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Lore - Alexandra Bracken
Lore - Alexandra Bracken
1. Dedicatória
2. Linhagens Vivas
3. Linhagens Extintas
4. Cidade dos deuses
5. Portadores do fogo
6. Imortal
7. Rios escuros
8. Mortal
Para minha família grega.
SUA MÃE UMA VEZ LHE DISSE QUE A ÚNICA FORMA DE REALMENTE CONHECER
alguém era lutando com essa pessoa. Na experiência de Lore, a única coisa
que lutar revelava mesmo era a área do corpo em que o oponente menos
queria ser atingido.
Para seu oponente, essa área era claramente a nova tatuagem no peito
esquerdo, que ainda estava coberta com um curativo.
Lore ergueu suas luvas de boxe de 400g e deixou que elas absorvessem
outro golpe desleixado. Seus tênis guincharam no tatame azul e barato
conforme recuava um passo para trás. As tiras de fita adesiva prateada que
mantinham o ringue improvisado no lugar começavam a descolar após cinco
lutas naquela noite, com toda a umidade e calor. Ela grunhiu enquanto selava
a fita mais próxima com o calcanhar.
Suor escorria por seu rosto até que tudo que pudesse sentir fosse o gosto de
sal. Lore recusou-se a secá-lo, mesmo quando o suor fez com que seus olhos
ardessem. A dor era boa. A mantinha focada.
Isso — a luta — nada mais era do que um hábito ruim recente, que lhe
trouxe uma libertação da qual necessitava desesperadamente após a morte de
Gil, seis meses atrás. Mas a promessa original de ser só essa luta
desaparecera assim que sentiu aquela onda familiar de adrenalina.
Uma luta fora o suficiente para abafar o luto ensurdecedor, tirá-la de dentro
de seus pensamentos e levá-la de volta ao corpo. Duas lutas a desconectaram
da profunda dor no coração. Três trouxeram uma surpreendente quantidade
de dinheiro.
E agora, semanas depois, a luta de número quinze estava proporcionando
exatamente o que ela queria desesperadamente naquela noite: uma distração.
Lore disse a si mesma que poderia parar a qualquer momento, quando
aquilo não mais a fizesse se sentir bem. Quando dragasse muito à superfície o
que ela havia enterrado.
Mas Lore não chegou a esse ponto. Ainda não.
O porão apertado do restaurante Red Dragon — Fina Culinária Chinesa —
estava sufocante. A pressão quente de corpos muito amontoados cercava o
tatame. A multidão se movimentou junto com os lutadores, formando um
cordão não oficial no ringue conforme seguravam com firmeza os copos
descartáveis e tentavam não derrubar suas bebidas caras. Notas de dinheiro e
apostas fluíam em volta dela, de mão em mão, até alcançarem Frankie, o
organizador das lutas. Lore olhou de relance para o homem enquanto ele
arrumava pedidos e apostas das próximas duas lutas, sempre menos
interessado no vencedor do que no quanto ganharia.
Vapor descia escada abaixo, vindo da cozinha acima deles, dando ao ar um
aspecto acetinado. O cheiro de frango kung pao era uma alternativa deliciosa
ao fedor de vômito velho e cerveja choca que assombrava as boates
clandestinas que sediavam o ringue.
A multidão parecia não se importar; se aquilo era necessário para que
tivessem a ilusão de estarem cheios de adrenalina, tudo bem. A lista de
convidados exclusivos de Frankie parecia bem menos exclusiva esses dias:
modelos, pessoas do mundo artístico e executivos que passavam pequenos
sachês de pó branco entre si eram agora frequentemente acompanhados por
alunos de escolas particulares testando os limites da apatia dos pais.
Seu oponente era um garoto quase da sua idade — todo molenga, com a
pele sem marcas e uma confiança sem causa. Ele riu, apontando um dedo na
direção dela conforme a escolhia entre todos os lutadores disponíveis de
Frankie. Lore decidira que o destruiria e devastaria qualquer pedaço
esfarrapado que sobrasse de seu orgulho muito antes de ele chamá-la de
bebezinha e soprar um beijo bêbado em sua direção.
— Vou tentar adivinhar — disse ela, por entre o protetor bucal. Lore
acenou a cabeça na direção do curativo no peito do adolescente, que cobria
uma tatuagem recente —, foco, força e fé? Carpe diem?
As sobrancelhas dele se abaixaram com a multidão caindo na risada. O
garoto deu um soco na direção da cabeça de Lore, grunhindo com o esforço.
O movimento, combinado com sua pouca força, deixou o peito aberto. Lore
tinha um alvo claro quando bateu na pele macia e tatuada.
Os olhos do garoto saltaram e sua respiração ficou ofegante. Ele se ajoelhou
no tatame.
— Levante-se — disse Lore. — Você está envergonhando seus amigos.
— Sua… sua imbecil… vad… — disse o garoto, com dificuldade, entre o
protetor bucal. Lore se perguntou quanto tempo levaria para que ele perdesse
a cabeça, e agora tinha a resposta: cinco minutos.
— Tenho certeza de que você não devia me chamar disso — disse ela, o
rodeando —, até porque é você quem está de quatro.
Ele se levantou com esforço, bufando de ódio. Ela revirou os olhos.
Perdeu a graça, não é? — pensou Lore.
Gil lhe diria para sair de perto desse garoto idiota — ele sempre fora rápido
em lembrar Lore, com aquele jeito de avô, sem julgamentos, que não era
preciso se jogar em todas as brigas que aparecessem. A verdade era que ele
teria odiado essa situação, e Lore também sofria com essa culpa de
desapontá-lo.
Mas a jovem havia tentado outras alternativas. Nada a ajudara a superar a
maré esmagadora da perda como uma boa luta. E agora não era apenas da
morte de Gil que ela precisava fugir; havia um novo medo a rasgando por
dentro.
Era agosto, e a caçada havia retornado à sua cidade.
Apesar de seus melhores esforços para seguir em frente, para esquecer a
vida sombria que havia deixado para trás e entrar no brilho ensolarado de
uma vida melhor, alguma parte de sua mente ainda estava sintonizada com a
lenta contagem regressiva dos dias. Seu corpo havia ficado mais firme; seus
instintos, mais afiados, como se estivesse se preparando para o que estava por
vir.
Ela começou a ver rostos familiares pela cidade há umas duas semanas,
enquanto fazia os últimos preparativos para hoje à noite. O choque a atingiu
como uma faca nos pulmões; cada vez que os via, confirmava que toda a sua
esperança e toda a sua súplica silenciosa foram em vão. Por favor — pensou
ela, repetidamente, nos últimos meses — faça com que esse ciclo seja em
Londres. Faça com que seja em Tóquio.
Faça com que seja em qualquer lugar, menos em Nova York.
Lore sabia que não deveria ter corrido o risco de sair esta noite, não quando
a matança estaria no auge. Se um único caçador a reconhecesse, as linhagens
não estariam apenas caçando deuses. Também estariam atrás do seu couro.
De canto de olho, Lore viu Frankie checar seu relógio de bolso ridículo,
dando-lhe o sinal para finalizar a luta. Ela supôs que o homem tinha que ir a
algum lugar ou sair para deitar em uma cama de dinheiro.
— Mas já? — perguntou Lore.
Aparentemente, o álcool decidiu bater no garoto de uma vez só. Ele
perseguiu Lore pelo tatame balançando os punhos desajeitados, ficando mais
irritado quando as risadas explodiram da multidão.
Conforme ela se virava para se esquivar de um golpe, seu colar pulou para
fora de sua blusa. O pingente nele, uma pena dourada, refletiu a luz fraca e
brilhou. A luva de seu oponente o acertou. De alguma forma, ele deve ter
prendido a luva na corrente fina, porque, assim que Lore se movimentou de
novo, o fecho se rompeu e, de repente, o pingente estava no chão aos seus
pés.
Lore usou os dentes para abrir a tira de velcro da luva e deixar a mão livre.
Ela se agachou quando o oponente desferiu outro golpe, recuperando o colar
e o enfiando no bolso traseiro de seus jeans, por segurança. Quando calçava a
luva novamente, seu corpo se inflamou com uma nova onda de remorso.
Quem lhe deu o colar foi Gil.
Lore voltou-se para o garoto, lembrando a si mesma que não podia matá-lo.
Poderia, entretanto, quebrar o narizinho lindo dele.
O que, para a felicidade da multidão, ela fez.
Sangue explodiu do rosto dele, enquanto ele xingava.
— Acho que já passou da hora de o bebezinho dormir — disse ela,
lançando um olhar de volta para Frankie para ver se ele se lembraria de
finalizar a luta. — Na verdade…
Ela viu o punho vindo em sua direção com a visão periférica e se virou bem
a tempo de levar um soco na lateral da cabeça, em vez de no olho. O mundo
escureceu, então explodiu novamente em claridade e cor, mas ela conseguiu
se manter de pé. O garoto cantou vitória, jogando os braços para o alto, com
o nariz ainda sangrando. Ele deu uma guinada na direção dela, e, no
momento em que ela percebeu o que estava acontecendo, já era tarde.
Lore levou instintivamente as luvas até o peito em defesa, mas não era onde
ele estava mirando. O garoto passou o braço ao redor do pescoço dela e
esmagou os lábios nos dela.
O pânico era cegante, explodindo da pele de Lore como gelo; isso a trancou
fora da própria mente. Ele pressionou o corpo dele mais firmemente, e sua
língua desajeitadamente na dela, enquanto a multidão uivava ao redor deles.
Algo se abriu dentro da jovem, e a pressão que vinha sendo acumulada em
seu peito por semanas se libertou com um rugido de fúria. Ela levou o joelho
com força entre as pernas dele. O rapaz caiu como se ela tivesse cortado sua
garganta, gritando enquanto ia em direção ao chão. Então, ela atacou.
A próxima coisa da qual Lore se lembra foi de ser puxada para longe do
chão, ainda chutando e rosnando. Suas luvas estavam cheias de sangue, e o
que restou do rosto dele estava irreconhecível.
— Pare! — Grande George, um dos seguranças de Frankie, deu-lhe uma
leve sacudidela. — Querida, ele não vale a pena!
O coração de Lore esmurrava suas costelas, batendo rápido demais para que
ela recuperasse o fôlego. Seu corpo estremecia enquanto Grande George a
colocou de volta no chão, segurando-a, até que ela assentiu com a cabeça,
indicando estar bem. Da parte dele, Grande George foi lentamente até o
garoto, gemendo no tatame, e o cutucou com o pé.
Conforme as batidas no ouvido de Lore diminuíram, ela percebeu que o
porão estava em silêncio total, com exceção dos sons que vinham da cozinha
no andar de cima.
Um sentimento de horror rastejou por dentro dela, dando um nó em seu
coração. Dentro de suas luvas, seus dedos se fechavam ao ponto de ficarem
doloridos. Ela não apenas perdera o controle, mas escorregara de volta para o
lado de si mesma que pensou ter matado há anos.
Essa não sou eu — pensou ela, limpando o suor do buço. — Não mais.
A vida era mais do que isso.
Desesperada para garantir o pagamento da noite, Lore ignorou a bile e o
ódio intenso que sentia pelo pedaço de imundície choramingando no chão e
deu um sorriso acanhado. Ela levantou as mãos e deu de ombros.
Os espectadores a recompensaram com gritos animados, levantando os
copos no ar.
— Você não ganhou… você roubou — disse o garoto. — Não foi justo…
você roubou!
Esse era o problema de garotos como ele. O que ele sentia naquele
momento, aquela raiva, não era o mundo caindo sobre ele. Era uma ilusão
sendo quebrada, aquela que o fez pensar que merecia ter tudo, e que isso lhe
era devido simplesmente por existir.
Lore tirou as luvas e inclinou-se sobre o garoto. A multidão se calou, com
rostos excitados, como corvos famintos.
— Quem sabe na próxima você ganhe no choro — disse ela, docemente,
enquanto pressionava o curativo dele com força, dessa vez com a mão
despida. O gongo soou por cima dos gritos de ultraje do rapaz, finalizando a
luta. Grande George o arrastou de volta para o seu grupo de amigos.
Lore começou a andar na direção de Frankie. Foi um erro vir aqui nesta
noite. Mesmo agora, ela não conseguia distinguir se seu corpo queria sair
correndo dali ou gritar.
Ela foi até a borda do ringue quando a próxima luta foi anunciada.
— Próxima luta: Áurea contra Gêmeos.
Lore lançou a ele um olhar incomodado, que foi retribuído com o
característico sorriso despreocupado do organizador de lutas. Frankie
levantou cinco dedos. Ela balançou a cabeça, e ele levantou mais três. Notas
amassadas balançavam no ar ao redor dela, vibrando conforme a multidão se
apressava para fazer suas apostas.
Ela precisava ir para casa. Sabia disso, mas…
Lore ergueu dez dedos. Frankie fez uma careta, mas gesticulou para que ela
voltasse ao ringue. Ela calçou as luvas novamente e se virou. Se esse era um
dos amigos do garoto, ela pelo menos se divertiria.
Não era.
Lore cambaleou para trás. Seu oponente estava de pé bem onde a luz
lançada pela luminária acima não alcançava, claramente dando boas-vindas à
escuridão. O jovem deu uns passos para frente, o suficiente para que o fraco
brilho capturasse a máscara de bronze que obscurecia seu rosto.
A respiração de Lore pesou em seus pulmões.
Caçador.
DOIS
UMA ÚNICA PALAVRA PASSOU COMO UMA LABAREDA EM SUA MENTE. — CORRA.
Mas seu instinto exigia outra coisa, e o corpo obedeceu. Ela entrou em
postura de combate, sentindo gosto de sangue enquanto mordia o interior de
sua boca. Cada parte de si parecia vibrar, eletrificada por medo e fervor.
Você é uma idiota — disse Lore a si mesma. Teria que matá-lo na frente de
todas essas pessoas ou encontrar um jeito de levar a briga para fora e fazer
isso lá. Aquelas eram as únicas opções que permitiu-se considerar. Lore não
estava prestes a morrer em um tatame encharcado de bebida no porão de um
restaurante chinês que não servia nem mesmo mapo tofu.
A altura do oponente era muito superior à de Lore, de tal modo que a fez
tentar fingir que não se preocupava com isso. Ele tinha pelo menos quinze
centímetros de vantagem sobre ela, apesar de ela mesma ser alta. A blusa
cinza simples e a calça de moletom que usava eram justas demais para ele,
esticando-se sobre sua forma atlética. Cada músculo de seu corpo era
perfeitamente definido, como os daqueles homens que ela apenas vira nos
vasos antigos de seu pai. A máscara que usava era a de um homem com
expressão raivosa, como se soltasse um grito de guerra.
A Casa de Aquiles.
Bem — pensou Lore, de forma vaga. — Merda.
— Não luto com covardes que não mostram o rosto — disse ela, com
frieza.
A resposta foi calorosa, fazendo vibrar uma risada reprimida.
— Imaginei.
Ele tirou a máscara e a deixou no canto do ringue. O resto do mundo foi
consumido em chamas.
Você está morto.
As palavras ficaram presas em sua garganta, sufocando-a. A multidão
empurrou Lore para a frente, em direção ao tatame, mesmo enquanto ela dava
um passo para trás, mesmo enquanto lutava pelo ar que não parecia chegar
até ela. Os rostos à sua volta se transformaram em borrões na escuridão que
permeava sua visão.
Você deveria estar morto — pensou Lore. — Você morreu.
— Está surpresa? — Havia um tom esperançoso na voz dele, mas seus
olhos estavam buscando por algo. Ansiosos.
Castor.
Os seus traços de outrora prometiam se tornar algo parecido com o que ela
via ali, mas estavam ainda mais afiados e definidos agora que a plenitude da
juventude se esvaiu de seu rosto. Era assustador o quando sua voz estava
grave.
Por um terrível momento, Lore se convencera de que estava em um sonho
lúcido. Que isso apenas terminaria da mesma forma que os sonhos sobre
quando seus pais e irmãs ainda estavam vivos. Não tinha certeza se deveria se
sentir enjoada ou começar a chorar copiosamente. A pressão foi se
acumulando em seu crânio, imobilizando-a, sufocando qualquer alegria que
possa ter vazado como sangue em meio ao choque.
Mas Castor Aquileu não havia sumido. As dores da luta anterior de Lore
ainda estavam ali, latejando. O cheiro de bebida e fritura estava em todo
canto. Ela sentia cada gota de suor grudando em sua pele, correndo por seu
rosto e costas. Isso era real.
Mas Lore ainda não conseguia se mexer. Não conseguia parar de olhar para
o rosto dele.
Ele é real.
Ele está vivo.
Quando um sentimento finalmente quebrou todo aquele torpor, não foi o
que ela esperava. Era raiva. Não do tipo selvagem, que consome, mas tão
afiada e impiedosa quanto as espadas com as quais treinavam no passado.
Castor estava vivo e a deixara sofrer com o luto por sete anos.
Lore passou uma das mãos enluvadas pelo rosto, tentando recuperar o foco,
mesmo quando parecia que seu corpo se dissolveria. Já era travado um
combate ali. Ele encaixara o primeiro golpe, mas esta era a pessoa que
outrora fora seu melhor amigo, e ela sabia a melhor forma de retribuir.
— Por que eu estaria? — disse Lore, com dificuldade. — Não faço ideia de
quem você é.
Um toque de incerteza passou pela expressão de Castor, mas desapareceu
quando ele ergueu uma sobrancelha e deu a ela um pequeno sorriso como
sinal de que esperava por isso. Ao lado de Lore, vários homens e mulheres na
plateia faziam um burburinho e começaram a cochichar.
Não havia como tirá-lo dali sem fazer uma cena, e não havia como ela
deixá-lo sair desse porão ileso depois de tudo que aconteceu. Lore deu meia-
volta para dar o sinal a Frankie, na esperança de que ninguém pudesse ver seu
coração tentando fugir de seu peito a marteladas.
O gongo soou. A multidão vibrou. Ela entrou em posição de combate.
Vá embora — pensou ela, encarando Castor por cima das luvas. — Me
deixe em paz.
Ele não se importara o suficiente para tentar encontrá-la nos últimos sete
anos, então qual era sua intenção agora? Zombar dela? Tentar forçá-la a
voltar?
Não conseguiria isso nem sonhando.
— Por favor, seja gentil. — Castor ergueu as mãos, olhando para fenda em
uma das luvas que pegou emprestado. — Não treino há um tempo.
Ele não apenas estava vivo, como também terminara o treinamento de
curandeiro em vez de lutador, como planejado. Sua vida seguira exatamente
como deveria, sem que ela estivesse presente para atrapalhar.
E ele nunca foi atrás da amiga. Nem quando ela mais precisou dele.
Lore manteve seus passos leves, rodeando-o. Sete anos se estendiam entre
eles, como o mar vinho-escuro.
— Não se preocupe — disse ela, friamente. — Isso vai terminar rápido.
— Não tão rápido, espero — disse ele, com outro sorriso aparecendo em
seus lábios.
Seus olhos escuros capturaram a luz das lâmpadas que balançavam no teto,
e suas íris pareciam faiscar. Ele tinha um nariz longo e retilíneo; apesar de ter
sido quebrado inúmeras vezes nos treinamentos, seu maxilar foi esculpido em
ângulos perfeitos e suas maçãs do rosto eram como lâminas.
Lore desferiu o primeiro soco. O jovem se esquivou para o lado para evitá-
lo. Era mais rápido do que ela lembrava, mas seus movimentos vacilavam.
Por mais forte que seu corpo aparentasse ser, Castor estava fora de ritmo.
Isso a fez pensar em uma máquina enferrujada se esforçando para voltar ao
trabalho habitual. Como se fosse uma confirmação das suspeitas de Lore, ele
se esquivou um pouco demais e precisou se equilibrar para não cair.
— Você está aqui para lutar ou não? — rosnou ela. — Sou paga por luta,
então pare de desperdiçar meu tempo.
— Nem sonharia com isso — disse Castor. — A propósito, você ainda
deixa o ombro direito cair.
Lore fez uma careta, resistindo ao impulso de corrigir a postura. Eles já
estavam perdendo a audiência. O chão do porão estremeceu com a multidão
batendo forte com os pés no mesmo compasso, tentando forçar uma mudança
no ritmo da luta.
Castor pareceu perceber isso também — ou então foram as bebidas que
jogaram nele —, porque seu semblante agora exibia um foco recém-
encontrado. As lâmpadas continuavam a balançar nos cordões, projetando
sombras. Ele se entrelaçou para dentro e para fora delas, como se soubesse se
tornar escuridão encarnada.
Fez uma finta para a direita e lançou um soco hesitante no ombro dela.
A fúria pintou o mundo de Lore de branco escaldante. Isto mostrava o quão
pouco ele a respeitava agora. Não a via como uma oponente digna, mas como
uma piada.
Lore bateu com o punho no rim de Castor e, enquanto ele se curvava, sua
mão esquerda esmurrou a orelha do rapaz. Ele cambaleou até cair apoiado em
um dos joelhos, quando não conseguiu recuperar o equilíbrio.
Ela desferiu outro soco, dessa vez direcionado ao rosto, mas ele ainda tinha
reação suficiente para bloqueá-lo. O impacto reverberou pelo braço da jovem.
— Continue brincando comigo — alertou ela. — E veja no que isso vai dar.
Castor a encarou por entre o cabelo escuro e bagunçado, que caía nos olhos,
e a pele de marfim dele estava corada. Ela o encarou de volta. Suor pingava
do queixo de Lore, e seu corpo ainda pulsava com a força da tempestade
dentro dela. As luzes balançantes dançavam nas íris escuras dele novamente,
quase de maneira hipnótica. O último resquício de humor havia deixado o
rosto dele, como se ela o tivesse arrancado de lá.
Ele se lançou para frente, passando um braço por detrás dos joelhos dela e
puxando-os para a frente. Em um momento, Lore estava em pé, no outro,
com as costas estateladas no chão, ofegando para conseguir puxar o ar. O
público foi ao delírio.
Levantou uma perna para chutá-lo para longe e ouviu a voz agradável de
Frankie alertar:
— Sem chutes!
Certo.
Ela rolou com força para a esquerda, chegando à beirada do tatame e
ficando novamente de pé. Dessa vez, quando lançou uma rajada de socos na
direção de Castor, ele estava preparado, retribuindo golpe por golpe. Ela se
esquivou e balançou, se afundando na correnteza da luta. Seus lábios se
curvaram em um sorriso involuntário.
Houve um movimento acima do porão enquanto alguém descia as escadas.
Aquele único olhar custou à Lore — Castor recuou o braço e lançou um
golpe poderoso no estômago dela.
Ela arfou, tentando não se curvar. Os olhos de Castor se alargaram, quase
que amedrontados.
— Você está b…? — disse ele.
Lore abaixou a cabeça e se dirigiu direto ao peito dele. Foi como bater em
uma parede de cimento. Cada articulação de seu corpo sentiu o baque, e sua
visão estava cheia de pontinhos pretos, mas ele caiu, e ela foi junto.
Castor rolou com ela para que pudesse ficar por cima, tendo cuidado para
não esmagá-la com seu peso conforme a pressionava no tatame. Lore se
satisfez por ouvi-lo respirando com a mesma dificuldade que ela.
— Você morreu — disse ela, com pouco ar, enquanto lutava contra o corpo
dele.
— Não tenho muito tempo — disse ele. Então, ele mudou para a língua
antiga. — Preciso da sua ajuda.
O sangue de Lore gelou com aquelas palavras, ditas em uma língua que ela
tentava se forçar a esquecer.
— Algo está acontecendo — disse ele. A luta havia aquecido o corpo dele
de um jeito que quase queimava ao toque. — Não sei em quem posso confiar.
Lore virou o rosto.
— E isso é problema meu? Estou fora.
— Eu sei, mas também preciso alertar você… droga — sussurrou Castor, e
então xingou de novo na língua antiga, só por garantia. Ele trocou de posição
para que Lore ficasse sobre ele. Ela estava vagamente ciente da audiência
entoando a contagem obrigatória de oito segundos. Tarde demais, percebeu
que o rapaz estava deixando-a ganhar.
— Idiota — disse ela.
O olhar de Castor estava fixo na escada, na figura que ela vira de relance
antes. Evander — parente de Castor e eventual parceiro de brincadeiras deles
quando eram crianças.
Van vestia um manto preto simples de caçador, com o cintilar de algo
dourado fixado logo acima do coração. Sua pele escura brilhava com o vapor
que vinha de trás dele, da cozinha no andar de cima, em um tom tão frio
quanto o de uma pérola. Ele havia aparado o cabelo rente à pele, o que só
servia para destacar o quão devastadoramente bonito ele era. Seus olhos eram
nítidos enquanto ele sinalizava algo para Castor.
— Acabou o tempo — disse Castor. Lore não tinha certeza se ele estava
falando da luta ou de outra coisa.
— Espere — disse Lore, mesmo sem saber por quê. Mas Castor já a havia
levantado de cima dele. Suas mãos se demoraram na cintura dela um segundo
a mais do que eles pareceram perceber.
— Ele está procurando algo, e eu não sei se é você — disse Castor. A
cabeça de Lore ficou aérea conforme aquelas palavras eram absorvidas. Só
existia um ele que importava. Ela lutou para puxar o próximo fôlego. Lutou
contra a crescente estática nos ouvidos.
— Você pode estar cansada do Ágon, mas não acho que o Ágon se cansou
de você. Tenha cuidado. — O olhar dele se tornou intenso quando se abaixou
e sussurrou em seu ouvido. — Você ainda luta como uma Erínia.
Castor se afastou, fazendo reverência, aceitando as vaias da multidão e um
copo descartável que lhe foi oferecido. Abriu caminho em meio à plateia,
indo direto para as escadas. Conforme Castor o alcançava, Evander apertou
seu braço, e, juntos, sumiram na cozinha abafada.
Alguém agarrou o pulso de Lore, tentando erguer seu braço no ar, mas Lore
já estava em movimento, passando por entre a multidão.
O que você está fazendo? — gritou sua mente. — Deixe-os ir!
Ela trombou com alguém perto das escadas, com força o suficiente para que
ele cambaleasse para trás, contra a parede mais próxima. Lore girou no
próprio eixo com parte de um pedido de desculpas já escapando de seus
lábios, quando viu quem era.
Merda.
A pele dele era branca como osso, seus olhos escuros se arregalaram de
uma forma quase cômica quando encontraram os dela. Descolado, com o
cabelo raspado de um jeito meio hipster. Porte magro e jeans justos. Colar
feito de crina de cavalo trançada.
Miles.
Inacreditável — pensou ela. Como diabos essa noite conseguiu ficar pior?
— Espere aqui! — ordenou ela.
Com um aceno de cabeça atordoado de Miles, Lore correu para a cozinha,
passando por cozinheiros irritados e pelo véu de vapor até encontrar a porta
de emergência que estava desativada e irromper na rua escura.
O ar brilhava em um tom de vermelho que vinha das lanternas traseiras do
SUV acelerando para longe. Um único copo descartável rolou até seus pés,
com algo escuro manchado na lateral.
Tinta.
Ela se virou em direção à fraca luz da luminária de emergência acima da
porta, tentando analisar os traços irregulares de cada letra. A pulsação batia
selvagemente em suas têmporas.
Apodidraskinda.
Uma brincadeira de criança. Esconde-esconde.
Um desafio. Venha me encontrar.
Lore jogou o copo fora em uma lixeira ali perto e saiu dali.
TRÊS
Eles passaram de volta à luz fraca da rua, carregando seus cafés da manhã
com firmeza. A tempestade se transformara em um fino manto de neblina. A
cidade de Nova York era um dos poucos lugares no mundo que parecia mais
sujo depois de chover, mas Lore amava isso.
Conforme trilhavam o caminho de volta para casa, Lore decidiu que
contaria a Miles que passaria os próximos dias viajando, mesmo que isso
significasse ter que pegar um ônibus e dormir no meio da floresta, onde
ninguém poderia encontrá-la.
Nesse momento, porém, nada parecia melhor do que passar o resto da
manhã de domingo na cama. Lore caminhou de braços dados com Miles
enquanto eles desciam a rua adormecida, Miles cantarolava uma música que
ela não reconheceu. Tentou não pensar em nada. Estavam a uma quadra de
casa quando Miles parou de repente, puxando-a de volta.
— O que foi? — perguntou ela.
Ele foi se aproximando da parede da Martin’s Deli, o lugar que baniu Lore
por reclamar dos seus bagels vergonhosamente amanhecidos, e passou os
dedos por uma mancha de alguma substância escura. Lore o puxou para trás
apavorada.
— Ok, acho que você precisa de um lembrete das regras de Nova York: um,
não pegue nada que tentem dar a você na Times Square; dois, não toque em
substâncias misteriosas no chão e paredes…
— Acho que é sangue — interrompeu Miles.
A mão de Lore se afastou dele.
Ele girou, vasculhando o chão.
— Puta merda. Tem muito sangue…
E realmente tinha. Lore confundira as gotas salpicadas no cimento com
chuva, mas agora ela conseguia ver o sangue escuro sendo lavado até a
sarjeta conforme a tempestade começou a piorar.
Miles se projetou para a frente, levando a cabeça de um lado para outro
para procurar a pessoa que estava sangrando. Lore o agarrou pelas costas da
camisa com uma das mãos e, depois de entregar-lhe sua comida e café, tirou
um canivete de seu chaveiro com a outra.
— Fique atrás de mim — ordenou ela.
Era como seguir o rastro de uma presa ferida. A vítima pareceu ter
cambaleado, se movendo de um ponto de apoio para outro — um poste de
luz, um corrimão, um carro estacionado. Com uma crescente sensação de
receio, Lore percebeu que o rastro estava indo na direção de sua casa.
A mão de Lore apertou mais sua arma cega enquanto se aproximavam. A
trilha de sangue seguiu em direção da porta de casa e dos alegres vasos de
flores que Gil havia disposto ao longo das escadas de entrada.
Miles engasgou, e Lore seguiu o olhar dele.
Uma mulher estava sentada com as costas apoiadas na varanda do edifício,
ao lado das latas de lixo vazias. Seu manto azul-claro estava encharcado da
chuva.
Lore sentiu o ar acelerar em torno dela, como o momento antes de um raio
cair.
— Mostre-me suas mãos — disse Lore, engasgando e apontando sua arma
patética.
Os olhos da deusa eram da cor de fumaça sacrificial, manchas douradas
brilhavam nas íris, flutuando como brasas. A única sugestão de poder divino
suprimido.
Eles a chamavam de deusa dos olhos cinzentos, mas Lore entendia agora
que não era por conta da cor deles, e sim porque quando ela encarava você,
da mesma forma que encarava Lore agora, sua idade verdadeira se revelava.
Guerras, civilizações, monstros, morte, tecnologia, exploração — aqueles
olhos haviam assistido a milênios passarem e os mensuravam do mesmo jeito
que Lore observaria casualmente a hora do dia.
Mechas de cabelos da cor de ouro polido estavam espalhadas pelo rosto da
deusa como cicatrizes. Até mesmo em sua forma atual, ela era
perturbadoramente perfeita, seus traços eram fortes e em perfeita simetria.
A deusa se recostou, erguendo a palma da mão do ponto em que fazia
pressão, no quadril. Quando repousavam em seu colo, os dedos longos e
elegantes se curvaram como garras.
A mão estava vazia, mas manchada de sangue.
Lore encarou, parcialmente ciente de que havia abaixado o próprio braço. A
deusa inclinou-se para a frente, fazendo com que a laceração em seu flanco
jorrasse sangue quente e malcheiroso. Era muito grande e irregular para ter
sido causado por uma flecha ou uma bala. Portanto, foi por uma lâmina.
Aquele ferimento devia ter sido feito por um profissional.
Lore estava surpresa por ela ter conseguido chegar tão longe.
Seus pensamentos eram todos lógicos, mas Lore sentia como se estivesse se
movendo por um sonho.
— Alguém claramente conseguiu adivinhar direitinho a sua chegada —
disse Lore, com dificuldade. — Deu azar com a aterrissagem?
— Dê-me assistência.
