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Sumário

1. Dedicatória
2. Linhagens Vivas
3. Linhagens Extintas
4. Cidade dos deuses
5. Portadores do fogo
6. Imortal
7. Rios escuros
8. Mortal
Para minha família grega.

Σας αγαπώ όλους.


O SENHOR DO CÉU ERGUEU-SE FULGURANTE CONTRA O CAIR DO CREPÚSCULO E
DISSE: ouçam-me, herdeiros de sangue dos homens orgulhosos que se
aventuraram na escuridão a fim de matar os monstros e reis do passado.
Chamo-vos a um último Ágon para conquistarem a vossa própria glória
eterna. Nove deuses traíram-me, e agora demando cruel vingança.
Por sete dias, a cada sete anos, andarão como mortais para que vós,
homens, e todos os vossos herdeiros doravante, possam desfazer vosso
predestinado caminho e transformar fio vital em ouro eterno. Revelai vossas
forças e aptidões, e recompensar-vos-ei com o manto e com o poder imortal
do deus cujo sangue manchar vossa ousada lâmina. Para que tenham essa
oportunidade, peço muito de vós.
Reúnam-se no umbigo do mundo conhecido e iniciem vossa caçada ao raiar
do dia.
Assim será até o último dia, quando apenas um restará, e será refeito por
inteiro.
Zeus em Olímpia,
traduzido por Creonte dos Odisseídeos
LINHAGENS VIVAS

A CASA DE CADMO — Os Cadmídeos


Portadores da marca da serpente Exaltados por Fúria, renascido
de Ares

A CASA DE ODISSEU — Os Odisseídeos


Portadores da marca do cavalo de Troia Exaltados pelo Guardião
do Amor, renascido de Afrodite
A CASA DE TESEU — Os Teseídeos
Portadores da marca do Minotauro

A CASA DE AQUILES — Os Aquilídeos


Portadores da marca do guerreiro

A CASA DE PERSEU — Os Perseídeos


Portadores da marca da Górgona Exaltados pela Portadora da
Maré, renascida de Poseidon
LINHAGENS EXTINTAS

A CASA DE MELÉAGRO — Os Meleagrídeos


Portadores da marca do javali calidônio

A CASA DE BELEROFONTE — Os Belerofontídeos


Portadores da marca de Pégaso
A CASA DE JASÃO — Os Jasídeos
Portadores da marca do carneiro

A CASA DE HÉRACLES — Os Heraclídeos


Portadores da marca do leão de Nemeia Exaltados por Folião,
renascido de Dionísio
ELE ACORDOU COM A SENSAÇÃO DO CHÃO DURO SOB SI E O FEDOR DE SANGUE
mortal.
Seu corpo se recuperava mais lentamente que sua mente. Sensações
indesejáveis o atravessavam, ardentes, enquanto sua pele se enrijecia como
argila recém-queimada.
O orvalho na grama escoava para dentro de seu fino manto azul, e ele sentiu
a terra salpicada nas pernas e nos pés desnudos. Um tremor humilhante
passou por ele, se estendendo do couro cabeludo até os calcanhares. Pela
primeira vez em sete anos, sentiu um calafrio.
O sangue mortal que fluía dentro dele era como lama em comparação com a
luz solar líquida do icor que havia incinerado todos os vestígios de sua
mortalidade e o lançado de volta ao mundo. Por sete anos, percorreu terras
próximas e distantes, avivou os corações perversos de assassinos, nutriu as
brasas dos conflitos até se tornarem chamas. Havia sido fúria encarnada.
Sentir-se novamente preso a um corpo… ser derramado de volta a esse
frágil recipiente… era tormento tão grande que o fazia sentir pena dos deuses
antigos. Eles viveram essa atrocidade 212 vezes.
Ele não passaria por isso. Esta seria a última vez que provaria o gosto da
mortalidade.
Seus sentidos estavam entorpecidos, mas reconheceu a cidade e o grande
parque. O cheiro de grama aparada misturado a um leve toque de esgoto. O
som do trânsito a uma distância próxima. A sensação elétrica e inquieta de
suas veias nas profundezas da rua.
Os cantos de sua boca se esticaram desajeitadamente, forçando-o a lembrar
como sorrir. Outrora havia sido sua cidade, em sua vida mortal; as ruas lhe
ofereciam riquezas, e os ambiciosos lhe vendiam fragmentos de poder.
Manhattan se ajoelhara diante dele no passado e se ajoelharia novamente.
Deu uma cambalhota, saindo dela agachado. Quando sentiu segurança em
seus membros, levantou-se lentamente até estar completamente ereto.
Sangue escuro fluía pelos rios à sua volta. Uma jovem garota, com a
máscara arrancada de seu rosto, o observava com olhos cegos da borda da
cratera. Uma faca ainda estava enterrada em sua garganta. A cabeça de um
homem, arrancada do corpo, vestia a máscara de um cavalo. Um punhal se
equilibrava em sua mão frouxa, em que faltavam dedos.
Havia um tênue arrastar de passos à sua direita. Ele tateou, procurando uma
espada que não mais estava em seu flanco. Três vultos saíram das sombras de
árvores próximas dali. Cruzaram a trilha pavimentada entre eles, com rostos
escondidos por máscaras de bronze, cada uma ostentando o semblante de
uma serpente.
Sua linhagem mortal. A Casa de Cadmo. Vieram recolhê-lo, o seu novo
deus.
Esticou o pescoço até estalar, observando se aproximarem. Os caçadores
estavam admirados e isso o agradava. Seu antecessor, o último novo Ares,
não havia sido digno o suficiente para envergar o manto do deus da guerra.
Foi um prazer indescritível matá-lo e reivindicar seu direito de nascença há
sete anos.
O mais alto dos três caçadores se aproximou. Belen. O novo deus assistia,
entretido, conforme o jovem removia as flechas dos corpos em uma colheita
impiedosa.
Uma pena que sua única prole sobrevivente era um bastardo. Não poderia
ser o herdeiro de Aristos Cadmou, o mortal que o deus fora. Ainda assim,
seus lábios se curvaram em um sorriso, e ele deu boas-vindas ao
incandescente orgulho que sentiu ao ver o jovem.
Belen ergueu sua máscara e baixou o olhar respeitosamente. O deus
estendeu a mão até o rosto do jovem, traçando as linhas do próprio rosto. O
garoto agora era parecidíssimo com ele. A pele marcada pelas décadas fora
arrancada do novo deus quando ele ascendeu, se tornando jovem novamente.
Em seu auge, para sempre.
— Ó, mais honrado de todos nós — disse Belen, se ajoelhando. Ele
ofereceu ao novo deus um pacote embrulhado que tirou da bolsa em seu
quadril: uma túnica carmesim de seda, para substituir o manto azul-claro
horroroso que vestia no momento. — Nós o saudamos e oferecemos o sangue
de seus inimigos em tributo ao seu nome, como prova de nossa eterna
lealdade. Estamos aqui para protegê-lo com nossas vidas até que chegue a
hora de o senhor renascer novamente ao poder.
As palavras eram como cascalho na garganta do novo deus.
— E para além disso.
— Sim, meu senhor — disse Belen.
Mais caçadores se aproximaram por detrás de Belen, todos encobertos com
o preto que lhes era característico. Arrastavam uma figura vestida com um
manto azul-claro.
— Traga-o até mim — disse o novo deus a Belen.
Dois SUVs pretos com os faróis apagados se aproximaram, vindos de uma
rua próxima, e passaram sobre a grama até eles. Os Cadmídeos começaram,
então, a trabalhar. Abriram lonas no gramado do Central Park e enrolaram os
caçadores mortos nelas. Reviraram o solo. Substituíram a grama
ensanguentada. Despejaram as carcaças brutalizadas no porta-malas de mais
um SUV que estacionava atrás deles.
Ele sabia que o mesmo ritual estava sendo realizado por outras linhagens
em todo o parque.
O prisioneiro se debateu novamente enquanto era carregado adiante,
atingindo os caçadores mais próximos com o crânio, como um animal
raivoso. Eles haviam cortado os tendões de seus tornozelos para preveni-lo de
usar sua velocidade elevada para escapar. Ótimo.
Os caçadores o forçaram a se ajoelhar. O novo deus se abaixou para
arrancar o capuz de sua cabeça.
Olhos dourados queimavam enquanto o encaravam, e suas faíscas de poder
rodopiavam em ira. Sangue escorria da ferida em sua testa, manchando sua
pele e seu manto outrora luminosos
— Seu último poder útil foi tomado de você — disse o novo deus. Segurou
um punhado do cabelo marrom encaracolado do deus antigo e forçou sua
cabeça para trás, fazendo-o olhar para cima.
— Eu sei o que você deseja, Assassino de Deuses — disse o deus antigo, na
língua antiga. — E você nunca a encontrará.
Ele precisava apenas saber que ela não havia sido destruída. A fúria do
novo deus era seu tipo peculiar de euforia. Levou a lâmina afiada de sua
espada até a pele macia e mortal do deus antigo.
O novo deus sorriu.
— Trapaceiro. Mensageiro. Viajante. Ladrão — disse o novo deus. Então,
enfiou a lâmina através dos ossos sulcados da coluna do prisioneiro. — Nada.
O sangue jorrou do ferimento. O novo deus se embebedou com a visão do
deus antigo amedrontado — a dor, a descrença — conforme seu poder se
esvaecia. Uma pena que o novo deus não podia obtê-lo, somando-o ao seu.
— É assim que as coisas são, não é mesmo? — disse o novo deus. Ele se
inclinou, assistindo enquanto o último vestígio de vida deixava os olhos do
deus antigo. — Assim eram com seu pai, e com o pai dele. Os deuses antigos
devem morrer para permitir que os novos ascendam.
O parque estava silencioso ao redor deles, com exceção dos ruídos
molhados da lâmina do novo deus, em movimento de serra, e o revigorante
crac assim que ele finalmente separou cabeça e corpo. O novo deus levantou
a cabeça de Hermes alto o bastante para que seus seguidores a vissem.
Os caçadores uivaram de excitação, batendo os punhos contra o peito. O
novo deus lançou um último olhar para a cabeça antes de jogá-la na lona mais
próxima junto com os outros restos. Até o amanhecer, não restará nenhum
sinal dos últimos oito deuses que surgiram como raios dentro dos limites do
Central Park ou daqueles caçadores que tombaram na tentativa assassiná-los.
A cidade vibrava à sua volta, inchada de caos, a ponto de doer. Ela cantava
ao novo deus a canção do terror que estava por vir. Ele entendeu aquele
anseio — de ser libertada.
— Eu sou Fúria.
O novo deus se ajoelhou, mergulhando os dedos na lama sangrenta. — Eu
sou seu mestre. Levou os dedos até as bochechas. — Eu sou sua glória.
Os caçadores ao redor levantaram suas máscaras para fazer o mesmo,
esfregando a terra molhada por seus rostos ansiosos.
Uma nova era estava ao alcance, esperando ser dominada por aquele forte o
bastante para ousar fazer isso.
— Agora — disse o novo deus —, nós começamos.
UM

