta da
cooperativa, não resta a menor dúvida.
Este é um dos casos, entre vários outros, em que o leite é
ótimo negócio.. É verdade que uma fazenda leiteira, numa
região favorável, trabalhando com gado mestiço, também
costuma ser negocinho bem razoável, sobretudo numa escala
de 200 ou mais vacas em lactação. Ou numa escala menor,
se o proprietário não precisa da renda do leite para sobreviver.
Duro é depender do leite, e viver do leite. Só quem já passou
por isso pode avaliar como é difícil trazer as contas em dia, e
os filhos no colégio, com os rendimentos de uma fazendinha.

68
E a gente passa a entender a atitude daqueles que se
livraram do negócio e têm urticárias pelo corpo inteiro à
simples menção de uma lata de leite ou de um vale de
cooperativa.
Falei, falei e não disse nada. Melhor assim. Mais adiante
volto ao assunto. Por ora, me despeço, porque é tarde e já
reescrevi 20 laudas no embalo do computador. Que, por sinal,
me custou mais de 12 mil litros de leite.
Vou tomar um copo d’água, dessas minerais de litro e
meio, que a gente compra na cidade. No armazém da esquina,
cada litro e meio de água, que brota do chão e não precisa de
frio para conservar, está custando quase quatro litros de leite
(!), preço pago ao produtor. Litro por litro, no armazém, a
mineral vale tanto quanto um pacote de leite longa-vida.
Donde seconclui que o negócio não é assim tão desastroso.
Afinal, com o produto da venda de quatro litros de leite, a
gente pode comprar litro e meio de mineral para acompanhar
o uísque noturno.
Antes de me despedir, por hoje, quero traduzir o fato de
macaco branco que pintou no pedaço: é como se chama, em
Portugal, o macacão branco usado pelos empregados das
plataformas das usinas e pelos retireiros, às segundas-feiras,
nas fazendas brasileiras organizadas. Sim, porque a partir
das terças-feiras os fatos demacaco estão sujos daqueleverde-
amarronzado da bosta curraleira. E sujos ficarão atéa próxima
segunda-feira, com um cheiro insuportável, misto de leite
azedo, bosta e urina de vaca, diarréia de bezerro e suor do
digno trabalhador rural.

Sófocles e a vaca leiteira — O Pr odutor


de Lei te CCPL, janei r o de 19 74 .
Pior do que ter um irmão que gosta de Sófocles, só mesmo ter um primo formado
nos Estados Unidos. E o destino, que parece gostar das desgraças pelo atacado,

69
arranjou-me um irmão expert em teatro grego e um primo técnico em organização
e métodos, matéria na qual seria um dos melhores profissionais do Brasil.
Com a proximidade das férias, já me apavora a perspectiva de voltar a hospedar
o primo, que vem descansar do belo salário, que lhe pagam no Rio, e aproveita a
ensancha oportunosa para botar defeito na organização e nos métodos daqui do
Cantagalo.
Como vem fazer “higiene mental”, já sei que só vai aparecer para o almoço às 4
horas da tarde, e para jantar meia hora depois da meia-noite. Nos intervalos, exige
silêncio para dormir, quando não exige cavalos para galopar feito um doido pelos
caminhos serranos. Pode acontecer, também, que resolva tirar meia hora do seu
tempo com o propósito de me sabatinar sobre os problemas do campo, sobretudo e
principalmente sobre uma tal de produtividade.
Li, outro dia, numa revista especializada em gado holandês, um editorial que
afirmava, entre outras coisas, que “os criadores de gado holandês não são meros
tiradores de leite”. Creio que o editorialista foi pouco delicado para com milhares de
produtores — que chama de “meros tiradores de leite”— mesmo porque não me consta
que esses produtores já tenham chamado os criadores de holandês de “meros
importadores de gado”. E todos sabem que, em sua imensa maioria, eles são muito
mais importadores do que criadores.
E são compradores de leite, na medida em que produzem um leite muito mais caro
do que o seu valor de mercado, seja do tipo C, ou mesmo do tipo B. Os tiradores de
leite, esses, coitados, que não dispõem de outras fontes de renda, como bancos,
indústrias, hospitais ou escolas, precisam tirar um leite que não custe mais caro
do que seu valor na plataforma da Usina. O lucro, no caso, são duas dúzias de bezerras
malcriadas e a certeza de que seu dinheiro, se aplicado noutros negócios, correria
riscos muito maiores.
Nessa hora, de óculos pentafocais na ponta do nariz, meu primo pega régua de
cálculos, lápis, um bloco de papel e começa a perguntar uma porção de coisas, como
os preços do leite, das terras, dos gados e dos insumos — para concluir que o leite
é um péssimo negócio e que eu sou uma cavalgadura.
Ora, grande novidade: qualquer sitiante, que nunca fez curso nos Estados
Unidos, sabe de tudo isso. E sabe, também, uma porção de coisas mais: sabe da
produtividade e da maquinaria, dos fertilizantes e dos créditos, do arraçoamento e
dos manejos complexos — mas também sabe que não pode aplicar uma décima parte
desses conhecimentos na fazenda, sob pena de ir à falência em meia hora.
Mas o meu primo, leitor eventual do editorialista holando-brasileiro, não se
conforma com as roupas dos meus empregados, nem com a higiene relativa do curral.
Por seu gosto, os empregados andariam metidos em macacões impecáveis, o curral
seria pulverizado de meia em meia hora com uma essência de rosas e todas as vacas

70
brasileiras passariam a produzir vinte quilos de leite por dia, em média, porque
é isso que produzem as vacas americanas do Norte.
Ninguém duvida que americanos, ou canadenses, tenham médias de 25 quilos
de leite em seus estábulos — mas no Brasil a gente deve desconfiar de qualquer média
acima de 12 quilos diários, por antieconômica. E vou mais longe quando afirmo, com
a autoridade de mero tirador de leite, que é muito melhor uma média de 9 ou 10 quilos
diários, comendo capim (a vaca, naturalmente...), do que 16 quilos comendo no cocho.
Confesso que fiquei buzina com o tal editorialista, aliás fazendeiro muito
conhecido, que precisa desfazer dos outros para tentar vender o seu peixe. E quem
acabou pagando o pato foi o meu primo, que entrou na história como Pilatos no Credo.
O que é preciso é que o editorialista da revista de gado holandês se convença
de que os “meros tiradores de leite” são um reflexo do meio. E stou certo de que todos
gostariam de andar muito bonitinhos, numa picape refrigerada, enquanto um rebanho
de 50 vacas, na corrente, garantisse uma produção diária de 1.200 quilos de leite.
Mas os meros tiradores não são responsáveis pelo fato de o Brasil ser um país
tropical, isto é, um país abençoado por Deus, bonito por natureza e incompatível com
a sobrevivência zootécnica das raças européias especializadas; não são responsáveis
pela existência de bernes, carrapatos, deficiências minerais, aftosa, raiva dos
herbívoros, forragens de baixíssima qualidade, pobreza quase total de grãos e outros
problemas, mais ou menos sérios, que afligem nossa pecuária leiteira; os meros
tiradores não inventaram a Climatologia Zootécnica, mas tiveram o mérito de sentir
o problema, procurando trabalhar com um gado que resista ao meio ambiente e que
pode não ser o gado da preferência do meu primo, nem do editorialista, mas é o único
capaz de produzir algum leitinho economicamente, na conjuntura. E zootecnia,
minha gente, é a adaptação econômica do animal ao ambiente criatório; o resto é
perfumaria.

71
O LEITE

Temos falado em produtores de leite, fazendas leiteiras,


gado deleite, cooperativas de laticínios, vales deleite— falamos
de uma porção de coisas, mas não falamos do leite. É tempo
de corrigir a injustiça.
O bom leitor de manuais agropecuários está farto de saber
que o leite é um líquido segregado pela glândula mamária
dos mamíferos e se destina à alimentação dos animais jovens,
entre os quais os filhotes de baleia; sabe, também, que se
explora comercialmenteo leitedediversos animais: das éguas,
em algumas regiões da Rússia; das vacas, das búfalas, das
cabras e das ovelhas em vários continentes; da lhama, da
camela, da esposa do iaque, da rena e de qualquer outra
fêmea que se disponha a ser mungida, o que não impediu
que, em Londres, um travesti também tivesse conseguido
amamentar seu filho adotivo.
O leite objeto de nossa preocupação imediata é o da vaca,
estimável fêmea A rtiodacty la , subordem Ruminantia, infra-
ordem Pecora, gênero B os , responsável pelo grosso da
produção mundial. Em termos tropicais, o leite da espécie
bubalina também tem grande expressão e disso os brasileiros
já se deram conta, quando resolveram retomar a criação de
búfalos em bases racionais, organizando-se em associação
de criadores de grande dinamismo.
Do ponto devista legal, leiteéo produto integral da ordenha
completa e ininterrupta de animais saudáveis, bem-ali-
mentados, não fatigados, mantidos em bom estado dehigiene;
não deveconter colostro, é isento de coloração, sabor echeiros
anormais, não deve coagular pela ebulição nem podeexceder
o 4º grau da escala portuguesa.
Portuguesa? Isso mesmo, porque o livrinho que mesocorre
na composição deste capítulo foi editado em Portugal e é de
autoria dos doutores Mário e Fernando Vieira de Sá,
engenheiro-agrônomo o primeiro, médico-veterinário o
segundo.
Como foi possível, perguntará o leitor, reunir em um só
trabalho a colaboração de profissionais que vivem como cão
e gato, e se hostilizam o tempo inteiro, como o agrônomo e o
veterinário? No caso do livro português, foi fácil: trata-se de
pai e filho.
Vieira de Sá, filho, andou trabalhando para a FAO por
largos 25 anos e acabou aprontando obra primorosa, um
livro monumental chamado Lecheria Tr opical, em que revela
seu pessimismo: “...apesar de todos os escrúpulos e de todos
os decretos proibindo a produção de leite em más condições
de higiene, não existe no mundo um produto mais anti-
higienicamente produzido e manipulado”.
No mundo tropical, bem entendido, e em alguns países de
clima temperado, como é o caso de Portugal. Dizem os Vieira
de Sá, pai e filho, a propósito da exploração leiteira em seu
país: “Os estábulos imundos não podem existir, nem as vacas
leiteiras podem passar fome. Mas só dessa forma é que o
lavrador consegue explorá-las economicamente, o que
dificulta imenso o trabalho de fomento e melhoramento”.
As dificuldades são imensas, em todos os sentidos, tanto
em Portugal como no Brasil. E os autores portugueses já
explicavam, na introdução de seu livro A s vacas leiteiras :
“Dado o alto grau de baixo nível do nosso povo, cujo índice
mais verídico é o analfabetismo, somos francos em considerar
a utilidade muito relativa do presente trabalho. Não há
portanto meio-termo: ou se encara o analfabeto e a esse não
se lhe pode escrever, ou se encara a massa de doutores e para
esses o livro, evidentemente, é demasiado elementar”.
Complica-se a situação na Terra Papagallorum, aliás
descoberta pelos portugueses, onde a massa de doutores
também é analfabeta, haja vista a qualidade de nosso ensino
universitário. Mas isso não chega a prejudicar a utilidade
deste livrinho. Escrevo porque a atividade me distrai e não
penso na massa de doutores, penso em quatro ou cinco
amigos, todos inteligentíssimos, e você, leitor, acaba de ser
incluído na lista.
Sendo o produto mais anti-higienicamente produzido em
todo o mundo tropical, o leite é também um dos mais
fraudados. O capítulo das adulterações a que pode
estar sujeito dá para compor um livro de 300 páginas.
A fraude primeira, e a mais elementar, é a adição
de água, além daquela que é legalmente misturada ao
leite pela vaca. Estudando a composição centesimal média do
leite, você verá que ele tem cerca de 87,20 de água, 3,90 de
gordura, 3,45 de proteína, 4,75 de carboidratos e 0,70 de
sais, como cálcio, fósforo, ferro, magnésio, cobre, iodo, etc.
Noutra análise, você vai encontrar 88,2% de água no leite
de vaca e 86,16% no leite de cabra, contra 80,85% no leite de
ovelha. Mas isso não importa. O que importa é constatar que
a água entra legalmente, em alta porcentagem, em todos os
leites, por obra da natureza.
Se a natureza, que é sábia, introduz tamanha quantidade
de água no leite, você, que é esperto, vai achar que pode
alterar aquela proporção. Afinal, você já ouviu dizer que uma
pouca de água de mina, criteriosamente adicionada ao leite
de suas vaquinhas, serve para cortar a acidez do produto.
J unte-se o fato de que, produtor criterioso, você está farto
de saber da importância do frio na produção de um leite de
boa qualidade. E já ouviu falar de um aparelho chamado pré-
resfriador, de placa, de cortina, em cascata, em tanque de
expansão, para resfriar o leite imediatamenteapós a ordenha,
impedindo, assim, a multiplicação desenfreada de sua carga
bacteriana.
Acontece que o pré-resfriador, normalmente fabricado
pelas multinacionais, é um equipamento caro e você
já está afundado até o pescoço nas dívidas que
contraiu para montar a fazenda. Daí a conveniência
de utilizar um artifício chamado maldosamente, por
mim, de pré-resfriador português, santo remédio para
conservar todos os leites do planeta.
Consiste o referido invento num bloco de gelo de
dois quilos, feito no freezer de sua casa com água de mina
filtrada, numa fôrma plástica de sorvete Kibon.
Iniciadas as operações de mungidura, você bota um bloco
de gelo (sem a fôrma plástica, por favor!) no fundo de cada lata
de 50 litros. E vai despejando o leitefiltrado por cima. Quando
o latão estiver cheio, você terá 48 litros de leite resfriado, mais
dois litros de água transformada em leite, isto é: 50 litros de
leite.
Animado com o sucesso da adição de dois litrinhos de
água de mina em cada latão de50 litros, coisa dificílima de ser
descoberta nas análises da plataforma da usina compradora,
e apoiado no argumento de que os dois litrinhos de água por
lata são “para compensar o leite que eles me roubam”, você
talvez comece a usar dois pré-resfriadores portugueses (4kg
de gelo) por lata de 50 litros. Aí, o negócio fica bem mais fácil
de ser apanhado pela fiscalização, o que não impede que
alguns produtores, dentre eles gente muito conhecida neste
pobre país, já tenham sido apanhados pela adição de até 15
litros de água em cada latão de 50 litros de “leite”.
A partir dos três litros por latão já é fácil descobrir o
trambique aquático na plataforma da usina compradora:
afinal, são 6% de água, além daquela que é legalmente
introduzida pela vaca. Mas os fiscais ficam temerosos, como
que esmagados ao peso da imensa responsabilidade.
Afinal, você é um sujeito de projeção nacional, sempre
lembrado para um ministério. Ontem mesmo você apareceu
na televisão, na entrega de um prêmio econômico. E os fiscais
vêem televisão, como também lêem jornais, onde encontram
suas declarações e seus retratos: és fotogênico, marreco.
A água, pensam os fiscais, deve ter sido acidental — como
se fosse possível “acidentar” um latão novo, estanhado, de tal
maneira que apareçam quatro litros de água, 8% do líquido
total, em todo o vasilhame remetido por você para a
cooperativa.
Com o passar do tempo, você fica animadíssimo e entra na
casa dos 10 litros de água por lata, 20% do total, e a operação
começa a prejudicar a plataforma da usina compradora.
Primeiro, porque já não pode compensar nos leites “ácidos”
que tasca nos pequenininhos, que não aparecem na televisão
e não estão cotados para ministro; depois, porque reduz as
margens costumeiras para adição científica de água no leite,
no trecho plataforma-usina central.
Falei de sua reclamação sobre o leite que “eles me roubam”
e o leitor deve estar pensando que me refiro aos empregados
de sua fazenda, ou ao chofer do caminhão que faz o carreto
entre a fazenda e a usina. Não e não! Os empregados recebem
de graça, embora a lei faculte o desconto em folha, dois litros
de leite por dia. É a média e a regra quase geral. No princípio,
você mesmo compra latinhas de dois litros, revestidas de
estanho, uma para cada família.
Acontece que, depois de algum tempo sendo usadas para
cozinhar feijão ou guardar açúcar, as latas estanhadas
desaparecem, ou acabam, sei lá. E o obreiro, coitado, que não
tem dinheiro para comprar latas bonitas, nem tem grandes
conhecimentos da área dos cilindros, acaba aparecendo no
curral com uma vasilha plástica, dessas que a mulher do
fazendeiro ganha no cabeleireiro, próprias para a
comercialização de quatro ou cinco litros de xampu.
Você émesquinho ao ponto de impedir que os empregados
continuem levando quatro ou cinco litros de leite,
por família, além da galonagem que bebem no estábulo?
Eu, felizmente, nunca fui.
Essas retiradas diárias, que fazem parte do salário
indireto do obreiro, nada têm de furto. O roubo a que
você referiu-se, indignado, quando justificava a
adição de água ao leite remetido, é o que vem por
escrito, nos vales do leite, emitidos pela plataforma
da usina compradora.
Você tem latas de 50 litros e manda dez latas,
cheias até a boca. É de se presumir, portanto, que
tenha enviado 500 litros de leite, mas recebe no dia
seguinte um vale de 475 litros. Paciência.
Hoje, pensa você, vem um vale de 520 litros,
“porque mandei as dez latas cheias e mais uma lata
pela metade”. Metade de 50 são 25, foi o que você
aprendeu no curso primário: 500 + 25 = 520, porque
vocêdeixa margem de cinco litros para os erros do sujeito que
anota os vales.
Na manhã seguinte, quando está acabando de tomar café,
você vê passar a carroça que foi levar o leite ao ponto de
embarque no caminhão. O empregado, solícito, vendo que
você já acordou, pára os bois com a carroça lá na porteira e
vem correndo, para entregar o pão ea correspondência trazidos
pelo caminhão doleite. J unto com eles, o valedo leitefornecido
na véspera: 501 litros...
Furioso é pouco, para definir seu estado. Você vai à usina,
protesta, faz ver ao fiscal da plataforma que 500 + 25 não
podem somar 501. E le explica que deve ter sido problema na
balança, pois o leitedecada produtor é jogado numa balança,
onde é pesado. E promete ficar atento, para que o erro não se
repita.
No dia seguinte, sua produção é de 515 litros, mas você
quer testar a lisura da firma compradora e só manda dez
latões, todos novos, nenhum deles amassado. É outra
desculpa, a conversa do latão amassado. Os 15 litros restantes
você leva para casa, na esperança de encontrar sua mulher
acordada, para fazer um queijo. Comoela ainda está dormindo,
e continuará nesse estado até depois das 11h da manhã, o
jeito é mandar que a cozinheira faça um doce de leite.
Se foram 500 litros, pensa você, amanhã recebo um vale de
500 litros. O fiscal prometeu que vai tomar cuidado.
Temo-lo ao café, dia seguinte, meu bom produtor de leite,
quando surge a carroça chacoalhando suas dez latas vazias,
de volta do ponto. Agora, a iniciativa de apanhar o pão e a
correspondência é sua, no jardim, defronte do alpendre da
sede. J unto com as cartas dos bancos, avisando queos títulos
estão vencidos, vem o vale referente ao leite mandado na
véspera. De relance, você fica feliz quando lê 500 litros. E
pensa: até que eles não são desonestos, coitados.
De volta à mesa, você resolve aproveitar um fundinho de
xícara de café para comer o pão fresquinho, meio murcho, é
verdade, que chegou pelo caminhão do leite. E é quando está
fazendo suas preces matinais, agradecendo a Deus pelo fato
de, apesar de produtor de leite, ainda ter um pedaço de pão,
e uma pouca de manteiga para lhe barrar por cima — é nessa
hora que você volta a conferir o vale do leite, o tal que,
finalmente, veio com a medida certa.
Ajeitando os óculos deleitura, o que vêo meu ilustreamigo?

COOPERATIVAAGROPECUÁRIA DE CATOLÉ DO ROCHA DE


RESPONSABILIDADE LIMITADA
Dr. Leitor deManuaisAgropecuários
O SR...........................................................................................................
ácido NODIA 26/maio/ 199 7
500LITROS DE LEITE ...............
ENTREGOU...........

Na parte de baixo do vale, escrita com a caligrafia hesitante


do encarregado, semi-analfabeto, que teve a consideração de
escrever “Dr. Leitor de Manuais Agropecuários” depois do
Sr., uma palavrinha só: ÁCIDO.
Pronto: leite ácido, que deveria ultrapassar os 18 graus na
Escala Dornic, mas na realidade foi uma vingança da
plataforma, pelo fato devocêter reclamado da balança. Todos
os que já privamos da amizade dos diretores de uma
cooperativa sabemos queeles têm método infalível para vingar-
se de qualquer fornecedor reclamão. Chamam o funcionário
da plataforma e dizem: “Tasca ácido naquele sujeito”. E o
cooperado, que lá está no curral da fazenda às voltas com as
vaquinhas, recebe pelo leite “ácido” um preço que não paga,
sequer, o carreto entre a fazenda e a cooperativa.
E agora: como é que você vai provar que o leite não estava
ácido? J á sei: você decidiu dar um tiro na testa do fiscal da
plataforma. Nele, coitado, que só cumpreordens? Então, você
resolve matar o presidente da cooperativa, aliás um excelente
sujeito, muito amigo de todos nós.
Matar como, se ele nunca aparece na cooperativa? O art.
121 do Código Penal comina penas severíssimas para o crime
que você pretende cometer: reclusão de doze a trinta anos.
Qualquer promotor deJ ustiça consegueprovar que leiteácido,
isto é, matar por causa de um vale deleite ácido, é motivo fútil:
portanto, homicídio qualificado. Pena: reclusão de doze a
trinta aninhos.
Mas a sua fúria é de tal ordem que você não está nem
ligando para o Código Penal. E parte para a cidade com uma
pistola Walther PPK no porta-luvas da camioneta. Chegando
à cooperativa, lança um olhar furioso para o fiscal da
plataforma, que retribui com um sorriso encabulado. E lá vai
nosso produtor de leite, escada acima, em vias de se
transformar num homicida (qualificado), à procura do
presidente.
“O presidente? Ele está na fazenda”, informa a mocinha da
secretaria, bonitinha como ela só.
Lá no fundo, bem no fundo de sua cabeça, passa a idéia de
que, sendo condenado a 20 anos de reclusão, você jamais
poderá comer aquela coisinha fofa, de lindos dentinhos,
peitinhos que até enternecem, com uma pontinha de cor,
para dar resistência ao meio tropical, moça que tem sido objeto
de suas atenções e seus presentinhos nos últimos três meses.
Contudo, a honra de um produtor comercial de leite está
muito acima dessas considerações carnais. E você pergunta
pelo diretor comercial, também excelente sujeito, muito amigo
nosso. O diretor, que esteve no escritório até há coisa de uns
10 minutos, sem supor que era o alvo da descarga de sua
Walther PPK, acabou de sair para o banco.
Resta o diretor industrial, que você mal conhece e que
também pouco aparece na cooperativa, da qual é dirigente
numa jogada política, para impedir que possa levar os
fornecedores de sua região para outra cooperativa, ou para
uma indústria compradora de leite.
Ei-lo no escritório, meu caro produtor de leite, com uma
pistola Walther enfiada no bolso da calça e uma jovem
secretária sorridente, sentada atrás da escrivaninha. A
iniciativa cabe a ela: “Quando é que o senhor vai ao Rio?”
Você pergunta por que e ela explica que precisa visitar a
irmã, que mora em Bonsucesso: quer pegar uma carona. Ora,
meu caríssimo produtor, na estrada para o Rio de J aneiro
existem, pelo menos, uns 50 motéis, muitos deles com piscina
e hidromassagem, todos com TV em cores, ar-condicionado
e cama redonda.
Sua emoção éindescritível! O carro, a mocinha do escritório
(tão bonitinha!), o motel: “É a glória!” pensa o meu ex-quase-
assassino, quando solta um berro formidável, que estremece
o escritório, assusta a mocinha e faz surgirem, na sala, o
guarda-livros e seu auxiliar, que trabalhavam numa sala
vizinha.
“O senhor está bem?”, “Quer tomar um copo de leite
gelado?”, “Precisa de um comprimido?” — todos perguntam,
ao mesmo tempo. E a mocinha, trêmula, acrescenta: “O
senhor soltou um grito que me assustou”.
Mas você não tem como explicar que, ao pensar numa
tarde de motel com ela, coisinha fofa, acabou tendo
uma ereção, coisa que às vezes acontece até mesmo com
os preocupadíssimos produtores de leite deste país
grande e bobo. E a cabeça do pinto esbarrou na trava
da Walther PPK, pistola contra pistola, num acidente
que podia ter conseqüências gravíssimas — e doeu pra
burro, vale anotar.
Voltemos à água de mina, que você adiciona ao
leite, para compensar o que lhe é roubado. Quando o
negócio chega aos 15 litros diários (30% do volume
total), a cooperativa protesta com uma cartinha muito
educada, encarecendo ao senhor produtor o obséquio de
mandar verificar se alguma irregularidade está ocorrendo em
seu estábulo, já que “os nossos laboratórios, mais uma vez,
acusaram...”
Você, indignado, aparece no escritório da empresa
compradora do leite para dizer que o problema não se
repetirá, porque o empregado que estava fraudando o
produto já foi demitido. Deixa estar que sua conversa
com o retireiro foi assim: “Ô Zé, vê se manera na água,
que os homens estão desconfiados. Até o fim do mês bota só
os dois quilos de gelo”.
Dia seguinte, seu leite quebra 100 litros, o que pode ser
atribuído ao fato de o retireiro ter sido dispensado.
Cheguei até aqui sem falar, uma única vez, em alguma
coisa a nível de qualquer coisa. Presumo que você esteja
furioso com a omissão, já que hoje as coisas precisam andar
a nível de, para ficarem nos conformes da indigência mental
da maioria dos nossos escribas. Faço-lhe a vontade: a nível de
fazenda, as fraudes são tantas que seria fastidioso
pormenorizá-las. Fastidioso e perigoso, porque você
procuraria copiá-las em seu estábulo, com evidente prejuízo
para a saúde da população.
A escola da vida e, melhor que ela, a escola do leite são as
grandes conselheiras do produtor sobre o que fazer, quando
fazer e como fazer para “conservar” o produto. Erro, e erro
uma porção de vezes, se desando a ensinar aqui como se
“conserva”, como sepode “segurar”um leite na fazenda. Erro,
porque estou ensinando um procedimento ilegal; erro, porque
você já está muito mais adiantado, no assunto, do que eu.
Ainda assim, vamos lá: água de mina, antibióticos, formol,
bicarbonato de sódio, bicromato de potássio, hipoclorito,
iodophor, peróxido de hidrogênio, água de cal — os produtos
são tantos quantos sejam imagináveis. E úteis para a
conservação do leite.
Não raras vezes, a gente entra nessa de conservar o leite
mesmo sem querer. Foi o que aconteceu comigo durante dois
anos — e posso afiançar que estava rigorosamente inocente
no caso.
Nesse tempo, nossa primeira e única ordenha era feita no
escuro ainda, quase sempre às 4h da matina, porque o
caminhão passava para apanhar o leite às 6h em ponto. As
instalações do meu curral, na época, eram precaríssimas. E
a higiene dos obreiros refletia a realidade nacional.
Ainda assim, nosso leite jamais foi condenado, a não ser
nos tais dias do “rodízio”, de que já falei ou ainda vou falar.
Era um leite sempre muito bom, mesmo quando ficava no
caminhão, ao sol, entre as 6h da manhã e as 4h da tarde,
como andou acontecendo algumas vezes, nos atoleiros da
estrada infame.
Ora pois, um dia abateu sobre nosso rebanho certa
manqueirinha, maldita manqueirinha contagiosa, que
deixa manquitolantes todas as vacas de um estábulo
e resulta num prejuízo tremendo, porque o leite vai
de grota, quebrando sempre mais de 50 por cento. Não
garanto, mas o nome deve ser pododermite.
Cidadão prevenido, eu havia mandado construir um
pedilúvio rústico, anos atrás, justamente para uma
emergência como aquela. E tinha comprado, por indicação
de um veterinário da cooperativa de São Gonçalo do
Sapucaí, MG, que me pareceu profissional competente,
os ingredientes para encher o pedilúvio com uma
solução de formol e sulfato de cobre, a não sei
quantos por cento.
Enchi o pedilúvio de água, calculando ter gasto
mais ou menos 200 litros, e disse para o compadre: “Vai lá
dentro e traz o sulfato de cobre e o formol, que estão naquela
prateleira atrás dos arreios de serviço”.
Evaporou-se o bom compadre, retornando daí a instantes
com cinco quilos de sulfato de cobre e meio litro de formol,
tudo que restava de uma compra de 10 litros. Tendo em vista
o fato de que o formol não é geralmente considerado bebida
saborosa, e tampouco é comestível, logo intuí o que se tinha
passado.
Meus empregados, já tendo “trabalhado com formol” nas
fazendas de alguns sujeitos inescrupulosos, julgaram que
eu tinha comprado os 10 litros do produto para ser posto no
leite. E era o que vinham fazendo há tempos, daí a qualidade
e a resistência do nosso leite.
Conservante, usado conscientemente, só me lembro de
um período. Acontece que empreguei um sujeito muito bom
e muito velho; muito bom para ser mandado embora e muito
velho para aprender algumas noções de higiene. Pessoalmente
imundo, era, no entanto, ótima pessoa etinha especial aptidão
para lidar com todos os animais da fazenda, entreeles o patrão.
Nosso leite, mungido pelo bom velhinho, começou a tomar
pau todo santo dia. Era um pau firme, porque nem precisava
analisar: bastava destampar os latões para ver a quantidade
de sujeira que sobrenadava o produto.
Com muita paciência consegui que o velhinho, nosso chefe
de estábulo, começasse a usar filtros plásticos, ao menos
para filtrar a sujeira grossa, visível a olho desarmado. Ainda
assim, o leite continuava sendo condenado e a plataforma
tinha toda a razão.
Um dia, chamei o velhinho para uma conferência,
aboletado sobre uma régua do curral. A propósito,
penso que as réguas deviam ser adotadas como assento pa-
dronizado de todas as conferências, de todas as reuniões,
porque não permitem que o sujeito perca tempo com rodeios:
o traseiro dói eo conferencista cuida de acabar com a palestra.
Chamei o velho e disse: “O negócio tá danado, seu J osé. Sei
que o senhor é um homem muito limpo e muito caprichoso,
mas o leite continua tomando pau. E assim
não dá”.
Ele, com um jeito bem humilde, rodando nas mãos
imundas um boné imundo, perguntou: “O senhor já
trabalhou com água oxigenada?”
Eu disse que não, que nunca tinha “trabalhado” com
água oxigenada, e ele completou: “Pois é... lá na
fazenda onde eu trabalhava nunca s aiu uma lata de leite
s em ág ua oxig enada ”.
Achei a informação deliciosa, porque sabia que ele
trabalhou, a vida inteira, na fazenda, sabe o leitor
de quem? Do presidente da cooperativa central, a
cooperativa das cooperativas!
Lá se foi o Dr. Eduardo para a farmácia da cidade, onde se
dizia existir da água oxigenada chamada “da boa”, porque
tem 130 volumes e queima a mão do freguês. Águas
oxigenadas de10 ou de 20 volumes absolutamente não servem
para os nossos métodos de conservação do leite.
Perguntei ao farmacêutico: “O senhor tem água oxigenada,
da boa?”, e ele foi tratando de retirar um galão de 5 litros de
uma prateleira situada sob o balcão.
“Para que serve essa água?” perguntei, me fazendo de
bobo.
E ele: “Sei não. Só sei que vendo isso pra caralho. E o
senhor, quer para quê?”
Respondi que não era para mim, que era encomenda de
um amigo. E o eficiente farmacêutico perguntou: “Deve ser
fazendeiro, não é?”
Era sim. Era produtor de leite nas serras do Estado do Rio.
Nos meses em que tive o bom velhinho chefiando o estábulo,
sempre utilizei o peróxido de hidrogênio a 130 volumes e
nunca tive o menor remorso, porque andei lendo muito sobre
o assunto e vi que a FAO recomenda a água oxigenada como
única forma de se ter um leite de boa qualidade nos trópicos.
De todas as substâncias conservantes, a água oxigenada
(da boa...) é a única que não faz mal à saúde e é, segundo
Vieira de Sá, o único meio prático, eficiente e econômico de
que o produtor leiteiro, e os governos, podem dispor para
promover o desenvolvimento da indústria leiteira tropical,
numa fase inicial.
Mas o brasileiro, que é mais realista que o rei, condena o
método (permitido em algumas regiões dos Estados Unidos)
porque entende que este aqui é um país muito civilizado, tem
clima comparável ao da Sibéria e retireiros formados em
Oxford, ou em Harvard.
Permitindo que se obtenha um produto final (leite, queijos
ou qualquer outro subproduto) de muito melhor qualidade,
o único inconveniente da água oxigenada é que o método de
conservaçãonão estimula a higiene. Mas o estímulo da higiene,
como acentua Vieira de Sá, não vem dos decretos, nem da
polícia: é um problema de cultura, de educação, de nível
social.
Não fosse a água oxigenada e não se beberia leite em Roma
no verão. É o que diz o mesmo autor, baseado no depoimento
do presidente doC omitato I taliano per I l Latte e Derivati. Não
sei até que ponto os exemplos italianos são válidos, mas é
forçoso reconhecer que se trata de país menos
subdesenvolvido que o nosso.
Diz ainda o veterinário da FAO que, “recentemente, alguns
países adiantados não têm tido dúvidas em regulamentar
esse uso, na convicção de que é preferível a sua aplicação sob
regras bem definidas à sua proibição legal ao lado de seu
emprego clandestino, que é inevitável”.
Se você tem um mínimo de higiene e tem um equipamento
de frio eficiente, é quase certo que a conservação
de seu leite, sem água oxigenada a 130 volumes, ou
qualquer outra substância, não deverá apresentar
problemas.
Conservado pelo frio, o leite tem condições de
agüentar perfeitamente muitas horas, até mesmo por
alguns dias, já que o desenvolvimento bacteriano fica
inibido.
Dirá você, homem limpo e civilizado, de família
limpa e civilizada, que não pretende que o leite de
suas vaquinhas tenha carga bacteriana. Pois fique
sabendo que, mesmo mungido com a melhor higiene do
mundo, o leite já sai da teta da vaca com 1.500 bactérias por
ml. E cada bactéria se multiplica por dez em 24 horas, se o
leite é conservado a 10 Celsius.
°

Mantido a 21 , temperatura geralmente inferior à média de


º

muitas de nossas bacias leiteiras, o leite vê suas bactérias


multiplicadas por 750 nas primeiras 24 horas. Imagine o que
acontece com um leite sujo, conservado à temperatura
ambiente, ou ao sol, como se vê por aí.
O frio, portanto, é o melhor remédio para quem deseja
produzir leite de boa qualidade. E esse deve ser o seu caso.
Não consigo pensar que um sujeito com a sua qualificação
moral e profissional possa concordar com qualquer forma de
adulteração do leite que vai produzir. Tudo que eu disse aí
atrás sobre água de mina, e mesmo sobre o pré-resfriador
português, só pode ser entendido como brincadeira.
Mas o fato de você trabalhar corretamente não quer dizer
que todas as plataformas das usinas compradoras façam a
mesma coisa. Não faz muito tempo, um técnico amigo meu,
analisando diversas amostras deleiteadquirido numa grande
cidade brasileira, encontrou em 80% delas sinais de uma
substância para “plastificar a caseína”.
O que é isso? Não sei, porque não sou técnico em laticínios.
Mas o meu amigo diz que o negócio não faz bem à saúde e só
pode ser adicionado pela usina empacotadora, que tem
“tecnologia” para trabalhar com o produto.
Muito a propósito, é rara a plataforma de usina regional
que não utilize um artifício contábil chamado Sebastião da
Silva, ou J osé da Silva, ou J oão da Silva, para justificar o
aparecimento de 18 mil litros mensais na relação do leite
vendido.
Você, que conhece o município como a palma de sua mão,
sabe da existência de vários Zés e J oões da Silva, mas não
conhece nenhum que produza 600 litros de leite diários.
O Tião contábil é um Sebastião sem CPF, inscrição de
produtor ou fazenda, inventado pela plataforma para dar
saída nos 18.000 litros de leitelho acrescentados, ao longo do
mês, às carretas isotérmicas mandadas para os grandes
centros. É verdade que as plataformas das usinas,
compradoras do leite que chega aos grandes centros, têm
fiscais e laboratórios muito bons, mas 600 litros de leitelho
diluídos em 24.400 litros de leite confundem o melhor dos
técnicos.
O leite usado para a fabricação de manteiga é escolhido
entreo leite ácido recebido pela plataforma regional, já porque
está mesmo ácido, já porque foi incluído no tal rodízio, que
ferra produtores em grupos, todos os dias, de tal forma
que a safadeza seja distribuída irmãmente entre todos os que
não têm proteção especial da usina, como os chefes de linha
(maiores produtores de cada linha), os diretores, os políticos
de expressão nacional e outros fulanos igualmente
considerados. É uma forma relativamente democrática, ou
cooperativista, de “condenar” o leite remetido, pagando por
ele uma importância ridícula.
Com o leite ácido e o “ácido”metidos na desnatadeira, você
obtém duas coisas: o leite desnatado e o creme. O leite
desnatado volta a fazer parte do total de leite recebido, que já
leva o eufemismo de “padronizado”. Resta o creme, que vai
ser batido até se transformar em manteiga, liberando o tal
leitelho, 600 litros por dia, que devem ser injetados na carreta
isotérmica a partir de um caninho de meia polegada, de aço
inox, ligado a um depósito, também de aço inox, tudo muito
limpo, que fica escondido no forro do edifício.
Se uma usina vende 18 mil litros de leitelho, aliás leite, por
mês, é preciso contabilizá-los, sob pena de algum espírito de
porco descobrir a tramóia. Daí a necessidade de inventar um
vago Sebastião da Silva, CPF nihil.
Notas leiteiras e multinacionais —
R evi sta dos Cr i ador es 1 9 8 0 .

Enquanto não for decretado um empréstimo compulsório sobre a asneira, todo


mundo se julga no direito de dizer bobices em assuntos leiteiros. E algumas
autoridades costumam exceler.
Excele quem diz, como aquele bambambã de Brasília, que é preciso dar tempo
aos produtores, para que fiquem em condições de produzir leite com 3,2% de gordura.
Ora, quem produz a gordura do leite não é o fazendeiro, é a vaca — e a estimável fêmea
geralmente dá leite com muito mais do que 3,2% de gordura, sem que o produtor possa
interferir diretamente na matéria.
As raças zebuínas puras, as raças européias jersey e guernsey e as bubalinas,
sobretudo as raças bubalinas, são todas produtoras de leite muito gordo, oscilando
entre 4,5 e 7,5% de gordura, ou mais. Vi, outro dia, os resultados das análises de
gordura do leite de vacas mestiças, num centro de pesquisas da EMBRAPA, e a média
estava em torno de 4,3%. Mas isso não impede que as análises feitas nas plataformas
das cooperativas e das indústrias, pelos técnicos da usina compradora, acusem quase
sempre leites muito magros, por motivos mais do que compreensíveis, quando se sabe
que a gordura deve ser paga à parte — e paga pela usina compradora.
A gordura do leite, de constituição muito complexa, é rica em vitaminas A e D,
importantíssima no desenvolvimento dos animais jovens, sobretudo quando sua
alimentação é exclusivamente láctea. Daí a grita dos pediatras contra os leites
magros, com 2,0% de gordura, ou menos, que se vendem no mercado.
Dentro da confusão armada para indispor o produtor de leite com a população,
uma das coisas que se diz é que o leite brasileiro é de baixíssima qualidade.
Infelizmente, é mesmo. Contudo, é preciso apurar até que ponto o produtor tem culpa
no cartório.
Como o leitor ignora e ignorava eu, até andar lendo alguma coisa sobre o assunto,
o leite das regiões tropicais é mais resistente à acidificação do que o leite das zonas
de clima temperado. O fenômeno intriga os técnicos e talvez se explique pela maior
riqueza de proteína do leite produzido pelas vacas de sangue zebuíno, em comparação
com as vacas de puro sangue europeu.
Apesar dessa maior resistência inicial, o leite chega em péssimas condições ao
balcão do Sr. J oaquim, da padaria. E o próspero comerciante é obrigado a comercializar
o produto em sacos plásticos, hermeticamente fechados, sem qualquer possibilidade
de aumentar sua margem de lucro — realmente muito pequena — pela adição de uma
pouca de água.
Na plataforma da usina, o leite já foi examinado por técnico do governo federal,
para ver se traz água da fazenda, além daquela que é legalmente misturada pela vaca.
Infelizmente, existem produtores chamados “aguadeiros”, que exageram na adição
do precioso líquido, chegando a misturar até 10 ou 15% de água ao leite que remetem
para a usina. Esses produtores são malvistos pelo comprador e, muitas vezes,
impedidos de continuar fornecendo leite (e água).
Casos de até 15 litros de água por latão de 50 litros de leite (?) têm sido descobertos.
Ainda recentemente, um big s hot do mercado de capitais estabeleceu-se com uma
granjinha leiteira no Estado do Rio e, quando todos pensavam que ele, baseado em
sua experiência no mercado financeiro, fosse introduzir algum tipo revolucionário
de tecnologia na produção de leite, descobriram que introduziu água. Água de mina,
puríssima, duplamente filtrada, mas água: 15 litros em cada latão. Chamado às falas,
botou a culpa no empregado.
Mas o que parececorreto é que o produtor honesto não pode e não deve ser culpado
pela má qualidade do produto, a nível de consumidor. Vá lá: a nível de consumidor.
Se o produtor capricha na ordenha e tem um eficiente equipamento de frio, entra na
história como Pilatos no Credo, porque o seu leite é examinado e aprovado na
plataforma da usina. A partir daí, ele não tem a menor interferência na manipulação
e comercialização do produto.
Acusá-lo de produzir um leite de má qualidade é muito mais fácil do que acusar
as usinas, que são poderosas, eventualmente multinacionais. E antes que algum
amigo de São Paulo se abespinhe com essa referência às multinacionais — que tenho
amigos dirigindo as estimáveis empresas —, deixem-me dizer que nada tenho contra
eles, amigos, e contra elas, multinacionais.
O fenômeno “empresa multinacional” é inseparável do mundo moderno; ignorá-
lo é impossível; hostilizá-lo é tolice. Lamento não ter aqui à mão o último livro de
Galbraith, para fazer um parágrafo mais caprichado, com o auxílio do estilo do
economista americano.
Mas sempre que faço alguma referência, ainda que inocente, às multinacionais,
um amigo chia, esperneia e promete aparecer na fazenda trazendo uma caixa de
uísque, para discutir o assunto. Infelizmente, seu tempo é escasso, pelo que ainda
não vi a cor do seu uísque. Sobram o chiado, os gritos e a choradeira telefônica.
Receio que concordemos em tudo, ou quase tudo. Evidentemente, olhamos o
fenômeno sob prismas diferentes. Ele o vê do alto de seu escritório refrigerado,
mamando 6 mil dólares mensais de ordenado, com os estudos de seus filhos pagos
na Inglaterra. Eu pago o colégio de minhas filhas em J uiz de Fora, compro os produtos
veterinários dele a peso de ouro e vendo meu leitinho a preço debanana — em sentido
figurado, porque as bananas já estão mais caras do que o leite.
De qualquer forma, desafio meu bom amigo a descobrir, entre as dezenas de
lingüiças fabricadas pelas multinacionais, fartamente anunciadas na televisão, uma
única lingüicinha como aquelas que pretendo oferecer-lhe, para acompanhar nosso
prelibado uísque. E as lingüicinhas saborosas, incomparáveis, de porco e de frango,
são feitas em J uiz de Fora, em açougues de fundo de quintal, sem propaganda, sem
tecnologia sofisticada, sem executivos engravatados, mas com amor e competência.
Admitamos, então, que as multinacionais, com seus veículos, seus medicamentos,
seus iogurtes, costumam exceler — mas não têm competência para fazer lingüiça.
Falávamos do leite e acabamos nas multinacionais. Voltemos ao produto que,
fisiologicamente, é um líquido segregado pela glândula mamária, destinado à
alimentação dos mamíferos na primeira fase da vida; legalmente, é o produto integral
da ordenha completa e ininterrupta de animais saudáveis, bem alimentados, não
fatigados, mantidos em bom estado de higiene, isento de colostro, de coloração, sabor
e cheiro normais, que não coagule pela ebulição e não exceda em impurezas o 4 grau
°

da escala portuguesa.
Onde encontrei tudo isso? Ora, no livroAs vacas leiteiras , de Mário e Fernando
Vieira de Sá, com o qual me delicio de vez em quando. Querem ver uma passagem?
Vamos lá: “...contudo, tendo dado por experiência folhas da vinha a vacas leiteiras,
estas começaram a dar menos leite. Concluímos então que as folhas da vinha
diminuíam a secreção láctea. Não seria devido, contudo, a outra coisa? Não sabemos”.
Nem eu.
ORGANIZAÇÃO
DA EMPRESA

Situação curiosa, a do meu ilustre amigo: ainda não


comprou suas vaquinhas e já sabe utilizar
criteriosamente o peróxido de hidrogênio, prova provada
de que o brasileiro começa pela sonegação e pela
fraude, para só depois preocupar-se com a eficiência
e a produtividade.
É da empresa que vamos falar, agora que já o
encontramos às voltas com uns tantos hectares de
terras, sem saber como instalar o negócio. Foi ótimo
que você encontrasse aquela mina, lá no alto do morro,
para abastecer de água a fazenda inteira. Exagerado,
apenas, o cano de duas polegadas: é água para acudir
ao consumo de uma pequena cidade.
Gostei de sua casa, viu? Tem muita renda, muito
babado, mas ficou bonita. Só não gostei da marca do
uísque, nem do fato de você não ter soda para oferecer.
O mordomo também está meio desengonçado naquele
jaleco e parece desconfortável nos sapatos mal-
engraxados. J á sei que você vai dizer que ele ainda
está sendo amansado. Certo: pode ser que melhore. Por
enquanto, está meio ridículo.