Lore deu um pulo. Meio morta ou não, cada uma de suas palavras soavam
como uma espada atingindo um escudo. Elas vibraram pelos nervos de Lore
até que cada pelo de seu corpo arrepiasse. Havia tanto tempo desde que Lore
ouvira alguém falar uma forma tão pura da língua antiga que ela precisou de
um momento para traduzir.
Quando terminou, sua voz era como um fino sussurro.
— O que você disse?
Os olhos da deusa estavam desfocados agora, perdendo rapidamente parte
da força. Não havia medo algum em seu rosto quando ela retornou a mão
para o flanco a fim de pressionar o ferimento, apenas uma descrença amarga.
Rancor. Quando ela falou novamente, as palavras saíram com muito esforço,
mas o comando pareceu ecoar pela alma de Lore.
— Dê-me… assistência… mortal.
Então, Atena dos olhos cinzentos caiu sobre o cimento e perdeu a
consciência.
QUATRO
LORE GIROU EM SEU EIXO. UM HOMEM QUE ELA NÃO RECONHECIA, VESTINDO UM
manto idêntico ao dela, estava parado no fim do corredor, bem no topo da
escada.
— Eu… — ela começou a dizer, falando a primeira coisa que veio à mente.
— Pensei ter ouvido algo.
O olhar do homem se estreitou. Lore deslizou instintivamente uma das
mãos para dentro do manto a fim de pegar a chave de fenda, mas se forçou a
parar. Ela apenas pareceria ainda mais culpada se não fosse na direção dele,
então foi.
— Ele parecia estar correndo algum perigo? — perguntou o homem, na
língua antiga. Uma nota de ansiedade ressoou entre as palavras. — Pensei
que ele estava com acompanhantes.
Acompanhantes?
— Acabou não sendo nada — disse Lore, suavemente, se mantendo fora do
alcance da fraca luz de velas em uma mesa próxima. Segurou a máscara com
mais força, desejando ter vestido aquela coisa idiota. — O andar está seguro.
Antes de sair de casa, Lore pegara um marcador e desenhara a letra alfa,
junto com o símbolo da linhagem, no pulso esquerdo. Era uma marca que ela
via traçada no peito e nos braços dos Aquilídeos que treinaram com ela.
Levantou preguiçosamente a manga, fingindo coçar uma coceira fantasma.
A expressão do homem relaxou quando percebeu a tatuagem falsificada.
Embora sempre houvesse espiões dispostos a fazer o que fosse necessário
para invadir as defesas de uma linhagem, os caçadores eram supersticiosos o
suficiente para acreditar que estampar o símbolo de outra casa no corpo
irritaria seus ancestrais, fazendo com que eles os abandonassem.
Visto que a desgraça vinha sendo uma companheira constante de Lore pelos
últimos sete anos, ela tinha certeza de que seus ancestrais não tinham como
odiá-la mais do que já odiavam.
— Que bom — disse o caçador. — Vamos lá para baixo. A gente deve
conseguir comer alguma coisa antes de nos chamarem de volta para ficar de
vigia. Você é uma das garotas de Tassos, não é?
— Acertou de primeira — disse Lore, deixando o rosto relaxar em um
sorriso. — Como…
Uma porta na outra ponta do corredor se abriu, e várias meninas, com
menos de cinco anos de idade, foram conduzidas para fora de um dos
cômodos.
O coração de Lore se apertou como um punho.
Todas as meninas vestiam uma túnica branca simples, com detalhes
bordados em dourado combinando com as sandálias e os cintos. Estilos
diferentes de coroas e laços estavam entrelaçados em seus cabelos trançados.
Uma mulher, com cachos escuros em pequenos e apertados anéis, emergiu
atrás delas. A seda violeta de sua toga longa e drapeada estava estampada
com símbolos clássicos e ilustrações, incluindo uma de Aquiles preparado
para a guerra.
A mulher gesticulou para as meninas, e todas elas, cada uma das nove,
ficaram em silêncio e imóveis, e seus pequenos corpos se enrijeceram com o
que Lore sabia ser obediência polida pelo medo.
Um homem emergiu do cômodo do outro lado do corredor como um raio
estrondoso. Ao vê-lo, Lore ficou com uma expressão furiosa.
Philip Aquileu estava grisalho, e a permanente carranca em seu rosto havia
apenas se intensificado com a idade. Suas cicatrizes pareciam mais
proeminentes do que nunca em seu rosto pálido, e, embora o bode velho
ainda tivesse o peito protuberante, o corpo debaixo do manto safira vivo
claramente havia murchado por ele ter deixado o auge da juventude para trás.
Sua esposa, Acantha, o seguia, elegante e perfeitamente penteada. Ela
sempre foi a melhor caçadora entre os dois — tornando-se praticamente
lendária até a conclusão de seu primeiro Ágon. Mas seu casamento e a
aliança temporária que ele trouxe entre as Casas de Aquiles e de Teseu
cortaram suas asas.
— Pater — disse a mulher em violeta, se curvando para Philip —, permita-
me apresentar…
Ele circulou pelas meninas com um olhar de desgosto. Uma delas arriscou
lançar um olhar na direção dele. O dorso da mão do homem chicoteou na
têmpora dela.
A raiva cresceu dentro de Lore. Ela deu um passo na direção deles, mas
parou quando a menina se endireitou novamente, com o rosto
cuidadosamente impassível conforme erguia o queixo.
Você precisa encontrar Castor — lembrou Lore a si mesma. — Não se
entregue tão facilmente.
Mas as meninas… essas crianças… ela não podia suportar. Estar dentro da
Casa Tétis de novo a deixara vulnerável por um momento, mas agora Lore se
lembrava de seu ódio — dos caçadores, dessa vida. Isso a atingiu como um
raio.
A visão da menina se curvando para aquele porco com um respeito que ele
não merecia, na esperança de nada além de agradá-lo, fez com que ela
quisesse gritar.
Philip não ligava para aquelas crianças, assim como não ligou para Castor.
O fato de que o arconte havia negado pessoalmente ao pai de Castor
continuar financiando o tratamento médico do garoto foi o suficiente para que
Lore o odiasse nesta vida e por toda a eternidade.
— Estas foram as melhores que conseguiu? — sibilou ele para a mulher de
violeta. — Disse-lhe para selecionar meninas bonitas. Onde encontrou estas,
se arrastando pelos túneis do metrô junto com os outros ratos?
— Pater? — disse a mulher, com a voz mais baixa agora.
— Talvez — disse Acantha, colocando uma mão tranquilizadora sobre o
braço do marido. Ela compartilhou um olhar disfarçado com a mulher,
inclinando a cabeça até que o fio dos brincos de diamantes pendurados em
suas orelhas brilhasse à luz das velas. — Talvez, Pater, a visão delas seria
menos ofensiva para vós se ela as pintasse de dourado.
Philip Aquileu soltou um rosnado baixo antes de latir.
— Que assim seja. Lembre-se de que não é apenas a minha decepção que
você deve temer.
— Sim, Pater — disse a mulher, apressando as meninas até ela. — Sim, é
claro. Elas estarão prontas a tempo para a cerimônia.
Cerimônia — observou Lore. Não apenas uma celebração.
Philip virou-se, percebendo a presença dela e do outro caçador no fim do
corredor.
— Por que estão parados aí como idiotas preguiçosos, querem levar uma
surra?
Nem Lore nem o outro caçador precisaram de nenhum outro incentivo para
fugir escada abaixo.
Lore deixou que o homem conduzisse a breve conversa entre eles e
manteve a cabeça baixa, contando os degraus conforme passavam por
debaixo de seus pés. O cheiro de incenso e óleo de cipreste era o suficiente
para fazer a cabeça de Lore ficar anormalmente pesada, e o corpo, como se
estivesse embriagado.
O salão de treinamento, o único andar aberto no edifício, fora convertido
para hospedar a cerimônia. A entrada estava coberta por um tecido branco de
seda, grosso o suficiente para encobrir o cômodo atrás dele. Dois caçadores
em mantos cerimoniais completos, capacetes e corpos pintados de cores
vivas, vigiavam a porta.
Lore deixou que o outro caçador se aproximasse primeiro, em seguida
estendeu a mão para o braço estendido do outro guarda, segurando o
antebraço dele com dois dedos estendidos, da mesma forma que Castor
relutantemente a ensinou anos atrás, quando ela havia ganho outra aposta. O
guarda retribuiu o gesto.
— Bem-vinda, irmã — sussurrou ele e, depois, deu um passo para o lado.
Lore assentiu, depois desceu a máscara de bronze sobre o rosto, sentindo-se
melhor com isso quando viu que alguns dos outros caçadores fizeram o
mesmo. Ela não queria se destacar como a única usando máscara, mas o risco
maior era o de alguém reconhecê-la.
Podem ter se passado sete anos desde a última vez que pisou ali, mas sua
aparência não mudou tanto assim com a idade, e qualquer um que conhecesse
a mãe de Lore a veria agora no rosto dela. Ela tinha o mesmo cabelo
indisciplinado e grosso, a pele morena e os olhos castanhos.
Mas talvez não a reconhecessem. Sua mãe estava morta, e, ainda que
ressentimentos pudessem ser alimentados por si mesmos ao longo dos
séculos, memórias desapareciam com o passar dos anos. Não havia ninguém
ali que se importasse em se lembrar de Helena Perseus.
Ninguém, exceto sua própria filha.
Lore arrastou a cortina de seda para o lado, apenas para ser interrompida.
Levou um momento para que percebesse para o que estava olhando.
Um templo. Ela estava dentro de um templo.
Conforme Lore dava outro passo para a frente, a ilusão se revelou. Imagens
holográficas fantasmagóricas estavam sendo projetadas nos espelhos
transparentes que cobriam as paredes e o teto. Colunas reais e falsas se
erguiam em direção à imagem digital de um teto abobadado, decorado com
cores ousadas e aparentemente enfeitadas de dourado e prata.
Mesmo sabendo que era tudo de mentira, um entusiasmo cresceu nela — o
qual ela não queria analisar muito profundamente.
Lore deu meia-volta e percebeu que as colunas holográficas na entrada
davam para a cena diurna de uma paisagem marítima rochosa e selvagem. As
sombras do cômodo se intensificavam quanto mais ela se afastava. Dando
espaço para a sensação de um sonho se transformando em um pesadelo.
Fileiras de braseiros davam direto a uma espécie de altar; eles iluminavam o
piso decorativo que havia sido colocado sobre o assoalho maltratado de
madeira no qual Lore e centenas de outros se escoriaram, se arranharam e
sangraram.
— O que diabos…? — sussurrou ela, incapaz de deter a si mesma.
Uma piscina com velas flutuantes e flores espalhadas estendia-se diante do
altar. Entre elas estava um assento imponente — um trono, na verdade, com
um delicado sol esculpido na parte de trás. Parecia ter sido feito de ouro
fundido ou folheado pelo metal.
Julgando pelo que já havia visto, Lore tinha a impressão de que a primeira
opção estava correta.
O homem e a mulher ao redor do trono dançavam ao gentil som de uma
lira, outros rodopiavam pelo salão armados com vinho e fofocas, em vez de
espadas. Mesas compridas cobertas por toalhas brancas como ossos tomavam
o lado direito do salão. Os Aquilídeos exibiam suas mais estimadas vasilhas e
louças cerimoniais, e todas transbordavam com uma vívida variedade de
frutas frescas. Além disso, havia travessas de prata contendo carne em cortes
bem finos e peixe, queijo, doces folhados e montes de azeitonas recheadas.
Com um olhar rápido ao redor para se certificar de que ninguém a vigiava,
Lore roubou uma taça de vinho, virou-a de uma só vez e, então, começou a
avaliar o banquete à sua frente. Ela precisava encontrar Castor o mais rápido
possível, mas sua última refeição havia sido feita há horas, e ela não ignoraria
a dor aguda no estômago, apenas se precisasse.
Quando a mulher que caminhava lentamente por ali — a que vinha
contemplando a amygdalota de um jeito que Lore conseguia entender muito
bem — finalmente seguiu em direção à baklava, Lore pegou um dos biscoitos
de amêndoas. Ela estava tentada a levar uma das maçãs cobertas de chocolate
enroladas em folhas de ouro para Atena — apenas para ver como ela reagiria.
Sentindo-se mais firme após colocar comida no estômago, Lore voltou sua
total atenção para o enorme salão e adentrou mais fundo nas sombras,
caminhando pela extensão da parede mais à direita. As imagens projetadas
não pareciam nada mais do que distorções, agora que ela olhava de perto.
Beleza, Cas — pensou Lore. — Cadê você?
Moveu-se novamente, dessa vez ficando próxima à piscina brilhante, mas
fora do halo de luz. Lore procurou por ele pelo salão. Os Aquilídeos, como
todas as linhagens de caçadores, tinham raízes em seu antigo lar, mas cada
século trazia consigo maridos e esposas de todo o mundo. Os rostos ao redor,
com uma variedade de tons de pele e feições, refletiam isso.
Seu pulso acelerou, mesmo que ela estivesse parada.
Estar de volta ali, naquele lugar, no meio daquelas pessoas… era ruim para
ela. Lore queria ir embora, mesmo que não fosse. Queria desviar o olhar,
mesmo que não conseguisse.
Quando criança, havia ficado admirada com a ostentação das linhagens,
muito diferente da situação da própria família. Ela devorara os segredos
convidativos das tradições de seu mundo oculto e se sentira orgulhosa, tão
altiva quanto qualquer daemon, sabendo que sua família, dentre muitas
outras, havia sido escolhida. Eles eram os Puro-sangues, herdeiros dos
maiores heróis.
Isso não é nada além de uma festa à fantasia — pensou Lore.
Esse mundo era como as projeções distorcidas ao seu redor. Templos uma
vez foram locais sagrados de adoração, não de excessos autoindulgentes. As
linhagens foram despidas das verdadeiras crenças de seus rituais há séculos;
sua única religião era a brutalidade febril e o materialismo. Somente o
próprio Zeus recebia qualquer agradecimento, e mesmo assim os sacrifícios
eram gestos rasos nascidos da superstição, não da devoção.
Diversos membros de sua antiga turma de treinamento estavam aqui; vê-los
fez com que sua temperatura sofresse um pico repentino. Orestes, com aquele
babaca de marca maior, incomodando uma entediada Selene, uma das poucas
crianças que se dignara a falar com Lore nos três anos que ela treinou ali.
Ágata, mergulhando a mão na água para recuperar um bracelete de esmeralda
que havia derrubado; e do lado dela, Iesos, com bem mais cicatrizes do que
Lore lembrava que ele tinha — não que ela gostasse de se lembrar dele de
qualquer forma. O rapaz era obcecado com o fato de ela não ter um nome
“adequado” e “real”, e decidira chamá-la de Clóris, como se ela devesse se
sentir ofendida com aquilo.
Cadê você, Cas? — pensou ela novamente, angustiada.
Conforme o tempo passava e Lore continuava sem ver Castor, o desespero
começou a diluir o pouco de esperança que ela tinha. Talvez ele estivesse
trabalhando, curando caçadores feridos, ou será que estava descansando em
outra das propriedades da linhagem?
Embora a mãe dele tenha morrido em um Ágon logo depois de seu
nascimento, Lore estava surpresa de não ter visto o pai de Castor, Cleon.
Como gerente de longa data da Casa Tétis, ele morava no edifício e seria o
responsável por organizar tal festa.
Você já perdeu muito tempo — pensou Lore, indo em direção à entrada. Ela
precisava usar a distração da celebração para procurá-lo nos quartos do andar
de cima, e, se fracassasse nisso, roubaria qualquer suprimento médico que
pudesse encontrar e o levaria de volta para Atena.
Mas Lore não dera nem um passo quando um silêncio caiu sobre a Casa de
Aquiles. Os caçadores se inclinaram em direção à entrada, se afastando do
caminho iluminado até o altar. Os olhares famintos nos rostos ao redor e os
olhos brilhando febris com o vinho e a excitação embrulharam o estômago
dela.
Philip Aquileu apareceu no topo da escada; Acantha estava a um passo atrás
dele. Moveram-se com o ritmo da lira, os olhos fixos no altar conforme
caminhavam até o trono. Em vez de sentar-se nele, Philip ficou em pé do lado
esquerdo do trono e Acantha do lado direito.
Por um momento, Lore não entendeu a relutância de Philip. Mas, como a
colisão de uma onda desenfreada contra o litoral, a ficha acabou caindo.
A euforia daqueles ao seu redor. Os símbolos do sol, a lira e todos os louros
nos relevos e guirlandas ao redor.
Isso tudo foi feito para parecer com o Grande Templo na ilha de Delos.
A terra natal de Ártemis… e seu irmão gêmeo, Apolo.
— Ah… — inspirou Lore. Um choque percorreu sua coluna, deixando-a
eletrizada. — Ah…
Estavam todos errados, até mesmo Lore. O novo Apolo não residia na Casa
de Teseu, mas sim na Casa de Aquiles.
Mas não é Philip? — Olhou na direção do velhote, tentando ler sua
cautelosa expressão.
Interessante. Um acidente, talvez. Talvez Apolo tenha morrido antes que o
velho pudesse matá-lo. Não teria sido a primeira nem a última vez.
Crianças, da mesma idade que Lore viu no andar de cima, desceram os
degraus, todas com a pele pintada de dourado. Era quase insuportável olhar
para elas, tão orgulhosas enquanto seguravam uma vela em uma das mãos e
um pequeno objeto de prata na outra. Uma delas segurava um livro, outra um
telescópio, outra uma lira, outra uma máscara de teatro. Então, Lore
percebeu. Elas deveriam representar as Musas. Canta para mim, ó Musa…
Elas também formaram uma procissão até a piscina. Uma a uma, sentaram-
se na extensão da borda e colocaram suas velas na água. As chamas
flutuaram junto com as flores brancas.
Um fraco cantarolar preencheu o ar, parecendo se elevar de todos ao
mesmo tempo. A jovem mulher negra à lira começou a tocar uma nova
canção, que parecia espiralar até o beiral em notas de ar e luz. Ela também se
ajeitou na cadeira para ter uma visão melhor do que — ou melhor, de quem
— estava chegando.
Lore soube que devia prestar atenção na cena antes mesmo de ouvir os
fracos suspiros. Um calor repentino percorreu sua pele, um poder incendiário
que acendeu cada nervo de seu corpo em chamas.
Ele desceu as escadas como o primeiro raio de sol adentra pela janela de
manhã. Sua constituição era imaculada — alto, cheio de músculos e com um
rosto que ecoava na região mais doce da memória de Lore.
Castor.
DEZ ANOS ATRÁS
NÃO.
A palavra esmagou o crânio de Lore. Suas costas foram de encontro à
superfície espelhada da parede bem quando seus joelhos cederam.
Cas — pensou Lore, enquanto deslizava até se agachar.
Mesmo com seu corpo poderoso, sua maneira de andar não tinha a
confiança rígida de Atena ou a passada firme e reservada de Philip e Acantha.
Havia apenas a mesma estranheza que ela havia notado durante a luta deles,
como se os músculos do rapaz estivessem apertados enquanto caminhava até
o altar.
Castor — o novo Apolo — parecia estar se concentrando em manter os
braços relaxados e a cabeça erguida, mas de vez em quando olhava para
baixo, como se receasse tropeçar. Seus dedos se fechavam, um de cada vez,
apenas para voltarem a se abrir repetidas vezes a cada passo.
De todo modo, sua respiração ficou presa na garganta. A linhagem dele o
adornara em um quíton branco reluzente, e a seda do traje fora bordada com
símbolos dourados representando sua recém-divindade. Um dos ombros e
parte de seu tórax liso e musculoso estavam à mostra, e seus braços e pernas
estavam desnudos, a não ser pelas manoplas cintilantes em volta dos pulsos e
pelas tiras das sandálias.
O efeito era deslumbrante, mesmo antes de Lore notar a coroa de folhas de
louro douradas aninhada nas ondas escuras dos cabelos dele.
A face do novo deus era desprovida do sorriso provocativo que havia
mostrado à Lore durante a luta. Era desprovida de qualquer coisa; se ela não
tivesse visto a breve preocupação em seus olhos, talvez não o tivesse
reconhecido como sendo Castor.
Mas não é o Cas — lembrou-se. Não mais. Independentemente de quem
havia sido, seja lá quem possa ter se tornado, era algo diferente agora.
Lore não entendia como não percebera antes — era muito estranho ele ter
crescido tanto em relação a ela e estar no auge de sua forma física quando os
curandeiros Puro-sangues e os médicos Mundanos, por todos aqueles anos,
diziam que a morte poderia acometê-lo a qualquer momento. Ela até mesmo
considerou que as faíscas de poder nos olhos dele eram nada mais do que
suas íris escuras refletindo a luz das lâmpadas do porão do restaurante.
Ela criou uma história na qual pudesse crer. Vira um fantasma em vez de
um deus.
A máscara abafou sua respiração quente e rápida e a soprou de volta contra
seu rosto até que ela tivesse a sensação de estar sufocada. Como se sentisse
sua presença, o novo deus começou a se virar na direção dela, apenas para ser
interrompido.
— Meu senhor — chamou Philip. Castor virou-se para onde ele e Acantha
ainda estavam, nas laterais do trono. — Podemos começar? O sol está no
pico, ardendo intensamente pelo senhor.
— É claro — disse o novo deus tomando seu assento. Então, com mais
firmeza e força: — Minhas desculpas.
Como? — pensou Lore. — Como tudo isso é possível?
Castor era um garoto de doze anos no último Ágon. Mal tinha forças para
levantar a cabeça, muito menos para matar um dos últimos deuses antigos.
Isso tinha que ser um engano — de algum modo, isso era um engano.
É real — uma voz sussurrou em sua mente. Então, por que ele a procurou
no ringue? Por que os Aquilídeos se permitiram serem despistados por ele
após o recuperarem com segurança no Despertar?
Um sentimento de receio começou a consumi-la enquanto assistia a Philip
gesticular em direção ao trono que aguardava pelo deus. Havia um quê de
tensão no tom do homem — algo… algo. Lore se viu estudando o arconte
conforme o novo deus se aproximava dele.
As palavras de Castor retornaram a ela como se tivesse acabado de
sussurrá-las em seu ouvido. Algo está acontecendo. Não sei em quem posso
confiar.
Ela ainda não havia visto o pai dele — por sinal, também não vira Evander.
O pensamento seguinte da jovem veio com uma certeza súbita e implacável.
Philip vai matá-lo — pensou Lore. Castor estava marcado agora, fosse deus
ou não. Ele quebrou seu juramento com o arconte e derramou sangue que não
cabia a ele derramar.
Esse espetáculo todo era isso? Uma ilusão para atrair o bezerro de ouro até
o altar de sacrifício, para que então Philip pudesse tomar o poder para si?
Castor sabia disso. Tinha que saber.
Houve inúmeros assassinatos de parentes ao longo dos séculos do Ágon,
todos no intuito de roubar o poder daqueles que um dia alegaram amar e
estimar. A maioria se conteve, temendo que o pior tipo de maldição caísse
sobre eles. Assassinos de parentes não sobreviviam por muito tempo.
Mas a linhagem honrou e serviu a Philip Aquileu por muito mais tempo que
ao novo deus, que no passado era nada além de um estorvo aos olhos deles.
Lore se questionou se ele teria aliados de verdade além dela.
Ela levou a mão para dentro do manto em busca da chave de fenda
enquanto Castor caminhava ao redor da piscina, olhando para as meninas
reunidas à borda. O trono parecia cintilar, como se brilhasse com deleite ao
avistá-lo.
Os anciões eram horrivelmente astutos na matança de rivais e inimigos.
Quando Lore olhou para a cadeira novamente, tudo que conseguia ver eram
as diversas formas de torná-la letal para um deus mortal. Um veneno poderia
ter sido misturado no ouro, como aconteceu com a túnica de Nesso dada a
Héracles. Ou uma lâmina poderia estar escondida dentro de um painel, pronta
para deslizar para dentro da pele macia do novo deus.
Mas se Philip queria o poder de Castor, teria que dar o golpe final. Lore
sacudiu a cabeça, liberando um pouco da tensão acumulada entre as
escápulas. Ele não faria aquilo ali, na frente de todos.
O rosto do homem era calmo, mas Lore percebeu o desprezo que estava
reprimido. Philip e Acantha foram os primeiros a se ajoelharam diante de
Castor. Quando Philip falou, usou a língua antiga, tão melódico quanto um
rio fluindo em direção ao mar.
— Nós o honramos, ó Deus Resplandecente, o agradecemos por guiar o sol
através do vasto paraíso. Auriga, matador de serpentes. Atirador distante,
trabalhador distante; portador da peste, curandeiro do homem; arauto da
canção, da poesia e do hino, voz da profecia; flagelo do mal, mestre do
furor…
— Sim — interrompeu Castor com um tom engraçado que era muito atípico
ao que ela estava acostumada vir dele. — Acredito que esses sejam quase
todos os títulos.
Lore abriu ligeiramente a boca. Ela teria rido da expressão no rosto de
Philip, se o salão não tivesse ficado em total silêncio.
— Nós… — recomeçou ele, lançando um olhar para Castor. O novo deus
apoiou um cotovelo sobre o braço aveludado de seu trono, repousando o
queixo na palma de sua mão. Ele acenou com a outra mão para que Philip
continuasse, parecendo entediado.
Se havia algo que Castor sempre fora era respeitoso. Não exatamente dócil,
mas nunca desafiador. Se alguma vez existisse uma pessoa sem a menor
chance de que a divindade recém-descoberta subisse à cabeça, seria ele.
Deveria ter sido ele.
Essa ideia já era — pensou Lore, esfregando uma das mãos no peito. Poder
era a droga mais forte de todas.
— Nós o recebemos de volta ao berço mortal que o embalou. Nós o
honramos e rogamos que continue protegendo a Casa do poderoso Aquiles —
disse Philip. — Como sinal de nossa gratidão, minha esposa, Acantha, filha
de…
— Sei quem sua esposa é — disse Castor. — Felizmente, não perdi a
consciência junto com minha mortalidade, apesar de você estar me fazendo
questionar isso.
Os caçadores murmuraram, trocando olhares de desconforto e confusão.
Philip prosseguiu, com as mãos fechadas em punhos nos joelhos e a cabeça
ainda curvada:
— Como sinal de gratidão, organizaremos uma hecatombe sagrada ao redor
do magnífico altar que construímos para o senhor nas terras dos nossos
ancestrais.
Lore franziu o cenho. Um desperdício de cem gados, todos abatidos em um
ritual de sacrifício. Castor pareceu concordar com ela.
— Preferiria que dessem a carne para os famintos desta cidade — disse ele,
com a voz insuportavelmente fria.
Alguém suspirou atônito do outro lado do salão. O rosto de Philip ficou
vermelho devido à raiva reprimida. Sua mandíbula abria e fechava, como se
estivesse com dificuldade para começar a falar.
Provavelmente havia décadas desde que alguém se dirigira a ele com um
tom desses, e Lore decidiu se permitir aproveitar aquilo, só por um tempinho
a mais.
— Também oferecemos esta apresentação e uma canção composta em sua
honra — disse Acantha, suavemente.
As pequenas Musas se levantaram, reconhecendo a deixa. A mulher da lira
voltou a tocar, e a canção era serena e alegre. As meninas começaram a
cantar, dançando em uma harmonia cuidadosamente ensaiada. Conforme elas
lançavam olhares de soslaio na direção do novo deus, seus movimentos se
enrijeciam.
Castor deu a elas um pequeno sorriso de encorajamento, que desapareceu
assim que viu uma das meninas — Calliope — começar a chorar. Elas eram
crianças — mais novas do que Lore quando veio à Casa de Tétis pela
primeira vez. O ar nos pulmões de Lore tornou-se fogo enquanto assistia à
menina chorar ainda mais, com ranho e lágrimas escorrendo pelo rosto
enquanto ela se enrolava na coreografia, sem dúvida imaginando a punição
severa que receberia.
Quando a apresentação chegou ao seu misericordioso fim, Castor não
aplaudiu como os outros caçadores. Ele simplesmente acenou, e seu olhar
escuro retornou para Philip. O homem mais velho estalou os dedos para as
meninas e elas formaram uma organizada fila.
— Estas perante o senhor são nossas… melhores parthénoi — disse Philip,
tendo dificuldade para dizer a palavra melhores. — Se uma delas o agradar,
pode tê-la como seu oráculo. Ou, talvez, uma amante, quando ela sangrar
pela primeira vez.
Lore se perguntou onde conseguir uma blusa envenenada hoje em dia, e se
o veneno se sustentaria bem dentro do embrulho de presente quando ela o
enviasse diretamente para Philip Aquileu.
As parthénoi eram jovens meninas mantidas fora do Ágon, sem permissão
para se tornarem leoas caçando em nome da linhagem, cuja existência era
reservada apenas para garantir a sobrevivência da linhagem por meio da
gestação de mais crianças. Virar uma delas, nunca ser permitida de participar
no Ágon, fora um dos grandes medos de Lore, antes de descobrir que
existiam coisas muitos piores a se temer.
Prisioneiras — pensou ela, e o fel pulsou em suas veias. Essas meninas
eram apenas isso. Era tudo que lhes era permitido ser.
Lore conseguia imaginar isto claramente — atravessar os caçadores que
estavam ao redor, alcançar as meninas e carregá-las para longe antes que
qualquer um pudesse machucá-las. Mas então o novo deus falou.
— São encantadoras — disse Castor, com uma expressão sombria no rosto.
— Entretanto, eu o proíbo que as ofereça para qualquer um desta linhagem,
ou de qualquer outra, até que alcancem a vida adulta e escolham seus
parceiros.
A faixa de raiva apertando em torno do peito de Lore foi solta de uma só
vez.
— Meu senhor? — disse Philip, e sua voz ecoava no silêncio atordoado.
— É uma prática desprezível prometer a mão de crianças em casamento
quando elas deveriam estar concentradas em se alfabetizar e brincar com seus
brinquedos. Paramos há muito tempo de arranjar casamento para meninos.
Todas as crianças devem ser protegidas disso — disse Castor, e sua voz
aumentava a cada palavra. — Você é o arconte desta linhagem, Pater, mas eu
sou seu deus. Se deseja receber as minhas bênçãos, isso é o que lhe peço.
Lore sentiu o primeiro raio de esperança irradiar dentro dela e logo
desaparecer quando aferiu a reação dos caçadores à sua volta.
Desapontamento, raiva e até mesmo confusão reinavam. Ser amado e temido
era uma coisa; ser temido e insultado era outra. A única coisa que caçadores
desprezavam mais do que a desonra era a mudança.
Acantha agarrou o braço do marido, puxando-o para trás. Lore suspeitou
que ela não odiava totalmente a forma como Castor havia falado com ele,
mas a mulher estava arraigada demais em sua vida terrível para deixar isso
transparecer.
— Ó Deus Resplandecente — disse ela —, nós ansiamos aprender a melhor
forma de honrá-lo. Como o senhor escolheu não aparecer perante a nós, não
pudemos criar artes com sua imagem. A propriedade que construímos para o
senhor nas montanhas permaneceu vazia, e as oferendas, intocadas. Se há
algo que deseja de nós, diga-nos.
O quê? — Lore finalmente se levantou, tentando ter uma vista melhor do
rosto de Castor. Os novos deuses eram conhecidos por se manifestarem
fisicamente o mais rápido que podiam, para viverem o melhor de suas vidas
imortais.
— Meus presentes não foram satisfatórios? — perguntou Castor.
— Foram maravilhosos — disse Acantha, pacientemente. — Apenas
desejamos agradá-lo. Se o senhor nos conceder o conhecimento de seu
epíteto, seremos capazes de realizar grandes feitos em seu nome.
Com isso, Castor pareceu perder um pouco da perspicácia de seu
comportamento. Ele se inclinou para trás no assento nobre, como se
ponderasse sobre aquelas palavras. Então, voltou o olhar para Philip.
— Venha até mim, arconte da casa de Aquiles — disse Castor. — Irei
honrá-lo dizendo meu nome escolhido primeiramente a você.
O homem parecia um tanto amolecido quando se aproximou. Castor deixou
que ele se aproximasse antes de anunciar, alto o suficiente para todos
ouvirem:
— Serei conhecido como Castor.