SUA MÃE UMA VEZ LHE DISSE QUE A ÚNICA FORMA DE REALMENTE CONHECER
alguém era lutando com essa pessoa. Na experiência de Lore, a única coisa
que lutar revelava mesmo era a área do corpo em que o oponente menos
queria ser atingido.
Para seu oponente, essa área era claramente a nova tatuagem no peito
esquerdo, que ainda estava coberta com um curativo.
Lore ergueu suas luvas de boxe de 400g e deixou que elas absorvessem
outro golpe desleixado. Seus tênis guincharam no tatame azul e barato
conforme recuava um passo para trás. As tiras de fita adesiva prateada que
mantinham o ringue improvisado no lugar começavam a descolar após cinco
lutas naquela noite, com toda a umidade e calor. Ela grunhiu enquanto selava
a fita mais próxima com o calcanhar.
Suor escorria por seu rosto até que tudo que pudesse sentir fosse o gosto de
sal. Lore recusou-se a secá-lo, mesmo quando o suor fez com que seus olhos
ardessem. A dor era boa. A mantinha focada.
Isso — a luta — nada mais era do que um hábito ruim recente, que lhe
trouxe uma libertação da qual necessitava desesperadamente após a morte de
Gil, seis meses atrás. Mas a promessa original de ser só essa luta
desaparecera assim que sentiu aquela onda familiar de adrenalina.
Uma luta fora o suficiente para abafar o luto ensurdecedor, tirá-la de dentro
de seus pensamentos e levá-la de volta ao corpo. Duas lutas a desconectaram
da profunda dor no coração. Três trouxeram uma surpreendente quantidade
de dinheiro.
E agora, semanas depois, a luta de número quinze estava proporcionando
exatamente o que ela queria desesperadamente naquela noite: uma distração.
Lore disse a si mesma que poderia parar a qualquer momento, quando
aquilo não mais a fizesse se sentir bem. Quando dragasse muito à superfície o
que ela havia enterrado.
Mas Lore não chegou a esse ponto. Ainda não.
O porão apertado do restaurante Red Dragon — Fina Culinária Chinesa —
estava sufocante. A pressão quente de corpos muito amontoados cercava o
tatame. A multidão se movimentou junto com os lutadores, formando um
cordão não oficial no ringue conforme seguravam com firmeza os copos
descartáveis e tentavam não derrubar suas bebidas caras. Notas de dinheiro e
apostas fluíam em volta dela, de mão em mão, até alcançarem Frankie, o
organizador das lutas. Lore olhou de relance para o homem enquanto ele
arrumava pedidos e apostas das próximas duas lutas, sempre menos
interessado no vencedor do que no quanto ganharia.
Vapor descia escada abaixo, vindo da cozinha acima deles, dando ao ar um
aspecto acetinado. O cheiro de frango kung pao era uma alternativa deliciosa
ao fedor de vômito velho e cerveja choca que assombrava as boates
clandestinas que sediavam o ringue.
A multidão parecia não se importar; se aquilo era necessário para que
tivessem a ilusão de estarem cheios de adrenalina, tudo bem. A lista de
convidados exclusivos de Frankie parecia bem menos exclusiva esses dias:
modelos, pessoas do mundo artístico e executivos que passavam pequenos
sachês de pó branco entre si eram agora frequentemente acompanhados por
alunos de escolas particulares testando os limites da apatia dos pais.
Seu oponente era um garoto quase da sua idade — todo molenga, com a
pele sem marcas e uma confiança sem causa. Ele riu, apontando um dedo na
direção dela conforme a escolhia entre todos os lutadores disponíveis de
Frankie. Lore decidira que o destruiria e devastaria qualquer pedaço
esfarrapado que sobrasse de seu orgulho muito antes de ele chamá-la de
bebezinha e soprar um beijo bêbado em sua direção.
— Vou tentar adivinhar — disse ela, por entre o protetor bucal. Lore
acenou a cabeça na direção do curativo no peito do adolescente, que cobria
uma tatuagem recente —, foco, força e fé? Carpe diem?
As sobrancelhas dele se abaixaram com a multidão caindo na risada. O
garoto deu um soco na direção da cabeça de Lore, grunhindo com o esforço.
O movimento, combinado com sua pouca força, deixou o peito aberto. Lore
tinha um alvo claro quando bateu na pele macia e tatuada.
Os olhos do garoto saltaram e sua respiração ficou ofegante. Ele se ajoelhou
no tatame.
— Levante-se — disse Lore. — Você está envergonhando seus amigos.
— Sua… sua imbecil… vad… — disse o garoto, com dificuldade, entre o
protetor bucal. Lore se perguntou quanto tempo levaria para que ele perdesse
a cabeça, e agora tinha a resposta: cinco minutos.
— Tenho certeza de que você não devia me chamar disso — disse ela, o
rodeando —, até porque é você quem está de quatro.
Ele se levantou com esforço, bufando de ódio. Ela revirou os olhos.
Perdeu a graça, não é? — pensou Lore.
Gil lhe diria para sair de perto desse garoto idiota — ele sempre fora rápido
em lembrar Lore, com aquele jeito de avô, sem julgamentos, que não era
preciso se jogar em todas as brigas que aparecessem. A verdade era que ele
teria odiado essa situação, e Lore também sofria com essa culpa de
desapontá-lo.
Mas a jovem havia tentado outras alternativas. Nada a ajudara a superar a
maré esmagadora da perda como uma boa luta. E agora não era apenas da
morte de Gil que ela precisava fugir; havia um novo medo a rasgando por
dentro.
Era agosto, e a caçada havia retornado à sua cidade.
Apesar de seus melhores esforços para seguir em frente, para esquecer a
vida sombria que havia deixado para trás e entrar no brilho ensolarado de
uma vida melhor, alguma parte de sua mente ainda estava sintonizada com a
lenta contagem regressiva dos dias. Seu corpo havia ficado mais firme; seus
instintos, mais afiados, como se estivesse se preparando para o que estava por
vir.
Ela começou a ver rostos familiares pela cidade há umas duas semanas,
enquanto fazia os últimos preparativos para hoje à noite. O choque a atingiu
como uma faca nos pulmões; cada vez que os via, confirmava que toda a sua
esperança e toda a sua súplica silenciosa foram em vão. Por favor — pensou
ela, repetidamente, nos últimos meses — faça com que esse ciclo seja em
Londres. Faça com que seja em Tóquio.
Faça com que seja em qualquer lugar, menos em Nova York.
Lore sabia que não deveria ter corrido o risco de sair esta noite, não quando
a matança estaria no auge. Se um único caçador a reconhecesse, as linhagens
não estariam apenas caçando deuses. Também estariam atrás do seu couro.
De canto de olho, Lore viu Frankie checar seu relógio de bolso ridículo,
dando-lhe o sinal para finalizar a luta. Ela supôs que o homem tinha que ir a
algum lugar ou sair para deitar em uma cama de dinheiro.
— Mas já? — perguntou Lore.
Aparentemente, o álcool decidiu bater no garoto de uma vez só. Ele
perseguiu Lore pelo tatame balançando os punhos desajeitados, ficando mais
irritado quando as risadas explodiram da multidão.
Conforme ela se virava para se esquivar de um golpe, seu colar pulou para
fora de sua blusa. O pingente nele, uma pena dourada, refletiu a luz fraca e
brilhou. A luva de seu oponente o acertou. De alguma forma, ele deve ter
prendido a luva na corrente fina, porque, assim que Lore se movimentou de
novo, o fecho se rompeu e, de repente, o pingente estava no chão aos seus
pés.
Lore usou os dentes para abrir a tira de velcro da luva e deixar a mão livre.
Ela se agachou quando o oponente desferiu outro golpe, recuperando o colar
e o enfiando no bolso traseiro de seus jeans, por segurança. Quando calçava a
luva novamente, seu corpo se inflamou com uma nova onda de remorso.
Quem lhe deu o colar foi Gil.
Lore voltou-se para o garoto, lembrando a si mesma que não podia matá-lo.
Poderia, entretanto, quebrar o narizinho lindo dele.
O que, para a felicidade da multidão, ela fez.
Sangue explodiu do rosto dele, enquanto ele xingava.
— Acho que já passou da hora de o bebezinho dormir — disse ela,
lançando um olhar de volta para Frankie para ver se ele se lembraria de
finalizar a luta. — Na verdade…
Ela viu o punho vindo em sua direção com a visão periférica e se virou bem
a tempo de levar um soco na lateral da cabeça, em vez de no olho. O mundo
escureceu, então explodiu novamente em claridade e cor, mas ela conseguiu
se manter de pé. O garoto cantou vitória, jogando os braços para o alto, com
o nariz ainda sangrando. Ele deu uma guinada na direção dela, e, no
momento em que ela percebeu o que estava acontecendo, já era tarde.
Lore levou instintivamente as luvas até o peito em defesa, mas não era onde
ele estava mirando. O garoto passou o braço ao redor do pescoço dela e
esmagou os lábios nos dela.
O pânico era cegante, explodindo da pele de Lore como gelo; isso a trancou
fora da própria mente. Ele pressionou o corpo dele mais firmemente, e sua
língua desajeitadamente na dela, enquanto a multidão uivava ao redor deles.
Algo se abriu dentro da jovem, e a pressão que vinha sendo acumulada em
seu peito por semanas se libertou com um rugido de fúria. Ela levou o joelho
com força entre as pernas dele. O rapaz caiu como se ela tivesse cortado sua
garganta, gritando enquanto ia em direção ao chão. Então, ela atacou.
A próxima coisa da qual Lore se lembra foi de ser puxada para longe do
chão, ainda chutando e rosnando. Suas luvas estavam cheias de sangue, e o
que restou do rosto dele estava irreconhecível.
— Pare! — Grande George, um dos seguranças de Frankie, deu-lhe uma
leve sacudidela. — Querida, ele não vale a pena!
O coração de Lore esmurrava suas costelas, batendo rápido demais para que
ela recuperasse o fôlego. Seu corpo estremecia enquanto Grande George a
colocou de volta no chão, segurando-a, até que ela assentiu com a cabeça,
indicando estar bem. Da parte dele, Grande George foi lentamente até o
garoto, gemendo no tatame, e o cutucou com o pé.
Conforme as batidas no ouvido de Lore diminuíram, ela percebeu que o
porão estava em silêncio total, com exceção dos sons que vinham da cozinha
no andar de cima.
Um sentimento de horror rastejou por dentro dela, dando um nó em seu
coração. Dentro de suas luvas, seus dedos se fechavam ao ponto de ficarem
doloridos. Ela não apenas perdera o controle, mas escorregara de volta para o
lado de si mesma que pensou ter matado há anos.
Essa não sou eu — pensou ela, limpando o suor do buço. — Não mais.
A vida era mais do que isso.
Desesperada para garantir o pagamento da noite, Lore ignorou a bile e o
ódio intenso que sentia pelo pedaço de imundície choramingando no chão e
deu um sorriso acanhado. Ela levantou as mãos e deu de ombros.
Os espectadores a recompensaram com gritos animados, levantando os
copos no ar.
— Você não ganhou… você roubou — disse o garoto. — Não foi justo…
você roubou!
Esse era o problema de garotos como ele. O que ele sentia naquele
momento, aquela raiva, não era o mundo caindo sobre ele. Era uma ilusão
sendo quebrada, aquela que o fez pensar que merecia ter tudo, e que isso lhe
era devido simplesmente por existir.
Lore tirou as luvas e inclinou-se sobre o garoto. A multidão se calou, com
rostos excitados, como corvos famintos.
— Quem sabe na próxima você ganhe no choro — disse ela, docemente,
enquanto pressionava o curativo dele com força, dessa vez com a mão
despida. O gongo soou por cima dos gritos de ultraje do rapaz, finalizando a
luta. Grande George o arrastou de volta para o seu grupo de amigos.
Lore começou a andar na direção de Frankie. Foi um erro vir aqui nesta
noite. Mesmo agora, ela não conseguia distinguir se seu corpo queria sair
correndo dali ou gritar.
Ela foi até a borda do ringue quando a próxima luta foi anunciada.
— Próxima luta: Áurea contra Gêmeos.
Lore lançou a ele um olhar incomodado, que foi retribuído com o
característico sorriso despreocupado do organizador de lutas. Frankie
levantou cinco dedos. Ela balançou a cabeça, e ele levantou mais três. Notas
amassadas balançavam no ar ao redor dela, vibrando conforme a multidão se
apressava para fazer suas apostas.
Ela precisava ir para casa. Sabia disso, mas…
Lore ergueu dez dedos. Frankie fez uma careta, mas gesticulou para que ela
voltasse ao ringue. Ela calçou as luvas novamente e se virou. Se esse era um
dos amigos do garoto, ela pelo menos se divertiria.
Não era.
Lore cambaleou para trás. Seu oponente estava de pé bem onde a luz
lançada pela luminária acima não alcançava, claramente dando boas-vindas à
escuridão. O jovem deu uns passos para frente, o suficiente para que o fraco
brilho capturasse a máscara de bronze que obscurecia seu rosto.
A respiração de Lore pesou em seus pulmões.
Caçador.
DOIS

UMA ÚNICA PALAVRA PASSOU COMO UMA LABAREDA EM SUA MENTE. — CORRA.
Mas seu instinto exigia outra coisa, e o corpo obedeceu. Ela entrou em
postura de combate, sentindo gosto de sangue enquanto mordia o interior de
sua boca. Cada parte de si parecia vibrar, eletrificada por medo e fervor.
Você é uma idiota — disse Lore a si mesma. Teria que matá-lo na frente de
todas essas pessoas ou encontrar um jeito de levar a briga para fora e fazer
isso lá. Aquelas eram as únicas opções que permitiu-se considerar. Lore não
estava prestes a morrer em um tatame encharcado de bebida no porão de um
restaurante chinês que não servia nem mesmo mapo tofu.
A altura do oponente era muito superior à de Lore, de tal modo que a fez
tentar fingir que não se preocupava com isso. Ele tinha pelo menos quinze
centímetros de vantagem sobre ela, apesar de ela mesma ser alta. A blusa
cinza simples e a calça de moletom que usava eram justas demais para ele,
esticando-se sobre sua forma atlética. Cada músculo de seu corpo era
perfeitamente definido, como os daqueles homens que ela apenas vira nos
vasos antigos de seu pai. A máscara que usava era a de um homem com
expressão raivosa, como se soltasse um grito de guerra.
A Casa de Aquiles.
Bem — pensou Lore, de forma vaga. — Merda.
— Não luto com covardes que não mostram o rosto — disse ela, com
frieza.
A resposta foi calorosa, fazendo vibrar uma risada reprimida.
— Imaginei.
Ele tirou a máscara e a deixou no canto do ringue. O resto do mundo foi
consumido em chamas.
Você está morto.
As palavras ficaram presas em sua garganta, sufocando-a. A multidão
empurrou Lore para a frente, em direção ao tatame, mesmo enquanto ela dava
um passo para trás, mesmo enquanto lutava pelo ar que não parecia chegar
até ela. Os rostos à sua volta se transformaram em borrões na escuridão que
permeava sua visão.
Você deveria estar morto — pensou Lore. — Você morreu.
— Está surpresa? — Havia um tom esperançoso na voz dele, mas seus
olhos estavam buscando por algo. Ansiosos.
Castor.
Os seus traços de outrora prometiam se tornar algo parecido com o que ela
via ali, mas estavam ainda mais afiados e definidos agora que a plenitude da
juventude se esvaiu de seu rosto. Era assustador o quando sua voz estava
grave.
Por um terrível momento, Lore se convencera de que estava em um sonho
lúcido. Que isso apenas terminaria da mesma forma que os sonhos sobre
quando seus pais e irmãs ainda estavam vivos. Não tinha certeza se deveria se
sentir enjoada ou começar a chorar copiosamente. A pressão foi se
acumulando em seu crânio, imobilizando-a, sufocando qualquer alegria que
possa ter vazado como sangue em meio ao choque.
Mas Castor Aquileu não havia sumido. As dores da luta anterior de Lore
ainda estavam ali, latejando. O cheiro de bebida e fritura estava em todo
canto. Ela sentia cada gota de suor grudando em sua pele, correndo por seu
rosto e costas. Isso era real.
Mas Lore ainda não conseguia se mexer. Não conseguia parar de olhar para
o rosto dele.
Ele é real.
Ele está vivo.
Quando um sentimento finalmente quebrou todo aquele torpor, não foi o
que ela esperava. Era raiva. Não do tipo selvagem, que consome, mas tão
afiada e impiedosa quanto as espadas com as quais treinavam no passado.
Castor estava vivo e a deixara sofrer com o luto por sete anos.
Lore passou uma das mãos enluvadas pelo rosto, tentando recuperar o foco,
mesmo quando parecia que seu corpo se dissolveria. Já era travado um
combate ali. Ele encaixara o primeiro golpe, mas esta era a pessoa que
outrora fora seu melhor amigo, e ela sabia a melhor forma de retribuir.
— Por que eu estaria? — disse Lore, com dificuldade. — Não faço ideia de
quem você é.
Um toque de incerteza passou pela expressão de Castor, mas desapareceu
quando ele ergueu uma sobrancelha e deu a ela um pequeno sorriso como
sinal de que esperava por isso. Ao lado de Lore, vários homens e mulheres na
plateia faziam um burburinho e começaram a cochichar.
Não havia como tirá-lo dali sem fazer uma cena, e não havia como ela
deixá-lo sair desse porão ileso depois de tudo que aconteceu. Lore deu meia-
volta para dar o sinal a Frankie, na esperança de que ninguém pudesse ver seu
coração tentando fugir de seu peito a marteladas.
O gongo soou. A multidão vibrou. Ela entrou em posição de combate.
Vá embora — pensou ela, encarando Castor por cima das luvas. — Me
deixe em paz.
Ele não se importara o suficiente para tentar encontrá-la nos últimos sete
anos, então qual era sua intenção agora? Zombar dela? Tentar forçá-la a
voltar?
Não conseguiria isso nem sonhando.
— Por favor, seja gentil. — Castor ergueu as mãos, olhando para fenda em
uma das luvas que pegou emprestado. — Não treino há um tempo.
Ele não apenas estava vivo, como também terminara o treinamento de
curandeiro em vez de lutador, como planejado. Sua vida seguira exatamente
como deveria, sem que ela estivesse presente para atrapalhar.
E ele nunca foi atrás da amiga. Nem quando ela mais precisou dele.
Lore manteve seus passos leves, rodeando-o. Sete anos se estendiam entre
eles, como o mar vinho-escuro.
— Não se preocupe — disse ela, friamente. — Isso vai terminar rápido.
— Não tão rápido, espero — disse ele, com outro sorriso aparecendo em
seus lábios.
Seus olhos escuros capturaram a luz das lâmpadas que balançavam no teto,
e suas íris pareciam faiscar. Ele tinha um nariz longo e retilíneo; apesar de ter
sido quebrado inúmeras vezes nos treinamentos, seu maxilar foi esculpido em
ângulos perfeitos e suas maçãs do rosto eram como lâminas.
Lore desferiu o primeiro soco. O jovem se esquivou para o lado para evitá-
lo. Era mais rápido do que ela lembrava, mas seus movimentos vacilavam.
Por mais forte que seu corpo aparentasse ser, Castor estava fora de ritmo.
Isso a fez pensar em uma máquina enferrujada se esforçando para voltar ao
trabalho habitual. Como se fosse uma confirmação das suspeitas de Lore, ele
se esquivou um pouco demais e precisou se equilibrar para não cair.
— Você está aqui para lutar ou não? — rosnou ela. — Sou paga por luta,
então pare de desperdiçar meu tempo.
— Nem sonharia com isso — disse Castor. — A propósito, você ainda
deixa o ombro direito cair.
Lore fez uma careta, resistindo ao impulso de corrigir a postura. Eles já
estavam perdendo a audiência. O chão do porão estremeceu com a multidão
batendo forte com os pés no mesmo compasso, tentando forçar uma mudança
no ritmo da luta.
Castor pareceu perceber isso também — ou então foram as bebidas que
jogaram nele —, porque seu semblante agora exibia um foco recém-
encontrado. As lâmpadas continuavam a balançar nos cordões, projetando
sombras. Ele se entrelaçou para dentro e para fora delas, como se soubesse se
tornar escuridão encarnada.
Fez uma finta para a direita e lançou um soco hesitante no ombro dela.
A fúria pintou o mundo de Lore de branco escaldante. Isto mostrava o quão
pouco ele a respeitava agora. Não a via como uma oponente digna, mas como
uma piada.
Lore bateu com o punho no rim de Castor e, enquanto ele se curvava, sua
mão esquerda esmurrou a orelha do rapaz. Ele cambaleou até cair apoiado em
um dos joelhos, quando não conseguiu recuperar o equilíbrio.
Ela desferiu outro soco, dessa vez direcionado ao rosto, mas ele ainda tinha
reação suficiente para bloqueá-lo. O impacto reverberou pelo braço da jovem.
— Continue brincando comigo — alertou ela. — E veja no que isso vai dar.
Castor a encarou por entre o cabelo escuro e bagunçado, que caía nos olhos,
e a pele de marfim dele estava corada. Ela o encarou de volta. Suor pingava
do queixo de Lore, e seu corpo ainda pulsava com a força da tempestade
dentro dela. As luzes balançantes dançavam nas íris escuras dele novamente,
quase de maneira hipnótica. O último resquício de humor havia deixado o
rosto dele, como se ela o tivesse arrancado de lá.
Ele se lançou para frente, passando um braço por detrás dos joelhos dela e
puxando-os para a frente. Em um momento, Lore estava em pé, no outro,
com as costas estateladas no chão, ofegando para conseguir puxar o ar. O
público foi ao delírio.
Levantou uma perna para chutá-lo para longe e ouviu a voz agradável de
Frankie alertar:
— Sem chutes!
Certo.
Ela rolou com força para a esquerda, chegando à beirada do tatame e
ficando novamente de pé. Dessa vez, quando lançou uma rajada de socos na
direção de Castor, ele estava preparado, retribuindo golpe por golpe. Ela se
esquivou e balançou, se afundando na correnteza da luta. Seus lábios se
curvaram em um sorriso involuntário.
Houve um movimento acima do porão enquanto alguém descia as escadas.
Aquele único olhar custou à Lore — Castor recuou o braço e lançou um
golpe poderoso no estômago dela.
Ela arfou, tentando não se curvar. Os olhos de Castor se alargaram, quase
que amedrontados.
— Você está b…? — disse ele.
Lore abaixou a cabeça e se dirigiu direto ao peito dele. Foi como bater em
uma parede de cimento. Cada articulação de seu corpo sentiu o baque, e sua
visão estava cheia de pontinhos pretos, mas ele caiu, e ela foi junto.
Castor rolou com ela para que pudesse ficar por cima, tendo cuidado para
não esmagá-la com seu peso conforme a pressionava no tatame. Lore se
satisfez por ouvi-lo respirando com a mesma dificuldade que ela.
— Você morreu — disse ela, com pouco ar, enquanto lutava contra o corpo
dele.
— Não tenho muito tempo — disse ele. Então, ele mudou para a língua
antiga. — Preciso da sua ajuda.
O sangue de Lore gelou com aquelas palavras, ditas em uma língua que ela
tentava se forçar a esquecer.
— Algo está acontecendo — disse ele. A luta havia aquecido o corpo dele
de um jeito que quase queimava ao toque. — Não sei em quem posso confiar.
Lore virou o rosto.
— E isso é problema meu? Estou fora.
— Eu sei, mas também preciso alertar você… droga — sussurrou Castor, e
então xingou de novo na língua antiga, só por garantia. Ele trocou de posição
para que Lore ficasse sobre ele. Ela estava vagamente ciente da audiência
entoando a contagem obrigatória de oito segundos. Tarde demais, percebeu
que o rapaz estava deixando-a ganhar.
— Idiota — disse ela.
O olhar de Castor estava fixo na escada, na figura que ela vira de relance
antes. Evander — parente de Castor e eventual parceiro de brincadeiras deles
quando eram crianças.
Van vestia um manto preto simples de caçador, com o cintilar de algo
dourado fixado logo acima do coração. Sua pele escura brilhava com o vapor
que vinha de trás dele, da cozinha no andar de cima, em um tom tão frio
quanto o de uma pérola. Ele havia aparado o cabelo rente à pele, o que só
servia para destacar o quão devastadoramente bonito ele era. Seus olhos eram
nítidos enquanto ele sinalizava algo para Castor.
— Acabou o tempo — disse Castor. Lore não tinha certeza se ele estava
falando da luta ou de outra coisa.
— Espere — disse Lore, mesmo sem saber por quê. Mas Castor já a havia
levantado de cima dele. Suas mãos se demoraram na cintura dela um segundo
a mais do que eles pareceram perceber.
— Ele está procurando algo, e eu não sei se é você — disse Castor. A
cabeça de Lore ficou aérea conforme aquelas palavras eram absorvidas. Só
existia um ele que importava. Ela lutou para puxar o próximo fôlego. Lutou
contra a crescente estática nos ouvidos.
— Você pode estar cansada do Ágon, mas não acho que o Ágon se cansou
de você. Tenha cuidado. — O olhar dele se tornou intenso quando se abaixou
e sussurrou em seu ouvido. — Você ainda luta como uma Erínia.
Castor se afastou, fazendo reverência, aceitando as vaias da multidão e um
copo descartável que lhe foi oferecido. Abriu caminho em meio à plateia,
indo direto para as escadas. Conforme Castor o alcançava, Evander apertou
seu braço, e, juntos, sumiram na cozinha abafada.
Alguém agarrou o pulso de Lore, tentando erguer seu braço no ar, mas Lore
já estava em movimento, passando por entre a multidão.
O que você está fazendo? — gritou sua mente. — Deixe-os ir!
Ela trombou com alguém perto das escadas, com força o suficiente para que
ele cambaleasse para trás, contra a parede mais próxima. Lore girou no
próprio eixo com parte de um pedido de desculpas já escapando de seus
lábios, quando viu quem era.
Merda.
A pele dele era branca como osso, seus olhos escuros se arregalaram de
uma forma quase cômica quando encontraram os dela. Descolado, com o
cabelo raspado de um jeito meio hipster. Porte magro e jeans justos. Colar
feito de crina de cavalo trançada.
Miles.
Inacreditável — pensou ela. Como diabos essa noite conseguiu ficar pior?
— Espere aqui! — ordenou ela.
Com um aceno de cabeça atordoado de Miles, Lore correu para a cozinha,
passando por cozinheiros irritados e pelo véu de vapor até encontrar a porta
de emergência que estava desativada e irromper na rua escura.
O ar brilhava em um tom de vermelho que vinha das lanternas traseiras do
SUV acelerando para longe. Um único copo descartável rolou até seus pés,
com algo escuro manchado na lateral.
Tinta.
Ela se virou em direção à fraca luz da luminária de emergência acima da
porta, tentando analisar os traços irregulares de cada letra. A pulsação batia
selvagemente em suas têmporas.
Apodidraskinda.
Uma brincadeira de criança. Esconde-esconde.
Um desafio. Venha me encontrar.
Lore jogou o copo fora em uma lixeira ali perto e saiu dali.
TRÊS