92
Para instalar o negócio leiteiro você vai contar com a
orientação técnica e comercial do vigarista que controla sua
região. As bacias leiteiras estão cheias de velhacos, muito
simpáticos, muito insinuantes, produtores de leite eles
próprios, cada um com “jurisdição” sobre determinada área.
Não se espante com a organização dos velhacos: bandidos
sabem organizar-se. Que o digam os mafiosos e os bicheiros.
Com uma só diferença: enquanto os mafiosos prestam contas
às famiglias , e os bicheiros aos banqueiros, o vigarista lácteo
trabalha por conta própria.
Como todo malandro, ele é muito simpático; como bom
tratante, é esperto; o objeto de sua especial atenção
chama-se caju, anjinho, jacu, doutor, pato — tem
vários nomes, de acordo com a região. E o meu bom amigo
e leitor já deve ter desconfiado de quem se trata.
O trapaceiro, que não sabe soletrar a palavra
escrúpulo, não age como vigarista: ele é vigarista.
Não sei se deu para perceber a sutileza, de resto
muito sutil. A velhacaria congênita explica a
facilidade com que o trapaceiro se movimenta nos
negócios. Às vezes, é um produtor de leite médio; não
raras vezes, é um grande produtor, mandando mais de
mil litros diários para a usina. Mas é, antes e acima
de tudo, um vigarista.
E é o singularíssimo cidadão que vai aparecer na
fazenda que você comprou, para oferecer seus préstimos
na fase de instalação do negócio. Afinal, ele conhece
os pedreiros da região, sabe o telefone do veterinário
mais próximo, tem os nomes dos turmeiros que batem
os pastos — essas coisas que qualquer fazendeiro
sabe, menos você, recém-chegado naquela roça.
Encantado com as gentilezas do novo colega, você vai
embarcar na canoa dele, nas vacas vendidas por ele, nos touros

93
indicados por ele, nos animais de serviço escolhidos por ele —
até descobrir que as vacas de três crias, com uma produção
garantida de 18 quilos de leite, têm mesmo dez ou doze crias
e jamais chegaram a produzir 10 quilos de leite por dia. E não
me venha com a conversa de que você não vai embarcar na
canoa do vigarista: todo mundo embarca.
Orientado pelo tratante regional (e os malandros são
extremamente zelosos de suas áreas de ação, raramente
invadindo a zona dominada pelo concorrente) você vai cair na
besteira de comprar as vacas antes de estruturar a fazenda
em termos de comida, mão-de-obra e equipamentos.
Com isso, o vigarista fatura imediatamente uma centena
de vaquinhas. E você vai vender as sobreviventes, quando as
há, para o açougueiro mais próximo. Pode acontecer, também,
que ele venda as 100 vaquinhas, receba o dinheiro e depois
o convença de que você ainda não tem estrutura para receber
o gado. Nesse caso, numa demonstração de amizade e boa-
vizinhança, ele concorda em ficar com as vacas por alguns
meses, em troco do leite e das crias, além de cobrar pensão
por cabeça. Parece brincadeira, mas é a mais pura verdade.
Dependendo de suas disponibilidades financeiras e das
características do mercado, o velhaco vai impingir-lhe gado
mestiço, ou gado de puro-sangue europeu. E o seu poder de
decisão de nada adiantará, porque o homem é convincente;
e é colega...
Segunda-feira, de volta à cidade, almoçando com os seus
amigos no J óquei ou no Country, você vai dizer: “Tenho tido
muita sorte, porque um amigo está me ajudando. É um
fazendeiro muito experiente, tira muito leite etem meajudado
muito”.
O abastecimento de leite para os grandes centros de
consumo do Brasil costuma ser feito a partir do gado mestiço,
do gado puro europeu, das raças ou tipos tropicais, dos

94
bubalinos, dos zebuínos puros e das importações de leite em
pó da Europa e da Nova Zelândia.
Produzido a partir do gado europeu puro, o leite é mais
caro do queo produzido pelo gado mestiço, mas tem expressão
volumétrica no total. Com os sistemas de produção em free
s tall, quando o gado não vai ao pasto e é, de certa forma,
isolado das agressões do clima tropical, têm sido instaladas
muitas fazendas de expressiva produção diária. Uma delas,
no Sul de Minas, caminha para a produção de 50 mil litros/
dia, média de 18kg/ vaca/ dia, segundo me contou um
jornalista que a visitou em 1996. Outras há, e são várias,
montadas no mesmo esquema, a partir degado europeu puro,
geralmente da raça holandesa variedade malhada de preto,
produzindo de 3.000 a 8.000 kg/ dia.
Contudo, o grosso da produçãoeconômica, ou, pelo menos,
da não muito antieconômica, vem do gado mestiço deeuropeu
com zebuíno. Vamos falar dele mais adiante, quando
cuidarmos do bovino produtor de leite nos trópicos.
Os búfalos, que são responsáveis por grande parte do leite
produzido comercialmente no subcontinente indiano, devem
ocupar, mais dia, menos dia, lugar de destaque na produção
econômica de leite no trópico brasileiro. E os zebuínos,
milenarmente adaptados aos trópicos, também se têm
constituído numa surpresa agradável. A raça gir, por exemplo,
tem conhecido progresso admirável.
Por fim, temos as importações de leite em pó, que têm
merecido a preferência dos governos, e mesmo de algumas
centrais distribuidoras de leite, por motivos muito fáceis de
entender e muito difíceis de engolir. Tudo será visto a seu
tempo, já que agora temos coisas mais importantes para fazer,
quando pretendemos esquematizar seu negócio leiteiro.
Acho que você deve começar perguntando qual é a
capacidade de suporte de sua fazenda, nas condições

95
atuais. Sim, nas condições de ontem, de hoje e da próxima
seca, queéinevitável. Não se esqueça de que, seos canadenses
têm a neve, nós temos a seca. O grande zootecnista J oão
Soares Veiga sempre se queixava da falta de neve, por aqui,
para que o fazendeiro brasileiro se convencesse de que, com
o nosso período seco, a comidatambém acaba. É aquela velha
estória: pelo fato de não termos neve, achamos que o gado
pode viver sem pastos durante quatro ou cinco meses por
ano.
Não mevenha com o suporte da fazenda que vocêplanejou,
dos silos que ainda não construiu, das capineiras e do milho
que ainda não plantou, dos pastos que ainda não subdividiu
e melhorou: no contexto atual de sua propriedaderural, tudo
que foi planejado não tem a menor importância. O queimporta
é saber o suporte atual, isto é, da próxima seca.
O gado que sua fazenda suporta hoje é o que poderá
suportar durante a próxima seca. Não importa que hoje
você possa botar 10 cabeças nos pastos, se na próxima
seca vai ficar reduzido a duas. E as outros oito: que
fazer com elas?
Tenho fórmula dealgibeira para encontrar o suporteatual
de seus pastos. Se fosseum sujeito instruído, eu poderia falar
aqui em unidadeanimal, ou U.A., para ficar mais chique. Mas
você não vai ter uás em sua fazenda: vai ter vacas, novilhas,
bois de carro, animais de serviço, que precisam de comida
para viver e produzir. Precisam de comida aqui e agora, e não
nos seus planos forrageiros para o ano de são nunca.
Tal fórmula de algibeira consiste em dividir por quatro o
número de cabeças que você, assessorado pelo tal velhaco
regional, pensa comprar de imediato.
Assim, quando os seus cálculos indicam uma capacidade
atual da ordem de 100 vacas adultas, e o vigarista acha que
o doutor deve comprar 100 vacas, e o corretor garantiu que

96
é fazenda para mais de 100 vacas, e o antigo dono disse que
já teve 100 vacas — você deve limitar a compra a 25 matrizes,
no máximo. Por intermédio do malandro, naturalmente.
Contudo, seo otimismo dos seus cálculos indica 120 vacas
eo tratante só fala em 100, o divisor deve ser por cinco, porque
é preciso respeitar a experiência do vigarista regional, que
conhece a palmo todas as fazendas da região, inclusive essa
que você comprou. Nesse caso, limite suas compras a 20
vacas, sob pena de começar a perder gado de fome antes
mesmo da próxima seca, inevitável, anual, infalível.
Não sei se você construiu o estábulo. Ou, por outra, sei,
sim: não ligou para os meus conselhos e exercitou seu
complexo dearquitetofrustrado na construção deum estábulo
enorme, para 150 vacas. Só espero quetenha lido, no trabalho
dos colegas lusitanos, aquela advertência deliciosa: “As
paredes dos estábulos devem ter resistência suficiente para
suportarem o seu próprio peso”.
Realmente, éo mínimo que se pode esperar de uma parede:
que suporte o seu próprio peso. Mas não pense que, pelo fato
de suportarem, e pelo fato de o estábulo ter sido construído
para 150 vacas, você deva comprar 150 vacas: compre, no
máximo, 40, de acordo com a tabelinha divisória citada aí
atrás. Ainda quando possa proporcionar sombra e água fresca
para centenas devacas, um estábulo não ésinônimo decomida.
E suas vacas vão precisar de comida.
J á sei quevocêinstalou belíssimo equipamentodeordenha,
em circuito fechado, na sala de mungidura: lo felicito, como
dizem os portenhos. A ordenha mecânica é um negócio
inevitável; mais dia, menos dia, você precisará recorrer à
mungidura por meio de máquinas. E já que vai utilizar um
equipamento caro e complicado, que seja o mais automático
possível.
A ordenha com os baldes e os latões também funciona,

97
mas a lavagem manual e diária de todos aqueles tubinhos
desanima qualquer um. Releva notar que, não sendo o
equipamento muitíssimo bem lavado, vocêjamais conseguirá
produzir leite de boa qualidade. Em igualdade de condições,
mão suja, máquina suja, o leite mungido à mão ainda é muito
melhor do que o mungido à máquina.
J á sei que o operador da firma vendedora vai dizer e
demonstrar que a lavagem éfacílima, não fosse ele um técnico
no assunto: um técnico interessado na comissão, ainda por
cima. Mas o seu empregado, o Zé disponível, ou compadre
Mané, que vai lidar com a ordenhadeira, não acredita em
bactérias, ou em higiene. Não acredita em nenhuma dessas
bobagens, ele que só toma banho uma vez por semana e não
se importa decriar diversos porquinhos edezenas de galinhas
na sala de visitas da casa onde mora, como também não se
importa que os filhos chafurdem na lama desde a mais tenra
idade.
Convencê-lo da necessidade de desmontar e lavar,
diariamente, todos aqueles tubinhos, duros e muito
pouco práticos, é trabalho de Sísifo. E você não é
Sísifo, nem foi condenado a empurrar enorme pedra de
morro acima, para vê-la rolar de morro abaixo,
obrigando-o a recomeçar o trabalho do zero.
Portanto, quanto mais automática for a lavagem do
equipamento, melhor. E as ordenhadeiras em circuito
fechado, com aqueles tubos de pirex, ou em aço inox,
têm um sistema bem eficiente de limpeza, com um mínimo
de interferência do Mané, pelo que o meu honrado
produtor de leite estará dispensado de fazer vestibular
para Sísifo.
O ideal seria que as fábricas de ordenhadeiras, ao
fornecer o equipamento, incluíssem na fatura um

98
retireiro sueco. Mas não incluem. E o jeito é recorrer ao
compadre, ou, o que seria menos ruim, à mulher do compadre
Mané.
Em algumas regiões brasileiras, sobretudo no interior de
São Paulo e nos estados do Sul, é possível contar com a
colaboração da comadre nos trabalhos de mungidura
mecânica. O serviço não é pesado e a mulher tem mais jeito
para limpar todos aqueles tubinhos, além de ser muito mais
sensível, fêmea que é, para a importância de retirar as teteiras
no momento certo, evitando o comprometimento do úbere
pela sucção exagerada. É aquele negócio: chupa, mas chupa
com carinho.
Regiões há, contudo, em que as comadres têm complexo
de s ocialites e se recusam a trabalhar para aumentar a renda
familiar. Talvez se mirem no exemplo de madame,
que acorda às 11h e vai para a beira da piscina queixar-se da
vida, das crianças e da criadagem.
Animado com a aquisição do equipamento de ordenha e
com a defesa da inevitabilidade da mungidura mecânica, você
deve perguntar se está dispensado de contratar retireiros.
Não, não está. O profissional da mungidura manual é
indispensável. Muitas vacas não se adaptam à ordenha
mecânica; outras há que precisam ser ordenhadas à mão por
problemas demachucados emastites. E quasetodas precisam
ser repassadas na munheca, apesar de os fabricantes de
ordenhadeiras garantirem que não.
As plantas e as instalações necessárias para a sala de
ordenha são fornecidas pela firma vendedora do equipamento.
Você deve seguir tudo à risca, porque o negócio já
foi exaustivamente estudado em diversos países muito
menos subdesenvolvidos que este nosso. Não me venha
com inovações, nem com idéias geniais.
Instalada e paga a ordenhadeira, contratados os

99
retireiros, compradas as vacas por intermédio do tal vigarista
regional, adquiridos os latões de 50 litros de ferro estanhado,
e os baldes de aço inox, e as telas de náilon para coar o leite,
você tem todo o direito de começar a vender o produto. Atrevo-
me a dizer que é isso que está louco para fazer, desde que
meteu na cachola a idéia de se transformar em produtor de
leite.
O processo de venda direta ao público varia ao sabor das
mudanças na legislação. Ora, a venda direta é proibida; ora,
é permitida, cumpridas certas exigências. Quer esteja
proibida, quer seja permitida, o certo éque vocênão vai deixar
de obter o dobro do preço, vendendo o leite de porta em porta
na cidade mais próxima, só pelo prazer de se inscrever como
fornecedor de uma das multinacionais que estão abocanhando
o setor.
Deixa estar quenão há mal nenhum no fato deum brasileiro
honrado, como é o seu caso, encher uma carrocinha com o
leite mungido criteriosamente e sair por aí, de casa em casa,
vendendo o produto aos litros. Assim, você tem o maior
interesse em vender um leite de boa qualidade, para formar
freguesia. Quanto ao comprador, ao ferver o leite, acaba com
todas as mazelas que ele possa trazer da fazenda, por causa
do péssimo estado sanitário do gado que lhe foi impingido
pelo vigarista.
É justamente porque o sistema funcionava que andou
proibido durante largos anos. Deixa estar que, nos
dias de folga do empregado encarregado de entregar
o leite, você fica meio ridículo na boléia da carroça,
vendendo um litro aqui, dois acolá, três para dona
Maria, um para dona Loló. Quem diria?! Um executivo
do primeiro time, que assombra, pela ousadia, o
mercado de capitais, e encanta com seu donaire as
colunas sociais, encarapitado na boléia de uma carroça,

100
vendendo leite, aos litros, numa vila do interior...
Ainda quando você resolva optar pelo sistema de venda
direta — e já existem miniusinas no mercado, com
pasteurizador rudimentar, empacotadora e seladora, para
seu leitesair embalado da fazenda — há que pensar no “social”.
Lembra-se dele? Era objeto das preocupações do Dr. Sarney
durante seu governo, que “Deus seja louvado” já terminou.
Sua carrocinha não vai distribuir leite para Bozanos,
Marinhos, Ermírios de Moraes ou para o Dr. Mudda
Hassanal Bolkiah, sultão do Brunei, considerado o
homem mais rico do mundo. Vai vender leite para gente
paupérrima, viúvas, aposentados, desempregados. Nos
primeiros dias, naquela fase de afreguesar, ainda
pode ser que você consiga receber o pagamento.
Depois, quando seu empregado estiver íntimo de
dona Maria e de dona Loló, vai acabar deixando três
litros por dia, em cada casa, para receber no final
do mês. Sempre são 90 litros que dona Maria, e mais
90 litros que dona Loló vão ficar devendo, porque o
dinheiro da aposentadoria não vai ser depositado no
dia certo. Em três meses, a vila mais próxima deve
ao doutor, ao bacana que é você, milhares de litros
de leite.
Pergunta aqui o seu amigo, respeitado autor de
manuais agropecuários: Você vai ter coragem de cobrar?
Aliás, nem adianta coragem, porque não vai mesmo
receber. E quando interromper o fornecimento pode
ficar certo de ter comprado a inimizade de toda uma
vila, de toda uma cidadezinha, justamente aquela de
onde vêm seus empregados.
Quando acaba, seu leite será vendido para uma
usina, que tanto pode ser uma cooperativa, como uma
indústria, multinacional ou não, que deve estar s ob
permanente fis calização federal. Em idioma tupiniquim,

101
isso quer dizer que o fiscal aparece de 15 em 15 dias, para
assinar todas as papeletas condenatórias do leite, que vão ser
usadas nas próximas semanas pelo técnico particular da
plataforma compradora.
Se o negócio é vender para a cooperativa, ou para a
indústria, cabe ao meu amigo escolher empresa que tenha
linha de leite na estrada mais próxima de sua fazenda. Há
fazendas servidas por duas ou três linhas de leite, de dois ou
três compradores, e você pode contratar o fornecimento com
um deles, cuidando, ao mesmo tempo, de perguntar se tem
cota, ou se vai receber pelo “excesso”, se o leite édo tipo B (seu
estábulo foi autorizado), tipo C, tipo especial, qualquer tipo,
dos muitos inventados pela burocracia, para omesmo produto:
“...integral da ordenha completa e ininterrupta de animais
saudáveis, bem-alimentados, não fatigados, mantidos, etc”.
É verdade que você vai ouvir dizerem que o leite tipo A tem
mais proteína que o tipo C, que por sua vez tem maior carga
bacteriana do que o tipo B, que tem mais qualquer coisa que
o tipo X. Tudo conversa fiada, ou quase. Conheço leites tipo
C limpíssimos e já vi estábulos de leite tipo B com 80% das
vacas brucélicas. Instalação de luxo nunca melhorou a
qualidade do leite, nem aqui, nem na China. O que melhora
éo capricho, o amor, a dedicação, o profissionalismo daquelas
moças lindas ordenhando vacas ao ar livre, em muitos países
europeus. Aliás, a qualidade não melhora: a ordenha ca-
prichada e o frio podem, quando muito, conservar as qua-
lidades do leite, mantendo baixa a carga bacteriana.
Bem que eu poderia encher, aqui, umas vinte laudas sobre
os regulamentos de compra de leite, as tabelas, as cotas e os
“excessos” — toda a velhacaria oficial e oficiosa que se faz com
a comercialização do produto. Mas não quero privar o meu
bom amigo do desprazer de descobrir, com o tempo e por
seus próprios meios, toda a sorte demalandragens inventadas

102
pelo comprador do seu leitinho, coonestado pelas portarias
e pelos regulamentos do governo, visando a ferrar, bem
ferradinho, o cidadão que teve a infeliz idéia de adquirir duas
ou três dúzias de vaquinhas, numa República assaz tropical.
As indústrias são empresas que se estabelecem visando a
adquirir o leite para revenda ao consumidor, ou para
transformá-lo em iogurtes, cremes, queijos, manteigas, etc.
Quando vendido em sacos plásticos o leite é dito in natura ,
para dar a entender que está ao natural, como saiu da vaca.
Evidentemente, ninguém vai dizer que ele foi desnatado,
padronizado, levou fosfatos para plastificar a caseína (acho
que é isso, mas não estou bem certo), levou conservantes
vários, criteriosamente manipulados com a tecnologia da
usina empacotadora. E não foi pasteurizado, porque o
pasteurizador, naquele dia, estava com defeito...
Na década de 70, visitei famosa indústria de laticínios de
Minas, que vende um queijinho bem razoável, e constatei que
não tinha pasteurizador. Melhor que isso: nunca teve
pas teur izador , como confessou um empregado.
Ontem, mesmo, o J ornal do B ras il trazia a notícia de uma
indústria carioca que foi multada porque o seu leite estava
com 7,2% de água, além daquela misturada legalmente pela
vaca. Anteontem, foi o leite de uma conhecidíssima empresa
multinacional, que tinha formol! E o negócio vai por aí fora.
Além das indústrias, as cooperativas de laticínios podem
comprar o leite de sua fazenda. Não preciso ensinar ao leitor
o que é uma cooperativa. Afinal, você está farto de saber da
história dos 28 tecelões de Rochdale e de saber dos
fundamentos do cooperativismo, um negócio que tem tanto
de bonito quanto de utópico, a partir do momento em que é
dirigido por um animal visceralmente egoísta.
Dir-se-á, e não falta quem o diga, que a cooperativa é sua:
parabéns, ilustríssimo proprietário deuma cooperativa. Trate

103
de caprichar na mungidura de suas vaquinhas, remetendo o
produto lácteo para a plataforma de “sua” empresa, que vai
recompensá-lo, até ao final do mês, com três ou quatro vales
de leite “ácido”, ou fora do padrão, dentro do tal rodízio que
todas fazem e nenhuma admite fazer.
A melhor maneira de saber tudo que uma cooperativa
pode fazer com os seus cooperados é conversar com os
diretores recém-empossados, indignados com a velhacaria
da diretoria anterior. Esses não escondem que, na
falta de 800 litros de leite para fabricar requeijão,
sempre aparece alguém para sugerir: “Dá ácido no
doutor Fulano”.
E o doutor Fulano, que mandou limpar criteriosamente
as tetas de suas vaquinhas, e lavou meticulosamente
os tubinhos de seu equipamento de ordenha, tomando
o cuidado de resfriar o leite imediatamente depois
da mungidura, vai passar pelo dissabor de receber um
vale de 800 litros de leite “ácido”, pagos por uma
tabela que nem dá para cobrir o frete entre a fazenda
e a usina.
Os novos diretores assumem seus cargos com as
melhores intenções, depois de eleição duríssima para
derrubar a ditadura anterior. Ditadura, sim, porque
esse é um dos paradoxos do cooperativismo brasileiro:
gera ditadores, donos de cooperativas, senhores de
baraço e cutelo de um escritório, um armazém e uma
plataforma processadora de leite.
A exemplo dos seus colegas que se apossam de um país,
os ditadores de uma cooperativa inventam parlamento
fantoche, que podeter o nomede Conselho deAdministração,
mas deveria chamar-se Conselho de Bajulação. Muitos
ditadores nomeiam primeiros-ministros seus diretores
comerciais, ou assumem o comando do barco, sem rebuços,
dizendo-se benfeitores da cooperativa. Só falta a idéia de se

104
proclamarem imperadores, a exemplo daquele crioulo
Bokassa, com o espetáculo inacreditável de sua coroação.
Mas não estão longe disso.
E o curioso é que são ótimas pessoas. Entre eles, me prezo
de contar com bons amigos, o que talvez se explique pelo fato
de que as ditaduras são ruins somente para quem não está
por cima. Sempre fui mais vendedor de reprodutores do que
produtor de leite. O leite da fazenda era usado, em boa parte,
para alimentar os bezerros, e a venda do excedente não
alcançava 20% dofaturamento. Por isso, tinha com os diretores
de minha cooperativa as melhores relações de amizade, o que
nunca impediu que recebesse, de vez em quando, um vale de
leite “ácido”.
O certo é quetodos os diretores, queassumem prometendo
consertar a cooperativa, acabam fazendo igual ou pior que
seus antecessores. Fenômeno parecido ocorre com os
retireiros: sempre que vocêmanda embora um ruim, pode ter
certeza de que vai contratar um muito pior.
Em princípio, todos os que disputam, com unhas e dentes,
os cargos de direção de uma cooperativa, e se aferram a eles
por vários e vários anos, não se pejam de dizer que estão
sendo “prejudicados em seus negócios”. Deoutra parte, quem
fica do lado de fora afirma que a diretoria da cooperativa está
cheia de ladrões.
Há um exagero neste último julgamento, porque os
patrícios, que lá estão na direção da cooperativa,
são gente da melhor qualidade, brasileiros
estimabilíssimos e produtores de leite, como nós. Nos
vários anos em que acompanhei de perto a administração
de minha cooperativa, nada vi que se pudesse chamar
de furto, ou roubo, de qualquer dos diretores. Até
pelo contrário, quase todos eram idealistas e muitos
afetavam acreditar no cooperativismo, quando menos

105
porque sabiam que a alternativa, cair nas mãos do industrial,
é uma desgraça pelada.
Ocorre que o negócio “cooperativa regional” é ruim: pouco
leite, custos elevados, margens delucro muito pequenas. Como
não é brilhante, o negócio não comporta a contratação de um
administrador profissional, executivocompetenteebem pago,
que se dedique à direção da cooperativa em tempo integral.
Vai daí que o negócio fica por conta dos diretores, que são
produtores de leite e não têm tempo para ir à cooperativa;
ainda quando tivessem tempo, não saberiam como dirigi-la
tão bem como um administrador profissional. Portanto, o
negócio acaba ficando por conta dos funcionários subalternos,
cuja competência pode ser avaliada pela mediocridade dos
seus salários.
E o círculo vicioso — negócio ruim, acefalia, negócio ruim
— acaba deixando a cooperativa regional, aquela que dizem
ser s ua , em péssima situação financeira. Um estudo realizado
na década de80, entre 60 cooperativas filiadas a uma central,
mostrou que 58 delas estavam em situação de insolvência;
uma, não tinha dívidas, mas também não fazia coisa alguma;
uma única estava em situação razoável.
Ocupadíssimo na administração dos seus negócios
urbanos, ou mesmo na sua fazendinha, e sabendo da
precariedade das finanças da cooperativa, você,
naturalmente, não vai botar o seu na reta: é mais
fácil chamar os diretores de ladrões.
Eles, por sua vez, já estão na reta e avalizaram
milhões de reais no banco, agarram-se aos cargos com
unhas e dentes, por vários motivos. Alguns poucos,
porque são mesmo idealistas; outros, porque são
vaidosos; uns poucos, porque precisam da meia dúzia
de salários que a cooperativa lhes paga, além da conta
de gasolina de seus carros, hoje um item expressivo

106
na vida de qualquer sujeito que seja obrigado a viver na
estrada: quase todos, porque estão na cooperativa regional
visando ao ideal supremo de suas vidas, que é um cargo na
cooperativa central, quando o fulano, finalmente, se
despreocupa da renda proporcionada por suas vaquinhas
leiteiras.
Dito assim, o negócio fica meio cru e pode provocar o
desmoronamento, sobre minha cabeça, de todas as iras do
universo cooperativista. Há que atenuar o depoimento.
Conheço gente deprimeiríssima qualidade, gentededicada,
inteligente, honesta, que acredita mesmo em cooperativismo,
dirigindo certas cooperativas regionais e fazendo parte das
diretorias de cooperativas centrais. Mas o fato deexistir muita
gente boa não exclui a existência de um batalhão de velhacos
vocacionais ou conjunturais, isto é, de berço ou por força das
circunstâncias.
Nos moldes em que foram estruturadas, pulverizando o
recebimento do leite, digladiando-se por causa de alguns
fornecedores, sobrepondo linhas antieconômicas — muitas
cooperativas regionais não fazem mais do que o jogo das
centrais, quese valem disso mesmo, da luta edas dificuldades
das pequenas, para construírem seu império. Perdão, nosso
império. Que, como todo império, está sujeito a esboroar-se;
otomanos, ingleses, romanos e soviéticos não me deixam
mentir.
E o negócio lá vai com as eleições de compadrio, com os
rodízios, com as análises de araque e as guerrinhas regionais:
tudo como dantes no quartel de Abrantes.
“Então, o cooperativismo leiteiro é péssimo?” perguntará
você, assustadíssimo. Não, não é. É um negócio tão bonito,
mas tão bonito mesmo, que não funciona. Ou funciona mal.
De qualquer maneira, sempre serve para não deixar que o
produtor afunde de vez, porque as indústrias, nas regiões em

107
que não existea concorrência das cooperativas, deitam erolam
em cima do produtor, multiplicando por mil todas as
velhacarias quealgumas diretorias, dealgumas cooperativas,
possam eventualmente fazer.
Você bem pode imaginar tudo que um industrial do leite,
nacional ou multi, podefazer, nas regiões em queestá sozinho.
Guerra é guerra — e a indústria está do lado de lá. O leite é
produto perecível: não dá para você estocar na fazenda,
enquanto discute preços ou condições.
“E a fiscalização federal?” perguntará o meu bom amigo,
que se está revelando cidadão muito perguntador. Ora, a
fiscalização federal... Que fiscalização? Você sabe quanto
ganha um fiscal? Você não vê a inacreditável corrupção que
existe por aí, em todas as esferas, em quase todas as
fiscalizações?
Diante da multinacional compradora do seu leite, você é
um joão-ninguém. Enquanto está no mato, pajeando suas
vaquinhas, o fiscal lá está na plataforma em contato diário
(uma vez por semana) com o gerente da multi. Afinal, sua
fazenda fica na Inglaterra, ou num país grande e bobo?

O lucro do leite—
A Gr anja , agosto de 1995
Além dos sistemas de produção que agente estuda nos livros, ou nas revistas
especializadas, como esta A Granja, tenho visitado uma porção de fazendas. Nunca
vi, no Brasil, nada que se compare às empresas leiteiras da Califórnia: vacas de alta
produção, ordenhadas três ou quatro vezes por dia; currais imensos, ao ar livre;
comida quase toda comprada fora; produção de 20 mil/ 30 mil litros/ dia, sem grande
consideração pelo fato de a vaca ser filha de Loló, ou irmã de Sinhazinha. Secou,
vendeu, para comprar outra vaca no leite, ou amojando,
nos leilões semanais, que se realizam na região.
As salas de ordenha param duas ou três horas por dia, quando muito. Retireiros
chegam em seus automóveis, cumprem o horário de trabalho, como nas fábricas, e

108
voltam para suas casas. Se a comadre entra em trabalho de parto, o problema não
é do patrão, é do maridão. Aliás, por lá as comadres têm juízo e não entram em trabalho
de parto sem mais nem menos. Bezerros recém-nascidos são vendidos toda semana.
O lucro do negócio vem de uma rapinha sobre os 900 mil litros produzidos por mês.
Se der para salvar um centavo de dólar por litro vendido, o fazendeiro embolsa 9 mil
dólares. E trabalha feito um desesperado, como só os americanos sabem trabalhar.
De todos os sistemas que visitei por aqui, um dos mais inteligentes era o de um
vizinho. Trabalhava sem grandes preocupações com a produtividade, com gado
mestiço de boa qualidade. Fazenda grande, com 280 animais em lactação, de um
rebanho de 400 vacas adultas. Vaca seca no Brasil, sendo mestiça, perfeitamente
adaptada ao meio, tem um custo de manutenção razoável, para não dizer desprezível.
Sobretudo quando há pasto de sobra. Sem pasto, fica
meio difícil.
A constatação não é minha, mas do Dr. Purgly, das fazendas do Frigorífico Anglo:
“Quando a gente não dá ração, tem de ter pasto, porque sem os dois
fica meio difícil...”
O vizinho citado era, antes e acima de tudo, criador. E criava seus bezerros
com o melhor alimento que se inventou para criar os filhos das vacas: um negócio
chamado leite. Nunca teve médias de curral espetaculares, mas mandava uns 2
mil litros por dia para a cooperativa. Com isso, pagava as despesas da fazenda.
E vivia. Seu lucro estava na escala, no fato de trabalhar com 400 vacas adultas.
Como? É fácil: de quatro em quatro anos, às vezes em menos tempo, vendia as
400 vacas de uma só pancada. Digamos que vendesse 350, a varrer, porque tem
vaca que morre, que cai no buraco, quebra a perna, perde o peito: são coisas que
acontecem.
Ora, 350 vacas a varrer, mestiçonas de boa qualidade, nenhuma de mais
de quatro crias, sempre tiveram bom valor de mercado. Algo em torno de
600 dólares, em média, para vender depressa. Multiplicando-se 350 vacas
por 600 dólares, verificamos que o fazendeiro botava no bolso mais de 200 mil dólares,
limpinhos, a cada quatro anos.
Aproveitava a venda de todo o gado adulto para reformar os currais, tirar os
vazamentos das torneiras, remendar os canos e preparar o “clima” para a entrada em
lactação das novilhas de sua criação, também mestiças, também de boa qualidade.
Logo, logo, seriam 400 vacas adultas. Deu para entender?
Apesar de ter sua fazenda numa região onde é possível comprar aquele subproduto
da indústria cervejeira, que o bobo do Collor confundiu com “a cerveja importada que
os fazendeiros dão às vacas”, meu vizinho sempre evitou complementar o arraçoamento
de seu gado com aquele produto. E dizia: “Na fazenda, a gente já tem tanta coisa para
desgostar, que pode dispensar a cevada”.

109
Realmente, nunca vi coisa para “desgostar” como a cevada que falta, ou sobra.
E são caminhões chegando, tarde da noite, quebrando porteiras, afundando nos mata-
burros, atolando nas estradas de acesso aos currais, rebocados pelos tratoristas mal-
humorados. Se os caminhões chegassem regularmente durante o expediente, tudo
bem. Mas não chegam. Ou, quando chegam, são 10 caminhões, transbordantes de
170 toneladas de resíduo cervejeiro, para o fazendeiro acomodar nos tanques
projetados para 60 toneladas. Nessa hora é que o fazendeiro vê o que é bom para a
tosse. Até o fosso, feito para lubrificar os veículos da fazenda, fica cheio de cevada
misturada com óleo queimado. Se mandar voltar com os caminhões, ótimo, os
motoristas voltam — e nunca mais aparecem para entregar meio quilo do produto.
J á se disse que a limpeza dos tanques industriais é controlada pela “máfia das
cervejarias”. Máfia tupiniquim, mas um negócio meio mafioso, controlado por uns
tantos comerciantes. Gente finíssima, com a condição de que sua cevada seja vendida
noutras bandas que não as nossas fazendas. Há exceções, é certo. Ainda assim,
“fazenda já tem tanta coisa para desgostar”, que o fazendeiro está dispensado do item
cevada.
Lembrei-me do excelente vizinho, e dos seus argumentos, quando me dei conta
de que ando meio resmungão. Deve ser coisa da idade. A vida já tem tanta coisa para
desgostar que o cronista deveria estar dispensado de se aborrecer
com tolices.
Um exemplo? O tal “quem gostaria?”, com que todas as telefonistas do planeta
me atendem. Como não tenho secretárias,nem telefonistas, atendo pessoalmente.
E fico furioso quando, telefonando para algum sujeito, passo
pela ficha de cadastro: “Quem gostaria? De que empresa? Qual é o assunto?”
Quando é um bambambã — e, às vezes, telefono para bambambãs —, tudo bem.
Mas o negócio já se generalizou de tal forma que qualquer subnitrato de
pó de bosta é protegido pelo interrogatório: “Quem gostaria? Qual é o assunto?”
Enquanto isso, os impulsos do telefonema estão sendo debitados na minha conta.
Fico furioso. Se telefonei, é porque tenho assunto importante para tratar com um
cidadão desimportante. E não tenho dinheiro de sobra para gastar
com os impulsos da Teleming, Telecomunicações de Minas Gerais S.A.

110
SISTEMAS
DE PRODUÇÃO

Esqueci-me de recomendar ao meu ilustre amigo, com


entusiasmo, que visite o maior número possível de
fazendas leiteiras, melhor maneira de aprender o que
pode ser feito, e o que não deve fazer, em sua
propriedade rural.
Não me lembro de ter visitado uma fazenda, uma só,
onde não tivesse aprendido alguma coisa. Ora é uma
construção inteligente, ora uma cerca, um animal, um
implemento. Também as maluquices, que não devem ser
feitas, a gente aprende numa visita. Em último caso,
salvam-se o café, o uísque e o biquíni da cunhada.
Uma visita vale mais que mil palavras de texto,
mas é absolutamente indispensável que você não se
deixe levar pelas informações do doutor-proprietário,
porque o produtor de leite é um mentiroso vocacional,
que vive de sonhos e fantasia.
Produtores que dizem tirar mil litros por dia
tiram mesmo uns 300 litrinhos, mas têm a intenção de
chegar aos mil e confundem o desejo com a quantidade
de leite que estão vendendo efetivamente. Agora,
então, que se estão utilizando em todas as bacias

111
leiteiras as ampolas de sêmen de touros maravilhosos,
exaustivamente testados nos EUA e no Canadá, nosso
amigo tupiniquim investe as tripas na aquisição
daquele sêmen e começa a raciocinar em termos do leite
produzido, na América do Norte, pelas filhas dos tais
campeões. Idem, idem, para o transplante de embriões.
Realmente, a carga genética é formidável: o que
falta é um bocadinho de bom senso. E o bezerrinho,
coitado, quando mete a cabeça e as patinhas entremeio
aos ligamentos
sacro-isquiáticos de sua mãezinha, bota o focinho do
lado de fora, espia o ambiente criatório e tem vontade
de morrer de desgosto.
Ainda ontem à tarde fui almoçar na casa de um amigo,
quando chegou um convidado pilotando BMW M-5, modelo
1996, que lhe custou exatos US$ 180 mil, semana
passada, em São Paulo. Sempre são 340HP, molas
reforçadas, suspensão rebaixada, um carro que é uma
jóia, usado nas pistas de diversos campeonatos
europeus. Agora, pergunta aqui o vosso autor de
manuais: você teria coragem de botar aquele carro nos
12 quilômetros de chão que separam sua fazenda do
asfalto?
No capítulo anterior falei da inevitabilidade da
ordenha mecânica e a primeira coisa que você vai
notar, ao visitar as tais fazendas leiteiras, é o
número espantoso de ordenhadeiras desligadas. Ninguém
admite que o equipamento está encostado, mas você,
que não é bobo nem nada, vai ver que os tubinhos de
borracha têm seus orifícios entupidos pelo barro
daqueles marimbondos especializados em vedar
buraquinhos. Quanto ao resto do equipamento, mostra
que não vê sinal de água, nem de sabão, nos últimos
seis meses.
112
Ocorreque, em diversas situações de criação, a quantidade
de leiteétão pequena, eo número de empregados étão grande,
que não custa desviar meia dúzia de obreiros para as
operações de mungidura. Você tem capineiros, balaieiros,
carreiros, limpadores de curral, retireiros, gente detoda ordem,
zanzando pela fazenda inteira: não faz sentido mexer com o
complicadíssimo equipamento de ordenha mecânica, nem
providenciar sua limpeza diária, para tirar 200 ou
300 litros de leite.
Creio que a utilização da ordenhadeira só começa
a ficar interessante a partir dos 800 litros diários,
o que não tem impedido que alguns amigos meus,
produtores de 2 mil quilos de leite por dia, prefiram
continuar na munheca, sob o argumento de que a máquina
quebra o leite. Vale notar que todos têm máquinas
compradas, pagas e instaladas em suas salas de ordenha.
Um fazendeiro inglês, visitado por Fishwick, disse:
“Se eu seguisse minha vontade devia ter seis vacas,
para ordenhá-las sozinho. Não sendo possível, acho
melhor empregar bons ordenhadores, dos poucos que
ainda restam, se é que ainda resta algum”.
O fenômeno é universal. Aqui no Brasil ainda se
encontram bons retireiros, poucos, pouquíssimos,
quase todos na faixa de 55 anos para cima. O pessoal
miúdo é de lascar, daí a inevitabilidade da ordenhadeira
mecânica. Mais dia, menos dia, ninguém vai escapar
das máquinas, nem que seja para mungir escassos 200
litros por dia.
Num sistema de exploração leiteira, por paradoxal
que pareça, nem sempre os ingressos resultantes do
leite são os mais interessantes, nem os mais
expressivos. A criação e o comércio de gado, seja
criado na fazenda, seja comprado para revender, podem
ser muito mais interessantes do que o leite.

113
Cada fazenda tem o seu limite econômico de produção,
acima do qual o negócio pode ficar feio. Ninguém
discute o fato de que é possível, sendo embora raro
e difícil, instalar no Brasil um rebanho com média
de curral de 25 quilos de leite. O busílis está em
saber se essa média é econômica. Algo me diz que não
é. Nos Estados Unidos, existem bacias leiteiras
imensas onde a média anda acima dos 25 quilos.
Li, faz tempo, uma reportagem do coronel Carlos
Helvídio sobre a visita que fez a uma cooperativa com
150 produtores e média de 8 mil quilos de leite, por
dia e por cooperado. Comparei, na ocasião, a situação
da cooperativa americana com uma de nossas centrais,
a CCPL, que tinha 50 cooperativas regionais filiadas
e não tinha um só produtor de 8 mil quilos diários.
Nem de oito, nem de sete, nem de
6 mil quilos por dia.
Agora, vendo a lista dos 35 produtores com melhor
desempenho na safra 94/ 95, do Sistema Integrado
Paulista, que reúne 35 cooperativas em São Paulo,
Minas e Goiás, só encontro um com produção média
diária superior a 4.000 quilos de leite. E cabe a
pergunta: podem-se comparar as pecuárias americana
e brasileira?
Do mesmo coronel Carlos Helvídio, excelente figura
humana, já vi numa reunião de cooperativa a deliciosa
e inesperada providência de... prender um cooperado!
Tinha razão o coronel: o cooperado era um tremendo
agiota, emprestando à nossa cooperativa a juros de
10% ao mês, quando os juros de mercado giravam em
torno de 4%. A cena foi engraçadíssima, quando o
coronel, da mesa em que presidia a reunião, encerrou
a discussão: “Está tudo muito bonito, mas o senhor
está preso!”
Se você monta uma fazenda para vender gado puro,
114
qualquer que seja a raça, é bem possível que os ingressos
obtidos com a venda do leite não representem 30% do
faturamento global.
Mas também existem os produtores que têm todo seu
faturamento a partir do leite: são os aflitos , que
vivem preocupados com os vales da cooperativa e
compram vacas no leite, sempre que a produção de seus
estábulos quebra, por qualquer motivo. Nesse
particular, o leite é curioso: é o único líquido que
quebra...
Há os fazendeiros comerciantes, que ganham dinheiro
com a compra e venda de gado. É preciso notar que um
comerciante ganha dinheiro em qualquer outro ramo de
negócio: carros usados, gramofones, moedas de prata,
armas e antigüidades. O exemplo desses comerciantes
é prejudicial para dezenas de fazendeiros, que não
têm a menor vocação para o comércio e resolvem imitar
os que sabem comerciar, esquecendo-se da melhor parte
do negócio, que é a criação. Vira e mexe, quebra um
Fulano, que não sabia comerciar e resolveu entrar
nessa de comprar e vender vacas de leite. O colega
certamente não atentou para o fato de que Mercúrio
era o deus romano dos comerciantes e dos ladrões.
Os aflitos, coitados, não compram vacas de leite,
compram vacas no leite, para vendê-las no final da
lactação. Conseguem um faturamento bruto que pode ser
animador, mas é ilusório. Ao cabo de uns tantos anos,
todos dão com os burros n’água. Não conheço um só que
não tenha fracassado com o movimento de comprar vacas
no leite, para manter o volume total de produção. Os
riscos de introdução de doenças no rebanho são tremendos
e inevitáveis.
Depois, é preciso notar que esses produtores não
aproveitam a parte mais interessante do negócio, que é a

115
criação degado. É verdade que, ao comprar uma vaca parida,
o sujeito geralmentecompra uma cria, mas ébezerra de origem
duvidosa, filha de um touro qualquer, sem qualquer
perspectiva de se transformar num bom animal de leite ou de
corte.
Uma bezerra que venha na barriga, ou ao pé da vaca, é
muito diferente de uma cria feita na fazenda, produto de um
cruzamento criterioso, com boas possibilidades de dar certo
como animal de reposição de rebanho, ou como novilha para
fins comerciais.
Outro tipo defazendeiro, muito comum nas bacias leiteiras,
é o tratador, que se especializa em obter altas produções de
leite a partir de uma alimentação rigorosamente
antieconômica. “Se o negócio é antieconômico — perguntará
você — como é possível que o Fulano sobreviva?” Pertinente,
sua pergunta. O nosso amigo, efetivamente, vive num aperto
dos diabos, mas tem um gadão mestiço e obtém média de
curral de 13 ou 14 quilos, com piques que chegam aos 15 ou
16.
Não há exagero: são 13 ou 14 quilos mesmo, média
excelente para as condições brasileiras. E é cada
avião de vaca, que até entusiasma: todas de pêlo muito
bonito e muito liso, sinal de que o farelo está
sobrando. Tenha em vista o fato de que as médias de
10 quilos, por vaca em lactação, já são incomuns em
nossas bacias leiteiras, apesar de todos os produtores
jurarem que suas médias de curral andam pelos 12
quilos de leite.
Notícias leiteiras correm com a velocidade da luz,
pela Internet. Logo se comenta o fato de que o Fulano
tem 100 vacas e está mandando 1.400 quilos de leite
para a usina.
Todos se esquecem de que o Fulano já entrou no
esquema de troca de marca de ração, para ganhar um
116
prazinho. Como é tratador, e só compra caminhões fechados
(500 sacos), o revendedor dá um mês de prazo. Mas o pobre
Fulano, ao final do mês, não tem dinheiro para fazer o
pagamento e precisa desesperadamente de ração, para
continuar mantendo a média de 14 quilos. Assim, muda de
marca e ganha 60 dias de prazo, porque o outro revendedor
acha que o fato de um grande produtor passar a utilizar sua
ração deve funcionar como propaganda.
Temos o Fulano, a essa altura, com uma duplicata para
pagar no banco, daí a 60 dias. E a renda do leite? Bem, essa
foi integralmente aplicada na liquidação da fatura anterior, a
tal que já estava vencida. E o Fulano tem carro, mulher, filho
no colégio, 10 empregados, apartamento na cidade, namorada
— tem tudo a que um produtor deve ter direito.
Quando a situação do excelente Fulano parece insus-
tentável, aparece um doutor novato para zerar sua
conta bancária. Doutor que está, neste exato momento,
lendo o livro de autoria aqui do seu amigo.
Explico: sujeito inteligentíssimo, você já quebrou
a cara com as vacas impingidas pelo velhaco regional.
Agora, vai comprar um rebanho supimpa, sem a
intermediação de qualquer tratante. Sim, esqueci-me
de dizer que você já está brigado com o vigarista,
que fez uma roça no seu cercado e se afastou,
prudentemente, quando viu que a teta secou.
E o meu estimabilíssimo produtor, ainda ressabiado
com a primeira ferrada, está agora numa fase ainda
mais perigosa do que a de um fazendeiro principiante:
acha que já aprendeu tudo. Afinal, tem assistido à
ordenha, já encheu dois silos e vem almoçando, no
J óquei, numa roda de fazendeiros.
Esse lastro cultural faz tremer de medo qualquer bocó,
dos muitos que vivem do negócio leiteiro há 30 ou 40 anos.
E é baseado nele, lastro cultural, que você resolve comprar o
117
gado do Fulano, que tem 14 litros de média de curral.
Mas o Fulano se esquiva, diz que não pode “ficar sem leite”,
e que o máximo que poderia fazer, mesmo assim para servir
ao doutor, seria ceder (notebem: ceder...) umas 100 garrotas,
filhas das tais vacas de 14 quilos.
Você toma um susto quando fica sabendo o preço da
“cessão”; paciência. Acaba comprando a garrotada do
Fulano, porque viu, com seus próprios olhos, os vales
do leite que o homem está mandando e viu que ele só
tem 100 vacas no curral. Só não viu as duplicatas de
ração vencidas.
E o Fulano, o tratador , fatura as 100 garrotas,
pouco mais que bezerras desmamadas, por uma fortuna!
Será que o coitado vai ter mais 100 garrotas para
vender daqui a um ano? Não precisa esperar tanto: uma
semana depois, você pode voltar à fazenda dele, que
vai encontrar outro lote de 100 garrotas, compradas
dos mesmos fazendeiros onde havia comprado aquelas
que lhe vendeu. E comprou pela quarta parte do preço,
é bom que se diga.
O tratador lava a égua com os trouxas que aparecem
para comprar bezerras. E terá tantos lotes de garrotas
quantos forem os trouxas que apareçam, atraídos pela
média de leite de seu curral. Infelizmente para os
tratadores , a concorrência é grande e os trouxas não
abundam como abunda a pita, grande erva rosulada da
família das agaviáceas. Caso contrário, seria um dos
melhores negócios do mundo.
Ainda assim, conheço tratadores que vendem 700
bezerras/ ano esó têm 100 vacas parideiras. Deque os homens
entendem de vaca de leite, não resta a menor dúvida, haja
vista as 100 vacas do seu curral: gadão. O risco maior do
negócio consiste em passar uma temporada de seis meses
sem receber a visita de um doutor: acumulam-se no banco as
118
duplicatas vencidas e o sujeito quebra. Vários já quebraram.
Dá para perceber que os tipos de negócio, e as categorias
dos produtores de leite, são tantos quantos se possa imaginar.
E há também os inimagináveis, o que só complica a situação.
Se as maneiras deexplorar uma fazenda leiteira são muitas,
não será o seu amigo quem vai catalogá-las, porque isso aqui
é um livrinho ameno, ou pretende sê-lo, e os catálogos correm
o risco de se tornarem cacetes, por força de sua minudência.
No trato das coisas leiteiras, em nossa terra, vocêencontrará
produtores que se aferram a duas dúzias de vaquinhas como
forma de ter acesso à diretoria de certas associações, muitas
delas ressumantes de grosso leite; outros há que pretendem
esconder, sob o manto das duas dúzias de vacas, sua notória
condição de agiotas. Há os que se utilizam das vacas para
mungir as tetas do crédito, subsidiado ou não; há, também,
aqueles que dizem gostar da pecuária leiteira para fazer
higiene mental...
O número espantoso de patrícios que se estabelecem nas
bacias leiteiras com o propósito anunciado de fazer “higiene
mental” dá para a gente desconfiar do grau de limpeza das
mentes urbanas. A frase é boa. Creio que já a utilizei noutro
livrinho, quando limpeza vinha como limpamento, pedantismo
jovial.
É preciso não esquecer, por fim, os produtores de leite que
se meteram no negócio porque “todo mundo tem fazenda”.
Realmente, é duro almoçar com os amigos, numa quinta-
feira, e constatar que todos estão pretendendo enforcar o dia
seguinte, porque têm muita coisa para ver na fazenda.
Portanto, uma propriedade rural, ainda quando não tenha
outra utilidade, serve de pretexto para a gente enforcar as
sextas-feiras com a consciência tranqüila. Só isso justifica o
investimento.
Em qualquer sistema de exploração leiteira, você pode
mungir suas vaquinhas uma, duas ou mais vezes por dia. Há
fazendeiros que ordenham suas vacas quatro vezes por dia.
119
A escravidão é comparável à que existiu antes da Lei Áurea,
com uma diferença: os cativos descansavam, à noite, nas
senzalas, enquanto o pobre retireiro trabalha 19 horas por
dia. Dir-se-á que ganha um pouquinho mais: talvez ganhe.
Para que, se não pode tomar uma cerveja na venda com os
companheiros, nem lhe sobra tempo de procurar a comadre?
A regra geral é que se façam duas ordenhas diárias, com
intervalo mínimo de seis horas entre o final da ordenha da
manhã e o início da vespertina. Animais deprodução superior
a 3.000 quilos de leite por lactação talvez reajam melhor a um
espaçamento maior entre uma e outra ordenhas. Creio ter
visto estudo neozelandês sobre o assunto, em que ficou
provado que rebanhos de até 2.800 quilos, de média, não
apresentavam qualquer diferença de produção, quer fossem
mungidos com oito horas de intervalo, quer o intervalo fosse
de 11 ou 12 horas.
É fácil entender queos intervalos maiores causam inúmeros
problemas para o funcionamento da fazenda, porque os
empregados vão ficar, efetivamente, 14 ou 15 horas por dia
à disposição da empresa.
Veja você que já falei no intervalo de seis horas como regra
geral e não como procedimento ideal. A regra é determinada
pela necessidade de não sobrecarregar os empregados, que
não têm culpa de trabalhar para um sujeito que vive lendo
uma porção de artigos sobre a fisiologia da lactação.
Melhor que duas ordenhas, para os empregados, os
bezerros e os serviços da fazenda, só mesmo o sistema
de fazer uma única mungidura por dia. Isso mesmo: uma
ordenha matinal e a bezerrada mama o leite da tarde.
É claro que a produção total diminui. Não sei exatamente
quanto, mas alguns amigos meus, muito práticos em
questões leiteiras, afiançam que a quebra é de 20 a
30 %.
Assim como o leite diminui, diminuem os problemas

120
representados pela necessidade de manter uma porção de
gente no trabalho o dia inteiro. Fazendo uma ordenha por
dia, os retireiros têm tempo de tocar uma rocinha e vivem
muito mais satisfeitos.
Maior que a satisfação deles, só mesmo a dos bezerros, que
têm garantido o leitinho da tarde e se criam bonitos, fortes,
saudáveis, sem problemas: a enfermidade mais séria que
acomete os bezerros de nossas bacias leiteiras chama-semal
de cuia e tem relação estreita com os preços do leite. Se os
preços pioram, o fazendeiro solta um leitinho para a bezerrada,
que secria bonita e com saúde. Nos períodos em que os preços
estão “bons”, os bezerros que se danem. Qualquer sujeito
prático, examinando uma garrotada de sobreano, separa os
animais que foram cuiados , isto é, sofreram do mal de cuia.
Se ficamos aqui, você lendo, eu escrevendo, corremos o
risco devarar a noite, porqueos sistemas deexploração leiteira
são tantos que a gente pode aprontar obra de 500 páginas,
ou mais. J unte-se o fato de que o livro não terá o menor valor,
mesmo listando todos os sistemas existentes no mundo,
porque você vai acabar adotando um novo método, muito
particular, muito seu, para mostrar à humanidade com
quantos paus se faz um fazendeiro de escol.
É claro que, depois de pelejar com a produção de leite
duranteuma porção deanos, tenho idéias sobrecomo explorar
bovinos leiteiros, o que não quer dizer que as minhas sejam
as melhores, nem as únicas aproveitáveis. Até pelo contrário,
tenho sobre o assunto opinião diametralmente oposta à de
muitos dos meus amigos, e olhem que sou exigente em
questões de amizade.
Algumas das pessoas que mesão mais caras, neste pequeno
círculo de amizades, são criadoras de gado holandês puro de
origem, raça que é também a de minha predileção para a
pecuária do Canadá, ou dos estados do norte dos EUA,
aqueles que usam fardas azuis nos filmes de guerra.