Philip finalmente explodiu.
— Você deve escolher um nome, como manda a tradição! — disse ele, se
soltando do aperto firme da esposa. — Não pode manter seu nome mortal!
Castor havia passado do ponto da importunação e ido direto para o
lançamento da isca. Mesmo agora, seu tom suave e seu sorriso só serviam
para aumentar ainda mais a raiva do velho.
— Desejo usá-lo em homenagem à minha mãe mortal, que me nomeou.
Existe alguma regra da qual não estou ciente ou você está questionando tanto
a qualidade do nome quanto minha decisão?
Lore soltou um leve suspiro. Você está tentando se matar?
— É claro — continuou Castor —, você pode continuar se referindo a mim
como meu senhor ou Deus Resplandecente. Responderei até mesmo a Vossa
Excelência Suprema, de vez em quando.
A apreciação e a exasperação guerreavam dentro dela. Lore e Castor
odiavam Philip pela forma como sempre zombou deles, desde antes de o
homem mais velho descontinuar os tratamentos do rapaz. Lore supôs que o
amigo agia assim devido a mais de uma década de raiva acumulada, apesar de
ela ponderar se menosprezar o arconte e zombar da própria linhagem fosse a
maneira mais produtiva de fazer aquilo.
— Nós o ofendemos? — perguntou Philip ao novo deus. — Não lhe demos
o devido respeito?
— Estou satisfeito — disse o novo deus.
A ideia disso tudo é se manter vivo, seu idiota — pensou Lore.
Como se Castor a tivesse ouvido, cedeu, suavizando novamente o tom
conforme dizia:
— Com esse assunto resolvido, diga-me como está a Casa de Aquiles e qual
favor você busca, Arconte.
Philip inspirou de forma audível, girando os ombros para trás.
— Você ficará satisfeito, meu senhor, de saber sobre os nascimentos que
ocorreram nesses sete anos desde sua ascensão.
De canto de olho, Lore percebeu alguém subindo as escadas atrasado —
Evander. Ele teceu caminho por entre a multidão, com a mão esquerda
ajeitando a fronte de seu manto de seda prateado. A outra mão, envolta em
uma luva preta, permanecia imóvel sobre o estômago.
Bem — pensou Lore —, merda.
Van era muito sagaz, a ponto de se prejudicar por isso, e não deixava
absolutamente nada passar. Até um falcão se submeteria a ele em vez de
confiar nos próprios olhos.
O que significava que ela realmente devia ter ido embora há cinco minutos.
Castor também o avistou, e seu olhar rapidamente encontrou o do jovem
antes de voltar a atenção para Philip, que estoicamente continuava relatando
os casamentos, mortes, as várias propriedades da Casa e os empreendimentos.
— O desenvolvimento de seus medicamentos e de suas vacinas foi
acelerado com o incentivo federal, e esperamos que os lucros venham de fato
a partir do início do próximo trimestre — continuou Philip. — Aliás, acredito
que este seja apenas o começo do que alcançaremos, se o senhor utilizar seu
poder para aumentar a demanda.
Castor se inclinou para frente com o cenho franzido.
— O favor que lhe peço, Deus Resplandecente — disse Philip —, é que,
quando o senhor retornar à sua forma e poder imortais, crie uma doença da
qual nós seremos os únicos capazes de curar.
Lore cerrou os dentes ao ponto de doer para manter a boca fechada.
— Nós fomos abençoados por sua habilidade de curar as pessoas, mas
devemos superar isso por agora e agarrarmos uma nova oportunidade. Não há
necessidade de muitas mortes — prosseguiu Philip, claramente se sentindo
empoderado com o barulho animado das vozes crescendo ao seu redor com a
ideia. — Algumas centenas seriam o suficiente para garantir uma demanda
global…
— Não — disse Castor, áspero. — Não cabe a mim trazer doenças ou
enfermidades, e nem o faria, se pudesse. Farei tudo o que estiver ao meu
alcance para servir a esta linhagem. Mas não serei um mestre da morte nem
do terror.
Philip recuou.
— Meu senhor…
— Estou certo — interrompeu Castor, com o mesmo tom rígido — de que
não preciso lembrá-lo do motivo pelo qual o Ágon teve início e pelo qual
Zeus negou a Apolo e aos seus sucessores tal poder, muito menos preciso
lembrá-lo das muitas moléstias horríveis já existentes neste mundo. Talvez
você deva até mesmo perguntar o que fiz para ajudar aqueles afligidos pela
mesma doença que me acometeu em minha vida mortal, e como você
continuará a girar a roda que eu pus no lugar estabelecendo preços razoáveis
a medicamentos.
Acantha se curvou.
— Um sábio plano de ação. Ficarei contente em liderar tal esforço para o
senhor.
Os deuses antigos eram monstros: egoístas, vaidosos e com uma sede
incontrolável de sangue. Olhando ao redor do salão agora, absorvendo os
olhares de frustração e raiva, Lore viu a promessa de algo ainda mais
obscuro.
— Evander, filho de Adonis — disse Castor, olhando para o jovem de pele
escura. — Conte-me sobre o Ágon. Foi capaz de barganhar por nossos
mortos?
Evander se aproximou da piscina, se ajoelhando na lateral. Algo passou de
relance na expressão de Castor e sua boca se abriu ligeiramente, mas Van
falou antes que o deus pudesse dizer algo.
— Tenho o dever de lhe reportar a morte do deus Hermes…
Os caçadores ao redor não o deixaram terminar. Uma algazarra tomou conta
do salão, se tornando cada vez mais intensa. As mãos de Lore penderam ao
lado do corpo, com dedos dormentes.
Atena e Ártemis eram agora as últimas integrantes dos deuses originais.
Outro pensamento, que conseguia ser ainda pior, lhe ocorreu — preciso
contar a ela.
Claro, o número poderia ser reduzido à Ártemis se Lore não fosse embora
agora e encontrasse outro apoiador para Atena, mas essa… essa era uma
informação útil.
— Quem foi o autor do abate? — questionou Philip.
Van tinha um jeito de ser bem específico, uma calma enervante, mesmo
diante de más notícias, como a que trazia agora:
— O novo Ares, que escolheu atender por Fúria.
O barulho aumentou de novo, pulsando com uma espécie nova e distinta de
ira.
— Ele o matou sabendo que não seria capaz de tomar-lhe o poder? — disse
Philip, enfurecido.
— Está certo disso? — perguntou Castor.
— Meus drones gravaram o momento da morte — disse Van. — E há mais.
Os Cadmídeos também capturaram a Portadora da Maré.
O salão novamente suspirou vigorosamente, surpreso.
— Viva ou morta? — perguntou Castor.
— Ela estava viva, mas por muito pouco. Minhas fontes me disseram que
Fúria queria extrair informação dela sobre algo, mas que ela não voltou a
acordar e ele terminou o trabalho em seu recinto.
Lore não sentiu… tristeza, exatamente, apenas um frio reconhecimento de
que ela agora era a última da Casa de Perseu. Seus ancestrais deviam estar
uivando no Mundo Inferior.
— Sobre o que ele a interrogaria? — perguntou Castor.
— Estou atrás dessa informação — disse Van e, então, acrescentou, de
forma séria —, mas será que é sobre o que discutimos mais cedo?
Por um momento, Lore pensou que se referiam à nova versão do poema.
Mas, então, lembrou-se do silencioso aviso de Castor durante a luta.
Ele está procurando algo, e eu não sei se é você.
Não… não poderia ser isso. A Portadora da Maré não teria ideia de onde ela
estava, ou como ele poderia encontrá-la.
— Ele está tentando intimidar as linhagens — declarou Philip para o salão,
reclamando a atenção de todos com sua veemência. — Não seremos acuados.
Van não disse nada, mas lançou um olhar cheio de significado na direção de
Castor. — Creio que ele esteja tentando fazer mais do que isso, e que
devemos fechar a guarda. A Casa de Teseu se aliou formalmente à Casa de
Cadmo. Ambas estão sob o comando de Fúria.
— O quê?! — vociferou Philip, sobre o crescente murmúrio de vozes.
— Como deve lembrar, a Casa de Teseu perdeu grande parte das suas
parthénoi durante o último Ágon após Ártemis localizar o esconderijo delas
— disse Van.
O estômago de Lore se embrulhou com a lembrança. Dezenas de meninas,
todas massacradas pela deusa que um dia havia sido sua padroeira e
protetora.
— Meus espiões me dizem que, além de uma compensação financeira
generosa — continuou Van —, Fúria os prometeu casamentos e proteção em
troca de lealdade.
— Covardes! — gritou alguém próximo à Lore.
— Quietos… quietos! — ordenou Philip. — Eles não têm um novo deus
para protegê-los, assim como nós.
Se ela não estivesse observando a reação de Castor, Lore talvez teria
deixado passar — a maneira como seu rosto parecia se recolher em si mesmo,
com os olhos se fechando. Um tremor percorreu sua mandíbula conforme ele
agarrava os braços do trono.
— Meu senhor — disse Van —, se eu puder…
As imagens nos espelhos saltaram, se distorcendo. Lore saltou para longe
da parede, com o coração saindo pela boca.
Os alto-falantes escondidos que carregavam o distante som de ondas agora
rugiam com estrondosos tambores que sacudiram os Aquilídeos e os fez se
dispersarem pelo salão.
— O que está acontecendo? — perguntou Philip sobre o barulho. —
Alguém desligue isso!
Os espelhos piscaram até ficarem pretos, deixando apenas a luz dos
braseiros os guiando até as escadas.
Tão rápido quanto veio, o som dos tambores parou. Castor então se
levantou, como se já soubesse o que vinha pela frente.
No centro de cada espelho, um brilho vermelho cresceu, respingando entre
as telas até que todo o salão estivesse banhado nela.
— Aquilídeos — disse uma voz profunda e rouca, quase se rastejando pelos
alto-falantes. — Aquilídeos, ouçam a mim.
DEZ
QUÍRON LEVANTOU NAS QUATROS PATAS E ROSNOU. LORE DEU UM PULO. ELA
nunca o ouviu latir do jeito que latiu, um ruído profundo e barulhento.
— Acalme-se, besta-fera — disse Philip, levantando uma das mãos para
acalmá-lo. — Deita.
A postura de Quíron era rígida, sua cabeça abaixou, assim como sua
cauda… mas ele não encarava Philip. Estava de olho em Castor.
O pouco de cor restante no rosto do novo deus desapareceu. Ele observou o
cão, e seu corpo estava tenso, até que Van ficou entre eles.
— Vou tirá-lo daqui — disse Philip. — Ele parece… não se lembrar do
senhor.
— Está tudo bem — disse Castor, bruscamente. — O que quero saber é
como diabos Fúria teve acesso à sua transmissão.
— Os técnicos estão sendo interrogados — disse Van. — Vou fazê-los
contarem tudo. É provável que tenham hackeado o sistema sem nenhuma
ajuda interna. Estou mais preocupado com o fato de Fúria ser capaz de usar
seu poder dessa forma.
— Minha prioridade imediata é a de proteger o deus da nossa linhagem. É
só uma questão de tempo antes que tentem um ataque direto — disse Philip.
— Os guardas virão buscá-lo, meu senhor, quando for a hora de ir para um
local mais seguro, fora da cidade.
— Você acha que isso é realmente necessário? — perguntou Van. — Se
eles de fato têm um espião infiltrado em nossa linhagem, sempre saberão
nossos movimentos antes de serem executados. É um risco enorme.
— Você não é o arconte desta linhagem, Mensageiro — disse Philip. —
Essa decisão é minha.
Mensageiro, é claro. O broche que Van usava, uma asa dourada para indicar
sua posição como emissário da linhagem. A função era nada mais do que
espionar, hoje em dia, mas os Mensageiros eram protegidos da matança sob
um juramento entre as casas. Dessa forma, poderiam levar mensagens sem
temerem a morte e lidarem com as trocas dos corpos coletados por outras
linhagens.
— Tem certeza de que isso não é sua rivalidade com Aristos Cadmou
falando no lugar da razão? — perguntou Van, sem precisar erguer a voz para
dar às suas palavras um tom afiado.
Lore estava chocada por eles não terem sido capazes de ouvir sua
respiração irregular.
— Evander, filho de Adonis — sibilou Philip. — Dirija-se a mim dessa
maneira novamente e não apenas removerei esse broche de você, como
arrancarei sua outra mão.
Outra mão? — Lore se inclinou para frente.
Ela podia ver agora — a maneira como os dedos da mão direita eram
ligeiramente mais longos e duros do que os da esquerda. Ele tinha movimento
nos dedos e conseguia curvá-los um pouco, mas todos os movimentos eram
mais lentos e seu alcance, mais limitado. Ele, assim como muitos caçadores,
havia perdido parte do corpo e o substituído com uma prótese avançada.
Droga — pensou Lore.
Deve ter sido algum tipo de acidente de combate. A mão direita de Van era
a dominante, pelo menos até onde ela conseguia se lembrar das poucas
sessões de treinamento das quais ele fez parte enquanto os pais do jovem
tocavam negócios na cidade.
Enquanto alguns caçadores lutavam para voltar a treinar a fim de
aprenderem novos estilos de luta mais adequados para seus corpos
modificados e, assim, continuarem na caça, a maioria era convencida pelo
arconte a se aposentar mais cedo em alguma função não combatente, como
arquivista ou curandeiro.
Lore sempre viu aquilo como uma prática revoltante; se alguém queria
lutar, se queria se empenhar para alcançar o kleos, deveriam permiti-lo,
independentemente das circunstâncias.
— Se pudermos ter uma profecia, meu senhor — recomeçou Philip,
voltando-se para Castor —, talvez sejamos capazes de antecipar os
Cadmídeos…
— Quantas vezes preciso dizer a você que não há nenhuma profecia? —
disse Castor. — Esse não é um dos meus poderes. Sinto que devo lembrá-lo
novamente de que, ainda que eu tenha alguns dos poderes de Apolo, não sou
ele.
Lore prendeu a respiração enquanto o novo deus dava alguns passos em sua
direção, tirando as luvas de ouro e colocando-as na mesinha ao lado do
biombo.
Philip se endireitou, mas assentiu.
— Sim, meu senhor. Claro, todos estamos ansiosos para ouvir a história de
como um inocente garoto de doze anos derrotou um dos deuses originais
mais fortes e ascendeu. Talvez você possa falar com um dos historiadores de
nossa linhagem…
— Basta — disse Castor, soando cansado. Ele estava tão perto agora que
Lore podia sentir o cheiro de incenso impregnado em sua pele. Por um
momento, ela teve certeza de que os olhos do novo deus relancearam e
encontraram os dela, mas ele foi em direção à cama. — Gostaria de descansar
antes de viajarmos.
— Cas… Meu senhor — começou Van. — Talvez devêssemos discutir
sobre…
— Eu disse basta — disse Castor, agarrando uma das colunas da cama com
tanta força que a fez rachar. — Me chamem quando for a hora de partir.
Philip segurou o ombro de Van e o guiou em direção à porta.
— Há caçadores de vigia do lado de fora. Tem alguma coisa que posso
providenciar, meu senhor?
— Apenas sua ausência — disse Castor, ainda de costas.
— Tranque a porta depois que sairmos — relembrou Van.
Castor assentiu, mas não fez qualquer menção de trancá-la até que ambos
tivessem deixado o quarto e se passasse um longo intervalo. Ele deu meia-
volta, batendo com o joelho no baú ao pé da cama e xingou. Lore teria rido
ao ver um deus poderoso pulando e fazendo careta, só que seus movimentos
pareciam ainda mais duros do que antes.
Ele tentou alongar os braços cruzando o tórax largo, girando o pescoço.
Fechou os três trincos e apertou um botão próximo da porta, na parede.
Lore levou um susto quando uma porta de metal deslizou cobrindo a outra.
Trancando-o ali dentro.
Prendendo-a ali com ele.
Quíron rosnou quando Castor tentou se aproximar dele, oferecendo a mão
da mesma forma que Lore fez mais cedo. Os lábios do cão estavam retraídos
e seu focinho se enrugava ferozmente.
Castor não tirou a mão até que Quíron atacasse, mordendo seu punho.
— Você me conhece — sussurrou ele. — Conhece, sim.
Lore pressionou a mão contra a boca de novo para evitar emitir qualquer
barulho. Claro que Quíron não se lembra dele. Esse não era o corpo do garoto
que o cão amava tanto e protegia. Ele era… outra coisa.
Não havia nada a temer; ele foi até ela pedir ajuda — não teria nenhum
motivo para matá-la, mesmo que ela tenha invadido sua casa. Mas, ainda
assim, Lore não conseguia se mover. Sentia-se como uma das estátuas de
outrora, sempre presas em uma única pose, com olhos eternamente abertos.
A boca do cão relaxou e ele se aquietou o suficiente para que Castor
tentasse se aproximar de novo. Enquanto sua mão pairava sobre as costas do
animal, Quíron se levantou e mudou de lugar. Aninhou-se na montanha de
travesseiros, lançando um olhar de profunda suspeita na direção do novo
deus.
Castor o encarou de volta, sem nenhum sinal de animação ou esperança
restando em sua expressão. Algo obscuro parecia estar passando por dentro
dele enquanto circulava pelo quarto, sua respiração estava ficando mais forte,
quase com falta de ar. Ele parava de vez em quando, passando a mão ao
longo do tecido adamascado do papel de parede, da seda dos lençóis e
cortinas, das bordas curvadas das flores esculpidas nas costas de uma cadeira.
Era como uma espécie de ritual silencioso, cada toque de seus respeitosos
dedos. Lore conseguia apenas distinguir seu perfil e a interminável
tempestade de emoções que atravessava seu rosto. Ele murmurou algo para si
e ela não conseguiu ouvir.
Finalmente, ele parou no centro do quarto, estremecendo. Erguendo as
mãos, o novo deus tirou a coroa de cima de seu escuro cabelo e a segurou
entre os dedos. Houve um pequeno estalo quando ele a partiu em dois e
deixou os pedaços caírem no chão.
Mas não houve som algum quando o painel escondido na parede atrás dele
se abriu e um caçador vestindo uma máscara de minotauro entrou
silenciosamente no quarto.
Castor se empertigou lentamente, ficando com a coluna totalmente ereta, e
olhou para trás bem na hora que o caçador sacou uma pequena arma de
dentro do manto. Por um momento, ele não fez nada a não ser encarar o
caçador. Não se moveu. Não parecia nem respirar.
Merda — pensou ela. — Merda, merda… reage!
Ele não reagiu. O caçador atirou.
Lore derrubou o biombo com um empurrão, pegando sua chave de fenda.
Não era nenhuma faca, mas quando arremessada traçou uma espiral no ar,
como ela esperava. Ela ricocheteou na máscara do atacante, jogando-o no
chão.
Ela se lançou para a frente enquanto o caçador tentava aos tropeços voltar
para a porta secreta, furiosa demais e temendo deixá-lo escapar.
O caçador sacou uma longa adaga da bainha em seu flanco. Quíron saltou
da cama, latindo descontroladamente… aquilo foi distração suficiente para
que Lore pudesse pegar um pequeno busto de mármore no armário e o
esmagasse na cabeça do caçador. Uma vez. Duas vezes.
O assassino caiu bruscamente no chão, imóvel. Sangue escorria por baixo
do manto escuro. Lore puxou o manto e arrancou a máscara, revelando o
indolente rosto de Philip Aquileu.
— Desgraçado — vociferou Lore, fervendo por dentro. E também um
traidor, se escondendo por trás da máscara de outra linhagem. Isso não o
protegeria da maldição contra assassinos de parentes, assim como não o
protegeu dela.
Quíron choramingou, trazendo Lore de volta de seu torpor. Ele estava
próximo de onde Castor havia caído no chão, cheirando a mão do novo deus.
Lore pegou a chave de fenda de volta e cambaleou até ele, procurando por
sinais de um tiro ou de um ferimento. Havia apenas um pequeno dardo
emplumado próximo ao coração… um tranquilizador.
Ela adicionou covarde à conta do arconte. O velho não queria nenhuma
resistência do novo deus quando enfiasse uma lâmina no coração de Castor e
ascendesse.
— Ah, vai se ferrar! — Ela agarrou a frente do manto de Castor, sacudindo-
o. — Você podia ter evitado isso facilmente… sai dessa!
A cabeça dele tombou para trás. Ela pressionou o ouvido no peito dele, mas
não conseguiu escutar nada além da própria pulsação.
— Castor? — disse ela, o sacudindo mais. — Cas!
Ele não reagiu. Lore pressionou a palma da mão contra o peito dele,
fazendo força para baixo repetidas vezes. Castor voltou a si rapidamente,
arfando. Virou de lado, desorientado, com as pernas e os braços deslizando
sobre o tapete.
— Cas… — disse Lore, estendendo a mão até ele.
O novo deus se arrastou para longe, erguendo uma das mãos na direção
dela.
Um agudo suspiro de surpresa foi o único som que Lore conseguiu emitir
antes que o ar se transformasse em fogo em seus pulmões e uma massa
disforme de calor e luz explodisse das pontas dos dedos de Castor.
TREZE
LORE SE LANÇOU COM TUDO, ERGUENDO O LIVRO PESADO PARA QUE FICASSE NO
caminho da flecha.
Os seus braços tremeram quando absorveram o impacto do projétil. Em vez
de ricochetear ou ficar presa na capa de couro, a ponta de aço perfurou
centenas de páginas finas e rasgou as costas do livro. Atingiu o batente
reforçado da porta e finalmente parou.
O livro caiu das suas mãos.
— Se afaste! — disse Castor. Quando ela não se mexeu, ele agarrou a
frente do manto da amiga e a girou para trás de si. Houve um pesado baque
contra o chão quando alguém saltou da claraboia, fazendo a mobília
estremecer e as pernas de Lore ficarem instáveis.
Uma voz se ergueu como um vento noturno frio por entre as árvores:
— Assassino de Deuses.
A mulher — o ser — parecia ter sido esculpida na escuridão de uma
profunda e antiga natureza selvagem. O cabelo loiro da deusa estava
emaranhado com folhas e preso em nuvens claras, quase brancas como a
neve, circundando seu rosto riscado de terra. Mesmo esmaecida pelo sangue
mortal, havia um aspecto perolado em sua pele de marfim, como se ela
irradiasse o luar.
Era Ártemis.
A deusa mostrou os dentes, mas o olhar de Lore estava fixo na forma como
os seus dedos se fechavam em garras em volta do arco composto.
Provavelmente furtado de um caçador morto.
Quíron saltou da cama, rosnando. A deusa deu meia-volta quando ele a
atacou, e seus olhos se arregalaram subitamente. O cão ficou imóvel de
repente, como se atingido por um dardo tranquilizador. O corpo relaxou e ele
rolou para o lado, expondo a sua barriga macia para ela.
— Dama da Caça — disse Castor, neutro.
Ártemis lançou um olhar nefasto a ele enquanto avançava vagarosamente.
Cada passo revelava um detalhe novo e horrível.
Não era terra no rosto da deusa, era sangue seco. Que havia ensopado a
frente do seu manto, de um tecido azul-celeste espetacular. O olhar de Lore
se fixou na aljava amarrada nas costas da deusa — estava presa ali não com
uma faixa de couro desgastado, mas com cabelo humano trançado. Todos
com cores e texturas diferentes, todos pegajosos com sangue e pedaços de
escalpo.
O estômago de Lore embrulhou violentamente.
Ártemis ergueu o arco. Outra flecha já estava encaixada.
— Você devia saber que eu viria atrás de você. Que eu iria caçá-lo, até a
Casa de Hades, até as profundezas obscuras do Tártaro, até qualquer
escuridão infernal na qual você esperava se esconder.
Sem pensar, Lore pôs a mão no ombro de Castor para alertá-lo e sentiu os
músculos da área se enrijecerem em resposta.
— Por favor — disse ele —, você não é minha inimiga, e eu não sou o seu.
Preciso perguntar uma coisa para você. Se estava lá naquele dia. Se viu o que
aconteceu.
O olhar de Lore foi em direção a porta trancada atrás deles, e ela percebeu.
Ninguém está vindo — pensou.
Lore começou a vasculhar o quarto com intensidade, e seus olhos avistaram
um espelho apoiado no chão. Ela poderia quebrar o espelho e usar os cacos.
Tudo que precisava era chegar perto o suficiente para cortar um dos tendões
ou artérias da perna da deusa. Isso pelo menos os faria ganhar tempo
suficiente para que escapassem.
— Aguardei sete anos por este momento — vociferou Ártemis, fervendo
por dentro. — A morte do meu irmão é sua ruína. Um destino maligno paira
sobre você agora, Assassino de Deuses. Quando eu terminar, não sobrará
nada de seu cadáver mortal para as aves carniceiras.
Os gêmeos haviam sido duas metades de uma alma, em um fluxo e
contrafluxo constante ao redor um do outro, como a noite virando dia, e o dia
virando noite. Eles haviam zelosamente vigiado e protegido um ao outro,
raramente se separando durante o Ágon, se pudessem evitar. Agora parecia
que a morte de Apolo retalhara o pouco da sanidade que a deusa tinha. Seus
olhos queimavam com as brasas de seu poder.
— Você estava lá? — perguntou Castor, com um tom de súplica na voz. —
Me responda.
— Saia, garota — disse a deusa, se dirigindo a Lore diretamente. — Não
tenho nenhuma desavença com você. Ainda.
Lore sentiu as palavras como gotas frias em sua pele. Ela não entendia por
que Castor ainda não tinha atacado a deusa, por que continuava fazendo
aquela pergunta.
— Deixe que eu lhe mostre a saída — disse Castor, guiando a amiga
lentamente em direção à porta. — Como você mesma disse, não tem
nenhuma desavença com ela.
Sucedeu-se uma horrível simulação da maneira que costumavam treinar,
um refletindo os passos do outro. Castor pegou a flecha da deusa, lascando a
moldura de madeira da porta quando a arrancou. Enquanto a sua mão voltava
para a lateral do corpo, ele virou o pulso para que a ponta da flecha apontasse
para o tecido do seu cinto dourado — para a pequena faca que ele tinha
enfiada ali, contra a lombar.
Lore respirou fundo, sabendo exatamente o que ele queria. Ela se
aproximou dele, fechando os dedos ao redor do cabo da faca. A arma havia
absorvido o calor da pele dele e agora queimava as pontas dos dedos dela.
— Você se engasgará no próprio sangue antes de eu ouvir outra palavra
sua…
Castor se curvou para a frente e Lore se moveu mais rápido do que já havia
se movido antes na vida, deslizando a lâmina para fora e a arremessando.
Seja porque a faca estava levemente torta, ou porque Lore estava
simplesmente fora de forma, a lâmina voou mais para a direita do que ela
pretendia, e foi girando na direção do braço da deusa, em vez de seu ombro.
Ártemis sacudiu o arco para bloquear o golpe. A faca ricocheteou no chão,
girando para longe.
Lore não ouviu nem viu a flecha até que sua ponta afiada sibilasse pelo ar
na direção dela, mas ela já estava caindo, apenas registrando a força do
empurrão de Castor antes de ela tombar no chão.
Sangue escorreu para dentro de seu olho, vindo de onde a lateral da flecha
havia passado de raspão, ao longo da têmpora e do couro cabeludo. Ela
limpou o sangue com o ombro e se levantou, ignorando o olhar preocupado
de Castor.
A deusa se voltou para a cama, sibilando. Seus olhos foram até Quíron, que
tentou da melhor forma que pôde espremer o corpo enorme embaixo da
cama.
— Não — pediu Castor —, por favor…
Quíron choramingou, depois ganiu como se ela o tivesse furado com uma
lâmina. O cão ficou rígido, e seus pelos se arrepiaram. Ele expôs os caninos e
o seu rosnado se estendeu pelo quarto como um trovão.
— Quíron, não — disse Lore. — Não!
O cão avançou na direção deles, emitindo um som diferente de qualquer
coisa que Lore já havia ouvido antes. Fios de baba voaram do focinho e da
boca, que espumava. Os olhos dele brilhavam dourados com o poder da
deusa e não havia qualquer consciência ali, nenhuma noção — só raiva.
Fome e raiva.
QUINZE
FÚRIA PARECIA ENORME NA VISÃO DE LORE, TÃO ALTO E SÓLIDO QUANTO UMA
das colunas de pedra que circulavam o salão. Sua postura calma enquanto
estava lá, pronto para quebrar o pescoço de outro deus, era assustadora.
— O informante se enganou sobre o horário — sussurrou Van, atordoado.
— Ou eles mudaram no último minuto.
Lore não havia percebido que estava agarrando a mão de Castor até ele
apertar levemente a dela, para tranquilizá-la.
— Por que o falso Afrodite ainda vive? — perguntou Atena baixinho. —
Por que ainda não foi morto?
A pele negra do Guardião do Amor estava oleosa, devido ao suor ou ao
sangue. Seu rosto, que sempre havia sido lindo, mesmo antes da imortalidade,
agora estava quase irreconhecível de tão inchado. Um manto cor de marfim
se enrolava por entre suas pernas, ambas dobradas em ângulos anormais,
incapazes de sustentá-lo sob a influência do poder de Fúria. Sua boca havia
sido selada com fita adesiva, impedindo-o de falar, de usar seu poder de
persuasão com o novo deus. Uma coroa, feita de pérolas e pedras de um azul
pálido, estava em pedaços ali perto.
— Isso não precisa ser difícil. — A voz de Fúria crepitou pelos pontos
eletrônicos que eles haviam roubado dos caçadores. — Diga-me como abrir o
cofre e permitirei que estes homens ajoelhados vivam. Permitirei que você
me sirva na nova era.
Lore se moveu, circulando a cúpula para ver o outro lado do salão. A
enorme porta prateada do cofre estava fechada. Havia sido projetada para
aguentar quase tudo, incluindo explosões.
— Acho que o poema está na sala segura — disse ela.
Fúria sinalizou para um dos Cadmídeos próximos.
— Encontrem a sua filha mortal. Talvez ela possa causar a pressão
necessária.
O Guardião do Amor arranhou as mãos de Fúria, mas foi um esforço débil.
— Onde está Iro, filha de Iolau? — indagou o caçador aos Odisseídeos
agrupados sob vigia. — Se ela for covarde demais para se revelar, não
merece sua proteção, nem você merecerá o sofrimento rápido que isso trará.
Aquilo foi uma faca projetada para passar por entre as costelas e se cravar
no coração do orgulho deles. Lore fechou os olhos, esperando.
— Eu sou ela.
Os olhos de Lore se abriram. Van a fitou, surpreso, mas Lore balançou a
cabeça negativamente. Aquela não era a voz de Iro.
— Eu sou ela — disse outra voz.
— Eu sou Iro — disse uma terceira.
Fúria deu meia-volta, derrubando o Guardião do Amor no chão. O novo
deus mal conseguia levantar a cabeça, muito menos se arrastar para longe.
— Mate cinco deles a cada minuto que ela permanecer escondida. Peguem
os que estão no ônibus, se for preciso.
— Onde está Iro, filha de Iolau? — questionou o caçador novamente,
circulando o grupo.
Vários lutaram contra suas amarras, mas não houve hesitação quando um
dos prisioneiros falou, fazendo a voz masculina ecoar:
— Eu sou Iro.
Ele foi o primeiro a morrer. Seu sangue manchou o chão de mármore e os
rostos corajosos dos caçadores à sua volta.
Fúria se curvou sobre o Guardião do Amor, pegando sua cabeça e o fazendo
encarar fixamente a matança, prendendo-o naquela posição com o seu pé. Ele
se inclinou para a frente, colocando mais pressão.
— Diga-me como abrir o cofre. A informação não vale o custo de todas
estas vidas. Não vale que se recordem de você como o covarde chorão que
permitiu que morressem.
A cabeça de Lore girava, tentando recordar-se de uma memória incompleta
antes que ela tivesse a chance de escapar. Havia alguma coisa sobre o cofre
— alguma coisa sobre a construção da sala segura. Lore e Iro haviam
invadido o escritório do seu arconte uma vez para ver os documentos e
plantas do lugar.
— Por favor! — implorou um dos caçadores, enquanto era arrastado na
direção da fileira de corpos. — Por favor, não!