QUANDO LORE VOLTOU PARA O PORÃO, O CALOR EM SEU CORPO HAVIA


diminuído. Ela não viu Miles quando passou por entre a multidão e foi pegar
sua mochila e o pagamento da noite com Frankie. Ela ouviu vagamente as
instruções que ele deu sobre o local das lutas da próxima semana, contou o
dinheiro para se certificar que ele não lhe estava dando um calote e tentou
ignorar o latejar em suas veias.
Ele está procurando por algo, e eu não sei se é você.
Um arrepio passou por ela. Balançou a cabeça, tirando a voz e o rosto de
Castor da mente, a fim de se preparar para o que estava por vir.
Miles a esperava do lado de fora. Nos poucos minutos que levaram para que
Lore voltasse à rua, ele já tinha dado um jeito de ficar sem fôlego — por
andar rápido demais, por ensaiar o discurso que estava prestes a dar ou por
uma combinação das duas coisas. Ele se acalmou quando a viu saindo pela
porta, fingindo que estava só checando o celular esse tempo todo.
De todas as coisas que esperava ouvir dele, “Quer comer alguma coisa no
Martha’s?” não era uma delas.
Lore hesitou. O que ela queria mesmo era ir para casa, tomar um banho e
dormir pelos próximos seis dias, até que essa caçada nojenta chegasse mais
uma vez ao fim e o próximo ciclo de sete anos começasse. Mas Miles tinha
um efeito tranquilizante nela.
— Claro — disse Lore, forçando indiferença. Ainda parecia que havia
eletricidade passando por debaixo de sua pele. — Parece bom para mim.
Ele ergueu uma sobrancelha.
— Dessa vez é você quem paga, sério.
— Eu? — perguntou ela, se deixando levar de volta ao confortável ritmo
entre os dois. — Pode ser que eu use todo o meu poder de sedução e consiga
nossa comida por conta da casa.
— Quando, em toda sua vida — Miles começou a dizer, genuinamente
curioso —, isso funcionou?
— Me respeite — disse Lore. — Eu sou adoravelmente persuasiva.
Tentou lançar uma piscadela sedutora para ele, mas seu rosto estava
dolorido com os golpes que levara, e o inchaço provavelmente também não
ajudou muito.
Miles abriu a boca para dizer algo, mas mudou de ideia.
— O que foi? — perguntou ela.
— Nada — disse ele, olhando para o céu nublado. — Vamos, antes que a
gente acabe tomando um banho. Nós dois sabemos que só você precisa dele.
O ar gotejava com a umidade, perfumado com o cheiro dos sacos de lixo
empilhados para coleta da manhã seguinte. Um táxi passou muito rápido,
levantando uma onda de água de esgoto. O tempo estava chuvoso há dias, e
Lore sabia que mais chuva estava por vir.
— Estou usando uma requintada fragrância de Lo Mein e suor — disse
Lore. — Com você, gosto não se discute.
Isso, é claro, não era verdade. Miles cuidava do corpo como se fosse uma
obra de arte, deixando-o falar por ele — seu temperamento, seus interesses e
as pessoas que carregava em seu coração. Sua pele era tomada por uma
variedade de tatuagens, indo de belíssimos desenhos florais e vinhas que se
entrelaçavam no peito e rostos de arte moderna que ele mesmo desenhara a
montanhas, olhos e conjuntos de formas cujo significado apenas ele sabia.
Lore sempre adorou as tatuagens simples de letras do alfabeto hangul em seu
pescoço, por causa da história por trás delas. A frase que formavam era o que
a avó de Miles costumava dizer a ele quando ele ligava, aos domingos, para
ela e para os pais, que moravam na Flórida. Eu te amo mais a cada nascer do
sol. Quando ele a mostrou para Lore, ela o repreendeu por fazer outra
tatuagem, lambendo o dedo e fingindo apagá-la, mas ao mesmo tempo ficou
radiante de orgulho durante todo o resto daquela noite.
Eles andaram pela estação de metrô Canal Street para pegar a linha A até a
125th Street. Lore estava na metade da escada quando ouviu o metrô se
aproximando e sentiu a rajada de ar que o anunciava chicotear pela estação.
Ela correu, tirando seu MetroCard do bolso traseiro e o deslizando pelo leitor.
Miles, que nunca se preparava antecipadamente, deixou escapar um som
sufocado e se atrapalhou todo com a carteira.
— Espera… não… aff… — Miles passou o cartão de novo, recebendo uma
mensagem de erro.
Eram três e meia da manhã, mas o serviço do metrô era mais lento nas
horas fora de pico, fazendo o vagão ficar cheio. Ela segurou com o antebraço
a porta que fechava bem quando Miles passou correndo por ela.
Ele esbarrou no ombro da amiga quando o metrô deu um solavanco para
frente.
— Martha’s — disse ela. — Faminta.
— Táxi — disse ele. — Fácil.
— Dinheiro — disse ela. — Desperdício.
O vagão esvaziou na estação Columbus Circle, liberando os assentos na
frente deles. Miles sentou-se e imediatamente pegou o celular. Lore respirou
fundo, esfregando a mão na testa. Com o corpo inerte, o caos dos
pensamentos era tudo que lhe restava.
Ele está procurando por algo, e eu não sei se é você.
Lore já estava abalada por ver os caçadores na cidade. Sabia que deveria
temer que Aristos Cadmou — ou seja lá quem ele havia se tornado como
deus — a encontrasse. Seria ainda mais cuidadosa agora e deixaria a cidade
mais tarde naquele dia, se afastando das lutas e dele. De todos eles.
Mas o sentimento predominante não era o de pânico. Lore sabia que
poderia se esconder, porque vinha fazendo isso com sucesso nos últimos três
anos. Em vez disso, havia uma inquietação em seu corpo da qual não
conseguia se desfazer, uma rigidez indesejável no peito toda vez que seus
pensamentos conjuravam o rosto de Castor.
Vivo — pensou, ainda se sentindo estranhamente atordoada com a ideia.
Miles emitiu um ruído de desânimo ao lado dela. Lore deu-lhe uma
olhadela assim que ele fechou um dos aplicativos de relacionamento.
— O que aconteceu com o carinha que você saiu na sexta-feira? —
perguntou Lore, dando boas-vindas à distração. — Pensei que ele tinha
potencial. Nick?
— Noah — disse Miles, fechando os olhos e respirando fundo, como se
buscasse forças. — Fui ao apartamento dele e conheci todos os seus quatro
hamsters.
Lore virou o corpo para ele.
— Mentira.
— Ele os nomeou em homenagem às suas primeiras-damas favoritas —
prosseguiu Miles, soando aflito. — Jackie tinha um chapeuzinho feito de
feltro e esmalte. Ele me fez dar comida para eles. Pequenas tiras de alface.
Alface, Lore. Alface.
— Por favor, para de falar alface — disse Lore. — Você pode dar um
tempo nos contatinhos, sabe.
— E você podia tentar achar alguns — disse ele. E se ajeitou um pouco na
cadeira. — Nunca perguntei isso antes porque não queria me intrometer.
— Mas…? — completou ela.
— Mas — disse ele — é que aquele cara na luta, e a forma como você
reagiu…
A mão de Lore apertou a alça da mochila.
— Como eu deveria agir com ele vindo até mim daquele jeito? — indagou
Lore. — Ele mereceu ter a cara destruída. Talvez assim ele pense duas vezes
antes de fazer isso com garotas.
— Ah não, ele definitivamente mereceu — disse Miles, rapidamente. — Ele
provavelmente merecia mais uns trinta segundos daquilo, pelo menos. Eu
estava falando do outro, na verdade.
— O outro — repetiu ela. Seu coração bateu forte.
— O cara que parecia ter sido feito no molde de cada uma das minhas
fantasias de adolescente — esclareceu Miles.
A voz de Castor era calorosa em sua mente. — Você ainda luta como uma
Erínia.
— O que tem ele? — disse Lore, interrompendo seus pensamentos.
— Pareceu que você o conhecia — disse Miles.
— Não conheço — disse ela bruscamente. Não mais.
Para impedir qualquer outra pergunta, ela encostou a cabeça no ombro de
Miles, deixando o balanço do metrô acalmá-la até que ela pudesse respirar
fundo pela primeira vez naquela noite.
O metrô disparou em direção à 125th Street, entrando no ritmo usual de
bruscos arranques e paradas em cada estação. Mas ela estava receosa demais
de fechar os olhos, devido à chance de o rosto de Castor, radiante e
esperançoso, aparecer para guiar suas memórias de volta ao mundo que ela
deixara para trás.