121
Evito dizer que seria incapaz de criar gado holandês no
Brasil, porque tenho medo de dizer “dessa água não beberei”.
Tenho bebido de várias que estavam na relação proibida.
Mas o fato de ser meio reticente no que respeita à raça
holandesa no Brasil não quer dizer que não possa manter
com seus criadores as melhores relações de amizade. Um
deles é o meu contador; outro é um dos meus médicos; um
terceiro é o meu banqueiro e os demais são amigos em cujas
fazendas me hospedo regularmente. A convite, é bom que se
diga.
Portanto, deixo que você adote suas idéias, e a do mais
analfabeto dos seus vizinhos, para depois não dizer que seguiu
meus conselhos e deu com os burros n’água.
Sei que a presença do bezerro ao pé da mãe, durante a
ordenha, causa uma porção de problemas, a começar pela
dificuldade de operar uma sala de ordenha com um grande
número de vacas. Ainda assim, desgosta-me sobremaneira a
separação dos bezerros, porque entendo que, se a eficiência
reprodutiva é maior nos rebanhos onde os bezerros são
apartados de suas mães, a produção de leite é maior quando
se mantém a cria ao pé da vaca. Refiro-me ao gado mestiço de
zebu, que é o de minha predileção.
A esse respeito, dois ilustres professores de Viçosa
escreveram um trabalho provando que o leite obtido a mais ,
com os bezerros ao pé da vaca, é muito significativo. Não
tenho aqui à mão o trabalho dos professores J osé Américo
Garcia e Carlos Augusto A. Fontes, mas me lembro de alguns
dados: as vacas em aleitamento natural, deixando uma teta
para o bezerro, produziram em média 2.022,65 quilos de
leite, contra 1.602,19 quilos das vacas em aleitamento
artificial.
Portanto, apesar de computado apenas o leite de três tetas
das vacas em aleitamento natural, houve uma diferença de
420 quilos a favor do loteque tinha os bezerros ao pé. Isto sem
122
falar no fato importantíssimo de que os bezerros, em
aleitamento natural, foram criados exclusivamentecomo leite
de uma das tetas, enquanto os bezerros em aleitamento
artificial consumiram ração, um negócio desanimador quando
examinado pela óptica de quem paga as contas no fim do
mês.
Bezerros mantidos ao pé de suas mães constituem seguro
formidável contra a demissão em massa dos retireiros, coisa
bem mais comum do que sepossa imaginar. E a ordenhadeira
mecânica? — perguntará o meu bom leitor. Ora, a orde-
nhadeira continuará ondesempre esteve: esquecida num canto
da sala de leite.
J á lhe disse que sou contra a construção de estábulos no
Brasil e que o bezerreiro deve ser o mais natural, o mais
empastado e o menos engaiolado possível. É a minha opinião
pessoal. Não faria sentidoque você comprasse livro de minha
autoria para ter as opiniões de autores canadenses,
ou do norte dos EUA, sem esquecer a macaquice tupiniquim.
Portanto, se você trabalha com uma raça adaptada ao
meio e tem pastos de boa qualidade, o sistema de uma única
ordenha pode ser interessantíssimo, não só pelos excelentes
(e econômicos) bezerros que vai obter, como sobretudo e
principalmente pela folga que vai dar aos empregados.
Ressalve-se a eficiência reprodutiva, que é realmente muito
maior quando os bezerros são apartados de suas mães.
Duas ordenhas, começando às 4h da manhã e terminando
depois das 4h da tarde, que é efetivamente quando
acabam os serviços de limpeza e arrumação de tudo,
resultam num esquema cansativo para os empregados.
E a carga horária vai de encontro às leis do trabalho.
Sei que o trabalho não mata, mesmo porque não me
lembro de um bom funcionário, desses que não têm hora,
nem dia, para pegar no pesado, que tivesse morrido
por causa do esforço. Até pelo contrário, o negócio
123
deve ser afrodisíaco, porque as comadres têm uma eficiência
reprodutiva fenomenal.
Não me venha com a idéia de contratar duas turmas. Onde
arranjar tanta gente, se você já não consegue formar uma
turminha eficiente?
Coisa que muito me assusta, numa fazenda, é a existência
de mais de um ponto de mungidura (evitar falar estábulo).
Sempre que possível, acho preferível um único local de
ordenha. Evidentemente, com muito gado não se podepensar
em manter o bezerro ao pé, nem se pode pensar numa única
ordenha. Há que instalar uma sala de ordenha com equi-
pamento automático. E a máquina vai trabalhar várias horas
por dia.
J á sei que vocêvai falar do Sicrano, e do tio do Fulano, que
ganharam dinheiro, ou, pelo menos, sobreviveram com sete,
oito ou dez retiros na fazenda, cada qual por conta de um
homem e um menino, que mungiam 25 ou 30 vacas,
entregando o leite no ponto, com a dose habitual de peróxido
de hidrogênio.
Realmente, nas zonas acidentadas (e há bacias leiteiras
que são uma pirambeira só), o sistema de retiro permite que
se aproveitem os pastos da fazenda. Difícil, hoje em dia, é
arranjar uma porção de retireiros responsáveis, quando já
está difícil arranjar um único queseja razoavelmente criterioso.
Enfim, seja o que Deus quiser: fazendas há que, realmente,
exigem uma porção de retiros.
O sistema de entregar um lote de vacas a um sujeito está
de tal forma arraigado na cuca de certos fazendeiros que já vi
um estábulo, de construção recente, dividido em seções para
25 vacas. Cada divisão tem seu local de ordenha, suas latas
e um vaqueiro responsável. Parece que o negócio funciona,
pois era adotado numa fazenda que produzia 3.000 quilos
de leite/ dia e tinha uma porção, mas uma porção mesmo, de
empregados dedicados, alegres, bem-dispostos, sem nunca

124
ter tido uma reclamação na J ustiça, em mais de 30 anos de
trabalho. Perguntado pelo segredo de tamanha eficiência, o
fazendeiro confessou: “De vez em quando, a gente tem de dar
umas pancadinhas”.
Presumo que você esteja meio decepcionado, depois de
investir na compra deste livrinho, pensando encontrar a
propaganda demétodos ultramodernos decriação debezerros,
em gaiolas mantidas em ambiente controlado; da mungidura
de vacas instaladas sobre carrinhos elétricos; do computador
para tudo controlar — e me vê advogando uma criação mais
simples, até, do que as normalmente consideradas muito
simples.
Paciência. Não posso violentar minhas convicções pelo só
fato de satisfazer sua sede de sofisticação produtiva.
Se partir do princípio de que seus empregados não são
enciclopédias ambulantes, mas são gente; de que suas vacas
são animais delicados, mas são animais — acho que você vai
evoluir para um sistema de criação que não exija demais dos
empregados, nem sofistique a existência da vaca. Mesmo
porque, se instalar um bebedouro com água filtrada em carvão
ativado, e a vaca tiver a opção de uma poça de água quente,
pode estar certo de que ela vai beber da poça, para seu
desespero empresarial.
Para resumir, só quem pode escolher um sistema de
exploração leiteira em sua fazenda é você mesmo, ou
aqui o seu amigo, na hipótese de ser convidado para
um final de semana, com muito uísque das Terras Altas
da Escócia e numerosos charutos de Havana.
Deixem-me pular de capítulo. Falei, falei e não
disse nada. Antes, porém, quero transcrever alguns
trechos do livro de Fishwick, especialmente o
depoimento de um criador genial, que trabalha com a
raça ayrshire: “Por que produzo leite? Obviamente

125
porque me dá dinheiro. Dos muitos meios de ganhar-se a
vida, poucos há mais árduos ou monótonos do que a
exploração de uma granja leiteira”.
Diz ainda o nosso colega inglês: “Penso que não se deveriam
construir edifícios nas granjas que durem mais de 25 anos,
porque assim daríamos oportunidade a todo criador que nos
suceder de desenvolver suas próprias idéias. Minha sugestão
é uma cobertura única, bem-iluminada, com divisões
interiores que se possam modificar conforme se deseje.
Pensada para economizar capital, a construção poderá
modificar-se para seguir as mudanças de opinião dos
criadores e das orientações do governo para o campo”.
A tradução está meio capenga, mas tem mais: “Comecei
meu rebanho com a compra de s horthorn no mercado
local, mestiços de todas as categorias, e com eles
importei a maioria das enfermidades. Isso porque
algum tratante me disse que encontrou três bezerras
de primeira categoria (e todas as bezerras dos tratantes
são de primeira classe)”.
Pelo visto, a pecuária inglesa tem vários tratantes
em comum com a nossa. E é o ainda genial produtor quem
diz: “O componente mais importante de uma granja
leiteira é a água, introduzida legalmente no leite
pela vaca. Para a parte sólida da ração, não há nada
igual ao capim fino, tenro e folhoso”.
São conselhos que se podem assinar de cruz, mesmo
sabendo, como já sabemos, que a experiência dos
países de clima temperado não é de grande serventia
para quem pretende trabalhar no trópico úmido.
Por falar em clima, acho que vou tratar do assunto
no próximo capítulo. Por hoje é só: vou ao leito. Boa
noite para você também.

126
Quem não chora não mama —
Folha de S .Paulo, agosto de 1992.
Inevitável não é sinônimo de desejável. A morte, que é inevitável, nada tem de desejável.
A ordenhadeira mecânica também é inevitável, mas muitos produtores de leite adiam sua
instalação, ou desativam o equipamento, enquanto der para continuar ordenhando na munheca.
Filosofemos.
O melhor equipamento de ordenha continua sendo a boca do bezerro. O melhor e o mais
natural. Boca de bezerro e teta de vaca foram feitos sob medida pela natureza, ao contrário das
glândulas mamárias da espécieH .sapiens , que também se ajustam ao namorado e ao maridão.
Até a presença física do bezerro é importante para a ordenha. Quando dá aquelas focinhadas
no úbere da mãe, o bezerro só está querendo lembrar que ainda está por ali e também é filho
de Deus. E aproveita para estimular a medula, a pré-hipófise e a pós-hipófise, que botam em
circulação a prolactina e a oxitocina, importantíssimas na produção do leite.
Se a vaca é mestiça, a visão, o cheiro e o barulho do bezerro podem aumentar a produção
de tal forma que a alimentação do filho acaba saindo de graça. Deu para entender? A produção
obtida a mais , pela presença do bezerro, é suficiente para alimentá-lo.
Voltando à ordenhadeira mecânica, vejo o depoimento de Sebastião Henrique J unqueira
de Andrade, produtor de leite B e presidente da Cooperativa
de Laticínios Linense, de Lins, SP, dado ao repórter Milton Soares, da revista Leite B: “Parece
uma incoerência, mas a grande verdade é que muitos produtores de nossa cooperativa, que
possuem ordenhadeiras, não estão conseguindo apresentar a mesma qualidade de leite
daqueles que ordenham suas vacas manualmente”.
Não tem incoerência nenhuma. Ordenhadeiras que não estejam escrupulosamente limpas
são um tremendo foco de contaminação do leite. E a limpeza de todos aqueles tubinhos, e
ferrinhos, e borrachinhas, numa fazenda comum, é um problema complicadíssimo. Mesmo
nas indústrias de laticínios, que têm técnicos de plantão, detergentes especiais, vapor, alta
pressão e o escambau,
a limpeza do equipamento é um problema dos diabos, como informa o Dr.
Simas, meu amigo, que processava em Caracas, Venezuela, mais de 100 mil litros por dia.
Quanto ao fato deos produtores linenses desativarem suas máquinas, também não chega
a ser novidade: muitos produtores de minha região começaram a desativá-las na década de
70. O que não impede que digam que
continuam usando as ordenhadeiras, mas visitamos seus estábulos e vemos
que todos aqueles tubinhos estão entupidos de terra.
Em última análise, tanto a ordenhadeira como a morte são inevitáveis.
Nada impede, contudo, que adiemos as duas, seja pela mungidura manual, seja pelo uisquinho
ao anoitecer. A vaca, a higiene do leite e o dono da fazenda, penhorados, muito agradecem.

127
CLIMA E
PRODUÇÃO ANIMAL

Dá gosto lidar com um sujeito inteligente e de iniciativa


como você, meu caro leitor de manuais agropecuários. Sei
que você já percebeu que o gado leiteiro, para enfrentar as
condições de criação de nossas bacias leiteiras, tem de ser
muito rústico. Sei, também, que você já se adiantou a mim no
estudo das diversas raças de bovinos. Afinal, ainda não fiz a
lista dos gados quese exploram no Brasil evocêestava ansioso
para começar a criação.
Na tarefa de escolher uma raça para criar ajudou-o sua
mulher, que vê no marido um sujeito meio desligado dos
problemas estéticos mais imediatos, capaz de usar gravata
listrada sobre camisa de listras: enfim, um cidadão
perfeitamente capaz de adquirir um gado que não seja
bonitinho.
Depois de toda aquela trabalheira que ela teve com o
paisagista, para fazer um jardim que humilhasse todas as
fazendeiras da região, era só o que faltava aparecer você
com um gado que pudesse destoar da paisagem. E não se
diga que o negócio é brincadeira aqui do seu amigo: sei do
caso de uma s ocialite que importou vacas da raça ayrshire

128
para “combinar” com o verde que compunha a paisagem de
sua fazenda fluminense.
Rigoroso no que respeita à condução dos seus negócios,
vocênão abriu mãodesupervisionar a escolha da raça, mesmo
porque fazia questão absoluta de trabalhar com um gado
muito rústico. Quando sua jovem senhora se encantou com
o gado scotch highlander, tão bonitinho!, você suspirou
aliviado porque viu que todos os autores consideram aquela
raça de uma rusticidade a toda prova.
O correspondente de seu banco, em Londres, entrou em
contato com a associação de criadores daquele gado e já na
semana seguinte baixava no Aeroporto Internacional do
Galeão um gigantesco Boeing de carga trazendo 100 novilhas
e três touros scotch highlander.
Fácil, não foi? Pois fique sabendo que o negócio é sempre
assim, quando se trata de importar gados os mais exóticos e
inviáveis em nosso meio. O governo brasileiro, por seus
técnicos, é rigorosamente irresponsável no que respeita ao
que se gasta de divisas com essas importações, que não
têm qualquer viabilidade zootécnica por aqui.
Viabilidade zootécnica? Que diabo é isso?
Seguinte: são gados que, ainda quando sobrevivam no
meio tropical, não têm sobrevivência zootécnica, não igua-
lam, sequer se aproximam dos índices de produção obtidos
em seus países de origem. É aquele negócio de botar o BMW
M5 numa estrada de barro, cheia de pedras, como as de
nossas fazendas.
Experimente o meu bom leitor fazer, com o seu Mercedes
600 V12, a metade do que faz com o jipe na roça. Ainda
quando seja espetacular, seu Mercedes não tem viabili-
dade automobilística no lamaçal que se forma à entrada
do curral. E um jipe supimpa custa 1/ 15 avos do preço do
seu Mercedes.

129
É assim que temos visto, no Brasil, vacas de excelente
pedigree, cuja descendência, quando sobrevive, não produz
leite; vacas de corte que não igualam, nem sequer se
aproximam dos índices de velocidade de ganho de peso que
têm em suas regiões de origem. Isso para não falarmos dos
problemas com a fertilidade, que atormentam os gados
europeus, leiteiros ou de corte, nos trópicos.
“Mas o gado highlands é muito rústico...”, argumentará
você, baseado na leitura de todos os livros de sua estante. É
sim: é de uma rusticidade espantosa. Tanto assim que tem
dois tipos de pêlos: uma capa interior, que retém o calor
corporal, e uma capa exterior, que o protege dos ventos frios
e úmidos lá de sua região de origem.
Essas capas de pêlos têm cargas elétricas diferentes.
Quando o vento sopra, há um aumento de potência entre
as cargas formando uma capa impermeável para proteger
o highlands. E foi esse gado que o meu nobre amigo
e leitor trouxe para sua fazendinha do Vale do
Paraíba...
J á no Galeão, sob o pasmo admirativo do veterinário
do serviço de inspeção do Ministério da Agricultura,
que costuma babar para as raças puras, entre outros
motivos porque ele próprio é um mestiço — o nosso
highlander vai botar dois palmos de língua para fora,
fazendo um quadro de hipertermia, na tentativa
desesperada de dissipar o calor corporal. E as capas
depêlos, com suas cargas elétricas, são capazes de dar choques
em quem as tocar.
Com febreeaumento assustador da freqüência respiratória,
seu gado highlands (ou é scotch highlander?), que era tão
bonitinho, vai ficar feinho, para desespero de sua mulher,
que indaga: “Será que não está sentindo falta de um
cabeleireiro?”

130
Sim, porque ela se acha horrível, e eu não posso concordar
com o julgamento, sempre que passa mais de 24 horas sem
ir ao cabeleireiro da moda. Foi até um problema, quando você
comprou a fazenda, porque antes de perguntar pela estrada,
pelo telefone ou pela energia elétrica, ela queria saber se tinha
cabeleireiro. E agora atribui o deplorável estado de seu gado
à falta de um profissional da tesoura e do pente.
Cabeleireiros famosos jamais concordariam em exercitar
sua arte nos pêlos de uma novilha scotch highlander, não só
porque o negócio é meio desmoralizante para um profissional
que vive nas colunas sociais, como também porque a novilha,
segundo os livros europeus, tem “aspecto temível”. O aspecto
é temível mas a índole é muito boa.
Que fazer? Nada, rigorosamente nada, a não ser enterrar
as 100 novilhas, que devem morrer dentro de dois meses,
pouco mais ou menos. E você passará à condição de
proprietário de 100 ossadas, mais três dos touros, de um
gado muito rústico. Que tal pensar numa fábrica de farinha
de ossos?
O highlands é rústico, muito rústico mesmo, para as
condições extremamente desfavoráveis das montanhas da
Escócia, aquelas mesmas que nos mandam o uisquinho
regulamentar. Portanto, uma coisa é ser rústico para
o frio, a neve, o gelo, os ventos úmidos; outra, muito diferente,
é ser rústico em nossas bacias leiteiras.
Muitíssimo a propósito: você já viu um urso polar no zôo
carioca? É um negócio de dar pena: como sofre, o coitado do
urso! Num clima como o do Rio, o digno representante da
família dos ursídeos deve consumir boa parte do seu dia num
processo de xingamento da mãe de quem teve a idéia de o
prender ali.
Com as raças de bovinos naturalmente adaptadas às
regiões de climas temperados geralmente acontece a

131
mesma coisa. O gado highlands não é grande produtor de
coisa alguma; nem de leite nem de carne. Mas é uma raça que
faz o milagre de sobreviver e produzir nas montanhas geladas
da Escócia, onde os ventos e a umidade não são de brin-
cadeira. Quanto aos pastos, de péssima qualidade, não raras
vezes ficam cobertos pela neve. E o gadinho agüenta.
Com as raças melhoradas o negócio ainda fica mais
complicado, porque são gados capazes de produzir
enormes quantidades de leite, ou muita carne em
pouquíssimo tempo.
Dirá você que o Sicrano, que se diz técnico,
garante que nos trópicos a altitude corrige a latitude.
E lá vai você, com suas vaquinhas européias, para os
climas tropicais de altitude, Campos do J ordão, Nova
Friburgo, Teresópolis, lugares estimabilíssimos por
sua temperatura média anual, que parece adequada para
a criação dos bovinos europeus.
Temperatura pode ser confundida com clima, em
produção animal? Não, não pode. E nada lhe cobro pela
lição que vem por aí.
Do ponto de vista da produção animal, clima envolve
temperatura, luz, radiação, altitude, pressão
barométrica, vento, enfermidades, ectoparasitos,
endoparasitos, pH do solo, fertilidadedo solo, chuva, umidade,
nutrição e uma porção de coisas mais, quando não é possível
deixar de citar o fato, sempre deplorável, de que a mão-de-
obra disponível não se formou em Oxford ou Purdue.
Nos climas tropicais de altitude, que são lugares ótimos
para o dono do gado beber seu vinhozinho às refeições, você
tem, efetivamente, médias de máximas e mínimas bem
confortáveis para o gado europeu. Mas também tem: bernes,
aftosa, raiva endêmica, brucelose, carrapatos, baixa fertilidade
dos solos, baixo pH dos solos, uma coleção completa de

132
helmintos, radiação diferente, forragens depéssima qualidade,
topografia ingrata, mão-de-obra daquele jeito e uma porção
de outros fatores limitantes, aos quais você deve acrescentar
rações balanceadas produzidas sem qualquer tipo de
fiscalização, dentro depadrões de honestidade meio marotos.
Resumindo: torça a orelha do bocó que disse que esses
climas são próprios para a exploração racional do gado bovino
europeu.
Mas o diabo é que você viu outro bocó, que também passa
por técnico, sustentando a possibilidade de o Brasil formar
pujante pecuária leiteira a partir do gado europeu puro de
origem, porque Israel tem os recordes mundiais de produção
média: e lá também faz calor...
E dizer que o pilantra escreve essas besteiras e continua
solto. Não sei qual éo clima deIsrael, mas sei queéinteiramente
diferente de todos os climas brasileiros, porque andei lendo
a carta climática de um cidadão chamado E. De Martonne.
J unte-se o fato, nada desprezível, de que o rebanho
israelense é manejado por gente da melhor qualidade
intelectual. J á me contaram casos de profissionais
com mestrado e doutorado mungindo vacas por lá. Além
disso, a ciência local desenvolveu rações com um
baixo conteúdo de calorias, nas áreas onde o s tr es s
térmico era muito alto para que as vacas produzissem
nas quantidades desejadas.
Qual seria o clima de Israel? Desértico? Sei lá.
O que sei é que é inteiramente diferente do nosso,
ou dos nossos, se considerarmos que o Brasil tem uma
porção de climas. E apesar das tais rações e do alto
nível da mão-de-obra local, em que os ideais do
sionismo se misturam com os melhores princípios da
mungidura, vale notar que o rebanho israelense requer

133
mais inseminações por concepção do que os rebanhos dos
países de climas temperados, onde se explora o mesmo gado,
isto é, a raça holandesa variedade malhada de preto.
Ficou uma peninha para atrapalhar, no capítulo da
eficiência reprodutiva, e o clima é o responsável.
Você deve ter notado que estou um leão neste
capítulo, investindo sem a menor cerimônia sobre
assuntos da complexidade das cargas elétricas das
capas de pêlos do gado highlands, do nível calórico
das rações israelenses, do sentido amplo da palavra
clima em produção animal — e continuo circulando com
o maior desembaraço no terreno complicadíssimo da
técnica da exploração de bovinos em diversas regiões
do planeta.
Esse Reis é um gênio! — dirá você, como que esmagado
ao peso de tamanho saber. E sempre é mais conveniente
deixar-se esmagar ao peso do meu saber do que dos meus
indecorosos 120 quilos.
Fiquei muito lisonjeado com sua observação. Relevo
a falta do tratamento “doutor” que se dá nas bacias
leiteiras aos sujeitos gordos, de óculos. Talvez
fosse melhor dizer “o doutor Reis é um gênio!”, mas
não seria correto, porque nunca vi de perto o tal gado
highlands, nem desconfio
qual seja o clima de Israel. Tudo que consigo dizer
neste capítulo, além de alguma experiência pessoal
como fazendeiro e jornalista, tem por base um livrinho
chamado Estudios sobre selección del ganado, do
professor J an C.
Bonsma, ele, sim, um gênio em questões pecuárias.
Recomendo a leitura do livrinho, com o maior e o
mais genuíno dos entusiasmos, para você deixar de

134
dizer asneiras sobre exposições, leilões, gados grandes e
outros assuntos muito comuns nas rodas de criadores de
vacas leiteiras.
Diz o nosso Bonsma, entre outras preciosidades, que
nos Estados Unidos muitos criadores perderam todo o in-
centivo para produzir melhor gado porque não necessitam
obter rendimentos com suas fazendas, já que seu dinheiro é
feito no comércio ena indústria. Esses homens participam do
processo da produção animal porque o consideram um
símbolo de sua posição social e financeira. Com isso, muitas
das exposições de gado, que começaram sendo um honesto
esforço para distribuir e disseminar animais superiores,
converteram-se em simples acontecimentos sociais, onde se
demonstra o poder do dinheiro e se joga com a posição social
e as amizades.
Agora, pergunta aqui o doutor Reis, com as desculpas
pela tradução, que está mesmo de amargar: não é
exatamente isso que se vê por aqui? Você também não
comprou sua fazenda por causa do Sérgio, do Olavo,
do Caramuru, do Ellos, do Toninho, do Ronaldo, do Bode
e de tantos outros milionários? Abre o jogo, marreco:
diz logo dos motivos que o levaram a se transformar
num produtor de leite.
Lendo nosso Bonsma, você vai descobrir que o
problema das enfermidades, em produção animal, pode
ser deixado em um segundo plano, se os animais estão
bem nutridos e são adaptados ao meio criatório. E o
Reis pergunta: seu gado está bem adaptado? Está bem
nutrido?
Não, não me venha com desaforos, como este de dizer
que não sabe se está bem nutrido, porque ainda não
abordei o problema da nutrição dos ruminantes. Calma,

135
que não posso fazer tudo de uma vez. Lamento não ter
conseguido evitar que você importasse o scotch
highlander, mas a culpa foi sua, quando confundiu
rusticidade para a Escócia com rusticidade para os
trópicos. Console-se com a notícia de que muita gente
confunde e anuncia a ignorância nas revistas
especializadas em agropecuária.
Bem que você podia se aconselhar, lá mesmo no
J óquei, com seus amigos do restaurante da sede. Esses
não o deixariam fazer a tal importação, por mais que
sua mulher dissesse que o gado highlands fazia pendant
com o jardim produzido pelo paisagista.
Voltando ao Bonsma, você verá que nas regiões de
solos ácidos não se podem criar bovinos de grande porte.
Ouviu bem? Repito: os solos ácidos são incompatíveis com os
bovinos grandes. E agora, J osé? E aquela turminha que baba
para uma vaca imensa? É isso aí: o tamanho do gado, em
condições econômicas de criação, está relacionado (entre
outras coisas) com o índice de acidez dos solos.
Evidentemente, se você planta uma bezerra num galpão
com ambiente controlado e despeja milhares de quilos de
alfafas, e rações, e leite em pó, e vitaminas pela goela da
bichinha, lavo daí as minhas mãos: não estamos diante de
um criador e sim de um cidadão que tem a criação como
símbolo de sua posição social e financeira.
J á que a moda atual é falar da ecologia e qualquer grã-fina,
pelo só fato de manter dois pintassilgos presos numa gaiola
de seu tríplex, pode arvorar-se em “ecologista”, liderando
passeatas rigorosamente cretinas, deixe-me falar um pouco
da ecologia animal, que é a ciência que explica a interação
entre o animal e seu ambiente total.
Bonsma fez um diagrama, em formato deroda, para explicar

136
a ecologia do gado. O eixo da roda é o homem, que constitui
o fator mais importante na interação entre hereditariedade e
ambiente. O animal é a “massa” que está em estreita simbiose
com o homem que o domestica. Entre as milhares de espécies
de mamíferos existentes na Terra, só foram domesticadas
cerca detrinta. Ou trinta euma espécies, sevocêincluir alguns
políticos que andam por aí.
Muito a propósito, vocêsabia quea monogamia éraríssima
na classe Mammalia ? Parece que só os mangustos, texugos,
gibões, rinocerontes, uns poucos símios da América do Sul e
os maridos mentirosos são monogâmicos. Também, que se
pode esperar de um mangusto? E o rinoceronte, para
continuar fiel à mesma parceira, foi dotado pela natureza de
um chifre afrodisíaco fincado bem por cima de seu nariz.
Voltando à roda de Bonsma, veremos que o mundo está
dividido em quatro zonas climáticas importantes: a
primeira se denomina Fria e a temperatura nunca
atinge média mensal superior a 18° C, enquanto a
umidade relativa é geralmente menor do que 65%; há
muito pouca vegetação para nutrir os animais. O gado
de grande produção não pode ser mantido num clima
desses. Em regiões menos severas, é possível criar
renas, que vivem de musgos e líquenes. Na zona Fria
encontramos animais que se alimentam de peixes e de
outros frutos do mar, caso do nosso amigo urso.
A zona seguinte é a denominada Tórrida e sua
temperatura média mensal varia de 18°C até mais de
32°C: a porcentagem de umidade do ar também é muito
baixa. Por causa das chuvas escassas, a vegetação é
paupérrima nessas regiões áridas e semi-áridas.
Encontram-se, geralmente, diversas espécies de cactos
espinhosos, de baixíssimo valor nutritivo. Ninguém

137
deve pensar em criar vacas leiteiras numa região dessas: a
dose é para camelo.
Ainda segundo nosso Bonsma, a zona climática seguinte
é a Temperada, onde a temperatura mensal raramente
ultrapassa os 18° C e a umidade relativa está entre
65 e 90%. É a região mais adequada para a produção
de forragens de boa qualidade e o s tr es s climático
sobre os bovinos leiteiros não é grande. Todas as
raças melhoradas de bovinos leiteiros foram desenvolvidas
em países com esse clima.
Finalmente, temos a zona climática Úmida e Quente, em
que a temperatura atmosférica ésuperior a 18°C e a umidade
relativa é superior a 65%, o que faz com que as pastagens
cresçam muito rapidamente e sejam de baixa qualidade,
porque têm uma quantidade muito pequena de proteínas e
muito grandedefibras, principalmente sob a forma delignina.
Talvez o meu bom amigo não descubra nas quatro grandes
zonas climáticas citadas nenhuma semelhança com o clima
de Brasília, nem com o clima de Campinas. Paciência. O
diagrama é de Bonsma, não é meu.
Permita-merecorrer a um sujeito chamado Wright, que fez
um climograma correspondente às regiões propícias para o
aproveitamento de diversos bovídeos.
Diz o nosso Wright que as regiões de clima frio e seco são
próprias para a criação do iaque, o boi de cauda de cavalo.
Como sua fazenda não tem gelo, a não ser no freezer , tire da
cabeça a idéia maluca de criar o B os g runiensis .
As regiões quentes e secas são as dos zebuínos de grande
porte, na Índia. Nas regiões de frio úmido, chamadas zonas
temperadas, criam-se, com apreciável sucesso, as raças
européias melhoradas: holandesa, suíça parda, jersey,
hereford, ayrshire, guernsey, shorthorn e tantas outras,

138
leiteiras, de corte ou mistas.
Por fim, nas regiões tropicais e subtropicais, de climas
quentes e úmidos, as raças variam do zebuíno médio ao zebu
anão.
Sugiro que o meu bom amigo procure consultar um
climotécnico de confiança, para descobrir qual é o
clima de sua fazenda. Mas fique atento à tal roda de Bonsma,
que fala em temperatura, luz, radiação, altitude, pressão
barométrica, vento, enfermidades, ectoparasitos,
endoparasitos, pH do solo, fertilidade do solo, chuva e
umidade, nutrição eoutras complicações para quem pretende
estabelecer-se com uma granja leiteira.
Depois de ouvir o climotécnico, você vai acabar criando
uma raça européia qualquer, porque sua obstinação só é
comparável à teimosia proverbial de uma porca parida.
Paciência. Crie o gado que quiser, porque tenho mais que
fazer escrevendo estelivrinho de que vocêestá gostando tanto.
Não? Não está gostando? Taí, pensei que você fosse mais
inteligente.
Como última advertência climática, já que ando mesmo
impossível, deixe-me dizer que o Dr. Richard Davis, professor
da Universidade de Maryland, nos Estados Unidos (Bonsma
ensinava em Pretória, África do Sul) diz que é muito difícil
pensar-se em explorar, com êxito, raças européias de vacas
leiteiras com temperaturas iguais ou superiores a 29,5 °C.
E diz ainda que o só fato de a temperatura ultrapassar os
29,5° C torna altamente improvável qualquer êxito na
exploração de bovinos leiteiros das raças melhoradas.
Agora, pergunta aqui o doutor Reis, para encerrar o
capítulo: qual é mesmo a temperatura daquela pirambeira
onde pastam suas vaquinhas?

139
Confusão geral — O Produtor de Lei te CCPL,
setembro de 1978.
Tive aqui um construtor, homem de 64 instrumentos, que é bombeiro, pedreiro,
ladrilheiro, carpinteiro, retireiro, pintor, ferreiro, motorista, estucador, eletricista,
vidraceiro, soldador — o marreco garante que tem, efetivamente, 64 profissões. Ou,
o que é mais correto: brinca nas 64, sem ser um bamba em cada uma delas.
Nisso de muitas habilitações, temos o exemplo do pato, que nada, anda e voa,
e não faz nada direito. Nosso amigo construtor, homem de boa vontade ede extraordinária
capacidade de trabalho, aprontou uma instalação elétrica, aqui no jardim da Pau
D’Alho, com 110 volts nas tomadas, para a máquina de cortar grama, e 220 volts nos
bocais, para iluminação com as lâmpadas a vapor de mercúrio. E a instalação começou
a acender sozinha...
Ignorante, entre outras coisas, em assuntos elétricos, em que mal consigo
distinguir as três fases e o neutro, chamei o construtor e disse: “Olha lá, seu Barroso,
o negócio está acendendo sozinho”. Ele foi lá, mexeu, remexeu, virou, revirou e voltou
com o seguinte diagnóstico: “É o legítimo teorema: ninguém entende...”
A partir de então, passei a ter um teorema no jardim, já que a instalação acende,
às vezes, sem ter sido comandada, se bem que também acenda sempre que solicitada.
E a conversa do “ninguém entende” vai ser necessária para nossa crônica de hoje
sobre o tempo nestas serras fluminenses.
De que o tempo está mudando, ninguém deve ter a menor dúvida. Pelo menos,
o testemunho dos antigos é todo neste sentido. Mesmo nós outros, menos antigos,
sentimos que as coisas já não são como antigamente.
Minas velhas de mais de 40 anos, que sempre resistiram bravamente às piores
secas, estão secando agora, sem a menor cerimônia. Rios transformaram-se em
riachos. Invernos já não têm frio. O veranico de janeiro, tradicional veranico a que
se referiam nossos avós, deu para esticar em fevereiro e março, como neste ano de
1978; as estradas andavam empoeiradas e os pastos secos, esturricados, em fevereiro
e março, quando deveriam andar no maior entusiasmo de sua explosão vegetativa.
Entramos no outono sem chuvas, sem pastos, sem silos e sem capineiras. As
chuvas não chegaram, não sei por quê; temo que se repita, em 1978, uma seca ocorrida
por aqui há muitos anos, quando só foi chover no dia 15 de novembro.
Os pastos acabaram, porque já estavam sentidos com a seca do verão. E andam
sobrecarregados pela quantidade de gado. Esse é um problema de solução difícil, pois
nesta região, para ter pastos dignos deste nome, o sujeito precisa trabalhar com uma

140
lotação mínima, da ordem de uma cabeça, uma cabeça e meia por alqueire geométrico.
Qualquer coisa que passe de uma cabeça e meia é tolerada no verão, mas vai
de grota no inverno, quando os pastos secam e acabam.
Com os preços das terras, das cercas, das limpezas das pastagens, que sempre
sujam, mesmo com cargas baixas, é humanamente impossível manter uma lotação
adequada, a chamada lotação como deve. E o resultado é que a gente carrega no
número de vacas, contando: a) com as capineiras; b) com os silos;
c) com alguma ração para o gado que não está no leite; d) com a boa vontade
das vacas.
Sim, com imensa boa vontade das vacas, sujeitas a um pasto que, nesta época,
é um pedaço de terra cercado de arame por todos os lados, com uma aguada e um
cocho de sal. Evito passar nos “pastos” de gado solteiro e, quando o faço, procuro não
olhar para as vacas, que não me devem ter em boa conta.
Os silos acabaram ontem, ou melhor, os silos ainda estão lá; o que acabou foi
a silagem. E as capineiras já acabaram há muito tempo, apesar de generosamente
regadas com o chorume do curral, transportado num bosteador imponente, que ainda
estou devendo ao Banco do Brasil.
A partir de agora, com certo otimismo, temos capim para quinze dias, a saber:
um resto de guatemala, o angola rebrotado nos lugares frescos, o milho-de-pinto em
seu modesto segundo corte e uns escassos pezinhos de elefante, que tanto servem
para tratar (mal) das vacas como para uma bem-sucedida pescaria, já que se
transformaram em bambus. Depois dos próximos quinze dias, nem é bom pensar...
Dirá o leitor que os problemas que enumerei não são culpa exclusiva do tempo,
mas do meu planejamento, ou de uma outra palavra muito em voga, quando se trata
de falar de fazendas onde as vacas passam fome: dimensionamento.
Um amigo meu comprou 250 hectares de morros, sem pastos e com alguma
capoeira, e começou a se distrair com um lote de 170 cabeças de nelore. Durante o
verão, o negócio ainda deu para disfarçar, porque nelore é bicho milagroso para
agüentar fome e desaforo. Entrando na seca, o negócio complicou-se; e a salvação
do bom amigo foi arranjar umas terras na Baixada Fluminense, 50 alqueires de angola,
para remeter seu nelore, antes que morresse todo. Sim, porque zebu também morre
de fome; é mais difícil, mas morre.
Voltando ao tempo que está mudando, é o caso de perguntar: quais seriam as
causas?
Seria o desmatamento? Acho que não e vou explicar por quê. Dizem os técnicos
que a chuva é causa das matas, não é conseqüência. Assim, as matas amazônicas
existem porque chove muito por lá. A chuva amazônica não é conseqüência das matas;

141
é a causa delas.
Garantem os mesmos técnicos que não há perigo de se transformar a Amazônia
num deserto, a não ser que se pense num deserto chuvoso.
Isso, obviamente, não tem relação com o que possa acontecer com os solos da
Amazônia expostos ao sol e à chuva, sem proteção vegetal. É possível que alguns
se esterilizem, mas sempre debaixo de chuvas. Até que um dia...
Bem, um dia o negócio pode mudar, menos por causa da derrubada da mata, do
que de outros agentes complicadores, como as manchas solares, as explosões
atômicas, uma nova era glacial, a poluição atmosférica e tantos outros fatores. É
preciso notar que todas as grandes modificações climáticas do planeta foram anteriores
ao homem moderno.
No que respeita às chuvas e às matas, o registro mais antigo que se tem, no Brasil,
deve ser o do Instituto Agronômico de Campinas. Por ele, é fácil verificar que a
precipitação pluviométrica é a mesma nos últimos 100 anos, desde quando a região
tinha mais de 60% de suas terras revestidas de matas exuberantes, até os dias de
hoje, quando o revestimento florestal não deve chegar aos 5%.
Na Europa, onde não há devastação florestal há uma centena de anos, o tempo
também está mudando, assim como nos Estados Unidos, onde os invernos estão cada
vez mais frios e os verões mais quentes.
Neste particular, não nos podemos queixar, aqui nestas serras do Estado do Rio,
porque temos tido verões sem calor e invernos sem frio. O que está de amargar é
a irregularidade das chuvas, com todas as conseqüências no que respeita à alimentação
do gado. E o descontrole se reflete na produção de leite.
Este ano, por exemplo, minhas vacas estão dando leite de má vontade. Nunca
tive, nos últimos anos, média de curral tão baixa. Sei de vários amigos que também
se queixam de que seu leite nunca esteve tão ruim. Outro dia, visitando uma
cooperativa distante 200 quilômetros aqui da fazenda, ouvi de seu presidente, que
é grande produtor de leite e veterinário esclarecido, observação sobre a má vontade
de seu gado para dar leite, neste ano de 1978. Pelo visto, o problema é geral. Ou, como
diria o excelente Barroso: é o legítimo teorema; ninguém entende.

142
BOS
PRIMIGENIUS

Uma senhora de minhas relações, francesa de nascimento,


tem a maior preocupação de poupar seu marido de qualquer
aborrecimento, sob o grave argumento de que ele chega do
trabalho “com a cabeça cheia de chifres”.
Sendo ela própria uma santa senhora, a quem repugnaria
cornear o pai de seus filhos, as atenções e o carinho com que
recebeo marido, sem esquecer-se dos salgadinhos e douísque
regulamentar, devem-se ao fato de o chefe da casa voltar da
cidade com a cabeça cheia de cifras .
Lembrei-me da estória agora, quando pretendo começar
nosso capítulo sobre as raças e os tipos leiteiros.
Não me parece justo maçar o bom leitor, que deve ter
a cabeça cheia de cifras, com uma porção de chiffres ,
e números, e tabelas, e recordes, que só fazem
complicar a revisão, com a possibilidade provável de
troca de algarismos, e acrescentam muito pouco à
filosofia do nosso livro. Ainda assim, preciso recorrer
a algumas cifras, para compor este capítulo.
Os números e, mais que eles, as citações de autores
responsáveis têm grande importância para respaldar
meu texto. Se afirmo alguma coisa, com as botinas ainda
sujas da lama dos currais, o leitor apressado pode pensar:
“Esse cara é um idiota. E tem as botinas sujas, ainda por
cima!”Contudo, se digo quea afirmação édeLush, de Wilkens

143
ou de Taussig, deixo o meu bom leitor pálido de espanto,
porque ele nem desconfia de quem tenha sido o citado Stefan
Taussig. Na emergência, há que respeitar a opinião de
Estefânio.
Como candidato a produtor de leite, você está farto de
saber que o termoraça vem do latim radix , o que não impede
que também possa ter vindo do árabe ra’s , do hebraico rash
ou do germânico reiza . Nada disso tem importância, como
também não importa pesquisar se realmente existem raças
superiores, de gentes ou de gados, ou se o que existe são
raças inferiores apenas, como diversas das que têm assento
e voto na ONU.
Na pecuária leiteira, interessemais imediato deste livrinho,
você vai ficar deslumbrado com as inúmeras possibilidades
raciais para formar seu rebanho. É quase certo que escolherá
uma “raça pura”, sobretudo e principalmente se o seu
conselheiro for um mestiço.
Tenho um bom amigo, profissional veterinário da maior
competência, o Dr. Heber Calais, de origem francesa, que
resume de forma admirável o fascínio do brasileiro por
determinados gados: “O brasileiro, que é pequeno e mestiço,
tem mania de gado grande e puro”.
Freud explica? Explica. E o meu bom leitor não pode fugir
à regra, apesar de ter lido aí atrás que não se deve pensar em
gados grandes nas regiões de solos ácidos.
Bonsma conta uma experiência levada a efeito na África do
Sul, onde o gado foi mantido em duas seções de uma só
fazenda, separadas cinco quilômetros uma da outra. Numa
das seções o pH médio era 6,5; na outra, o pH variava de 4,5
a 5,0. E o resultado da história é que o gado da primeira seção
ganhou, em média, mais 135kg de peso vivo do que a parcela
do rebanho que pastava na seção de pH mais baixo.
Dirá você que o negócio é sair despejando toneladas de
calcário em seus pastos. Sei não... O negócio é meio complexo,

144
como você poderá verificar em qualquer tratado de pedologia
e fertilidade dos solos. Se a sua meta é o gado grande, convém
não esquecer os outros fatores limitantes, dentro daquele
estudo sobre clima e produção animal.
Está certo: você diz que abre mão do gado grande, mas não
dispensa a raça pura, geneticamente pura, como vai ter a
coragem de anunciar no restaurante do J óquei, agora que já
recebeu seu cartão de produtor rural, com carimbo etalão de
notas fiscais, uma espécie de “diploma” de fazendeiro.
Lamento informá-lo deque o citado Stefan Taussig diz que
“qualquer que seja a definição que se possa dar ao conceito
deraça — deve-se considerar excluída a existência de animais
de raça pura , no sentido estritamente genético”.
É dose... Foi-se a sua raça pura para o brejo, pelo menos
para o brejo genético. Isso porque, para a genética, o animal
puro é o homozigoto e os criadores estão fartos de saber que
um casal de animais puros, registrados no Livro Genealógico
da raça, não gera prole homogênea.
E agora? Bem, agora resta apelar para a pureza racial em
zootecnia , pureza convencional que decorre, entre outras
circunstâncias, de um convênio entre criadores, que se
comprometem a admitir e aceitar como puro todo animal com
o fenótipo da raça (padrão), que esteja regularmente inscrito
no respectivo Livro Genealógico (DOMINGUES i n
A raça, s eu genótipo e fenótipo ).
A histeria politicamente correta dos anos 90, baseada no
fato de que não há raça geneticamente pura, pretende negar
a existência de raças na espécieH . s apiens , o que éuma tolice
e um exagero. O que não se pode falar é em raças
geneticamente puras , quer para o nosso rebanho, quer para
nossa família, por mais lourinha que seja.
Outra besteira é torcer o nariz para as novas raças de gado.
Raças, sim, senhores, e fim de papo. E raças porque têm um
Padrão, um Livro Genealógico euma Associação decriadores.
145
Ignorar esse fato é mais do que ignorância, é burrice. Os
burros, sim, é que não constituem uma raça, porque são o
produto resultante da hibridação deduas espécies, a cavalar,
ou eqüina, e a asinina.
Vistos, assim por alto, os prolegômenos raciais, deixem-
me falar de algumas das raças de bovinos que podem ser
exploradas para a produção de leite por aqui. E me deixem
cuidar do assunto meio pelo alto, com o que poupo meu
latim e protejo meus untos da fúria homicida de alguns
criadores, indignados com o fato de eu sustentar que seu
gado não se adapta ao nosso clima.
É no capítulo “Raças de bovinos leiteiros” que os autores
lavam a égua de sua erudição, no mesmo passo em que
conseguem engrossar os seus livros, para compensar a falta
de prática no trato dos problemas leiteiros. E são fotografias,
são estudo sobre a origem de cada raça, sua distribuição
regional, a topografia, os solos, o clima, a alimentação e as
práticas de criação, as características físicas, os índices
zootécnicos — tudo queseja capazdeencher a lingüiça técnico-
literária.
É facílimo: basta copiar os outros autores. Pegando um
livro como aquele da FAO, em dois volumes, sobre raças
européias de gado bovino, qualquer escriba apronta quatro
volumes deitando erolando em cima do pobre leitor com uma
espantosa erudição racial. E é assim que ficamos sabendo da
origem, formação e dos índices de produtividade do gado de
Tagil. Putzgrilo: de Tagil...
Há quem sustente, e não tenho motivos para duvidar, que
todas as raças bovinas atuais, sem exclusão das zebuínas,
tiveram sua origem no B os primigenius , também chamado
uro ou aurox. E daí? Será que o dono do armazém vai fazer
algum desconto pelo fato de você afirmar que o gado jersey
descende do aurox, o guernsey, do uro e o aberdeen angus,
do B os primigenius ? Receio que não. Como também tenho a
146
certeza de que você não vai ficar mais feliz, nem menos
desinformado, se eu disser aqui que todos os bovinos
domésticos são monofilógenos. Mono o quê?!
Há quem diga, também, que a domesticação de bovinos
selvagens — e não faria sentido domesticar bovinos
domésticos — se fez na Índia, no Oriente Médio e no
Egito, ali por volta do ano 6.000 a.C. E daí?
Daí é que descobri, na mesma fonte em que me
abeberei, que Schwabedissen sustenta que os bovinos
foram domesticados em Schleswig-Holstein entre os
anos 4.000 e 3.400 a.C. Animadíssimo, você concluirá
que o bovino domesticado em Schleswig-Holstein é
aquele mesmo holstein que um importador está querendo
trazer do Uruguai para você, puro de origem, da variedade
malhada de preto.
Não sei se o negócio é bem assim. O que sei, ou penso
saber, é que Holstein é uma região da Alemanha e o
gado que deu origem à raça holandesa, como aquela que
você está quase importando do Uruguai, deve ter
aparecido nos Países Baixos no começo do século XIII,
possivelmente com a pelagem branca malhada de vermelho,
já que o gado malhado de preto só se generalizou na
Holanda séculos mais tarde.
E nós com isso, preclaríssimo leitor? Você ainda
não escolheu a raça que vai criar e eu fui criador
de pitangueiras. Que nos importam os estudos de Davis
sobre a raça holstein-fresian na América, se habitamos
território tropical e o autor quis referir-se à
América do Norte?
Será que o gado trazido para a Holanda no século
XIII era aquele mesmo que foi domesticado 5.300 anos
antes de Schleswig-Holstein? Tanto pode ser como pode não
ser.