Os caçadores Cadmídeos riam em zombaria. O que detinha a espada a
aproximou da garganta do jovem apavorado.
— Parece que aqui temos um que deseja servir a seu novo senhor.
— Sim! — suplicou ele. Os Odisseídeos ao redor rosnaram. — Sim… a
garota, Iro. Ela está no cofre.
Castor olhou para Lore. Ela balançou a cabeça negativamente, e seu pavor
se intensificou. Mas havia algo a mais…
— Já que o pai não nos contará, talvez sua filha esteja inclinada a isso —
disse Fúria, retornando para o corpo jogado de Guardião do Amor, e olhou
para trás. — Mate-o também.
— Meu… meu senhor — implorou o caçador dos Odisseídeos.
Os gritos dele estouraram os ouvidos de Lore quando irromperam do ponto
eletrônico.
— Eu nunca gostei de ratos — disse Fúria, de forma indiferente, e deu
meia-volta antes que pudesse ver a cabeça do caçador ser decapitada.
Ele foi até o cofre, erguendo a mão para dar uma batidinha debochada.
— Criança. Você não gostaria de se juntar a nós? Não creio que você
gostaria de assistir enquanto faço o seu pai sangrar até morrer nem
enquanto extermino toda a Casa de Odisseu. É algo terrível ser a última da
sua linhagem.
A memória voltou à Lore, como um clarão. Outra entrada.
— Há outra entrada para o cofre — disse ela, rapidamente.
— Tem certeza? — perguntou Castor.
Ela assentiu com a cabeça.
— Eu vi na planta do edifício quando morei com os Odisseídeos. Iro me
contou que ajudaria o pai dela a fugir porque salas-fortes normalmente têm
apenas uma entrada, e nenhum inimigo esperaria que houvesse outra.
— Você lembra como chegar a ela? — perguntou Van. Lore hesitou, mas
assentiu.
— Há um túnel que se conecta a uma loja; acho que é na 39th Street.
— Talvez possa haver outra maneira de matar Fúria e resgatar a garota e
qualquer que seja o conhecimento que ela possa ter sobre o poema. Talvez
até mesmo o falso deus e os outros Odisseídeos — disse Atena, proferindo
lentamente as palavras. — A surpresa é a nossa aliada, mas esperar o
momento certo é a chave.
Lore olhou para baixo novamente, para onde Fúria se demorava, próximo à
porta do cofre.
Por quatro anos da vida de Lore, Iro havia sido a única pessoa em que ela
podia confiar completamente, e Lore havia sido a única amiga verdadeira que
a menina tinha, já que sua linhagem ficava competindo por poder e por
favores do pai de Iro, que havia ascendido recentemente. As duas falavam
aquele idioma secreto e silencioso do luto enquanto perdiam todos que lhes
eram próximos.
Lore sempre idolatrou a prima, como ela parecia calma e perfeita diante da
incerteza, quando as emoções de Lore pareciam grandes demais para caber no
corpo. Exceto por aquela última vez, elas haviam sempre protegido uma à
outra, e Lore sabia que a insistência de Iro para treinar com ela havia sido a
única coisa que estava entre Lore e uma vida como serviçal da propriedade
dos Odisseídeos.
Abandoná-la foi uma das decisões mais angustiantes que Lore já tomara na
vida. Não faria aquilo novamente.
Iro — pensou ela. — Aguente só mais um pouco…
VINTE E UM
Lore não reconheceu o restaurante. Nem mesmo achou que estivesse aberto.
As cortinas estavam fechadas e a porta, trancada. Ela olhou por cima do
nome estampado na maior das duas janelas. O Fenício.
Ela suspirou de surpresa.
— Não fale nada — disse o pai, com o tom de voz baixo, pegando o pacote
de suas mãos. — Você se lembra do que eu ensinei sobre como as visitas
devem se comportar? Os Cadmídeos nos convidaram em um gesto de boa
vontade e paz.
Lore recuou.
— Eles não, papai… foram eles que mataram…
— Melora — interrompeu ele, rispidamente. — Você acha mesmo que eu
esqueci? Nós estamos sozinhos nesse mundo agora, nós cinco. O pessoal da
sua mãe não se aliará a nós no próximo Ágon, nem os Aquilídeos e os
Teseídeos. Eles ficariam felizes vendo os últimos da linhagem de Perseu
deixarem o Ágon. Nós precisamos de aliados.
Ela respirou fundo pelo nariz, segurando o ar para evitar que dissesse algo.
— O próprio Aristos Cadmou, o arconte dessa linhagem, me escreveu
pedindo para que eu viesse junto com a minha filha mais velha — disse ele.
— Eu não podia recusar sem que ficasse parecendo um insulto. Eles não são
conhecidos por reagirem com cortesia quando se sentem desprezados.
O ar explodiu para fora dela.
— Mas papai…
— Precisamos deixar o passado se vamos, um dia, encontrar um futuro —
disse ele. — Não tenha medo. Eu estou com você, e somos estranhos aqui.
Zeus Xênios nos protegerá.
Do mesmo jeito que protegeu o resto da nossa linhagem? — Lore estava
surpresa com esse pensamento maldoso. É claro que ele os protegeria. Eles
eram os caçadores escolhidos por Zeus.
Lore sabia que sua família não era como as outras linhagens. Mas uma
coisa era treinar na casa do grande Aquiles, outra era ir até o pior inimigo dos
Perseídeos em busca de armas, armaduras e informação. Ela odiava que
tivesse que ser daquele jeito. Perseu era um herói muito maior do que Cadmo.
Seu pai ergueu a mão e bateu na porta.
Uma voz respondeu através da porta na língua antiga.
— Quem é?
— Demos, filho de Demóstenes, e sua filha, Melora, dos Perseídeos —
respondeu ele. — A pedido do arconte dos Cadmídeos.
A porta se destrancou. Lore agarrou a barra do velho casaco de couro do
seu pai, depois se forçou a se afastar e se endireitar. Ela não era mais uma
garotinha. Não se esconderia atrás de ninguém.
A mulher que abriu a porta era bem mais velha, com cabelo branco e pele
desgastada. Ela trancou a porta assim que entraram.
O restaurante estava escuro, havia apenas a tênue luz do sol se infiltrando
por entre as cortinas. O local era menor do que ela esperava, e, para abrir
espaço, todas as cadeiras e mesas foram empurradas para os cantos e
empilhadas. Os Cadmídeos reunidos se moveram, criando um corredor entre
eles. Eles sibilavam e sorriam pretensiosamente quando Lore e o seu pai
passaram por eles.
Lore os encarou de volta, desafiadoramente. Um caçador nunca deve expor
a outro o seu medo. Não se quisesse ser respeitado.
Aromas familiares cobriam o ar — orégano e alho, carne assada, couro
oleado, pessoas. Sentado próximo aos fundos do restaurante, elevado acima
dos outros em um pequeno palco, estava um homem de meia-idade, e seu
cabelo preto tinha manchas prateadas.
O homem se recostou no trono conforme eles se aproximavam. Uma árvore
antiga e poderosa havia sido derrubada para que fosse esculpido; os olhos de
Lore se fixaram nos salientes dragões entalhados de cada lado, um alerta a
qualquer um que se aproximasse demais.
O homem tinha a aparência que Lore sempre imaginou que Hades teria
enquanto comandava o reino dos mortos.
Sentado próximo aos seus pés estava um garoto que parecia ter por volta da
idade de Lore. Ele vestia um traje parecido com o do homem — uma túnica
sombria de seda, calças sombrias, botas sombrias e um sorriso sombrio. Ele a
olhou com o nariz empinado, como se ela fosse um cão que ele pretendia
chutar para longe.
— Bem-vindo, Demos dos Perseídeos — disse o homem. — Estou feliz que
tenha aceitado o nosso convite.
Lore ouvira histórias sobre Aristos Cadmou. Suas esposas mortas. Ártemis
quase ter sido assassinada por ele. Sua impiedosa ascensão na hierarquia da
própria linhagem para se tornar arconte. Seu rosto contava todas essas
histórias, suas linhas de expressão profundas e suas cicatrizes brutas faziam
parecer que a face fora esculpida da mesma árvore que deu origem a seu
trono.
Pelo que Lore sabia, ele era apenas dez anos mais velho que o seu pai, mas
ela supôs que uma alma vil o apodreceria de dentro para fora mais rápido até
mesmo que do que Cronos conseguiria fazer.
— Eu agradeço o convite — disse seu pai. — Deixe-me apresentar a minha
filha, Melora.
Lore o olhou fixamente.
— Bem-vinda, Melora — disse Aristos Cadmou, com um ligeiro sorriso.
— Minha esposa envia um presente — disse seu pai, segurando o pacote.
Aristos acenou para o garoto, que se levantou com um olhar de
aborrecimento e foi pegar o presente. Foi ele quem o abriu, erguendo dois
potes de mel.
Lore hesitou ao vê-los. A sua mãe cuidava de uma colmeia no terraço do
edifício deles e vendia o mel em uma das feiras livres da cidade nos fins de
semana. Era ouro líquido para eles, mas o garoto, Belen, enrugou o seu
narizinho de porco ao vê-los.
— Para que precisamos disso? — zombou ele. — A gente pode
simplesmente comprar isso na loja com alguns trocados.
O sangue de Lore subiu quente às bochechas, e apenas o aperto do pai em
seu ombro a impediu de voar na cara do garoto.
— Ora, Belen — disse Aristos suavemente, lançando ao garoto um olhar
que era de qualquer coisa, menos repreensão. —, todas as oferendas, até
mesmo as mais… humildes, são bem-vindas aqui.
Risos abafados se seguiram. Lore sentiu o corpo do pai se enrijecer ao seu
lado. A mão que ele havia colocado no ombro dela ficou tensa e, apesar de a
cabeça dele ainda estar curvada, ela viu a dificuldade que o pai tinha para
controlar sua expressão.
Aristos estalou os dedos para uma das mulheres ali perto, que se curvou
diante dele e trouxe uma garrafa antiga.
— Meu Madeira favorito — disse o arconte. — Envelhecido por mais de
duzentos anos.
O seu pai a cutucou para que fosse aceitar o presente. Lore encarou a
mulher enquanto ela avançava lentamente, uma massa de músculos e tendões.
Seus olhos eram delineados por kajal preto, assim como os de muitas das
outras mulheres e garotas com cerca de sua idade reunidas à sua volta. A
pintura fazia com que os seus olhos parecessem brilhar.
Elas são as leoas dos Cadmídeos — percebeu Lore, pegando a garrafa.
— Você é muito generoso — disse seu pai, em palavras tensas. — Eu o
agradeço em nome da minha família.
— Mas é claro — disse Aristos. — Pense nisso não como um ato de
generosidade, mas como um sinal da minha boa-fé nos negócios que
conduziremos aqui.
— Negócios…? — repetiu seu pai.
— É claro — disse o outro homem. — Por que mais um homem renunciaria
ao orgulho para vir até o covil daqueles que quase extinguiram sua linhagem,
senão puramente por negócios?
Lore estava com as narinas dilatadas de raiva, mas o pai se mantinha calmo.
— Ora, de fato.
— Ouvi dizer que você estava indo de linhagem em linhagem como um
mendigo, buscando conforto e auxílio — disse Aristos. — É uma pena que
eles não viram a oportunidade que você oferece.
— De uma aliança? — indagou o pai, ignorando os sussurros e risos
sarcásticos em volta deles.
— Uma aliança? — Aristos se inclinou para frente no trono, pendendo a
cabeça para o lado. — Não, Demos. Eu tenho uma oferta para você. Um
acordo que mudará a sua sorte.
— Se é que tal coisa está ao alcance de outro homem — disse o pai,
friamente.
— Eu pedi que trouxesse sua filha, porque eu gostaria de trazer o nobre
sangue de Perseu para a nossa linhagem — prosseguiu o homem. — Desejo
comprá-la de você, para casamento.
A pulsação de Lore começou a trovejar na sua cabeça. Suas têmporas
latejavam.
O seu pai olhou para Belen, que estava esfregando ranho na frente da
túnica.
— Certamente as crianças são muito jovens para terem os seus futuros
decididos…
— Os nossos destinos são decididos ao nascermos — disse Aristos
Cadmou. — Como você bem sabe.
— Não estou tão certo quanto a isso — respondeu seu pai. — Creio que
escolhemos o que vamos nos tornar.
— Então você se opõe às Moiras? — disse o arconte. — Talvez esse tenha
sido o seu erro todos esses anos. Eu reconheci meu destino quando jovem. Eu
o herdei, junto com o vasto timé e o aclamado kleos de meu pai e senhor.
— E mesmo assim você decidiu o destino do jovem Belen — disse Demos
—, pedindo a mão de minha filha em casamento em nome do seu filho
bastardo.
Houve um silvo de surpresa e um clangor de armas àquele desprezo. Belen
se afastou, e seu rosto ficou vermelho com a raiva que a vergonha trouxera.
Mas quando o arconte dos Cadmídeos falou novamente, silenciou o pai de
Lore.
— Não a quero para Belen — disse ele. — Quero-a para mim mesmo.
Os dedos de Lore ficaram frouxos, e apenas seu reflexo lhe permitiu que
pegasse a garrafa antes que caísse no chão e quebrasse. Ela voltou o olhar
para o pai, implorando em silêncio para irem embora agora, antes que outras
palavras depravadas saíssem dos lábios de cobra do homem.
— Ela tem apenas dez anos — disse seu pai. — Você é meio século mais
velho do que ela… e suas outras esposas…
Um murmúrio baixo passou pelos Cadmídeos. Alguns sibilaram, outros
bateram em seus peitos, mas foi o arconte a quem Lore observou. Uma
expressão trovejante passou pelo rosto dele com a menção de suas seis
esposas; todas partiram para o Mundo Inferior sem dar-lhe um herdeiro
legítimo.
— Eu aguardarei até que ela faça doze anos, como o costume ancião
permite, para me casar com ela, e aguardarei seu primeiro sangue para deitar-
me com ela — disse Aristos Cadmou, sem olhar para Lore. — Ela ficará
comigo até lá, para garantir que seja criada corretamente.
— Não! — vociferou Lore. O pai a segurou, apertando seu ombro
novamente.
— Perdoe-a, ela é muito espirituosa — disse o pai, com um esforço
descomunal. — A sua oferta é… generosa. Contudo, Melora já iniciou o
treinamento com os Aquilídeos.
— Por quê? — perguntou Aristos. — Por que se incomodar, quando você
sempre soube que só há um futuro para ela?
— Não vejo dessa forma — disse seu pai. — Ela é minha herdeira…
— Certamente não — disse Aristos. — Quantas filhas você tem agora,
Perseus? E nenhum filho. Ninguém para passar seu nome adiante. Ela nunca
receberá uma oferta melhor do que a de servir ao arconte dos Cadmídeos.
Você sabe que é verdade.
A fúria cresceu dentro de Lore.
— Seja sensato, Demos. Você tem duas outras filhotinhas para desovar em
outras linhagens — disse Aristos. — Se livre de uma sanguessuga e respirará
com mais facilidade. Pagarei muito bem por ela.
Levou um momento para que Lore percebesse que o fraco som de rosnado
que ouvia estava vindo dela.
O pai, de modo surpreendente, soltou uma risada vazia.
— Você me acha tão tolo — disse ele —, a ponto de não saber o real
motivo de sua oferta?
O cômodo ficou em silêncio novamente. Aristos Cadmou se inclinou para a
frente, apoiando os cotovelos nos joelhos e erguendo uma sobrancelha
desafiadora.
— Isso deve assombrá-lo, assim como assombrou o seu pai e o pai dele —
continuou o pai de Lore —, ter tal herança em sua posse e ela não poder ser
nada além de decoração. Quão pesada ela é em suas mãos? Você consegue
levantá-la sem nenhuma ajuda, como as minhas filhotinhas conseguiriam?
Os olhos do outro homem piscaram, e sua expressão foi ficando sombria.
— E como vai assombrá-lo saber que a herança que perdeu está bem
debaixo dos seus pés, a apenas um andar abaixo — disse Aristos. —
Esperando. Esperando. Esperando, para que tente reavê-la.
Lore viu lampejos vermelhos conforme o calor dentro dela crescia. Eles
estavam falando sobre a égide, o escudo de Zeus carregado por Atena. A
herança que Zeus presenteara à sua linhagem nos primórdios do Ágon, a
herança que os Cadmídeos haviam roubado deles. Ela estava aqui.
— Ela chama por você? — questionou Aristos. — Você é capaz de ouvi-la,
mesmo agora? Ou você ouve o lamento dos seus ancestrais, massacrados
como porcos?
— Eu ouço apenas o desespero na sua voz — disse seu pai, calmamente. —
Mas minhas filhas nunca lhe darão um filho que possa portá-la.
O rosto do arconte passou por entre as sombras no palco enquanto se
levantava.
— Não preciso misturar seu sangue inferior ao meu para usá-la.
— Ela nunca lhe será dada voluntariamente — disse o pai. — Se
morrermos, então ela desaparecerá conosco. Que lástima para você que a
mais teimosa das famílias dos Perseídeos foi a única a sobreviver.
Aristos desceu do tablado lentamente. Os seus braços eram tatuados com
um padrão de pele de cobra, e suas veias grossas protuberaram quando ele os
cruzou.
— É mesmo? Diga-me, garota, o que você deseja?
Lore olhou para o pai e o imitou. Olhou diretamente para frente, se
recusando a fitar o arconte.
— Não posso imaginar que deseje a imundície em que vive agora. Não
gostaria de viver em meio a uma linhagem mais poderosa; de possuir ouro,
joias e seda? — perguntou Aristos.
Seu pai lhe havia dito para que não falasse. Ela sabia que não deveria,
mesmo agora, mas não podia evitar. O orgulho queimou em seu coração.
— Serei uma léaina — disse Lore. — Meu nome será lendário.
As risadas dos Cadmídeos a arranhavam por todos os lados, mas o
sorrisinho pretensioso de Aristos Cadmou era, de alguma forma, pior. Lore
sentiu que todo o seu corpo explodiria em chamas. A mão de seu pai
permaneceu em seu ombro, mas ela não a sentia mais. Não sentia mais nada
além do forte bater de seu coração.
— Você, uma léaina? — disse Aristos. — Tenho muitas delas, como pode
ver. Todas mais corajosas, mais rápidas e mais fortes que você…
Lore soltou um grito que havia acumulado em seus pulmões, batendo a
garrafa contra uma coluna de pedra ao lado dela. O vinho jorrou no chão
como sangue, dando ao ar um odor levemente adocicado enquanto ela
atacava a leoa mais próxima, segurando o gargalo da garrafa quebrada como
se fosse uma adaga. Os olhos delineados de kajal da outra garota se
arregalaram, mas Lore era mais rápida, mais forte…
A mão do seu pai a prendeu pelo pulso, puxando-a para trás antes que o
vidro pudesse perfurar a garganta da garota. Por um momento, Lore não viu
nada além do rosto dele, o horror estampado ali. Seu peito subia e descia com
força, e ela não entendia por que aquilo lhe dava vontade de chorar.
Ele a afastou das leoas e do Cadmídeo que veio na direção dela. Pela
primeira vez na vida, Lore ouviu medo de verdade na voz do pai.
— Por favor — começou ele —, ela é apenas uma criança… não conhece o
próprio temperamento, e não houve a menor intenção de insultá-lo como
anfitrião. Se formos punidos, que seja a mim, que falhei em criá-la melhor.
Os Cadmídeos se aproximaram, diminuindo o espaço entre eles como um
nó. Alguém agarrou a trança de Lore e deu um puxão muito forte. Ela
pressionou o rosto na lombar do pai, agarrando a blusa dele enquanto um
golpe a atingiu entre os ombros.
O pai os afastou dela. Um chicote estalou contra o braço dele, tirando
sangue instantaneamente.
— Parem — sussurrou ela. — Parem…
Foi outro comando que silenciou a sala. Quietude total.
— Saiam.
Os Cadmídeos obedeceram, da maneira como Lore deveria ter obedecido.
Eles trouxeram orgulho ao seu líder quando saíram do restaurante, enquanto
Lore envergonhara o pai. Ela sabia sobre a xenia, sobre como uma visita
deveria se comportar. Ela violara algo sagrado.
Quando o último dos Cadmídeos saiu, Aristos Cadmou começou a circulá-
los. Os seus passos eram lentos e pesados enquanto ele apertava as mãos
juntas atrás do corpo.
— Peço desculpas pela minha filha — disse Demos. — Eu o compensarei
da maneira que achar mais adequada.
— Só há uma coisa que quero — disse Aristos Cadmou. — Por sorte, gosto
de fogo nas minhas mulheres… — disse ele, se inclinando para mais perto —
e do desafio de extingui-lo.
O arconte deslizou um envelope para dentro do bolso da blusa do pai.
— Está é a minha oferta pela garota. Dê-me sua resposta até o fim do Ágon.
Seu pai deu um curto assentir de cabeça, agarrando a mão dela com tanta
força que Lore não tinha escolha a não ser segui-lo até a porta. Ela não ousou
olhar para trás, nem mesmo quando o outro homem falou pela última vez.
— Este é o futuro dela — disse ele. — Não há nada mais para ela em nosso
mundo. Eu me certificarei disso, de um jeito ou de outro.
Algumas das serpentes de Aristos se demoraram do lado de fora. Sibilaram
e cuspiram em Lore e em seu pai quando passaram. A humilhação fez seu
coração e seu pequeno corpo se sentirem doentes, mas não era nada
comparado a saber que ela envergonhara o pai.
Eu nunca vou alcançar o kleos — pensou Lore, com um nó na garganta e os
olhos queimando. — Eu nunca serei nada.
Eles haviam andado por quase vinte minutos quando o pai diminuiu o
ritmo.
Ele não disse nada quando se ajoelhou e a puxou para um forte abraço.
— Desculpe — sussurrou ela, pressionando o rosto contra o ombro do pai.
— Desculpe, papai…
Ele a pegou no colo, apertando-a junto dele, como fazia quando a filha era
menor, e a carregou pelo resto do caminho até em casa.
VINTE E DOIS
O endereço que Van dera a ela e a Castor antes de se separarem era uma
lavanderia a umas vinte quadras ao norte, em Hell’s Kitchen.
Eles se aproximaram pela porta lateral, deixando o calor das saídas de
ventilação banhá-los. O ar estava tomado pelo cheiro de sabão em pó.
Lore foi ligeiramente ofuscada com as luzes florescentes quando entraram,
mas Atena já havia girado na direção do som de uma voz familiar.
Miles se apoiava em uma mesa no escritório apertado da lavanderia, seu
rosto estava animado enquanto conversava em coreano com uma mulher de
cabelos brancos que estava ali. Mas, quando as avistou, sua expressão se
fechou.
— O que aconteceu? — perguntou ele. — Onde estão os outros? Quem é
essa? Por que vocês se atrasaram?
— Qual pergunta você quer que eu responda primeiro? — indagou Lore,
cansada.
A mulher mais velha suspirou e se levantou da cadeira. Ela desligou o
monitor de seu computador velho, tirou a bolsa da gaveta e disse:
— Vou encerrar por hoje. Fale para o Evander deixar o pagamento no
cofre, dessa vez com notas diferentes.
Ela se afastou, e em questão de segundos as luzes da lavanderia ficaram
mais fracas. Apenas algumas máquinas estavam batendo quando ela saiu e
trancou a porta.
— Veja só você, fazendo amigos aonde quer que vá — disse Lore,
enquanto Atena deixava Iro em uma das cadeiras do escritório. A deusa se
afastou, deixando Lore sentir o pulso de Iro e tentar acordá-la.
— Você não bateu com força demais, não? — perguntou Lore. Iro estava
inconsciente há quase vinte minutos.
— Quem era aquela mulher? — questionou Atena, ignorando a pergunta.
— Era a Sra. Cheong — disse Miles. — Um amor de pessoa. Ela me disse
que eu lembrava seu neto, por causa desse monte de tatuagens. — Ele
respirou fundo e acenou para o corpo inerte de Iro. — Beleza, me contem
quem é essa.
— Iro, dos Odisseídeos — disse Lore. — Filha do Guardião do Amor.
Miles lançou-lhes um olhar aflito.
— Por que eu estou com a sensação de que as coisas não saíram como
planejadas?
— Quer um resumo? — disse Lore, se recostando contra a parede. O seu
corpo estremecia enquanto tentava se recompor do esforço de carregar Iro. —
Fúria está vivo, o Guardião do Amor está morto e Iro pode saber a outra
versão do poema ou onde encontrá-la.
A porta lateral rangeu e abriu novamente. Atena já estava fora do escritório
com a sua dory na garganta do recém-chegado antes que Lore pudesse
respirar.
Van levantou as mãos.
— Todos já voltaram?
Atena abaixou a lança, dando um passo para o lado a fim de permitir que
ele entrasse.
— O falso Apolo ainda está por vir.
Van parecia menos preocupado com esse fato do que Lore. Ele parou na
porta, assimilando a visão de Miles. Os seus lábios estavam contraídos, mas
não disse nada enquanto o estudava.
— Sim, ainda estou vivo — disse Miles, de um jeito sardônico pouco
característico. Ele pegou a mochila preta a seus pés e a empurrou para Van
com um pouco de esforço. Os braços de Van se curvaram levemente com o
peso.
— Seu contato é um verdadeiro cavalheiro — continuou Miles. — Ele só
me chamou de “lixo mundano” duas vezes, mas ainda assim disse que
preferia lidar comigo do que com você.
— Possivelmente porque você não tem a chave da eterna desgraça dele —
disse Van.
— A Sra. Cheong quer o dinheiro dela — lembrou Miles a ele. — E que
você pague com notas variadas. Ela disse que você é um bom parceiro de
negócios, seja lá o que isso quer dizer.
— Quer dizer que eu sei quanto tenho que pagar para garantir que ela se
esqueça de tudo que vê e escuta — disse Van.
Ele abriu a mochila e despejou o conteúdo no chão do escritório apertado.
Lore deu um pulo quando pelo menos três dúzias de bolos de notas de cem e
de vinte dólares atingiram o piso. Ele agarrou o notebook no fundo antes que
caísse junto com o dinheiro.
Lore cobriu um dos bolos com o pé e tentou trazê-lo para perto de si sem
ser notada.
— Boa tentativa — disse Van. — Precisaremos desse dinheiro se quisermos
sobreviver essa semana. — Ele pegou dois bolos e se voltou para o cofre
perto da mesa, onde os depositou. — Correu tudo bem lá?
— Tudo, só notei alguns olhares estranhos quando eu insisti em uma sala
específica do karaokê e depois não fiquei lá depois de cantar só uma música
da Whitney Houston — disse Miles.
Havia uma faísca de algo nas suas palavras — uma alegria, como uma
criança que havia acabado de se safar depois de burlar as regras pela primeira
vez. Seus olhos brilhavam quase febris com aquela lembrança, e suas
bochechas estavam coradas, do jeito que sempre ficavam quando ele se
animava.
As mãos de Van repousaram em cima da pilha de dinheiro. Seu tom foi
ficando acusatório.
— Tem quase trezentos dólares faltando. Você comprou alguma coisa na
sua aventura?
— Claro, eu parei para me mimar com uma refeição cara — retrucou Miles.
— Não sou ladrão. Ele tinha outra informação, mas queria mais dinheiro por
ela.
— E você deu a ele? — vociferou Van. — Sem ao menos ver comigo se
podia? Ele provavelmente vendeu uma mentira…
— Tudo o que você conseguiu foi a confirmação de que os Cadmídeos
compraram uma nova propriedade no Central Park South, e que fizeram a
aquisição por meio de uma empresa fantasma — disse Miles. — O que eu
consegui descobrir foi que o novo Dionísio, o Folião, era aliado de Fúria e
vinha trabalhando com ele e os Cadmídeos desde o último Ágon. Ele fugiu
no começo da caçada desse ano e não voltou mais. Fúria também está atrás
dele.
Lore abriu ligeiramente a boca. Mesmo Atena parecia ligeiramente
desconcertada com a ideia.
— Então, me diz aí, qual informação é mais valiosa para a gente agora? —
disse Miles, triunfante.
Van se levantou, mas Miles não recuou, nem mesmo para fugir do olhar
furioso de Van.
— Isso não é um jogo — disse Van. — Não há nada a se ganhar e nenhuma
regra para proteger você.
— Eu sei disso — disse Miles. Mas Lore conhecia o amigo, e ela
reconheceu o olhar de entusiasmo e triunfo que levantava seu humor.
Van estava certo. Miles estava gostando demais daquilo.
A porta lateral se abriu de novo, dessa vez com mais força.
Castor — pensou Lore, passando espremida por Atena.
Ele encostou a mão contra a parede e se inclinou para a frente, e a exaustão
desabava sobre seu rosto.
Lore foi até ele, se abaixando para tentar olhá-lo nos olhos. Fora um corte
na linha forte da maçã esquerda de seu rosto, ele parecia estar bem. A tensão
no rosto dele diminuiu quando a viu.
— Você está bem? — perguntou ela. — O que aconteceu?
Castor limpou o suor do rosto no ombro, mas sua blusa já estava colada em
cada linha do seu peito e braços.
— Demorei mais para despistá-los do que…
Ele se endireitou de repente, segurando o cotovelo da amiga. O movimento
ligeiro sacudiu o ombro de Lore, enviando uma onda de dor por ele. Sangue
quente escorreu em sua testa, e ela oscilou, se sentindo repentinamente aérea.
Castor rasgou uma sacola de roupas que estava esperando ali perto para ser
entregue e fuçou por entre as peças até encontrar uma toalha.
— Como isso aconteceu?
— Ataquei quando era para ter desviado — disse Lore, com dificuldade,
tentando se concentrar no rosto dele.
— O que… Ah, não… — Miles começou a regurgitar quando viu a toalha
manchada de sangue.
— Ela está…
— Cure-a, impostor — ordenou Atena.
— Não — disse Lore, se afastando. — Iro primeiro. Iro. Ela… ela precisa
acordar.
— Não vou ficar assistindo enquanto você sangra bravamente até a morte
— disse Castor, exasperado.
Ela pressionou a toalha no seu ombro, dando mais um passo para fora do
alcance dele.
— Iro primeiro.
Castor passou por Atena e foi até o escritório. Lore não se juntou a eles até
que a luz do poder de Castor se infiltrasse no corredor escuro. Ele trabalhou
rapidamente, assentindo enquanto Miles repetia o que havia descoberto do
informante Cadmídeo.
— Precisamos sair daqui o mais rápido possível — disse Van. — Se Fúria e
os Cadmídeos ainda estão nos seguindo, não devem estar muito longe.
— Podemos tirar um segundo para descansar e pensar no nosso próximo
passo — disse Lore.
— Vamos começar com o que teria assustado o Folião o bastante para
quebrar uma aliança com Fúria — disse Castor. Ele segurava gentilmente a
parte de trás da cabeça de Iro, mas a garota não demonstrou sinais de que
acordaria, mesmo enquanto ele a curava.
— A morte de Hermes — disse Van.
Castor suspirou.
— Isso o assustaria.
— Por quê? — perguntou Miles.
— Eles foram amantes por décadas — explicou Lore, descansando o ombro
são no batente da porta. — Tiveram esse caso no intervalo entre as caçadas,
se curtindo em festas, viajando o mundo, visitando velhas relíquias do mundo
antigo nos museus. Supostamente, eles conseguiram roubar algumas de volta.
— Ela olhou para Atena. — Você disse que não tinha conseguido sentir a
presença de Hermes nesses últimos anos, acha que tem a ver com isso?
— Hermes nunca concordaria em formar uma aliança com o falso Ares —
disse Atena. — Acho mais provável que a escolha do falso Dionísio de se
aliar tenha criado uma brecha entre eles, e Hermes teve que buscar abrigo
fora dos esconderijos habituais.
— Não o ajudou muito, no fim das contas — disse Lore. — Bom,
independentemente do que tenha acontecido entre os dois pombinhos, se
Fúria está procurando pelo Folião, temos que encontrá-lo primeiro. Acho que
podemos reformular nosso último plano e repetir a armadilha.