A cidade estava quieta quando os dois finalmente emergiram do metrô e


foram em direção a Martha’s Diner.
O Harlem era como uma terra desconhecida quando Lore se mudou para o
prédio de Gil na 120th Street; sua família sempre morou em Hell’s Kitchen, e
ela nunca teve motivo para ir na direção norte além da 96th Street. Mas
naquele momento quatro anos haviam se passado desde a morte de sua
família, e ela tinha passado a maior parte deles morando fora. A cidade tinha
a sensação de roupas velhas que ela outrora deu para outra pessoa. Nada
cabia. Tudo estava igual e, ainda assim, diferente.
No entanto, Lore valorizava os três anos que se seguiram, até seis meses
atrás, o derradeiro momento em que Gil faleceu — atropelado por um carro
enquanto atravessava a rua. Após isso, o primeiro instinto de Lore foi o de
fazer as malas e ir embora, apenas para descobrir que não era tão simples
assim. Gil deixara o prédio e todo o resto para ela.
Lore podia ter vendido o imóvel num piscar de olhos e ido para qualquer
lugar. Miles ficaria bem, mesmo que encontrar um lugar novo na cidade fosse
uma dor de cabeça. Mas cada vez que ela pensava seriamente a respeito, as
ruas pareciam envolvê-la. As fachadas familiares das lojas, as crianças
brincando na varanda duas casas ao lado, a Sra. Marks lavando a calçada toda
segunda às dez horas da manhã… tudo isso a acalmava. Tudo isso represava
aquela sensação de desmoronamento em seu peito, com todo o peso do
choque e do luto.
Então, Lore ficou. Mesmo com todas as exaustivas complicações e
superlotação, a cidade sempre foi seu lar. Ela entendia a personalidade difícil
da cidade e se sentia grata por ela ter contribuído para que desenvolvesse a
sua própria, porque, nesses momentos mais sombrios de sua vida, aquela
resiliência foi o que a salvou.
De certa forma, sentia que a nova vizinhança a tinha escolhido, e não o
contrário, e que ela queria pertencer a algo. E, de fato, Nova York era assim.
A cidade sempre tinha algo a dizer e, se você fosse paciente o suficiente, ela
o guiaria até onde precisa ir.
Eram quatro horas da manhã, mas Lore não estava surpresa em ver outra
pessoa se deliciando com uma refeição tão cedo na lanchonete, mesmo em
um mês tão calmo como agosto.
— Olá, Sr. Herrera — cumprimentou, limpando as solas dos tênis no
capacho velho.
— Olá, Lauren Pertho — disse ele, em meio a uma mordida de sanduíche.
Lore usava esse nome há anos, mas ouvi-lo ainda a pegava desprevenida.
— Como você está, Mel?
— Seca, pelo menos — disse Mel, por detrás do balcão. Tirou o olhar do
que contava na caixa registradora. — Os dois vão querer o de sempre para
viagem?
— Somos seres de hábitos — confirmou Miles. — Tem café descafeinado?
— Posso passar um na cafeteira para você — disse ela. — Chantilly?
Miles tinha o paladar de uma criança que comia sobremesa em toda
refeição.
— Granulado de chocolate?
— Deixa comigo, querido — disse Mel, entrando na cozinha para começar
a preparar o pedido. Um prato de Lenhador Triplo para Lore, e panquecas do
Mickey Mouse com gotas de chocolate, chantilly extra e xarope de bordo
para Miles.
— O quê? — disse Miles. — Nenhum comentário? Nenhuma piada sobre
minha ingestão de açúcar?
Levou um segundo para que Lore percebesse que ele falava com ela.
Levantou o olhar que estava focado no chão.
— Eu vou ter dor de barriga só de ver você comendo isso — disse Lore, se
recostando contra a lateral do assento revestido de vinil. Seu pulso saltou,
como se ela tivesse sido pega fazendo algo que não devia.
Miles a encarou por um momento, mas manteve a voz baixa.
— O engraçado é que isso vem de alguém que come uma refeição que
alimenta três pessoas.
— Apetite saudável — disse Sr. Herrera, enquanto pagava a conta —,
garota saudável.
— Exatamente — disse Lore, lutando para se concentrar nele. — Como o
bonitão do Bo está?
Bo, o Gato da Bodega, apareceu há dois anos, tomou a loja do Sr. Herrera
como seu reinado e nunca foi embora. A primeira vez que o viu, Lore o
confundiu com um rato extremamente grande e se perguntou seriamente se
não tinha subido do Mundo Inferior. Agora, sua atividade preferida para o
fim das manhãs de domingo era ficar sentada no banco em frente à loja e
compartilhar o salmão defumado de seu bagel com seu companheiro
temperamental.
— Ele comeu doze barras de chocolate, vomitou nos vegetais e destruiu
uma prateleira de papéis-toalha — disse Sr. Herrera, indo em direção à porta.
— E agora tenho que levar o demoninho para o veterinário.
— Precisa que eu fique de olho na loja para o senhor? — perguntou Lore.
Ela gostava de fazer isso, principalmente após o horário de pico da manhã,
quando os clientes iam tomar café, e ela podia sentar-se e ler um livro até os
clientes da hora do almoço chegarem para dizimar o estoque de sanduíches
pré-montados e sushi.
— Não desta vez — disse Sr. Herrera. — Meu sobrinho está aqui. Talvez
você tenha interesse em conhecê-lo. Ele é um ano mais novo que você, rapaz
inteligente…
— Ele sabe lavar roupa? — perguntou Miles, seriamente. — Ou cozinhar?
Ela precisa de alguém que possa preencher as lacunas em suas importantes
habilidades de vida.
Sr. Herrera riu, acenando enquanto ia embora para abrir a loja.
Lore não tinha certeza por que se ofereceu, sabendo que provavelmente
deixaria a cidade hoje. A presença de Castor, sem contar seu aviso, deveria
tê-la feito fugir imediatamente, com ou sem suprimentos.
Esfregou os braços onde ele a havia segurado, e ficou surpresa ao descobrir
que a pele ainda estava quente apesar do calafrio que percorria seu corpo. Ela
só não esperava por… ele. Ele, como um todo. Aqueles olhos mansos
conhecidos. Sua altura. A força de seu corpo.
A forma como sorriu para ela.
— Lore… Lore — repetiu Miles, dessa vez com mais intensidade.
Ela o fitou novamente.
— O que foi?
— Eu perguntei se é por causa de dinheiro.
Lore o encarou, confusa.
— O que é por causa de dinheiro?
Miles a lançou um olhar.
— Se for, eu posso começar a pagar aluguel. Mas pensei que Gilbert
também tinha deixado um dinheiro para você…
Fazendo jus à sua natureza exasperadamente bondosa e ao seu amor por
surpresas, Gil deixara para os seus dois “netos honorários” uma quantia
incrivelmente generosa de dinheiro, mas Lore ainda não tocara nele, exceto
para manutenção do prédio. Não parecia certo usá-lo para outra coisa.
— Esse dinheiro é do Gil — disse Lore.
Miles pareceu entender.
— Bom, você pode conseguir um emprego de meio período como barista,
assim como todo mundo. É basicamente um ritual de passagem. Você pode
até dar aulas de defesa pessoal.
Ela balançou a cabeça, tentando focar sua exausta teia de sentimentos e
pensamentos naquele único tema da conversa dos dois.
— Não vou cobrar ninguém que queira aprender como se proteger — disse
Lore, mantendo a voz baixa. O dono da academia na 125th Street a deixava
usar os equipamentos quando estava frio demais para correr do lado de fora
em troca de que ela desse aulas de graça, e isso era mais do que o suficiente
para ela. — E não é sobre dinheiro.
— Tem certeza? Porque você tem reutilizado os mesmos três Ziploc
nojentos pelos últimos três anos.
Ela levantou um dedo.
— Eles não são nojentos, eu os lavo sempre que uso. O que você está
fazendo para salvar o meio ambiente?
Ele ergueu as sobrancelhas. Naquele verão, estava estagiando na Câmara
Municipal e estudando desenvolvimento urbano sustentável na Universidade
Columbia.
— Não responda — disse ela.
Miles estava fazendo uma coisa que Lore odiava, que era esperar que ela
falasse enquanto a olhava com extrema compaixão e compreensão.
— Além disso — disse ela —, eu tenho um emprego. Sou a síndica,
lembra?
Lore originalmente começou a trabalhar para Gil como uma cuidadora
residente, mas suas funções se expandiram depois que ela trocou as baterias
do detector de fumaça — o que dizia tudo sobre o limite de conhecimento de
tecnologia em seu edifício na época.
— Por sinal, síndica, você poderia dar uma passada lá e consertar minha
janela antes do inverno?
Lore fez uma cara feia, alisando os cabelos com uma das mãos para
controlar o frizz com que a chuva lhe presenteara.
— Ok, tem um pouco a ver com dinheiro — admitiu ela —, mas com outras
coisas também.
— As coisas do Gil? — pressionou Miles.
Ela tirou o colar do bolso, examinando onde a corrente de ouro havia
arrebentado. Seu pescoço ficava com uma sensação estranha sem ele; Gil a
presenteou com o colar há três anos, no primeiro aniversário que teve após
retornar à cidade, e ela o removera apenas uma vez desde então.
A pena que cai de uma asa não está perdida — disse Gil a ela —, está livre.
O colar a lembrava todos os dias disso, do que ela havia ganhado quando se
ofereceu para trabalhar com Gil. Ela foi contratada para tomar conta dele
depois que ele levou um tombo feio e ficou claro que não poderia mais ficar
morando sozinho, mas Gil fizera muito mais por ela. Foi um amigo, um
mentor e um lembrete de que nem todos os homens são tão duros e tão cruéis
quanto aqueles que a rodeavam enquanto crescia.
— Já se passaram alguns meses… — disse Miles.
— Seis — respondeu Lore, rispidamente.
— Seis — disse ele, concordando com a cabeça. — Nós não conversamos
muito sobre isso… — Lore abriu a boca para fugir do assunto, mas Miles
ergueu a mão. — Tudo o que quero dizer é que estou aqui e sempre quero
falar sobre ele.
— Bom, eu não — disse Lore. Gil disse-lhe que algumas vezes é preciso
afastar as coisas ruins até que elas a deixem de vez. Um dia a dor da perda
não doerá tanto.
— Sabe… — Miles começou a dizer, com um tom de voz familiar.
— Não estou interessada em faculdade — informou ela, pela centésima
vez. — Você nem parece gostar de cursar.
— Você não precisa gostar de algo que precisa fazer — apontou Miles.
— Você não precisa fazer algo de que não gosta — rebateu Lore.
Miles soltou um suspiro pelo nariz.
— Eu só acho que… o que quer que tenha acontecido com você, é preciso
começar a pensar no futuro, senão o passado sempre vai impedir que você
siga em frente.
Lore engoliu em seco, mas não conseguiu relaxar o nó em sua garganta.
— Como você soube do ringue, afinal? Você me seguiu ou algo do tipo?
— Saí com meu amigo da faculdade ontem à noite e ele começou a contar
sobre esse ringue de luta superlouco e supersecreto, e mencionou uma garota
com uma cicatriz que ia do canto externo do olho até o queixo, e eu disse
“Uau, parece muito com a minha amiga Lore…”.
Sem pensar, ela esfregou aquele lado do rosto no ombro. A cicatriz era fina,
mas não desapareceu com o tempo.
— Seu amigo não é o cara que eu derrotei, certo? — perguntou ela. — Só
para ter certeza.
— Não, mas eu nunca fiquei tão maravilhado e apavorado ao mesmo tempo
em toda minha vida — disse Miles.
Seu telefone deu um toque estridente, fazendo com que os dois dessem um
pulo.
— É seu alarme? — perguntou Lore, com a mão ainda pressionada no
peito. Moravam na mesma casa há anos e ela nunca tinha ouvido nada como
aquilo.
— Mais ou menos — disse ele. Então atendeu a ligação, dizendo — Mãe, o
que você está fazendo acordada? São umas quatro horas da manhã… Você
com certeza não precisa imprimir esses formulários agora, deixa um bilhete
para si mesma lembrando de fazer isso em um horário normal e… Não, volte
você para cama… Bom, se eu não estivesse de pé, você teria me acordado…
Mãe. Vai dormir!
As palavras abafadas da Sra. Yoon estavam repletas do tipo de uma energia
que ninguém deveria ter a essa hora da manhã. Lore assistiu enquanto Miles
fechava os olhos e respirava, como se pedisse paciência para si mesmo.
— Ugh. Está bem. Você checou todos os cabos, certo? — perguntou ele. —
Viu se nenhum está solto?
Miles lançou um olhar de desculpas para Lore, mas ela não se importava
nem um pouco com aquilo. Na verdade, era legal. Mesmo que não fosse nada
demais, dava-lhe a oportunidade de imaginá-lo crescendo como um bebê
gótico no meio das palmeiras e dos tons pastéis e brilhantes da Flórida. Ele
era filho único, e às vezes, como agora, dava realmente para notar isso.
Miles respirou fundo novamente.
— Você ligou mesmo a impressora? O botão deveria estar aceso.
Lore ouviu a Sra. Yoon rindo envergonhada do outro lado da linha e
respondendo de forma amorosa:
— Obrigado, Michael.
Miles, exasperado, espalmou a mão no rosto, tanto pela dúvida dela quanto
por tê-lo chamado pelo nome de batismo; apenas sua família o chamava
assim; disse que a amava, em coreano e em inglês, e desligou.
— Ela me fez mudar o toque quando fui visitá-la no mês passado — disse
Miles. — Ela achou que eu não atendia porque o outro era muito baixo, e
agora eu me sinto culpado de mudar o toque de novo.
Lore sorriu, mesmo enquanto algo se retorcia no fundo de seu peito. Você
nunca sente falta das ligações até que elas parem de chegar.
— Ela só quer ouvir sua voz.
Ela quer que você se lembre dela, pensou Lore. Sua mente começou a
vagar, de repente livre. O mundo ao redor tornou-se envolto em uma aura de
escuridão até que ela só conseguisse ver o rosto de Castor e a forma como as
sombras o acariciaram.
— Ei — disse Miles, repentinamente —, você está bem, não é?
— Estou — insistiu Lore.
Ela estaria. Por ele. Por ela mesma.
Por Gil.
— Pronto para ir embora? — perguntou ela, enquanto Mel voltava da
cozinha com os pedidos.
— Me prometa que vai tomar cuidado — disse Miles, segurando a mão da
amiga antes que ela pudesse puxá-la de volta. — Não ligo se você precisa
continuar lutando, só não quero que se machuque.
Meio tarde para isso, pensou Lore.