147
Nos Estados Unidos, o gado provenienteda Holanda entrou
com o nome de holandês et pour cause. Essa conversa de
holstein foi invenção de um burocrata qualquer, do
Departamento de Agricultura americano, quando Mr.
Chenery, criador daquele gado, preparou em 1864 um artigo
sobre a raça, para o U.S.D.A. Report.
Em seu artigo, e pela primeira vez, foi utilizada a
denominação holstein, mas Mr. Chenery jura que escreveu
holandês, ficando a troca dos nomes por conta de algum
funcionário do Departamento. Lá, como cá, burocratas há
que fuxicam textos alheios.
E foi assim que a denominação holstein pegou para a raça,
que é a mais notável produtora de leite e gordura, no mundo
inteiro.
Prometi poupar o leitor da descrição de todas as raças, e
mesmo da análise pormenorizada dealgumas delas. Se estou
falando do gado holstein é porque se trata da raça das raças
em questões leiteiras. E alguma coisa me diz que você,
animado por esse fato inquestionável, e com a notícia de que
muitos de seus mais prósperos amigos são criadores de
holandês, também vai importar desse gado para sua fazenda
do Vale do Paraíba. Trataremos do assunto mais adiante, que
agora preciso falar da raça tagil, que pintou no pedaço aí de
trás.
Como o amigo está farto de ignorar, a raça tagil foi criada
na segunda metade do século XVIII, na Rússia, mediante
cruzamentos entre as raças kholmogor, suíça parda,
shorthorn, tirolesa, yaroslavl, simmental, holandesa, cinza
da ucrânia, calmuca, astracan e kirguis: salada russa com
molho europeu.
Pois muito bem: você vai ficar sabendo, aqui e agora, no
alpendre de sua fazenda, onde está bebendo uma cervejinha
supergelada, de short, aproveitando a tranqüilidade do fim
detarderural — vai tomar conhecimento, enfim, das condições

148
médias de temperatura no distrito de Tagil, onde a raça foi
desenvolvida.
Em janeiro, a média é de -19°C. Isso mesmo que você
entendeu: quase 20 graus abaixo de zero! Em compensação,
no mês de fevereiro a média alcança os 20°C negativos.
Em março o negócio é mais suave: a média é de apenas
13,8°C negativos. E em abril já dá para botar o nariz
do lado de fora da casa: -2,8°C. Em maio, a média deixa
de ser negativa: 1,6 °C, um pouco abaixo do meu recorde
de 3° C, num clima tropical de altitude, quando quase
morri de frio.
Em junho começa a fazer calor em Tagil: a média é de 5 °C.
Em julho e agosto o habitante de Tagil deve começar a pensar
na hipótese de comprar um aparelho de ar-condicionado,
pois a temperatura média sobe para 10,1 ° C e 10,5 °C, res-
pectivamente. Deve ser tempo de tomar sorvetes, chopes e
outros gelados. Deve ser também, nessa época, que o pru-
dente habitante de Tagil toma o seu banho anual.
Em setembro a média ainda é positiva: 6,2 °C, mas em
outubro já está ligeiramente abaixo de zero: -0,3 °C. E em
novembro baixa para -8,0 ° C. Finalmente, em dezembro a
média é de -18,3 °C.
Imagine o meu bom leitor o que deve representar para um
animal da raça tagil, e para sua descendência, a tentativa de
aclimatação a qualquer das bacias leiteiras brasileiras. Seria
uma indignidade pecuária, ou uma safadeza zootécnica. E é
isso que se faz com muitos gados, de várias outras raças, em
diversos lugares do Brasil, graças ao analfabetismo cavalar
de alguns doutores-criadores e à complacência criminosa
dos técnicos do governo, que não se dão conta dos
milhões de dólares que jogamos fora, ano sobre ano,
com importações rigorosamente inviáveis.
No processo de aclimação de uma raça existem várias

149
modalidades de aclimamento, que vão desde a falência da
raça até a sua naturalização (DOMINGUES in E lementos
de zootecnia tropical). É exemplo de naturalização
o que acontece com o gado holstein nos Estados Unidos
e com as raças zebuínas no Brasil. No extremo oposto
da escala, temos a falência racial, que custa ao país
milhões de dólares por ano.
Volto com a palavra ao mestre de várias gerações
dezootecnistas brasileiros, Octávio Domingues: “Finalmente,
falta uma advertência aos criadores queouso formular, porque
o que ocorre entre nós não éum fato isolado. Tanto assim que
na Alemanha, Kronacher, há muitos anos, chamou a atenção
dos criadores para isso, referindo-se à constante importação
de reprodutores. Esta importação, segundo ele, tem por fim
fazer desaparecerem as modificações
que as diferenças de clima, solo, alimentação,
cuidados, etc., determinam na caracterização dos
animais, que podem afastá-los do padrão original.
Isto também sói acontecer aqui entre nós. As gerações
nascidas no país vão perdendo de certo modo aquela
ambicionada similitude
com o padrão da raça. Mas são animais, de algum modo,
vitoriosos no meio. Para evitar esse afastamento do
padrão, fazem-se novas importações de reprodutores
(e de sêmen), cada ano. Kronacher compara isso com
o trabalho das Danaides que, como sabemos, foram
condenadas a encher, no Inferno, um tonel sem fundo...”
Confesso que não sabia do trabalho das Danaides,
mesmo porque sou de uma ignorância esplendorosa. Mas
tenho visto o que se faz, em termos de importações
de raças européias para o Banco Central Pecuário, que
é o tonel desses gados, enquanto o clima é o próprio Inferno.
Para que meu paciente leitor faça uma idéia do que é a

150
naturalização perfeita em Zootecnia, informo que, segundo
dados de 1980, os Estados Unidos haviam feito sua última
importação de gado da Holanda no ano de 1905.
E vamos em frente, porque você precisa providenciar os
papéis relativos à importação de gado que pretende fazer
para sua fazenda leiteira.

Vai tudo bem, obrigado —


O Globo, janeiro de 1973.
“Alô, doutor, o senhor está me ouvindo? O telefone aqui anda muito ruim. Agora
está melhor?”
“Eu bem, obrigado, doutor, e o senhor como foi de Ano-novo? J á sei que nasceu
menina: meus parabéns! Por aqui vai tudo bem, graças a Deus. Eu é
que não tenho tido tempo de ir na sua fazenda, para ver o gado. Mas sei que vai tudo
bem.”
“Não, nesses três dias para trás eu não pude ir até lá, mas recebi um bilhete do
retireiro dizendo que vai tudo bem e que tem uma vaca mocha com a madre para o
lado de fora.”
“A madre, doutor, para o lado de fora. Mas eu não tive tempo de ir lá, porque ando
muito ocupado. Mandei um bilhete para o veterinário ir com urgência, mas aquilo
é coisa à-toa. Ele aplica um antiespasmódico e dá um ponto, quando é preciso.”
“Diz o bilhete do retireiro que é uma tal de Batata. Ela está muito adiantada?”
“Ah, se ela já está produzida fica bem mais fácil. O veterinário é muito bom, o
senhor vai ver. Aquilo é coisa fácil de tratar.”
“Não, o senhor não precisa se preocupar, que ele resolve em dois tempos. Que,
por falar em tempo, teve uma tromba-d’água...”
“Tromba-d’água, doutor. Caiu bem em cima da sua fazenda e da fazenda do doutor
Ivan. Lá no doutor Ivan andou estragando um bocado, mas na sua foi coisa pouca.”
“Não, pode ficar tranqüilo que não estragou nada. O açude é que estourou, mas
aquilo o senhor conserta com 150 horas de trator.”
“É, a água passou por cima e levou tudo, mas o senhor pode ficar descansado
que as manilhas ficaram no lugar. O prejuízo foi só do aterro.”
“Não, eu acho melhor o senhor esperar para fazer o conserto na seca. Enquanto
isso, o gado fica passando dentro do rio, que ali não chega a dar nado.”
“Não, não chegou a estragar mais nada. Só a estrada da capineira é que acabou,
mas o trator abre aquilo de novo, quando for aterrar o açude. É coisa pouca.”
“É, o estrago foi só na estrada e no açude, mas teve aquele buraco do Formoso,
que desmoronou. Aquilo já era mais ou menos esperado. Eu não pude ir até lá, porque

151
a estrada para o Carrapato também acabou e eu estava meio com pressa para subir a
pé.”
“É, o senhor não precisa se preocupar, que vai tudo bem lá na fazenda. Se não fosse,
eu já tinha recebido recado. Que, por falar em recado, aquele bezerro enraçado,
infelizmente...”
“Não, não foi preciso embengar, porque a vaca aleitou sem bezerro. Diz o retireiro
que ela até aumentou o leite. E o bezerro não ia ter serventia para o senhor...”
“Aquela vaca está melhor. Eu apliquei a sulfa na veia e acho que ela já está boa.
Se ela tivesse alguma coisa, eu tinha recebido recado. Foi difícil aplicar a injeção em
cima do casco. O couro ali é muito duro e a agulha custava a entrar. Mas o que resolveu,
mesmo, não foi a terramicina, foi a sulfa na veia. E o veterinário, indo ver a madre da
Batata, aproveita para olhar o pé daquela vaca. Eu acho que vai ficar boa, mas não custa
olhar.”
“Ah, não, isso o senhor não precisa se preocupar, porque vai tudo bem, graças a
Deus. O boi do gado de leite é que pegou bicho no umbigo, mas o retireiro já curou. Eu
não pude ver se ficou bom, mas aquilo é coisa boba quando a gente trata a tempo.”
“Não, todo dia espero bilhete, pelo caminhão do leite, e notícia não teve mais
nenhuma. Só o boi do gado solteiro...”
“Abriu, doutor, abriu no mato com mais três novilhas e duas vacas. Estão sumidos
desde quinta-feira da semana passada. Mas o senhor pode ficar tranqüilo que nós já
mandamos avisar aos vizinhos e o gado não pode ir longe. A não ser...”
“É, a não ser que um vizinho bote na estrada. Aí tem o perigo do gado ir parar no
asfalto, mas os retireiros estão procurando e não demora encontram as seis cabeças.
O senhor pode ficar descansado.”
“Não, a vacina eu não dei porque a geladeira enguiçou e eu mandei jogar fora a
vacina. Mas não tem perigo, não, que já tem muito tempo que não dá aftosa naquelas
bandas.”
“É, não foi a geladeira que quebrou, não, foi a luz que faltou, porque caiu uma faísca
na linha e andou estourando os pára-raios. É bom o senhor anotar para trazer três pára-
raios para linha de alta-tensão, tipo Light. Pode trazer de 13 mil volts, que eu mando
colocar. O retireiro já está bem prático de mexer com a linha...”
“Não, o senhor não precisa se preocupar, que ele só mexe com um bambu seco,
que não dá choque.”
“Bom, se ele for mexer com o bambu verde, aí pode matar, mas eu acho que ele não
é burro.”
“Ah, isso é verdade, se ele fosse um gênio, não era seu retireiro: o senhor tem cada
uma! Se é assim, eu mando ordem para ele não tocar na alta-tensão, de jeito nenhum,
e esperar pelo eletricista, que tem mais prática.”
“É, doutor, assim fica melhor, e o senhor pode ficar sossegado, que por aqui vai
tudo bem, graças a Deus”.
“Não, não precisa agradecer: é por gosto. Nós também lhe desejamos um 73 muito
feliz. E parabéns pela menina!”
152
RAÇAS &
CRUZAMENTOS

Os europeus e os criadores dos demais países de climas


temperados têm uma grande variedade de raças de bovinos
capazes de produzir leite em condições econômicas.
Dentre elas, as mais conhecidas são a holstein, a jersey, a
guernsey, a variedadeleiteira da shorthorn, a ayrshire, a suíça
parda, e normanda, a simmental (fleckvieh) e a red poll, as
quatro últimas, junto com a variedade leiteira da shorthorn,
consideradas raças de dupla aptidão.
Devo ter cometido algumas injustiças na relação aí de cima
e é por isso que sou inimigo das relações. Esqueci-me, por
exemplo, da raça dinamarquesa, coisa imperdoável. Mas o
leitor vai relevar a falta porque sabe que estou escrevendo de
memória e a alternativa, copiar o livro da FAO, resultaria
numa obra de quatro volumes.
A raça das raças leiteiras, detentora de todos os recordes
de produção de leite e de gordura, em todas as categorias de
animais, é a holstein (respeitemos o burocrata do U.S.D.A.
Report e as Associações de Criadores). J unte-se o fato de que
o gado holandês é notável ganhador de peso e dá quinau na
maioria das raças de corte, só não liquidando de vez com elas
por causa de um negócio chamado qualidade de carcaça,
bem melhor nas raças de corte.

153
Todas essas qualidades justificam o fato deo gado holstein
ter conquistado a preferência dos criadores em diversas regiões
produtoras, o que não impede que, mesmo em climas
temperados, muitos fazendeiros dêem preferência a outras
raças. Era exemplo disso a Nova Zelândia, país da maior
expressão como exportador de leite e derivados, que dava
preferência à raça jersey. Hoje, parece que a holstein
conquistou uma grande fatia do mercado neozelandês.
Os resultados do gado fleckvieh na Alemanha, como pro-
dutor de leite, são notáveis. E a raça é também excelente
produtora de carne de ótima qualidade. Antes da invenção
dos tratores agrícolas, a raça fleckvieh também era usada
para tracionar veículos e implementos.
Da Alemanha eu poderia pular para a Hungria, a Repú-
blica Checa, a Noruega, a China — e o leitor teria o direito de
perguntar: “Mas nós não vamos produzir leite no Brasil?”
Vamos, sim. E vamos cuidar de falar das raças que
contribuem, de uma ou de outra forma, para o equa-
cionamento do problema leiteiro tupiniquim.
Encabeça nossa lista a raça holandesa, não só por
sua importância no mundo inteiro e por sua maciça
utilização nos cruzamentos feitos no Brasil, como
também pelos resultados que vem obtendo por aqui nos
últimos anos.
Você já ouviu falar das variedades malhada de preto
e malhada de vermelho da raça holandesa, e deve saber
que na Holanda existem gados malhados de vermelho,
como é o caso do MRIj (Meuse-Rhine-Ijssel), das
mesmas estirpes do gado frísio.
Mas quando cuidarmos aqui do gado holandês vermelho
e branco estarei me referindo ao que resulta do
cruzamento de animais da variedade malhada de preto,
portadores da cor vermelha recessiva.
Teoricamente, uma quarta parte dos descendentes de
animais holstein malhados de preto, portadores do

154
vermelho recessivo, são de pelagem vermelha e branca. Uma
outra quarta parte será homozigota para a cor preta e de
pelagem branca e preta, quanto a metade restante será preta
e branca, se bem que portadora do gene vermelho recessivo.
Entendeu? Nem eu.
E já que você parece disposto a fundir a cuca nesses es-
tudos genéticos, procure consultar as apostilas do seu filho,
que está fazendo o vestibular. O negócio nos parece, a nós que
fomos condiscípulos de Matusalém, fascinante
e ininteligível. E leva sobre certos poetas herméticos, também
ininteligíveis, a vantagem de ser fascinante.
Não creio que as elucubrações genéticas sejam de grande
importância para o nosso livrinho. É verdade que você vai
falar da “sua genética”, dizendo que “faz genética”, como se
falasse da “sua física”, da “sua matemática”, pelo só fato de
comprar o sêmen deum touro denomebonito, para inseminar
uma vaca de nome lindo.
Ainda ontem (setembro de 1996), li uma entrevista dada
pelo veterinário Newton Pohl Ribas, professor da Universidade
Federal do Paraná, superintendente do Programa de Análise
de Rebanhos Leiteiros implantado naquele estado, que
contava da visita que fez em 1989 a um touro no Canadá, um
fenômeno chamado Hanoverhill Starbuck, que tinha cerca de
50.000 filhas em controle leiteiro, ou seja: “...um número
muito maior que o total de todas as vacas controladas no
Paraná. Falar em teste de progênie, com o número ridículo de
vacas controladas que temos no país inteiro, é simplesmente
improcedente. Só vamos fazer genética e seleção quando
controlarmos os rebanhos”.
O certo é que a raça holandesa, sobretudo nos últimos
anos, graças à importação de matrizes de elite, sêmen de
touros provados, transplante de embriões, novas técnicas de
manejo, defesa sanitária e nutrição, vem apresentando
resultados fantásticos no Brasil. Números inimagináveis
quando saíram as duas primeiras edições deste livro, em 1981.
Em 1995, três ordenhas, lactação de 365 dias, a vaca

155
Embuia J ax Flor de Maio, do Sr. Harry Dockhorn, produziu
em controle oficial 19.611 quilos de leite. Há dezenas de
animais com lactações entre 13 e 19 toneladas de leite, em
duas ou três ordenhas, 305 a 365 dias. No capítulo dos
campeões, há fazendas como a Monte Alegre, em Lapa, PR, de
J oão Baggio, com 125 animais em lactação e média diária de
33 litros, espantosa em termos de Brasil, o que não impede
que seja a média de rebanhos comerciais na América do Norte.
Vacas há que produzem em 305 dias uma quantidade de
gordura equivalente ao seu próprio peso. E assim por diante.
Recém-doutorado em nutrição de ruminantes por uma das
melhores universidades americanas, o filho deum amigo meu
sustenta que a alimentação não tem mais mistérios para
produções de até 66 quilos de leite/ dia. E que só acima de
66kgo esquema nutricional se complica. Isso, evidentemente,
se a vaca tiver patrimônio genético para produzir aquela
quantidade de leite.
Tendo em vista o fato, de resto inquestionável, de que o
nosso estimabilíssimo Bos primigenius produzia o leite
estritamente necessário para amamentar sua cria, é forçoso
convir em que uma lactação de 20 toneladas constitui, a um
só tempo, um recorde maravilhoso e uma inominável
sacanagem. Um bezerro écriado à tripa forra com 1.200 quilos
de leite. Portanto, os 18.800 excedentes foram inventados
para fazer iogurtes, cremes, queijos, requeijões, coalhadas e
tudo mais que se produz na indústria de laticínios. E para
chatear as crianças com aquela conversa de que precisam
tomar leite.
Quando puro, é um belo alimento. Mas a manchete de
primeira página do jornal Hoje em dia , edição de
13.9.96, é a seguinte: “BH consome leite impuro”.
E o lead: “Teste mostra presença de coliformes fecais;
30% dos produtos são impróprios para consumo”.
Portanto, quando a mãezinha insiste com o filhinho
para tomar um copo de leite “para ficar forte”, em

156
Belo Horizonte, pelo menos, tem alta probabilidade de estar
dando um caldo lácteo de coliformes fecais.
Sirva de consolo a informação de que mandei analisar a
água da mina da Fazenda Pau D’Alho e o resultado foi
indiscutível: coliformes fecais. O amigo que levou a amostra
para o laboratório da cidade, em vidro esterilizado, me
telefonou pelo interurbano precário lá da roça, para dar o
resultado do exame. Como não guardou o nome complicado,
simplificou as coisas: “Alô, doutor, apanhei o resultado do
exame: deu merda”. Comoera a única mina com queeu contava
para abastecimento da sede, fiz ouvidos moucos para a análise
do melhor laboratório de Minas. Em dez anos, ninguém se
queixou da água, nem quando transformada em gelo para
uísque.
Estou para dizer que, se a gente examinar direito, tudo na
vida tem coliformes fecais.
Três ou quatro parágrafos atrás você leu que é uma
inominável sacanagem fazer que uma vaca produza 20
toneladas de leite/ ano. Não creio que o animal tenha
sido feito para violências lácteas dessa ordem: em média, é
mais de um latão de 50 quilos de leite por dia.
Submetida a uma formidável pressão de seleção nas
condições de criação dos Estados Unidos e do Canadá,
a raça holstein é hoje um animal maravilhoso como
produtor de leite e de gordura. J ustamente porque é
animal altamente especializado requer umas tantas
condições de alimentação e conforto, sem as quais não
pode repetir os recordes de sua região de origem e
ainda corre o risco, no caso tropical, de conhecer
o processo de falência racial.
Isso talvez explique o fascínio dos criadores
brasileiros dessa raça extraordinária pelas novidades
dos laboratórios. Quem me chamou a atenção para o fato
foi o Roberto G. Salgado: “Criador de holandês só
fala de remédio”. Maldade do excelente amigo, mesmo

157
porque os criadores de holandês também falam de genética.
Tenho aqui em mãos o número deagosto/ 96 da revistadaquela
raça, com seteanúncios de “genética”, seis deremédios e uma
página de propaganda de ração para bezerros. Mas que os
criadores gostam de trocar idéias sobre novos medicamentos,
e vitaminas, e formulações milagrosas de misturas minerais,
lá isso gostam.
Animais domésticos altamente especializados como a
galinha que bota mais de 300 ovos por ano, o leitão capaz de
pesar 200 quilos em seis meses, o bovino que produz mais de
10 toneladas de leite por lactação e o cavalo que corre mil
metros em 55 segundos são animais delicados, que requerem
condições especiais de manejo e nutrição.
Em ambiente hostil, nem sempre essas condições espe-
ciais são econômicas. J unte-se o fato de que a exploração
de animais altamente especializados requer competência ,
artigoque não abunda por aí. Competência, dedicação, paixão
— uma ligação quase atávica com o animal. Atavismo que
talvez explique os recordes obtidos com a raça holstein pelos
imigrantes holandeses da colônia de Castro, no Paraná.
Qualquer cidadão, com muito dinheiro e um mínimo de
assessoramento, pode importar gados europeus e americanos
dos melhores pedigrees. Difícil, mesmo, é tocar o barco a partir
da importação.
J á me tacharam de “inimigo do holandês” — logo eu!, que
tenho 25% desangueholandês —, pelo fato deficar desgostoso
com o que se faz, no Brasil, em matéria de importação de gado
daquela raça extraordinária. Longe de mim pretender que
você, meu amigo e leitor, deixe de criar holandês. A raça é
uma das soluções para a produção comercial de leite nos
trópicos. E éextraordinária nos cruzamentos com os zebuínos.
O que me desgosta é ver o que tem sido feito com o holstein
e outras raças de origem européia, mesmo por pessoas
inteligentes e informadas, numa porção desituações de criação
do Brasil. Tenho visto importações inteiras, seja dos Estados

158
Unidos, do Canadá, da Inglaterra, da Holanda, da França, da
Argentina, do Uruguai, de diversas linhagens e raças que se
perdem sem deixar descendência.
A terrível conjugação das babesioses com a fome liquida
rebanhos inteiros em pouquíssimo tempo, o que é uma bur-
rice, uma desumanidade e um crime. Um crime, porque se
jogam fora divisas preciosas; uma desumanidade, porque o
rebanho não merece tratamento daquele tipo; uma burrice,
porque nenhum criador, por mais rico ou imbecil, podesentir
alguma forma de prazer ao enterrar dezenas de vacas, dia
após dia, uma sobre a outra.
Minha luta é contra as importações levianas, feitas por
gente despreparada, com a complacência e, não raro, os
financiamentos criminosos do governo.
Tenho amigos, ebons amigos, bem-sucedidos com a criação
de gado holstein, puro de origem, no Brasil. Todos, sem
exceção, têm alta competência empresarial como produtores
de leite e reprodutores de elite. E é essa competência, essa
indispensável competência, que os ajuda na condução de
seus negócios pecuários com algum sucesso financeiro.
Ainda assim, as limitações do clima são terríveis, basta
comparar as estatísticas americanas e brasileiras. É aquela
diferença entre a cooperativa com 150 produtores e média de
8.000 quilos de leite/ dia, que o coronel Carlos visitou nos
Estados Unidos, e as nossas centrais, englobando 50
cooperativas, sem um só produtor de 5.000 quilos de leite/
dia.
Recordes honestos eisolados têm sido alcançados no Brasil,
é verdade. Mas é preciso não esquecer que estamos no país
das fraudes, do jeitinho, da propina e da velhacaria, de livre
curso em todos os escalões. Há notícias de produtores que
vendem 150 filhos de uma vaca recordista, sem recorrer ao
transplante de embriões, mesmo porque a campeã, quando
não está em anestro há vários anos, já está morta e enterrada,
sem parar de ter filhos.

159
Há notícia de recordes muito badalados, de vacas
produtoras de 50 quilos diários, que não conseguiram
produzir quatro litros de leite no dia do controle
de inspeção. E tudo continua como dantes no quartel
de Abrantes.
Raça das raças leiteiras, a holstein não merece o
que se faz com ela no Brasil. É um gado maravilhoso,
espantosamente produtivo, notável ganhador de carne
e muito fértil — nas condições de criação de alguns
países de clima temperado. No Brasil, requer muita
competência para se transformar numa empreitada bem-
sucedida. E o que se
diz para o gado holandês serve para as demais raças
leiteiras européias, quando exploradas em solo e
clima tupiniquins.
É verdade que o gado jersey parece ter melhores
condições de aclimação às regiões tropicais devido
a uma porção de fatores que seria exaustivo enumerar,
quando o primeiro deles, a evidência dos fatos, é mais
que suficiente.
Contudo, sua péssima conformação frigorífica e seu
leite muito gordo, sem a competente remuneração pelo
comprador, têm contribuído para limitar a expansão
da raça
no Brasil.
Tem sido fomentada entre nós a criação de animais
da raça deutsche fleckvieh, gado de dupla aptidão em
seu país de origem, onde as condições de criação e
seleção costumam ser do maior rigor, com resultados
notáveis. Basta dizer que, num determinado ano, dos
116.000 bezerros machos submetidos à associação de
criadores, foram selecionados 32 animais para
utilização experimental (teste de progênie) em
inseminação artificial. Desses 32 é que poderia sair,
ou não, o touro para ser usado em maior escala na
inseminação artificial.

160
Com uma seleção dessa ordem, num país como a Ale-
manha, não é de espantar que os resultados da raça, na
produção de carne e leite, sejam formidáveis. Quase encerrei
o período anterior com a ressalva “na Alemanha, pelomenos”,
para espicaçar um querido amigo que cria fleckvieh na
Baixada Fluminense, de solos hiperácidos e calor quase
insuportável.
Curioso de ver como se comportava aquela raça nas
horríveis condições da Baixada, estive três vezes
na fazenda do amigo. Mas por uma dessas coincidências que,
de tão singulares, chegam a ser diabólicas, nessas três vezes
precisei usar suéter, porque fazia frio e ventava, fenômeno
que só deve ter ocorrido naquela zona, nos últimos 500 anos,
nos três dias em que andei por lá.
O fleckvieh das terras altas da Alemanha, a julgar pelo que
se sabe da raça suíça parda, dos Alpes, deve ter maior
quantidade de glóbulos vermelhos no sangue, quando
comparada com as raças européias de regiões mais baixas.
No que respeita à incidência dos raios ultravioleta, há uma
certa semelhança entre as grandes altitudes e as regiões
tropicais e subtropicais, o que tem levado alguns autores à
convicção de que o gado da Suíça teria melhores condições de
tolerância ao clima tropical do que as outras raças da Europa.
Mesmo existindo a tal semelhança, é preciso notar que os
demais fatores que compõem o clima, ou os climas, do ponto
de vista da produção animal, são diferentes como os idiomas
falados na Alemanha e no Brasil, ou os povos que habitam os
dois países.
Essa conversa de glóbulos vermelhos e climas de altitude
vem à baila sempre que o s cratch brasileiro vai praticar o
football em La Paz, Bolívia. Naquela cidade, ao que se diz,
nossos players costumam sofrer com o problema da altitude,
como também diziam sofrer de “nostalgia” noutras memo-
ráveis campanhas balipodísticas.
Superalimentados, supertreinados, superpaparicados e

161
super-remunerados, hospedados nos melhores hotéis do
mundo, de cujas cozinhas desconfiam, tanto assim que não
se esquecem de levar um cozinheiro a tiracolo, especializado
no preparo do feijão preto — os notáveis atletas queixam-se
logo de quê? Ora, da nostalgia! E se à nostalgia acrescen-
tarmos o problema dos glóbulos vermelhos, vai-se o nosso
balípodo para o brejo.
Ainda que as raças européias contribuam de maneira
significativa, em algumas regiões brasileiras, para
o total do leite recebido pelas plataformas das
usinas; ainda que o leite dos bubalinos* possa vir
a constituir-se numa esplêndida realidade; ainda que
o leite produzido a partir do gado indiano puro também
tenha peso expressivo em diversas regiões brasileiras,
o grosso do leite obtido comercialmente no país vem
do gado mestiço de europeu com zebu, o euro-indiano
ou girolanda.
Dentre os mestiços, o gado girolanda é o que
apresenta as melhores condições, quando se pensa numa
pecuária leiteira lucrativa, simples, descomplicada,
se é que pode haver lucro, simplicidade e descomplicação
numa fazenda leiteira.
Ao contrário do que possa pensar o meu prezado
leitor, o girolanda não precisa, para sua formação,
das raças gir e holandesa, por isso que também pode
ser filho de um touro de outra raça européia, com uma
vaca de outra raça zebuína.
É da maior conveniência que o produto, dito
girolanda, seja resultante do acasalamento de um
touro europeu com uma vaca indiana, pela razão muito
simples de que o bezerro vai desenvolver-se no ventre
de um animal saudável e perfeitamente adaptado ao
meio. E vai mamar nas tetas

*Bubalinos: búfalos domésticos (N. do E.).

162
de uma vaca milenarmente adaptada aos trópicos.
Dirá você que invento. Não, não invento. O pormenor vaca
adaptada é importantíssimo, di-lo Bonsma. Di-lo,
hem? Eta nós!
Vamos lá: “As vacas da raça afrikander, tolerantes ao calor,
servidas por touros hereford, parem bezerros pesados;
contudo, as vacas hereford, com pequena tolerância ao calor,
servidas por touros da raça afrikander, produzem bezerros
minúsculos. A diferença média de peso ao nascer é de 34 para
18 quilos, respectivamente” (BONSMA in Estudios
s obre selección del ganado).
Além de parirem bezerros minúsculos, as vacas de pouca
tolerância ao calor costumam parir machos mais leves do que
as fêmeas, porque o feto macho tem uma taxa metabólica
maior do que o feto fêmea. Assim, uma vaca não-adaptada ao
clima tropical sofre ainda mais quando está gestando um
bezerro macho.
Voltemos ao girolanda, que ainda me enrolo com essa
mania de escrever sobre taxas metabólicas, quando
vivo jurando fazer regime a partir da próxima segunda-
feira.
O mestiço euro-indiano é a melhor opção para a
produção econômica de leite por aqui. É um gado vivo,
saudável, bem-desenvolvido (por causa do vigor
híbrido), tem ótima eficiência reprodutiva e produz
quantidades expressivas de leite em condições
econômicas, eventualmente a pasto, quando
existe pasto.
É um gado que tem tudo para agradar e seu único
defeito reside no fato de que as filhas das vacas
girolanda já não são girolandas. Como? Espere um
pouco, que explico.
Você já viu que o girolanda pode ser o produto do
cruzamento do gir com o holandês, como também pode
ser mestiço de suíço com guzerá, de holandês com
g u z e r á ,
de jersey com gir, de gir com suíço, de simmental com
163
gir, de red poll com guzerá — todos esses cruzamentos, e
mais aqueles que vocêpossa inventar, sem exclusão dos filhos
de um touro da raça tagil com uma vaca da raça sahiwal, que
recebem o nome de girolanda, embora o mais correto fosse
chamá-los de euro-indianos.
Euro-indiano ou girolanda, o produto tem vigor híbrido,
ou heterose, e você tem todo o direito de perguntar: que diabo
é isso?
Atento ao fato de que o meu bom amigo investiu seus
caraminguás na aquisição deste livrinho, vejo-me na
obrigação de afastar a cadeira, tomar um copo d’água
para combater o calor deste nosso clima tropical,
comer um queijinho fundido para acalmar os ácidos de
minhas vísceras fundamentais e procurar nas estantes
o livro do professor Raul Briquet J únior, Melhoramento
g enético animal.
Passo a palavra ao saudoso amigo: “Heterose, também
chamada vigor híbrido, é o fenômeno pelo qual a
descendência de linhagens cruzadas apresenta maior
vigor geral que a média dos pais que lhe deram
origem”.
O fenômeno parece tão mais intenso quanto mais
diferentes forem as linhagens; e mais puras para
essas diferenças. Portanto, para ter heterose você
não precisa de raças diferentes, nem de subespécies
diferentes, caso dos zebuínos cruzados com os taurinos.
Linhagens consangüíneas de uma mesma raça, cruzadas
entre si, podem resultar numa heterose supimpa.
No caso de espécies diferentes, a heterose pode ser
cavalar, haja vista o burro, produto do cruzamento
do jumento com a égua. O vigor híbrido do burro
permite que ele suplante os pais numa porção de
tarefas que exigem resistência, astúcia e outras
qualidades.
Muitos híbridos são estéreis por causa de problemas
cromossômicos, mas o produto do cruzamento do zebuíno

164
com o taurino, o gado girolanda, continua fértil entre si ou
com as subespécies utilizadas em sua formação.
Há quem explique a heterose como resultado da maior
concentração de genes dominantes. Cada linhagem possui
numerosos genes para o vigor geral, alguns estando em
linkage com recessivos. Cada linhagem, raça ou espécie deve
ser homozigota para vários desses genes, diferentes de uma
linhagem para a outra. Quando se cruzam duas delas, a
descendência recebe maior concentração de dominantes do
que qualquer linhagem inicial. Como esses genes dominantes
são para vigor geral, este é maior na descendência.
Presumo que você não tenha entendido rigorosamente
nada do último parágrafo; console-se comigo. Basta
de genética! Ainda quando você não se confunda, eu
já estou confundido. Duas palavras mais, para falar
dessa maravilhosa girolanda que enfeita com o seu
donaire as praias cariocas e os shows do Dr. Sargentelli:
a mulata, produto
do cruzamento do branco com a negra, para mamar numa
fêmea adaptada aos trópicos.
Se o branco é puro e a negra idem, o produto resulta
soberbo. E o leitor, animadíssimo, dirá que o negócio
é fixar a mulata, cruzando mulato com mulata, visando
à produção de maravilhosos mulatinhos.
O diabo é que existe um negócio chamado dissociação
mendeliana, que deve ter sido inventado pelo abade
Gregório Mendel para estragar nossos planos, como
também estraga quando pretendemos fixar o gado
girolanda, cruzando touro girolanda com vaca girolanda.
Nascem bezerros de todos os feitios: uns bons, outros
ruins, não raras vezes péssimos.
O maior defeito do girolanda, portanto, reside no
fato de que sua produção não será girolanda. Se você
utiliza, sobre vaca girolanda, um touro zebuíno, a
descendência cai naquela conversa da orelha, da
perna, do temperamento e do coice. Se utiliza touro

165
europeu, já começam a nascer bezerrinhos peludos, exigentes
de rações e atenções.
O produto do cruzamento de um touro holstein, diga-
mos, com uma vaca girolanda, chama-se 3/ 4 de holandês
(ou 3/ 4 de holandês x 1/ 4 de zebu), o que absolutamente
não quer dizer que as frações tenham qualquer rigor
matemático no que respeita ao sangue do animal. É
assim, também, com o gados ditos 7/ 8, 15/ 16, 31/ 32:
não acredite nessas frações, que simplesmente não
existem. O negócio é uma convenção para explicar o
tipo de cruzamento feito, para chegar-se a determinado
animal.
Se um criador lhe diz que vai até os 15/ 16 e depois
volta, você pode estar certo de que ele próprio
acabará 63/ 64, ou puro por cruza para a burrice.
Cruzando um touro zebuíno com uma vaca girolanda,
você já pode conseguir, na tal geração chamada 3/ 4
de sangue zebu, uma bezerra pernalta, esperta, coiceira
e péssima produtora de leite. Dirá você, então, que
o negócio é cobrir a girolanda com touros europeus.
É... mas o tal 3/ 4 de sangue europeu, macho, já vai
precisar de uma quantidade espantosa de leite e de
ração para sobreviver em nosso meio. Talvez a quantidade
não seja assim tão assustadora, mas
é suficiente para fazer com que você tenha um bezerro
desmamado de custo superior ao seu valor de mercado;
portanto, um bezerro antieconômico.
Esse é um dos paradoxos da pecuária leiteira: o
leite é geralmente considerado um péssimo negócio,
enquanto a carne passa por ser negócio brilhante.
Ainda assim, matam-se quase todos os bezerros
“enraçados” de nossas bacias leiteiras, porque o seu
valor na desmama é sempre, ou quase sempre, inferior
ao custo de sua alimentação com leite.
Os pesquisadores da Embrapa, entre os quais há
profissionais de primeiríssima qualidade, continuam
166
estudando diversas fórmulas de arraçoamento econômico
para criar machos leiteiros com maior porcentagem desangue
europeu. Ouço dizer que têm obtido resultados surpreen-
dentes com a mistura de cama-de-galinha com cana picada,
a partir de três meses de idade, salvo engano. É ver para crer,
porque nunca me conformei com a matança de milhões de
bezerros machos em nossas bacias leiteiras. Matança
deliberada, é bom que se diga, porque também morrem
milhões de bezerros por inépcia do criador, ou por la fuerza
de las circuns tancias , que se representa pela necessidade de
sobrevivência do produtor de leite, quando alimenta seus
bezerros com brisa e água de mina.
A fêmea dita 3/ 4¾ de sangue europeu (e 1/ 4 de zebuíno)
já é muito mais delicada para criar do que sua mãe girolanda
e não consegue igualar a produção de leite de sua genitora.
Invento? Não, não invento. Tenho por mim, além da evidência
dos fatos, o depoimento do professor Ralph Phillips no livro
B reeding livestock adapted to unfavorable environments .
Com perdão da tabela, vamos lá:
Produção média de gado da Índia, com várias taxas de
sangue importado, principalmente Holstein-Fresian:

Vacas leiteiras Quantidade Quantidade média


de leite(kg)

1/ 2 sangue importado 589 3.171,36


5/ 8 “ “ 204 3.175,00
3/ 4 “ “396 3.029,00
7/ 8 “ “86 2.809,09

Você viu que em 396 lactações controladas dos animais


com ¾ de sangue importado (europeu), a média de leite já
caiu para 3.029,00, enquanto a média do “girolanda” lá de
cima, com maior número de lactações, foi de 3.171,36kg

167
de leite.
Em condições iguais de criação, a partir dos 7/ 8 desangue
europeu o negócio começa a degringolar de vez. Veja vocêque
o leite caiu para 2.809,09kg e só foram controladas 86 vacas,
contra as 589 “girolandas” lá de cima. No lote de
86 animais já existe uma seleção no sentido de só se conser-
varem as filhas das melhores vacas ½ sangue e as filhas das
melhores vacas ¾ de sangue. Ainda assim...
Entre os vários direitos que lhe foram outorgados, quando
adquiriu este livro, figura o de perguntar se a solução não é
voltar ao girolanda a partir do gado ¾ de sangue, ou do
7/ 8. É isso quefaz a maioria dos criadores, na impossibilidade
de continuar com os cruzamentos absorventes, até chegar ao
rebanho europeu puro por cruza.
Contudo, as filhas dos animais 3/ 4, 7/ 8 e 15/ 16 já não
são girolandas, qualquer que seja a raça do touro utilizado.
Isso explica uma porção decoisas, entreelas o futebol genético
encontrado nas bacias leiteiras, o desespero dos produtores
de leite que s e perdem nos cruzamentos e os gadões, o gadão
do Fulano, o gadão do Beltrano, que desaparecem sem deixar
vestígios.
Quando você estiver familiarizado com os problemas e os
produtores desua bacia leiteira, vai ouvir inúmeras referências
aos fazendeiros que tiveram um gadão e hoje têm um gado
igual aos outros, quando não têm um gadinho. Espero que
o meu latim sirva, ao menos, para vocêentender o queacontece
com o gado de nossas bacias leiteiras, já que não tenho a
menor esperança de ver o meu ilustre amigo escapar da
dissociação mendeliana, em sua fazendinha degado cruzado.
Quando produtor de leite, trabalhei com o gado pi-
tangueiras. Vendi as fazendinhas leiteiras, com o gado, para
mexer com uma área no Mato Grosso. Nada tenho contra
aquela raça, muito antes pelo contrário, como também nada
tenho contra raça alguma. Acontece que entrei numa fase de
ter urticárias só de ouvir falar em latões de leite, vales

168
de leite, retireiros, essas coisas.
A raça pitangueiras resultou do cruzamento do europeu
red poll com o zebu, em sua maioria guzerá. Nada impede
que se façam tentativas de formação de outras raças tropicais
a partir do cruzamento holandês x zebu. Parece que há
criadores de girolanda adiantados no sentido de trabalhar e
melhorar o gado 5/ 8 holandês-zebu, geralmente gir. Com as
provas de progênie dos touros, a inseminação artificial e o
transplante de embriões, existindo disposição para trabalhar
e honestidade de propósitos, é tarefa perfeitamente possível:
a formação de uma raça precoce, rústica, fértil e longeva que
tenha uma produção média anual, digamos, de 4000kg de
leite, em que os machos sejam bons animais de corte. Tudo
isso vivendo a campo, ou quase, com os pastos que temos, os
carrapatos quetemos, o sol e o calor que temos. Evidentemente,
na seca há que recorrer à silagem, ao feno, à cana com uréia,
porque sem comida é meio difícil. Acho que foi do grande
zootecnista J oão Soares
Veiga a seguinte constatação: “Há 500 anos o brasileiro
vem tentando selecionar um gado resistente à fome”.
Se você acha 4 toneladas de leite pouco, deixe-me
dizer-lhe que em 1995, segundo pesquisa do professor
Sebastião Teixeira Gomes, a produção média das vacas
ordenhadas em Minas Gerais era de 1.788kg de leite.
Os pequenos produtores, de até50 litros/ dia, querepresentam
59% do número total do Estado, respondem por 20% da
produção total. Produtores médios, de 51 a 250 litros/ dia,
correspondem a 35% do total de fazendeiros e vendem 50%
do leite mineiro. Os grandes produtores, que somam 6% dos
fazendeiros e mandam mais de 250 litros/ dia, respondem
por 30% da produção total de leite.
Pausa para imaginar a situação dos 59% pequenos, cuja
renda bruta máxima, se conseguirem mandar 1.500 litros/
mês para a cooperativa e nenhum latão estiver “ácido”, será
de três salários mínimos pelos preços de hoje, que não estão
dos piores.
Voltando ao assunto aí de cima, numa lactação de 305
169
dias, quatro toneladas de leitecorrespondem à média decurral
de 13 quilos, excelente para o Brasil. Basta dizer que um de
nossos maiores produtores, trabalhando no sistema de
estabulação livre, com gado deótima procedência, assistência
técnica, arraçoamento, etc., estava outro dia com 18 quilos de
média de curral. Como tem centenas de vacas, tira muitos
milhares de litros de leite por dia.
Quando escrevi a primeira edição deste livro, filosofei:
“Penso que, em termos de Brasil, médias de rebanho de 5 mil
quilos de leite já são insensatas. Recorrendo à insensatez,
fujo deafirmar que sejam antieconômicas, porque tenho visto
explorações, com médias de curral de 2 e de 3 mil quilos de
leite, que são rigorosamente ruinosas”.
De lá para cá, tudo mudou demais em nossa pecuária
leiteira. Basta dizer que, naquela época, na fazenda
de um amigo meu, o computador era novidade absoluta.
Custou uma fortuna e foi contrabandeado (!) dos
Estados Unidos mediante propina alfandegária. Apesar
das mudanças, continuo achando que uma média de
rebanho de 3.500 a 4.000 quilos por lactação, bela
eficiência reprodutiva, criando um bezerro macho
economicamente viável, é um excelente negócio agropecuário,
desde que a produção seja obtida à base de pasto e silagem,
com um mínimo de ração balanceada.
A propósito do tal amigo citado aí em cima, que tinha
curso de informática na Europa, devo dizer que ele próprio
fez um programa para o computador contrabandeado.
Começou tirando 1.000 litros por dia, chegou aos 2.000 e aos
3.000 litros diários. E me disse que estava desgostoso com o
negócio leiteiro, tanto assim que pensava voltar à profissão
de banqueiro suíço.
Tudo isso enquanto fumávamos enormes charutos Hoyo
de Monterrey doble coronas e bebíamos champanhe Veuve
Clicquot, que o sujeito pode ser produtor de leite
sem deixar de ser civilizado. Foi quando, por sugestão
minha, resolveu consultar seu computador para ver
170
como seria o negócio se, porventura, conseguisse chegar aos
8.000 quilos/ dia. Diante da resposta da máquina, o bom
amigo vendeu o gado, fez as malas e voltou para a Europa.
Falei aí atrás em lactações de 305 dias. Não gosto nem de
ouvir falar de lactações de 365 dias, porque entendo que, com
um ano de parida, a vaca já deve estar com outro bezerro ao
pé, ou muito próxima de parir.
Mais importante do que alcançar lactações espantosas é
possuir animais rústicos, longevos, capazes de produzir uma
quantidade apreciável de leite “barato” e um bezerro, com
uma eficiência reprodutiva da ordem de85%, quejá éexcelente
para um gado que produz leite comercialmente.
A longevidade zootécnica é outro item da maior im-
portância. Quando vendi as fazendas, minhas vacas mais
velhas estavam na faixa dos 14 anos e 10 crias, pastando em
pirambeiras, subindo morros a galope. Se a pirambeira era
contingência regional, o galope era manifestação de saúde e
alegria depois de parirem 10 bezerros.
Dizem os economistas, fazendo graça com coisa séria, que
o leite é o único produto em que o preço dos insumos é maior
queo valor do produto final. E o pior éque, em muitas condições
de criação, o negócio é verdade. Mas os gados euro-indianos
conseguem, não raras vezes, produzir um leite mais barato
do que seu valor de comércio. Vale repetir a lição de que vaca
mestiça e terra boa nunca deram prejuízo a ninguém,
Há, também, uma porção decriadores que trabalham com
gado puro europeu, geralmente holandês, e vivem disso.
Antigamente, contavam com a receita da venda de tourinhos,
hojeprejudicada pela generalização da inseminação artificial.
E há também os muito ricos, que têm dinheiro de sobra e
estrutura empresarial para montar grandes negócios leiteiros,
produzir leilões de “estrelas”, importar vacas premiadíssimas,
bancando eventuais prejuízos. Certa feita, a mulher de um
dos maiores emais famosos criadores eimportadores degado
holandês me disse em sua fazenda: “É verdade que, antes de

171
virmos para a fazenda, já tínhamos um respaldo”.
Aí é que está: respaldo. Sem respaldo fica meio difícil.
Desanimei-o? Não, não desanime de comprar sua
fazendinha leiteira, mesmo se não tiver o respaldo
da excelente senhora: só existe um negócio pior do
que ter uma fazenda leiteira; não ter uma fazenda
leiteira. Sim, porque enquanto ainda tem a fazenda,
estando a perigo, você pode fazer um leilão de
liquidação do plantel, passar a fazenda nos cobres
e tirar férias para se recuperar do susto.
Acabo tendo uma recaída... eu, que escrevi uma crônica
supimpa, na revista A G ranja , parodiando Hemingway:
“Adeus às latas”. Mas tenho fé nos deuses do Olimpo, que me
livrarão de voltar à produção comercial de leite neste país.
Vejo que lá vou chegando ao final deste capítulo sem falar
do zebuíno puro, logo eu, que sou amigo dos Peres, de um
dos irmãos Salgado dos Reis, do Gabriel Donato de Andrade
e tenho livros editados pela Revan, do Renato Guimarães —
Peres, Salgados, Gabriel e Renato famosos criadores de
zebuínos leiteiros.
Dizia-se, antigamente, que falar de gir leiteiro era como
falar de trator de corridas. Acontece que o gir leiteiro teve, nos
últimos 15 anos, um progresso tão notável que pode ser
comparado ao computador. Ainda outro dia, o Alberico de
Sousa Cruz, jornalista famoso e grande fazendeiro na região
de Abaeté, MG, me contava que viu na Fazenda Calciolândia,
de Gabriel Donato de Andrade, 30 vacas gir produzindo 660
quilos de leite em duas ordenhas.
A raça gir, que é a segunda mais numerosa nos controles
leiteiros oficiais, com 21,3% do total de vacas, perdendo apenas
para a holandesa, que tem 60,6% das vacas em controle, já
conta com 2.414 lactações acima de 3.000kg de leite. J á se
anotaram lactações de gir, em controle oficial, de mais de 10
toneladas de leite! E já existem 100 vacas gir com produção

172
acima de 5 toneladas de leite/ ano.
A partir daí, com o uso da reprodução mecânica (inse-
minação artificial e transferência de embriões) e o sêmen de
touros provados, não é difícil prever um futuro glorioso
para a raça nas regiões tropicais. As 239 vacas vivas da
Fazenda Calciolândia têm média, em controle oficial, de
3.522kg de leite em lactações de 310 dias. E já existem touros
provados com DE P-Leite de 376,3, como CA E verest, e 283,5,
como Caju de Brasília (dados de 1996).
Se considerarmos que em 1937 a média das 22 melhores
vacas gir da Índia era de 1.744kg de leite e que, numa
fazenda próxima de Bombaim, a média de animais “su-
periores” era de 2.038kg, dá para ver o progresso que
t e m
sido alcançado na seleção do gir brasileiro.
A raça guzerá também conta com linhagens estimabi-
líssimas em termos de produção de leite, se bem que
o seu temperamento é meio complicado para a mungidura.
E a red sindi, pelo número reduzido de animais em
nosso país, tem tido seu trabalho de seleção
prejudicado.
Pelo que se conhece das raças leiteiras exploradas
no mundo, o cruzamento da raça holandesa com a raça
gir, visando à formação de uma nova raça com 5/ 8 de
sangue europeu, tem tudo para dar certo. Não sei como
ficará o problema da “uniformidade”, do aspecto do
gado. Uniformidade não dá leite mas é do agrado do
criador, que
se desgosta com o futebol racial em seus pastos.
Utilitaristas dos juros e dos dividendos costumam
dizer que os chifres, ou a falta deles, as malhas,
ou a falta delas, não têm relação com o leite produzido:
é certo. Mas eu conheço inúmeros criadores, e são
maioria, que, trabalhando com animais mestiços, deixam
de comprar uma excelente vaca de outra cor , para não
173
despareiar seus rebanhos.
E veja que são fazendeiros do tipo dos aflitos , dos
assustados, que dependem do vale do leite, no fim do
mês, para a mais elementar sobrevivência. Ainda
assim, deixam de comprar uma vaca excelente, por bom
preço, para não despareiar o rebanho.
Se a “ecologia” tupiniquim, os solos ácidos, o
clima, tudo exigir que a nova raça seja de porte
médio, ou pequeno, não há por que contrariar o
ambiente na tentativa de obter um gado enorme: o importante
é que o gado seja perfeitamente adaptado ao meio em que
será criado. Las t but not least, queproduza leite em condições
econômicas.
Portanto, se a raça resultante do cruzamento do holandês
como gir merecer dos criadores um trabalho sério, sem solução
de continuidade, e tiver uniformidade fenotípica, não vejo
como possa deixar de funcionar em termos tropicais.
O pessoalzinho que diz que o leite ea carne não têm relação
com as pintas, nem com o formato das orelhas, deve estar
furioso com essa defesa da uniformidade fenotípica, da
aparência do rebanho.
A rigor, os aspectos econômicos da produção animal não
têm mesmo relação estreita com a aparência da vaca. Nem o
tão falado “tipo leiteiro” tem muita relação; caso contrário,
animais selecionados dentro de uma raça pela produção de
leite e gordura teriam todos o mesmo tipo. E não foi isso que
McMeekan constatou no jersey da Nova Zelândia.
Mas quem se preocupa exclusivamente com os aspectos
econômicos de uma criação edeixa de lado a parte poética, ou
sentimental, a curtição de ver um lote uniforme de vaquinhas
pastando defronte da sede, ao cair da tarde, quando os
passarinhos recolhem aos ninhos e as águas fogem risonhas
entre as pedras do jardim, não deve comprar uma fazenda
leiteira: deve montar uma distribuidora de títulos e valores.
É um negócio infinitamente mais rentável, e muito menos
divertido.
174
Cesarianas bovinas —
Folha de S . Paulo, setembro de 1992.
J anet Malcolm, autora de O jornalis ta e o ass ass ino, diz que o encontro
com um jornalista parece ter sobre os indivíduos o mesmo efeito regressivo
da psicanálise. E acaba acontecendo exatamente o oposto daquilo que seria
de se esperar. E nquanto a reação normal, segundo J anet, deveria ser de
extrema cautela, os entrevistados acabam cuspindo tudo, impetuosos, num rasgo
de confiança infantil.
J ornalista e psicóloga, colaboradora há mais de 35 anos da prestigiosa revista
New Yorker , dona J anet precisa ver o que acontece aqui na roça diante das câmeras
da TV Globo. Pessoas sérias saem do sério; pessoas ponderadas dizem as maiores
tolices. A cretinice deve ser universal. Do contrário, como explicar que todos se
ponham a fazer gracinhas e balançar os braços, como limpadores de pára-brisas,
sempre que são filmados pelas tevês, em qualquer autódromo do mundo?
Tempos atrás, comemorava-se o Dia da Árvore com o plantio de uma mudinha,
no pátio de nossa escola municipal, que contava com uma boa meia dúzia de
árvores centenárias, das melhores madeiras de lei. Algum espírito maligno,
dizendo-se íntimo do pessoal da Rede Globo, ameaçou trazer a equipe de reportagem.
Foi o bastante para que a diretora da escola mandasse derrubar todas as árvores
do pátio — cedros, óleos vermelhos, roxinhos — numa operação que requereu
motosserras e funcionários da Prefeitura, sob o argumento de que a sombra das
árvores poderia prejudicar a filmagem da TV Globo. Escusado é dizer que a tevê
não apareceu até hoje.
De outra feita, a equipe de reportagem chegou à fazenda de um banqueiro
horas antes do nascimento de um bezerro de proveta. Transplante de embrião, na
época, era novidade. Mas a vaca não foi avisada de que deveria adiantar o parto
e lá estava, no bem-bom, ruminando seus capins.
Naquela emergência gravíssima, o veterinário da fazenda não conversou:
passou a faca na vaca, para que a equipe da tevê não perdesse a viagem e a
reportagem.
Ora, cesariana bovina é um negócio que só se faz em duas situações: nas
aulas de cirurgia das Escolas de Veterinária e diante das câmeras da TV Globo.
Manda a prudência que, nas demais situações, aquela cirurgia seja evitada a todo
custo.