— De fato — disse Atena, já tendo pensado nisso. — O Ares impostor não
permitirá que ele viva depois da sua traição.
— Isso só se ele concordar em nos ajudar — disse Van.
— Ele não precisa participar voluntariamente — disse Atena. — E não
precisa saber que estamos lá até que o falso Ares chegue e a armadilha seja
ativada.
— Estamos supondo que Fúria ainda não percebeu o que estamos tentando
fazer — destacou Castor —, e que ele não vai prever isso.
— Não… — disse Lore, lentamente. — Não acho que ele vá perceber. Não
isso. Ele pode saber que estamos indo atrás dele, mas não tem ideia de que a
gente sabe sobre o Folião quebrando a aliança deles. Nem mesmo Van soube
sobre eles serem aliados, e ele aparentemente tem fontes em todo lugar.
O Mensageiro parecia indignado por ser lembrado do fato.
— Beleza — disse Miles —, mas como vamos encontrar o Folião primeiro,
se Fúria provavelmente tem centenas de caçadores procurando por ele?
Castor voltou a fitar Van, parecendo indagar algo. Van não disse nada,
apenas balançou a cabeça negativamente em resposta.
— Do que vocês sabem e eu não? — perguntou Lore, olhando para ambos.
A toalha estava ficando pesada, assim como sua cabeça. Ela precisou
encostar a têmpora contra o batente da porta para se manter na vertical.
— Não seria mais rápido? — perguntou Castor a ele.
— Levaria uma eternidade — respondeu Van. — Chegaríamos tarde
demais.
Ele arrastou a mochila até Castor, tirando o notebook de dentro dela. Em
vez de conectá-lo na tomada ou ligá-lo, usou uma pequena chave de fenda
para remover o fundo.
Miles e Lore se inclinaram para a frente, intrigados, enquanto ele removia
um pequeno dispositivo prateado de debaixo da bateria. Ele o conectou na
base do último celular descartável de Castor.
— Esta é uma cópia do programa de rastreamento dos Cadmídeos. —
explicou Van, esperando o programa carregar. — Eles o usam para registrar
quando outras linhagens e deuses são avistados. Vou ver se postaram alguma
coisa sobre o Folião, mas não posso ficar logado por muito tempo sem que o
Mensageiro deles ou outra pessoa perceba.
— O que mais você sabe sobre o falso Dionísio? — perguntou Atena.
— Quase nada além do que todo mundo já sabe — disse Van. — Ele
ascendeu há pouco mais de cem anos. Ele era conhecido como Iason
Heracliou na sua vida mortal, filho do arconte Iason, o Ancião. Ele
assassinou a família inteira quando ascendeu e destruiu todos os registros
deles para aumentar a dificuldade de caçá-lo.
Miles parecia genuinamente chocado.
— Todos eles? Todo mundo na família?
— Todos eles — confirmou Lore. — O Expurgo dos Heraclídeos continua
sendo uma coisa horrível.
— E ainda assim totalmente dentro do esperado da natureza brutal daquela
linhagem — destacou Van. — Eles celebravam todas as piores características
dos seus ancestrais. É incrível que tenham sobrevivido por tanto tempo.
— Ele está há bastante tempo sendo um novo deus — percebeu Castor. —
Acho que não ter mais uma linhagem para puni-lo por ser um assassino de
parentes ajudou.
— Além disso, ele tem sido o Dionísio menos empreendedor que já vimos,
o que quer dizer que não conseguimos rastreá-lo por meio dos negócios —
disse Van. — Nenhum vinhedo, nem nenhuma droga, nenhuma seita,
religiosa ou não… não consigo prever como ele vai reagir à gente, mas
precisamos estar preparados para tudo. Não esqueçam que o poder dele pode
induzir uma sensação de entorpecimento e frenesi. Ele é conhecido por lançar
ilusões na mente dos caçadores para poder fugir.
— Você tem uma foto dele, Van? — perguntou Lore. — Eu nunca o vi.
Enquanto o programa dos Cadmídeos carregava no celular descartável, Van
voltou a atenção para o próprio celular e, após um momento, abriu uma foto
de baixa resolução de um recorte de jornal velho. Ela mostrava um homem
com uma mão enfiada no colete por baixo do terno antiquado. Seu rosto
redondo estava parcialmente escondido debaixo de um magnífico bigode
enquanto ele posava, com expressão séria, entre duas pistas de boliche.
— Isso é um homem ou um pug bigodudo de terno? — perguntou Miles,
cuidadosamente.
Van deu uma risada alta, para a surpresa de Lore, e até mesmo, ao que
pareceu, do próprio Van. Ele se recuperou rapidamente, contraindo os lábios
como se para apagar completamente o sorriso.
— Há rumores de que ele foi arquiteto — disse Van. — Já ouvi também
que ele morava aqui, na cidade, mas não tem nada que fundamente isso.
Como eu disse, não sabemos quase nada.
— Bom, nós sabemos de uma outra coisa — disse Miles. — Ele está em pé
no Frick.
Lore estava tão concentrada em tentar analisar o rosto do homem que mal
prestou atenção no cômodo ao redor dele.
— No quê?
— Na Coleção Frick. — repetiu Miles. Seus olhos se arregalaram e seu
rosto acendeu em deleite quando percebeu o olhar de surpresa de Van. —
Você não conhecia? Sério?
— Inteligente — disse Atena. — Mais uma vez, o conhecimento do mortal
sobre esta cidade ultrapassa de longe o que o resto de vocês traz à mesa.
— Como pode ter certeza? — perguntou Van, com um tom ríspido.
— A pista de boliche; esses arcos, o teto com padrões de hexágono — disse
Miles, tentando não se gabar demais. Van parecia realmente perdido
enquanto dava zoom no teto da imagem. — É o Frick. Costumava ser uma
mansão antiga que pertenceu a um tal de Sr. Frick, que usava os infinitos
montes de grana que ganhava como empresário industrial para comprar arte.
Eles transformaram a mansão em um museu depois da morte dele. O boliche
fica no porão. Aposto que é lá, e se for verdade que o Folião era arquiteto, eu
não ficaria surpreso de ele ter trabalhado lá.
— Como diabos você sabe disso tudo? — perguntou Lore.
— Você saberia também, se tivesse vindo comigo quando te convidei no
mês passado — disse Miles, incisivamente. — Eu consegui ingressos de
graça no estágio, lembra? Você disse, com todas as letras: “Nova-iorquinos
legítimos não ficam turistando.”
— Eu nem falo desse jeito aí — disse Lore, indignada.
— Você fala exatamente assim — disse Castor. — É a sua cara isso de
“Nova-iorquinos legítimos não tostam o bagel”.
Lore estava horrorizada.
— Só um monstro faria isso.
— Isso não significa nada — interrompeu Van. — Só porque ele foi
fotografado no local há cem anos não significa que a informação é relevante
para a gente hoje.
— É tudo relevante — disse Atena. — Pois é bem próximo de onde o
Despertar aconteceu e um local familiar a ele.
— Então seria um lugar seguro para se esconder — concluiu Lore. — Ele
pode não estar mais no local, mas vale a pena investigar.
— Ah, eu nem contei a melhor parte — disse Miles, pausando para um
efeito dramático.
Lore o fitou. Ele sorriu.
— O lugar fechou para reformas há duas semanas — concluiu ele. — O
museu não abre de novo até janeiro.
— Caramba — disse Lore. — Acho que devemos começar procurando lá.
— Concordo — disse Miles.
— Eu ainda vou ficar de olho no programa dos Cadmídeos — disse Van,
categoricamente. — Não podemos apostar em um palpite.
— Boa — disse Castor —, e enquanto você faz isso… — Ele soltou a mão
de Iro com cuidado. — Ela deve acordar em alguns minutos.
Ele se voltou para Lore com sobrancelhas erguidas. A jovem pressionou a
toalha no ombro ferido e, só para fazer Castor se sentir melhor, permitiu que
ele a ajudasse a seguir pelo corredor, até o precário banheiro de funcionários.
— Sejam rápidos — disse Van a eles. — Temos uns dez minutos antes de
termos que sair daqui.
Isso — pensou Lore — se Fúria não nos encontrar primeiro.
VINTE E TRÊS
LORE QUASE SE ESQUECEU DE COMO ERA SER CUIDADA POR OUTRA PESSOA.
Ela tomou conta de Gil por anos e se acostumou a assumir esse papel. A
estranheza de ser cuidada — a relutância que sentiu — a fez se lembrar de
algo que Gil dissera a ela três anos atrás, na noite em que se encontraram.
Lore havia perambulado dia e noite depois de deixar a propriedade dos
Odisseídeos, tentando chegar a Marselha e começar a pedir esmolas para
viajar de volta aos Estados Unidos e fazer uma vida nova. Aqui, seus
documentos falsificados pelo menos lhe dariam algumas escolhas de escola e
de um recomeço. Gil, à época com 87 anos, foi assaltado na periferia da
cidade, e ela o achou brutalmente espancado, com um braço e uma perna
quebrados. Ele estava rouco de tanto chamar uma ajuda que não veio.
Lore ficou abismada, e apesar do próprio medo e cansaço, ela carregou Gil
nas costas até o hospital mais próximo e sentiu-se compelida a ficar lá com
ele, não tinha intenção de deixar aquele homem vulnerável sozinho. Ela
fingiu ser sua neta para cadastrá-lo e ouviu quando ele falou sobre si mesmo
— um professor solteiro da cidade de Nova York, e ele sabia que essa seria
sua última viagem para o exterior. Quando o médico suturou as feridas de Gil
e tratou do corte em sua face, a ideia havia se formado completamente na
cabeça de Lore.
Gil não fazia parte do mundo dela, e estava sozinho no seu. O que Lore
propusera foram apenas negócios: ela viajaria para Nova York com ele e
trabalharia como cuidadora até que ele não precisasse mais de cadeira de
rodas. Ele ruminou essa ideia com uma relutância tão óbvia que Lore havia se
preparado para o desapontamento. Enquanto esperavam que lhe dessem alta,
Lore indagou o que o fizera mudar de ideia. Ele respondeu:
— Às vezes, a coisa mais corajosa a se fazer é aceitar ajuda quando todo
mundo faz você pensar que não precisa dela.
Lore guardou aquelas palavras no coração, usando-as para afastar o último
resquício de relutância quando Castor a levou para o banheiro sujo da
lavanderia.
Ele teve que se abaixar devido ao teto baixo. Os pensamentos de Lore
foram diminuindo e se aquecendo enquanto observava seu pomo de Adão e a
incerteza de suas mãos sobre em que ponto dos quadris dela deveriam se
apoiar enquanto a davam apoio.
Ele é lindo demais — pensou ela. Não apenas pelo que havia se tornado,
mas de um jeito que era inegavelmente único.
Em um movimento rápido, ele a ergueu para que se sentasse na borda
estreita da bancada que cercava a pia. Como em muitos banheiros na cidade,
aquele beirava ao inóspito, muito provavelmente para desencorajar as pessoas
a passarem muito tempo nele.
— Que homão, hein — disse ela.
Ele a lançou um olhar desconfiado enquanto tirava a toalha das mãos dela e
a deixava cair no chão. Cuidadosamente, sem incomodar com o ferimento,
ele puxou o colarinho da blusa dela para poder ver melhor.
— Foco na lesão, ok?
A concentração dele era repleta de seriedade e ansiedade. Remetia Lore à
época em que eram mais novos, à maneira silenciosa com que o amigo a
observava depois de treinarem, como se precisasse ter certeza de que ela
estava bem.
— Calma, crush. Só feriu meu ego, mesmo — informou ela. — Fui idiota,
só isso.
Ele balançou a cabeça negativamente.
— Eu juro, você é a única pessoa que eu conheço que ficaria discutindo
numa hora dessas.
— Isso é porque, diferente de você, eu sou multitarefas — disse ela, com
uma piscadela. — Qual é o prognóstico, doutor? Eu vou sobreviver?
Subitamente, ela percebeu que aquilo soaria mal.
— Desculpe… Cas, desculpe. Eu e minha boca grande.
Ele pareceu ignorar o comentário, mas Lore podia dizer que o amigo foi
parcialmente afetado por ele.
— Posso rasgar a blusa para que ela não me atrapalhe?
Ela assentiu com a cabeça, se encolhendo enquanto ele rasgava
cuidadosamente o tecido do colarinho até a manga. Foi só então que ela viu
toda a extensão do ferimento profundo e irregular. Vários pedacinhos de
vidro estavam cravados no músculo, e Lore, que já vira muitos ferimentos em
sua curta vida, ficou com o estômago embrulhado ao fitar o seu.
A alça de seu sutiã estava sobre ele, presa na casca de uma das feridas mais
superficiais. Os dedos de Castor hesitaram sobre a alça, e eram quentes sobre
a pele lisa. O sangramento havia diminuído, mas o frio que ela sentiu se
acumular debaixo da pele estava se aprofundando.
Ela assentiu com a cabeça, engolindo a seco. Ele cortou a alça, observando
a face de Lore o tempo todo.
— Não está doendo mais — disse ela. — Isso é um bom sinal, certo?
— Isso é o oposto de bom sinal — disse Castor, com a voz firme. — Quem
deu o golpe?
— Por que quer saber? Vai me vingar? — indagou ela, e tentou olhar para
baixo para ver o ferimento. — Está tão ruim assim? Não parece estar.
— Eu acho que você está em choque — disse ele. — Quem foi? Eu perdi
você de vista quando a poeira e a fumaça aumentaram.
— Eu não sei — disse Lore.
Em um movimento breve, Castor pegou o maior dos cacos de vidro e o
arrancou. A dor era tão escaldante que Lore não conseguia respirar fundo o
suficiente para gritar, mesmo enquanto ele removia os cacos que restavam.
Mas, então, a mão dele estava ali, pressionando firmemente o sangue que
escorria do ferimento. Lore sentiu calor, uma queimadura aguda que se
desfazia em um calor anestesiante.
— Filho da… — conseguiu pôr para fora.
— Não diga nada — disse Castor. — Tente apenas respirar.
— Você podia… ter me avisado… — disse ela.
— Você teria contraído o músculo e seria mais difícil tirar o vidro — disse
Castor. — Parece que eu ainda me lembro de algumas coisas que a
curandeira Kallias me ensinou.
Ela sabia que ele estava certo, mas isso não queria dizer que Lore não
ficaria chateada com aquilo por um tempinho.
— Apenas respire — disse ele.
E assim o fez. E a cada respiração ela sentia o poder de Castor reparando a
pele rasgada. A energia dele tinha um efeito quase entorpecente. Envolvia-se
ao redor de seu corpo e mente, embalando-a com leveza.
Castor pegou a mão dela. Lore fechou os olhos e encostou a cabeça contra o
espelho atrás de si. Segurou-se no amigo, querendo ficar naquele momento,
querendo se apoiar em alguma coisa real antes que os poderes dele deixassem
sua mente leve.
— Fui eu? — perguntou ele, baixinho. — Fui eu que fiz isso com você?
Lore se forçou a abrir os olhos. O dourado nas íris dele rodopiava, brilhante
na escuridão do banheiro sujo.
— Fui eu, por não conseguir controlar a minha força? — perguntou ele
novamente.
— Não — disse ela. — Foi um dos Cadmídeos.
Castor não parecia estar convencido. Ela apertou a mão do amigo
novamente, a puxando até que ele a fitasse.
— É uma habilidade nova — disse ela. — Assim como qualquer outra,
você precisa treinar para dominá-la, certo?
O polegar dele começou a acariciar distraidamente toda a clavícula de Lore
enquanto a curava, deixando um rastro quente e brilhante na pele. Ela se
inclinou na direção do toque.
— Queria que fosse fácil assim — disse ele —, e que eu pudesse explicar
isso melhor, mas… desde que recuperei minha forma física, é como se eu não
conseguisse recuperar totalmente meu equilíbrio. Tem uma desconexão entre
o que a minha mente espera e o que o meu corpo realmente faz.
— Por que você não me falou isso antes? — perguntou Lore.
— Você me confunde — disse ele simplesmente. — Sempre foi assim. Eu
quero contar tudo para você, mas tem uma parte de mim que ainda tem medo
de parecer fraco.
Lore agarrou o pulso dele.
— Eu nunca achei você fraco.
— Eu sei — disse ele. — Mas eu era fraco, por um bom tempo, e não por
culpa de nada nem de ninguém. Era só o meu corpo. Forte ou fraco… Eu
odiava termos que ser ou um ou outro. Eu queria ser definido pela vida que
eu tive.
A vida que ele teve. A vida que seria interrompida impiedosamente cedo
demais, não fosse pela ascensão. Ela podia quase sentir a história que ele
estava guardando. A forma como se agitava debaixo da sua pele, como se
estivesse desesperada para ser contada.
— Cas — disse ela suavemente —, como você matou Apolo?
O pomo de Adão dele subiu e desceu quando ele engoliu em seco. Ele
parecia refletir sobre algo, e Lore quase desejou não ter perguntado. De todas
as coisas que havia mudado entre eles, ela não tinha certeza se poderia lidar
pela primeira vez com uma mentira dele.
— Eu não sei.
Lore ergueu o olhar.
— O quê?
Castor olhou para a porta, como se estivesse preocupado de alguém estar
ouvindo.
— Eu não sei. Não tenho nenhuma memória do que aconteceu.
Ela abriu a boca, depois a fechou.
— Eu sei — disse ele, tenso. — Não havia câmeras no meu quarto. Van me
disse que as outras câmeras de segurança pararam de funcionar quando Apolo
entrou na Casa Tétis. Eu estava sozinho quando aconteceu.
— Van sabe? — perguntou Lore. Ela não tinha motivo nenhuma para se
sentir magoada com a revelação, mas estava.
— Ele não sabe sobre a perda de memória — disse Castor. — Eu sei que
ele vem tentando descobrir sozinho. É que…
— Por isso que você estava tentando falar com Ártemis? — disse Lore,
finalmente ligando os pontos. — Você acha que ela pode saber?
Ele assentiu.
— Eu não sei como era a conexão deles ou se ela viu o que aconteceu.
Atena não parece saber. Ártemis teria contado a ela se tivesse testemunhado a
morte de Apolo?
— Ártemis tentou esfaqueá-la depois de uns cinco minutos que o Ágon
começou, então, no caso, não vamos contar com o amor fraterno — disse
Lore.
Castor deu um sorriso pequeno e efêmero. Lore pegou a mão livre do rapaz
e a apertou.
— Eu preciso descobrir — disse ele. — Eu preciso. Eu não posso… Isso
tem que ter acontecido por alguma razão. Ter esse poder precisa significar
alguma coisa.
Lore sentiu algo no seu peito se partir com o desespero silencioso nas
palavras dele.
— Eu não acredito nas Moiras, mas acredito em você — disse Lore. — O
que quer que tenha acontecido, foi porque você era você. Nós vamos
descobrir o que houve, eu prometo. Pode me cobrar.
Castor assentiu.
O calor desapareceu do toque dele quando terminou de curá-la, mas ele não
se afastou, nem Lore. Ele umedeceu uma toalhinha de rosto e começou a
limpar o sangue da nova pele corada de sua amiga com uma ternura que
quase partiu o coração dela. Lore abriu as pernas, deixando-o se aproximar
mais, e fechou os olhos.
— Você está bem? — perguntou ele. — De verdade?
Os longos dedos do novo deus subiram pela curvatura do ombro de Lore,
tocando-a levemente, vindo envolver a sua outra bochecha, para acariciar a
sua velha e longa cicatriz. Os tensos músculos de seu pescoço relaxaram
quando ele acariciou a área onde a base da cabeça se encontrava com a
coluna.
— Eu o vi — murmurou Lore. — Eu disse a mim mesma que eu nunca
voltaria para este mundo… que eu nunca deixaria que ele forçasse a minha
mão ou me fizesse querer matar. Eu pensei que podia voltar de mãos limpas
se Atena fizesse o trabalho sujo, mas… Eu não sei se eu consigo fazer isso,
ficar com um pé no ringue e outro fora.
— Você pode — disse Castor. — Não deixe que puxem você de volta. Não
há nada além de sombras aqui.
Lore sabia exatamente quão fácil era se perder naquela escuridão. E
precisar dela.
Até mesmo agora, conseguia imaginar as suas mãos envoltas no pescoço de
Fúria, sufocando-o até que as faíscas de poder sumissem dos olhos dele — ou
sua espada brilhando enquanto ela a mergulhava no peito dele repetidas
vezes. Mas não se sentia enojada com a ideia.
Apenas ansiava ainda mais por isso.
Lore se inclinou para a frente, apoiando-se no peito de Castor, ouvindo a
poderosa batida do seu coração mortal.
— Eu costumava acreditar nesse mundo — disse Lore. — Eu costumava
querer muito tudo que ele prometia.
— Eu sei — disse Castor. — Mas nunca pensei que você venceria o Ágon.
Pensei que o destruiria.
Lore ergueu o olhar com as palavras dele, e suas sobrancelhas também,
confusa. Mas antes que pudesse perguntar, uma batida quebrou o silêncio,
seguida por um grito feroz.
Iro finalmente acordara.
VINTE E QUATRO
LORE, COM A CABEÇA LATEJANDO E MEIO CEGA PELO VÉU DE POEIRA QUE
tornava o ar sufocante, cravou as unhas na mão que a estrangulava.
Ele apertou o pescoço de Lore com mais força, e, conforme sua visão
escurecia, ela sentiu a pressão em torno de sua coluna, pronta para se partir.
Ela golpeou para cima com a adaga por repetidas vezes, até que finalmente
acertasse o antebraço do Folião. Ele uivou de dor e afrouxou a mão o
suficiente para que ela caísse de joelhos e rolasse para longe, tossindo.
O Folião retraiu o braço pela parede. O buraco que ele abriu revelou o resto
da sala, de modo que uma parte dela se estendia até quase o local exato que
ela havia escolhido ficar.
Lore fez uma careta. Ótimo trabalho, como sempre.
Atena olhou ameaçadoramente e afastou Lore. Ela quebrou a parede
danificada com a mão e com a dory, alargando o buraco até que estivesse
grande o suficiente para que pudesse passar.
— Folião! Não estamos aqui para matá-lo! — disse Lore, com a voz rouca.
Um grito bestial foi a resposta. Dentro da sala, prateleiras caíram em uma
cacofonia de partir os ouvidos.
Atena arrancou o último bloco de concreto e se esgueirou para dentro do
cofre. Lore cambaleou atrás dela, virando a cabeça para encarar Miles na
parede quebrada.
— Vá buscar Castor!
Ela nem quis saber se ele a ouviu de fato.
— Eu sabia que você eventualmente viria atrás de mim, sua vadia
desprezível — disse o Folião, rangendo os dentes na direção delas. Atena o
encurralou em um canto, e tudo que ele tinha para se defender era a adaga de
Lore, arrancada de seu braço, e a tampa de uma caixa que usava como
escudo.
Atena o observou com rosto pétreo, enquanto o corpo dele se enchia de
ódio.
— Ninguém está aqui para matar você — disse Lore, novamente, erguendo
as mãos para mostrar que estava desarmada e acalmá-lo.
— Ainda posso mudar de ideia — disse Atena, friamente.
O rosto do Folião se fechou, retorcido de raiva e repulsa. A imagem dele,
bêbado e reduzido ao caos do medo e da autopreservação, poderia ter
despertado um traço de pena em Lore, se ele não tivesse acabado de
assassinar brutalmente seis pessoas inocentes no andar de cima.
— O meu nome é Melora Perseus — disse Lore.
O Folião soltou uma risada sombria.
— É claro. Que os deuses amaldiçoem a todos. Não sei por que esperava
outra pessoa nessa merda de ciclo.
Ela não sabia o que responder, então, prosseguiu:
— Eu apelo a você, descendente do poderoso Héracles, o mais famoso e
renomado dos antigos Perseídeos…
— Essa merda não funciona comigo, criança idiota — vociferou o Folião.
— Caguei para isso, e, mesmo que não cagasse, Euristeu dos Perseídeos
tentou destruir todos os filhos de Héracles antes da existência do Ágon.
— Certo — disse Lore, com dificuldade, tendo se esquecido daquele
detalhe obscuro da história. — Justo. Mas nós estamos aqui para conversar.
— A não ser que prefira lutar — disse Atena. — Vamos extrair as respostas
de você de qualquer maneira.
— Acha que eu não sei que você e a caçadora psicótica estão em missão
querendo coletar todas as cabeças dos novos deuses? — rugiu ele. — Pois
venham. Eu as desafio.
— Se esse fosse realmente o caso — disse Lore —, então por que ela
estaria trabalhando com o novo Apolo?
O Folião apontou a adaga para Lore.
— Mentirosa.
— Ela não está mentindo — disse Castor, e sua voz vinha de trás deles. Ele
passou pela abertura na parede, e seu olhar disparou até Lore antes de se fixar
no novo deus.
— Então você é o maior idiota dessa sala — disse o Folião, cambaleando
um passo para frente. — Seja lá quais forem seus planos, o dela está a anos-
luz na frente. Você… você não faz ideia. As coisas que ele me contava sobre
ela…
Ele — pensou Lore. — Hermes.
— Seja como for — disse Castor, parando ao lado de Lore —, Fúria é quem
está matando os novos deuses, não ela.
O Folião zombou.
— Fúria não apenas matou Hermes — prosseguiu Castor —, mas a
Portadora da Maré e o Guardião do Amor também, e tentou vir atrás de mim.
Estamos tentando pará-lo…
— Eu vou matá-lo. — rugiu o Folião, limpando o suor do rosto pálido. —
Eu. Mais ninguém. Vou matar qualquer merdinha que ficar no meu caminho.
— Isso não vai acontecer se Fúria pegar você primeiro — disse Lore.
— Acha que não sei disso? — disse ele, em tom de zombaria. — Eu sabia o
que me custaria fugir dele.
— Hermes… — tentou dizer Lore.
— Não diga o nome dele! — vociferou ele. — Você… não se atreva!
— Eu? — indagou Lore. O que diabos aquilo significava?
O Folião esfregou o dorso da mão na boca e não disse nada.
— Você está sozinho — relembrou ela. — Precisa de ajuda. Se vai
simplesmente sangrar até a morte aqui embaixo, então para que isso? Qual é
o sentido disso tudo?
— Eu tenho uma aliança com o Apolo impostor — disse Atena. — A
estenderei temporariamente a você, contanto que concorde em servir como
um meio de atrair Fúria.
—É a isso que fui reduzido? Uma isca? — indagou o Folião, balançando a
cabeça negativamente com uma risada sarcástica, lutando para se manter em
pé sem o apoio da parede atrás dele. Lore não tinha certeza se ele sabia que
emitia um ruído baixo e sofrido. O ferimento na perna do deus estava muito
pior do que o que ela lhe causara. Já estava ficando vermelho por causa do
avanço de uma infecção.
— Prefiro enfiar uma faca no estômago e me matar — sibilou o Folião. —
Encerrar essa farsa de existência. Isso é… tudo isso, é baboseira… não
significa nada. Até mesmo o supostamente grande Apolo sabia disso. Ele
sabia.
— O que isso quer dizer? — questionou Castor, incapaz de esconder a
surpresa e a ansiedade. — O que você sabe sobre a morte de Apolo?
O ar pareceu evaporar do peito do Folião. Seu corpo tombou para a frente,
deslizando pela parede.
— Não sei de nada — disse o Folião, e sua agitação e embriaguez estavam
se tornando exaustão. — Apenas que a caçada é longa, e existe um limite do
quanto alguém pode aguentar.
Castor se aproximou dele lentamente, pegando a adaga da mão frouxa do
outro deus e a devolvendo para Lore. Ele fitou o Folião com uma compaixão
que o deus não merecia.
— Por que veio a esse lugar? — perguntou Atena. A repulsa tomou conta
do seu semblante enquanto assimilava a arte destruída ao redor. — O que
procura tão desesperadamente?
— Pensei que ele tivesse deixado algo para mim. Que ele tivesse escondido
aquilo — disse o Folião, olhando para Atena e Lore.
Lore inspirou de forma irregular, e sua mão livre se fechou em um punho
no flanco de seu corpo.
— Por que você decidiu trabalhar com Fúria depois do último Ágon? —
perguntou Lore. — Por que concordou, quando Hermes não o fez?
O novo deus não respondeu. Lore passou a mão no ponto em que os
pedaços de concreto o cortaram, na lateral da cabeça, lançando um olhar
incerto na direção de Castor. Ele se agachou na frente do Folião.
— Prometa que não vai matar ninguém do meu grupo e que vai responder
às nossas perguntas — disse Castor —, e eu curo você.
O Folião zombou.
O temperamento de Lore despertou imediatamente, mas Castor não perdeu
o tom calmo e sensato.
— Você vai ter uma chance maior de sobreviver se puder fugir dos
caçadores, Iason, e ainda mais se nos ajudar.
O Folião o encarou à menção de seu nome mortal, enfurecido. Lore tinha
certeza de que ele diria não; que o icor, o poder e a violência infinita haviam
removido até o último resquício da sua humanidade. Em vez disso, a
aparência feroz desapareceu das suas feições.
— Você percebe, afinal, a lógica em uma parceria temporária — observou
Atena. — Talvez ainda haja esperança para sua sobrevivência.
Folião desdenhou da deusa.
— Soberba até o fim.
— Temos um acordo ou não? — indagou Castor.
Os últimos traços de zombaria sumiram do rosto de Folião. Ele fitou Castor
e todo o resto, e Lore pôde praticamente sentir o esforço na mente dele para
buscar por outra opção.
Finalmente, disse:
— Responderei a duas perguntas de vocês, mas não os ajudarei a matar
Fúria e não serei uma isca nem ferrando.
Atena repousou uma mão fria e pesada no ombro de Lore. O toque
silenciou tanto os seus pensamentos quanto o seu ultraje.
— Duas respostas bastarão.
— Trabalhando com mortais — disse o Folião, e seu sorriso pretensioso
tornou suas feições perfeitas novamente horríveis. — Pobrezinha de você.
Um dia comandou civilizações e agora não é nada mais do que uma história
que vai sumindo a cada geração. A cada batida ridícula dos corações destes
mortais, você deve se coçar de vontade para arrancá-los.
Atena deu um passo firme à frente, fazendo com que o concreto sob seus
pés se envergasse.
— Ah, finalmente se revelando — provocou o Folião.
— Eu calaria a boca antes que eu a deixe matar você — disse Lore,
friamente. — Ela é o que sempre foi. Mas para alguém que costumava ser um
mortal, você não teve problema nenhum em matar as seis pessoas lá em cima
que não tinham nada a ver com o Ágon.
O Folião se levantou lentamente, confuso, franzindo o cenho.
— Do que diabos está falando, criança? Eu não matei ninguém desde o
Despertar — disse ele. — Se há mortos neste edifício, não foi minha mão que
os abateu.
VINTE E OITO
O AR DO FINAL DA MANHÃ ESTAVA DENSO DE TANTA UMIDADE, MAS NÃO ERA NADA
comparado à atmosfera opressora que tomou conta da casa.
Depois que eles souberam pelos Aquilídeos que os ataques foram bem-
sucedidos e não houve nenhum problema ou baixas entre eles, Lore ainda não
tivera notícias de Iro, exceto pela curta resposta da garota à mensagem com
as instruções do ataque: Confirmado.
Apesar disso, Lore não estava preocupada, principalmente depois que Van
se encontrou com um dos caçadores Aquilídeos e trouxe para casa um
conjunto grande de armas que eram dos Cadmídeos. Atena ficou obviamente
satisfeita por separá-las e examiná-las uma a uma, incluindo uma dory de
verdade. Mas qualquer animação que Lore sentira com este sucesso
desapareceu no buraco negro emocional do silêncio de Van e Castor.
Quando Lore não conseguiu mais aguentar os olhares de julgamento de Van
quando ele estava sentado assistindo pelo Argos ao progresso de Miles, sem
contar a porta fechada atrás da qual permanecia Castor, ela voltou para seu
quarto. Lá, finalmente percebeu o que Miles deixara para ela sobre a cômoda.
O pingente de pena no colar piscava para Lore ao refletir a luz solar. Ela
hesitou por um momento, passando os dedos levemente na borda dele.