Eles passaram de volta à luz fraca da rua, carregando seus cafés da manhã
com firmeza. A tempestade se transformara em um fino manto de neblina. A
cidade de Nova York era um dos poucos lugares no mundo que parecia mais
sujo depois de chover, mas Lore amava isso.
Conforme trilhavam o caminho de volta para casa, Lore decidiu que
contaria a Miles que passaria os próximos dias viajando, mesmo que isso
significasse ter que pegar um ônibus e dormir no meio da floresta, onde
ninguém poderia encontrá-la.
Nesse momento, porém, nada parecia melhor do que passar o resto da
manhã de domingo na cama. Lore caminhou de braços dados com Miles
enquanto eles desciam a rua adormecida, Miles cantarolava uma música que
ela não reconheceu. Tentou não pensar em nada. Estavam a uma quadra de
casa quando Miles parou de repente, puxando-a de volta.
— O que foi? — perguntou ela.
Ele foi se aproximando da parede da Martin’s Deli, o lugar que baniu Lore
por reclamar dos seus bagels vergonhosamente amanhecidos, e passou os
dedos por uma mancha de alguma substância escura. Lore o puxou para trás
apavorada.
— Ok, acho que você precisa de um lembrete das regras de Nova York: um,
não pegue nada que tentem dar a você na Times Square; dois, não toque em
substâncias misteriosas no chão e paredes…
— Acho que é sangue — interrompeu Miles.
A mão de Lore se afastou dele.
Ele girou, vasculhando o chão.
— Puta merda. Tem muito sangue…
E realmente tinha. Lore confundira as gotas salpicadas no cimento com
chuva, mas agora ela conseguia ver o sangue escuro sendo lavado até a
sarjeta conforme a tempestade começou a piorar.
Miles se projetou para a frente, levando a cabeça de um lado para outro
para procurar a pessoa que estava sangrando. Lore o agarrou pelas costas da
camisa com uma das mãos e, depois de entregar-lhe sua comida e café, tirou
um canivete de seu chaveiro com a outra.
— Fique atrás de mim — ordenou ela.
Era como seguir o rastro de uma presa ferida. A vítima pareceu ter
cambaleado, se movendo de um ponto de apoio para outro — um poste de
luz, um corrimão, um carro estacionado. Com uma crescente sensação de
receio, Lore percebeu que o rastro estava indo na direção de sua casa.
A mão de Lore apertou mais sua arma cega enquanto se aproximavam. A
trilha de sangue seguiu em direção da porta de casa e dos alegres vasos de
flores que Gil havia disposto ao longo das escadas de entrada.
Miles engasgou, e Lore seguiu o olhar dele.
Uma mulher estava sentada com as costas apoiadas na varanda do edifício,
ao lado das latas de lixo vazias. Seu manto azul-claro estava encharcado da
chuva.
Lore sentiu o ar acelerar em torno dela, como o momento antes de um raio
cair.
— Mostre-me suas mãos — disse Lore, engasgando e apontando sua arma
patética.
Os olhos da deusa eram da cor de fumaça sacrificial, manchas douradas
brilhavam nas íris, flutuando como brasas. A única sugestão de poder divino
suprimido.
Eles a chamavam de deusa dos olhos cinzentos, mas Lore entendia agora
que não era por conta da cor deles, e sim porque quando ela encarava você,
da mesma forma que encarava Lore agora, sua idade verdadeira se revelava.
Guerras, civilizações, monstros, morte, tecnologia, exploração — aqueles
olhos haviam assistido a milênios passarem e os mensuravam do mesmo jeito
que Lore observaria casualmente a hora do dia.
Mechas de cabelos da cor de ouro polido estavam espalhadas pelo rosto da
deusa como cicatrizes. Até mesmo em sua forma atual, ela era
perturbadoramente perfeita, seus traços eram fortes e em perfeita simetria.
A deusa se recostou, erguendo a palma da mão do ponto em que fazia
pressão, no quadril. Quando repousavam em seu colo, os dedos longos e
elegantes se curvaram como garras.
A mão estava vazia, mas manchada de sangue.
Lore encarou, parcialmente ciente de que havia abaixado o próprio braço. A
deusa inclinou-se para a frente, fazendo com que a laceração em seu flanco
jorrasse sangue quente e malcheiroso. Era muito grande e irregular para ter
sido causado por uma flecha ou uma bala. Portanto, foi por uma lâmina.
Aquele ferimento devia ter sido feito por um profissional.
Lore estava surpresa por ela ter conseguido chegar tão longe.
Seus pensamentos eram todos lógicos, mas Lore sentia como se estivesse se
movendo por um sonho.
— Alguém claramente conseguiu adivinhar direitinho a sua chegada —
disse Lore, com dificuldade. — Deu azar com a aterrissagem?
— Dê-me assistência.
Lore deu um pulo. Meio morta ou não, cada uma de suas palavras soavam
como uma espada atingindo um escudo. Elas vibraram pelos nervos de Lore
até que cada pelo de seu corpo arrepiasse. Havia tanto tempo desde que Lore
ouvira alguém falar uma forma tão pura da língua antiga que ela precisou de
um momento para traduzir.
Quando terminou, sua voz era como um fino sussurro.
— O que você disse?
Os olhos da deusa estavam desfocados agora, perdendo rapidamente parte
da força. Não havia medo algum em seu rosto quando ela retornou a mão
para o flanco a fim de pressionar o ferimento, apenas uma descrença amarga.
Rancor. Quando ela falou novamente, as palavras saíram com muito esforço,
mas o comando pareceu ecoar pela alma de Lore.
— Dê-me… assistência… mortal.
Então, Atena dos olhos cinzentos caiu sobre o cimento e perdeu a
consciência.
QUATRO

— AI, MEU DEUS!


A voz em pânico de Miles trouxe Lore de volta do estado de choque.
Quando ela se voltou na direção dele, o rosto de Miles já estava iluminado
pelo brilho do celular. Suas mãos tremiam enquanto digitava os números.
Lore arrancou o celular das mãos dele, finalizando a ligação antes que ela
se completasse.
— O que você está fazendo? — gritou ele. — Ela precisa de ajuda!
Senhora? Senhora, pode me ouvir?
— Pare! — disse Lore abruptamente. — Mantenha a voz baixa.
— Você conhece ela? — Miles aparentava estar prestes a arrancar o próprio
rosto. — Ah, não, o sangue… Eu só… — ele teve ânsia de vômito, tossindo
em seu punho.
Lore disse, sem pensar:
— Eu… conheço. Ela é tipo… ela é uma lutadora também.
— Ela precisa… — disse Miles novamente, engasgando. — Desculpa… eu
só… hospital. Ela precisa ir ao hospital. E à polícia.
Lore praguejou, com a mente acelerada. Se eles levassem a deusa, a polícia
desejaria interrogar Lore, registrando seu nome e possivelmente sua foto no
sistema. E as linhagens sempre deixavam pelo menos alguns caçadores em
cada hospital, na esperança de que um bom samaritano ligasse para a
emergência e entregasse, sem saber, um deus em suas mãos. Mas Atena
deixara um rastro com seu cheiro e seu sangue para que os cães farejadores
das linhagens seguissem, bem na direção do santuário de Lore, o que punha
Miles em perigo, e forçava Lore a fazer algo a respeito.
Lore checou a pulsação da deusa, com os dedos no pescoço dela. Nesse
preciso momento, o icor da deusa percorria tão vermelho quanto qualquer
sangue humano e formava uma poça em volta dos joelhos e dos tênis de Lore.
Merda — pensou ela, se sentindo desamparada pela primeira vez em anos.
Ela precisava levar a deusa para dentro. Agora.
— Nada de polícia — disse Lore rapidamente, lutando para pensar em uma
desculpa plausível. — Ela… ela não tem plano de saúde. Pode destrancar a
porta e me ajudar a carregá-la para dentro?
Lore enganchou o braço de Atena com dificuldade em seu pescoço. Mesmo
em forma mortal, a deusa tinha mais de 1,80m de altura e, como Lore e Miles
descobriram rapidamente, seu corpo estava escorregadio por causa da chuva e
do sangue.
Conseguiram chegar à entrada antes de colocá-la sobre o piso preto e
branco de ladrilhos. Lore deixou Miles para trás enquanto corria até o
armário do andar de cima, pegando lençóis e toalhas extras e deixando-os no
corrimão.
Quando desceu de volta, Lore fechou as cortinas da janela saliente da sala
frontal, selando o cômodo como uma fortaleza. Miles acendeu as luzes.
A televisão acima da lareira era um espelho preto enquanto Lore tirava a
mesa de centro do caminho. Miles abriu os lençóis escuros, e Lore percebeu,
com uma pontada de dor, que eles eram de Gil.
— O que está acontecendo? — perguntou Miles, conforme arrastava a
forma vulnerável de Atena para cima dos lençóis. — Lore… sério, o que
diabos está acontecendo?
A deusa gemeu. Lore olhou de relance na direção da entrada, para o sangue
que a manchava, e lembrou que eles tinham outro problema muito grande.
— Preciso que faça uma coisa — disse Lore a ele enquanto se ajoelhava ao
lado de Atena. — Preciso que vá até a mercearia do Sr. Herrera e consiga
máximo de garrafas de alvejante que ele tiver… espere. De preferência,
aquele à base de água oxigenada, mas, se só tiver o comum, traga ele mesmo.
— À base de… quê? — perguntou Miles desamparado.
— De água oxigenada, o máximo que ele tiver. Peça para pôr na minha
conta.
— Mercearias têm conta? — perguntou Miles.
— Vá — disse Lore, agitando o braço na direção da porta. — E seja rápido.
Miles parecia atordoado demais para fazer qualquer coisa a não ser o que
ela pedira. Ele pulou sobre o sangue, teve ânsia de vômito pela última vez,
antes de bater a porta atrás dele.
O cheiro habitual de sândalo e livros velhos da casa desapareceu sob o
fedor de sangue quente. O estômago de Lore deu uma revirada violenta
enquanto ela fazia a deusa deitar de costas. Rasgou o tecido do manto
destruído, tentando dar uma olhada melhor no ferimento. Sangue se derramou
sobre seus dedos.
— Droga — sussurrou ela.
O fígado e o rim haviam sido perfurados. Lore conhecia esse serviço; foi
um corte de perito, feito por uma léaina — uma das jovens mulheres
enviadas pelas linhagens para caçar deuses e trazer a presa ferida para seus
líderes a matarem.
Ela pressionou a toalha no ferimento, tentando estancar o fluxo de sangue.
— Acorde. Acorde!
Os olhos de Atena reviraram sob as pálpebras fechadas.
Lore fez a única coisa que conseguia pensar. Deu um tapa no rosto da
deusa.
Os olhos cinzas da deusa abriram imediatamente, piscando rápido.
— Eu me desculparia — disse Lore. — Mas você mereceu.
O ar nos pulmões de Lore repentinamente parecia queimar. Estava surpresa
com seu medo naquele momento, com o lampejo de arrependimento por ter
batido em Atena. Os anos em que foi condicionada a odiar os deuses antigos
desapareceram quando viu as faíscas de poder queimando no olhar de Atena.
Você só consegue se convencer de que está diante de uma presa até que
essa presa se vire para você e lhe mostre os dentes.
A deusa tossiu com um ruído molhado e sua cabeça movia-se no chão.
Mesmo estando em um corpo mortal, havia algo frio, quase alienígena, sobre
sua aparência a olhos próximos. Seu corpo era um recipiente antinatural.
Feito para ser morto.
Lore pressionou as mãos contra as próprias coxas, tentando conter o tremor
involuntário nelas. Não a mataria. Não queria o poder de um deus. Não
queria nada daquilo.
— É ruim, não é? — perguntou Lore, deixando uma imprudência selvagem
varrer o medo para longe e tomar o seu lugar. — Cara, mortalidade. Que
saco. Se perguntar não ofende, quem pegou você?
Esse momento devia estar sendo arquitetado há milhares de anos. Atena
sobrevivera a 211 ciclos do Ágon só para ser pega no ciclo 212.
O tom de mel da pele de Atena empalideceu-se à medida que a morte se
aproximava. A deusa era uma das últimas originais ainda no Ágon, os outros
sendo Hermes, Ártemis e, talvez, Apolo. Ela havia sido um alvo impossível.
Era forte demais, rápida demais, esperta demais.
Até agora.
Uma estudou a outra. Se Atena estava tentando medir o valor de Lore, sua
força, a jovem teria sido a primeira a dizê-la para não perder tempo.
— Estou fora. — Havia muitas palavras bonitas que Lore poderia ter usado
para bajular a deusa. Para se humilhar e apelar à vaidade e ao orgulho
exaustivos da espécie dela. Lore não se deu ao trabalho de se lembrar de
nenhuma delas. — E não vou deixar você ou qualquer outra pessoa me puxar
de volta.
A deusa a encarou, e sua boca, em um ângulo sério, não relaxou uma única
vez sequer. Lore não esperava outra coisa. Não haveria a opção de ceder;
como uma espada, Atena se manteria firme ou se quebraria.
— Eu sei que você fala esse idioma — disse Lore, recusando-se a dar à
deusa o que ela claramente queria. A língua antiga era uma mistura de muitos
dialetos milenares que, por fim, se tornaram o grego moderno, mas a versão
de Atena era de uma qualidade épica.
— Seja lá qual for o motivo de ter vindo aqui, não há nada a encontrar —
continuou Lore. — Se isso for um truque e você estiver aqui por vingança,
está atrasada demais. Todos que carregavam meu nome estão mortos. Sou a
última dos Perseídeos. A Casa de Perseu está acabada.
A expressão no rosto de Atena disse à Lore que a deusa sabia exatamente
quem ela era.
O medo a estilhaçou por dentro. Lore havia parado de acreditar no Destino
e nas anciãs que cuidavam dele há muitos anos, as Moiras, mas isso era muito
mais do que mera coincidência, principalmente depois do alerta de Castor.
— Dê-me assistência — disse ela. — Ajude-me.
— Foi você quem veio até mim — disse Lore, orgulhosa por sua voz soar
tão estável. — Diga-me o que quer e seja breve. Sei que é um conceito difícil
para você, mas seu tempo está acabando e meus planos para esta manhã não
incluem essa esquisita disputa de quem pisca primeiro com uma divindade.
Por que não começa me dizendo quem tentou matar você?
Atena olhou para ela novamente enquanto falava, e sua voz agora estava
mais fraca.
— Minha irmã.
Um temor gelado deslizou pelo corpo de Lore.
— Tipo, Ártemis?
A deusa a fuzilou com os olhos. Sua outra irmã, Afrodite, havia sido morta
por um caçador um século antes, e um novo deus com seus poderes nasceu.
Aquele novo deus sobreviveu a apenas um ciclo antes de outro caçador o
assassinar sete anos depois. Foi uma maratona de revezamento mórbida, com
o poder imortal sendo o bastão que era passado entre as linhagens.
— Pensei que vocês duas sempre trabalhavam juntas — disse Lore. — O
que aconteceu com aquela aliançazinha superdivertida que vocês fizeram
para aterrorizar todo mundo?
— Se virou… contra mim — disse Atena, pressionando a palma de sua mão
no ferimento do flanco novamente. — Traída. O Ares impostor… ele… veio
atrás de mim… no Despertar… Ártemis me atrasou e fugiu.
— Isso foi baixo — disse Lore com uma condescendência moderada. —
Até mesmo para ela.
— Alianças são formadas a partir da necessidade… se quebram com o
medo… — disse Atena, com dificuldade para proferir cada palavra. —
Agora… preciso… de… proteção. Até que eu… me cure. Una seu destino…
ao meu.
Una seu destino ao meu. Lore estremeceu.
— Por que diabos eu faria isso — disse Lore — quando eu posso ficar aqui
sentada vendo você morrer?
Apesar de temporariamente perderem a imortalidade, os deuses mantinham
uma fração de sua força para se defenderem. No auge, seus verdadeiros
poderes eram abrangentes; o que restava devia dar a sensação de ser uma
triste pantomima, e, pior, somente Apolo parecia manter a habilidade de
regenerar a si e a outros. Atena podia ter mais força física que os outros oito
deuses no Ágon, ser capaz de demolir edifícios inteiros, mas isso não a
ajudaria em nada agora.
Os passos apressados de Miles ressoavam na porta da frente. Lore ficou de
pé, lançando um olhar severo para a deusa. Atena estava visivelmente irritada
com aquela impertinência.
— Não diga uma palavra a ele quando ele entrar — disse Lore. — Finja que
está dormindo.
— Não me desampare — disse Atena, fraca. — Eu a proíbo.
— Beleza, eu proíbo que você morra agora — disse Lore, com a pulsação
saltando. — Tenho que limpar a bagunça que você fez antes que os cães
farejadores encontrem seu rastro e guiem os caçadores até aqui.
O olhar de Atena oscilou.
Merda — pensou Lore, com tristeza. A deusa podia sangrar, podia ficar
inconsciente, mas nunca se esqueceria desse detalhe crucial se não estivesse
no aperto.
A porta da frente se abriu.
— Estou com o alvejante!
A deusa bufou de raiva, mas fez o que Lore pediu.
— Obrigada — disse Lore a Miles. — Agora suba e vá dormir.
— Espera… o quê? — perguntou ele, tentando segui-la até o exterior do
imóvel. — O que você está fazendo?
— Vou limpar tudo antes que alguém veja o sangue e chame a polícia —
disse Lore. — E você vai subir e ir para a cama. Miles fitou a forma fraca de
Atena.
— Me escute — disse Lore, com a voz firme. Miles recuou, mas ela não
conseguia sentir pena, não por isso. Ele não fazia ideia de para onde havia
sido arrastado. — Vá lá para cima. Não abra a porta para ninguém. Se vir
alguém suspeito do lado de fora, me ligue.
Ela foi embora antes que ele pudesse fazer outra reclamação ou, pior, outra
pergunta. Lore demarcou os degraus da entrada, fazendo a curva no portão
que dava para o apartamento no subsolo, que era usado como para guardar
coisas. Quase não havia mais tempo. O sol despertava por trás da cortina de
nuvens, assim como os nova-iorquinos.
Lore despejou duas garrafas de alvejante à base de água oxigenada em um
balde e o carregou para fora para misturá-lo com água da mangueira da casa
vizinha. Usou uma esponja de aço e a força do próprio medo para esfregar a
poça de sangue que Atena deixou perto das latas de lixo, até que sua cabeça
estivesse aérea e as mãos ardessem com os produtos químicos.
Começou a jogar os baldes de água ensanguentada na valeta… para então
parar. Observou a chuva percorrendo a calçada até um ralo de esgoto.
Ela não seria capaz de mascarar o odor do sangue ou o cheiro da deusa, e
agora ela estava coberta pelos dois. O melhor que podia fazer para confundir
os caçadores era deixar rastros demais e esperar que eles se cansassem antes
de encontrarem o caminho até sua casa — e até Miles.
Lore seguiu o caminho que Atena fizera, limpando e esfregando até que a
chuva lavasse todas as manchas visíveis e tudo escorresse pelo esgoto.
Traçou um largo caminho arqueado pela vizinhança, deixando respingos de
alvejante ensanguentado aqui e ali.
Quando Lore finalmente conseguiu avistar o Central Park, tirou os sapatos e
as meias encharcados, com o rosto se retorcendo de nojo ao pisar descalça na
calçada rachada. Foi embora antes que se permitisse pensar demais sobre com
o que estava se contaminando, e teceu um caminho aleatório pelas ruas,
parando apenas para jogar os sapatos e as meias, um de cada vez, espalhados
pelas lixeiras.
Conforme se aproximava de casa novamente, Lore jogou seu casaco leve na
caçamba de um caminhão de lixo e enfiou os jeans e a blusa no chassi de dois
caminhões de entrega estacionados perto da mercearia do Sr. Herrera.
Em vez de entrar pela porta da frente, Lore entrou pelo porão. O perfume da
colônia de sândalo de Gil estava por todos os cantos, junto com o odor tênue
de poeira e mofo. Ao procurar pelas caixas que ela deixou lá embaixo, Lore
jogou para o lado uma caixa contendo a vasta coleção de gravatas borboletas
com estampas de Natal e encontrou um par de shorts e uma camiseta na caixa
logo abaixo.
Lore trocou de roupa rapidamente, jogando as roupas sujas em um saco de
lixo. Ela e inalou repetida e constantemente até que o fedor de produto
químico desaparecesse e seu pânico desse lugar à raiva.
Arrastando-se pela escada interna, ela adentrou novamente no silêncio do
primeiro andar da casa. Parte da tensão em suas costas e ombros se amenizou
conforme olhava em volta, e ela quase conseguiu rir. Miles limpou o sangue
do corredor, apagou as luzes da sala e deixou um copo de água e aspirina ao
lado de Atena.
Que amigo prestativo — pensou Lore, com uma onda de afeto por ele.
Olhou para a esquerda. Miles não apenas havia trancado a porta; mas
reforçado a maçaneta com as costas de uma cadeira — como se aquilo fosse
impedir os caçadores de colocar explosivos suficientes para destruir a frente
da casa.
A cabeça de Atena voltou-se ao som dos passos de Lore se aproximando.
Abriu os olhos novamente; eles brilhavam no cômodo relativamente escuro.
Sua mão mantinha a toalha pressionada contra o ferimento.
O ar era muito quieto ao redor, e o silêncio, muito fora do normal.
— Você quer que eu ajude a protegê-la e, suponho, a escondê-la das
mesmas pessoas que também me matariam de bom grado — sussurrou Lore
—, mas você já sabe disso. Por isso que veio até aqui, não foi?
Atena acenou levemente com a cabeça.
— Então, o que eu ganho com isso, exatamente? — disse Lore, dando outro
passo para mais perto. — Entendo que essa é uma experiência nova para
você, mas, mesmo que se cure mais rápido que um mortal normal, não está
nada bem. Então, por que eu vincularia minha vida a uma deusa que pode não
durar algumas horas, tampouco alguns dias?
— Eu soube… o que aconteceu com você… — disse Atena. — Os anos…
Procurei… por você…
Os pelos no corpo de Lore se arrepiaram.
Ao final de cada Ágon, os deuses, novos e velhos, recuperavam a
imortalidade, mas permaneciam no mundo mortal, incapazes de retornar para
qualquer lar que um dia conheceram.
Os novos deuses, transbordando com poder, manifestavam formas físicas e
viviam em luxo, manipulando os mecanismos do mundo para encherem os
cofres de suas linhagens. Mas os deuses antigos, com seus poderes em
constante declínio, normalmente escolhiam permanecer incorpóreos. Isso os
tornava impossíveis de rastrear conforme rodavam pelo mundo, tentando
criar planos de contingência para a próxima caçada ou procurando vingança
contra aqueles que tentaram matá-los. E essa ameaça de vingança era o
motivo pelo qual caçadores sempre usavam máscaras.
— Você procurou por mim? — disse Lore. — Por quê?
— Acreditei que… você poderia… ser persuadida a me ajudar… Ouvi o
seu… nome… proferido pelas outras linhagens… Sua família… assassinada.
Mãe… pai… irmãs — disse Atena, respirando com dificuldade. — A deram
como… perdida. Alguns pensaram… morta.
A garganta de Lore se fechou até que ela quase não pudesse mais falar. —
O que você sabe sobre isso?
Atena a olhou de novo, dessa vez com uma expressão de quem sabe que
venceu.
— Eu sei… quem os matou.
CINCO