175
Abrir uma vaca, na imundície de um curral, para retirar um bezerro,
é um convite a toda sorte de infecções e complicações pós-operatórias. Um
dos melhores veterinários brasileiros me disse que, depois de 30 anos de
clínica diária, só havia feito uma cesariana. O bom senso recomenda que
se retirem os bezerros pelos canais competentes.
J á vi bezerros aos pedaços, depois de cortados a canivete; vi bezerros
puxados a mão por quatro sujeitos fortíssimos; vi um bezerro extraído com
o adjutório de um jipe em primeira marcha, reduzida, enquanto sua mãe
estava amarrada pelos chifres a um esteio do curral. Perde-se o bezerro, mas
salva-se a vaca.
OSQUEANIMAIS
AS POSSUEM

O café da rua Halfeld, no centro de J uiz de Fora, é o ponto


de encontro dos fazendeiros da bacia leiteira regional.
Entreuma eoutra xícaras deum cafezinho ascoroso, como
todos os da Zona da Mata de Minas, é ali que os produtores
falam de política, elogiam Itamar Franco, queixam-se dos
preços do leite, inventam mil e uma histórias de
vacas fabulosas, que produzem toneladas de leite com uma
poeirinha de farelo, compram e vendem bezerras, novilhas,
vacas, touros e camionetas, ficam sabendo das novidades,
informam-se das novidades no terreno dos remédios para a
impotência, lamentam a escassez de mão-de-obra e fazem
tudo mais a que deve ter direito um cidadão brasileiro, com
CPF e talão de notas de produtor rural, nos momentos de
folga de sua luta na fazenda.
Com exceção de uns três ou quatro — e faço a ressalva
para que não me cortem o pescoço —, os patrícios mentem,
e mentem feito uns desesperados, porque o produtor de leite
é um mentiroso vocacional no que diz respeito à média de
produção de suas vacas, à eficiência reprodutiva do rebanho,
aos índices de mortalidade dos bezerros e à quantidade de
ração de s aco que usa em sua fazenda.
Na rua Halfeld, as produções de leite rivalizam com a média
dos rebanhos de Israel; o índice de fertilidade anda sempre
em torno de 100%, e daí para cima; a mortalidadedos bezerros
176
é zero e a ração balanceada nunca passa de uma poeirinha,
mesmo assim para desaguar a vaca. Tá no Aurélio: “Dar algo
de comer a (animais) para não aguarem”, verbo transitivo
direto.
Deixa estar que, na véspera, todos viram quando o imenso
caminhão trucado, de um distribuidor de ração, entrou na
estradinha que leva à fazenda do patrício. Os caminhões
trucados transportam 500 sacos de ração. Se o fazendeiro,
como afirma com a cara mais limpa deste mundo, só gasta
um saco de farelo por dia, é de se presumir que tenha farelo
para 500 dias. Mas não tem. Semana passada, ele já recebeu
outro caminhão trucado e fechado. Daqui a sete dias, lá
teremos de novo o imenso caminhão descarregando no
pátio da fazenda.
Estudiosos de fisiologia da lactação costumam falar numa
porção de glândulas, entre elas a pituitária, que seriam
responsáveis pelo estímulo hormonal determinante da pro-
dução do leite; no Brasil, garganta também dá leite.
E o patrício inventa produções de mil litros diários, quan-
do na verdade vende 9 mil litros num mês de 30 dias. A
mentira é delicada, dita “social”, e não faz mal a ninguém,
nem mesmo ao mentiroso, que passa por ter um gado feno-
menal e acaba faturando suas vacas a preços muito supe-
riores aos da região.
Ninguém discute o fato de que o fazendeiro americano é
muito mais produtivo que o seu colega brasileiro; resta saber
qual é o mais inteligente?
Nos Estados Unidos, o fazendeiro programa a fazenda pelo
computador comprando o número mínimo de vacas para
tornar a exploração econômica. Em algumas regiões da
Califórnia, no início da década de 80, esse número mínimo
andava próximo das 500 vacas em lactação.
Depois de hipotecar a alma, para dotar sua empresa rural
de todos os equipamentos necessários, o colega ianque enfia
um bonezinho na cabeça, veste uma camiseta branca, uma
calça jeans e uma botinha bicuda, e começa a trabalhar feito

177
um louco, 18 horas por dia, 365 dias por ano, com a honrosa
exceção dos anos bissextos, quando trabalha mesmo 366
dias consecutivos.
Sua mulher enche a cabeça de bobs, como todas as
mulheres americanas, e lava, e passa, e arruma, e
cozinha para todo o pessoal da casa, e para os
empregados solteiros, enquanto vê televisão e sente
saudades do cigarrinho que foi obrigada a abandonar,
pela histeria do patrulhamento geral.
Na garagem, um carro novíssimo aguarda a saída
semanal para o serviço religioso. Vez por outra, sai
durante o dia para ir ao supermercado, ou para levar
o fazendeiro ao leilão de gado, onde compra vacas
amojando, para substituir aquelas que estão secando,
de tal forma que o número mínimo em lactação seja de
500 cabeças, sob pena de o negócio ficar ruinoso.
Na Terra Papagallorum, o produtor começa pela
montagem de uma casa na rua (cidade), sob o argumento
de que as crianças precisam estudar. Com isso, ele
se livra da mulher na fazenda, onde, não raro, conta
com um conforto, representado por uma moreninha muito
limpa, muito caprichosa, muito novinha, de dentes
muito brancos, que passa por afilhada e coça as suas
costas, descalça as suas botinas, cuida de suas
roupas, ajuda-o a tomar banho e
não se esquece de tomar as pílulas, que o patrão traz
da farmácia da cidade.
Tendo quem pegue no pesado, a preços muito mais do
que razoáveis, só os produtores que gostam de fazer
força, porque têm os exercícios como hobby, perdem
seu tempo com as atividades que consomem 18 horas do
dia de um colega americano. Com efeito, não faz o menor
sentido cortar capim, lavar curral, ordenhar e vacinar, quando
qualquer empregado faz o serviço muito melhor eganha pouco
mais que um salário mínimo.
Se as vacas estão vacinadas, ordenhadas e alimentadas; se
os pastos estão cercados; se os silos estão cheios ea moreninha

178
de dentes muito brancos quer, porque quer, ganhar um
vestido de chita, a melhor coisa que o fazendeiro pode fazer é
deixar a fazenda por conta do encarregado para bater papo
na rua Halfeld, queixando-se da vida e do governo, salvo
quando o governo édo Itamar, quetambém toma cafénaquela
rua.
O americano é mais eficiente; quem é mais inteligente?
Rogo ao meu bom leitor que releve algum exagero por-
ventura cometido nos parágrafos anteriores: correm por conta
de um negócio chamado “licença literária”. O negócio da
moreninha, por exemplo, não é regra geral. Estatísticas as
mais confiáveis indicam que 12% dos fazendeiros não têm
aquele tipo de conforto.
Você, que também é um produtor de leite em potencial, e
ocupa lugar do maior destaque na sociedade brasileira, jura
de pés juntos que seria incapaz de atropelar a copeirinha de
sua fazenda, pela indignidade do atropelo, de todo in-
compatível com sua formação de homem de bem. Mas não,
hem?
Sei que sua mulher é um avião, com tudo nos lugares
certos, do jeito que o diabo e o Dr. Eduardo gostam.
Mas o atropelo da copeirinha, ao cair da tarde, com
sua mulher no apartamento da cidade, cuidando dos
filhos, e você sozinho na casa imensa da fazenda —
tem relação estreita com o conceito de
“territorialidade”, dos machos de quase todas as
espécies. Se está no seu pedaço, a fêmea é sua, pensa
o animal que você (também) é, muito embora tenha um
BMW do ano ediploma depós-graduação numa universidade
americana, além da comenda do Mérito do Trabalho pelos 20
anos de agiotagem na Terra Papagallorum.
Ou será que você pensa que o cachorrinho faz xixi no poste
para livrar-se das cervejas da véspera? Aquilo é “demarcação
de território”. O hipopótamo solta um traque úmido,
espadanando bosta ao redor, como quem diz: “As fêmeas do
pedaço são minhas”.
É verdade que você não saiu mijando pelos quatro cantos

179
da casa colonial, cuja reforma lhecustou uma fortuna, mesmo
porque não precisa demarcar o território: todos sabem que a
casa é sua. Se a copeirinha, cheirosa do banho que acabou
de tomar, antes de vestir o uniforme de copeirar, está em s ua
casa, está ems eu território: elementar, meu caro Watson. Daí
para os finalmentes é um pulo que todos juram não dar. Há
que trazer, escondidos na mala do carro, vestidinhos dechita,
pílulas, uma pulseirinha, um sapatinho da cidade: eta morena
que vai andar arreada...
Não sei quem foi que disse que definir é limitar. É mesmo.
Isso dificulta sobremaneira a definição de produtor de leite.
Quem é produtor de leite? Sei lá.
Talvez seja todo criador que produza qualquer quantidade
de leite comercializável. A rigor, se o sujeito vende cinco litros
de leite, é produtor. E também é produtor de leite o cidadão
que se considera produtor de leite: é uma questão de estado
de espírito.
Outra definição, também limitante, é a que dá o produtor
de leite como sendo aquele que retira do leite, e atividades
afins, a maior parte dos seus rendimentos mensais; nesse
caso, muitos banqueiros que produzem mais de 5.000 litros
por dia não seriam enquadrados como produtores, mesmo
formando no time dos maiores fornecedores de leite do país.
Portanto, vamos deixar o negócio por conta do estado de
espírito: produtor de leite é aquele que se considera tal. E se
considera o tal.
Você deve estar preocupado com a necessidade de residir
na fazenda, porque tem negócios importantíssimos na cidade,
onde ganha os caraminguás que lhe permitem botar gasolina
no BMW e manter oito empregadas no apartamento da Vieira
Souto.
Não se assuste, nem se acanhe: você pode ser ótimo
produtor de leite sem morar na fazenda. Há idiotas
que não arredam pé do estábulo; nem por isso os
serviços da fazenda funcionam direito. Uma supervisão
semanal é mais que suficiente para manter o negócio
em bom funcionamento. O diabo é que, durante a semana,

180
você pode sentir saudades da copeirinha morena. Bom
pretexto para dar um pulo à fazenda e voltar na manhã
seguinte.
O problema do produtor profissional de leite, que
é obrigado a ter casa na cidade, é bem mais grave:
sempre são as despesas de duas casas, com a renda de
um só curral. Mas é inevitável, porque a roça não tem
colégios decentes e a educação das crianças está em
primeiro lugar.
Quando os filhos são pequenos você ainda consegue
montar um esquema de levá-los, todos os dias, ao
colégio da cidade mais próxima. Adotei o sistema
durante cinco anos e sei que é arriscado, pelo perigo
de nossas estradas. Minhas filhas pegavam um trecho
de 20 quilômetros de Rio-Bahia, no “maior entroncamento
rodoferroviário do país”, e todo dia voltavam do
colégio assustadas com os acidentes horríveis que
viam pelo caminho.
À medida que as crianças vão crescendo, começam a
inventar aulas de inglês, natação, francês, piano,
balé, equitação, tênis, informática e o fazendeiro
não tem como se livrar do aluguel de um apartamento
na cidade. Dobram as despesas; paciência. Você vende
duas dúzias de vacas e segura a barra, até ver como
param as modas. E não se assuste com o que leu aí
atrás: é equitação mesmo. Não basta aprender a andar a cavalo
na fazenda; é preciso fazer hipismo no clube da cidade. E são
novas despesas: botas de hípica, selas inglesas, culotes
importados, cavalos de salto...
Nesse tempo, você sonha com os filhos casados e bem-
encaminhados na vida. E sonha voltar a morar na fazenda, já
meio velhote, com a sua velha (e a copeirinha, casada) em
vésperas dese tornar avó. Doceeledo engano, caríssimo leitor,
porque você não está contando com os netos, os tais filhos
com açúcar. Avós foram feitos para cuidar dos netos, enquanto
os pais se divertem. Temo-lo, portanto, morando “na rua”

181
para o resto de sua vida, que espero sinceramente seja muito
longa e muitíssimo feliz.
Nem pense em levar os netos para a fazenda, porque a mãe
deles não vai admitir que eles passem o final de semana num
lugar “sem recursos”, ela que foi criada sem telefone, sem luz
elétrica, sem estradas e sem antenas parabólicas, com uma
pequena tevê P&B ligada na bateria do automóvel. Hoje, com
DDD, Internet, satélites, helicópteros de amigos, telefones
celulares, asfalto quase na porta e outras comodidades, a
fazenda “não tem recursos”. E a gente escuta...
É na condição de produtor de leite que você vai travar
conhecimento com duas situações inevitáveis: a fama de rico
e explorador do povo. É um negócio que jamais entendi, nem
quero entender, porque já estou velho para perder tempo
com cousas ininteligíveis.
Você tem uma fazendinha que fatura, digamos, 12 mil
dólares brutos, por mês; o Zéquitandeiro fatura 12 mil dólares
por semana — e o rico é você!
Em sua fazendinha, você trabalha honestamente, vive
modestamente, paga impostos e empregados em dia, cria
riquezas, tudo direitinho e com enorme sacrifício; o dono do
jornal tem uma empresa falida, mas vive como um nababo e
ficou pessoalmente riquíssimo, enquanto os empregados do
jornal passam meses e meses sem ver a cor dos salários — e
o explorador do povo é você...
A fama de rico é tão misteriosa quanto inexplicável.
Fazendas são negócios como outros quaisquer; negócios
que remuneram muito mal o capital investido. No
entanto, o bicheiro, o banqueiro, o tycoon do império
jornalístico, o criminalista milionário e o médico
biliardário só passam a ter fama de ricos depois de
comprar uma fazendinha, cujo preço não representa a
metade do valor do apartamento da Vieira Souto.
Nos anos em que explorei duas fazendinhas leiteiras
nas serras do Estado do Rio, andando quase sempre em
automóveis de terceira mão, devendo os olhos da cara,

182
num sufoco tremendo, jamais deixei de ser apresentado a
alguém, por um amigo, sem a seguinte informação: “Ele é
fazendeiro milionário”.
Acabei levando o negócio na farra e assumi a condição de
colega dos Marinhos, dos Ermírios de Moraes, dos Bozanos,
sem a respectiva mordomia, de que sinto muita falta. E o certo
é que o “milionário”, nos anos em que habitou o mato, quase
sempre chegava ao dia 25 sem saber como pagar os salários
dos empregados no fim do mês.
Os empregados ficavam na maior tranqüilidade, porque
também tinham o patrão na conta de milionário; quem não
dormia era o produtor de leite. Felizmente, sempre paguei em
dia, porque os deuses ajudam os inocentes e os produtores
de leite.
Se a fama demilionário, inexplicável e injustificável, sempre
ajuda na hora derecorrer aos bancos, porqueseus informantes
de cadastro também se deixam levar pelos boatos, a fama de
explorador do povo é revoltante.
Explorador por quê? Porque dá empregos, pagando muito
mais do que o negócio permite? Porque investe num negócio
para vender seu produto, a preços demagógicos, para
alimentar as criancinhas e os cachorrinhos das cidades, ou
para engordar os tubarões das indústrias delaticínios? Porque
vive honestamente, de um trabalho honesto, sem andar
pendurado nas sinecuras do Estado? Não dá para entender.
O negócio deveter qualquer ligação com a “posse da terra”
e com os chavões do gênero “a terra é de quem trabalha”, da
dicotomia sem-terra versus fazendeiro. E o fazendeiro não
trabalha? Seu trabalho não é muito mais importante do que
o de um empregado que passa, ou finge que passa, o dia
inteiro com uma enxada velha raspando bosta no curral?
Onde, como, quando e por que os produtores de leite
exploram o povo mais que os médicos, os donos de
jornais, os quitandeiros, os bispos, os funcionários
públicos ou os motoristas de táxi? O negócio não
resiste à mais elementar das análises; ainda assim,
183
muita gente informada embarca na acusação, como vi num
livro de J .K.Galbraith, que, por sinal, escreve bem melhor que
eu.
Está certo: os fazendeiros vestimos a carapuça de ex-
ploradores do povo e os acusadores que vão lamber sabão.

Notas fisiológicas e econômicas —


O Produtor de Lei te CCPL, maio de 1973.
Se a fisiologia é mesmo a parte da biologia que estuda as funções dos órgãos,
acho que alguma coisa deve estar errada, porque a fisiologia insiste em que o leite
é segregado pela glândula mamária da vaca, quando em nossa região o órgão produtor
de leite, por excelência, é a garganta do fazendeiro.
Creio que o problema não é só de nossa região e não consigo ver grande mal nos
exageros galactopoéticos da rapaziada, que se desforra das dificuldades do negócio
agropecuário elevando as produções de suas vacas até aos limites
do inacreditável.
Existe, por exemplo, o fazendeiro espumante, que só faz os cálculos do seu leite
com escuma. Assim, quando diz que está mandando 250 litros, a gente pode contar
mesmo com uns 160 ou 170 litros fr ios . O resto corre por conta da espuma.
J á o fazendeiro futurologista costuma dizer que está mandando para a cooperativa
aquilo que pretende mandar, num futuro incerto e distante. Se
a fazenda ainda vai ser organizada para produzir mil litros diários, ele já começa a
dizer que está mandando os mil litros, muito embora não mande nem 120 e não vá
atingir a tonelada diária nunquinha da silva.
Também conheço o fazendeiro computador, que computa de tudo e sempre
acrescenta um pouquinho, para falar da produção de suas vacas. No duro, no duro,
ele não vende mais de 40 ou 50 litros por dia, mas diz que está vendendo 300, porque
bota em funcionamento o computador e soma o leite da 3ª ordenha, que não faz, o
leite que as vacas deviam produzir, mas não produzem, o leite das vacas que ainda
não foram compradas, mais o leite que tira para a sede e os empregados, e multiplica
por 10, mais o leitinho que os bezerros mamam, também multiplicado por 10 — para
chegar aos 300 litros diários. E isso com a cara mais limpa do mundo, apesar de saber
que seu interlocutor tem acesso

184
aos mapas de recebimento da plataforma da cooperativa.
É conhecido na praça, também, o fazendeiro ameaçador, que vive prometendo
produções fabulosas se as vacas forem tratadas “como devem”. Ora, o ameaçador se
esquece de que “como devem” é a superalimentação, antieconômica sob todos os
aspectos. E a pecuária, seja leiteira ou de corte, não pode perder de vista o fato de
que é um negócio como outro qualquer, um negócio que tem de ser rentável. Portanto,
quando o ameaçador diz que não está tratando “como deve”, porque os preços do leite
não deixam, se esquece de que os preços do leite é que mandam no negócio e que
o trato possível é o mais econômico, mesmo sem resultar em produções assombrosas.
Esses e outros exageros são perfeitamente compreensíveis e nunca fizeram mal
a ninguém. Ou, pelo menos, eu pensava que não faziam, até visitar o mais novo
fazendeiro de nossa região, que é também um dos diretores do Banco do Brasil e,
portanto, um dos artífices da política do governo para o leite.
Devo confessar que a condição de diretor do BB era suficiente para me afastar
do vizinho como o diabo da cruz; em princípio, não gosto de banqueiros. Mas uma
visita de solidariedade e apreço a um herói, que se afazenda em nossa região, é dever
de cortesia, sobretudo quando existe a perspectiva de se conseguir mais um fornecedor
para nossa cooperativa, que anda precisada de cooperados e de leites.
Acontece que, por um desses mistérios muito misteriosos, o diretor do BB é um
sujeito simpático, tendo ainda por si o fato muito recomendável de gostar de cerveja.
E foi diante de uma cervejinha gelada que resolvemos atacar o problema do leite.
Escusado é dizer que pintei o quadro mais negro do mundo, não só porque o quadro
é mesmo negro, como também porque era preciso sensibilizar o diretor para a causa
dos pecuaristas. Contei, nessa hora, com o auxílio inestimável do Paulo Gaúcho,
companheiro de visita e diretor de nossa cooperativa. Fazendeiro profissional,
vivendo exclusivamente do leite de suas vaquinhas tratadas com uma pá de cevada,
e não mais que uma pá — o Paulo conhece todos os problemas que afligem os
produtores da região e é argumentador brilhante, quando se trata de defender o
crédito, a técnica, os preços, a produtividade e tudo mais que
deve entrar — deixe-me usar a palavra da moda — na problemática do leite.
Caminhava a conversa nesse diapasão, quando o diretor do BB jogou uma pá de
cal em nossos argumentos: “Está tudo muito bonito, mas o Fulano, que também tem
fazenda aqui na região, me disse que está ganhando 22 mil contos por mês com o
leite”.
Apesar de não conhecermos a fazenda do tal Fulano, fomos logo dizendo

185
que ele é um mentiroso e se quer fazer passar por empresário eficiente, de
mesmo passo em que transforma todos os outros produtores em cavalgaduras.
Prometemos fazer um levantamento completo da fazenda do homem — quase uma
auditoria — para levar os resultados ao diretor do BB em nossa próxima visita.
Fizemos, efetivamente, o levantamento numa terça-feira, à tarde, com o balanço geral
dos gados e dos currais do Fulano.
Para início de conversa, ele tem uma renda bruta de pouco mais de 12 mil, da
qual diz tirar 22 mil líquidos . Só de cevada gasta 4.800 por mês, o que prova que, além
de mentiroso, é burro, porque não tem cabimento gastar tanta cevada para tirar tão
pouco leite.
J untem-se a mão-de-obra (tem mais de 20 empregados), assistência veterinária,
combustíveis, medicamentos, ração de saco, etc. — e os 12 mil não chegam para pagar
as despesas fixas. Isso, naturalmente, sem computar os juros sobre o capital
investido, o empobrecimento dos solos, etc.
Quando voltarmos à fazenda do diretor do BB, para terminar a cerveja interrompida,
teremos todos os dados para desmascarar o tal Fulano. Está
certo que o sujeito conte sua mentirinha, desde que não seja para prejudicar milhões
de pessoas que vivem do leite e que precisam encontrar uma saída honesta para a
entalada em que estão metidas.

186
HOMO SAPIENS L.,
VAR. RETIREIRO

Quando comprar a fazenda, o meu caríssimo produtor de


leite vai-se dar conta da necessidade de contratar empre-
gados para a realização das diversas tarefas indispensáveis
ao funcionamento da empresa, dentre as quais se destaca(m)
a(s) ordenha(s) diária(s).
Dizem aqueles nossos amigos portugueses, autores do
livro As vacas leiteiras , que a mungidura é a operação pela
qual se extrai o leite à fêmea produtora, em regra com o fim
de o utilizar na alimentação humana.
Em seguida, estabelecem a rotina de trabalho:
a. lavagem da vacaria;
b. limpeza da atmosfera;
c. limpeza do animal;
d. lavagem do úbere;
e. inspeção e preparação dos utensílios;
f. preparação do vaqueiro;
g. prisão da cauda;
h. começo do trabalho.
Enquanto você dá tratos à bola para descobrir como deve
ser feita a limpeza da atmosfera, deixe-medizer que os mestres
lusíadas informam que o vaqueiro e seus ajudantes devem
fazer a sua própria preparação, que consiste em vestir um
fato de macaco branco e um barrete, branco também.

187
Metidos nos fatos de macaco, “os vaqueiros são na grande
maioria ignorantes quanto à forma demungir, fazendo-o como
lhes é mais cômodo. E os patrões, embora sejam avisados, ou
por leitura ou por indicação dos técnicos, de como as coisas
devem ser feitas, descrêem em absoluto de tudo que não seja
o queo seu bom criado analfabeto eignorantede sua profissão,
executa”.
É isso aí, bicho. Você também vai entrar nessa de confiar
no vaqueiro, que por aqui se chama retireiro e pode vestir um
fato demacaco azul-claro, porqueos rigorosos regulamentos,
sempre descumpridos, para produção do leitetipo B, permitem
as roupas de cores claras.
Fiz a asneira de comprar fatos de macaco brancos, que
logo se transformavam em quadros abstratos, em queo pincel
era o rabo da vaca e as tintas, a bosta e as outras sujidades
dos nossos currais. Mil vezes um fato azulzinho, para disfarçar
a sujeira.
Falávamos do Homo sapiens L., em suas variedades
retireiro, capineiro, valeteiro, aramador, tratorista
e as demais necessárias para o perfeito funcionamento
de uma fazenda leiteira.
Você vai ouvir horrores de todos os empregados,
sobretudo e principalmente se o seu mentor, em questões
agropecuárias, for um fazendeiro de esquerda. J amais
consegui entender a implicância e a perseguição dos
homens de esquerda para com os humildes, os bons, os
cordatos. Sob o manto, de resto muito conveniente,
de suas idéias de justiça social e distribuição da
renda dos outros, o esquerdista brasileiro explora
e esfola o trabalhador com uma eficiência de fazer
inveja ao mais selvagem dos capitalistas. E tem os
trabalhadores na pior das contas, salvo no dia das eleições.
É assim que vocêvai ficar sabendo que os empregados não
valem o que comem e são uns bandidos, sempre dispostos a
destruir, de propósito, os maquinismos da fazenda. Demais
disso, comprazem-se de inutilizar os peitos das vacas, ou de
cegá-las a pauladas. E estão sempre dispostos a trair eroubar

188
seus empregadores.
Assustado com o quese diz do trabalhador rural brasileiro,
vocêébem capaz devender a fazenda, antes mesmo de começar
a exploração leiteira.
Não sei se o decepciono quando informo, baseado numa
experiência de quase 30 anos como empregador rural, que o
trabalhador do campo brasileiro é gente da melhor quali-
dade, em tudo e por tudo superior ao empregado urbano.
Dirá você que isso não é vantagem: concordo. Deixemos de
lado qualquer comparação com o trabalhador urbano, para
constatar que o empregado rural, o trabalhador da fazenda,
o pessoal da roça, enfim, é gente da melhor qualidade, de boa
índole, pacata, ordeira, eventualmentetrabalhadora, às vezes
esperta e até inteligente.
Evidentemente, quando você começa a formar a equipe,
contrata o rebotalho das outras fazendas. E a turminha
é mesmo de amargar. Qualquer providência de natureza
eugênica, no Brasil, é logo tachada de nazismo. Isso
tem permitido, ou ensejado ( já que per mis s ão ou
repressão também passam por nazismo) a reprodução
desenfreada de gente que, absolutamente, não poderia
reproduzir-se: débeis mentais, oligofrênicos de toda
ordem, que constituem família no interior e nas
cidades, gerando uma prole rigorosamente
inaproveitável para qualquer serviço, com exceção,
talvez, do serviço público.
É com essa turminha das arábias que você vai
começar. Depois, vai dando um jeito, aproveitando um aqui,
outro acolá, treinando um terceiro numa função
rigorosamente mecânica, despedindo uns três ou quatro
e, surpresa! — acaba formando uma equipe razoável.
Não são todos analfabetos? São sim, quase todos.
Mas isso não é culpa deles, nem sua. Talvez seja culpa
minha, que não tive saco para agüentar a chatura da
professora da escola noturna, que instalei lá na
roça. Era comovedor oespetáculo da chegada, à sala de aula,
de retireiros, tratoristas, capineiros, hortelãos e valeteiros,
com seus livros e seus cadernos, para tentarem aprender
189
alguma coisa depois de velhos. E depois de um dia inteiro de
trabalho duro.
Muitos são mesmo de uma burrice irremediável, dessas
que, na cidade, ensejam nomeação para a Prefeitura, ou para
os Ministérios, mas uns dois ou três, espertíssimos,
inteligentes, logo aprenderam a ler alguma coisa, apesar do
esforço que representa estudar, à noite, depois de um dia de
trabalho que começou antes das quatro da manhã.
Quando veio para o meu serviço, um dos trabalhadores
era pouco mais do que um selvagem: desgrenhado,
desdentado, descalço, cheio de filhos barrigudinhos
dos vermes abundantes, com uma comadre arredia e
antipática. Em alguns anos de fazenda, sem que eu
tivesse qualquer mérito na história, o compadre
transformou-se em motorista, tratorista, soldador,
pedreiro, carapina, chefe de estábulo, eletricista,
encanador, operador de ordenhadeira mecânica — passou
a fazer de tudo, com alguma eficiência, sem esquecer-
se dos filhos, que continuou produzindo à razão de
um por ano.
Por sorte nossa e azar do mundo superpovoado, em
30 anos de fazenda tivemos zero de mortalidade infantil.
E a “maternidade” variou da casa sem luz e água
encanada à moita de bananeiras e ao assento traseiro
de uma Rural Willys, tracionada pelas quatro rodas,
numa capineira em que não havia estrada nem para carro de
bois.
Quase sempre, os empregados são gente da melhor
qualidade. Há os que não prestam, como também os há
entre os sócios do Country, do Harmonia, do Minas.
Mas os relapsos, os salafrários, os velhacos, você
manda embora e acaba ficando com uma equipe aguerrida
e interessada.
É curioso constatar que a equipe não tolera os que
têm “mau costume”, os larápios, que fazem tanto sucesso em
diversos escalões da República.
Na fazenda não têm vez e são denunciados pelos com-
panheiros, genuinamente revoltados contra o furto. Valenotar
190
que, zelosos na defesa do patrimônio alheio, não têm
patrimônio próprio além de uns poucos móveis cambaios,
meia dúzia de panelas, dois porquinhos, um pilão, uma
eletrola, 20 galinhas, duas bacias, um rádio de pilhas, uma
tevê P&B e uma geladeira que não funciona.
Se, eventualmente, escorrega algum farelo do depósito de
ração, ou uns litrinhos de leite, além dos dois litros que você
costuma dar, não creio que o amigo deva incomodar-se,
porque o negócio faz parte da mordomia do trabalhador, que
tem os porquinhos na ceva e uns tantos filhinhos remelentos,
que babam por um queijinho e um docinho de leite.
E não se espante quando você, mau patrão, enérgico,
rabugento, exigente, chato mesmo, ganhar de presente
um belo pernil do leitão que o seu empregado matou
naquele dia. E que foi engordado, em parte, com o
farelo que escorregou do depósito. O presente desarma
qualquer um, por mais desanimado que possa estar com
os empregados. Assim como o pernil, vêm os ovos
caipiras, um docinho, uma lembrança qualquer.
Em contrapartida, pode estar certo de que, numa
parceria pecuária em que você entra com 30 galinhas
e o compadre comparece com dois galos índios e meia
dúzia de frangas de pescoço pelado, ao cabo de um ano, sem
que você tenha comido uma só galinha, restam os galos e as
galinhas de pescoço pelado, e só eles. As pragas devem ser
seletivas porque só matam as galinhas do patrão.
Os velhacos, os safados, os ladrões já foram mandados
para a cidade, onde podem fazer carreira. Fique com os bons,
que felizmente são maioria.
É verdade que, às vezes, industriados por algum advogado
de rodoviária, versão interiorana da porta de xadrez, certos
empregados podem fazer uma reclamação trabalhista de tal
monta que obrigam o fazendeiro a vender a fazenda para
saldar a dívida.
Para prevenir-se dessas reclamações, que sempre têm
ganho de causa na J ustiça, mesmo quando rigorosamente
incabíveis, procure guardar os recibos de tudo que pagou,

191
e mesmo daquilo que não pagou: férias, décimos-terceiros,
horas extras, salários, tudo mesmo. E tenha o cuidado de
verificar, no caso dos trabalhadores que não sabem assinar
o nome, se o dedão ficou nítido no recibo (além de colher as
assinaturas de duas testemunhas): um magistrado juiz-
forano condenou amigo meu ao pagamento dos salários
e demais vantagens “devidas” a um reclamante nos
meses em que a impressão do polegar não ficou nítida
nos recibos.
A demanda trabalhista não é da índole do trabalhador
rural brasileiro, mas o advogado marca-barbante vive
dela. E assim consegue convencer alguns empregados
a recorrerem à J ustiça, com a promessa de que vão
ganhar mundos e fundos. No fim, quem ganha mesmo é
o advogado, que toma tudo que o coitado consegue
receber.
Há casos de injustiças espantosas, mas também tem
muito patrão filho da puta, que merece levar uma
ferrada trabalhista de vez em quando.
J á meaconteceu, na J ustiça do Trabalho, quando acertava
as contas de três empregados, pai e dois filhos, que haviam
brigado com o administrador e pediram as contas, vê-los
instigados contra mim pela própria funcionária da J ustiça,
que dizia: “Vocês têm direito a receber isso, assim-assim,
durante tantos anos, e mais isso, e mais aquilo”. E os com-
padres, pai e cada um dos filhos, responderam a seu turno:
“Nós temos direito a receber o que o doutor Eduardo mandar”.
Contratados os obreiros para o preenchimento dos diversos
cargos disponíveis em sua fazenda, você vai verificar a
necessidade de arranjar um administrador, menos para
administrar do que para servir de ponte, ou intérprete, entre
o patrão e os empregados.
“Fazenda minha quem administra sou eu!”dirá você, meio
poseur , cônscio do papel que passou a desempenhar no
contexto global das forças produtivas da nação: o papel de
produtor de leite. Antes você intermediava dinheiro, vendia

192
papéis e nunca entendeu direito como éque o país funcionava
com aqueles juros e aquelas comissões. Agora, remetendo
seu leitinho para a cooperativa, você tem um produto isento
de coloração, sabor e cheiro anormais, um produto palpável
para negociar. Daí aquela conversa de que o administrador é
você.
Está certo: não vamos brigar por causa disso. Se você não
quer um administrador, quetenha aomenos um encarregado:
o nome não importa. O que importa é a função que ele vai
exercer.
Lamento adiantar a notícia de quevocêvai escolher o melhor
entre os melhores dos seus empregados, para exercer as
funções de encarregado. Vai promover aquele rapaz esperto,
ótimo retireiro, interessado no movimento do gado, alegre,
trabalhador, pensando fazer dele um excelenteadministrador.
Quer dizer: vai perder um ótimo empregado e arranjar um
péssimo administrador.
Não sei se vocêjá leu o livrinhoTodo mundo é incompetente,
inclus ive você, de um certo Laurence J . Peter. Como escritor,
o rapaz é meio confuso, cheio de fórmulas e palavrinhas
pretensamente engraçadas, ou, pelo menos, engraçadas para
o gosto dos executivos americanos. Mas isto não importa. O
que importa é que Peter, psicólogo e observador, botou no
papel o tal “nível de incompetência” que todos atingimos,
mais dia, menos dia, numa hierarquia. E que é quase lugar-
comum nos principais gabinetes da Esplanada dos
Ministérios, em Brasília.
O retireiro, o rapazinho trabalhador e interessado,
utilíssimo nos serviços do estábulo, vai atingir o
seu nível de incompetência quando transformado em
administrador. E passa a transportar, no bolso da
camisa, 4 (quatro!) canetas e uma caderneta, muito
embora não tenha condições de rabiscar uma linha, ou de
anotar o nome de uma vaca.
O negócio das canetas é um mistério. Como escritor e
membro da Academia Mineira de Letras, nunca me esqueço

193
de levar uma caneta no bolso da camisa: é um dos meus
instrumentos de trabalho. Tempos atrás, trabalhando para
um grupo europeu interessado em investir na pecuária
brasileira, surpreendi-meum dia, na mais remota das cidades
do Mato Grosso, quase na divisa com o Pará, transportando
as quatro canetas espetadas no bolso da camisa. Tive um
acesso de riso que nenhum dos europeus entendeu, até hoje.
A melhor maneira de se conseguir um bom administrador
sempre foi e continua sendo roubá-lo da fazenda
dos outros. Você pergunta por aí, como quem não quer nada,
os nomes das fazendas que passam por ter bons admi-
nistradores. Depois, vai visitá-las, numa hora em queos patrões
não estejam por lá. Conversa com o administrador, vê o jeito
dele, pergunta quanto ganha e oferece
um salário maior. Se colar, colou.
Outra alternativa talvez seja a contratação de um técnico
agrícola formado numa dessas escolas de nível médio, como
aquela de Bambuí, MG. Um técnico agrícola que tenha
liderança e seja filho de um pequeno produtor rural. O ideal
é que seja casado, para “impor respeito”. E que tenha as
outras qualidades necessárias para o perfeito desempenho
da função.
De capineiros, valeteiros, carreiros, tratoristas, motoristas
e aramadores não falo, porque nada tenho contra, nem a
favor deles. São necessários sempreque vocêtenha capineiras
para cortar à mão, valetas para limpar, bois para trabalhar,
tratores para tratorar, caminhões para dirigir e cercas para
fazer. Se a topografia de sua região consente na demasia das
cercas gaúchas, julgo da maior conveniência contratar um
bom alambrador do Sul para passar três meses na fazenda,
ensinando aos seus empregados a arte e a técnica de cercar
os ungulados, o que sempre é muito melhor do que cercar
gados.
Compete ao intérprete, aliás administrador, intermediar
suas determinações para os empregados, que não falam a
língua do patrão, assim como você não fala a língua deles.

194
Não é pelo fato de ser você um sujeito viajadíssimo, infor-
madíssimo, inteligentíssimo, que vai permitir o entendimento
de convinhava em lugar de conviria, mesmo sabendo da
existência do adjetivo convinhável. Propunhetamos por
propusemos, supositório por isopor, forcidão em lugar de
eficácia (dos remédios), renuir por reunir e responçá por
responder.
Muitíssimo a propósito, o futuro do pretérito do verbo
convir é conviria, convirias, conviria, conviríamos, conviríeis,
conviriam. Se o seu retireiro soubesse conjugar este verbo,
talvez fosse o caso de fazer o doutorado em neolatinas, ou
não?
Encarapitado na parte mais alta do telhado de sua casa,
em construção, tentando alinhar a cumeeira, sabendo que
um escorregão significa fratura decrânio, dois meses em coma
e a morte — vocêvai ouvir o empregado gritar, lá do outro lado
do telhado: “A tauba está desapregada; aliveia, que é para eu
estroncar”.
Cair do telhado é a morte; no caso, não chega a ser uma
solução. Recorrer a um dicionário é impossível, além de não
adiantar grande coisa. É nessa hora que você entende a
importância do administrador, também encarapitado no
telhado, que traduz: “É para o senhor folgar a corda, doutor,
que a tábua soltou e o compadre Zé precisa escorar a
cumeeira”.
E é assim, quase caindo de um telhado alto de mais de 8
metros, que nos despedimos deste capítulo, que fala dos
empregados de sua fazendinha leiteira. Em geral, são piores
do que você queria e bem melhores do que merecia.
Procure compor uma situação de convivência cordial,
porque sem eles a fazenda não funciona. Estou farto
de ver fazendeiros autoritários, perfeccionistas,
arrogantes e impulsivos, sozinhos na fazenda, sem um
terreireiro sequer. E quando os encarregados dos serviços em
torno da casa vão-se embora, aí mesmo é que você vai ver o
que é bom para a tosse.

195
Nas emergências de equipes inteiras que se vão, o
perfeccionista precisa recorrer aos empregados da
vizinhança, para não deixar que suas vacas percam os
bicos. A situação é muito mais comum do que se possa
imaginar. E pode ser explicada pelo fato, visto aí
atrás, de que um trabalhador rural quase não tem
mobília que dificulte a mudança. Além disso, encontra
emprego com a maior facilidade. Quando você espaventa um
retireiro, ele sai a pé e arranja colocação no mesmo dia. Bota
os tarecos na picapedo novo patrão eera uma vez um retireiro.
Experimente arranjar outro. Veja como é difícil convencer
um sujeito a vir trabalhar em sua fazenda, de sol a sol, ou de
chuva a chuva, a troco de um salário pífio, num serviço
monótono e malcheiroso. Experimente e depois me conte.
Há uma regra universal no que respeita aos empregados
rurais: o que vai embora é sempre muito melhor do que
o que vem para a fazenda. Portanto, quando dispensar
um retireiro, porque se trata de um porcaria, pode
contar que vai arranjar um porcaria dez vezes pior.
“Mas como?” perguntará você: “Ainda há pouco, o
doutor não dizia que o trabalhador rural é ótimo?”
Sim, eu dizia que ele é boa gente, o que não quer dizer
que seja bom funcionário. E antes que me esqueça,
muito obrigado pelo doutor.
Se o empregado nem sempre é muito bom, o patrão
geralmente é péssimo, porque é como produtores de
leite que muitos patrícios atingem, finalmente, o seu
nível de incompetência. A começar pelo fato de gozarem
o pobre retireiro, quando sai de a pé caçando colocação,
esquecidos de que a construção de a pé pode ser
encontrada em, ninguém mais ninguém menos, que o
padre Antônio Vieira, um dos maiores estilistas da
língua portuguesa. Portanto, quando o compadre fala errado,
pode ser que esteja falando pelos melhores padrões do
português seiscentista, que se conservou em bolsões do
interior a salvo da cretinice televisiva dos programas de
auditório e dos comediantes que falam errado de propósito,

196
achando que estão fazendo graça.
Perplexos, às voltas com um negócio do qual não fazem a
menor idéia, nervosos com os compromissos assumidos e o
risco iminente de um desastre pecuário, indignados com os
preços do leite, revoltados com a qualidade dos equipamentos
adquiridos, os novos produtores de leite acabam
descarregando sua fúria nas costas dos empregados, que
não domesticaram o Bos primigenius , não inventaram o
sistema bancário, não são vetores da raiva dos herbívoros
nem do vírus aftoso, que pode estar em toda a parte, não
escolheram a diretoria da cooperativa, o ministro da Agri-
cultura nem o secretário de Abastecimento e Preços.
Falei, um pouco atrás, do fato de ser o serviço malcheiroso
e não posso terminar este capítulo sem falar do cheiro dos
retireiros, do terrível cheiro dos encarregados da mungidura,
de todos os que circulam pelo estábulo na hora da ordenha,
ou mesmo um pouco depois.
O cheiro não é axilar, nem é do próprio retireiro: é um
cheiro universal, que resulta da mistura do leite azedo com a
urina e a bosta da vaca, na roupa do empregado. É odor
terrível, fétido, insuportável, nauseante, porque a mistura do
leite com a urina e a bosta, juntando-se ao suor do próprio
funcionário, resulta num negócio indescritível, sempre
agravado pelo fato de as roupas de serviço, a exemplo da
maioria dos cidadãos europeus, passarem largos
sete dias sem qualquer contato com águas e sabões.
E é só depois de dar carona a um retireiro, num dia
de chuva, quando os vidros do seu carro estão fechados,
que você vai constatar que aquele cheiro nauseabundo
é o mesmíssimo que você traz para casa, todos os dias,
quando vem do estábulo na antemanhã serrana.
Então, e só então, você descobre por que suas
filhinhas se esquivam, quando vocêlhes pedebeijinhos emais
beijinhos. E compreende, também, os motivos que levam sua
mulher a viver mandando para a lavadeira aquelas suas calças
que, de tão limpinhas, davam ainda para usar umas duas ou
três vezes.