E nunca será livre — pensou ela.
Lore passou a mão sobre a cômoda, fazendo com que o colar caísse dentro
de uma pequena lixeira ao lado. Mas ela sentia sua presença, mesmo que não
pudesse mais vê-lo. Precisando fugir dele, e da casa, Lore abriu a janela e
passou para a escada de emergência, subindo até o telhado. Lá, viu
carregadas nuvens cinzentas vagarem ao longe.
Lore olhou para trás por cima do ombro ao ouvir alguém na escada, mas
relaxou quando viu quem era.
— Você não devia estar aqui.
Atena examinou o terraço deserto. Não havia muito para ver além de Lore,
duas espreguiçadeiras velhas e o motor do ar-condicionado. Na verdade,
ninguém devia subir ali, mas Miles e Lore às vezes faziam essa escalada
quando o clima estava bom e queriam beber vinho. Eles conversavam sobre
fazer alguma coisa no local, um pequeno jardim, talvez, mas isso foi antes de
Gil morrer.
Depois de Hermes ir embora — corrigiu-se Lore, esfregando os braços. Ela
se voltou novamente para as nuvens prateadas de tempestade que se reuniam
ao leste.
A deusa não quis sentar-se na outra cadeira, escolhendo, em vez disso, a
superfície áspera do terraço. Ela colocou a dory no colo e começou a afiar
ambas as pontas com a pedra de amolar que pegou da cozinha.
— Era Hermes.
Ela não sabia exatamente por que era mais fácil contar para a deusa. Talvez
fosse por saber que Atena, franca como a parte cega de uma espada, não
tentaria consolá-la ou fazê-la conversar sobre isso.
— O que tem? — perguntou Atena, soltando a pedra de amolar.
— O homem para o qual eu trabalhei… a pessoa que era dona desta casa e a
deixou de herança para mim — disse Lore, engolindo em seco. — Era
Hermes o tempo todo. Quando ele sumiu, veio para cá. O Folião me contou
tudo no museu.
— Ah — disse Atena. E então, acrescentou cuidadosamente: — E você
acredita no impostor?
Lore assentiu.
— Aparentemente, Hermes também pensou que eu estava com a égide.
Deve ter sido uma frustração enorme para ele quando percebeu que eu não a
tinha, e que ele fez todo… — sua voz ficou presa de um jeito que ela odiava.
— E que ele fez todo aquele esforço me amparando para nada.
Atena contraiu os lábios.
— Mas eu não entendo — disse Lore. — O Folião disse que Hermes se
sentiu em dívida comigo e que queria prevenir que Fúria conseguisse a
égide…
— Hermes claramente descobriu sobre o poema — disse Atena — e
esperava usá-lo para fugir do Ágon.
— Isso — concordou Lore —, ou ele não fazia ideia e só queria usar o
escudo no próximo Ágon, e pensou que talvez eu o daria de bom grado se ele
fosse gentil o bastante. Mas por que ele se sentiu em dívida comigo? Por que
ir tão longe ao ponto de entrar assim na minha vida, se ele nunca me
perguntou sobre o meu passado nem me pressionou a falar sobre ele? Ele até
me deu um amuleto protetor que me escondia dos deuses. Deixou esta casa
para mim.
— Imaginei que ele teria feito isso — disse Atena, lentamente. — Como
disse, segui seus rastros ao longo dos anos e procurei por você. Só a vi uma
única vez, há três anos, caminhando por uma das ruas perto daqui, e a segui
até sua casa. Mesmo assim, nunca a vi novamente e, no início desta caçada,
tudo que pude fazer foi esperar que você ainda morasse no mesmo lugar.
A ideia de ter passado a centímetros de distância da deusa oculta encheu
Lore de um receio estranho e tardio.
— Você lembra se eu estava usando o colar? — perguntou Lore. — Com
um pingente dourado de pena.
A deusa pensou cuidadosamente na pergunta.
— Você não o usava.
Deve ter sido logo depois de Lore voltar para lá com Gil — com Hermes.
Passaram-se duas semanas antes que ela acordasse e encontrasse o colar em
sua cômoda. Pareceu que ele acreditou que o aniversário dela era na data de
nascimento que estava no passaporte falso. O aniversário real já havia
passado.
— Você se pergunta por que Hermes pôs tal charada em prática? —
indagou Atena. — Porque ele é astuto e porque se deleita com isso. Contudo,
não é nenhum tolo. Se acreditou que você possuía a égide, ele teve suas
razões. Então, devo perguntar-lhe novamente, Melora: você possui o escudo
do meu pai, e há perigo de ele cair nas mãos do Ares impostor existe?
As pontas dos dedos e as palmas das mãos de Lore começaram a ficar
dormentes, assim como as mãos. Seus pensamentos traçavam espirais, cada
medo sombrio perseguindo o próximo em ciclos. Ela cravou as unhas na pele
dous braços, usando a dor para sair desse transe.
— Não está comigo — disse Lore. — Talvez ele tenha descoberto que
Aristos Cadmou ficou se vangloriando para meu pai sobre saber onde ela
estava.
— De fato — disse a deusa, e emitiu um ruído baixinho.
Lore se lembrou, então, do que Belen dissera. Você é uma distração. Ela é
uma distração.
Lore encolheu os braços no peito, se inclinando para a frente, sobre os
joelhos.
— Você acha que isso pode ter a ver com algo a mais do que só o poema…
que a ideia de uma garota roubando a égide fere o orgulho de Fúria?
— Ele pode ter muitos motivos para a desejar. Ele anseia saber o segredo
de como vencer o Ágon. Anseia reparar o orgulho ferido por ter sido
superado por uma garotinha. Anseia obter a glória da égide como um símbolo
de poderio — disse Atena —, e usá-la como uma ferramenta. Ela pode evocar
o trovão e conjurar o relâmpago, mas não precisa ser usada em seu poder
máximo para instigar medo nos corações daqueles que a veem.
A deusa pareceu considerar algo mais, acrescentando:
— Se você não entregar o escudo a ele por vontade própria, ele irá precisar
que você o empunhe, e fará o que for preciso para coagi-la a isso.
— Você fala isso como se você se importasse — disse Lore. — Por que
fingir que liga para mim além dos termos do nosso acordo?
— Como qualquer artesão — disse Atena, inclinando a cabeça na direção
dela —, se vejo potencial na matéria-prima, tenho o ímpeto de moldá-la em
algo grandioso.
— Que irônico, vindo de você — disse Lore.
— Não compreendo sua acusação — disse Atena, diretamente.
— Você nunca orientou mulheres — disse Lore. — Não da mesma forma
que orientava seus heróis. Mas nunca teve problema em puni-las.
— Mulheres e meninas pertenciam à minha irmã e não eram minha
responsabilidade — disse Atena, com palavras em tom de alerta. — Não lhe
devo nenhuma satisfação.
O rosto de Atena a desafiava a prosseguir, e Lore nunca fugiu de uma briga
impulsiva.
— Você sabe por que caçadoras não devem tomar o poder de um deus,
como os anciãos das linhagens sempre disseram? — questionou Lore,
deixando anos de raiva silenciada preencherem seu peito, como vapor. —
Eles se baseiam no poema da origem, mas também recorrem a você. Para o
fato de você apenas ter escolhido ser mentora de homens como heróis em
suas jornadas. Você ajudou apenas eles a alcançar o kleos nascido da batalha,
o único que importa para os anciãos. Para eles, você sempre foi uma extensão
da vontade de Zeus.
— Eu nasci da mente do meu pai. Eu sou uma extensão da vontade dele.
O maxilar da deusa se enrijeceu, transformando seu rosto em uma máscara
de ira.
— Minha presença aqui, agora, é tudo que é necessário para que se entenda
o que acontece com aqueles que perturbam a ordem natural das coisas. Que
traem o pai.
— Você não ficou com raiva? — perguntou Lore, ouvindo sua voz oscilar.
— Como pode não estar furiosa por nem mesmo você ter sido totalmente
livre para decidir quem ou o que queria ser?
A deusa permaneceu em silêncio, mas havia algo em sua expressão agora:
uma forte concentração.
Você deixou os homens usarem o seu nome e sua imagem para reforçarem
as próprias regras… você representava o que eles poderiam, por si mesmos,
se empenhar para ser — disse Lore. — Mas e o resto de nós? Todas nós, que
nos intitulamos mulheres, e todos os outros, que não são tão facilmente
definidos?
— Não me recordo do meu dom do ofício artístico pertencer
exclusivamente aos homens — disse Atena. — Ou de não reconhecer
mulheres que demonstram excelência no lar e no cuidado com a família.
Lore inspirou, vacilante.
— Sabe, o que quase torna isso pior é que você realmente se enxerga como
o mito que os homens criaram. Você acabou de afirmar que nasceu da mente
de seu pai, mas teve uma mãe, não teve? Métis. A própria sabedoria. Esse
dom era dela, não de Zeus, e ele devorou vocês duas para se salvar, e o tomou
para si. Negá-la é negar quem você é. É negar o que os homens são capazes
de fazer.
— Eu sei exatamente o que são capazes de fazer, filha de Perseu — disse
Atena, com frieza.
Lore titubeou ao ouvir o nome de seu ancestral.
— Você lança suas opiniões com total certeza, mas sem base alguma —
disse Atena. — Contudo, não é contra mim que está batalhando agora. Sua
raiva não me é direcionada, mas a você mesma. Por quê?
Lore passou a mão no cabelo, segurando-o.
— Você está com muita raiva. Eu a senti desde o primeiro momento em
que lhe vi, e quanto mais você tenta reprimi-la, mais ela cresce e fica
poderosa — disse Atena. — Você me questiona, pois não julguei adequado
usar meu poder da forma que você usaria, e mesmo assim você limita seu
próprio potencial. Não imaginei que fosse tão covarde.
Não sou especial ou escolhida — Lore esfregou os olhos com os punhos. A
lembrança dessa constatação era tão agonizante quanto o que acontecera.
— Não estou me limitando, eu apenas… apenas não posso cometer outro
erro.
Atena emitiu um ruído de zombaria.
— O falso Apolo conseguiu entrar na sua cabeça e fazê-la duvidar de si
mesma. Você sabe o que deve ser feito. Ele não sabe nem como veio a ter o
poder que tem.
Lore ergueu o olhar de forma abrupta ao ouvir aquelas palavras.
— Você achou que eu não descobriria a verdade? — perguntou Atena. —
Que não perceberia seu interesse em indagar a todos que encontra sobre a
morte de meu irmão? Por que mais ele pareceria menosprezar e ressentir o
seu poder? Por qual outro motivo ele iria querer encontrar minha irmã,
sabendo que ela apenas deseja que ele morra?
— Ele… — Lore começou a dizer, insegura. Ela não queria falar sobre isso.
A sensação era de que trairia Castor. — Ele não quer que eu vá longe demais.
— E você não é capaz de determinar esse limite por si mesma? —
perguntou Atena. — Você depende do julgamento dele em vez do seu?
— Ele está tentando me proteger — disse Lore. Foi o que Castor sempre
fez, por mais que ela tentasse, à sua própria maneira, protegê-lo.
— De quem? Do quê? — perguntou Atena. — De você mesma? De tudo o
que pode se tornar se aceitar ser quem realmente é, e não quem ele deseja que
seja?
Lore confiou em Castor por toda a vida, sabia que ele nunca a machucaria
intencionalmente. Mas o jeito que ele a olhou quando a encontrou no Central
Park, o choque e a repulsa em seu rosto…
Talvez ele realmente não tenha entendido. Os sete anos que perderam nunca
pareceram tão longos.
— Eu odeio o Ágon — disse Lore.
— Não — interrompeu Atena. — Não acho que odeie. Você odeia o que ele
custa a você, mas este mundo a entedia. Você pertence ao Ágon. Essa é sua
herança por direito. Você sempre foi destinada à glória, mas ela lhe foi tirada,
e agora você nunca se sentirá satisfeita, nunca se sentirá inteira, até possuir o
que merece.
Na sua cabeça, Lore ouviu a versão mais nova de si mesma dizendo aquelas
palavras novamente. Meu nome se tornará uma lenda.
— Não é sobre merecer — disse Lore, forçando as palavras a saírem. —
Não quero me tornar o tipo de monstro que eles são.
— Você não é um monstro. É uma guerreira — disse Atena. — E se você
não fosse destinada a um papel grandioso, teria morrido com sua família.
— Não diga isso — sussurrou Lore — Por favor, não diga isso.
A vontade a despedaçava por dentro. O desejo de que tudo o que aconteceu
não tenha sido sua culpa, de que não tenha sido em vão… toda a sua alma
doía de vontade de que isso fosse verdade.
— Há coisas muito piores a se tornar do que um monstro — disse Atena.
— Foi isso que você falou para si mesma quando puniu Aracne por sua
arrogância? — perguntou Lore. — Quando se voltou contra Medusa?
A deusa pareceu confusa com a pergunta.
— O que você me acusa de ter feito com Medusa?
— Poseidon a estuprou em seu templo e, em vez de impedi-lo, de puni-lo,
você… — disse Lore, sufocando com aquela palavra. — Você fez com que
ser a vítima fosse o pior crime. Você a transformou em um monstro e depois
mandou alguém matá-la.
— É nisso que acredita? — perguntou Atena.
— Seu pai, seus irmãos… se forçaram sobre tantas mulheres contra a
vontade delas… Como você não pôde compreender a experiência de Medusa,
sendo que Hefesto tentou abusar de você? — Lore respirou fundo para
manter a calma. — Eles tomaram tudo o que quiseram. Por que os homens do
Ágon tratariam mulheres e meninas de um modo diferente? Eles nos fazem
acreditar que nossas vidas pertencem a nós mesmas, enquanto passam a
coleira nos nossos pescoços. Até mesmo Gi… Hermes. A qualquer momento
eles podem encurtar as rédeas.
— Por isso você abandonou seu caminho como guerreira? — perguntou
Atena. — Não desejava ser controlada? Eu teria imaginado que as mortes da
sua família eram a raiz dessa decisão, mas você continuou seu treinamento,
não? Ainda assim, algo a afastou da caçada… deste mundo.
Por anos, Lore havia se recusado firmemente a lembrar o que aconteceu
aquela noite. Ela esperava que, se enterrasse aquele momento bem fundo em
seu coração, ele não a faria se sentir tão enjoada ou apavorada de ter que
responder por aquilo.
Mas agora ela se viu falando sobre ele, e as palavras se desenrolavam com
tanta força que Lore não tinha certeza se seria capaz de pará-las nem se
tentasse.
— Quando o pai de Iro ascendeu e virou o novo Afrodite, ele não tinha
nenhum filho — disse Lore — e nenhum parente imediato do sexo
masculino. Um primo de segundo grau se tornou o arconte interino dos
Odisseídeos. Ele nunca ia à casa deles nos primeiros dois anos que eu morei
lá. Durante esse tempo, me concentrei no meu treinamento com a Iro. Disse a
mim mesma que, mesmo que não tivesse nada, teria o Ágon. Eu ainda
poderia trazer honra para minha família.
Atena a observava, em espera.
— Foi aí que o novo arconte dos Odisseídeos chegou. Para ficar. E parecia
estar em todos os lugares ao mesmo tempo, sempre nos seguindo, nos
observando da janela enquanto a gente treinava e lutava, do outro lado da
mesa nas refeições, enquanto a gente nadava no lago… — disse Lore, e suas
mãos se fecharam ao se lembrar disso. — Ele encontrava qualquer desculpa
para me tocar… para corrigir minha postura quando eu não precisava, ou
passar a mão no meu braço ou na minha perna quando estava passando por
perto. Meu instrutor me disse para nunca contar isso para ninguém, senão o
arconte descobriria como eu era ingrata pelo apoio e pela atenção. Que eu
seria jogada na rua com apenas uma faca para me defender e mais nada. Sem
dinheiro, sem futuro.
As mãos de Lore se fecharam firmemente em punhos.
— Uma noite, depois do jantar, ele me disse para ir até seu escritório e
esperar por ele lá — continuou ela. — Os outros na mesa deveriam saber o
que aconteceria, mas ninguém fez nada. Os criados olharam para o outro
lado. Iro estava tão animada… Ela pensou que ele ia me oferecer uma
posição como léaina.
Ela precisou respirar fundo para encontrar as palavras certas. A bile subiu
até a sua garganta.
— O escritório estava escuro, a não ser pelo fogo na lareira. Ele trancou a
porta. Me disse que eu não continuaria o meu treinamento. Que eu apenas
serviria a ele. Às vontades dele.
Atena sibilou.
— Eu sabia que ele estava certo. Eu não tinha ninguém. Não tinha família.
Foi naquele momento que eu percebi que meu futuro estava inteiramente nas
mãos dele… só que aí… — Lore respirou fundo de novo. — Ele colocou as
mãos em mim… Forçou a boca dele na minha e me prensou na mesa. Ele era
maior. Mais pesado. E eu pensei: Eu não sou especial ou escolhida. Aquele
era o escudo que eu usei contra a verdade por anos… a certeza de que eu
estava destinada a algo mais. Mas naquele momento, com ele sobre mim, foi
quando eu entendi o que aquele mundo era. Sempre haveria um homem
decidindo o meu destino, seja ele meu pai, um arconte ou um marido.
Os olhos da deusa se acenderam, e faíscas cresciam em tumultuosos
espirais. Aquilo fez Lore pensar na lareira do escritório de novo, como
parecia tão mais intensa quando o seu pavor entrou em ação.
— Nunca me foi dada escolha — disse Lore.
Pelo menos, não uma com consequências que ela compreendesse antes de
escolher.
— Ele tirou de mim a última das ilusões.
A respiração do arconte estava agitada de excitação enquanto ele a assistia
perceber aquilo tudo.
— Era para os deuses serem os meus inimigos. As outras linhagens. Não o
arconte da casa da minha mãe… o que me acolheu. Que me deu abrigo.
O puxador da gaveta da mesa pressionou seu quadril. Seu corpo se movia
para se proteger, quando a sua mente não podia. Seus dedos se fecharam em
volta do metal frio. Ela o puxou e deslizou a mão para dentro da gaveta. Ele
colou o corpo no dela fazendo força, e a sensação não foi nada parecida com
a que ela tinha em uma luta.
— Eu encontrei o abridor de cartas. Me cortei quando o tirei da gaveta. Ele
agarrou meu queixo e forçou minha cabeça para trás, para que eu tivesse que
olhar para ele.
Ele puxou o colarinho da blusa dela até rasgar. O tecido cedeu facilmente,
mas não tanto quanto a pele da garganta dele.
— Eu percebi que sempre tive escolhas, mesmo que eu não as enxergasse
— disse Lore. — E eu fiz uma escolha. Escolhi não pertencer a ele. Escolhi
matá-lo para que ele não ferisse a mim nem a mais ninguém.
A lembrança do sangue jorrando, manchando a sua pele alva e o seu
vestido, o peso dele caindo sobre ela enquanto tentava matá-la, mesmo em
meio à agonia da própria morte, voltou como uma onda fria. Ela tocou a
cicatriz comprida em sua face, o último corte que ele abrira nela quando ela
conseguiu sair debaixo dele. O suor pingava por seu corpo e ela tremia, mal
conseguindo respirar.
Mas do que Lore mais se lembrava daquela noite era de sua raiva. A forma
como ela ardia por sobre seu medo, choque e desespero, e dava o que ela
precisava para sobreviver.
Lore fizera o que foi treinada, esfaqueando o corpo dele até que não se
movesse mais e ar não percorresse os pulmões dele. Foi a raiva que a
carregou descalça através dos campos e estradas de terra. Foi a raiva que a
manteve viva e em movimento. A sua raiva a alimentou quando ela sentiu
fome.
E depois Lore fez exatamente o que Atena a acusava de ter feito. Reprimiu
essa emoção, reduzindo-a, tornando-a irrelevante e desmerecida. E depois
Hermes a encontrou, quando ela estava quase vazia.
— É por isso… — Lore começou a dizer. — É por isso que me mata saber
que eu estava errada a respeito de Gil. Eu devia saber. Eu sabia. Mas deixei
minha guarda baixa, mesmo depois do que aconteceu com o arconte, porque
eu pensei que era eu quem estava fazendo as escolhas. Que ele não seria
capaz de me machucar ou me controlar, como os homens do Ágon tentaram
fazer.
— Mas você se arrepende de seus atos naquela noite? — perguntou Atena.
Lore balançou a cabeça negativamente. Nunca se arrependeu, exceto por
saber que deixou Iro para trás.
— Porque eles tinham justificativa. Você fez o necessário — disse Atena.
— Assim como agora agimos por necessidade. Você teme o julgamento dos
outros sobre a nossa busca pelo Ares impostor, mas não se arrependerá das
suas escolhas quando ele estiver morto… somente das oportunidades que
perderá permitindo que os temores alheios a mantenham prisioneira de sua
própria dúvida.
— É que… — Lore começou a dizer, fechando os olhos — não é tão
simples. Eu não…
Eu não quero me lembrar de como era boa a sensação de ter um propósito
— concluiu ela, em pensamento. — Não quero esquecer o motivo pelo qual
eu tive que deixar o Ágon quando ele parecia ser ideal para mim.
Crianças gritaram umas com as outras enquanto desciam a rua em suas
bicicletas. As risadas leves pareciam brilhar no silêncio. Lore se perguntou se
um dia já havia sido tão despreocupada.
— Eu dei força à sua ira — disse Atena, baixinho.
Lore se voltou a ela, confusa.
— Eu transformei Medusa — continuou Atena — para que ela pudesse se
proteger daqueles que tentariam machucá-la.
— Isso é puro papo. Você não deu nenhuma escolha para ela, deu? —
retrucou Lore. — E agora a história se lembra dela como uma vilã que
mereceu morrer.
— Não. Isso é como os homens a retrataram, por meio da arte e dos contos
— disse Atena. — Eles a imaginavam como um monstro porque temiam
encontrar o verdadeiro olhar de uma mulher, temiam testemunhar a
tempestade poderosa que vivia ali dentro, esperando. Ela não foi derrotada
pelo abuso de meu tio. Apenas renasceu como um ser que poderia encarar o
mundo de volta, sem medo. Não é o que a própria linhagem fez por séculos,
olhar por detrás da máscara dela?
Lore quase se encolheu com aquelas palavras.
Os Perseídeos usaram a máscara da górgona — a máscara da Medusa, com
os cabelos de cobras e a boca apertada com determinação — por séculos.
Ambas as máscaras de seus pais foram levadas quando limparam o
apartamento e queimaram os corpos.
Lore não era velha o suficiente para ter a sua, embora uma das suas
lembranças mais vivas era ela tirando a máscara da mãe do embrulho de seda
e trazendo-a para perto do rosto. A sensação das cobras de bronze em seus
pequenos dedos e o que ela viu refletido no espelho a fizeram se sentir mais
poderosa.
Agora ela apenas sentia o estômago embrulhar. Quantos homens, incluindo
seu amado pai, usaram aquela máscara e a ira do olhar da Medusa, retorcendo
o significado em algo que lhes servia? As linhagens usavam as máscaras dos
maiores feitos dos seus ancestrais e daqueles a quem mataram, não para
honrar os terríveis monstros de suas eras, mas como troféus.
— Seus ancestrais carregaram o escudo que trazia a cabeça dela — disse
Atena. — Eles brandiram seu poder até perdê-la. Se era para o escudo ser
carregado por alguém, deveria ser por você… você, que conhece a escuridão
do homem e mesmo assim se recusa a se amedrontar.
Lore conseguia se ver claramente com o escudo, a forma como seu rosto
refletiria a expressão de Medusa fundida em prata. Não havia medo e nem
vergonha em pensar aquilo, e nenhum dos arrependimentos agonizantes que a
preveniram de dizer o seu nome por anos.
A égide deveria ser carregada por ela. Era o seu direito de nascença, sim,
mas mais do que isso: era a representação de tudo que ela tinha a ganhar, e
tudo que ela sempre quis realmente ser. Não a farsa que Hermes a convenceu
de que precisava viver, mas a fome poderosa que ainda habitava dentro dela.
Se ela pudesse usar a égide contra Fúria, se o rosto da Medusa e o seu
próprio fossem a última coisa que o deus visse enquanto a vida abandonava
seu corpo, significaria que tudo valeu a pena.
Significaria que a sua família não morreu por nada.
Vá pegá-la — sussurrou sua mente.
— Mas… você deu o escudo para Perseu — disse Lore. — Que o usou para
matá-la. Você o guiou, e era como uma amiga para ele.
Atena estendeu a dory no colo.
— Tive meu papel em muitos jogos perversos e vivi à mercê de deuses
mais poderosos. Tenho meu temperamento e desfrutei das vezes que ataquei
aqueles que feriram meu orgulho ou me desonraram.
As primeiras gotas de chuva começaram a cair, tamborilando gentilmente
no terraço.
— Você podia ter impedido — sussurrou Lore. — Podia ter impedido
Poseidon.
O rosto de Atena se tornou medonho de raiva gélida.
— Entenda isso, Melora: mesmo os deuses estão presos ao destino. Mesmo
os deuses servem a um mestre. Eu fiz muitas coisas, entre elas atacar um ser
mais fraco quando não tive força suficiente para punir outro ainda mais
poderoso do que eu.
Atena fez uma pausa, passando a mão na haste de sua dory.
— Há um enredo maior do que todos nós, um tecido que se estende por
toda a parte, guiado por mãos mais poderosas que a minha — disse Atena. —
Você pode chamar isso de complacência, e talvez seja. Eu creio que seja
sobrevivência.
— Como você pode ter tanta certeza de que seu destino foi escrito para
você? — indagou Lore. — E se você sempre teve a chance de viver sob seus
próprios termos e não enxergou isso?
Atena emitiu um ruído de deboche.
— Tudo o que sempre desejei foi fazer o que nasci para fazer.
— Que é…? — perguntou Lore.
— Guiar os corações dos guerreiros, as mentes dos filósofos e as mãos dos
artesãos — respondeu Atena. — E nunca falhar novamente em defender uma
cidade sob minha tutela.
A deusa ficou de pé, apreciando a vista dos edifícios distantes.
— Você se equivoca em um último ponto — disse Atena, enquanto se
virava para entrar novamente.
— Eu não escolhi guiar mulher alguma por uma grande aventura, mas as
aconselhei. Não por malícia ou por crer que eram criaturas inferiores. Pelo
contrário, senti que, ao elevar uma delas dessa forma, estaria desonrando
minha grande amiga, que não se compara a ninguém nesta terra, seja em vida
ou em morte.
Palas. Ela falava da companheira criada junto a ela, a quem matara
acidentalmente quando treinavam.
Atena voltou para a escada de emergência nos fundos do prédio, descendo
para a janela abaixo.
— A única coisa da qual sempre tive medo foi de ser impotente. De não ser
capaz de proteger as pessoas que amo. Mas não sei o que vai acontecer
comigo se eu ceder — disse Lore. Com tudo que sinto. Com tudo que quero
fazer.
A deusa falou, sem voltar-se a ela.
— Você será transformada.
A chuva começou a apertar, batendo em sua pele com força, mas Lore não
conseguia se mexer. Ela se sentia esgotada, mas não de um jeito que a
deixava fraca. Pela primeira vez em dias, talvez até em anos, sua mente
estava clara. Lore se apegou à dor aguda dentro de si e não soltou mais. Ela
segurou firme, esperando que suas garras se projetassem para fora.
Um trovão ressoou acima dela, como um escudo atingindo outro. Horas se
passaram desde que ela subiu pela escada de emergência, e Miles estaria em
casa logo, mas ela ainda não conseguia se mexer. Não conseguia fazer nada a
não ser deixar que a chuva caísse sobre ela.
O seu celular vibrou no seu bolso, tirando-a de seu devaneio em um susto.
Lore se levantou, pegando o celular. A mensagem era de Miles; ela soltou um
pequeno suspiro de alívio e começou a desbloquear o celular para responder,
sendo interrompida pelo aparelho vibrando repetidamente, com a mesma
mensagem inúmeras vezes.
socorro
socorro
socorro
TRINTA E QUATRO
ATÉ QUE O ÚLTIMO DIA DE SUA VIDA A DEIXASSE E ELA ACORDASSE NO SOMBRIO
Mundo Inferior, Lore se lembraria do barulho dos ossos quebrando e do grito
estrangulado sendo subitamente interrompido.
Castor caiu de joelhos, agarrando os cabelos e soltando um áspero grito de
frustração.
Lore teve dificuldade de ir até eles, apoiando as mãos nas árvores e pedras,
rastejando até que alcançasse a borda da cachoeira.
A alça da aljava de Ártemis ficou presa em um galho sobre a cachoeira,
quebrando seu pescoço em um instante.
E o rosto da deusa…
O grito de choque ainda estava preso na garganta de Lore, tentando sair. Ela
pensou que, se tentasse respirar, ele a sufocaria.
Atena se aproximou dela, olhando para a coroa de folhas e espinhos de
Ártemis. O único sinal de emoção em seu rosto foi a contração da mandíbula.
Era o semblante de uma guerreira, endurecida demais pelos séculos de morte
para estar à mercê do luto.
— Eu sint… — Lore começou a dizer, sem saber como continuar. Ela não
sentia muito. Mas… — O que fazemos agora? Você quer que eu a solte para
que você possa… possa enterrá-la até que o Ágon termine?
— Como se enterra um deus? — disse Atena. — Ela era poder, não carne e
osso. Isso nada mais era do que um recipiente rudimentar. Agora ela está…
livre.
E Lore se deu conta de que Atena era a última dos nove deuses originais.
Os cães nas trilhas começaram a choramingar e a uivar em luto. Diante de
tudo que aconteceu nesta semana, Lore não se sentiu nem perto de se
desfazer em pedaços como naquele momento, ouvindo os animais abafarem o
rangido da aljava enquanto o corpo de Ártemis girava, girava e girava, como
a infinita roda da vida, morte e renascimento.
Lore foi até a pequena falésia ao lado da cachoeira, na direção de Castor.
Ele continuava no mesmo lugar, curando sua perna. O novo deus ainda
parecia estar em agonia quando se levantou, embora claramente não tivesse
nada a ver com a dor.
— Você está bem? — perguntou ela, estendendo uma das mãos para ajudá-
lo com os últimos passos perigosos da formação rochosa.
— Já estive melhor — admitiu ele, estendendo a mão de volta para segurar
a da amiga.
De repente, Lore ouviu um zunido. Inicialmente, pensou ser o vento
ganhando força novamente, raspando galhos e pedras. Depois veio a dor
abrasadora no ombro esquerdo.
Lore olhou com descrença para o novo rasgo em sua blusa, para o sangue
brotando de seu ombro. Atrás dela, uma flecha tremia no tronco da árvore
que havia acertado.
— Lore…
A expressão de Castor era pesarosa e assustada. Ela observou, com a mão
ainda estendida, enquanto o sangue florescia na blusa encharcada dele,
derramando-se de uma única ferida no lado esquerdo de seu peito dele. No
coração.
Lore gritou, avançando para pegar o braço dele, mas foi devagar demais. Os
lábios do novo deus formaram uma última palavra silenciosa.
Lore.
A vida abandonou seus olhos dele, extinguindo as faíscas de poder. Castor
deslizou pela borda do afloramento, em direção à água abaixo dele.
SETE ANOS ATRÁS
LORE LUTAVA COM CASTOR HÁ TEMPO O SUFICIENTE PARA SABER QUANDO ALGO
estava errado.
Os outros estavam distraídos com a empolgação do começo do Ágon em
dois dias, elétricos com o andar dos preparativos enquanto o resto dos
Aquilídeos se reunia na cidade. Lore estava distraída com outra coisa: o prazo
que Aristos Cadmou dera dois dias antes, quando ela e o pai foram visitá-lo.
Dê-me sua resposta até o fim do Ágon.
Isso seria daqui a nove dias. Seu pai lhe disse para não se preocupar, ele
nunca diria sim. Mas Lore não conseguia parar de pensar nisso.
Castor não estava preocupado como ela e os outros estavam. Os
movimentos dele pareciam se arrastar pelo ar, como se o seu corpo tivesse se
tornado pesado demais. Eles sempre foram perfeitamente compatíveis no
quesito velocidade — ou, pelo menos, ele acompanhava o ritmo dela, da
maneira que ela tentava acompanhar a força dele.