A LEMBRANÇA VEIO COM TUDO, DERRUBANDO TODAS AS BARREIRAS QUE LORE


havia construído à sua volta. A forma da porta do apartamento de sua família
conforme se aproximava dela naquela manhã. O silêncio arrepiante do lado
de dentro. O cheiro de sangue.
Lore respirou fundo e pressionou uma das mãos contra os olhos, com força
suficiente para que a luz e as cores dançassem sob suas pálpebras. Isso
distraiu sua mente do caminho sombrio que começara a traçar novamente,
mas só por um momento.
Ela não sabia como havia sido capaz de manter a voz tão calma enquanto
dizia:
— Eu já sei quem os matou. Aristos Cadmou, da Casa de Cadmo. — O
novo Ares, desde o último Ágon.
— O falso deus pode ter… ordenado as mortes… mas quem portava a
lâmina? — insistiu Atena. — Pois não foi ele. Era apenas um deus recém-
nascido…
O corpo de Lore enrijeceu ao ponto de doer.
— Isso não importa. Foi ele quem deu a ordem — disse Lore. — Ele era o
líder da linhagem e depois se tornou o deus deles. Todos eles são
responsáveis, cada homem, mulher e criança que se ajoelhou perante ele, mas
somente ele tem o poder de pôr tudo em ação.
E a linhagem obedeceu aos seus comandos, assassinando os pais e as duas
irmãs mais novas de Lore de maneira tão brutal que levou semanas para que
os Cadmídeos conseguissem limpar o apartamento de forma que ocultasse as
evidências. No fim das contas, ainda precisaram purificar tudo com chamas.
De acordo com o Departamento de Polícia de Nova York, a família ateou
fogo no apartamento após uma discordância sobre o aluguel, foi embora da
cidade, e ninguém nunca mais teve notícia.
Ninguém na Casa de Cadmo assumiu a responsabilidade pelas mortes ou
assumiria algum dia. Os caçadores fizeram um pacto de sangue séculos antes
se comprometendo a nunca matar intencionalmente um caçador de outra
linhagem entre os ciclos do Ágon. Era a única forma de assegurar a paz entre
as casas.
Sua família fora assassinada na manhã seguinte da conclusão do Ágon,
quando a promessa deveria tê-los protegido. Os Cadmídeos quebraram um
voto sagrado, mas nenhuma outra casa era poderosa o suficiente para desafiá-
los, e nenhum deus havia atendido às suas preces.
— Por que você… não os vinga? — ofegou Atena. — Todos esses anos…
você não fez nada… Não… reconhece sua moira… Nunca buscou por…
poinê… você apenas caiu… no pior dos aedos…
Lore afundou no chão, com as pernas cruzadas sob ela e as abraçou, lutando
contra a costumeira pressão que se expandia em seu peito. Sua moira — seu
quinhão na vida, seu destino.
— Essas palavras não significam mais nada para mim — disse Lore, com a
voz rouca. Mas ouvi-las foi como ter cicatrizes sendo abertas.
Poinê. Vingança.
Aedos. Vergonha.
Uma vida sem a excelência do aretê e o patrimônio adquirido pelo timé.
Sem nunca alcançar o kleos.
— Eu era só uma garotinha — disse Lore, mal ouvindo as próprias
palavras. — Eles teriam me matado também. Não era forte o suficiente para
enfrentá-los. E eu sabia que nunca poderia pôr as mãos nele, não depois que
ele ascendeu.
Nos anos que se passaram, ela havia matado para evitar que a matassem.
Viajou a pé, de barco, de avião, só para acabar voltando para a cidade que a
criou. Escapou do labirinto de juramentos tramado como uma armadilha para
prendê-la até o dia que o Ágon a convidaria a sacrificar seu último suspiro.
Mas Lore não fez nada para vingar sua família.
Os lábios de Atena se curvaram em um sorriso.
— Desculpas… Essas mentiras que conta a si mesma… Você nunca foi…
uma mera… garotinha. Eu ouvi… o que os outros sussurravam a seu
respeito… que era a melhor de sua geração… que havia sido uma pena…
você não nascer em uma linhagem diferente…
— Você está mentindo — sussurrou Lore, incapaz de impedir o calafrio
involuntário que a percorreu. Anos atrás, aquelas palavras teriam significado
tudo para ela; ansiava pelo reconhecimento das mesmas pessoas que se
recusaram a dá-lo.
— Os espartanos… eles a convocaram — disse Atena, com dificuldade —
de Pequena Górgona… Eu procurei por você… eu a escolhi… sabendo dessa
habilidade… sabendo que você não é mais uma caçadora. Mas você nunca…
foi fraca… nunca foi impotente… então lhe pergunto… por que não fez
nada… para vingar sua família?
Lore cruzou os braços no peito, usando as palavras de Gil como escudo.
Mas não havia proteção contra a verdade.
— Não é isso… Você não entenderia. A única coisa real neste mundo é o
que você pode fazer pelos outros. Como pode cuidar deles.
A deusa bufou com deboche.
— A única coisa que você compreende — continuou Lore, odiando a
densidade em sua voz —, e a única coisa com a qual se importou, é o poder.
Você não sabe querer nada além disso e, por isso, não acredita em mim
quando digo que não quero reivindicar o poder dele. Não quero fazer parte
alguma desse jogo doentio.
— Então o que… você deseja? — perguntou Atena.
As palavras irromperam da boca de Lore de maneira selvagem e dolorosa.
— Ser livre.
— Não — disse Atena, fazendo esforço para falar. — Não é isso. O que
você… nega a si mesma?
Uma visão floresceu em sua mente, intensa e pura, mas Lore balançou a
cabeça negativamente.
— Minta para… si mesma… mas não para mim — disse Atena. — Você
sabe… que nunca será… livre enquanto as sombras de sua família… sofrem
e vagam por aí. Incapazes de descansar enquanto ele viver.
Lore esfregou os olhos com os punhos, tentando encontrar palavras para
retrucar.
— Você nega sua herança… Você nega sua honra… Você nega seus
ancestrais e seus deuses. Mas isto, você não pode negar — disse Atena. —
Isto, você sabe que é verdade. Me diga… o que deseja.
A verdade finalmente escapou da jaula.
— Quero acabar com ele.
Lore havia negado isso por anos; forçado a verdade para um canto escuro
dentro de si. Tudo em prol de ser bondosa, de merecer a nova vida que lhe foi
dada. Ela não estava envergonhada do quanto queria aquilo ou da frequência
em que sonhava com a morte dele, mas sim do quão ingrata isso a tornava
por causa da segunda chance que lhe foi concedida ao trabalhar para Gil.
— Mas não posso fazer isso — continuou Lore, com a garganta doendo. —
Mesmo que pudesse chegar perto o suficiente para tentar matar Aristos, isso
significaria reivindicar seu poder. Não quero ser uma deusa. Eu só quero
viver. Quero saber que a minha família está… em paz.
— Então eu o matarei por você.
Lore olhou para a deusa com descrença.
— Matarei o falso Ares em seu nome — disse Atena, lutando para respirar.
— Se você prometer… que me ajudará… se fizer um voto… de vincular seu
destino ao meu até… esta caçada terminar… ao pôr do sol… no oitavo dia.
O coração de Lore acelerou novamente, quase pulando para fora do peito.
Isso, sim, era algo. Além disso, não apenas destruiria Aristos Cadmou. Um
deus não podia absorver o poder de outro deus. Atena efetivamente
removeria o perigoso poder de Ares do Ágon — e do mundo mortal —
totalmente.
— Una o seu destino ao meu — disse a deusa novamente, oferecendo-lhe a
mão ensanguentada. — Seu coração… pede por isso…
O rosto de Gil e seu costumeiro sorriso cheio de dentes surgiram nos
pensamentos de Lore.
Sinto muito — pensou ela, angustiada.
E então assentiu.
Os dentes de Atena ainda estavam manchados de sangue quando ela os
expôs.
— Você sabe o que isso significa, não sabe? O que o juramento traz
consigo?
— Sei.
O seu próprio bisavô era um exemplo de alerta, tendo estupidamente
vinculado seu destino ao do Dionísio original. O deus antigo precisara de
proteção contra os descendentes de Cadmo. Apesar de ele mesmo ter nascido
naquela linhagem por meio de sua mãe mortal, Dionísio havia amaldiçoado
seu parente — e o próprio Cadmo — quando se recusaram a acreditar que ele
era filho de Zeus.
No instante que o deus antigo morreu, encurralado e abatido como um
javali, o coração do ancestral de Lore parou de bater no peito.
O mais forte da geração, morto tão rapidamente, em um piscar de olhos,
lembrado para sempre pelos parentes como um traidor — e, como o pai da
jovem acreditava, a verdadeira causa da centenária animosidade entre as
Casas de Perseu e de Cadmo.
Lore estaria concordando em proteger Atena com a vida, em lhe dar abrigo,
e teria que torcer para que a deusa não morresse desse ferimento ou de
qualquer outro. Era um risco que teria que correr. Um juramento era, afinal
de contas, uma maldição posta em si mesma — ela seria condenada se
falhasse e condenada se fosse bem-sucedida. Mas nunca teria uma
oportunidade como esta novamente.
Lore tentou se lembrar das palavras que seu pai e sua mãe sempre
costumavam dizer na hora de fazer um juramento, mas não foi capaz de
invocar o nome de nenhum deus.
— Vou ajudá-la a sobreviver a esta semana, e você destruirá o deus uma
vez conhecido como Aristos Cadmou, o inimigo de meu sangue — disse Lore
silenciosamente. Ela segurou a mão gelada da deusa. — Se este é o acordo,
então eu prometo pelos poderes abaixo que honrarei meu juramento ou
enfrentarei a ira dos céus.
A deusa assentiu.
— Então, eu vinculo a minha vida mortal à sua… Melora, filha de Demos,
herdeira de Perseu… Se eu perecer… você se juntará a mim. Se você morrer
durante o Ágon… eu também perecerei. Este é o juramento que fazemos uma
à outra.
Um calor envolveu as mãos unidas delas, seguido por um arrepio nos sulcos
da coluna de Lore, passando como a ponta de uma faca. Isso era perfeito — o
poder de Atena vinha apenas na forma de aço e dor.
— Está feito? — perguntou Lore.
A resposta foi o cruel e ensanguentado sorriso da deusa.
Lore se afastou, ficando de pé de forma instável. Uma sensação de faíscas
espalhou por sua pele como estrelas no céu, se afundando no tutano de seus
ossos.
— Precisamos estancar o sangramento — disse Lore, olhando para o
ferimento de Atena. — Não sei se eu tenho linha para suturar isso.
A deusa balançou a cabeça.
— Cauterize.
Lore se moveu, sentindo-se parcialmente fora o próprio corpo, e foi à
cozinha. Segurou uma das facas sobre a chama no fogão até que o metal
brilhasse, tão dourado quanto as manchas nos olhos de Atena.
Miles — pensou ela, distante. Precisava checar se Miles estava bem quando
terminasse.
Mas ele já havia descido para ver como ela estava.
Miles se sentou na escada, com o olhar fixo no que conseguia ver da sala
por entre o corrimão. Não parecia restar um pingo de cor em seu rosto, e Lore
sabia, mesmo antes de ele olhar na direção dela e para a faca em suas mãos,
que ele ouvira tudo.
— Eu acho — disse ele finalmente, com a voz rouca — que é melhor você
me contar o que diabos está acontecendo.
SEIS