197
Considerações do mungidor —
O Produtor de Lei te CCPL, agosto de 1973.
A mungidura, dizem os livros portugueses, é a operação pela qual se extrai o leite
às fêmeas. Para mungir, ainda segundo os mesmos livros, o operário precisa vestir
um fato de macaco branco.
Quanto ao mungidor propriamente dito, é conhecido nas cercanias da Pau D’Alho
pelo nome de retireiro. E está se transformando numa peça raríssima, quase
impossível de se conseguir.
Para início de conversa, é preciso admitir que a profissão é sacrificada; das mais
sacrificadas que existem. Madrugadas de frio e chuva, dias santificados, feriados,
domingos — e lá está o nosso amigo pendurado no peito da vaca, para ganhar uma
miséria, que é o máximo que se lhe pode pagar.
Terminada a extração do leite às fêmeas, há que botar os latões no caminhão.
A carroceria é alta e os latões são pesados. Depois, há que picar o trato, carregar os
balaios, lavar o estábulo, lavar o vasilhame que veio “lavado” da cooperativa, almoçar
e recomeçar tudo de novo, entra dia, sai dia, o ano inteiro.
Dir-se-á que o retireiro precisa gostar de vaca. Ora... gostar de vaca! Homem gosta
de mulher, de cerveja, de automóvel, de futebol, de cigarro — gosta de tudo, menos
de vaca. E de vaca dos outros. Ainda quando a vaquinha é própria...
Feitas essas considerações de justiça, é forçoso admitir que o retireiroé o único
profissional que o empregador vai buscar, ou roubar, pessoalmente.
Nenhuma outra profissão exige que o empregador vá atrás do empregado,
pessoalmente, para combinar o contrato de trabalho. Experimente o leitor contratar
um fisioterapeuta: basta anunciar no jornal, que logo aparecem dezenas de fisiatras
e fisioterapeutas. O mesmo acontece com os analistas de sistemas, os
fotointerpretadores, os bacharéis em turismo (!), os torneiros-revólveres, os médicos
e todos os outros profissionais de ciências ora misteriosas, ora divertidas, ora
necessárias, ora perfeitamente ridículas. Basta anunciar, que chovem buteiros,
advogados, torneiros, sondadores de mista (?) e operadores de Franki.
Uma exceção, uma única, deve figurar junto com o retireiro: o acertador de
cavalos. É mais fácil contratar um extraordinário cirurgião cardiovascular do que
um aprendiz de acertador.
Para contratar um retireiro não adianta anunciar nos jornais, mesmo porque ele
não sabe ler, ou não lê jornais. É preciso ter diligência, expediente e cara-de-pau,
sempre que precisamos renovar a equipe. E a equipe requer constante renovação.
Quando menos, porque um retireiro bom, ou mesmo razoável, ou ainda péssimo, é

198
profissional que encontra colocação meia hora depois de ser despedido; não raras
vezes, antes...
Como seu salário não costuma ser muito brilhante, o máximo que lhe acontece,
em caso de demissão, é ficar na mesma, mudando apenas de pouso. E o certo é que
ele parece consciente de sua facilidade para arranjar emprego, tanto assim que não
pensa duas vezes antes de pedir as contas, ou de fazer qualquer coisa que justifique
demissão.
Um vizinho aqui da Pau D’Alho, acostumado a dirigir escritório de advocacia onde
emprega 120 profissionais, entre advogados, telefonistas, datilógrafos e cobradores,
pensou reeditar no mato sua capacidade de conseguir empregados pelos jornais.
Demitiu um retireiro que deu um pontapé numa vaca, um outro que perdeu a hora,
um terceiro que fez cara feia e mais um quarto e um quinto — e ficou sozinho no
estábulo. O resultado da estória é que já readmitiu alguns dos faltosos e cumprimenta,
sorridente, os outros, quando os vê na estrada, na esperança de que, um dia, voltem
a trabalhar para ele.
Minha situação não é muito diferente: tenho saudades de sete, dos dez que já
passaram por aqui. Um era burro, imensamente burro, e não havia meio de aprender
os nomes das vacas — mas acordava às três e meia da manhã e nunca perdeu um
dia de serviço.
Outro, debilóide, tirava leite muito bem e tinha formidável capacidade de absorver
minhas broncas, sempre risonho, coitado, em sua debilidade.
Um terceiro, posto que de pouca saúde, era caboclo educado e razoavelmente
limpo, coisa raríssima por aqui. Um outro, muito mais porco do que um porco de ceva,
tinha especial habilidade para lidar com o gado. E assim por diante.
Lembro-me, também, daquele que era estúpido por natureza, mas também era
trabalhador por natureza. E um excepcional mungidor, se considerarmos apenas a
munheca.
Da mistura de todos eles, seria possível extrair um retireiro que fosse razoavelmente
limpo, muito trabalhador, pulasse da cama às 3h da matina, agüentasse o mau humor
do patrão e fosse excepcional na munheca.
Atrás dele ando eu, já sem esperança de o encontrar. Nessas andanças, fui ter
a muita fazenda, possivelmente dos leitores de O produtor de leite, tarde da noite.
Mando na frente um emissário de a pé, enquanto fico no automóvel, numa estrada
pública, devidamente calçado numa Walther PPK, para as eventualidades.

199
NDOO BICO
LÁPIS

Um dos maiores empresários brasileiros dos anos 40,


famoso por dizer que estava num “diadema retrós”, sempre
que se encontrava num dilema atroz, refugava qualquer tipo
de negócio que dependesse de cifras, cálculos e provas por
escrito: “Negócio que precisa de lápis e papel para mostrar
que é bom, não me serve”.
Nos dias atuais parece inconcebível a montagem de
qualquer tipo de empreendimento sem a antecipada
precaução de fazer um projeto, sucessor de um
anteprojeto e das indefectíveis pesquisas de mercado.
É indispensável que o projeto conte com organogramas,
fluxogramas e gráficos os mais complicados, sempre
que possível com um item que encanta e espanta o
empresário tupiniquim: o cash flow .
De par com o cash flow , um item que também delicia
o executivo moderno é o break even point, abaixo do
qual a empresa está ferrada e o executivo, despedido.
Sendo possível misturar o break even com o cash flow ,
melhor ainda. E tudo num projeto muito bem encadernado,
sem o qual parece impossível tomar do banco de
desenvolvimento, estadual ou nacional, a importância
necessária para o industrial comprar o Mercedes novo,

200
a casa em Angra, o iate, 18 cavalos de corrida, um jatinho e
um solitário para a mulher, além de abrir conta na Suíça.
As duas primeiras edições deste livro ensinavam, no
presente capítulo, alguns macetes para o produtor viver
do crédito rural subsidiado, que já não existe há muitos e
muitos anos. Portanto, não há motivos para repetir os con-
selhos, hoje incabíveis.
Em matéria de bico de lápis, só devo dizer que você não
pode dispensar a escrita na fazenda. Ou várias escritas, se
você tem, como eu, a mania de escrever livros. De qualquer
maneira, não devedispensar a escrita zootécnica, nem a escrita
contábil. E já podecontar com o auxílio dediversos programas
de computador para ficar sabendo quanto está custando o
seu leite e quando é que a vaca Loló deve estar de bezerro
novo.
Na escrita zootécnica, que também está no s oftw ar e que
você vai comprar, ficam anotadas as diversas ocorrências do
rebanho — nascimentos, cios, coberturas, estoque de sêmen,
partos, pesos, leite produzido, tudo mesmo. E você, na maior
felicidade, vai contar no almoço do J óquei: “Botei a fazenda
no computador”, como se isso resolvesse qualquer problema,
dos muitos que a gente encontra no dia-a-dia de uma
propriedade leiteira.
No tempo das fichas de cartolina, havia delas à venda no
armazém da cooperativa, nas lojas de produtos agropecuá-
rios e nas associações de criadores. Resultavam — como as
restantes ainda resultam — do trabalho de um cidadão que
estudou o assunto, examinou dezenas de fichários de diver-
sos criadores e acabou copiando os modelos dos livros
americanos sobre pecuária leiteira. Nessas andanças, pode
ser que dair y cow (vaca leiteira) seja traduzida por diarista,
talvez uma espécie de vaqueiro (cowboy) pago por dia. E
Sire (touro, pai) se transforma em Proprietário, o que pode
provocar alguma confusão quando se trata de anotar quantas
vezes o doutor cobriu a diarista. Ou, o que ainda seria mais
complicado: o diarista.

201
Caí na besteira deindicar um administrador para a fazenda
mineira deum casal amigo. Além do curso detécnico agrícola,
o rapaz havia feito um estágio num centro
de pesquisas da Embrapa. E saiu de lá convencido de
que também era, ou podia ser, um pesquisador.
Como resultado mais imediato da história, mandou
fazer 156 (cento e cinqüenta e seis) modelos de fichas
diferentes, numa gráfica de Além Paraíba, para anotar
tudo que acontecia na fazenda, desde o peso do capim
picado posto no cocho até o peso do capim de véspera,
tirado do cocho para ser jogado fora.
Evidentemente, para preencher 156 tipos de fichas
diferentes, precisou contratar dois auxiliares. E os
três passavam o dia inteiro no escritório, sem a menor
noção do que estava acontecendo nos seis estábulos
da fazenda de 2.000 hectares. A maluquice durou meses
e a fazenda só resistiu à experiência porque seu
proprietário, felizmente, era homem de muitos recursos
urbanos.
Creio desnecessário falar das fichas úteis — aquelas
em que você anota o nome da vaca, o número do brinco
de plástico ou de alumínio, o número do registro
(quando existe), e da tatuagem (quando é possível),
o nome da mãe e do Sire, o peso ao nascer, o peso na
desmama, o peso ao parir, a produção anual de leite
e tudo mais que julga de importância anotar, como
vacinações, everminações, enfermidades, etc.
Tudo isso, e mais alguma coisa, fica hoje no
computador. E se estou falando de fichas de cartolina
é porque você, na hipótese de ser meu coevo, pode ser
meio reticente quanto à informática e aos computadores. Não
se aborreça com o coevo: quer dizer contemporâneo.
A produção anual de leite, como parece óbvio, resulta da
soma das produções anotadas com uma freqüência quetanto
pode ser diária como pode ser semanal ou mensal, sem
prejuízo de, eventualmente, ser imaginária.

202
A pesagem diária era dose, porque requeria um empre-
gado só por conta de anotar os nomes das vacas e a respectiva
pesagem do leite, de manhã, de tarde e de noite, quando são
feitas três ordenhas. Hoje, fica tudo por conta do computador
conectado à sala de ordenha.
Se uma vaca vem produzindo normalmente, com as
variações diárias normais, e de repente seu leite
despenca de 24,5kg para 4,8kg, de um dia para o outro,
você tem
todo o direito de pensar numa ziquizira qualquer, das
muitas a que as vacas estão sujeitas, sobretudo
quando são animais delicados, de alta produção.
Além das pesagens diárias, via computador, ou
semanais, que você mesmo pode fazer, existem as
imaginárias, que são as de uso mais freqüente na
maioria das bacias leiteiras. Consistem, basicamente,
na consulta que o fazendeiro faz ao retireiro sobre
o leite que a Tetéia está produzindo.
Afinal, quem se levanta de madrugada para extrair
o leite à fêmea produtora é o retireiro, porque você
ficou jogando pôquer até tarde e já descobriu que sua
presença na sala de ordenha é meio constrangedora
para os retireiros cantores, e para aqueles que
gostam de dar pauladas e chicotadas nas vacas e nos
bezerros.
Na tentativa (note bem: tentativa) de coibir o
espancamento dos animais, em tudo e por tudo condenável,
o administrador é muito mais eficiente, mesmo porque
não é odono da vaca. E tem condições, tem equilíbrio emocional
para chamar o espancador num canto: “Olha aqui, compadre,
não fica direito o senhor estar batendo na Tetéia, porque o
patrão pode saber e fica mal para nós dois”.
E o compadre, como que esmagado ao peso daquele
argumento — mal para nós dois —, passa mesmo uns
quatro dias sem acertar uma paulada na Tetéia, que
já lhe acertou um coice e criou, com isso, um clima
de incompatibilidade insolúvel.
203
Que acontece quando é o fazendeiro que vê o retireiro
espancando a Tetéia? Várias coisas. Em primeiro
lugar, temos um chefe de família, com oito filhos
pequenos, demitido no ato; depois, temos um doutor
produtor de leite com um processo de taquicardia,
resultante do ato de esbravejar, tomando Valium para
conseguir dormir. Numa terceira etapa, é provável que
se tenha um ex-empregado reclamando na J ustiça. Como
resultado final, é certo que o retireiro recém-
admitido, para preencher a vaga daquele que não
gostava da Tetéia, seja inimigo de todas as vacas,
inimigo da espécie bovina e contumaz na prática de
distribuir pauladas em todos os animais do rebanho,
dos bezerros
aos touros encocheirados.
Tenho escrito aí atrás 24,2, ou 18,7kg de leite,
e já me arrependo das vírgulas que usei, porque devia
ter escrito 24.2, ou 18.7kg, já que o ponto, enfiado
entre os dois números, foi a única e real contribuição
do executivo moderno, do empresário vitorioso no
mercado de capitais, para a problemática leiteira
tropical.
Quando surgiram nas bacias leiteiras, com o propósito
anunciado de fazer higiene mental e o objetivo real
de adquirir uma fazenda cuja sede colonial pudesse
matar de inveja todos os demais s ocialites do planeta,
os jovens empresários, pilotando Porsches, BMWs e Mercedes,
cavalgando animais quarto-de-milha importados, calçando
botas italianas, usando selas australianas, canetas Montblanc
eisqueiros Dupont, prometiam revolucionar os métodos atra-
sadíssimos de exploração leiteira na região.
Hoje, constatamos quenão trouxeram nenhuma novidade
gerencial para suas fazendas, o que não impede que
tenham introduzido o ponto, aquele pontinho metido
entre a unidade e a fração do leite supostamente produzido
por uma vaca.
204
Assim, quando vocêencontra um jovem produtor dizendo
que a média do seu estábulo é trinta ponto oito, pode ficar
certo de duas coisas: primeira, de que se trata de um exe-
cutivo vitorioso na cidade; segunda, que a média do curral
dele deve ser da ordem de uns sete quilos de leite, ou, vá lá:
sete ponto um.
Se o controle leiteiro diário, semanal ou mensal, tem
qualidades estimáveis, e isto é inegável, o controle oficial tem
o respaldo da associação controladora, que lhe dá a
importância e a seriedade dos documentos passados em
cartório.
Essa importância costuma levar alguns produtores
espertos à prática de uma desonestidade zootécnica,
malandragem que consiste em controlar quatro ou cinco
vacas, num rebanho de 500. Ora, num rebanho de 500
vacas leiteiras, de qualquer tipo e qualquer pinta,
parece óbvio que cinco vacas serão sempre muito boas,
representando apenas 1% do total.
Alimentadas num sistema rigorosamente
antieconômico, tendo para elas as pontas de todos os
capins verdinhos da fazenda, as vacas talvez produzam
muito leite em controle oficial. Isso é suficiente
para o criador anunciar que a média (?) do seu rebanho
é fabulosa, quando é sabido que a média de 1% das vacas não
tem a menor relação com a média do rebanho.
O fato é que, com a fama de ter um “rebanho fabuloso”, o
produtor esperto começa a vender todos os bezerros, filhos de
todas as vacas, a preços muito mais do que compensadores.
Mas isso é problema para quem for comprar bezerros do
marreco. Você, que é homem informado, vai procurar seus
reprodutores numa fazenda que controle todo o rebanho, ou
na fazenda de um sujeito que não faz controle oficial mas
deixa que você tenha acesso às anotações sobre todas as
vacas, para escolher os filhos das melhores.
De qualquer forma e pela óptica do criador, é bom repetir,
o leite é um dos ingressos de uma fazenda leiteira. Portanto,
205
é preciso verificar se a boa produtora de leite é também
produtora de boas crias, se procria regularmente, se não tem
partos complicados, etc.
Não creia que você possa fazer na fazenda um trabalho de
melhoramento do rebanho pelo só fato de anotar a produção
de cada vaca. Pode, quando muito, eliminar as vacas ruins,
mas a pesagem do leite é desnecessária para um fazendeiro
prático eliminar as vacas ruins.
Muito cuidado com a eliminação das vacas de outras
categorias: elimine, apenas, as irremediavelmente
ruins. Caso contrário, vendendo também as simplesmente
ruins e as razoáveis, corre o risco de ficar com o
curral deserto.
O melhoramento feito a partir da seleção do gado
pelo balde é muito demorado; seus efeitos sobre o
rebanho, como um todo, têm demonstrado que o método
só é capaz de aumentar as médias do rebanho de
aproximadamente 0,5% ao ano. E quem diz isso não sou eu,
éo Dr. C.P.McMeekan, C.B.E., PhD (CANTAB), B.AGR. Sc.*da
Nova Zelândia. Compare os títulos do homem com os nossos
— eu sócio do Flamengo e você, do Rotary — e veja quedevemos
respeitar a opinião dele.
McMeekan não é contrário à seleção direta. Só diz que
os resultados são muito morosos; esão mesmo. Com as provas
de progênie, a inseminação artificial e o transplante de
embriões, parece que há possibilidade de aumentar em
aproximadamente 2,5% ao ano as médias de rebanho.
Assustado com a chateação da pesagem diária do leite e já
que o seu dinheiro está sobrando, sugiro a instalação de
medidores automáticos, ligados diretamente ao computador
do escritório. O equipamento, ao que eu saiba, foi trazido
para o Brasil nos anos 70 por um amigo meu, estabelecido
nas serras do Estado do Rio. Computador educadíssimo, que

*C.B.E. (Commander of the British Empire); B.AGR.Sc. (Bacharel em Ciências


Agronômicas).

206
dava “Bom dia, César” ao chefe do estábulo.
Só não dá para entender que um computador possa dizer
“Bom dia, Bastião”. Portanto, é de todo conveniente que a
fazenda tenha um encarregado com nomecomputadorizável.
É tempo de cuidar da escrita contábil de sua fazenda,
mesmo porque vocênão vai escapar dela. E xistem, nas bacias
leiteiras, milhares de fazendas montadas na basedo compadrio
— é compadre pra cá, compadre pra lá — com o dinheirinho
pago no final da semana, sem qualquer recibo, registro, escrita
ou carteira.
O esquema tem justificativa numa porção de aspectos, em
que não é possível esquecer o caráter meio nômade do tra-
balhador rural, nem é possível negar o tipo de relação tra-
balhista inteiramente diverso daquele encontrado na cidade.
Nômade, passeador, turista, sem muita mobília ou maiores
compromissos, o trabalhador rural não costuma fazer
cerimônia para mudar de pouso. Assim, vocêtem um trabalho
dos diabos para “fichar” o Fulano, mandando tirar fotos,
carteira profissional, inscrevendo o batuta no livro deregistro
dos empregados da empresa rural, para elepentear no
mato sem ter o cuidado nem sequer de dar baixa
na carteira.
Um dos meus retireiros, que fazia falta no estábulo, foi 18
(dezoito!) vezes à cidade com o propósito exclusivo de tirar
sua carteira profissional. Precisou começar pela certidão de
nascimento, que não tinha, apesar de ser pai de oito filhos.
Um dia, chegou dizendo que tudo estava resolvido esó faltava
tirar os retratos.
Lá se foi de volta com o dinheiro das fotos e uma ajuda para
a condução, o pastel e a cerveja na cidade, reaparecendo na
fazenda, ao final da tarde, com meia dúzia de retratos que não
eram seus.
“Você não viu, Zezinho, que os retratos são de outro
sujeito?”
“Vi, sim senhor, mas pensei que era assim mesmo.”
Além de ser o trabalhador rural um turista vocacional,
sem maiores vínculos com a fazenda, há outra realidade
207
inegável: o relacionamento patrão-empregado, no campo, é
inteiramente diverso daquele que se vê na cidade.
Se um retireiro descobre a mulher dando para um
compadre atrás da moita de bananeiras, não mete o
porrete na mulher, nem a foice no rival: vem reclamar
do patrão. É assim, também, com as filhas que andaram
fazendo arte, com o porquinho do colega “que está
comendo minha roça, sim senhor”, com o menino que “eu
acho que foi picado de cobra”, com a sogra que “botou
as hemorróidas e não está querendo guardar”, com o
filho que se casou, “carcou na cumbuca e não encontrou
o fundo”, com a comadre que “está com o vazador entupido”
— é assim com qualquer coisa, das mais sérias às mais
engraçadas. E émuito compreensível, porque o patrão, sendo
embora um idiota, é sempre um sujeito que tem um
pouquinho mais de “leitura” e um carro de segunda mão.
Vezes sem conto (epa!), levantei-meda cama tarde da noite,
bem bebido e mal dormido, só por conta de levar as comadres
ao médico da cidade, para tratar de qualquer coisa que podia
ter sido tratada na véspera, durante o dia.
Não fiz vantagem alguma, porque também recorri aos
empregados inúmeras vezes, fora da hora do expediente,
para assuntos que variavam de uma limpeza no coletor
do alternador da usina hidrelétrica até o conserto,
lá no alto do morro, de minha antena de televisão.
E sempre me serviram de boa vontade. Só não posso
dizer o mesmo do meu estado de espírito, quando
acordado por volta de meia-noite, depois de ir deitar-
me às 11 da noite com uma dúzia de uísques no bucho.
Não conheço empregador rural que nunca tenha feito
um parto, uma sutura, uma redução de fratura e
centenas de curativos; todos fazem, porque faz parte
da filosofia do relacionamento patrão-empregado rural.
Por fazer partedo negócio, indica ser ele inteiramentediverso
do relacionamento urbano, onde o empresário fecha a porta
da indústria no final da tarde e vai-se embora para casa, cujo
endereço édesconhecido de todos os funcionários da empresa.
Por que falávamos desses assuntos? Ah, já sei: foi porque
208
eu queria dizer que esse tipo de relacionamento conduz a
uma simplificação da burocracia do emprego, com seus re-
cibos, seus vales, suas anotações, seus descontos, seus livros
de registro e outras complicações, nada complicadas numa
empresa que tenha um departamento de pessoal; terríveis,
numa fazenda em que o departamento de pessoal é você.
Não conheço pai que faça o filho assinar um recibo de
mesada; muitos empregadores jamais exigiram recibos de
seus empregados. Mas o fato de o negócio ser assim não quer
dizer que seja certo, legal ou recomendável. Você precisa ter
livros, registros, carteiras, tudo sacramentado, se possível
com o maior número de carimbos em todas as páginas,
carimbos vários, de todos os feitios, porque o carimbo fascina
e intimida o burocrata; fiscais do Ministério do Trabalho não
fogem à regra.
Serviços de tamanha complexidade e de monumental
chatura, num país em que as leis mudam diariamente,
requerem a colaboração técnica de um profissional das
ciências contábeis. Há vários deles, em qualquer
cidade do interior, uns bons, outros razoáveis, quase
todos péssimos. Deixe que cuidem da escrita de sua
fazenda, façam os pagamentos, exijam recibos, controlem
faltas, folgas e férias, paguem os impostos e as taxas
— essas coisas todas chatíssimas e indignas de um
homem como você. E fiscalize, para ver se fizeram
mesmo os pagamentos, ou embolsaram o dinheiro.
Durante algum tempo, andei tentando catalogar os
tipos de contadores que encontrei por aí, dividindo-
os em gêneros, espécies e variedades, mas acabei
confundindo a classificação. Ainda me lembro do
contador, var. terrorista , que conhece todas as leis
e, quando não as conhece, inventa, porque se compraz
de ameaçar seu cliente com duzentas e cinqüenta mil multas
municipais, estaduais e federais, além deobrigá-lo a pagar as
taxas de todas as confederações possíveis e imagináveis.
De outra parte, há o contador desligadão, variedade tudo
bem, que não se preocupa com lei de espécie alguma, entre

209
E tatu, pode? — Folha de S .Paulo,
setembro de 1992.
Não consigo imaginar uma saracura trepada numa bananeira destruindo o cacho
de frutos ainda verdes. Sei que é onívora, mas tem preferência por capim, brotos de
milho e pequenas cobras d’água. É conhecida andarilha, o que não impede que saiba
nadar muito bem. O mesmo acontece com seu primo, o frango-d’água, nadador exímio
que se locomove com desembaraço em terra firme. Aquela conversa de comer banana
verde é que não faz sentido.
Com o finalzinho da seca e do frio, nosso pomar acabou. Laranjas, limões,
toranjas, limas, abacates, jacas, mangas, goiabas, abios, jabuticabas — o pomar é
enorme, mas não se encontra uma fruta nem para remédio. Mangueiras centenárias
estão em flor. A safra de goiabas rende dezenas de quilos de goiabada cascão feita
com aquelas frutas gostosas e bichadas, que são as mais saudáveis, como aprendi
num artigo de Rogério Cézar Cerqueira Leite.
E agora um bicho qualquer cismou de destruir todos os cachos de bananas, a
única fruta que restava neste final de inverno. Na CPI dos compadres deu saracura
na cabeça. E se as aves da famíliaRallidae estão destruindo a reserva alimentar dos
compadres, logo se fez J ustiça de J edburgh à mineira.
J edburgh era cidade escocesa famosa por suas guerras de fronteira. J us tiça de
J edburgh virou sinônimo de “enforque-os primeiro, julgue-os depois”. Exatamente
aquilo que os compadres fizeram com as saracuras que caíram na esparrela armada
no bananal. E só depois vieram conversar comigo, pedindo que eu desse um jeito
nas aves. Em sua simplicidade, julgam que minha biblioteca, imensa pelos padrões
locais, tenha remédio até para saracuras que comem bananas verdes.
Fossem as aves suculentas e eu só ficaria sabendo da estória quando não
restasse mais uma saracura, num raio de cinco léguas. Despidas das penas, contudo,
têm o tamanho de rolinhas. E são duras, duríssimas, mesmo depois de longo
cozimento, como se queixam os compadres.
Expliquei-lhes que seu ensopado de saracuras constitui crime inafiançável,
sujeito a processo sumário e pena de reclusão de até cinco anos. Todos, de uma ou
de outra forma, já ouviram falar da Lei 5.197, de 3 de janeiro de 1967, que dispõe sobre
a proteção à fauna e dá outras providências. Mas julgam que a fauna a ser protegida
é apenas aquela que não destrói bananas verdes.
Um dos compadres, dono de barriga patronal, ainda pergunta: “E tatu, pode?”
Informo que os tatus também fazem parte de nossa fauna, portanto estão protegidos
pela mesma lei. Mas o excelente funcionário não parece assustado com a pena de
cinco anos de reclusão. Afinal, ao contrário da saracura, tatu é muito macio. E muito
gostoso.

210
outros motivos porque não as conhece. Há produtores de
leite que recorrem a um contador desligadão e têm a sorte de
escapar dos mecanismos de fiscalização; outros, ferram-se
na primeira oportunidade.
O contador variedade quebra-galho é o que deixa a escrita
se complicar para depois quebrar o galho, no que demonstra
grande habilidade, já porque é um sujeito muito simpático,
já porque é muito relacionado nas repartições competentes.
Há contadores de todos os tipos e você vai precisar de um
deles, não só para cuidar dos serviços e dos impostos da
fazenda como também para fazer a famigerada e ininteligível
Cédula G do imposto de renda.
A partir de todas as notas fiscais e todos os recibos, que vai
jogando numa gaveta do escritório, para o profissional
organizar no fim do mês, e de um livro-caixa elementar, da
chamada contabilidade de português, o meu bom produtor
de leite vai ter os balancetes, os balanços, vai ter uma porção
de papéis e livros complicadíssimos. Mais que isso, vai ter
uma surpresa: sua fazenda geralmente dá lucro!
Um vizinho meu, que só tinha botinas furadas e andava
num jipe velhíssimo, com buracos enormes nos pneus, por
onde escapavam bolotas de câmara de ar; produtor que já
não tinha condições de pagar uma pensão dequinta categoria
para seu filho estudar na cidade; fazendeiro que não tinha
dinheiro para mandar fazer um “trabalho”que escondesse as
gengivas da mulher; criador que já não batia os pastos da
fazenda, nem enchia os silos, por falta de recursos para
contratar as turmas — recebeu recado urgentíssimo de seu
contador, na véspera do último dia do ano, pedindo notas
fiscais no valor de muitos milhares de dólares, notas deração,
de gasolina, de cimento, notas de todos os tipos.
“Nota, como, se já mandei todas que eu tinha e estamos no
último dia do ano?” perguntou o bom amigo.
“Sei que o senhor mandou e já usei todas elas” respondeu
o contador. “Aconteceque estou fechando o balanço edescobri
que o senhor vai pagar um dinheirão deimposto: sua fazenda
deu um lucro extraordinário!”

211
FAZENDA
MODELO
Meu bom amigo e leitor já deve ter percebido que ando
meio reticente no que respeita à pecuária leiteira. E tem todo
o direito de perguntar se não penso reconsiderar a posição,
instalando uma fazenda muito dacaprichada. Afinal, o mundo
está cheio de reincidentes, desde os fumantes que reincidem
no pito e os cafungadores que voltam a incidir no pico até os
bebedores querecaem no trago. Sendo assim, tudo é possível.
Não estou livre de pensar na instalação deuma fazendinha
leiteira. J á parei de fumar uma porção de vezes e estou
queimando quatro imensos charutos por dia. Vinte vezes fui
magro e estou com deploráveis 120 quilos. J urei nunca mais
depender de um vale de cooperativa para pagar as contas do
fim do mês, mas talvez não resista à tentação de instalar
fazenda supimpa, só para ver se o negócio é mesmo tão ruim
como o pintam.
Faço um resumo da fazenda dos meus sonhos, para ver se
posso ajudá-lo a se transformar num produtor de leite
vitorioso. Vamos lá.
Fazenda de 200 alqueires geométricos, qualquer coisa em
torno de 1.000 hectares mecanizáveis, com água abundante.
Parece que é meio difícil fugir do cerrado vermelho. Os outros
terrenos de boa topografia custam muito dinheiro e, neles, o
produtor encontra coisas bem mais interessantes para fazer
do que a mungidura de algumas centenas de vacas leiteiras.

212
Falei centenas: isso mesmo. Cerca de 300 vacas em lactação
num rebanho de 400 adultas e parideiras. Uma sala de
ordenha, em espinha-de-peixe, com um cochinho para o
concentrado diante de cada vaca. Os bezerros, infelizmente,
seriam separados de suas mães e criados a pasto, isto é, no
pasto, desde o primeiro dia de vida. Nada de gaiolas ou de
casinhas de cachorros/ bezerros.
Se os machos fossem aproveitados, e talvez fossem, eu
cuidaria de experimentar algum tipo de arraçoamento
econômico, a partir da idade recomendada pelos meus
consultores em nutrição de ruminantes*. Bezerras,
além do leite natural, nos baldes dispostos em espinha-
de-peixe, tal e qual eram criados na fazenda de
Pindamonhangaba já citada, de uma pouca de ração e
feno de coast cross, também seriam criadas no pasto
desde o primeiro dia.
Todos os animais teriam acesso aos cochos com a
mistura mineral recomendada para a região, que
certamente não seria uma dessas misturas que incluem,
ou dizem incluir, 50 ingredientes, quase todos
desnecessários. Água limpa em bebedouros de cimento,
com bóias.
Piquetes de coast cross para pastejo e fenação;
piquetes de capim-elefante para pastejo rotativo no
sistema da Embrapa; pastos de brachiarão; silos-
trincheira, tantos quantos fossem necessários, para
alimentar o gado todo, durante cinco meses do ano,
com silagem de milho.
Compraria 400 novilhas girolanda, que tivessem mamado
em vacas zebuínas, para começar a criação. A partir daí, talvez
usasse o sêmen de touros pitangueiras em cruzamento
absorvente, talvez usasse o sêmen de touros euro-indianos
dos trabalhos que têm sido feitos para a formação de um gado
girolanda.
*Leia B ovinos: volumosos complementares, de Luis Carlos Tayarol, também
publicado pela Nobel (N. do E.).

213
Não faria estábulos, nem qualquer tipo de construção do
gênero. Os animais adultos ficariam a pasto durante sete
meses por ano, com alguma ração durante a ordenha, para
reforçar a alimentação e amansar as vacas. Durante os cinco
meses deseca ogado seria confinado a céu aberto, com silagem
de boa qualidade, cana com uréia e feno de coas t cros s .
Neca de compadrio: fazenda organizada como empresa,
tudo direitinho, com o pagamento de horas extras e
demais obrigações trabalhistas do empregador rural,
seguindo as instruções do livro de minha comadre
Nilza Peres de Rezende.
Uma única e solitária casa de colono, próxima da
sala de ordenha, para o funcionário encarregado de
tomar conta da sala do leite, com dois tanques de
expansão para 3.000 litros cada e um pré-resfriador
de boa qualidade, para 1.000 litros/ hora. As demais
casas seriam construídas na periferia da fazenda, se
possível de frente para uma estrada pública e próximas
da venda, para facilitar a vida dos pinguços.
Se resolvesse fazer Voisin — caso a estudar, pela
escravidão a que sujeita o fazendeiro, o “único” na
região a entender os fundamentos do pastoreio rotativo
racional — procuraria fazer uns 40 piquetes, de cinco
hectares cada, nas proximidades da sala de ordenha.
O gado de leite pastaria na frente; novilhas e vacas
secas fariam a segunda passada no piquete.
No corredor de acesso à sala de ordenha, um chuveiro
automático para banhos carrapaticidas e um tronco
para inseminação artificial; dois ou três pedilúvios no caminho.
Cercas dearame liso, ditas gaúchas ou paraguaias, ecercas
elétricas, onde fosse preciso. Todo o investimento geralmente
aplicado numa porção de edifícios seria aplicado na correção
do terreno e na fertilização das pastagens.
Em resumo, faria tudo isso e mais alguma coisa, para
acabar descobrindo que o negócio continua pouco brilhante.

214
Se conseguisse produzir 100 mil quilos de leite/ mês, minha
receita variaria de US$ 22 mil a US$ 34 mil por mês. No
momento em que reescrevo este livro, o leite está sendo pago
entre R$ 0,22 a R$ 0,34 (US$ 0,22/ US$ 0,34), dependendo
da qualidade do produto, da cara do freguês, da quantidade
mandada, dependendo de uma porção de coisas.
Como seria criador, isto é, conservaria todas as bezerras
enovilhas, presumivelmentemelhores quesuas mães, poderia
vender, de quatro em quatro anos, 400 vacas adultas de uma
vezada só, esvaziando a sala deordenha para pintura, limpeza,
retoques. Dentro de algum tempo, teria de novo 300 vacas no
leite, todas nascidas na fazenda.
Essa venda de um gado ainda novo, 400 vacas, curral
fechado, sem aquele negócio de reter a cabeceira e
vender o fundo, poderia render, de quatro em quatro
anos (talvez menos tempo), qualquer coisa entre US$
200 mil e US$ 300 mil, que não fazem mal a ninguém.
Em teoria, o plano é quase perfeito. O diabo é que,
na prática, a teoria é outra, como dizia o jardineiro
português de Nelson Palma Travassos, fazendeiro em
São Paulo e autor de uma série de livros deliciosos.
Andei pensando seriamente no projeto, mas desisti
quando o supervisor do empreendimento, com que eu
contava para administrar a fazenda e cuidar de sua
defesa sanitária, passou num dos primeiros lugares,
entre4 mil candidatos, no concurso para veterinário do Banco
do Brasil. Perdi o ex-quase sócio e dou os parabéns ao BB
pela contratação do Dr. Heber Calais.
Melhor julgador que o banco, que precisou submeter 4
mil candidatos a uma porção de exames, só mesmo o papai
aqui, que já tinha descoberto, e anunciado pelos jornais, que
o Dr. Calais forma no primeiríssimo time da medicina
veterinária brasileira e entende de fazenda, coisa que nem
sempre acontece com os demais profissionais veterinários.
Esse éum dos problemas do crédito rural orientado, mesmo
quando subsidiado, um dos inúmeros problemas: confundir

215
o profissional da ciência agronômica, eo profissional da ciência
veterinária, com o executivorural, com o empresário quesente
o pulso do negócio, com o fazendeiro profissional, que está
com o seu na reta.
Agronomia e veterinária, importantíssimas as duas, são
algumas das ciências de que se vale o empresário rural, na
condução de seu negócio. Mas as diretorias das empresas de
assistência técnica eextensão rural não pensam assim eacham
que um menino recém-formado, sem qualquer experiência
de vida, muitas vezes rigorosamente analfabeto até mesmo
na profissão em que obteve seu diploma, pode sair por aí
fazendo projetos e mais projetos, sem a mínima relação com
a realidade dos fatos.
Você notou que recomendei, no capítulo que cuida do
administrador, que se fizesse uma tentativa com os técnicos
agrícolas de escolas como a de Bambuí. E disse mais: um
rapaz que tenha liderança e seja filho de um pequeno produ-
tor rural.
Veja oconjunto dequalidades estimáveis: primeiro, porque
se trata de um profissional de nível médio, geralmente com o
mesmo padrão de informação dos doutores, mas sem a
empáfia dos quese julgam denível superior; segundo, porque
tendo liderança vai conduzir os empregados com muita
facilidade; por fim, sendo filho deum pequeno produtor, deve
ter s ens ibilidade para o negócio, porque tem obrigação de
saber onde nos apertam os calos. E vai ter um patrão, que é
você, para trazê-lo de rédea curta.
Portanto, quando a gente encontra um excelente pro-
fissional veterinário, caso do Dr. Heber, que entende real-
mente de fazenda, que tem sensibilidade para o negócio, que
nasceu para ser um grande fazendeiro, há que tentar
aproveitá-lo como sócio-gerente da empresa rural. Era o que
eu pensava fazer, quando o Banco do Brasil resolveu fazer o
tal concurso.

216
A “resultagem” de um leite bem mungido — O
Ruralista, maio de 1977.
Agora, que O Ruralistaestá de cara nova, impresso em off-set e com maior número
de páginas, deixem-me contar que também andamos fazendo modificações aqui na
Fazenda Pau D’Alho, que passou a produzir leite tipo B.
Além das instalações exigidas para a produção do tipo B, das fotografias e dos
exames das vacas, e outras complicações, a gente precisa mandar radiografar os
peitos dos compadres numa tal de abreugrafia, que todo mundo chama biografia. É
preciso, ainda, providenciar os fatos de macaco brancos e os respectivos gorros, para
que os compadres possam proceder à mungidura.
Vestidos e radiografados, informados de que retireiro não pega em peia, amarrador
não pega em bico e lavador de bico também não pega em peia — há que manter uma
conversa demorada com o compadre-em-chefe, que é o chefe dos demais compadres
e comanda os trabalhos do estábulo.
Um vizinho meu, adepto dos métodos americanos de administração de empresas,
em que existem M-6, M-5, M-4, M-3, M-2, M-1, numa carreira que termina empartner
(sócio), também arranjou seis categorias funcionais em sua fazenda: auxiliar de
estábulo, amarrador, lavador de bico, retireiro, chefe-de-estábulo e chefe-do-gado,
terminando na estimável figura do administrador,
que seria o par tner dos americanos.
Aqui na Pau D’Alho todo mundo faz de tudo e o compadre-em-chefe, que seria uma
espécie de chefe-de-estábulo, é também tratorista, eletricista, bombeiro, soldador e
guarda-costas, quando o patrão precisa de adjutório para espantar algum malandro.
Para iniciar o compadre-em-chefe nos mistérios da microbiologia, nada melhor
do que aproveitar uma viagem de automóvel, debaixo de chuva, quando nos ocupávamos
da tarefa de roubar retireiros nas fazendas dos outros, com as cautelas necessárias
nesse tipo de empreendimento.
Cautelas que se representam pela necessidade de estacionar o carro numa
estrada pública, incumbindo o compadre de invadir a fazenda “inimiga”. Sendo
capturado pelo fazendeiro invadido, o compadre informa que está caçando colocação,
o que é meia verdade, pois está caçando retireiros para dar colocação na Pau D’Alho.
Ligeiro, pequeno e escuro, o compadre-em-chefe não é lá muito visível, sobretudo
à noite, razão por que geralmenteconsegue chegar à casa do retireiro, que pode acabar
se mudando para nossa fazenda, de onde será impiedosamente “furtado”, algum tempo
depois, por algum vizinho menos escrupuloso.

217
Sim, porque se o aliciamento de retireiros de um fazendeiro desconhecido é coisa
compreensível, dentro da escassez de oferta no mercado de mungidores, o mesmo
aliciamento, quando praticado contra um vizinho, transforma-se numa indignidade
que, não raras vezes, somos obrigados a praticar.
Ainda outro dia, informado da existência de um retireiro excepcional numa
fazenda de outro município, lá fui ter à casa do Fulano, tarde da noite. Conversa vai,
conversa vem, descobri que ele tinha pedido as contas e já estava apalavrado com
um amigo meu. Nessas condições, fiquei entre voltar para trás, ou continuar o
aliciamento, optando pela solução velhaca, sob o argumento discutível de que não
estava lá de caso pensado para roubar o empregado de um amigo, e sim de uma outra
fazenda, cujo dono não conheço.
Pois foi numa dessas excursões noturnas que resolvi conversar com o compadre-
em-chefe sobre os problemas da produção do leite tipo B, que começaríamos a remeter
dali a alguns dias.
Para início de conversa, era preciso explicar o que é uma bactéria — e a
microbiologia nunca foi o meu forte, entre outros motivos porque, quando tirei meu
diploma do primário, não se estudavam bactérias, leveduras e bolores.
De qualquer forma, comecei falando dos reinos mineral, vegetal e animal,
tomando por base uma pedra da beira da estrada, para o primeiro reino, um pé de angico
vermelho, para o reino vegetal, e o Olavo, nosso retireiro, para o reino animal, ele
que se enquadra perfeitamente nesse reino, qualquer que seja o prisma sob o qual
seja examinado.
Depois, expliquei que os microorganismos são tão pequenos que só podem ser
vistos ao microscópio, entendendo-se por microscópio aquele binóculo
do tamanho de um bonde que o veterinário leva para o curral, sempre que
vai examinar as fezes de algum bezerro.
Disse, ainda, que as bactérias pertencem ao reino vegetal, falei dos bacilos, dos
cocos, dos vibriões, falei da divisão da célula-mãe em duas células-filhas, da
velocidade com que uma bactéria pode reproduzir-se, da importância da temperatura
nesse processo e da necessidade de higiene rigorosa, e do frio, na produção de um
leite de boa qualidade, como se pretende que seja o leite
tipo B.
Falei feito um desesperado, para um compadre atento, até chegar na hora de
explicar como é que o pessoal da plataforma conta as bactérias do leite, bichinhos
tão pequeninos que não podem ser vistos a olho desarmado.
Fugi das explicações sobre o método de Breed e sobre o método de contagem de
colônias em caixas de Petri, porque eu mesmo não entendi o negócio direito, quando

218
vi num laboratório.
Assim, limitei minha explicação à prova de redutase, dizendo ao bom compadre
que “os homens” fazem uma solução de azul de metileno e botam 10cc do leite de nossas
vacas, para ver em quanto tempo as bactérias do nosso leitecomem o azul da solução.
Quanto mais depressa a solução for comida , tanto maior será o número de bactérias.
Assim, um leite bom tem mais de 5 horas de redutase, enquanto um leite médio tem
entre 3,30 e 5 horas de redutase e um leite mau, ou péssimo, tem menos de 3 horas
de redutase.
Assustado, o compadre só dizia: “Então, os homens são muito organizados”. E
eu concordava, insistindo na necessidade de se manter uma higiene rigorosa no
estábulo e no vasilhame, tentando, ao mesmo tempo, lavar as mãos dos retireiros
pelo menos uma vez por dia.
Completei a aula de microbiologia prometendo ao compadre-em-chefe uma
gratificação de 500 pratas todo mês que não tivermos leite desclassificado.
Seja pela aula, seja por causa da gratificação, o fato é que o compadre está um
leão em questões de higiene. Sua redutase fica entre 5,30 e 6 horas. E ele vem, todo
satisfeito, mostrar os vales do leite, animado com a perspectiva da gratificação no
fim do mês.
Só não aprendeu, ainda, a dizer redutase e inventou uma palavra que é um misto
de resultado e a velocidade de redução de determinadas substâncias por uma enzima
produzida pelas bactérias. A palavra éresultagem e já está incorporada ao vocabulário
da Fazenda Pau D’Alho, onde volta é vorta, tábua é tauba, força é forcidão, comida
é comer, mamite émarmite, berne éberno, touro é boi , carrapaticida é remédio para
carrapato, nível é onível* , trator é extrator , acesso é abcesso e diagonal éesgueia
— entre outras delícias que, se não servem para a gente ganhar dinheiro, sempre
dão para nos divertir à beça.

* Os compadres estão certos: o Dicionário Morais, edição de 1813, registra olivel.

219
ODOPULOGATO
Um amigo, criatura de notáveis qualidades humanas, fez
carreira numa das maiores empresas do mundo, onde
começou como vendedor, fazendo a praça da Zona da Mata
mineira, aposentando-se no cargo de diretor geral
para a América Latina.
Não conheço executivo mais treinado. Fez todos os
cursos da multinacional, aqui e nos Estados Unidos.
Foi instrutor dos cursos durante muitos anos. Tem
liderança natural. Sabe tudo de organização, métodos,
gerência, vendas, finanças, administração. Ninguém
chega a diretor geral de uma das maiores empresas do
mundo se não tiver qualidades raras de administrador.
E o bom amigo, além de tudo, é uma excelente figura
humana.
Aposentado no mais alto posto da carreira, moço
ainda, juntou seus caraminguás para montar fazenda
leiteira no Estado do Rio. Quem sabe o mais, sabe o
menos, diz o provérbio; quem dirige uma empresa
gigantesca melhormente dirigirá uma pequena fazenda
leiteira. Pois sim...
Perguntem ao meu amigo tudo que sofreu durante a
montagem do negócio, até aprender o pulo do gato,
depois de sete anos de trabalho duro. E olhem que não
existe, volto a insistir, um executivo mais treinado. Treinado
para trabalhar dentro decertos princípios queabsolutamente
não vigem numa bacia leiteira. Os cursos e a vivência dos

220
problemas da multinacional ensinaram-lhe quase tudo,
menos o pulo do gato. E é preciso pular de gato numa bacia
leiteira.
Orientado pelo revendedor de tratores, você pode comprar
um equipamento rigorosamente inútil para o serviço que
precisa fazer, porque o revendedor não tem o menor interesse
na venda do equipamento certo; quer ficar livre dabomba que
tem em estoque.
Depois de perder noites de sono tentando estudar, nos
melhores livros, qual é o tipo de ração que deve dar às suas
vaquinhas, você acaba comprando um produto que nada
tem daquilo queestá impresso no rótulo. Não existefiscalização
de espécie alguma; jamais existiu. É assim, também, com as
misturas minerais, com os medicamentos e com as vacinas.
Não todas, é verdade, mas com uma boa parte delas.
Laboratórios há que soltam na praça partidas de vacinas
sem qualquer serventia imunogênica; outros compram
vacinas deum laboratório, quetenha tecnologia própria muito
avançada, envasam o produto com a nova marca e o
comercializam a preços inferiores aos de cus to! Qual é o
milagre? Não tem milagre nenhum: tem água na vacina
vendida, o que não chega a espantar quando se sabe que o
galego da padaria tem tecnologia para multiplicar por dois o
litro de leite que revende.
Socorrer-se dos técnicos é sempre uma excelente medida,
quando você encontra profissionais de bom gabarito. Mas
corre o risco de embarcar na canoa de um desses milhares de
analfabetos que nossas universidades despejam no mercado,
ano sobre ano. O que não nos livra, ébom notar, da importação
deanalfabetos de diversos outros países, que logo sedestacam
em nossas bacias leiteiras, porque falam castelhano e
ameaçam introduzir, nos trópicos, uma tecnologia que teria
dado certo nas Ilhas Malvinas.
O empreiteiro do seu estábulo — você não acreditou no
meu palpite e mandou construir dois galpões gigantescos —

221
levanta um negócio facílimo de construir, que vai desabar
com a primeira ventania. E o traço do concreto, empreitado a
3 por 1, leva mesmo 18 por 1, para esburacar em dois meses.
Você, que não é bobo nem nada, vai comprar pessoal-
mente a madeira. E faz muito mal, porque só conhece
o jacarandá dos seus móveis, todos da melhor qualidade.