O rosto dele a preocupava também. Ela passou a ver uma sombra sobre ele,
como acontece quando uma nuvem passa sobre o sol e escurece o mundo
abaixo.
Pá-pá-pá.
Lore colocou mais força no último golpe com o bastão de treino. Castor
recuou um passo, e seu pé de apoio escorregou na poça de suor que se
formava debaixo dele.
— De novo! — ordenou o instrutor. — Mais rápido!
Lore ergueu o bastão mais uma vez. Castor estava ligeiramente curvado
para a frente, sacudindo a cabeça. Seus olhos piscaram rapidamente, lutando
para se concentrar no rosto dela.
Ela curvou a cabeça em silêncio, como se perguntasse:
— Pronto?
Ele ergueu o próprio bastão. Ela interpretou a resposta no semblante que a
boca do jovem exibia. Lore começou a série de novo: pá, golpe alto, pá,
golpe médio, pá, golpe embaixo, repetidamente. Castor bloqueava as
pancadas, mas, conforme ele diminuía o ritmo, ela era forçada a fazer o
mesmo.
O rápido clangor dos bastões em volta deles funcionava como batidas de
tambor em uma canção de golpes de escudos e choques de lâminas. As outras
turmas que treinavam eram borrões ao redor deles. O cheiro dos corpos, do
óleo e dos tatames era forte em seus pulmões.
No último pá, Lore testou a sua teoria, batendo mais forte do que precisava.
Castor perdeu o equilíbrio, caindo de joelhos e ofegando levemente.
Lore olhou para o instrutor. O homem estava de costas para eles enquanto
andava pelo salão de treinamento, corrigindo os alunos e dando elogios sutis.
— Bom, Abreas… com mais força, Theron…
Enquanto Castor se recuperava, Lore fingiu dar um golpe de luta livre nele,
se inclinando para frente até que suas testas se tocassem e ela pusesse a mão
na sua nuca. Era a única forma que encontrou para conseguir falar com ele
fora dos intervalos.
— Você está bem? — sussurrou ela. — Se estiver passando mal, precisa
pedir para sair.
— Estou bem — prometeu Castor. — Meu ranque já é ruim o suficiente
sem perder mais pontos. E você não teria ninguém para treinar, agora que
Van foi para casa.
Evander, um dos primos distantes de Castor, veio ficar na Casa Tétis por
uns meses antes do Ágon, mas foi levado para casa pelos pais depois de uma
sequência desastrosa de sessões de treinamento. Lore tinha ciúmes dele, por
se intrometer no tempo que ela tinha com Castor e ainda mais pelas lições nas
quais os instrutores a mandavam apenas olhar para que Castor e Evander
pudessem formar uma dupla.
Isso a deixava muito irritada. Evander não conseguia bloquear um ataque
sem se encolher e cobrir a cabeça. Ela merecia treinar mais do que ele,
mesmo que não tenha nascido Aquilídea.
— Pausa para água! — disse o instrutor. — Rápido. Vamos encerrar com
treino com facas.
Lore tomou o bastão de Castor antes que ele pudesse reclamar.
Vai — ordenavam os olhos dela. Ela acenou com a cabeça na direção do
longo banco nos fundos do salão onde as garrafas de água deles estavam.
Mesmo assim, Castor esperou por ela.
— Desista, Cassie — disse uma voz sarcástica. — Você não consegue
acompanhar nem mesmo uma garota.
— Está com ciúmes, Orestes? — retrucou Castor, ainda ofegante. — Como
o instrutor disse, somos tão bons quanto nossos pares. O coitado do Sabas
não teve nem chance, não é?
— Melhor do que um verme fraco e doente — disse Orestes. — Anda logo
e morre de uma vez, pode ser? Se a sua mãe não tivesse sido tão covarde,
teria te largado em uma colina qualquer.
Lore bateu sua garrafa de água com força no banco e voltou a atenção para
ele. Castor apertava levemente o pulso da amiga, impedindo-a.
— Você sabe bem sobre essas coisas — disse Castor —, já que consegue
viver bem com metade do cérebro. Não se preocupe, ninguém percebeu que
você ainda não dominou as habilidades de espada do primeiro ano. Estamos
todos torcendo por você.
Os alunos da turma dele cochicharam entre si, olhando para o instrutor para
ver se ele interviria. Ele estava ocupado consultando outro instrutor. Outros
sorriram maliciosamente, antecipando a briga que estava prestes a acontecer.
— Pelo menos eu não vou virar noiva de uma serpente — zombou Orestes.
Lore respirou fundo. Castor olhou para ela, franzindo as sobrancelhas
escuras. Orestes parecia um corvo que acabara de pegar uma minhoca.
— Ela não contou para você? — disse ele, enquanto voltavam aos tatames
finos de treinamento. — Este é o último dia dela aqui. O pater está furioso
pelo babaca do pai dela ter concordado em fazer o casório da filhinha com o
arconte dos Cadmídeos. Os anciões se reuniram ontem à noite e decidiram
expulsar essa garota. Meu pai me contou. O único motivo de ainda não terem
mandado ela para casa hoje de manhã foi porque o pai dela implorou que
nem um cachorro por um último dia.
A mágoa e a confusão travavam um combate no rosto de Castor enquanto
ele a fitava, esperando a confirmação. Lore ficou vermelha devido ao sangue
quente.
— Isso não é verdade — disse ela. — Não é!
Ela não contara a ele sobre o encontro com os Cadmídeos porque… porque
ela ainda não entendia direito o que aconteceu. Mas o seu pai recusaria a
oferta de Aristos Cadmou. Nunca a entregaria a ele.
— Ninguém diz não para o arconte dos Cadmídeos — disse Orestes a ela,
de forma presunçosa. — Talvez ele te estrangule enquanto estiver em cima de
você como…
Castor deu um soco na parte lateral da cabeça de Orestes, fazendo-o tombar
para o lado. Os outros transbordaram de alegria quando Orestes investiu
contra Castor.
Se ele estivesse com toda a sua força, Castor nunca teria caído da maneira
que caiu.
— Chega! — disse o instrutor. — Voltem para as suas posições.
Começaremos de novo… — Mas Castor não se moveu. Não conseguia se
mover.
— Cas? — disse Lore.
Ele não reagiu. Os olhos dele reviraram e todo o seu corpo começou a
convulsionar.
Lore caiu de joelhos ao lado dele, tentando mantê-lo imóvel.
— O que você fez? — gritou para Orestes. Mas até mesmo o garoto parecia
chocado. O instrutor colocou uma mão embaixo da cabeça de Castor para
evitar que ele a batesse no chão de madeira.
— Chame o curandeiro de plantão! — vociferou ele a um dos alunos.
— O que você fez? — questionou ela, novamente. Orestes se afastou
quando ela o atacou, com socos no estômago. Foi a última coisa que de que
se lembrou antes de sua mente escurecer. A próxima coisa que viu foi o
instrutor com os braços a imobilizando e a tirando de cima de Orestes. O
rosto do garoto era uma massa sangrenta e mole. As mãos dela estavam
cobertas com esse sangue.
— Eu vou te matar — prometeu ela. Orestes tossiu, cuspindo muco e
sangue. Seu próprio hetaîros ajoelhou ao seu lado, fitando Lore com olhos
arregalados.
— Você precisará esperar mais sete anos para tentar, pequena górgona —
rosnou o instrutor. — Isso é, se a serpente deixar que você saia do seu covil.
Lore tentou se desvencilhar, mas ele a segurava firmemente. Ela estendeu
as mãos na direção de Castor, mas não conseguia vê-lo, apenas seu pé
calçado com uma sandália atravessando o círculo de garotos que o cercava.
O PEITO DE LORE ARDEU COM UM GRITO QUE NÃO SAÍA. ELA TENTAVA
desesperadamente gritá-lo, arrancando-o da parte mais profunda de sua alma,
mas apenas uma pequena lamúria escapou dos seus lábios.
O corpo não parecia mais ser completamente seu. Lore foi cambaleando até
a parede, desorientada.
— Você… — ela tentou fazer as palavras saírem. — Você… sabia…
— Percebe agora? — indagou Atena, falando na língua antiga. Qualquer
afeto, qualquer sinal de humanidade, havia desaparecido, como uma chama
que se apagou. — A mão firme que guia o tear?
O corpo de Lore tremeu com tanta força que foi um desafio manter a
empunhadura de sua faca. Sua visão estava repleta de pontos pretos. Se
Hermes contou para Atena que Lore roubara a égide… se Atena sabia onde
encontrar sua família e tivesse ido procurar pelo escudo naquele dia…
O veneno da verdade corria dentro dela, transformando tudo em cinzas.
Como se lesse seus pensamentos, um pequeno sorriso passou pelos lábios da
deusa.
Ela os matou.
Não foi Fúria. Não foram os Cadmídeos. Foi Atena esse tempo todo.
À medida que o choque de Lore dissipava, um pânico feroz se instalava.
— Eu pensei… — ela começou a dizer.
Ela a deixara sozinha com Miles e Van… ela havia confiado na deusa para
honrar o juramento de não ferir Castor… ela havia… ela havia…
Acreditado nela.
— Você pensou o quê? Que eu tinha um coração? — disse Atena. — O
coração é só um músculo.
— Você os matou — disse Lore, e sua voz não chegava nem a ser um
sussurro. — Por quê?
— Quase não acreditei quando Hermes me contou o que viu. A égide, o
objeto que passei séculos procurando, encontrado por uma criança. Carregado
por uma criança — disse Atena. — Eu sabia onde o último dos Perseídeos
residia. O casebre que chamavam de lar. Fiquei encantada ao descobrir que
uma janela havia sido deixada aberta para mim, quase como um convite.
Lore levou as mãos aos cabelos, sua respiração ficava irregular, seu
coração, à beira da autodestruição batendo em suas costelas. O desespero
inundou suas veias.
— Não… por favor, não…
— Mas, quando entrei no quarto, pensei: certamente o ladrão não poderia
ter sido nenhuma dessas pequenas e insignificantes criaturas. Elas eram
menores que o escudo — disse Atena, dando um único passo para dentro da
cela. — Eu fiquei parada ali perto de suas camas e pensei na facilidade que
seria simplesmente sufocá-las. — Ela se aproximou mais um passo de Lore.
— Mas eu esperei, até que seus pais viessem vê-las, até que meus poderes
estivessem totalmente restaurados com o fim do ciclo. — Atena parou diante
de Lore, olhando-a de cima. — E então fui arrancando um pedaço de cada
garota a cada pergunta que se recusavam a responder. Sobre a criança
desaparecida. Sobre onde você poderia estar se escondendo.
A lembrança de suas irmãs, cortadas a ponto de ficarem irreconhecíveis,
estourou a pressão contida em seu peito. A raiva e o luto a rasgaram inteira; o
mundo saiu do eixo, e Lore atacou.
Ela golpeou com a sua faca na direção do peito de Atena. A deusa usou sua
dory para apará-la com pouco esforço e a face inexpressiva, então girou a
arma, atingindo o ombro direito de Lore.
— Nenhum controle, nenhuma disciplina, nenhuma estratégia — disse
Atena. — Apenas raiva. Eu a vi em você imediatamente. Como bronze
derretido esperando para ser moldado por mãos habilidosas. Eu meramente
plantei a sugestão do novo poema. Eu sabia que você descobriria onde ele
está gravado e iria atrás dele. Foi apenas questão de ter paciência.
Lore caiu para trás com a força do golpe, mas usou a distância para jogar a
faca para a mão esquerda, mudando a empunhadura. Ela fez uma finta para a
direita, e, quando a deusa foi tentar bloquear, Lore golpeou de baixo para
cima. Atena desviou, mas a ponta da lâmina atingiu seu queixo. O corte
tingiu a lateral do pescoço dela de sangue.
Atena deixou escapar uma única risada ácida. Ela esfregou o corte com o
polegar, estudando-o por um momento.
— O problema com mortais tão pequenos, é claro, é que há um limite de
sangue neles. Eles morrem muito rápido.
Lore gritou. Sua voz saiu rasgada, separada de uma parte de si que havia se
quebrado. Ela se entregou à dor, cortando e arranhando até que a cela
desaparecesse em sua volta e ela começasse a se dissolver em puro instinto.
O golpe da dory veio por trás, batendo em cheio em sua cabeça. A faca
voou de sua mão enquanto Lore ia ao chão. Ela rolou, para ficar de frente,
mas Atena lhe deu outra pancada, depois afundou a sauroter da dory na coxa
dela. Com um único golpe, ela perfurou músculo, quebrou osso e prendeu
Lore no lugar.
A agonia era tão forte que Lore mal conseguiu puxar ar suficiente para
chorar. Atena girou a lança, cravando ainda mais sua ponta. O instinto de
sobrevivência rugia dentro dela. Lore batia a mão no chão úmido, procurando
a faca por meio do tato e conseguindo pegá-la, triunfante.
Mas, antes que pudesse erguê-la, Atena agarrou sua mão, arrancando a faca.
E então, com todo o esforço que seria necessário para esmagar as pétalas de
uma flor, ela fechou a mão em torno dos dedos de Lore e quebrou todos os
seus ossos.
Lore tremeu violentamente e soltava gritos ofegantes. O vômito azedo
subiu em sua garganta devido à dor e à visão da mão deformada.
— Por quê? — suplicou ela. — Por quê?
— Elas chamaram por você — disse Atena. Quando a deusa puxou a dory,
a sauroter se soltou, ficando enterrada na perna de Lore. — Ambas as
meninas. Acha que elas sabiam que foi você quem as matou?
A lembrança daquela noite a assolava. Lore não precisava fechar os olhos
para ver a cena: o sangue manchando as paredes e o chão, as irmãs jogadas
para fora de suas camas, as sombrias órbitas nas quais seus olhos deveriam
estar.
— Elas eram apenas garotinhas — chorou Lore. — Damara era apenas um
bebê. Elas eram inocentes!
— Nenhum de vocês é inocente — rosnou Atena. — Você, muito menos,
Melora. Seu pai morreu primeiro, implorando, depois a sua mãe, que pelo
menos soube que estaria desperdiçando fôlego se tentasse. Aguardei seu
retorno por horas, e quando você veio ela não estava mais em sua posse. Eu
assisti enquanto você ficou parada no batente da porta da casa, quando viu o
presente que deixei para você. Mas você não chorou. Você não emitiu um
único som sequer. Você era mais forte do que é agora.
— Por que você não me torturou para descobrir o que aconteceu com ela?
— disse Lore, ofegante, com a mão no rosto e no cabelo. — Por que
simplesmente não me matou?
— Eu precisava que você me mostrasse onde ela estava escondida — disse
Atena. — E a entregasse para mim voluntariamente. É claro, depois que
soube do poema, tive mais um motivo para mantê-la viva. Não vou deixá-la
desaparecer com a morte até que eu possa ler o conteúdo.
Lore arranhou a própria garganta. Ela quase a deu a ela, há apenas uma
hora. E pensava que o faria por ideia própria. Porque seria inevitável.
— Todos os anos na Casa de Odisseu, observei a sua existência patética,
aguardando pelo dia em que você a pegaria ou revelaria onde ela estava
escondida — disse Atena. — Eu mesma talvez fosse até você em outra
forma, para ganhar suas graças, se Hermes não a tivesse encontrado primeiro.
Lore sacudiu a cabeça em negação, tentando calar aquelas palavras.
— Eu o segui até esta cidade, curiosa com o motivo de ele estar vestindo
um rosto falso — disse Atena. — Tive minha resposta logo. Senti o poder do
encanto de afastamento que ele lançou na sua casa. Eu não podia entrar nem
me aproximar. Havia mais de uma razão para ele ir tão longe para me
impedir. Havia apenas uma mortal pela qual ele iria tão longe para proteger.
O fato de eu não poder vê-la… de eu só conseguir captar o som dos seus
passos, seu cheiro… confirmou as minhas suspeitas.
A deusa estudou a ponta de sua dory.
— Hermes se esforçou tanto, e tudo por causa de um sentimento de culpa
mal direcionado. Veja você, ele escolhera tomar conta de você e da égide
para manter o seu amado vivo. Ele sabia que eu havia encontrado o
esconderijo do falso Dionísio — disse Atena. — E quando esta caçada
começou, e observei Hermes morrer a distância, enxerguei minha
oportunidade. Seu poder não se sustentaria para além da morte. Eu finalmente
poderia ir até você, sem barreiras.
O corpo de Lore ficou pesado como chumbo, e manter a faca erguida ficou
impossível. Jorrava sangue de sua perna, que latejava a cada batida de seu
coração. Ela pressionou as costas na parede, e a umidade encharcou sua
blusa.
— Mas Ártemis atacou você… — disse Lore, sem forças.
— Como se minha irmã fosse capaz de desferir tal golpe sem meu
consentimento — disse Atena. — Nós planejamos matar todos os impostores
deste ciclo, mas ela concordou em me auxiliar na armadilha quando eu lhe
contei sobre sua conexão com o rapaz que assassinou nosso irmão. Mas ele é
tão intrigante, não é mesmo? Soube assim que senti seu poder que não
poderia matá-lo. Não até que eu descobrisse o que ele é. Isso a irritou, mas
permitiu que eu me aproximasse o suficiente de alguns dos outros impostores
para garantir que morressem nas mãos de um verdadeiro deus.
Ártemis não estava louca, como a sua irmã alegara, Atena havia traído
Ártemis ao não entregá-la Castor.
— Você disse à Ártemis que me rastreasse naquele primeiro dia, pensando
que eu procuraria por ele, não foi? — disse Lore, finalmente juntando as
peças. — E depois você apenas… a observou morrer?
— Nem todos nós estamos destinados a retornar ao Olimpo — disse Atena,
friamente. — Apenas os mais fortes de nós serão reconhecidos pelas Horas e
serão permitidos a passar pelos portões mais uma vez. Ártemis esmoreceu.
Atena moveu-se como um chicote, segurando o queixo de Lore com força.
— Vamos acabar com seu sofrimento e ir buscá-la afinal?
Lore a encarou, despejando cada grama de sua raiva trêmula no olhar. Sua
mente era uma torrente de terror e descrença.
— Ela não será dada a você voluntariamente se me torturar. Você não
poderia usá-la.
— Ainda não. No entanto, eu terei a inscrição. Saberei como acabar com o
Ágon — disse Atena. Lore sentiu seu maxilar começar a rachar com a força
da deusa. — E quando eu recuperar todo o meu poder, serei capaz de
empunhá-la novamente.
— Mas Fúria… Ele virá atrás de você — disse Lore, com a voz rouca. —
Ele não deixará que fique com ela…
— Quando eu alcançar a ascensão final, ele não será nada senão uma
minhoca que esmagarei sob meu calcanhar — disse Atena. — Junto a todos
que se atreverem a virar as costas para os deuses verdadeiros. Fique avisada,
Melora, destruirei tudo e todos que ama, um por um, até que me leve até ela.
O coração de Lore falhou no peito.
Não.
Miles, não. Castor, não. Van, não. Iro, não.
Sua cidade, não.
Uma segurança tranquilizante tomou conta da mente de Lore, silenciando a
tempestade caótica em seus pensamentos e deixando a escolha nítida. Ela a
aceitou, mesmo quando viu todos os seus rostos, mesmo quando pensou em
sua família e soube que suas almas nunca encontrariam paz.
Havia uma última escolha. Pelo menos seria ela quem tomaria a decisão.
Sinto muito — pensou ela. Haveria apenas um deus restante para que Castor
enfrentasse, mas ninguém tomaria posse da égide de novo.
A mão solta de Lore agarrou o pedaço quebrado da haste da lança ainda
preso ao sauroter e, com um grito, ela o puxou de sua perna. A jovem pensou
em suas irmãs. Em sua corajosa mãe. No rosto de seu pai, iluminado com a
luz da fogueira de acampamento, mostrando-lhe como segurar o cabo de uma
adaga.
Posicione seu polegar na crista do cabo, Melora. Isso vai dar um controle
melhor.
— Não — disse ela, erguendo a voz e se certificando de que a palavra fosse
estrondosa.
Atena ficou furiosa.
— Criança impertinente…
Lore a fitou por entre as mechas de seu cabelo escuro.
— A escolha é minha.
Ela virou a lâmina para si mesma e a afundou em seu peito.
QUARENTA E QUATRO
DE ALGUM JEITO, APESAR DA HORA, A LUA AINDA ESTAVA NO CÉU, MESMO QUANDO
enfraquecia com a chegada do pálido amanhecer. Lore manteve o olhar fixo
na lua crescente para evitar ter que fitar as ruas do bairro. Agora, em frente ao
apartamento da família, se forçou a espiar pela janela que usou para fugir há
algumas horas.
Estava fechada.
Ela soltou o ar suavemente, e o medo a pegou de novo. Seus pais estavam
acordados.
Ela fechou os punhos e os pressionou contra os olhos, se forçando a respirar
e a não chorar.
As mentiras eram tão fáceis — quando ela foi ver Castor, queria assistir às
últimas horas do Ágon, cogitou fugir e voltar —, mas a verdade a fez sentir
como se estivesse esfaqueando a própria barriga. Ela tinha que contar a eles.
O castigo nunca seria tão ruim quanto o que os Cadmídeos fariam. Seus pais
saberiam o que fazer.
Lore nem quis saber de escalar até a janela do quarto. Usou a porta da
frente.
Endireitando os ombros e engolindo o gosto amargo na boca, ela subiu a
grande quantidade de degraus da escada até o sexto andar. A noite anterior já
estava começando a parecer mais como um sonho do que uma lembrança.
O apartamento era no fim do corredor silencioso. O coração de Lore
martelava em seus ouvidos. Eles ficariam muito zangados. Ela teria que
tentar encontrar um jeito de fazê-los entender, de convencê-los a ficar na
cidade, apesar do que havia acontecido. Ela não queria deixar Castor nem
Nova York. Não desse jeito.
Lore parou do lado de fora da porta, pressionando a testa em sua superfície
lisa e fechando os olhos. Ela tentou ouvir o barulho de seus pais do lado de
dentro. Fazendo o café, alimentando Damara, conversando baixinho enquanto
ouviam o noticiário.
Mas não ouviu nada.
Algo molhado encharcou o seu tênis velho. Lore abriu os olhos ao sentir
isso.
Sangue escuro escorria pela fresta debaixo da porta e formava uma poça em
torno de seus pés.
QUARENTA E CINCO
O NOVO ENDEREÇO CHEGOU ASSIM QUE ELES PASSARAM PELA INUNDAÇÃO E PELAS
barreiras em volta do Central Park para atravessar para o lado oeste. Era um
escritório vazio situado sobre uma loja de roupas fechada com tábuas, não
muito longe do Lincoln Center.
Castor derreteu a fechadura da porta, abrindo-a devagar e depois a
trancando. Lore olhou em volta. Julgando pelo brasão da cidade gravado no
vidro, o local provavelmente estava passando por reformas para se tornar
algum tipo de escritório do governo. O cheiro de tinta fresca e a lona de
plástico cobrindo a escadaria pareciam confirmar essa teoria, mesmo antes de
eles encontrarem uma amplitude de cubículos de trabalho vazios no andar de
cima. Na direção das janelas, que iam do chão ao teto, todas cobertas de
papel, havia uma pequena sala de estar, completa com uma mesa, um sofá e
cadeiras.
Desocupado e desprotegido, o escritório era uma boa escolha — e tudo
graças a Miles e ao acesso que seu estágio lhe concedia. Ela esperava que o
amigo e Van estariam de volta logo. Precisava ver com os próprios olhos que
os dois estavam bem.
Castor removeu o plástico que cobria o sofá, guiando Lore até ele. Ela se
jogou nele, exausta. Quando a noite caiu e a cidade permanecia sem energia,
os olhos dela começaram a se ajustar à crescente escuridão. O novo deus
fechou a mão em um punho, gerando um leve brilho em torno dela.
— Muito impressionante, grandão — disse ela.
— Estou começando a controlar melhor — disse ele. — Agora eu consigo
ir de zero a trinta, em vez de ir de zero a cem de uma vez.
O sorriso dela desapareceu enquanto o observava explorar a área da cozinha
e depois sumir na sala dos fundos. Quando voltou, Castor carregava um galão
de vinte litros de água nos ombros, claramente destinado ao filtro, e um
pacote de papel-toalha embaixo do outro braço.
Ele se ajoelhou na frente dela, molhando alguns dos papéis-toalhas. Tirando
a mão de Lore do colo dela, o único foco dele agora era limpar toda a sujeira
e o sangue. A jovem não percebera quanto frio estava sentindo até que o calor
da pele do novo deus se espalhasse por ela novamente. Tentou ajudá-lo
levantando o braço quando ele ergueu a blusa dela até os ombros, mas seu
corpo não lhe obedeceu.
Pela primeira vez em dias, Lore se sentiu segura o suficiente para parar de
fingir que conseguia continuar em frente, apesar da dor e da fadiga.
Foi por isso — pensou ela. Atena havia trabalhado em uma lenta e
metódica manipulação. Cada sugestão tinha como objetivo separá-la dos
outros, daqueles que talvez fossem capazes de perceber o que estava
acontecendo, e aprofundar a crença de Lore na deusa e somente nela.
Castor deu a ela um sorrisinho reconfortante enquanto pegava outro papel
toalha e começava a limpar o outro braço, passando o papel gentilmente nas
manchas escuras da mão que Atena havia quebrado e ele curara. Lore o
observou, e seu coração estava tão quente que poderia derreter.
A deusa não era mortal e não tinha uma compreensão humana do mundo.
Emoções são estorvos para uma mente puramente racional, mas até mesmo
Atena reconheceu a ameaça que os outros representavam simplesmente por
estarem perto. Uma pessoa sozinha poderia ser controlada, mas uma pessoa
amada pelos outros sempre estaria sob a proteção deles.
Lore havia sentido raiva por muito tempo — do mundo, do Ágon, mas,
acima de tudo, de si mesma. Não era questão da raiva ser inerentemente boa
ou má. Ela podia conceder força, propósito e determinação, mas, quanto mais
ela vive descontrolada dentro de você, mais venenosa se torna.
Até mesmo agora, cada fibra de seu ser estava se esforçando para descer de
novo a escada, para sair cidade afora com nada a não ser uma faca e a
imagem do deus que deveria queimar como uma estrela na sua mente. Este
impulso colidia-se com ela por todas as direções, e seu corpo inteiro tremia
com o esforço de se forçar a ficar inerte.
Castor passou um papel-toalha limpo por seu pescoço, e houve um breve
sinal de angústia na expressão dele enquanto o passava por toda a curvatura
de seu maxilar. Lore se perguntou, por um momento, se Atena o havia
quebrado, e se a dor nos outros pontos de seu corpo eram tão devastadoras
que ela não se dera conta disso.
Ele jogou um pouco de água na bochecha de Lore, brincando, e isso a
assustou e a trouxe de volta de seus pensamentos. Ela soltou uma risada
fraca. Para sua surpresa, ele passou a limpar seu cabelo, passando os dedos
úmidos pelo monte desgrenhado com o maior cuidado possível. Ele trançou
seu cabelo sobre o ombro, mas não havia nada para prendê-lo.
Finalmente, ele prestou atenção no rasgo em sua blusa, duro por causa do
sangue seco. O ponto em que ela havia cravado a faca.
Lore segurou espontaneamente o antebraço dele com as duas mãos, o
interrompendo.
— Preciso me desculpar com você.
Ele balançou a cabeça negativamente.
— Lore, sério…
Ela prosseguiu:
— Me desculpe pela maneira que eu te tratei. Por não ter ficado do seu lado
imediatamente na questão de procurar por Ártemis, apesar de saber o motivo
de você querer procurar por ela, e por não cumprir minha promessa de ajudar
você a descobrir o que houve.
— Está tudo bem — disse ele, baixinho.
— Não — interrompeu ela. — Não está. Se tem uma única coisa eu tenho
certeza absoluta na vida, é que você sempre está ao meu lado. Que eu sempre
posso confiar em você.
Ela respirou fundo.
— Você disse algo antes que eu não entendi completamente — disse Lore.
— Não naquela hora. Que o motivo de você precisar saber como matou
Apolo era porque precisava que isso significasse algo. Você precisava que
tivesse um motivo, que não tivesse sido apenas acaso.
Os dedos do novo deus envolveram a pele macia da parte interna do braço
dela, acariciando-a.
— Eu não consegui compreender isso — disse ela. — Eu disse a mim
mesma que não acreditava nas Moiras, mas alguma parte de mim sempre
torceu para que exist… para que fossem a causa do que aconteceu. Sem elas,
minha família inteira terá morrido por consequência de uma escolha que eu
fiz.
— O quê? — sussurrou ele.
— Eu culpei o Ágon. Eu culpei Aristos Cadmou e os Cadmídeos. Mas fui
eu. Foi… — Lore sentiu como se estivesse entalhando as palavras em seu
coração. — Foi minha… foi minha culpa.
— Não — disse ele —, eu sei que pode parecer isso…
Ela balançou a cabeça negativamente, com um nó na garganta.
— Foi minha culpa, Cas. Os meus pais voltaram para casa do Ágon e me
disseram que estavam deixando a caçada. Que deixaríamos a cidade. Eu não
consegui… Eu não consegui entender. Pensei que eram fracos e covardes,
mas…
Castor emitiu um ruído leve, já sabendo aonde a história chegaria.
— Eles sabiam que, quando Aristos ascendeu, puniria meu pai por recusar
me entregar a ele — disse Lore. — E eles sabiam que se ele descobrisse que
ainda não poderia usar a égide sendo um deus, encontraria um jeito de nos
forçar a usá-la para ele ou a entregar por vontade própria. Então eu pensei
que ela não pertencia a ele. Era nossa. Deveria ser nossa. Eu estava bem
convencida de que, se meus pais estivessem com ela de novo, bastaria para
fazê-los ficar.
— Então você realmente a pegou — sussurrou Castor, parcialmente
impressionado com isso. — Você a roubou.
Ela assentiu, agarrando o braço dele. Precisando se segurar em algo para se
manter estável antes que a correnteza de seus arrependimentos e seu luto a
levassem.
— Roubei. Eu era só uma criança idiota e queria muito ser destinada a algo
maior. A algo mais.
— Isso não é idiota — disse ele. — É como eles nos criaram. Não é algo
que se supera facilmente.
Ela assentiu, puxando o ar, trêmula.
— Eu peguei a égide e eu estava tão… eufórica. Tão orgulhosa. — A
lembrança a encheu de vergonha agora. — Mas então comecei a pensar na
quantidade absurda de Cadmídeos em comparação a nós, em que tipo de
punição um roubo traria, na crueldade de Aristos Cadmou com meu pai… Eu
pensei: vou levá-la de volta. Vou devolvê-la e eles não poderão me punir,
nem a meu pai, nem à minha mãe, nem à Damara, nem à Olympia. Mas não
consegui fazer isso. Não consegui devolver nossa herança. Então eu a escondi
no único lugar que eu sabia que eles não pensariam em procurar.
O seu corpo inteiro estava agitado. Ela se forçou a continuar.
— A essa altura, já estava de manhã. O Ágon tinha terminado há horas.
— E então você foi para casa — disse ele suavemente.
— E então eu fui para casa. — Lore balançou a cabeça negativamente. —
Eu… os encontrei.
Os olhos dela arderam. Ela levou uma das mãos a eles.
— Eu achei que os Cadmídeos provavelmente viram a gravação da câmera
de segurança, me identificaram e pediram a permissão do novo deus deles
para matar minha família fora do Ágon. Uma parte de mim sempre soube que
os horários não batiam, mas eu tinha muita certeza de que tinha sido ele…
todos eles. Mas foi ela. Foi ela esse tempo todo.
— O que aconteceu não foi culpa sua — disse Castor, com voz
determinada. — Você era só uma criança. Não tinha como saber.
Lore começou a chorar, deixando as lágrimas saírem de uma vez.