FICARAM SENTADOS EM SILÊNCIO POR VÁRIOS MINUTOS DEPOIS DE LORE


terminar de explicar por alto para Miles o que era o Ágon, falar dos nove
deuses para os quais o Ágon havia sido criado como forma de punição —
incluindo aquela cujo ferimento ela havia cauterizado na sala — e das nove
linhagens descendentes dos heróis antigos escolhidos para caçar os deuses.
Ela destilou mais de mil anos de história em meros minutos, se sentindo
mais e mais maluca enquanto o rosto dele permanecia com uma expressão
cuidadosamente neutra.
Não era como se Lore pudesse culpá-lo; ouvir a si mesmo dizer aquelas
palavras — Durante sete dias, a cada sete anos, os deuses andarão sobre a
terra como mortais. Caso consiga matar um deles, você se tornará um novo
deus e lhe tomará o poder e a imortalidade, mas também será caçado no
próximo Ágon — a deixou com um nó no estômago, não apenas por ter sido
ensinada desde nova a nunca revelar seu mundo para estranhos.
Para Miles, estes nomes — Atena, Ártemis, Apolo, Poseidon, Hefesto,
Afrodite, Dionísio, Hermes e Ares — eram histórias clássicas, não monstros
vivos que se recusaram a desaparecer quando um deus mais renomado
ascendeu às suas terras.
Da forma como os caçadores contavam a história, parecia que os deuses
tentaram forçar seus adoradores de volta à submissão alimentando o caos na
queda de Roma, fazendo Apolo criar pragas mortais, incluindo a de
Justiniano, que, sozinha, matou dezenas de milhões de pessoas. Tudo na
esperança de que os mortais implorassem a eles por proteção e refúgio.
— E quando Zeus lhes ordenou que parassem — concluiu Lore —, os nove,
liderados por Atena, tentaram derrubá-lo, para continuarem seus trabalhos, e
falharam.
Gil sempre preparava um chá quando precisavam conversar sobre algo, e
Lore se viu fazendo a mesma coisa agora; só que, como se a memória
muscular a houvesse dominado, ela pulou a etapa dos saquinhos de ervas
secas e preparou um chá bem diferente.
Como uma piada, os caçadores chamavam seus chás de néktar, a bebida dos
deuses. Usavam tomilho — a erva da coragem —, gengibre, limão e mel para
se fortificarem durante os treinos e o Ágon.
Mas ambas as canecas estavam frias, intocadas onde ela as havia deixado,
sobre a mesa.
A saída do ar-condicionado chiava, inundando a cozinha com o ar frio. Lore
havia fechado as cortinas da janela sobre a pia e conseguia ver, pela forma
como o sol ainda tentava invadir o cômodo, que a manhã já chegava ao ápice.
— Fala alguma coisa — sussurrou ela.
— Tipo… — disse ele, alisando o cabelo com a mão. Seu olhar estava fixo
na mesa. — Seu nome nem é Lauren.
— Você entende por que eu não podia usar o meu nome real, não entende?
— perguntou ela. — Não era apenas para ficar oculta. Lauren Pertho era o
nome falso nos documentos e no passaporte que a linhagem da mãe de Lore
havia falsificado para tirá-la do país após o assassinato de sua família. Eram
os únicos documentos que ela tinha.
— Não sei o que eu pensei — disse Miles. — Deixa eu ver se entendi
direito: a cada sete anos essa… caçada acontece. E o local do evento muda,
que nem as Olimpíadas, só que com assassinatos?
— Basicamente isso — disse Lore. — Os caçadores descobriram que
podiam controlar onde o Ágon aconteceria se movessem algo chamado de
onfalo, uma grande pedra que ficou em Delfos no passado e marcava o que
eles acreditavam ser o umbigo, ou centro, do mundo.
— O “umbigo” do poema? — perguntou ele.
Ela havia recitado a tradução em inglês da primeira ordem para que se
começasse o Ágon, dada por Zeus. A versão original, na língua antiga, se
perdera.
— Sim. Os líderes das linhagens se reúnem no ano anterior ao Ágon e
votam onde ele acontecerá, e costuma ser onde eles têm mais recursos e
poder — prosseguiu Lore. — Eles precisam mover o onfalo sem que os
deuses vejam qual foi o local escolhido, para evitar que criem estratégias.
Ultimamente tem sido aqui, mas também costumam dar foco em cidades em
ilhas, como Londres e Tóquio, porque fica mais difícil para os deuses
fugirem.
E raramente, nos ciclos em que eles realmente querem atormentar os
deuses, levam o onfalo de volta ao país de origem, para que eles possam ser
caçados por entre as ruínas dos seus templos e as pessoas que um dia os
temeram.
— As nove famílias… — disse Miles.
— Existem apenas quatro linhagens que ainda participam do Ágon — disse
Lore. — As outras morreram.
— Como a sua? — clarificou Miles lentamente. — Porque você é… a
última de sua linhagem?
— A última mortal — disse Lore. — A nova Poseidon, Portadora da Maré,
um dia foi parte dos Perseídeos, os descendentes de Perseu.
— Quais são as outras?
— As Casas de Cadmo, Teseu, Aquiles e Odisseu são as únicas linhagens
sobreviventes — disse Lore —, mas também tem as Casas de Héracles,
Jasão… — adicionou, então, porque ninguém nunca parecia saber quem eles
eram —, Meléagro, que liderou a caçada ao javali calidônio, e Belerofonte,
que derrotou monstros e montou Pégaso. Estas foram as primeiras duas
linhagens a serem extintas.
A aniquilação delas aconteceu pouco depois de as linhagens decidirem
adotar sobrenomes unitários para se adequarem às necessidades legais que
mudaram no século XVI. Ambas as casas foram consideradas indignas da
caçada, até mesmo pela linhagem amaldiçoada de Jasão. A de Meléagro foi
indigna porque os descendentes que sobraram nasceram de um bastardo, e a
de Belerofonte teve um ancestral que morreu odiado pelos deuses, e apenas o
próprio Zeus poderia dar redenção ao herói caído.
— Pensei que Hércules… Héracles? Pensei que tinha sido ele quem montou
Pégaso — disse Miles. — Você está dizendo que o meu desenho favorito
mentiu para mim?
Lore suspirou.
— Estou quase com receio de perguntar — disse Miles. — Mas o que
exatamente aconteceu com o resto da sua família?
Por um momento, Lore não sabia por onde começar.
— Existe uma regra, uma crença fundamental, de que somente homens, em
particular o líder escolhido de cada linhagem, tem a permissão de tomar o
poder de um deus — explicou Lore, e a raiva fez com que sua postura ficasse
mais rígida. — Apenas homens podem ser herdeiros, tanto do poder mortal
quanto do imortal. Ter um homem liderando uma linhagem significa que a
sucessão é mais tranquila. Caso o arconte morra ou ascenda à imortalidade, a
autoridade é passada para os seus filhos, ou irmãos, ou sobrinhos. Quando a
linhagem se reúne para o próximo Ágon, votam em quem será o próximo
homem a deter o título.
Com aquela explicação, a repulsa de Lore aumentou até que ela pudesse
sentir o sabor amargo na boca. Ela havia um dia acreditado naquilo também
— mais do que acreditado. Mesmo quando criança, Lore teria morrido de
bom grado em nome de todos aqueles homens que mantinham a ordem cruel
de seu mundo.
— Eles excluem as mulheres desse jeito mesmo? — perguntou Miles. —
Até hoje?
Lore bufou com força pelas narinas dilatadas de raiva.
— Levou séculos para que deixassem as mulheres caçar, e agora apenas um
grupo seleto é escolhido para trabalhar em uma espécie de pelotão para o
arconte. A Portadora da Maré, de propósito ou por acidente, tomou para si a
divindade há quatorze ciclos. E não foi a de qualquer deus, mas de um dos
originais. Poseidon.
Era estranho sentir ao mesmo tempo uma profunda repulsa impregnada e ao
mesmo tempo simpatia pela nova deusa. Lore havia sido ensinada a odiá-la, a
culpá-la pelo que a Casa de Perseu havia se tornado. Por repetidas vezes,
disse a si mesma que a Portadora da Maré estava errada, como se a situação
anormal não fosse uma mortal matar um deus e tomar seu lugar, mas sim uma
mulher ter ousado fazê-lo.
— Beleza, mas por que essa Poseidona representa a morte da sua… casa?
— perguntou Miles, hesitando ao proferir a palavra. — Pensei que você tinha
dito que os novos deuses protegem e servem suas famílias.
— Isso mesmo — disse Lore. — Ela foi excluída pelos Perseídeos e
forçada a se esconder durante o Ágon seguinte e em todos os que vieram
depois, porque não tinha mais família que a protegesse. As linhagens
consideraram que ela era uma ameaça direta à ordem do mundo. Ninguém
tinha nem mesmo certeza de que uma mulher poderia ascender até ela fazer
isso. Essa ideia era perigosa demais para eles.
Miles suspirou.
— Acho que sei aonde isso vai dar.
— Para garantir que nunca acontecesse de novo, as outras famílias,
lideradas pelo arconte da linhagem de Cadmo, destruíram quase toda a Casa
de Perseu no último dia daquele Ágon, quando matar outros caçadores ainda
era permitido — disse Lore. — Salvo Portadora da Maré, o único
sobrevivente foi meu tataravô, que decidiu ficar na faculdade em vez de
participar daquele ciclo.
— Puta merda — disse Miles, em voz baixa.
— As outras linhagens decidiram mantê-lo vivo para atormentá-lo de outra
forma: humilhando — disse Lore. — Dividiram os estoques de armas e
armaduras dos Perseídeos, os lucros dos impérios têxteis e deram a maior
herança da família para o líder da linhagem de Cadmo.
A égide. O escudo de Zeus, carregado em tantas batalhas por sua filha
favorita, Atena, exibindo a cabeça da górgona Medusa, e dado à linhagem
pelo próprio rei dos deuses para auxiliá-los na caçada. Um objeto capaz de
invocar trovões e provocar um terror fora do normal nos corações de todos os
inimigos que o contemplaram.
O artefato era cobiçado por todas as linhagens, que ressentiam os
Perseídeos terem o que era considerado uma herança superior. Ao longo dos
séculos, muitos outros objetos de poder foram destruídos por linhagens rivais
para evitar que outras os usassem.
Mas somente aqueles que fazem parte da linhagem que carrega o nome da
casa podem usar seus respectivos presentes. Os Cadmídeos podem ter
roubado a égide, mas nenhum deles conseguia usá-la. E a verdadeira razão
pelo qual seu tataravô sobreviveu foi ainda mais sinistra do que ela havia
contado. Lore achou melhor poupá-lo, da mesma forma que ela havia um dia
sido poupada: a égide desapareceria quando o último dos Perseídeos
morresse.
— Uau… — disse Miles, lentamente. — Mas então a sua família… os seus
pais?
— E irmãs.
Miles ficou atônito. Lore havia contado a ele e Gil apenas que sua família
havia morrido e que ela havia sido levada contra a sua vontade para ser criada
por um membro da família da mãe. Ambas as informações estavam corretas,
de certa forma.
— As mortes deles foram ordenadas por Aristos Cadmou, o neto do homem
que liderou a execução inicial dos Perseídeos — disse Lore.
— Que hoje é o novo… Ares? — finalizou Miles. — Depois que matou o
último novo Ares no Ágon, há sete anos?
— O mortal acredita que você mente.
Lore se assustou com o som baixo da voz de Atena. Miles, mais do que
isso. Pulou da cadeira, derrubando-a no chão, e foi aos tropeços até o balcão
da cozinha, com a mão no peito.
— Meu Deus! — exclamou ele. — Tipo… eu não…
Miles se curvou no que parecia ser metade mesura e metade reverência.
— Você acredita? — perguntou Lore a ele. — Acredita em mim?
Atena preencheu a entrada da cozinha, se escorando contra a moldura da
porta com uma mão pressionada sobre o ferimento em seu flanco.
— Hum, sim — disse Miles. — Eu acredito em você. Só vai levar um
tempinho para que eu entenda tudo, sabe?
A deusa o fitou com um ar de desprezo antes de se voltar novamente para
Lore.
— Este recipiente demanda nutrição.
— Você quer… café da manhã? — chutou Lore.
Atena se sentou em uma cadeira livre. Lore a encarou por um momento —
algo dava voltas no buraco do seu estômago só de vê-la na casa de Gil, na
cadeira de Gil —, mas, no fim das contas, ela apenas se levantou e foi até a
geladeira.
Em alguns minutos, Lore serviu três pratos de ovos mexidos com bacon na
mesa e três copos de água. Ela e Miles assistiam, ambos segurando seus
garfos, enquanto Atena pinçava um pedaço de bacon entre os dedos e o
levava até o nariz para sentir o cheiro.
Na opinião de Lore, comida de graça era mais saborosa, mas estava claro
que a deusa não pensava assim. Ela deu uma mordiscada para provar a
comida e todo seu corpo de 1,80m estremeceu.
Mesmo tendo sido enganado por anos, Miles, sempre leal, deu uma grande
mordida e declarou:
— Melhor bacon que já comi.
— Se não quiser comer, não come — disse Lore para Atena, friamente.
A deusa bebericou a água, e seus lábios se curvaram em uma careta.
— É a sensação — disse Atena, se forçando a engolir uma pequena garfada
de ovo. — Me rebaixar a tais… necessidades básicas. Precisar de tais
suprimentos insossos e repulsivos ou me sentir vazia. Sentir dor. É
intolerável.
— Ah, assim — disse Lore —, intolerável resume direitinho boa parte da
existência humana.
Miles a fitou, surpreso, mas, dessa vez, guardou os pensamentos para si.
— Então… — ele começou a dizer, e seus olhos dispararam para o ser
celestial ao lado. Atena ainda estava coberta de sangue. — Cadê a sua
coruja?!
O olhar que Atena lançou ao jovem teria incinerado todo o quarteirão se ela
estivesse em seus plenos poderes.
Sem se deixar intimidar, ele persistiu.
— Seu escudo?
O copo escorregou da mão de Lore, se estilhaçando no fundo da pia.
— Lore? — Miles se levantou, indo ajudá-la, mas a amiga acenou de
costas, indicando que ele se sentasse até que ela limpasse tudo com cuidado.
— A égide — corrigiu Atena, se certificando de usar o nome certo. —
Carreguei o escudo de meu pai. Foi dado por ele aos caçadores há séculos,
junto com muitas de nossas armas e bens divinos. Eu não o vi desde então
nem poderia usá-lo, se assim eu desejasse. A não ser que esteja em minhas
mãos até o último dos sete dias, quando recupero minha forma imortal.
— Não é verdade — disse Lore. — A égide precisa ser dada
voluntariamente por alguém da linhagem, o que é impossível. Os Cadmídeos
estão com ela há décadas.
— E você tem certeza disso, não tem? — indagou Atena. — Qual é o
propósito em contar isso tudo ao mortal, Melora? Que benefício trará?
— Estou cansada de mentir para ele — disse Lore, lutando para se manter