Mas o revendedor garante que todos os esteios são de


madeira de lei, muito própria para chão. Cada esteio
custa uma fortuna, mas é um caro que sai barato, pensa
você, porque a madeira é “de lei”. É mesmo: é da lei
da selva do comércio agropecuário. Enterrada, dura
12 meses.
O retireiro, que se oferece como tal, nunca viu de
perto uma vaca; o tratorista não sabe qual é a parte
da frente do trator, aliás extrator sim senhor; o
arado reversível reverte sem ter sido acionado; a
ensiladeira “Capacidade 6 ton/ hora” deve ser
interpretada como 6 toneladas/ hoje, mesmo assim com
uma dúzia de trabalhadores dispostos, na bica de
abastecimento; os pneumáticos do trator novinho já
vêm remendados de Luxemburgo; o arame enferruja ainda
no caminhão, antes de chegar na fazenda; há cloretos
de sódio com 9% de impurezas, muitas delas abortivas
e altamente tóxicas; muitos dos carrapaticidas são
tônicos para os ácaros, mas podem matar as vacas. E
matam, de vez em quando.
Um veterinário amigo recebeu 12 frascos de um
carrapaticida revolucionário, para testar em sua
região. “Queremos um número expressivo de vacas”, diziam
os homens do laboratório multinacional. E o meu amigo
preparou, pessoalmente, a mistura do banho carrapaticida,
tendo o cuidado de guardar dois vidros lacrados, rotulados,
tudo direitinho, porque é desconfiado, como bom mineiro de
Muriaé.
E éprudente, porquesó jogou oito vacas no banho, quando

222
o laboratório pedia número “expressivo”. Morreram as oito
em 24 horas. Não fosse a contraprova, representada pelos
dois frascos lacrados, e o laboratório diria que a mistura foi
malfeita, ou que havia outro produto químico no banheiro,
que “reagiu”comseu carrapaticida. Mas comohavia o produto
lacrado e rotulado, e o negócio ainda envolvia problemas de
sonegação aduaneira, o fazendeiro foi indenizado pelo
assassinato de suas vacas.
Quando as injeções de ADE, em 1979, começaram a
intoxicar e matar nas bacias leiteiras, os laboratórios
fecharam questão em torno da inocuidade do produto,
que é mesmo inócuo, ou ineficiente, ou desnecessário
para os fins a que se propõe — o que não impede que
possa matar o gado, como acabou matando na fazenda
do dono de um dos laboratórios: bem feito!
Cada um dos exemplos aí de cima, alguns poucos
dentre os muitos que toda gente conhece, constitui
uma desonestidade. Mas há quem procure suavizar a
coisa, dizendo que não é bem assim, que o Fulano é
muito simpático, o Beltrano é muito bonzinho, o
Sicrano é muito educado; e
se o negócio não é lá muito honesto, não chega a ser
uma desonestidade. É a invenção do terceiro sexo a
nível de honestidade.
O fato de o Código Penal cominar penas diferentes
para o furto, o roubo, o estelionato, a apropriação
indébita, pode explicar a tendência, observada em
nossas bacias leiteiras, de justificar a manta, minimizar o
golpe, suavizar o roubo, relevar o furto, desculpar o estelionato
— achando graça nele, ainda por cima.
No capítulo das transações bovídeas é que o alto grau de
baixo nível do nosso povo alcança as culminâncias da
velhacaria: as fraudes são tantas, e tão freqüentes, e tão
espantosas, que fazem babar de inveja o mais esperto dos
estelionatários. E tudo é justificado pelo comércio, pelo fato

223
de o velhaco ser bom comerciante, não fosse Mercúrio o deus
romano dos comerciantes e dos ladrões.
Nossos rebanhos são vítimas de uma enfermidadechamada
aborto contagioso ou Doença de Bang, a brucelose, de que
você talvez já tenha ouvido falar e cujas brucelas decerto já
comeu no queijinho frescal daquela indústria famosa, que
trabalha até hoje (1980) sem pasteurizador. No leite morno
que você toma no curral, ou no leite ensacado no dia em que
o pasteurizador enguiçou, também existe a possibilidade
provável de uma brucelinha.
Nossos governos pretendem acabar com a brucelose
por meio de portarias e decretos, como se o país fosse
habitado por noruegueses e tivesse a extensão
territorial do Principado de Mônaco. Mas isso não vem
ao caso, porque não estou aqui para resolver o
problema da brucelose bovina, que é de solução
relativamente fácil, como fácil é também (será?)
resolver o problema da aftosa.
Em algumas de nossas regiões pastoris, os índices
de brucelose passavam em 1980 dos 40% das vacas de
um rebanho. Não sei como andam as coisas em 1996, mas
é possível que tenham piorado. E o certo é que os
riscos para a população humana são relativamente
grandes; fossem mesmo muito grandes e não haveria retireiro
que não fosse brucélico.
Os rebanhos produtores dos leites tipos A e B não deve-
riam ter vacas brucélicas; os regulamentos exigem exames
regulares de todas as vacas daqueles rebanhos — e a maioria
está mesmo isenta da enfermidade.
J unte-se o fato de que não estou aqui para dizer se os
exames são feitos, nem se os resultados correspondem ao que
foi examinado, porque isto aqui não é um manual de técnica
policial; é um livro ameno, ou pretende sê-lo.
O que é certo é que a brucelose, nos rebanhos leiteiros, e

224
nos de corte também, é catastrófica: você devefazer tudo para
evitar a compra de vacas brucélicas e deve evitar, também, a
introdução de vacas tuberculosas em sua fazenda.
Um amigo meu comprou 60 vacas numa bacia leiteira,
onde há o pressuposto de honestidade, pelo fato de
a maioria dos produtores não ser nascida no Brasil.
Comprou e aceitou os exames feitos pelo técnico dos
vendedores. Chegando ao RJ mandou refazer os exames
e encontrou 100% das vacas tuberculosas. E foi queixar-
se ao bispo, depois que os vendedores garantiram, com
a cara mais limpa deste mundo, que as 60 vacas
contraíram a doença na viagem de caminhão...
Executivo de primeira plana, acostumado a negociar
lotes de ações no valor de milhões de reais, com a
facilidade de quem acende um fósforo, você não vai
confiar a compra de seu gado a um amigo que entenda
um pouquinho do assunto, porque acha que já entende
muito mais. E combina com o vendedor das vacas,
mediante sobrepreço que assusta e espanta os outros
fazendeiros da região, o direito de “entrar no curral
dele”, para tirar 50 vacas por cima , isto é, para
escolher 50 entre todas as vacas do homem.
E é assim que, ao dealbar da aurora de um sábado, lá está
o meu candidato a produtor de leite no curral do vendedor,
para escolher as 50 vacas de cabeceira.
Notará que muitas delas são lindas, limpíssimas e têm os
mojos (úberes) ressumantes de grosso leite; outras são
razoáveis, mas estão sujas e seus mojos, posto que meio
grandinhos, não seriam capazes de produzir mais do que três
ou quatro quilos de leite.
Note que você teve a precaução de levar um retireiro de
confiança, para evitar que o mungidor do homem possa
sonegar o produto lácteo, ou, o que também costuma acon-
tecer, exagerar na produção de uma vaca, seja levando um
balde já meio cheio de leite para começar a ordenha, seja com

225
o auxílio do bicarbonato, que endoida a espuma do leite,
fazendo com que 10 quilos possam encher três baldes de oito
litros.
Você, naturalmente, compra as vacas bonitas, limpas, de
úberes cheios, que estão bonitas porque vêm sendo
superalimentadas desde o dia em que o negócio foi
aprazado com o vendedor. Estão limpas porque dormiram
no pasto e têm os úberes cheios porque estão represadas
desde a primeira ordenha de ontem, isto é, não foram
ordenhadas ontem à tarde. E não é impossível que
tenham sido poupadas da ordenha de ontem de manhã.
As vacas sujas, que não produzem mais do que quatro
quilos de leite, embora estejam de bezerro novo (recém-paridas)
e, no fundo, sejam bonitos animais, estão sujas porque foram
fechadas num curral infecto há dias, sem ração e sem o direito
deir aopasto. Mesmo assim, só deram quatro litros na munheca
do ótimo retireiro, que você
levou, porque já foram ordenhadas, hoje mesmo, duas horas
antes de você chegar na fazenda do homem. A turma
não é fácil.
É por isso que o sujeito prático, que vai tirar 50 vacas
por cima, chega de véspera na fazenda do vendedor, às 11 da
noite, pára o jipe numa curva da estrada municipal, entra
pelo pasto sem fazer barulho e fica amoitado no canavial, ali
perto do estábulo, só por conta de anotar, num caderninho,
os nomes que o retireiro grita, na escuridão das duas horas
da manhã, quando vai esgotar as vacas de cabeceira.
Com a luz (recuso-me a escrever bruxuleante) fraquíssima
de uma lamparina, o retireiro grita para o menino, que lá está
na porta do compartimento onde se prendem os bezerros:
Lindóia, Boneca, Leiteira, Primeira, Garrafa, Cascata — e o
menino vai soltando os bezerros, para apojar as mães.
O comprador prático, de cócoras no canavial, vai anotando
numa caderneta: Lindóia, Boneca, Leiteira, Primeira...
Quando cessa o movimento, ele volta de mansinho para o

226
jipe e vai até a rodoviária, para comer um sanduíche e tomar
um café. E volta para a fazenda do homem, muito cerimonioso:
“Bom dia, seu J uca, eu passei na rodoviária etomei a liberdade
de trazer um jornal para o senhor. E também trouxe umas
bisnagas, que são para o café”.
J ornal epão!— presentes prediletos dequalquer fazendeiro.
Custam uma tuta-e-meia e deixam o fazendeiro na maior
felicidade, porque vai comer de um pãozinho fresco, chamado
pão de padaria, em tudo e por tudo diferente dos pães de
queijo, das broas de milho, dos pães de minuto, que deveriam
ser feitos na fazenda se a mulher do produtor acordasse antes
do meio-dia. Como não acorda, o fazendeiro come todo dia
daquela rosca horrível e gordurosa, que deveria ser proibida
por lei, se este país tivesse leis que fossem respeitadas.
É assim que seu J uca, satisfeito com o pão e o jornal, grita
para o retireiro, que lá está no curral esperando as ordens do
patrão: “Pega, Antônio, que nós já vai”.
Deixa estar que o Antônio, como já vimos, pegou às
duas da matina, para esgotar a cabeceira do gado. E
voltou para casa, tomou café, cortou um bocado de
lenha, fez um cocozinho na beirada do córrego e chegou
a sentir um estrimilico, quando viu a comadre, meio
nua, debaixo do peleja que o patrão comprou no inverno
passado — tudo isso no intervalo entre a ordenha
“fantasma” e a ordenha oficial, que vai fazer na
frente do homem que “vai entrar
no gado do compadre sô J uca”.
Quando gritou “Pega, Antônio, que nós já vai”, seu
J uca podia ter gritado nós já vamos ; afinal, ele tem
o primário completo, do tempo em que no primário os
meninos aprendiam, até, a cantar a Marselhesa. E
aprendiam um português melhor do que o dos doutores
de hoje.
Mas ele grita “nós já vai” porque aprendeu a
falar a língua dos retireiros, da maior utilidade para um
produtor profissional de leite. E desce do alpendre, com o

227
comprador prático, para assistir à mungidura.
Compadre Antônio e mais três retireiros, mungidores de
velha e boa cepa, lá estão no curral, descalços para ter mais
“pega”na bosta do chão, ajudados pelo menino que éo lavador
de bicos, luxo que seu J uca só adota quando tem alguém “de
fora” para ver a ordenha, e mais dois meninos, que mexem
com a bezerrada.
Apojadas pelos bezerros, todas as vacas são mungidas
caprichosamente pelos retireiros, que não se esquecem
de escorropichar. Tem no Aurélio? Tem: beber até à
ultima gota, esgotar. É aquele repasse que o retireiro faz, no
fim da ordenha, procurando fazer descer o leite que ainda
possa restar na cisterna do úbere e mesmo acima dela, nos
demais tecidos da glândula mamária. Quer ver escorropicho
bonito é num concurso leiteiro, quando o retireiro vai buscar
o leite que ainda esteja nos chifres da vaca.
O comprador anota os nomes de todas as vacas, vê o leite,
sopra a escuma que se forma na parte de cima do balde, tudo
direitinho, na maior das inocências. E os retireiros afetam
demonstrar, junto com seu J uca, o maior interesse numa
venda limpa, de vacas tiradas por cima.
Terminada a ordenha, é conveniente aceitar o café do
vendedor, horrível e adoçado como todos os cafés rurais, com
o pãozinho da rodoviária, já meio murcho, falar mal do governo,
acertar definitivamente o preço das 50 vacas, a forma do
pagamento e trocar um aperto de mão com o vendedor, que
é velhaco mas tem palavra, é bom que se diga.
Então, e só então, o comprador canta os nomes das vacas
que anotou, quando estava escondido no canavial. Da lista,
constam três vacas de bezerro velho, animais notáveis, que
traziam forquilhas de madeira, como se fossem bodoques
gigantescos, penduradas nos respectivos pescoços. É mimo
reservado, nas bacias leiteiras, para as vacas ladronas, as
varadeiras que não respeitam qualquer tipo de cerca e se
constituem num problema dos diabos, porque acabam

228
pastando no jardim, na horta, onde lhes dê na telha.
As ladronas, mesmo sendo ótimas, ecostumam ser, porque
só comem de ponta, devem ser refugadas. Mas o comprador
as escolheu, porque afagou todas três, como quem não quer
nada, e descobriu que não tinham calo no pescoço, ali no
lugar em que se apóia o couro trançado, que liga as hastes da
forquilha. Portanto, nada tinham de ladronas, já que as
forquilhas foram penduradas de véspera.
Por outro lado, o comprador refugou três vacas excepcio-
nais, que não traziam forquilhas mas tinham calos nos
pescoços. E seu J uca acaba admitindo, mais tarde, na reunião
da cooperativa: “É... o moço me ferrou!”
Também pode acontecer que o meu bom leitor, num
acesso de humildade, se faça acompanhar de um amigo
prático, para escolher as 50 vacas. E tira um gadão:
50 vacas na pinta que você queria, novas, os bicos
perfeitos, notáveis no balde.
Deixa estar que 25 são tuberculosas, o que dá uma
porcentagem de 50%. Mas você é homem prevenido, manda
fazer o exame e pensa que só vai levar as 25 saudáveis.
Na verdade, não deveria comprar nenhuma de um rebanho
tuberculoso, mas resolve arriscar pensando que vai
levar as saudáveis, e só as saudáveis.
Engano seu: vai acabar levando somente as 25 tubercu-
losas, depois do exame feito por seu veterinário de confiança,
que entra na história como Pilatos no Credo.
Seguinte: o veterinário, levando a lista das vacas de sua
escolha, aparece na fazenda do vendedor no primeiro dia livre,
o que sempre demora algum tempo, no caso dos profissionais
competentes e atolados de serviço.
Faz a tuberculinização (ufa!) na prega ânu-caudal (ufa-
ufa!) de cada uma das 50 vacas escolhidas e volta no dia
seguinte, para fazer a “leitura”dos resultados, na mesmíssima
prega, et pour cause.
Em lá chegando, encontrará as vacas tuberculosas sem

229
reação alguma, porque o marreco do vendedor inoculou, dias
antes, 0,5cc do reagente em cada vaca tuberculosa, para
mascarar a inoculação que o veterinário faria depois.
Portanto, você já é feliz proprietário de 25 vacas tuber-
culosas. E pensa que vai levar, também, as 25 saudáveis, mas
fica na intenção, porque elas, que são ótimas de leite e têm
pulmões de ferro e uma saúde geral de aço inoxidável,
apresentam uma reação na prega ânu-caudal, que a leitura
de seu veterinário interpreta, honestamente, como indicativa
da tuberculose.
Afinal, ele não pode adivinhar que o tratante do vendedor
aplicou, horas antes da leitura, na tal prega do rabo da vaca
uma injeção de 10cc de uma solução de óleo mineral (de
cárter, usado...), uma vacina contra aftosa, uma vacina contra
manqueira, qualquer coisa que simule reação à tuberculina.
Temos, portanto, que o meu excelente amigo, agindo com
toda a cautela, assessorado por um sujeito prático, assistido
por um profissional veterinário honesto ecompetente, acabou
ficando sem as 25 vacas saudáveis, enquanto embarcava para
sua fazenda 25 vacas tísicas em último grau, em condições de
protagonizar a jovem Violeta, de La Traviata , enquanto as
Musettas da Bohème , fortíssimas, continuam no curral do
vendedor.
Com a brucelose o negócio funciona de maneira parecida,
posto que mais complexa, porque envolve a troca de animais,
a troca de nomes, a substituição das tampas numeradas dos
tubinhos de sangue, a falsificação dos reagentes, a troca dos
brincos de plásticos, um rolo dos diabos! — em que não é
possível esquecer os atestados fajutos, as guias de favor e
outras safadezas inimagináveis. Havia, no Vale do Paraíba,
um veterinário que atestava a brucelose das vacas de um
rebanho isento e vacinado, para desvalorizá-las e permitir
que fossem vendidas a preços de corte. E continuou solto por
lá.
Os brincos de plástico nas orelhas facilitam a vida dos
vigaristas, a começar pelo fato de que o “gado brincado”, por

230
qualquer fenômeno de natureza psicológica, vale mais do que
o gado sem brinco. É um negócio que inspira confiança aos
inocentes. Na Zona da Mata mineira, gado brincado égadode
procedência, gado controlado, tem garantia de sanidade e
até de pedigree, valendo de saída mais 20% que uma vaca
normal, sem brincos.
Além do gosto duvidoso, os brincos permitem que se
embaralhem os resultados dos exames: é só trocar os
brincos. Bem fazem as fêmeas dos bubalinos, que,
muito simplesmente, comem os brincos plásticos umas
das outras.
Vamos admitir que o meu ilustre amigo tenha escolhido, no
curral de um tratante, as seguintes vacas: Cocota, Filó,
Munheca, Leiteira e Pintada. Na verdade, escolheu mesmo 50
vacas, mas eu não estou aqui para inventar 50 nomes, entre
outros motivos porquetenho coisa mais importantepara fazer.
E o vendedor quer que você leve a Cocota, que é brucélica
e ganhou o nome depois de um surto de aftosa, quando ficou
cocoteira; quer que leve a Filó, que é brucélica e se chama Filó
porquefez um gol a chifradas, no dia em quepegou um menino
e o atirou dentro da baliza do campo de futebol da fazenda;
quer que leve a Munheca, também brucélica (1:300), de tirada
(ordenha)tão dura etão difícil que espaventa qualquer retireiro.
Mas não quer vender a Leiteira nem a Pintada, ambas ótimas
de leite.
Lá está seu veterinário no curral do velhaco, com uma listinha
que sua secretária digitou, durante a semana, no computador
de seu banco: fonte Times New Roman, negrito, tamanho 16,
impressora laser de última geração.
A primeira vaca da lista é a Leiteira, aquela que é saudável
e é excelente; o nome, aliás, é muito sugestivo. E o veterinário,
conferindo a listinha, pergunta: Leiteira? O tratante do
vendedor aponta a Filó, que é brucélica. O veterinário tira o
sangue e escreve no tubinho: Leiteira. À noite, depois de fazer
a soro-aglutinação, vai anotar na lista: Leiteira +.
A segunda vaca é a Filó, que tem brucelose e faz gol a

231
chifradas. E o vendedor aponta a Leiteira, cujo teste desangue,
naturalmente, será negativo. Resultado: Filó -.
A terceira da lista é a Munheca, brucélica, de tirada
duríssima. E o vendedor aponta a Pintada, cujo exame é
negativoporquevocêjá viu que se trata de vaca muito saudável
e ótima de leite. O resultado do exame será: Munheca -.
A quarta vaca é a Cocota. Aí tem um problema, porque o
veterinário não pode vê-la de perto, para não perceber que é
cocoteira, coisa que não percebestes, marreco, porque sois
um excelente banqueiro eum leiteiro aprendiz, pesa-medizê-
lo.
Na emergência, o vendedor aponta uma vaca horrível, que
tem uma saúde de boi de carro. E o veterinário
murmura, entre dentes: “O doutor é uma besta. Isso
lá é vaca que se escolha?” Mas ele não está ali para
analisar as compras e sim o sangue do animal escolhido.
Cocota é brucélica e cocoteira, mas ele tira o sangue
da tal vaca que tem saúde de boi de carro. E o resultado
do exame só podia dar: Cocota -.
Cocota negativa! O negócio vai por aí afora e a
listinha final pode ser multiplicada por dez, porque
fiz amostragem de 10%. E o certo é que a listinha
indica:
LEITEIRA +
FILÓ -
MUNHECA -
COCOTA -
PINTADA +

Viu como foi que você acabou comprando as vacas


brucélicas, enquanto deixava para trás as saudáveis Leiteira
e Pintada? Estás pensando que mato éopen e curral épregão,
ó dealer ! O pessoalzinho da roça consegue ser mais esperto
do que os gravatinhas da Praça XV, certo?
Quem tem o cacoete de perguntar “certo?”éum dos sujeitos
mais ricos do Brasil, dono de minas de ouro, bancos e cavalos

232
de corrida, certo? Certíssimo! Quem é que vai
dizer que um banqueiro está errado?
As fraudes são tantas, a velhacaria é tamanha, a deso-
nestidade é de tal ordem, que sua reação não é de fúria:
é de perplexidade. Foi o que aconteceu com o meu amigo,
aquele quetem todos os cursos da multinacional eque sempre
exclamava, perplexo, no bar da praça onde tomamos nosso
chope: “Veja bem, Eduardo, não foi isso que eu aprendi. Não
me ensinaram a agir assim!” E terminava, invariavelmente,
com um puta-que-os -pariu! solene, que retiro de seus
comentários, porque sei que setrata de homem educadíssimo
e puro de sentimentos.
Note que eu disse, no parágrafo anterior, que o bom amigo
exclamava no bar onde tomamos nosso chope. Continuamos
tomando o chope e ele já não exclama, porque aprendeu,
finalmente, o pulo do gato e hoje é ótimo produtor de leite.
Não é velhaco, porque tem ótima formação moral, mas já
não embarca na conversa dos outros. A derradeira manta
que lhe passaram, a manta ponto final, foi representada pela
venda de 20 vacas de três crias, cuja soma das idades devia
passar dos 360 anos. Se as vacas tinham mesmo três crias,
como o vendedor sustenta até hoje, devem ter começado a
parir depois dos 14 anos de idade.
Estou aqui ouvindo Beethoven em CD; tenho todas as
sinfonias e também tenho meia dúzia de óperas cantadas pelo
Pavarotti e pelo Domingo. O dia está fresco e bonito. O
computador é muito bom. Faltam duas horas para o almoço
e eu poderia, perfeitamente, esticar o papo e o capítulo, mas
não o faço, porque tenho receio dedesanimar o meu bom leitor.
Bobagem... essa conversa de velhacaria. Não deve ser
por isso que você vai desanimar. Os tratantes são muitos,
mas também há gente de primeiríssima qualidade. É com ela
que vocêdeveenturmar-se, para ser muito feliz como produtor
de leite. Tendo cuidados, naturalmente, na hora de comprar
suas vaquinhas...

233
Da conveniência de morar no mato —
O Pr odutor de Leite CCPL, maio de 1974.
Conheço muita gente que diz invejar o fato de eu morar na fazenda e tenho motivos
para acreditar que esse pessoal é sincero. Afinal, que diabo, a cidade grande anda
mesmo insuportável com sua polipoluição e ninguém pode negar as excelências de
uma água de mina congeminada com as facilidades de estacionamento, a poesia dos
passarinhos cantando no pomar e a quietude tranqüila do entardecer.
Outros amigos, e não são poucos, acham que a única forma de o cidadão bem
administrar suas vaquinhas consiste em morar na fazenda. Alinham uma série de
argumentos em defesa de sua tese, a começar pela clássica ilação entre o olho do
dono e o desenvolvimento ponderal do rebanho.
Nisso de ponderal, faço um parêntese para dizer que vi a propaganda oficial de
uma das maiores exposições agropecuárias do país, onde se destacava uma prova
de peso ponderal. Sabem os leitores de O Produtor de Leite que ponderal significa
“relativo a peso” — e sabem também que peso relativo a peso é, na melhor das
hipóteses, uma burrice de peso.
Voltemos aos amigos que julgam indispensável o sujeito morar na fazenda para
bem administrar a propriedade e me seja permitido discordar deles. Para falar a
verdade, acho perfeitamente dispensável morar na fazenda, se o sujeito quer trazer
a propriedade escovada. O melhor fazendeiro que conheço passa 15 dias por mês em
São Paulo e 15 dias em sua fazenda Aguapeí. Outros há que só aparecem na fazenda
nos finais de semana e também conseguem ter propriedades muito organizadas.
Difícil, mesmo, é o sujeito morar na fazenda e trazer o negócio organizado, pela
razão muito simples de que, morando na fazenda, tem contato muito menor com as
coisas da roça do que os que moram na cidade.
Dou aqui uma relação que andei fazendo nos últimos meses, quando verifiquei,
assustado, tudo que afirmei aí em cima. Antes de falar do dia-a-dia aqui na Fazenda
Pau D’Alho, devo pedir desculpas se aborreço os leitores com a crônica de uma semana
de vida na roça — e da conveniência de habitar o mato —, mas preciso do exemplo
pessoal para ilustrar a tese; ousada, por sinal.
Segundas-feiras, como sabe o leitor, são dias reservados para o movimento
bancário, pois os vencimentos diversos, de sábado e domingo, podem ser pagos, ou
reformados, no início da semana. E o movimento bancário é todo feito numa cidade
distante mais de 2 horas da Pau D’Alho, pela razão muito simples de que, na tal cidade,
não sou muito conhecido. Não raras vezes, em questões de crédito, é melhor que o
sujeito seja desconhecido.
Quatro horas de estrada, mais almoço, problemas de estacionamento, ronda dos
bancos e alguma coisa que a gente compra para abastecer a casa, sem contar os
eventuais calista e barbeiro, são mais que suficientes para não deixar que o cidadão
veja nada da fazenda, mas nada mesmo, no primeiro dia da semana.
Mas a terça-feira vem aí; é dia de o sujeito ficar na fazenda, pelo menos até as
6 horas da manhã, porque sempre há alguma coisa para fazer no Rio, ou em Niterói.
Considerando que o cidadão perde ao menos uma hora para tomar banho, fazer a barba,
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tomar café e providenciar os etceteras matinais, é pouco provável que seja possível
ver alguma coisa da fazenda antes das 6 da matina. E como o Rio dista quase três
horas da Pau D’Alho, três para lá, três para cá, é certo que a gente vai voltar para
a fazenda depois das dez da noite.
Quarta-feira: bem, quarta-feira é dia de chegar cedo no Sindicato Rural, que o
tesoureiro lá está com uma porção de assuntos pedindo solução imediata, sem contar
as reuniões da comissão de exposição e a briga da fusão das cooperativas regionais.
Só dá tempo de voltar para a fazenda para assistir ao telejornal que vai ao ar depois
da novela das 10.
Quinta-feira, como parece óbvio, é um dia inteiramente dedicado aos serviços
da fazenda, pelo menos até as 5 horas da manhã, quando ainda está escuro e os
retireiros estão pensando em sair de suas casas. Depois das 5, há uma porção de
coisas para fazer, numa porção de lugares diferentes: despacho do gado vendido,
registros, contratos, guias, escrituras, compra de materiais, etc — sem falar nas
visitas às fazendas que estamos precisando arrendar, para botar aquele gado que está
começando a ficar sem pasto. É quase certo que, depois de gastar 80 contos de
gasolina, dê para pensar em jantar na Pau D’Alho, geralmente a tempo de assistir
na TV a um programa que vai ao ar quando faltam 15 minutos para as 10 da noite.
Na sexta-feira, último dia útil da semana, ninguém pode pensar em ficar na
fazenda, quando se sabe que há uma porção de coisas para fazer na cidade, no
sindicato e na cooperativa. Como o dia é curto e a cidade, distante, é preciso sair de
casa bem cedo, se a gente quer estar de volta para o jantar, antes de dar os retoques
finais nos livros que estão no prelo e na segunda edição de um outro livro, esgotado
há muito tempo.
No sábado, quando não temos convites irrecusáveis para visitar aqueles amigos,
que vivem reclamando que a gente não aparece, e que têm fazendas distantes duas
ou mais horas da nossa — é que o sujeito pode se trancar no escritório para escrever
diversos artigos, para diversos veículos especializados, além de preparar os pagamentos
da semana. Disso resulta que o máximo que se consegue fazer, num sábado, é
inspecionar o jardim da sede, para constatar que a tiririca tomou conta do gramado
de maneira quase irreversível* .
No domingo, aí sim, é possível perguntar ao compadre quais foram as ocorrências
da semana e como vão de estado os pastos e as capineiras, tudo muito por alto, quando
o dia está clareando. A partir das 9 horas da manhã (às vezes antes das 7h...), a casa
já está cheia de visitas que vêm assistir às corridas do Dr. Fittipaldi na TV colorida,
novidade absoluta aqui na região, e os jogos da seleção, antes do Fantástico, o show
da vida.
E o sujeito que tem uma população flutuante de 30 visitas, em volta de uma imensa
Phillips, não pode pensar em vaca, nem em fazenda, porque precisa manter os
telespectadores abastecidos de martínis, uísques, salgadinhos, gelo, almoços e
jantares, sob pena de passar por mau anfitrião. Adoro morar na fazenda.

*Cortada toda semana, a grama de Batatais acabou liquidando com a tiririca.

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COMES & BEBES —
NA CONJUNTURA

Mestre de várias gerações de zootecnistas da grande es-


cola de Piracicaba, meu saudoso amigo Prof. Walter Ramos
J ardim gostava de dizer que “depois de ler um caminhão de
livros sobre nutrição de bovinos respeito, cada vez mais, as
opiniões do ambiente eda vaca”. A genialidade da observação
do mestre não chega a ser compreendida em alguns auditó-
rios, como vi recentemente, quando um estudante barbudo,
magrinho, em vésperas de se laurear numa ciência ligada à
produção animal, interrompeu minha palestra parapergun-
tar: “E como é que a gente pode saber qual é a opinião da
vaca?”
“Pastando com ela” — deve ter sido minha resposta.
Se o barbudinho não tem culpa de sua ignorância, você
também não me deve culpar se este capítulo não chega a ser
um estudo completo sobre alimentação de bovinos leiteiros,
ou, o que seria muito mais chique, uma “contribuição para
o estudo da fisiologia da digestão dos ruminantes”. Tenho
diversos motivos para não fazer, aqui, um manual de nutrição,
e o primeiro é excludente dos demais: não entendo
rigorosamente nada de nutrição de bovinos.
Dir-se-á que o motivo é irrelevante num país onde a
ignorância promove e rende dividendos, como é o caso do

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Ministério da Agricultura, em que a primeira condição para
um patrício assumir a pasta é não ter a menor noção de
agricultura e pecuária. Ou, pelo menos, costuma ser a
condição primeira.
Ainda assim, prefiro abster-medediscorrer sobrenutrição
dos ruminantes. É certo que podia pinçar alguns trechos de
Maynard, J ardim, Morrison e outros de igual valor, como
também podia aproveitar o trabalho notável do professor
Homero Abílio Moreira, preparado para um seminário da
Nestlé. O grande professor sempre me honrou com sua
amizade. Não seria difícil pedir-lhe que me orientasse na
composição do capítulo, que resultaria soberbo, com a só
condição de eu limitar minha contribuição ao serviço de
datilografia.
Mas é o caso de dizermos como aqueles autores portugue-
ses: “Somos francos em considerar a utilidade muito relativa
do nosso trabalho, dado o alto grau de baixo nível do nosso
povo”.
Falamos de proteínas, carboidratos e fibras, para que o
nosso caro produtor de leite, convenientemente informado,
acabe deixando a nutrição de suas vacas a cargo do mais
analfabeto dos retireiros. Esforcei-me ao máximo no capítulo
sobre nutrição do meu livroA arte de amolar o boi , aprontando
um negócio supimpa, cheio de conselhos que eu próprio não
consegui seguir. Assino-os de cruz, ainda hoje, porque são
válidos e continuam atuais.
Mas a realidade do curralzinho leiteiro, os caminhos
escorregadios das serras, os retireiros que ignoram
os nomes das vacas e mesmo os de suas excelentíssimas
genitoras, que lá estão no córrego lavando umas
roupinhas e cuspindo palavrões, tudo contribui para
complicar o planejamento nutricional do negócio leiteiro.
Tive dois empregados que não sabiam os nomes de suas
mães, quando precisei preencher umas fichas do Funrural.

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Não se tratava de órfãos ou enjeitados: os dois viviam com as
mães e não sabiam seus nomes de batismo.
Diante da realidade de nossas bacias leiteiras, que reflete
a realidade nacional, vou atacar o presente capítulo muito
pela rama. Não creio queseja necessária uma sólida formação
técnica para quem, como eu, só pretendedizer duas coisinhas
de fácil digestão. Caso contrário, ninguém poderia compor
um período tão simples como: “Sou gordo, feio etímido: chove
torrencialmente, vou deixar na garagem o meu ótimo carro e
aproveitar para tomar dois goles de um bom vinho português”.
Quanta ousadia! Gordura, feiúra e timidez requerem o
aval de endocrinologistas, esteticistas, psicólogos e filósofos;
só o engenheiro mecânico pode dizer se o carro é ótimo; o
julgamento da chuva deve ficar por conta do meteorologista;
vinho pede s ommelier e enólogo. E eu tomo o tempo do leitor
com essas asneiras, quando as vacas leiteiras dispensam a
literatice e não dispensam a comida.
O melhor e o mais racional dos alimentos que se pode
proporcionar a um herbívoro ruminante é o pasto de
boa qualidade. Depois vêm as capineiras, o feno e a
silagem, ou a silagem e o feno, dependendo da região.
As sobras das capineiras não devem ficar no campo
fazendo vestibular para bambus, nem devem ser dadas
no cocho depois que se transformaram em varas de
pesca. Devem ser guardadas nos silos enquanto ainda
têm qualidades nutritivas. Não adianta ensilar vara
de pesca; o processo da ensilagem não faz milagres. Quem
ensila porcarias só terá porcarias para alimentar suas vacas.
Uma capineira deelefante, emterreno adequado, sepossível
com irrigação, produz mais de 200 toneladas de matéria verde
por hectare/ ano. Produções de 400 toneladas são incomuns,
sem ser impossíveis. Se não fosse pelo receio de passar por
mentiroso, eu contaria aqui os números que obtive numa
capineira de cameroun fertilizada com nitrocálcio e adubada

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várias vezes com esterco líquido de curral, na pesagem dos
nove cortes anuais. Ainda hoje tenho testemunhas vivas das
novepesagens, que não foram feitas com muito rigor científico,
numa balança de precisão, por pesquisadores habilitados.
Mas foram feitashonestamente ea produção anual de matéria
verde foi um assombro.
As foices e as facas de cortar capim maltratam menos
os capins da família do elefante do que os cortes com equi-
pamentos do tipo Taarup; o diabo é que o corte manual é
serviço enjoado, comichoso e inviável nas grandes fazendas.
Alguns ecótipos (!) da variedade cameroun do capim-
elefante são chamados capim-aviso-breve, corruptela
de aviso prévio, porque o empregado volta da capineira
e pede as contas, desesperado de tanto se coçar.
Contudo, a variedade que plantei não espetava, nem
comichava, em qualquer estágio do crescimento, que
pode chegar, mas não deve, a mais de seis metros de
altura.
Segundo depoimento de vários criadores, o cameroun não
presta para ser colhido mecanicamente, por equipamento tipo
Taarup, o que é péssima notícia nestes dias
de capineiros escassos e preguiçosos. Contudo, alguns outros
implementos de corte mecânico, de acordo com os mesmos
criadores, cortam o cameroun sem muitas perdas.
Bom mesmo, antes de formar sua capineira, é visitar uma
boa escola de agronomia, ou um centro da Embrapa, para ver
quais são as últimas novidades e optar pela melhor. Os bancos
de germoplasma forrageiro (putz!) da Embrapa trabalham
com dezenas de variedades do capim-elefante e podem dizer
qual é mais indicada para aquilo que você pretende fazer.
J á que estamos a falar de vários assuntos, sempre muito
pela rama, deixem-me dizer que além dos pastos, das
capineiras, do feno e da silagem, os melhores alimentos para
uma vaca leiteira costumam ser aqueles disponíveis na região,

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a preços suportáveis. Entre eles, a mandioca, o melaço de
cana, o bagaço de cana, o resíduo de cervejaria, polpas de
laranja e outras frutas, cama-de-galinha e por aí afora.
Há quem tenha estômago e organização para recolher, nas
cidades, o bagaço das frutas espremidas nas casas de sucos,
tratando de suas vaquinhas com enorme sucesso.
Não se impressione se um alimento não lhe parecer gos-
toso, depois da prova de língua e nariz que os produtores
gostam de fazer; o conceito de palatabilidade da vaca é muito
diferente do seu. É muito possível que ela não aprecie o
roquefort e o camembert malcheirosos, que nos fazem bem às
almas de gulosos. E o farelinho de trigo, petisco que é capaz
de endoidar uma vaca, é um negócio rigorosamente
insuportável para a espécie H. sapiens , como constatei
quando andei com a mania de comer fibras para agilitar
minhas tripas.
Em última análise, lembre-se de que você não alimenta a
vaca e sim as bactérias do rúmen, que é uma espécie de cuba
de fermentação. Nem tudo que é bom para uma bactéria é
gostoso para o dono da vaca, já dizia o conselheiro Acácio.
Ao organizar sua criação, atente para o fato de que vive-
mos num planeta onde as pessoas se multiplicam numa
velocidade quase tão grande quanto a das bactérias de um
leite sujo, guardado a 40ºC, sem formol, iodophor, antibióticos
ou águas oxigenadas. Portanto, cada vez fica mais difícil, e faz
menos sentido, se é que já fez sentido, tratar
dos animais com alimentos que podem ser consumidos
diretamente pelos bípedes que se dizem pensantes,
porque só pensam besteiras.
Milhões e milhões de brasileiros passam fome neste
momento; entre eles, o patrício que lhes fala, com
o maldito regime começado anteontem. De regime, não
posso comer milho verde com manteiga derretida e sal,
angu, canjica, curau, pamonha e outros alimentos

240
engordativos, uns melhores, outros piores; mas o resto da
população pode comer do milho e seus produtos.
Não tem sentido esperar que o milho alimente a vaca, para
depois comer da vaca ou beber-lhe o leite, quando os bovinos
têm especial aptidão para transformar o capim verde em carne
e leite, desde que sejam animais adaptados ao meio.
A reciclagem dos alimentos reduz consideravelmente sua
eficiência, comoacentuou J oão Soares Veigano XIV Congresso
deMedicina Veterinária. O grandeprofessor brasileiro, nascido
em Portugal, chamou a atenção dos congressistas para as
perdas dos valores nutritivos das algas, que somam 95%, ou
mais, naquele processo em que servem de alimento para os
camarões e outros moluscos, de que se alimentam os peixes,
que servem de alimento para as focas, que são consumidas
pelos esquimós.
Através da cadeia alimentar, são despendidos 675 quilos
de algas para promover o ganho de um quilo de peso do
sorridente esquimó, quando bastariam cinco quilos de algas
para engordar o malandro, se as pudesse consumir
diretamente.
Não julgo que se deva retardar por mais tempo, ainda,
a adoçãoda cama-de-galinha comoalimento normal em todas
as explorações leiteiras, onde seja possível obter
aquele subproduto da avicultura a preços educados. É ali-
mento riquíssimo para ser usado como adubo. Outro alimento
riquíssimo, mas quetalvez transmita cheiro aoleite, éo esterco
verde de suínos, tal e qual é lavado do piso das modernas
granjas. O gado de corte adora.
A idéia vitoriosa de aproveitar aquele subproduto da
avicultura racional tem levado algumas pessoas a sonhar
com uma espécie de moto-contínuo alimentar, em que o
resíduo de trigo sirva de cama para as galinhas, que depois
poderia ser usada para alimentar os porcos, de cujas dejeções
se alimentariam os patos, que por sua vez fazem um cocozinho

241
muito do agrado das tilápias, ao que se diz por aí.
Tive oportunidade dever demonstração deum anteprojeto
do gênero, na fazenda de um jovem empresário que andava
em lua-de-mel com a tecnologia, anterior à etapa do
desencanto, representado pelo contato com a realidade.
Vi quando um técnico peruano discorria sobre as
vantagens de um “projeto integrado” visando ao apro-
veitamento de resíduos, camas, cocôs, o diabo! para uma
platéia encharcada de uísque, obliterada de salgadinhos, na
maior perplexidade com a problemática protéica e energética
no meio rural. Tudo era aproveitado; a rigor, só faltava
aproveitar o cocô da tilápia. Foi quando o jovem empresário,
que já tinha o porco, a galinha e o pato praticamente “de
graça”, resolveu perguntar: “E o que é que
eu faço com a tilápia?”
Tratei de alguns lotes de novilhas com cama de
poedeiras, velha de mais de dois anos de uso, que
triturei com penas e tudo num moinho de martelos,
produzindo um pó fino e aborrecido, que levava os
empregados ao desespero. Em bom português, deve ser
o tal subnitrato de pó de merda, que cola nos cabelos
e nos corpos dos compadres, fazendo que peguem no
serviço até tarde da noite: “Assim, a gente fica livre
desse inferno!”
O pó entra pelas narinas, pelos ouvidos e pela
boca, onde sabe a chocolate, porque a cama triturada
tem leve cheiro de cacau.
Transformando-se em nuvem, o pó tem misterioso
sentido de orientação, porque escolhe para pousar na
piscina e na sede da fazenda. Sei que a construção
de um quarto próprio para moer cama-de-galinha evitaria
todos os problemas. E quem foi que disse que um
produtor de leite pode mandar construir uma fabriqueta
de moer bosta, quando os compromissos bancários

242
pipocam de 15 em 15 dias?
Qual é a opinião das vacas sobre a cama-de-galinha
triturada e misturada, no início, com um tiquinho de
açúcar cristal? A melhor possível. Nos primeiros
dias, ainda ficam sestrosas, mas acabam se acostumando
de tal maneira que sentem falta da cama regulamentar.
Várias vezes vi a cena representada por um lote de novilhas,
confinadas no período mais crítico do ano, quando já não
havia um único fiapo de capim nos pastos.
Chegava a carroça de capim verde picado, capim tenro, de
capineira irrigada, que era jogado no cocho do confinamento.
E as novilhas nem se dignavam de botar a boca no capim.
Quando, finalmente, o empregado esparramava sobreo capim
verde os sacos de bosta de galinha, os animais se atiravam à
mistura com um entusiasmo de lamber os beiços.
No princípio, atribuí a gula ao pouquinho deaçúcar cristal
que misturava ao farelo de cama e penas, para melhorar a
palatabilidade e aumentar a energia da ração. Depois que os
preços do açúcar cristal foram para a estratosfera, deixei de
usá-lo na mistura mas as novilhas continuaram pegando a
cama com o maior entusiasmo.
Nesse tempo, o custo de um quilo de cama moída, com
açúcar, não computado o custo social da sujeira da
piscina, era de cerca de 25% do preço de um quilo de
ração balanceada. Sou capaz de apostar que tinha
maior valor nutritivo.
Falei da ração balanceada, de que você não vai
mesmo escapar. A única exceção à regra é um amigo de
J uiz de Fora, que trata de 40 vacas leiteiras com um
saco de farinha de trigo, de varredura, por semana.
Certa feita, o padeiro deixou cair no chão a farinha
de um saco rasgado e reservou o produto para meu amigo
levar para a fazenda, naquele fim de semana. Mas o
donatário da varredura do segundo saco não quis

243
aceitar a oferta, com receio de acostumar mal o gado.
Criando gado de alta produção e alguma delicadeza, você
não escapa da ração balanceada e se transforma em freguês
decaderno do distribuidor regional; se criar gado mais rústico,
vai ver que pode dispensar a ração, a exemplo de milhares de
criadores, mas vai perceber que a eficiência reprodutiva do
rebanho costuma diminuir. Como você precisa de bezerros,
para ter leite e bezerros, o negócio fica meio complicado.
A realidade de nossas bacias leiteiras inclui pastos
praguejados, superpovoados e inteiramente raspados de
plantas forrageiras; capineiras que, não raras vezes, têm o
valor nutritivo de uma vara de pesca moída; o feno costuma
estar mofado e a silagem é, quase sempre, da pior qualidade,
porque foram aproveitadas as varas de pescar da capineira
do ano anterior. E agora, J osé?
Nos anos em que sofri o problema no bolso, os preços do
leite, numa relação direta com os preços das rações de boa
qualidade, variaram bastante. Houve um período, relativa-
mente curto, em que se podia comprar um quilo deração com
o produto da venda de meio quilo de leite — preço pago ao
produtor. Mas a regra quase geral foi a paridade ou, o que
também aconteceu, um quilo de ração custar mais do
que o produtor recebia por um litro de leite.
Dirá vocêque o negócio, ainda assim, é muito interessante,
porque as fábricas recomendam que se dê um quilo de ração
para cada três ou quatro quilos de leite produzidos,
eventualmente cinco, dependendo de uma porção de fatores
tão variáveis como o estado de espírito do redator dos folhetos
das fábricas até o estado das vacas e dos pastos, passando
pela situação do bolso do fazendeiro.
No cálculo do custo de um litro de leite a ração balanceada
éum dos itens; os outros são tantos que acabam não deixando
margem para a compra da ração.

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J unte-se o fato de que a eficiência do produto, discutível
pela tenebrosa desonestidade que vai por aí, é prejudicada
quando sua distribuição fica a cargo de um retireiro
analfabeto, que tem simpatias e antipatias, como todos nós,
e não embolsa o produto da venda do leite, nem desembolsa
o pagamento das notas de ração.
Vacas simpáticas, pela óptica do obreiro, ganham uma
poeirinha de farelo a mais, só para desaguar. E as vacas
antipáticas não chegam a receber tudo aquilo que merecem,
ainda quando sejam boas produtoras.
Se um pênalti é tão importante que deve ser batido pelo
presidente do clube, a distribuição da ração deve ficar a cargo
do fazendeiro. Mas não está, porqueele precisa ficar na cidade,
tentando ganhar dinheiro para pagar as notas da ração.
Muitas fazendas americanas e algumas fazendas brasi-
leiras já automatizaram o arraçoamento, que é calculado,
controlado e distribuído pelo computador de acordo com
a produção de cada vaca, seu estágio de gestação e todos
os outros fatores que entram nos cálculos. É coisa de Primei-
ro Mundo, fora do alcance da maioria esmagadora de nossos
produtores de leite.
Se eu disser, aqui e agora, que as rações formuladas
por todas as fábricas são de qualidade duvidosa,
estarei cometendo uma injustiça e uma leviandade.
Admitamos, portanto, que algumas rações sejam de boa
qualidade. Mas se me fosse possível estabelecer um
critério para a escolha da ração de saco a ser
utilizada em sua fazenda, eu recomendaria a compra
da mistura feita na fabriqueta de sua cooperativa, onde você
está de olho nos ingredientes mistu rados e ninguém vai usar
pó-de-pedra, casca de arroz, bagaço moído, calcário
dolomítico e outros “alimentos”, que só engordam os donos
das fábricas.

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Houve tempo em que a Cooperativa de Argirita, em Minas
Gerais, dirigida pelo abnegado J ônatas Ferreira de Toledo
J únior, produtor deleiteemédico-veterinário, fabricava ração
de excelente qualidade, vendida a preços muito mais do que
razoáveis. Como era compreensível, dava preferência aos seus
cooperados, já que o produto era vendido a preço de custo.
Ainda assim, algumas vezes consegui comprar de sua ração,
em tudo e por tudo melhor do que as vendidas pelas
multinacionais, em sacos impressos pelas mais modernas
técnicas de marketing.
Não sendo possível adquirir de uma cooperativa regional,
acho melhor, e mais barato, fazer a mistura em casa. O
misturador é máquina relativamente barata, ao alcance do
bolso de qualquer produtor médio. E as fórmulas também
são relativamente simples.
Se o fazendeiro tem onde estocar os ingredientes ne-
cessários, e arranja cota de resíduo de trigo, distribuída
durante anos pela Sunab, de que não quero falar para não
sujar este livro, acho que deve misturar a ração na fazenda:
é melhor do que a do comércio e fica mais em conta. Mas dá
uma aporrinhação que vou te contar...
Deve ser por isso que quase todos caímos na ração das
multinacionais. Tenho bons amigos na direção de algumas
fábricas, de remédios ou de rações, degrandes multinacionais.
Todos me afiançam que a formulação de seus medicamentos
e seus nutrimentos é a mais criteriosa possível. E todos se
queixam de que trabalham com enorme prejuízo.
Entre o depoimento de um amigo e a evidência dos fatos,
fico sempre com o amigo.

246
Morrison, gasolina e cobre —
Cor r ei o Ag r o-pecuár i o, maio de 1972.
Um vizinho aqui do Cantagalo costuma circular pelas estradas esburacadas da
serra metido numa fubica antediluviana, sem freios e sem faróis, com os pneus
inteiramente carecas e uma coleção de arames, lisos e farpados, substituindo peças
e parafusos. Esquecido da espantosa precariedade de seu veículo, o bom vizinho
costuma dizer com ar de conhecedor: “Só uso gasolina azul”.
Guardadas as proporções, creio que se está fazendo com os sais minerais, na
pecuária, a mesmíssima coisa que o vizinho faz com a gasolina azul. E todo mundo
entrou firme na mineralização do gado, como se os minerais, sozinhos, pudessem
levar um rebanho para a frente.
Ainda outro dia, visitei três fazendas de criadores que não dispensam o Doutor
nem mesmo nas placas pregadas nas porteiras. E o que vi? Rebanhos famélicos, sem
qualquer suporte veterinário, sem orientação técnica ou zootécnica, circulando em
pastos em que as vassouras e os assa-peixes andam de
mãos dadas com o sapé e a samambaia — tudo isso nas imediações de um estábulo
supimpa.
Sim, porque o brasileiro tem a mania dos estábulos e das “instalações”. E muito
antes de selecionar o gado, de alimentar o gado, de vacinar o gado — quer instalar
o gado. Pastos, genética, aftosa, capineiras, silos, brucelose, fenis — tudo parece
bobagem desde que o gado esteja bem instalado. Bem instalado
e mineralizado!
Nas fazendas que visitei, onde o estado de subnutrição dos animais era de causar
espanto, encontrei cochos imponentes, cobertos de telhas de primeira, cheios de sais
minerais até a boca. E osdoutores , satisfeitos, informavam: “O gado está mineralizado”.
Assim, quando uma vaca pede capim, recebe cobre; se pede ração, ganha
molibdênio; se pede farelinho, merece boro; se pede uma poeira de torta, leva zinco,
ou um sulfato misterioso. E vai vivendo a vida, devidamente mineralizada...
Um amigo meu, técnico da ACAR-MG, é meio reticente quanto aos milagres dos
sais minerais, baseado em estudos que efetuou em diversos municípios mineiros.
Mas eu não vou tão longe quanto esse amigo e procuro manter o gadinho aqui de casa
muito bem servido de tudo quanto é mineral que encontro no mercado*. Tenho cochos
com três divisões e deixo a critério da vaca a ingestão de cada produto, ou de tudo
de cambulhada.
Procuro, ao mesmo tempo, entupir a goela dos bichos de comida, para que os

*Em 1972, eu ainda acreditava em mistura mineral “de marca”. Mais tarde, evoluí para
misturar em casa, ao sal comum, os produtos de que havia carência em nossa região,
com ótimos resultados zootécnicos.