— Eles devem ter sentido tanta dor. As meninas devem ter ficado tão
assustadas… Eu não consigo parar de pensar nisso. Eu me preocupo que um
dia essa seja a única lembrança que eu tenho deles. Que eu vá esquecer seus
rostos, suas vozes…
Tudo o que sua família possuía fora destruído, inclusive as fotografias, os
diários e as heranças. Não havia mais nada.
Castor se inclinou para a frente, envolvendo-a em seus braços. Ela se
entregou ao abraço, ouvindo a chuva tamborilar suavemente na janela.
— Eu passei os últimos dias mentindo para você sobre ter pegado a égide
— disse Lore. — Para todos vocês. Eu disse a mim mesma que, enquanto ela
estivesse escondida, Fúria não ia poderia ficar com ela nem se ele quisesse…
que, se a tivéssemos buscado, eu faria de tudo para garantir que apenas você
visse o poema. Que você seria o vencedor e sairia do Ágon. Mas, no final, eu
quase a entreguei para ela. Por querer tanto ver Fúria morto.
Ela o fitou, e as palavras escapavam dela estremecidas.
— Você acha que eles me odeiam?
Castor balançou a cabeça negativamente, pressionando os lábios na têmpora
de Lore.
— Não — disse ele, com vigor. — Eles amam você. Eles sempre vão amar.
As lágrimas escorreram pela face dela. Ela queria acreditar nele.
— Eu devia ter trazido o escudo para você, mas não consegui. Eu não
consegui encará-la.
A herança que ela queria mais do que qualquer coisa havia se tornado a
arma que destruiu a sua família.
— Nenhum de nós pode mudar o que aconteceu — sussurrou ele. — Queria
que tivesse sido diferente. Quis isso mil vezes nos últimos sete anos. Mas
seus pais queriam deixar o Ágon porque queriam que você estivesse segura.
Que fosse feliz. Você ainda tem essa chance. É tudo o que importa para eles
agora.
Ela o apertou com mais intensidade e tentou não imaginar a sua família ali,
na melancolia cinzenta do Mundo Inferior, eternamente presa devido ao que
ela lhes fizera. Lore sentiu o perfume dele e fechou novamente os olhos,
esperando o aperto doloroso em seu peito e sua cabeça diminuírem.
— Se tem algo que aprendi esta semana, foi isto — disse Castor depois de
um tempo. — Quando não podemos mudar o passado, a única coisa que nos
resta é seguir em frente. Eu preciso fazer o mesmo. Eu preciso parar de
questionar um presente que me permite proteger as pessoas com quem eu
mais me importo.
Lore se afastou.
— Você merece saber o que aconteceu com você.
— Mas para que serve um deus egoísta? — disse ele. — Ou… qualquer
coisa que eu seja.
— Não acho que você poderia ser egoísta nem se tentasse — disse Lore.
— É aí que você se engana — disse ele. — A verdade é que eu também não
fui totalmente honesto com você. Eu não me lembro como Apolo morreu,
mas me lembro de momentos antes disso. Tudo o que houve depois sumiu,
até o momento exato em que eu acordei e percebi que não tinha um corpo e
que a vida que eu conhecia tinha acabado para sempre.
A dor na voz de Castor fez o peito de Lore se apertar.
— De início, eu não o vi. Ele sabia como brincar com as sombras e a luz.
— Castor respirou fundo. — Eu estava de cama. Mal estava vivo àquela
altura. A Casa Tétis estava vazia por causa da caçada e o meu pai tinha saído,
só por um momento, para cumprir uns afazeres. Eu acordei e Apolo estava lá,
parado na ponta da minha cama.
Lore abriu ligeiramente a boca, surpresa.
— Ele parecia… — disse Castor, com sua voz se perdendo. — Ele estava
coberto de sangue. Tinha um ferimento na lateral do corpo.
— O que você fez? — perguntou Lore. — Não tinha como você estar
armado.
Ele balançou a cabeça negativamente, virando as palmas das mãos para
cima a fim de olhá-las.
— Eu não estava. Eu perguntei se ele precisava de ajuda.
Lore o encarou.
— Eu sei. É ridículo só de pensar. Um menino de doze anos, achando que
pode ajudar um deus? — Ele soltou uma risada fraca. — Eu deveria estar
apavorado. Todos aqueles anos fomos ensinados a odiá-los, mas eu o vi e só
pensei: Ele parece doente. Eu vi algo nele, no rosto, nos olhos dele, que eu já
tinha visto tantas vezes no espelho. Ele era aníatos, como eu.
Aníatos. Incurável.
— Ele perguntou qual era meu nome e riu quando eu falei. Era um som
horrível, como uma trombeta. Mas algo me atraía para ele. Era… era como
todas aquelas vezes que falam para você não olhar para o sol, mas algo diz
para tentar, só uma vez — disse Castor. — Ele perguntou por que eu ofereci
ajuda. Eu disse que ele parecia precisar descansar. — Castor finalmente a
fitou. — Isso é tudo que eu lembro. Queria que fosse uma história melhor.
Queria que eu pudesse contar que fui corajoso e forte, que mereci esse poder,
mas não posso, e mesmo sabendo que eu talvez tenha que deixar isso para lá,
essa ideia me mata. Eu faria qualquer coisa para me provar para você.
— Você não tem que me provar nada — disse Lore. — Por que acha isso?
Castor desviou o olhar comum sorriso amarelo em seu rosto. Mas seus
olhos arderam com seu poder e com aquela mesma sensação selvagem e
irrepreensível em que ela estava se afogando…
— Não é óbvio? — perguntou ele baixinho. — Eu queria ser digno de você.
— Digno de mim? — indagou ela. Suas palavras saíram rápidas demais,
desajeitadas demais, rígidas demais, e ela não queria nada daquilo. Não dessa
vez. — Cas.
— Lore. — Ele manteve o mesmo tom suave. — Eu nasci sabendo fazer
três coisas: respirar, sonhar e amar você.
Lore começou a tremer. Sua respiração ficou superficial, tão rápida e leve
quanto seu pulso, que pegava fogo em suas veias.
Como ela diria isso? Como qualquer um diria? Era como desamarrar sua
armadura, soltar a faca e expor cada parte mole de si para o mundo. Mesmo
assim, no momento em que ele falou, Lore reconheceu aquela sensação de
inevitabilidade que atravessou todos os momentos deles juntos, antigos e
recentes. Como ela vinha tropeçando na direção dele, mesmo enquanto ela se
afastava desse vínculo.
Lágrimas gotejavam em seu rosto, fazendo curvas pelas bochechas. Ela
sempre foi aquela garota, de sentimentos insuportáveis e cabelo embaraçado
pelo vento enquanto corria pela cidade. E Castor sempre foi o garoto que
corria ao lado dela.
— Você soube dos pombos na Broadway? — disse ele, suavemente,
tocando uma lágrima com o dedo.
Lore desistiu das palavras e o beijou.
Castor respirou fundo enquanto os lábios dela tocavam os seus, incertos de
início. Lore se afastou, segurando o rosto dele com as duas mãos enquanto o
estudava e a seus olhos brilhantes e ardentes; ela se perguntou se esse seria
seu último beijo ou se isso importava agora que estavam ali, e o vento
crescente cantava pelas ruas da cidade.
Castor envolveu a cintura dela com um braço, cuidadosamente a trazendo
para o calor do seu corpo. Ele abaixou a cabeça e encontrou a boca dela
novamente, tocando os lábios da jovem com seus lábios sorridentes, como se
fosse um desafio.
E quando ela recusou um desafio?
Lore o beijou novamente, acompanhando-o, seguindo o seu ritmo, toque a
toque, até que estivesse perdida nele, subindo e descendo, puxando e
empurrando, avançando e recuando. Ela agiu por instinto no parque, cedendo
à atração por ele, mas agora… agora era para valer.
Lore havia beijado outras pessoas antes. Quase sempre bêbada e no escuro,
deixando o álcool se tornar a barreira entre ela e as emoções que não queria
sentir e as coisas que queria esquecer. O que aconteceu naquela noite na casa
dos Odisseídeos era como uma maré fantasma que fluía e recuava em sua
mente, marcando mais profundamente a areia cada vez que retornava. Às
vezes, ela podia passar semanas sem pensar nisso, às vezes dias, às vezes
apenas algumas horas. Mas então ela vinha de novo: o desprendimento do
corpo que ela batalhou duro para deixar forte, a sufocante sensação de
impotência.
Talvez isso sempre seria parte dela, mas estava aprendendo a passar por
isso e a se ancorar voluntariamente. Nesse momento, com Castor, ela não se
sentia impotente. Sentia-se triunfante. Como se tudo em seu corpo estivesse
repentinamente conectado e eletrificado.
Os lábios dele eram macios enquanto acariciavam os dela, capturando a
última de suas lágrimas, mas foram ficando insistentes, mais fortes, com o
desejo. Não era o suficiente. Ela queria tocá-lo em todos os pontos, queria
derreter no calor da vontade que se acumulava em seu corpo e na terna dor do
amor em seu coração.
Um clangor de trovão finalmente os separou. Lore começou a se afastar,
mas Castor a segurou um pouco mais, passando as mãos nas costas dela,
absorvendo a sensação da pele dela contra a sua.
Ela descansou o rosto na quente curva do ombro de Castor, sentindo seu
perfume. Sua mão percorreu o peito dele até o ponto em que ele levou a
flechada.
— O que vai acontecer com você quando o Ágon acabar? — sussurrou ela.
Lore sentiu o sorriso dele em sua pele.
— Vai sentir minha falta, Áurea?
— Talvez eu goste de ter você por perto — disse ela. — Você é um colírio
para os olhos.
Ela estava tentada a ficar ali para sempre, ouvindo a tempestade,
imaginando uma vida diferente. Mas quando outro trovão soou novamente no
céu, Lore tomou uma decisão.
— Eu vou até O Fenício — disse ela. — Você vem comigo?
Ele ergueu as sobrancelhas. — Aquele restaurante antigo dos Cadmídeos?
Por quê?
— Porque eu deixei uma coisa lá e finalmente chegou a hora de buscar.
QUARENTA E OITO
SEU TELEFONE NÃO VOLTOU A TER SINAL ATÉ QUE ELA ALCANÇASSE A JUNÇÃO DOS
túneis embaixo da Grand Central Station. Lore não imaginou que o subsolo
seria tão confuso na interseção de três linhas diferentes do metrô com os
trilhos da companhia Metro-North.
— Merda. — Devido às mãos trêmulas, Lore teve dificuldade para abrir as
mensagens. A mais recente era de Miles, dizendo que ele estava a postos, no
prédio acima dela. Faltavam quinze minutos para o meio-dia.
Cas está com problemas — digitou ela no chat com os outros. — Quinta
Avenida, Linha 7. Vou indo na frente.
O mapa do GPS não era detalhado o suficiente para dizer qual túnel pegar,
apenas sinalizava que ela estava na direção certa.
Quando Lore encontrou o último túnel, todo seu corpo estava tenso de
frustração. Enquanto estava em pé na entrada do túnel, olhando para a
escuridão aveludada à frente, Lore hesitou, subitamente incerta.
Lore se perdera tantas vezes que não entendia totalmente como chegou ali.
Por um momento, ela soube como Teseu devia ter se sentido no Labirinto,
mas ela não tinha o fio de Ariadne para guiá-la de volta.
Lore se forçou a respirar. Uma de suas mãos segurava firme o cabo da
Mákhomai e a outra, cerrada em punho por detrás da égide. As vibrações do
escudo alimentavam a massa de pavor no fundo de seu estômago.
Seu primeiro passo à frente demandou tanto esforço quanto o necessário
para se arrastar por uma maré escura. Lore não sabia oração alguma que a
ajudasse agora, nem quem a pudesse ouvir. Ela sentiu o ar se agitar ao redor,
como se seres se movimentassem ali, sem serem vistos, observando,
aguardando.
Ela pressionou a borda curvada da égide na testa, fechando os olhos.
Agarrou o colar, o pingente de pena, até que o metal deixasse uma marca na
palma de sua mão.
Posso ser livre.
Ela não era Teseu no labirinto nem Perseu no covil da Górgona. Não era
Héracles realizando seus trabalhos. Não era Belerofonte, que cavalgou pelo
céu, nem Meléagro na sua caçada, nem Cadmo combatendo a serpente. Não
era nem Jasão, triunfante no limite do mundo com o Velo de Ouro em mãos.
Não lhe havia nada predestinado. Lore não fora escolhida para isto;
escolheu vir por vontade própria. Cada passo que dava e cada erro cometido a
trouxeram até aqui.
Ela estava aqui porque o pai a ensinou a segurar uma espada, porque a mãe
a ensinou a ser forte e orgulhosa, porque as irmãs seriam para sempre pessoas
inacabadas.
Ela estava aqui pela cidade que a criou, e veio com o orgulho de seus
ancestrais e a força de seu coração, e nada disso lhe falharia.
Lore, então, os reconheceu — as sombras se movendo dentro do túnel.
— Fiquem comigo — sussurrou ela, dando o próximo passo. Repetiu as
palavras até que se tornassem a oração da qual precisava e uma armadura
para sua alma. — Por favor, fiquem comigo.
Lore correu, disparando pelo túnel como uma flecha atirada pelas mãos
mais firmes.
— Fiquem comigo…
O ar mudou, e Lore sabia que estava perto. Uma corrente de energia tocou
seus sentidos, guiando-a para fora daquela linha, a um túnel menor.
A concentração de Lore se intensificou enquanto ela corria pelos trilhos e a
água respingava à sua volta. Antes do esperado, a jovem alcançou uma seção
do metrô separada do resto, que levava à estação logo abaixo do Waldorf
Astoria.
Ao som de vozes, ela diminuiu o ritmo e desligou a lanterna.
— Me escute, por favor!
Belen — pensou ela. Lore levou a mão à orelha e tirou um dos fones de
ouvido para escutar melhor.
Formas indistintas foram ficando nítidas ao fim dos trilhos, no espaço
cavernoso que era a Linha 61. Lampiões estavam espalhados ali, iluminando
seções da estação que, sem eles, estaria no breu.
Silhuetas difíceis de distinguir tomavam forma ao final da linha. Lampiões
foram pendurados, iluminando trechos da estação. Um único vagão rebocador
estava estacionado sobre os trilhos; um grande reservatório prateado, tão
grande quanto o próprio vagão, estava preso nele. Se aquilo era uma bomba,
não se parecia com nenhuma que Lore já viu.
— Duvida de mim?
A voz de Fúria chegou até ela, baixa e ameaçadora. Ele deu a volta no
vagão-prancha, ficando visível. Ali perto, um elevador enorme se
aproximava, que sem dúvidas dava para o estacionamento do hotel.
A forma sombria e sublime do deus fazia dele um monstro, e seu corpo era
todo rígido devido aos músculos. Ele superaria até mesmo a altura de Castor,
assim como superava a de Belen.
O jovem se afastou dele e do reservatório, erguendo as mãos. Ele estava
vestido com o que parecia ser um manto cerimonial carmesim bordado em
ouro. Suas duas mãos estavam enfaixadas com uma camada grossa de gaze
branca.
O fulgor na pele de Fúria só podia ser obra de alguma tinta dourada. Ela
cobria todo o seu corpo sob a seda marfim de sua túnica. Ele vestia uma
armadura de bronze sobre o peito, assim como manoplas e grevas. Mas o pior
era a conhecida pele de animal áspera e de tom bronzeado que vestia. A
cabeça da criatura há muito tempo fora fundida em bronze para ser usada
como elmo, assim como Fúria usava agora. A pele pertencia ao leão de
Nemeia e tornava o corpo que cobrisse invulnerável a armas cortantes.
Lore ficou aterrorizada. Se ele estava trajado para a guerra, horas antes do
pôr do sol…
Eles se equivocaram de novo. O plano de Fúria seria executado agora.
Lore sacou o celular, mas ainda estava sem sinal. Cogitou ir embora e tentar
subir à superfície para alertar os outros, caso já não tivessem descoberto por
si só, mas Belen falou novamente, desta vez em um tom mais desesperado.
— O senhor é o ser mais poderoso deste mundo — disse Belen. — O
senhor tem a nós e lhe somos devotos. Todos nós, meu senhor.
— É mesmo? — perguntou Fúria, friamente. Ele rodeou seu filho mortal,
forçando Belen a recuar até o vagão-prancha sem nem ao menos precisar
sacar uma espada.
— Você não precisa dela — continuou Belen, e sua voz foi ficando
esganiçada.
O sangue de Lore gelou nas suas veias com aquela palavra. Ela.
— Pergunte a si mesmo por que ela concordaria em ajudá-lo… por que ela
veio até você agora, quando já está tão perto de obter tudo que sempre
sonhou em ter — disse Belen. — Ela e a irmã planejavam matá-lo e a todos
os outros deuses, e agora ela quer prestar servidão? Ela é traiçoeira… roubará
seu plano, roubará aquilo e o matará… ela o destruirá, Pai. Por favor…
— Pai? — repetiu uma voz suave.
Atena estava parada na borda da luz de um dos lampiões, e seus olhos
brilhavam na escuridão.
O coração de Lore acelerou e ela começou a suar. Belen virou a cabeça
rapidamente na direção da deusa, visivelmente sem fôlego.
— Pai? — repetiu Atena novamente. — Meu grande senhor, eu nunca
imaginaria que alguém tão poderoso como vós teria um filho tão choroso e
sem força de vontade.
Atena se moveu e ficou ao lado do novo deus, segurando uma dory. Ela
também trajava um curto manto cerimonial, impecavelmente branco, e sua
pele estava revestida pelo mesmo dourado reluzente. Sua armadura era tão
robusta quanto a de Fúria, assim como seu elmo, que estava cravejado com o
que pareciam ser diamantes e safiras na extensão de seu penacho branco.
O ódio que Lore sentiu olhando para ambos agora era de tirar o fôlego.
Toda a raiva que ela disse para si mesma que não precisava, que não queria,
veio borbulhando até a superfície.
Ela esqueceu sua calma, esqueceu seu plano, esqueceu a desonra que ele
tentou usar como munição para extinguir sua linhagem e o desejo do novo
deus de tirar-lhe a vida, mesmo quando era apenas uma garotinha. Ela não
viu nada além do rosto do homem que quis destruir sua família e a deusa
impiedosa que havia, de fato, a destruído.
Fúria virou o corpo na direção de Atena, endireitando os ombros largos. Ele
segurava seu elmo com uma das mãos, mas a outra foi até a espada em seu
flanco.
— Ela o trairá… o destruirá, assim como fez com todos os outros — disse
Belen, desta vez com medo de verdade. — Me escute… ela está alimentando-
o com mentiras! O senhor não precisa dela!
— Eu não disse mentira alguma — disse Atena, com frieza. — O grande
Fúria e eu somos destinados a isso… sempre fomos. O encontro dos
costumes antigos e os novos. O primeiro Ares era fraco, suscetível demais a
mudanças de temperamento e à loucura, e o mais odiado dos filhos do meu
pai, mas agora encontrei um parceiro de guerra digno… o equilíbrio da força
à minha estratégia… e um novo rei para que eu me ajoelhe.
Belen balançou a cabeça negativamente.
— Isso… isso não pode ser verdade…
— Está me chamando de mentirosa? — perguntou Atena, rispidamente. —
Eu devo lealdade ao meu senhor Fúria após ele ter benevolentemente me
contado sobre o novo poema, sobre a vontade de meu pai. Estou contente por
servi-lo no momento em que ele faz sua ascensão final e verdadeira.
A bile subiu pela garganta de Lore; mesmo depois de tudo que ela havia
feito, as palavras de Atena, seu tom suave e bajulador, pareciam uma nova
traição. No terraço de sua casa, Lore havia contado tudo a ela, seu passado,
seus medos, e ela acreditou na deusa, sentiu a própria raiva e frustração
suprimidas de Atena.
Você pode chamar isso de complacência, e talvez seja — dissera Atena. —
Eu creio que seja sobrevivência.
Só podia ser uma atuação, mas nela a deusa se rebaixou voluntariamente.
— A Deusa de Olhos Cinzentos é a mais sábia de todos os seres — disse
Fúria, gabando-se das palavras dela e acreditando em todas, do modo que
apenas um homem que não via falha alguma em si mesmo acreditaria. — Ela
se provou digna de me servir… Diga-me, você se provou? Um garoto… que
não pode nem lutar… se atreve a questionar meu julgamento? Atreve-se a
crer que é mais sábio que a própria Atena?
Belen novamente balançou a cabeça em negativa, recuando até esbarrar na
borda do vagão-prancha.
— Meu grande senhor — disse Atena, observando o jovem com um olhar
que Lore reconheceu. Vitória silenciosa. — Como sabe, todas as grandes
empreitadas devem ser iniciadas com um sacrifício em busca da graça de
Zeus para que sejam bem-sucedidas.
O novo deus voltou-se para seu filho mortal.
Cada parte de Lore parecia se atirar para frente, mesmo que ela estivesse
inerte.
Belen teve tempo de sussurrar — Por favor — antes que o pai sacasse uma
pequena faca oculta em uma bainha no antebraço e cortasse sua garganta.
Sangue jorrou no reservatório com a força do golpe. Belen caiu no chão,
sofrendo espasmos em todo o corpo, enquanto seu coração frenético
bombeava o pouco de vida que lhe restava.
Fúria o assistiu morrer, e uma euforia sombria se espalhou por seu rosto.
Quando o jovem finalmente ficou imóvel, ele se abaixou e pôs a mão na
garganta do filho, revestindo-a de sangue.
Atena observou, retraindo o lábio superior.
Erguendo-se novamente, Fúria pôs a palma de sua mão no reservatório,
deixando uma mancha escura nele. Ele recuou, com o olhar fixo nele.
Lentamente, levou os dedos até os lábios. Até sua língua.
Ele não deu meia-volta novamente enquanto falava, mas sua voz carregava
as palavras pela distância entre ambos.
— Filha de Perseu.
Fiquem comigo — pensou Lore uma última vez enquanto segurava firme as
alças da égide e seguia em direção à estação.
Fúria disse:
— Quanta consideração de sua parte por trazer um último presente ao seu
deus.
CINQUENTA E TRÊS
PARA A SURPRESA DE LORE, ELA ACORDOU NO MUNDO QUE PENSOU TER DEIXADO
para trás.
A cidade cantava para ela a sua velha canção, a princípio, baixinho, mas
aumentando em volume e ritmo. Dezenas de motores roncavam pelas ruas, o
começo do que talvez estivesse por vir nos próximos dias. Equipamentos de
construção tiniam e ressoavam ao esforço da remoção dos escombros. As
pessoas andavam pelas ruas, rindo, e aquele era o som ao qual Lore se
apegou, o ruído que se enfiava em seu coração assim que abria os olhos.
O rosto ansioso de Miles a encarava de volta. Sua mão apertou a da amiga e
ele mordeu o lábio tentando não chorar. Parecia que ele, de algum modo,
conseguiu tomar banho ou dar uma boa limpada no rosto e se barbear.
— Seus olhos — sussurrou ele.
Lore tentou pensar no que dizer a ele. Agora que estava acordada, aquela
sensação desconcertante estava de volta. O poder se movia dentro dela,
inquieto em seu confinamento. Seu corpo, que a havia servido tão bem por
tantos anos, que ela fortaleceu, amou e deixou cicatrizes, parecia
insubstancial demais para Lore agora. Em vez disso, ela olhou em volta.
Eles estavam em casa, no seu quarto.
Lore estava surpresa por esse simples pensamento a deixar à beira das
lágrimas. Ela pigarreou.
— Eu não queria que isso acontecesse.
Ele sorriu para ela, choroso.
— E tudo bem, eu acho.
Miles abriu as cortinas do quarto, convidando a luz do sol da tarde a entrar.
Lore sentiu o calor passar por ela tão vividamente quanto sentia o cobertor
contra a pele.
Ela sentou-se de repente.
— Que dia é hoje?
— Sábado — disse ele. — Você está dormindo desde que Castor curou suas
feridas.
Sábado. O pensamento a preencheu com uma onda de pânico. Restavam
apenas algumas horas para o fim do Ágon.
— Cadê todo mundo? — perguntou ela, com o coração acelerando
enquanto olhava o espaço vazio em volta. — Eles estão bem? — Lore teve a
súbita e vívida lembrança do que havia acontecido na estação de metrô. — O
Castor está…?
— Ele está bem. Todo mundo está bem. Quero dizer… bem sem contar o
trauma levinho que acontece quando a gente não processa direito o que
houve, mas bem. — Miles esfregou a nuca. — Eles subiram para o terraço há
um tempinho para respirar ar fresco.
Um silêncio confortável se estabeleceu entre eles. Lore respirava
calmamente, apreciando a sensação do ar entrando e saindo. Como era fácil.
Ela percebeu que ainda segurava a mão de Miles, mas não a soltou.
— O que vai acontecer com você quando acabar o dia de hoje? —
sussurrou ele. — Você vai sumir? Vai ser caçada como os outros daqui a sete
anos?
Ela balançou a cabeça negativamente.
— Eu não sei. Mas… espero que tudo tenha acabado. De vez.
Lore se sentiu repentinamente desesperada para ver a sua cidade. Levantou-
se lentamente da cama, soltando a mão de Miles para ir até a janela.
Conforme se movia, o poder se movia junto, fluindo por seus músculos e se
enroscando em torno de cada articulação e tendões.
Miles ficou ao seu lado.
— E se o Ágon levar você junto e não puder mais voltar? Atena disse que
os deuses moram em um mundo além do nosso… é para lá que você vai?
— Esta é a minha casa — disse Lore. — Mesmo se eu perder este corpo,
vou encontrar um jeito de voltar. Eu sou determinada, e você sabe o que isso
quer dizer.
— Que você vai correr que nem louca atrás do ônibus para a Terra se o vir
chegando mas estiver longe do ponto? — disse Miles.
— Talvez. — Lore riu com vontade, mas viu que ele precisava de outra
garantia. — Talvez eu precise ficar longe por um tempo, mas nunca vou
deixar você para sempre. Não se eu puder evitar.
— Tá, mas a questão é que eu não quero nem que você vá — disse Miles.
Lore desviou o olhar para a rua abaixo, observando as primeiras cores do
pôr do sol se demorando em seu querido bairro em um momento de
iluminação perfeita. Um casal passeava com o cachorro e um carrinho de
bebê, homens riram em sincronia quando o bebê jogou um brinquedinho em
formato de estrela na rua.
Ele a fitou novamente, encostando a têmpora contra o vidro morno.
— Você realmente parece um pouco diferente, mas ao mesmo tempo não.
Não consigo explicar.
— Eu também não — disse Lore. — Eu só me sinto… leve.
Ela apoiou o braço no ombro de Miles. Ele fez o mesmo.
— Sabe, esta cidade é uma zona — disse Lore depois de um tempo. — Mas
é uma zona lindíssima.
LISTA DE PERSONAGENS
DEUSES
OUTRAS CASAS
A Casa de Belerofonte, matador da Quimera e cavaleiro de Pégaso (linhagem
extinta).
A Casa de Jasão, líder dos Argonautas, que recuperou o Velo de Ouro
(linhagem extinta).
A Casa de Meléagro, príncipe de Cálidon e matador do javali calidônio
(linhagem extinta).
A Casa de Teseu, rei de Atenas e matador do Minotauro.
AGRADECIMENTOS
MEU PRIMEIRO CONTATO COM A MITOLOGIA GREGA VEIO POR MEIO DE UMA CÓPIA
do D’Aulaires Book of Greek Myths [Livro de Mitos Gregos de D’Aulaire],
que meus irmãos e eu herdamos de nossa mãe, que estava ansiosa para
começar a nos apresentar nossa herança grega. Fui abençoada com uma
grande família grega que é tudo o que os caçadores neste livro não são:
incrivelmente amorosa, solidária, divertida e sempre tendo uma vasta
coletânea de lendas familiares. Eu gostaria de começar agradecendo a todos
eles.
Além da contribuição de minha família quanto ao uso do idioma grego
neste livro, tenho enorme gratidão a Brendon Zatirka e Kiki Hatzopoulou, por
me ajudarem a verificar o uso e a ortografia, e por serem heróis versáteis da
mais alta ordem quando precisei de respostas às minhas várias perguntas.
Eles, junto com Katalina Edwards e Joel Christensen, também foram muito
gentis ao avaliarem as transliterações do grego original e ao discutirem as
diversas maneiras de abordar os nomes das linhagens. (Se você fala qualquer
versão desse idioma, notará que fiquei inclinada a utilizar os nomes
romanizados para deixar as coisas mais claras para o leitor, mas tentei
preservar um pouco da “pureza” da língua, por assim dizer, sempre que
possível.)
Este livro também se valeu muito dos escritos de Mary Beard e Christine
Downing, os quais me ajudaram a refinar minha própria visão de Atenas e
muitos dos mitos discutidos nesta história, bem como o trabalho de tradução
feito por Richmond Lattimore, Emily Wilson, Samuel Butler, Robert Fagles e
Hugh G. Evelyn-White. Fãs da mitologia grega, assim como eu, perceberão
que fiz algumas perguntas sobre quais versões dos mitos eu queria utilizar
(por exemplo, a égide ser um escudo, em vez de um tipo de armadura
peitoral) — acredite em mim quando digo que todas essas decisões foram
difíceis e tomadas para contribuir para a narrativa desta história.
Lore e eu tivemos a sorte de contarmos com várias mentes editoriais
brilhantes avaliando esta história. Obrigada a Laura Schreiber, Hannah
Allaman, Marissa Grossman e Rachel Stark, por me ajudarem a descobrir a
melhor forma de contá-la. Também gostaria de agradecer especialmente a
Kieran Viola, por toda a ajuda.
Tenho muita gratidão a Ashil Lee, pelo feedback maravilhoso e detalhado,
que me ajudou a encarar esta história por um ângulo mais sensível e cheio de
nuances e ampliou muito minha própria compreensão.
Para Emily Meehan, Seale Ballenger, Melissa Lee, Augusta Harris, Dina
Sherman, LaToya Maitland, Holly Nagel, Elke Villa, Andrew Sansone, Sean
Weigold, Jennifer Chan, Guy Cunningham, Meredith Jones, Dan Kaufman,
Sara Liebling, Shane Jacobson, Alexandra Sheckler, Kim Greenberg e toda a
equipe comercial: obrigada por todo o trabalho árduo e pela dedicação em dar
aos livros a melhor vida que eles podem ter. Marci Senders: esta capa ficou
linda, fiquei sem palavras. Eu também gostaria de agradecer a Billelis pela
arte da capa, que é de arregalar os olhos (piada intencional) e a Keith
Robinson pela maravilhosa arte do interior.
Agradeço demais a Merrilee Heifetz por estar ao meu lado; a Rebecca
Eskildsen e à equipe de direitos estrangeiros da Writers House, por ajudar
este livro a encontrar leitores em todo o mundo.
Não consigo descrever o quanto sou grata à minha incrível amiga Anna
Jarzab, por acreditar nesta história e por me ajudar a pensar nela. Obrigada a
Susan Dennard, por sempre estar disposta a pesar quando preciso de outra
opinião confiável e por sua compaixão ilimitada. Finalmente, obrigada a Erin
Bowman, Leigh Bardugo, Victoria Aveyard e Amie Kaufman, por serem um
coro de vozes de apoio!
Uma Educação Mortal
Novik, Naomi
9786555205732
336 páginas
Orion lake precisa morrer. eu sabia disso desde que ele salvou minha vida
pela segunda vez. Antes, não me importava tanto assim com ele, mas tenho
meus limites. Tudo estaria bem se ele tivesse me salvado um número
considerável de vezes, sei lá, dez ou treze. Treze é um número que chama a
atenção. Orion Lake, meu segurança particular. Eu poderia viver com isso.
Mas o fato é que já se passaram quase três anos que estamos aqui na
Scholomance, e até agora ele não tinha apresentado qualquer inclinação para
me tratar de um jeito diferente ou especial. Você deve me achar egoísta por
contemplar com essas intenções assassinas o herói responsável pela
recorrente sobrevivência de um quarto da nossa turma. Bem, só lamento pelo
bando de perdedores que não conseguem se virar sem a ajuda dele. Seja
como for, não fomos todos feitos para sobreviver mesmo. A escola precisava
se alimentar de alguma forma.