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minerais possam complementar a comilância, suprindo as deficiências e coisa e tal
et coetera.
Outro dia, um especialista em fisiopatologia da reprodução disse que eu precisava
emagrecer o gado, referindo-se especificamente a uma vaca entrada em seu quarto
mês de lactação. Nunca recebi uma crítica com tamanha satisfação, pois a tal vaca
estava dando 20 quilos de leite por dia, subindo morros a galope, e já tinha sido coberta
pelo honesto Abacate.
Se a vaca vai para 2.400 quilos de leite em quatro meses, e vai ter mais uma cria
com intervalo entre partos de menos de 13 meses, e está entrando o inverno rolando
na banha — o fisiopatologista pode espernear à vontade, que não modifico o esquema.
Devo confessar que, apesar de minhas investidas furiosas no Morrison, sinto
que me falta base para estabelecer um plano correto de nutrição. Faço tremenda
confusão com toda aquela história de NDT, e relação nutritiva, e proteína digestível.
Nessas condições, procuro caprichar nos pastos — soja perene com gordura — e no
manejo racional (???) dos ditos-cujos.
As vacas de maior produção são suplementadas com uma ração comprada em
sacos de papel, no distribuidor do município, e as de menor produção também acabam
comendo da tal ração, porque o Waldyr retireiro gosta de tratar escondido, e eu gosto
que ele trate escondido. Assim, tenho a impressão de estar fazendo zootecnia
(adaptação econômica do animal, etc.) e digo nas reuniões da cooperativa que minhas
vacas recebem um quilo de ração para cada quatro quilos de leite, a partir dos oito
quilos — e o Waldyr, muito em silêncio, como todo bom mineiro, vai suplementando
as outras vaquinhas “qu’é pr’elas não aguá”.
A fórmula do Cantagalo, portanto, compõe-se de boa fé (eu acredito na tal ração
de saco de papel*, embora o Waldyr prefira a torta de algodão) e de bons pastos, não
tão bons quanto seria de se desejar, mas bem melhores que a média.
Com a entrada do inverno, muito rigoroso nestas bandas, o esquema de rotação
de pastagens vai de grota, mas temos quatro silos cheios, muitas capineiras meio
passadas, que sempre dão celulose, ou fibra, sei lá, para encher as barrigas das vacas,
e as indefectíveis pulverizações de melaço e farelinho, que talvez contrariem nosso
Morrison, mas satisfazem as vacas.
Mesmo porque o Morrison fica quieto na estante, apesar das burrices do meu
esquema nutricional, mas as vacas desandam num berreiro infernal, se lhes faltar
comida a tempo e a hora.

*Pois é... também já fui crédulo.

248
NOTAS
MEDICINAIS

“Numa fazenda leiteira, assistência veterinária é in-


dispensável?”, pergunta você, que andava meio esquecido de
fazer indagações. E vou logo respondendo que não: indis-
pens ável não é. Cito, como exemplos, dois dos maiores
produtores da região de Três Rios, Rio de J aneiro, que não
tinham em 1980 assistência veterinária permanente; não ti-
nham nem sequer assistência eventual. Posso exemplificar,
também, com dezenas de milhares de fazendas leiteiras,
grandes e pequenas, que não se valem da assistência de um
veterinário.
J á sei que o parágrafo anterior fará desabar, sobre o meu
velho costado, a fúria indignada de uma porção de
veterinários, como aquele infeliz da Cati paulista, que nada
entende de sua profissão, é inteiramente debilóide e entupiu
minha caixa postal, durante anos, de cartas escritas em
péssimo português, provando que sou uma cavalgadura;
“inimigo da classe”, ainda por cima.
O primeiro parágrafo deste capítulo, deresto rigorosamente
verdadeiro, escrevi-o de propósito para mexer em casa de
marimbondos. E agora, quejá os tenho em revoada assassina,
posso dizer quenão sei demelhor investimento, numa fazenda
leiteira, do que aquele que se faz com a assistência regular de

249
um bom profis sional da medicina veterinária. É sempre um
investimento que tem retorno, não raras vezes em curtíssimo
prazo.
Os dois produtores citados não são os maiores porque não
têm veterinários; são os maiores apesar disso. Acho que deu
para entender. Como também é fácil entender que certos
veterinários, que seencontram por aí, podem ser mais perigosos
para um rebanho queos vírus aftoso eda raiva dos herbívoros,
juntos.
Há profissionais rigorosamente despreparados, como, de
resto, os há em todas as profissões. A ignorância, em sentido
lato ou no terreno específico da profissão, não é privativa de
alguns veterinários: médicos, agrônomos, economistas,
jornalistas, engenheiros, advogados e todos os demais
doutores têm alguns colegas, alguns muitos colegas, que
desonram edeslustram as respectivas categorias profissionais,
constituindo-se numa espécie de perigo público.
Estabelecido o fato de que você deve contratar um bom
veterinário, posso deixar por conta dele todos os serviços
relacionados com a saúde de seu rebanho. São trabalhos de
sua exclusiva competência.
Com isto, dispenso-me da necessidade sempre maçante
de escrever laudas e mais laudas sobre o problema da
brucelose e da aftosa. Dispenso-me, também, da
necessidade sempre desgastante de dizer que as misturas
minerais “de marca”, ainda quando tenham mesmo todos
aqueles pozinhos que dizem conter, não são mais
eficientes, nem mais baratas, do que as misturas
feitas de acordo com as necessidades de cada região
pastoril.
Quando escrevi A ar te de amolar o boi , no entusiasmo
dos meus trint’anos, andei metendo o pau nas misturas
comerciais num capítulo muitíssimo caprichado e rigoro-
samente irrespondível, que se intitulava “Onde se conta como
o ilustre fazendeiro vai entupir os seus gados com uma série
interminável de sais minerais, para alegria dos laboratórios e

250
tristeza do seu bolsinho”.
Depois, atormentado com as investidas dos vendedores de
misturas minerais (num sábado, recebi as visitas de cinco
representantes de laboratórios!), que tentavam me convencer
das excelências de seus produtos, plantei uma placa enorme
na porteira da fazenda: É PROIBIDO RECLAMAR DA
ESTRADA E VENDER SAIS MINERAIS.
Livrei-me dos vendedores e dos demais chatos, que viviam
reclamando dos buracos da estrada municipal, como se eu
fosse o responsável por eles. Tivemos um casal amigo que
adorava a piscina, o passadio, os cavalos e os uísques lá da
fazenda, com a só condição de não botar seu Puma na estrada
esburacada. Depois de mandar buscá-los, várias vezes, num
posto de gasolina onde acabava o luxo do asfalto, achei que
era desaforo.
No que respeita aos sais minerais, quiseram os fados que
um dos meus bons amigos adquirisse, no final da década de
70, uma fábrica derações que produz mistura mineral muito
conhecida.
Esse amigo tem a grande qualidade, entre outras igual-
mente estimáveis, de não se esquecer de mim quando vai
à Europa, o que faz com freqüência. É assim que venho re-
cebendo algumas caixas dos melhores charutos de Havana,
vendidos nos fr ee s hops do mundo inteiro.
Devo admitir que, além da mania de fumar bons charutos,
tenho certa propensão para a gratidão. Assim, comecei a ajudar
nas vendas da mistura mineral do bom amigo, recomendando-
a para aqueles que não dispensam uma misturinhade marca,
apesar do que escrevi sobre elas no outro livro.
Tenho por mim dois argumentos que julgo atenuantes: a)
jamais recebi qualquer comissão pelas vendas que fiz; b)
nunca, jamais, em tempo algum, depois que me compenetrei
dos inconvenientes das misturas de marca, recomendei o
uso de uma delas. O que digo é o seguinte: “Se você não
dispensa a compra de misturas comerciais, não custa

251
experimentar o sal do meu amigo”. Esse, ao menos, põemesmo
na mistura tudo que diz botar, o que não quer dizer que eu
ache os tais ingredientes necessários.
Chegamos ao final deste capítulo? Estamos quase.
Você vai verificar que as enfermidades não chegam a
constituir problema numa fazenda leiteira, se o gado é
adaptado ao meio e está bem-alimentado (Bonsma). Raiva,
manqueira, brucelose, aftosa, vibriose, tricomonose e outras
doenças constituem problemas, sim, e problemas da maior
gravidade. Algumas têm vacinas eficientes; outras, requerem
medidas de ordem profilática, sempre a cargo e sob a
supervisão do seu bom profissional veterinário. As enfermida-
des a que Bonsma se refere são as outras, que não chegam a
constituir problema se o gado é adaptado e está bem nutrido.
Você vai ver que o maior inimigo da saúde dos bezerros
continua sendo o preço do leite. E vai ver que a eficiência
reprodutiva do rebanho tem relação estreita com os níveis
gerais de nutrição: alimentação equilibrada = cio = bezerro;
baixo nível nutricional =anestro carencial.
Recuso-me terminantemente a falar sobre o problema das
mastites, que formam, com os preços do leite, os dois flagelos
das bacias leiteiras. Os medicamentos contra mastites estão
cada vez mais sofisticados emais caros, o quenão tem impedido
que o espectro dos peitos enguiçados ronde permanentemente
os estábulos. Evite fuzilar seu retireiro na hipótese de uma
vaca perder o bico; sua raiva não contribui para a recuperação
do peito perdido e costuma resultar na perda do empregado,
que nem sempre tem culpa.
Muito a propósito, quero antecipar aqui um episódio que
vai acontecer com o meu ilustre fazendeiro, numa noite de
sexta-feira, depois de quatro horas de viagem até a fazenda,
fecho tenebroso de um dia inteiro às voltas com a fiscalização
do Banco Central, afinzona de pegar um dos trambiques de
sua corretora.
Arrogantes, perguntadores, futriqueiros, os inspetores do

252
BC resolveram encerrar o expediente depois das cinco horas
da tarde, quando você gosta de viajar para a fazenda antes
mesmo do almoço.
É quase noiteesua mulher ainda não voltou do cabeleireiro,
como se uma sexta-feira, dia consagrado à viagem para a
fazenda, fosse dia de freqüentar cabeleireiro.
Você tem a cabeça a ponto de estourar. De dor, de raiva
dos inspetores e de sua mulher, que continua debaixo do
secador. Os meninos, em casa, estão prontos desde cedo,
esperando que a mãe passe para apanhá-los.
Finalmente, pinta o Mercedes, com a família inteira, na
porta do escritório, comboiado pelo Santana com os quatro
seguranças. Você engole às pressas mais dois comprimidos
de Bufferin, porque não acredita na aspirina tupiniquim,
dispensa o motorista e assume o volante do belo 12 cilindros,
não sem antes recomendar aos seguranças que deixem um
espaço civilizado entre o Mercedes e o Santana. Dois meses
atrás, você freou e o Santana, com os quatro gorilas armados,
entrou pela mala do seu Mercedes.
Ansioso para chegar na fazenda, onde vai encontrar de
bezerro a mais velha de suas novilhas, você parte em
disparada. Três dias antes, pelas vias tortuosas deum celular
ininteligível e inaudível, seu empregado mandou avisar que
a Primeira estava de bezerro.
Tão mansinha, a Primeira; etão bonitinha!Primeira bezerra
ao nascer, logo que você comprou a fazenda, foi criada com
um carinho, uma atenção e uma ração que não conheceram
limites. Alisada, afagada, escovada, mimada, paparicada pela
família inteira transformou-se no cartão de visitas de sua
propriedade rural.
Não está no gibi o número de vezes que você aporrinhou
seus amigos com aquela mania de ir ao curral, nos dias de
chuva, ou nas horas do sol forte, só para mostrar a Primeira:
“É minha cria!”, você dizia, todo lampeiro, com um orgulho
que se esqueceu de demonstrar quando nasceu o mais velho
dos seus filhos.
253
Aquele mesmo que lá está, no banco traseiro do Mercedes,
brigando com o menorzinho. O trânsito éinfernal. Você ainda
precisa abastecer o carro no posto de sempre, lá no alto da
serra, para fugir dos postos brabíssimos da Baixada
Fluminense.
Na saída da cidade começa a chover forte e o trânsito volta
a engarrafar, de maneira quase irremediável. O Mercedes
começa a esquentar. Vocêdesliga o ar-refrigerado esua mulher
protesta: “Com este calor?!”. Os meninos continuam brigando
no banco de trás. E você faz um juramento em voz alta: “Se
escapar da fiscalização do BC, juro que compro um
helicóptero”.
É o que sua mulher vem pedindo há algum tempo, sob
o argumento de que “todo mundo tem helicóptero”. Você
sabe que o negócio não é bem assim: nem todo mundo
tem helicóptero. E já ouviu dizer que um bom piloto
ganha uma fortuna, mas promete comprar assim mesmo.
Em último caso, se encher o saco, como encheu do iate de
Angra, vende a “aeronave de asas rotativas”.
Você quer ver a Primeira ainda hoje. Será que ficou presa
no curral? E quer ver o bezerro dela, seu neto. Quer pesar o
leite dela no dia seguinte, talvez daí a dois dias, quando
desinflamar, para contar no almoço do Country: “Minha
novilha, a Primeira, pariu na semana passada e está com
vinte e nove ponto cinco litros de leite”.
Vinte e nove quilos e quinhentos gramas: número besta,
esse que você inventou. Quem não entende de vaca não sabe
que é muito leite; quem entende, sabe que é mentira.
O trânsito começa a melhorar. Você liga o ar-refrigerado,
sob protestos de alguém que emburrou, desde quando você
reclamou da demora no cabeleireiro: “Assim, você me mata
de pneumonia!”
Anda muito nervosa, ultimamente. E era tão boazinha
quando se casou. O pior é que anda meio deslumbrada:
acha que todo mundo tem helicóptero e não aceitou o
Honda Civic que você quis lhe dar de presente de aniversário:

254
fechou questão em torno deum BMW esporte, porque a mulher
do seu sócio tem um Mercedes esporte. E agora diz que não
abre mão de um solitário do tamanho de uma uva Itália.
“Você pensa que eu tenho fábrica de dinheiro?”, mas ela
faz que não ouveeinsiste no solitário. E agora está emburrada
por causa do cabeleireiro. Precisa estar penteada, amanhã,
que tem almoço na fazenda do Sérgio: a Hildegard está lá. E
ela endoidou: “Você acha que eu vou almoçar com a Hilde, na
fazenda do Sérgio, sem estar penteada?”
E o Santana? Que fim levou o Santana com os quatro
gorilas? Foi idéia do coronel que presta assessoria
a sua corretora: segurança, para evitar seqüestros. Em outras
palavras: para prevenir-se de um seqüestro eventual, você
vive seqüestrado pelos tais gorilas. Que fim levaram?
Desde que saiu da avenida Brasil, pelo retrovisor do Mer-
cedes, nem sinal do Santana. Vai ver que furou um pneu.
Sua mulher sentecalafrios, calefrios, escalafrios só deouvir
falar em colunista social. Afetava, com o Ibrahim, uma
intimidade que nunca teve. Se via o Zózimo num restaurante,
passava pela mesa dele só para dar dois beijinhos, na
esperança de ser citada na coluna. J á convidou a J oyce para
um passeio de iate, com um pormenor: vocês, na época, não
tinham iate. E o meu bom amigo saiu pelo cais do Iate Clube
do Rio de J aneiro, sob um sol de rachar, engravatado,
indignado, procurando iate para comprar: Tem lancha?
Quer vender? Quanto custa? Onde é que eu compro um
barco médio, que não seja muito caro?
Acabou comprando um barquinho de dois motores,
três cabines, dois banheiros e precisou contratar um
marinheiro, promovido a tripulação, para receber a
colunista com todas as honras que lhe são devidas.
Sábado cedo, metido numa roupa de comandante,
presente de sua mulher, com etiqueta famosa, lá
estava o nosso futuro produtor de leite no cais, cheio
de cestas de sanduíches, salgadinhos, sacos de gelo filtrado,

255
litros de uísques, refrigerantes — como sofre um dono de
barco!
Finalmente, apareceu a convidada, com outros convidados,
elá seforam vocês, barra em fora, num dia de mar violentíssimo.
A colunista e os convidados, pálidos, agarravam-se à
amurada, temendo uma queda nos mares indomáveis. E o
nosso comandante, de calça branca e blazer azul, botava as
tripas pela boca, vomitando a comida de véspera, o café da
manhã, os líquidos intestinais e o mais que houvesse para
vomitar.
Finalmente, chegaram a Itaipu, enseada oficial dos iatistas
do Rio, onde o balanço do mar, um pouco menos violento,
permitiu que tomassem alguns uísques. Dos sanduíches e
dos salgadinhos ninguém cogitou, porque o vomitório do
comandante embrulhou todos os estômagos.
“Ferros em cima!”, gritou vocêpara o marinheiro, querendo
demonstrar intimidade com a ciência da navegação. Subiram
os ferros, puxados pelo motor elétrico, no final da tarde, quando
os demais barcos haviam zarpado para o Iate Clube.
Você assumiu o leme e pressionou o botão de arranque:
nada... Apertou de novo, tornou a apertar e nada!
Pifou alguma coisa que deveria dar partida no motor
diesel, irremediavelmente empacado. E agora?
O imbecil do marinheiro não tinha a menor noção de
coisa alguma; você não quis descer à casa de máquinas,
porque já estava enjoadíssimo aqui em cima e temia
morrer de desgosto, num porão quente e imundo, cheio
de bicos injetores, motores de arranque, baterias e
tanques de óleo, com uns 5 mil litros estocados.
Sempre havia o risco da morte por explosão, ainda mais
rápida que a morte por desgosto.
Anoitecia. O tempo ameaçava piorar. Os ferros já
não obedeciam ao comando elétrico e o barco estava
à deriva. Poderia esfarelar-se numa daquelas pedras
enormes, ali mesmo de Itaipu. Quem é que vai permanecer
nesta bosta?

256
“Homem ao mar!”Foi o comandante que pulou em primeiro
lugar. Pularam todos, homens, mulheres, crianças e o
marinheiro, alcançando a nado a praia, de onde seguiram
para Niterói num ônibus de farofeiros, fingindo achar graça
na aventura.
E quem não viu sua cara, na barca das nove da noite, de
Niterói para o Rio, descalço, arrasado pelo vomitório, vestindo
ainda a roupa molhada de comandante, e o boné de homem
do mar, não sabe o que é a imagem do desalento.
Na estrada, a chuva aperta mas o Mercedes continua firme
naquela toada de 120km/ h. Sua menina pequena, que não
chega a participar da briga dos irmãos, mesmo porque viaja
na frente, ao lado dos pais, tem uma grave notícia: “Quero
fazer xixi”.
E agora? Chove torrencialmente e nem sinal do Santana.
Os postos de gasolina daquele trecho são todos imundos. É
zona das mais pesadas. Alguém pergunta a seu lado: “Você
não ouviu a menina dizer que quer fazer xixi?” Ouviu, sim. E
também já ouviu dizer que as meninas não devem passar
mais de duas horas, num automóvel, sem fazer xixi, porque
pode fazer mal ao xixi delas.
É ali mesmo, naquele posto: tem toalete? Estou
perguntando se tem banheiro?! Não, obrigado, gasolina
eu não preciso, o tanque está cheio.
Caras esquisitíssimas ao redor. Só dá bandido por
aqui. E o Santana dos seguranças, se passar, nem vai
ver que você parou. Por falar em bandidos, que tal
contratar uns dois para acabar com a saúde daquele
inspetorzinho do Banco Central, o carequinha, tipinho
ordinário, com uma obturação de ouro no dente da
frente. Se o negócio é carvão, abre logo o jogo que
a gente compõe.
Sua mulher está de volta: “Banheiro nojento! Imundo!
Ficamos lá um tempão e Febbie não quis fazer xixi.

257
Quem é que vai querer uma Coca?”
Febbie... Fabiana: moda é fogo. As alternativas seriam
Manuela e Rafaela. Ficou sendo Fabiana mesmo. Sua irmã,
tia de Febbie, é Priscila, porque nasceu na safra das Priscilas.
Sua sobrinha, tia de Febbie, é Patrícia, porque nasceu no
tempo das Patrícias. Manuela? Minha filha? Nunca!
Coca? nem pense nisso! Isso lá é hora de oferecer Coca?
Vamos embora o mais depressa possível. Tenho de botar
gasolina no posto de sempre e ainda quero ver o bezerrinho
da Primeira.
“Então é isso: na pressa de ver sua vaquinha, você não dá
um refrigerante para seus filhinhos.”
Ó céus! Bem que a antropóloga Helen Fisher diz que o
casamento deve acabar aos quatro anos, depois de cuidar da
criança até a primeira infância. O diabo éque o casamento foi
em comunhão de bens e as ações de sua parte, na corretora,
valem uma fortuna. Detão bobo, vocêdeu a ela atéos números
das contas lá fora.
É o temporal! O limpador de pára-brisa não consegue dar
conta do recado. Todos diminuem nas curvas da serra, me-
nos vocêquetem mais carro etem pressa. Amanhã, tem almoço
na fazenda do Sérgio. Domingo, tem demonstração do trator
na fazenda do Mário. Segunda-feira, cedo, você tem de estar
na corretora: o mercado está reagindo e o
diabo do inspetor vai voltar.
Agora é que eu quero ver: tem lama. Esse prefeito é um
merda. Custava passar uma patrol e jogar uns caminhões de
saibro? Epa! que está um quiabo... Tem nada não: o piloto é
bom de barro.
Mais um quilômetro e pronto: olha o prego do mata-burro!
Cuidado com o pneu importado! Felizmente, a besta do
jardineiro lembrou-se de deixar as luzes acesas. Será
que a cozinheira esperou até esta hora? E o Santana, que
sumiu com os seguranças? Chuvinha cacete...
Epa: é o retireiro que está na garagem. Na curva, pitando
um cigarrinho. Não se cansam deficar na curva: tiram leite na
curva, descansam na curva, batem papo na curva, fazem
258
cocô na curva, tudo de cócoras, na curva dos joelhos.
Os meninos resmungam no banco traseiro, acordados pelas
luzes da garagem. Você desliga o motor, abre a porta, estica
as pernas e vai abrir a tampa da filial de supermercado em
que sempre transformam a mala do seu Mercedes.
O retireiro chega de mansinho, rodando o chapéu na mão.
E você pergunta: “Então?”
Mas ele não dispensa o cumprimento: “Boa noite”.
“Boa noite. Tudo bem?”
“Obrigado. E o senhor?”
“Muita chuva na estrada. O pessoal da segurança se
extraviou no caminho. Aporrinhação lá no escritório,
mas vai tudo bem. E a Primeira?”
“Está de bezerro, sim senhor. Trouxe um machinho,
que eu ensaquei, para o caso do senhor mandar matar.
Tem a bezerra da Pipoca, que está boa para embengar
na Primeira”.
A sugestão de matar seu neto, usando o saco de
aniagem, que tem o cheiro dele, para vestir a bezerra
da Pipoca e embengar na Primeira, é meio forte.
Comercialmente válida, mas meio forte para um primeiro
neto.
“Amanhã a gente vê... Hoje tem muita lama. Vai
dormir que você deve estar cansado. Mas é para deixar
a porteira sem cadeado, que o pessoal da segurança
vai aparecer aí. Quero ver se tomo um uísque antes
do jantar. E a Primeira, desinflamou?”
“Senhor, sim. Mas tem um problema...”
“Problema? Que problema?”
“Eu já chamei o veterinário, botei remédio, tudo
do jeito que ele mandou.”
“Diz logo qual é o problema!”
“É que ela tem um bico perdido e dois chochinhos
de tudo. Prefeitinho, mesmo, só tem um bico.”
Felizmente, nessa hora, sua mulher e seus filhos
já estão lá dentro, a boa distância de um corretor de fundos
públicos, dealer do Banco Central, aliás produtor de leite,
259
sob violenta emoção, dessas quejustificam os crimes, segundo
o Código Penal.

O mercedes e a mulinha —
O Globo, dezembro de 1971.
Dois vizinhos aqui do Cantagalo estrearam condução nestes últimos dias. Um
comprou belo Mercedes azul por 152 milhões, e o outro uma mulinha tordilha por
800 contos. Tenho observado os dois, circulando pelo barro que se formou com as
últimas chuvas, e confesso não saber se prefiro o carro ou a besta.
Não vou dizer que desgoste do Mercedes. Até pelo contrário, fico satisfeito quando
um amigo me convida para conhecer sua fazenda, montado num
220-S. Sujeito novidadeiro, vou assuntando o estofamento, os ponteiros misteriosos
do painel e os trincos das quatro portas. Dizem-me que o carro tem injeção eletrônica,
ou coisa parecida, e que a gasolina deve ser especial, por causa da taxa de compressão.
Quanto à mula, só mexe com injeção de seis em seis meses, pois a raiva dos
herbívoros é endêmica em nossa região. E a gente precisa vacinar religiosamente,
sob pena de ficar a pé de uma hora para a outra. Mas não me consta que a mula use
outro combustível além do capim, de que se abastece amarrada numa corda, pastando
o quicuio que vem invadindo os caminhos serranos. Dos derivados de petróleo, só
usa graxa, quando a gente quer fazer um serviço caprichado nos cascos. E é certo
que não polui o ambiente, pois o que sai do seu escapamento não é o monóxido de
carbono e sim um estruminho especial para estercar horta e jardim.
Ando meio assustado com as máquinas e o progresso do século XX. Não vou dizer
que prefira o sistema de vida dos papuas, ou dos índios da Amazônia: isso não! Mas
acho que um teto razoável, um colchão de crina, água esquentada na serpentina do
fogão e uns tantos charutos diários já dão para o sujeito levar uma vidinha bem
razoável.
Vejo que estão inventando um avião que vai do Rio a Paris em três horas. E daí?
O sujeito leva dias e dias tirando passaportes, vistos, tomando vacinas, enfrentando
os engarrafamentos do tráfego e das alfândegas, para ser amarrado numa poltrona
apertada, que o despeja em Paris, quando tudo corre bem. Nesse meio-tempo, a
traquitana rompe a barreira do som, hostilizando quem mora nas imediações,
quebrando vidraças e telhados; quebrando, até, o leite de nossas vaquinhas. E
poluindo troposfera, estratosfera, mesosfera, ionosfera, exosfera — poluindo em
todas as esferas.
As nove horas de viagem dos aviões atuais já me parecem bem rápidas e

260
barulhentas; e os dez dias dos navios, perfeitamente razoáveis. Isso de acordar em
Nova York, almoçar em Paris, jantar na China e dormir em Honolulu tira todo o encanto
de Nova York, Paris, China e Honolulu. As cidades, os países, as civilizações vão
acabar tendo, para o viajante, o aspecto monótono das estações dos trens suburbanos.
Progresso, tecnologia, desenvolvimento, é tudo muito bonito, mas o resultado
mais imediato da história é que os rios daqui da serra já não têm um único e escasso
peixinho, depois que foram transformados em vazadouro das fábricas, e num mar de
espuma dos detergentes usados pela dona de casa na tarefa obsessiva de lavar mais
branco.
Há muita gente preocupada com o fato de existir, ou não, água na Lua. Preocupação
singular, quando se sabe que a água do Estado do Rio está acabando. No último verão,
secaram poços e minas com mais de 40 anos de uso. E o estoque de tubos plásticos
não deu para as encomendas, pois toda a gente queria buscar um fio d’água a dois
ou três quilômetros de casa.
É muito útil, portanto, que se descubra água na Lua, como forma de consolar
aqueles que viram suas minas secando no princípio deste ano. Seguramente
informado da existência de água em nosso satélite, ou talvez em Marte, o sujeito pode
perfeitamente passar sem ela aqui na Terra.
Enquanto isso, meus vizinhos circulam com o Mercedes e a mulinha. O carro
está inteiramente fora do meu orçamento, mas a mulinha pode dar negócio, se o dono
baixar 200 contos na pedida inicial.
Porque é montado na mulinha tordilha, numa tarde fria de maio — quando o
gordura cobrir os campos com o colorido de suas sementes, e o gado gordo e luzidio
se preparar para o inverno, com os silos cheios de capim-elefante com melaço e soja
perene — que eu quero ver passar o tal avião que vai a Paris em três horas, levando
o sujeito amarrado numa poltrona, por cima dos montes e das nuvens, ignorando os
campos e os gados, as flores e os pássaros, preocupado com as horas e esquecido
do tempo, tempo da colheita do milho, tempo de fazer goiabada, tempo de aproveitar
o passo firme dos burrinhos serranos.

261
A ORDEM
DO BURRO
Vamos criar a Ordem do B urro.
E u na Presidência. E duardo
Almeida R eis prepara os estatutos.
DAVID NASSER

É com imensa alegria, caríssimo leitor e ilustrado amigo,


quelhedou boas-vindas à Confraria Brasileira dos Produtores
de Leite. Na próxima reunião do Conselho Federal da Ordem
do Burro, prometo incluir o seu nomena lista dos candidatos
a uma comenda, no grau de grande oficial.
Produtor de leite e comendador, vocêterá o direito de usar
as letrinhas C.O.B. nos cartões de visitas, nos papéis de sua
fazenda e na publicidade do seu gado, quando mandar
imprimir em tipo graúdo o nome do Doutor Proprietário.
Você já aprendeu que o burro tem vigor híbrido, é
trabalhador, firme, sagaz e muito forte, qualidades
todas bastante estimáveis, às quais se deve acrescentar
o fato importantíssimo de não andar por aí a multiplicar-
se de forma irresponsável, com as bênçãos não menos
irresponsáveis dos padres de passeata.
Tira-se o leite de uma porção de espécies animais,
em quase todo o mundo. Das éguas na Rússia, da lhama
nos Andes, da camela, da rena, das cabras e das
ovelhas, da esposa do iaque, das búfalas e das vacas.
Adivinhe qual é o singularíssimo país onde o leite
é produzido pelos burros?
Não creio que você deva dar muita importância às coisas

262
que andou lendo neste livro, algumas boas, outras más, quase
todas péssimas, porque elas não têm mesmo a menor
importância. Ainda ontem à noite, estive passando a vista
num livro de J ohn Taylor, que nos faz pensar.
Somos produtores de leite, pequenos e comuns, de uma
bacia leiteira comum, situada num país grande e bobo, em
vias de subdesenvolvimento, que por sua vez faz parte de um
planeta comum, chamado Terra, que gira em torno de uma
estrela comum, chamada Sol, a boa distância do centro de
uma galáxia comum, a Via-Láctea, ela própria situada no
meio de numerosíssimas outras galáxias.
Da Terra até ao centro da Via-Láctea, a distância é de
30 mil anos-luz. E a luz viaja, como vocêaprendeu no ginásio,
à velocidade fantástica de 300 mil quilômetros por segundo!
A galáxia mais próxima da Via-Láctea, vizinha de cerca no
dizer aqui da roça, está a uma distância de 200 mil anos-luz.
E os corpos mais distantes já observados, pelo menos até
quando Taylor escreveu seu livro, distavam da Terra cinco
bilhões de anos-luz, ou mais.
Em quilômetros, desses que você percorre todo poseur ao
volante do seu Mercedes 600 V12, quando vai para a fazenda,
o número resulta assim:

50000000000000000000000

Conte de novo, para ver que escrevi 22 zeros. É número


grandote, como também é assustador o número de estrelas,
de vários tipos e idades, existentes em nossa própria galáxia:
mais de 100 bilhões, o que não impede que alguns autores
falem em 300 bilhões delas, só na Via-Láctea.
No Universo observável, o número total de estrelas seria da
ordem de 100 bilhões de bilhões, distribuídas em mais de um
bilhão de galáxias como a Via-Láctea.
Diante disso, estou certo de que você vai rir às bandeiras
despregadas — e veja só que tolice: às bandeiras desprega-

263
das... — quando pintar um leite “ácido”no seu vale, dentro do
esquema de rodízio que todos os compradores fazem, mas
nenhum admite fazer.
Vai rir-se de tudo mais, porque o resto não tem mesmo a
menor importância. Dê logo o solitário que sua mulher está
querendo evenha curtir as coisas boas da Confraria Brasileira
dos Produtores de Leite.
Na CBPL você vai conhecer gente de primeiríssima qua-
lidade, produtores de leite porque gostam, porque precisam,
porque não sabem fazer outra coisa, ou porque sabem fazer
e pensam que também podem tirar leite: produtores que se
amarram no mojo de uma novilha, o que Freud talvez explique;
gente que tira leite porque tira, e isso basta.
Todos sabemos que a vaca, bicho que mija para trás, joga
o dono para a frente. J oga mesmo. Uma vaca nova, saudável,
adaptada ao meio, é investimento brilhante neste país em via
de subdesenvolvimento, pelas burrices de todos aqueles que
não pertencem à Ordem do Burro.
Tendo pasto esilagem, ou feno derazoável qualidade, uma
vaca adaptada éinvestimento muito melhor do que o solitário
do tamanho de uma uva, porque tem crias e produz leite
barato. E o mínimo que se pode pedir do leite produzido em
nossas fazendas é que seja barato, porque vai ser vendido,
quase sempre, a preços baratíssimos. Para que o leitor faça
idéia vendi leite tipo B, durante anos, a 12 centavos de dólar
o litro, já deduzidos carreto eFunrural. Mesmo considerando
que o dólar daquele tempo valia muito mais, o negócio era
ruinoso, ou quase.
Mas o melhor negócio de uma fazenda, melhor ainda que
a vaca abençoada e a defesa contra a inflação, é o prazer
imenso que a atividade proporciona. A situação é paradoxal,
não há dúvida, mas da soma das aporrinhações diárias e
inevitáveis resulta o estado desatisfação total. Resulta mesmo.
Outra vantagem que não tem preço é a oportunidade de
conviver com gente da melhor qualidade, de bater papo,trocar

264
idéias, comungar dos exageros nos almoços do J óquei, do
Country, do Harmonia, onde todas as vacas produzem 16
toneladas de leite em 305 dias e duas ordenhas, com um
índice de fertilidade da ordem de 102% e uma porcentagem
de bezerros desmamados sempre superior a 107%.
Você, assustadíssimo, pode perguntar como é possível
desmamar 107, se foram feitos 102 partos apenas. Ora,
meu caro leiteiro principiante, nos almoços do J óquei
e do Harmonia os partos gemelares são muito
freqüentes...
Não faço a lista dos meus amigos que produzem leite
e são inteligentíssimos, trabalhadores, gente notável
em tudo e por tudo, porque não tenho vocação para
digitador das Listas Telefônicas. E uma relação de
C.O.Bs. resultaria imensa, um catálogo difícil de
manusear como todos os catálogos.
É na luta diária de sua fazenda, quando estiver
comprando remédios no revendedor, ou freqüentando
uma reunião do seu sindicato rural, que você vai
conhecer o ministro Paulo Nonato, C.O.B., inteligência
esfuziante, notável causeur , que andou entornando o
caldo na exposição agropecuária de Paraíba do Sul,
Rio de J aneiro, quando os organizadores tiveram a
infeliz idéia de forrar de pedra britada o caminho de acesso à
pista.
O touro do ministro Nonato, que pesava mais de 1.200
quilos e não era adepto do cooper diário, machucou os cascos
nas pedras e começou a mancar, o que foi suficiente para que
os juízes ameaçassem desclassificá-lo. E o Paulo virou fera:
“Se desclassificarem meu boi, tiro o gado da pista!”
“Mas seu ministro...”
“Seu ministro éo caralho!Sou um fazendeiro eum expositor
igual aos outros, tenho direitos e deveres...”
“Mas seu ministro...”

265
“Seu ministro é o caralho!”
No dia seguinte, o Paulo jurava que disse Carvalho,
referindo-se a um burocrata do ministério da
Agricultura. A cena foi divertidíssima.
Você vai ver que o Fritz Underberg, C.O.B., fala
e escreve 11 idiomas, entre os quais grego, latim,
sueco e hindustani. E conhece o mundo inteiro: Nepal,
Mongólia, Burundi, que nem sei onde ficam, o Fritz
conhece as cidades, os bairros, os nomes das ruas,
as comidas típicas e a literatura, se é que se faz
literatura no Burundi.
Vai conhecer o Mário Barbosa, C.O.B., que é o maior
orador do Brasil, porque é simplesmente muito melhor
do que todos os outros “melhores oradores do Brasil”.
E não se esquece de perguntar, quando está preenchendo
a cédula G dos clientes, em seu escritório de
contabilidade: “Além do fazendeiro, quantos burros
tem a fazenda?”
Vai conhecer o Roberto Salgado, C.O.B., considerado
um dos maiores tributaristas do país e um dos culpados
pelo fato de eu andar às voltas com os gados bovinos.
Hospedou-me, sempre, com rara fidalguia em sua Fazenda
Boa Vista. E acabou por me vender um cavalo, o notável
Pensamento, talvez pensando livrar-se do hóspede.
Nos 60 hectares que comprei para alojar o cavalo,
acabei montando minha primeira fazendinha.
Valério Teixeira de Rezende, C.O.B., titular de um
dos maiores escritórios de advocacia do Brasil,
sempre trabalhou com o leite como um termostato,
desses que ligam e desligam conforme a temperatura.
Nas crises de bom senso, o compadre Valério suspende
a produção de leite em sua espetacular fazenda São
Francisco, onde planta soja, milho, feijão e cana em
centenas de hectares, produzindo também excelentes
bezerras girolanda, para vender nas bacias leiteiras.

266
Ellos J osé Nolli, C.O.B., empresário vitorioso, conseguiu
reunir em sua Fazenda da Cachoeira, em Caeté, MinasGerais,
um rebanho holandês que faria sucesso em qualquer país do
mundo. E já vem obtendo novilhas que batem as 14 toneladas
de leite na primeira lactação, graças ao conjunto genética/
alimentação/ defesa sanitária/ manejo e dedicação.
Gabriel Donato de Andrade, C.O.B, titular de uma das
maiores construtoras do mundo, é um apaixonado por tudo
que diga respeito a fazendas e gados, não fosse filho do
extraordinário Dr. Donato de Andrade, agrônomo formado
nos Estados Unidos, que chegou a produzir 8.000 quilos de
leite por dia, no município de Arcos, Minas Gerais, terra
generosa da Mata de Pains, no tempo em que os produtores
de mil litros eram raríssimos.
Quase todos os homens vitoriosos deste país, os grandes
industriais e comerciantes, os poderosos banqueiros, os
médicos e os engenheiros do primeiríssimo time, e mesmo os
cientistas, os filósofos, os artistas, os jornalistas eos escritores
são produtores de leite, ou gostariam de sê-lo. E você não
pode ser uma exceção à regra, agora que anda animado com
a leitura deste livro.
Por falar nele, dá para perceber que iniciei a fase da reversão
das turbinas, dos pousos de um avião a jato. E a freada tem
deser violenta, porque a pista está acabando. Livros do gênero
do nosso apresentam duas grandes dificuldades: a primeira
é atingir a lauda de número 140 e a segunda é não deixar
passar das 170 laudas de computador.
Se vocênão apronta 140 laudas, não tem um livro, tem um
folheto; se deixa passar das 170 laudas, o editor fica
preocupado com o encarecimento do volume e pode fazer a
ignominiosa sugestão de que se cortem alguns capítulos,
ofensa quase tão grave, para um autor, como dizer que seus
filhos não são lindos e educadíssimos.
“E o assunto?”, perguntará você, naquela que espero seja
sua última pergunta. Ora, o assunto cabe inteirinho nas 170

267
laudas, como cabia em 140. Talvez coubesse em 30 ou 40
laudas cuidadosamente expurgadas de tudo quanto é
desnecessário. Deve caber; tem de caber !
Se não couber, a gente guarda a sobra como semente para
o próximo livro, porque mais divertida e menos remunerada
do que a atividade leiteira, só mesmo a atividade literária.
Ainda quando você diga que não faço literatura, mas
escrevinhadura, não me aborrece.
Reconheço que é sempre uma temeridade, em alguns
países, tentar a publicação de um livrinho sem a
antecipada precaução de ser intelectual de panelinha,
socialite deslumbrado, comediante de televisão, mago
de carteirinha, terrorista anistiado, cachaceiro da
esquerda festiva ou militante do gay pow er, entre
outras categorias de patrícios que têm Ibope. Ainda
assim, lá vou produzindo e vendendo meus livrinhos.
Só espero que você tenha gostado e se divertido, ao menos,
a décima parte do que me diverti quando aprontei a primeira
edição deste livro, cuidando das vacas leiteiras e dos animais
que as possuem, com o adjutório de uma IBM 82-C empres-
tada pelo meu saudoso amigo Carlos Augusto Mesquita,
C.O.B. E venho de me divertir agora, ao reescrevê-lo, com a
silenciosa comodidade de um computador do mesmo
fabricante.
Espero, também, que não se esqueça de me convidar para
um final de semana em sua fazenda, sem grandes obrigações
delevantar demadrugada para assistir à primeira mungidura,
nem de subir morros para ver de perto novas espécies de
capins milagrosos.
Viajamos no seu Mercedes, ou no seu helicóptero, e
mandamos as crianças mais cedo, na Veraneio de sua
corretora, com a cobertura do Santana cheio de
seguranças.
Como qualquer hóspede, com exceção, talvez, do

268
casal Maria Helena e Paulo Villela de Moraes, sou meio chato;
aliás, sou muito chato. Não gosto depernilongos, prefiro camas
duras e banheiros que se abram para o quarto, naturalmente
com esguicho de bidê.
Se a intenção é agradar, como espero que seja, pode
caprichar no uísque e nos queijinhos importados.
Espero que sua adega tenha vinhos à altura da sede
do hóspede.
Dispenso-o, desde já, da tentativa de impingir-me
aquele vinho nacional, o Château Crétin, “que dizem
ser muito bom; vamos experimentar?” Não vamos, não!
Com o Mercosul, o mínimo que se pode esperar de um
host como você é que ofereça aos seus hóspedes os
melhores vinhos argentinos e chilenos, sem prejuízo
de também oferecer portugueses, italianos, franceses,
californianos ou sul-africanos. Tudo, menos o Château
Crétin, em nome de um nacionalismo bobo. Mesmo porque
os vinhos nacionais, no dizer do imenso Abgar Renault, figura
solar da inteligência brasileira, “distinguem-se dos vinagres
pelo rótulo”.
Pretendo passar dois dias, três no máximo, mesmo assim
se o tratamento andar nos conformes. Portanto, para quem se
movimenta num Mercedes 600 V12, não custa oferecer
salgadinhos e bebidas decentes. E tem mais uma coisa: um
exemplar de cada um dos jornalões, encontráveis na banca
da cidade mais próxima, para cada hóspede. Não faz sentido
aquela economia de jornais, que se faz em quase todas as
fazendas, obrigando os hóspedes à leitura depescoço esticado,
por cima dos ombros dos outros.
Não penseque eu tenha mandado buscar da cidadedúzias
de jornais, ou vinhos os mais sofisticados, porque nunca tive
recursos. Se os tivesse, também não ofereceria vinhos Château
d’Yquem, Petrus ou Romanée-Conti aos meus hóspedes,
mesmo porque não gosto de hóspedes.
Suportei-os, da maneira mais educada possível, durante

269
anos e anos, com piscina, ducha, água de mina, cavalos
razoáveis e clima de montanha. Montanha tropical, é certo,
mas ainda assim bem melhor do que o calor do Rio.
O importante, mesmo, é que o alpendre de sua fazenda
leiteira tenha redes muito limpas e muito confortáveis, de
onde nos seja possível avistar pequeníssima parcela do
Universo, enquanto mamamos respeitosamente nossos
charutos noturnos. Sempresão mais de100 bilhões debilhões
de estrelas, aproximadamente. Boa essa do “apro-
ximadamente”, né?
Pois é ali, deitado na rede, quando você mentir feito um
desesperado sobre a porcentagem de bezerros mortos, os
índices de fertilidade e as médias de curral de seu rebanho —
e nossas mulheres se ocuparem, lá dentro, da inglória tarefa
de fazer que as crianças durmam; nós ambos ruminando,
ainda, as excelências de um jantar primoroso, em que você
quis ter a gentileza deabrir três garrafas de Château Margaux,
precedidas de um Krug soberbo e arrematadas por um
Armagnac inesquecível; é ali no alpendre, na tranqüilidade
da noite serrana, só interrompida, de longe em longe, pelo
mugir de suas vaquinhas — quando o doce murmurar dos
regatos fugindo entre as pedras nos disser que estamos bem
distantes da violência, da poluição e da insensatez da cidade
grande — que eu quero espiar
por cima de minha rede, terminando um belo charuto, para
ver a expressão risonha e repousada de um produtor de
leite muito e muito feliz!

1ª versão: Rio, janeiro de 1981


3ª versão: BH, setembro de1996, primeiro dia da primavera

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GLOSSÁRIO
a b a bs u r d o — latim: “(partindo) do território nacional. Também se grafa
absurdo”. braquiária ou braquiarão.
administrador — indivíduo do sexo brucela — bactéria do gênero Brucella,
masculino, geralmente casado, com espe- causadora da brucelose, febre de Malta,
cial habilidade para transportar uma febre do Mediterrâneo ou febre ondulante,
caderneta e diversas canetas no bolsinho comum aos bovinos não vacinados. Pode
da camisa. O mesmo que intérprete, ou ser transmitida ao homem.
encarregado. brucélica — diz-se da vaca que contraiu
afetada — diz-seda rês com febre aftosa.
brucelose.
bubalino — búfalo doméstico produtor
agrostologista — profissional da agros-
de leite na Índia, na Itália e no Brasil.
tologia, ramo da botânica que estuda as
plantas da família das gramíneas. Por cama-de-galinha — camada de sabugo
extensão, o estudioso das plantas forra- de milho, raspas de madeira e outros
geiras. materiais, sobre a qual são criadas as
galinhas. Quando removida do piso dos
amojando — diz-se da novilha ou da galinheiros e moída junto com as penas,
vaca próxima de parir. serve de alimento para o gado.
amojar — diz-se do aumento do úbere cambão — vara ou bambu com uma
das fêmeas antes do parto. laçada na ponta para pegar uma vaca no
anestro — ausência de cio. Vaca em curral.
anestro carencial é a que não entra no cio cameroun — ou cameron, variedade do
por insuficiência ou defeito de capim-elefante.
alimentação.
canzil — cada um dos dois paus de canga
apojar — fazer descer o leite para a para prender a vaca pelo pescoço, para ser
cisterna e as tetas da vaca. alimentada, ordenhada ou vacinada. Can-
aramador — cerqueiro, alambrador, zis de ferro galvanizado e outros materiais
sujeito que faz cercas. podem ser mais duráveis e mais fáceis de
arraçoamento — alimentação do gado limpar.
no cocho com capim picado, ração balan- cocoteira — diz-se da rês com seqüelas
ceada, silagem, feno, cevada, etc. da febre aftosa.
babesiose — tristeza bovina. Infecção colostro — o primeiro leite da vaca
causada por protozoários do gênero recém-parida, também chamado “leite
Babesia, ao qual pertence oB . bovis . O sujo”, indispensável para o bezerro pelos
mesmo que babesíase. anticorpos que contém.
brachiarão — Capim Brachiaria bri- cuia, mal de — enfermidade comum nas
zantha, chamado brizantão, que vem bacias leiteiras, de sintomatologia
sendo plantado em largas regiões do variável, determinada pela alimentação
Vacas Leiteiras - 1ª prova - glossario -

dos bezerros à base dear fresco e capim coloca uma solução qualquer (sulfato de
de péssima qualidade. cobre, formol, cal etc) para limpeza,
cuiado — diz-se do bezerro que passa, desinfecção e tratamento de certas
ou passou fome. enfermidades dos pés das vacas.
ecótipo — relativo a um hábitat par- peleja — cobertor ordinário.
ticular. Também se diz dos tipos, ou pirambeira — o que o fazendeiro diz da
variedades locais, de um determinado topografia da fazenda do vizinho. O mesmo
capim. que perambeira, abismo, precipício, topo-
grafia acidentada ou fazenda quebrada.
embengar — ilaquear a vaca em sua
boa fé, fazendo que aceite como sua a quebrar o leite— diminuição na produ-
cria de outra vaca. Usa-se, geralmente, ção normal do leite, determinada por mu-
o couro do bezerro morto (ou um saco de dança de alimentação, manejo,
aniagem que tenha o cheiro do defunto) empregados, clima etc.
sobre o lombo do bezerro que se deseja quicuio — capim dos climas tropicais de
embengar, para que a vaca identifique o altitude, também grafado Kikuyo. Não
cheiro de seu filho. confudir com o capim “Quicuio da Ama-
escuma — espuma.
zônia”, a B rachiaria humidicola, também
chamada “espetudinha”.
estábulo— construção de luxo, na qual
ressumar — deixar cair gota a gota,
o fazendeiro dá vazãoaos seus complexos gotejar, ressudar.
de arquiteto frustrado.
retireiro — empregado encarregado de
everminação — desverminação, mungir as vacas manualmente, ou meca-
combate ou eliminação dos vermes nicamente. No glossário de A ar te de
gastrintestinais dos bovinos. amolar o boi, escrevi: “indivíduo que se
fato de macaco — macacão. considera muito importante pelo fato de
leite frio— diz-se do leite sem espuma. pensar que sabe fazer a ordenha, ou
mungidura”.
l i n k a g e — inglês: a organização dos
genes nos cromossomos resulta em sobreano — animal de mais de 12 meses.
ligação (linkage), que afeta a composição técnico — indivíduo que se considera tal.
genética da população. terreireiro — empregado que cuida do
manejo — conjunto de asneiras pra- terreiro da sede, abrangendo jardins, horta,
ticadas pelo fazendeiro, pensando fazer pomar e pátio próximos da casa do patrão.
zootecnia especial com gado leiteiro. Engorda muito, quando casado com a
meio-veterinário — retireiro cozinheira.
analfabeto que pratica a veterinária. tuta-e-meia — ninharia; preço vil.
moita de bananeiras — conjunto de ungulado — mamíferos cujos dedos são
plantas monocotiledôneas da família das revestidos de cascos.
musáceas, usado como instalação sa- vacina — injeção periódica recomendada
nitária no interior do Brasil. pelos pessimistas e pelos fabricantes de
mojo — o mesmo que úbere ou peito. remédios.
varadeira — diz-se da vaca que não
monofilógeno — relativo à mono-
filogênese: filiação dos organismos, respeita as cercas, também chamada
ladrona.
atuais ou antigos, a um tronco único,
por via de ramos divergentes. veterinário — indivíduo que só é
chamado quando já é tarde.
pasto — pedaço de terra cercado de
arame por todos os lados. vizinho — indivíduo que teima em soltar
as vacas no seu pasto, e vice-versa.
pedilúvio — tanque raso, em que se
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