calma. — Sei que esse é um conceito estranho para você. Me avise se
precisar que as definições de amigos sejam atualizadas. Acho que Ártemis foi
a última amiga que você teve, até ela te apunhalar.
— Não acredito que estou prestes a dizer isso, mas tirando a punhalada,
que, uau, me deixou feliz pela primeira vez por não ter uma irmã — disse
Miles, parecendo um pouco aflito —, Ártemis é a única original que sobrou
no Ágon?
Atena ergueu o queixo, como se desafiasse Lore a respondê-lo.
Lore a ignorou.
— Não, tem Hermes. Apolo também.
— Neste ponto, você está completamente enganada — disse Atena,
rispidamente. — Apolo pereceu ao fim do último Ágon.
Uma pontada de curiosidade pura passou por Lore antes que ela pudesse
suprimi-la. Juntou as mãos bem apertadas debaixo da mesa até que o
sentimento indesejado passasse.
— Apolo supostamente foi morto no último Ágon, mas ninguém
testemunhou isso — disse Lore. — São apenas rumores, que podem muito
bem terem vindo de uma linhagem com intenção de despistar as outras para
que somente ela soubesse caçá-lo no ciclo seguinte. Se ele está morto, a casa
que está com o novo Apolo, qualquer que seja ela, mantém sua identidade em
segredo. Pessoalmente, eu acho que é alguém da Casa de Teseu. Eles fizeram
investimentos consideráveis em energia solar no ano passado.
Lore já havia explicado a Miles como um novo deus pode vir a beneficiar a
sua família financeiramente se intrometendo nos eventos mundiais, para
promover os próprios interesses. O novo Afrodite, por exemplo, conduziu a
Casa de Odisseu a projetos extremamente bem-sucedidos em Hollywood. Um
novo Ares, incluindo Aristos Cadmou, poderia inflamar conflitos
internacionais para dar apoio aos investimentos da sua linhagem na indústria
armamentista, e um novo Dionísio poderia inaugurar uma megaigreja ou uma
seita apocalíptica. As oportunidades eram enormes e limitadas apenas pela
criatividade do novo deus.
— Isso nos leva a oito — constatou Miles. — Quem é o outro?
— Era Hefesto — disse Lore. — Mas ele está morto.
— Aniquilado por um impostor faminto por poder — rosnou Atena.
— Talvez seu pai devesse ter pensado em deixar instruções melhores, em
vez de confiar em uns poucos homens para escrever péssimos poemas sobre o
evento — disse Lore. — Não podem culpar os caçadores por terem precisado
descobrir as regras sozinhos.
— É claro — disse Atena, bufando em zombaria. — Não bastou àquele
impostor soberbo ter o poder de um deus, o tolo teve que tentar assassinar
outro para ver se conseguiria, também, o poder de Hefesto. Mas não pôde.
— Não discordo de você quanto a isso — disse Lore. — Ninguém cometeu
o mesmo erro de novo. Os caçadores querem manter o máximo de
oportunidades de se tornarem imortais em aberto. É por isso que o Ágon
nunca vai terminar. Eles não vão deixar.
O relógio de pêndulo de Gil tiquetaqueou próximo a eles, e cada bater do
objeto ia atingindo os nervos de Lore de forma crescente.
— Então, qual é o nosso plano? — perguntou Miles.
— Você vai para o seu estágio — disse Lore. — E vai encontrar um amigo
com quem possa ficar até o próximo domingo.
— O quê? — disse ele. — Então, qual é a lógica de me contar isso tudo?
— A lógica — disse Lore — era fazer você entender que isso tudo é muito
perigoso.
— Se é tão perigoso, então eu não vou abandonar essa casa nem você —
disse ele. — Vou mandar um e-mail para meu chefe e falar que estou com
uma infecção de garganta. Mas não vou embora, e você não pode me obrigar
a ir.
Atena o fitou com surpresa e aprovação. Lore rangeu os dentes ao perceber
isso.
— Aprecio a companhia deste mortal — informou Atena à Lore.
— Este mortal não sabe nem o combate com faca básico — disse Lore, se
levantando para juntar os pratos vazios. — Então, se você for derrubada antes
dele, boa sorte.
Lore se voltou novamente para Miles. — Não sei por quanto tempo esta
casa estará segura. Tudo o que fiz foi confundir os cães farejadores que
possam ter rastreado o cheiro dela. Mas isso pode não ser suficiente.
— Não serei uma prisioneira nesta casa — disse Atena. — Usarei meu
poder para disfarçar minha presença, se necessário. Aceito permanecer aqui
enquanto esta casca mortal recupera as forças. Entretanto, para completar
nosso juramento, preciso deixar essas paredes. E você, Melora Perseus, sabe
menos do que acredita saber; não sabe nem o que o falso Ares passou esses
últimos sete anos procurando.
O rosto de Castor se acendeu em sua mente novamente. Ele está
procurando por algo…
— E você, sabe? — indagou Lore.
Atena assentiu com a cabeça.
— Esse… poema que você tanto gosta, que recita como se fosse um fato,
ou está incompleto, ou ele procura por uma versão distinta. Versão esta que
conta como o Ágon termina e como o vencedor reclamará um poder
incomensurável.
A mente de Lore se desligou, deixando seu corpo reagir sozinho. Ela se
levantou tão rapidamente que a cadeira caiu para trás e tiniu contra o piso.
Não havia para onde fugir, e nada que as suas mãos pudessem segurar a não
ser seu outro braço.
— O quê?!
Miles fitava ambas, confuso.
Atena oscilou na cadeira, claramente instável devido à perda de sangue e,
potencialmente, a uma ferida interna ainda pior.
— Eu e minha irmã o rastreamos. Ele deseja essa informação acima de
qualquer coisa e pôs seus diversos caçadores à procura — disse Atena. —
Tenho certeza de que não preciso alertá-la sobre toda a sorte de ruína que ele
trará para este mundo se for capaz de encontrá-la. Precisamos agir com
celeridade. Se localizarmos esse fragmento ou… essa nova iteração… isso
nos colocará diretamente em seu caminho, e eu o liquidarei.
Encontrar a nova versão do poema da origem, se é que existe, daria à
Atena, obviamente, a mesma informação que Aristos Cadmou buscava. Lore
não gostou da ideia de ela cair nas mãos de nenhum deles, nem caçadores,
nem imortais. Teria de encontrá-la primeiro e, se possível, destruí-la ou…
Sua mente finalizou o pensamento obscuro: Destruir qualquer caçador que
saiba o que o poema diz.
— Você não vai conseguir matar ninguém nesse estado — disse Lore à
deusa. — Provavelmente está precisando de uma transfusão de sangue e
algum tipo de antibiótico, no mínimo.
— Não preciso de tais remédios — disse Atena. — Duvida de minha força,
criança?
A deusa não parecia notar que estava piscando rapidamente, esforçando-se
para manter os olhos abertos.
— Duvido do seu corpo mortal — explicou Lore.
— Tem alguém em quem vocês confiem o suficiente para pedir ajuda? —
perguntou Miles.
— Sim — disse Lore, mas na verdade era talvez.
Castor havia sido treinado como curandeiro e teria acesso aos suprimentos
da sua linhagem — remédios, sangue e tudo aquilo que Lore nunca seria
capaz de comprar na rua. Ela estava mais que disposta a engolir boa parte de
seu orgulho para tentar encontrá-lo se isso significasse a morte de Aristos
Cadmou. Mas ela sentira raiva, e ficou meio irracional quando Castor foi até
ela. Embora o amigo que ela um dia conheceu nunca fora do tipo que guarda
rancor, a jovem não conhecia nem um pouco esse novo Castor.
Apodidraskinda.
Aquilo era um convite… não?
— Posso conseguir ajuda e tentar encontrar mais informações sobre a nova
versão do poema da origem e quem pode estar com ele — disse Lore. — A
maioria dos caçadores está aqui na cidade agora, mas ele pode ter sido
guardado em um dos arquivos das linhagens em outro país.
— Está aqui — disse Atena. — Estou certa disso, parece que o falso Ares
ainda está aqui também. Independentemente de estar guardado em um cofre
ou na memória de alguém, o encontraremos nesta cidade.
Lore assentiu.
— Sua irmã tentar terminar o trabalho que começou será uma preocupação
para nós?
— Ártemis apenas me feriu para que ela própria pudesse fugir dos
caçadores da linhagem de Cadmo que nos caçaram durante o Despertar —
disse Atena. — Nossa aliança pode ter chegado ao fim, mas ela tem outras…
preocupações. Retribuirei o favor com minha lâmina quando chegar a hora.
— E quanto a Hermes? — perguntou Lore.
— Não vejo Hermes há um tempo — disse Atena, com a expressão
impassível. — Nem desejo vê-lo. Depois que o tolo quebrou nosso pacto há
quatro décadas, recusamos dar qualquer ajuda a ele, e ele a nós.
— Não posso nem imaginar o porquê — balbuciou Lore. Voltando-se para
Atena, acrescentou:
— Você pode tentar tomar um banho quando eu estiver fora.
A deusa retirou uma mecha de cabelo que estava grudada na bochecha com
sangue e assentiu. Ansiosa para selar a paz depois de deixar os dois, Lore
preparou a banheira e adicionou sais e óleos de banho. Deixou curativos
limpos próximos à pia.
— Vou procurar uma muda de roupa para você — disse Lore à Atena
enquanto saía do cômodo apertado e a deusa entrava. — Preciso te alertar que
pode ser que não esteja de acordo com o seu padrão.
Atena olhou para trás, e seus olhos brilhavam.
— Eu estou certa de que o que quer que encontre será… tolerável.
Lore parou na porta, segurando o batente.
— Vou ter que sair por um tempinho — disse Lore, em voz baixa —, para
encontrar um curandeiro para você. Miles vai ficar seguro aqui, porque eu
não sei o que eu faria se algo acontecesse com ele.
Os lábios de Atena se curvaram em um sorriso debochado.
— Certamente. Se bem que…
— O quê? — perguntou Lore.
— Há uma parte da nossa história que você pode ter interpretado errado —
disse Atena. — Não fomos punidos pelas vidas perdidas, mas por interferir
nas terras de outros deuses, o que ameaçou a paz da nossa própria terra; o
mundo além do conhecido pelos mortais.
— Isso é… — disse Lore. Existiam inúmeras formas com as quais ela
poderia ter terminado aquela frase. Terrível, cruel, inacreditável. Todas elas
verdadeiras.
Ela acabou não concluindo o pensamento, no fim das contas. Atena fechou
a porta, deixando Lore sozinha no corredor. Ela levou a mão ao bolso para
pegar o colar que Gil lhe dera. A mão envolveu o pingente de pena, e, por um
momento, ela não fez nada a não ser permanecer em pé no corredor mal
iluminado, esperando seu coração se acalmar.
Não está perdida — pensou ela —, está livre.
Quando a semana acabasse, e Atena cumprisse sua parte do acordo, Lore
estaria verdadeiramente livre. Do Ágon. Dos deuses. Dos caçadores.
Ela não se surpreendeu ao encontrar Miles já em seu quartinho, sentado na
ponta da cama. Ele era a coisa mais interessante no espaço sem graça.
— Vamos lá — ela começou a dizer —, eu sei que você quer ficar, mas…
De repente, Miles estava bem à sua frente, envolvendo-a em um abraço
apertado. Lore congelou, e seus braços estavam hesitantes nas laterais do
corpo.
— Por que você não foi embora? — sussurrou ele. — Você podia ter ido
embora semana passada. Eu teria ajudado.
Lore apertou os olhos e se afastou do abraço para ir até a cômoda.
— Se alguma coisa acontecer enquanto eu estiver fora ou se você vir
alguém suspeito na rua, preciso que deixe Atena para trás e fuja — disse
Lore.
— Não vou fugir — insistiu ele.
— Você não pode lutar com caçadores, Miles. Eles são treinados para matar
deuses e qualquer um que fique no caminho. Eu nem mesmo encontraria seu
corpo.
Ele a lançou um olhar estranho.
— Não vou lutar com eles — disse Miles. — Vou me esconder no porão e
ligar para a polícia, como uma pessoa normal.
Lore se permitiu dar um pequeno sorriso enquanto guardava
cuidadosamente o colar na cômoda e pegava de forma metódica uma blusa
branca, uma calça legging preta, roupas íntimas e meias das gavetas.
— Quer que eu tente consertar isso para você? — perguntou ele.
— Você pode fazer isso? — perguntou ela, passando o colar para ele. —
Não tenho uma corrente para trocar e não quero correr o risco de perder ele
usando uma linha.
Ele examinou o local onde a fina corrente de ouro partiu.
— Eu posso tentar, com certeza.
— Obrigada — disse Lore. Ela tinha poucas coisas que estimava. Tudo que
tinha em sua vida antiga se perdera.
Menos Castor — sussurrou sua mente.
Respirou fundo, permitindo que um pedacinho de afeto aconchegante se
espalhasse por ela ao perceber isso. Ela ainda tinha Castor. O Ágon havia lhe
tirado muito, mas o devolvera a ela.
— Sabe, eu entendo por que os caçadores querem a imortalidade — disse
Miles, erguendo o olhar. — E eu entendo os benefícios disso para eles e para
as linhagens. Mas ainda assim não me parece um motivo bom o bastante se
eles sabem que também vão ser caçados.
O medo inicial de contar tudo para Miles já havia sido substituído por um
exausto alívio. Uma pequena parte de si era até mesmo grata pelo fato de ela
ter tido a opção de decidir como contar a história.
— Tudo se resume ao kleos — disse Lore, e sua mão repousou no porta-
retrato. — É isso que realmente buscam. É a única coisa que eles têm
permissão de querer. Você pode ganhar a imortalidade se tornando um deus,
mas também pode ganhar por meio da glória. Kleos é a honra que se ganha
quando você se torna uma lenda; uma pessoa que os outros mantêm viva por
meio de histórias e canções. Seu corpo pode morrer, mas seu nome viverá
para sempre.
— É só isso? — disse Miles.
— Não faria sentido para você — disse Lore. Não faria sentido para
ninguém que tivesse sido criado fora do mundo dela. Às vezes, nem mesmo
para ela fazia sentido.
O toque agudo do celular de Miles fez com que os dois dessem um pulo.
— Você precisa trocar esse troço — implorou Lore.
Ele pediu desculpas apenas mexendo os lábios enquanto se levantava e ia
em direção à porta. Ele atendeu a ligação, levemente dolorido:
— Oi, mãe… Sim, não, eu estou com tempo. O que houve?
Lore ouviu a voz de Miles enquanto o amigo ia até o fim do corredor em
direção ao quarto dele.
— Não, não… você está pensando no lugar errado — dizia Miles. — É
onde a gente costumava jogar futebol, não na escola…
A porta do quarto se fechou, tornando as suas palavras abafadas inaudíveis,
mas a voz ainda pairava na mente dela, zunindo como um sino.
É onde a gente costumava jogar…
É claro. Apodidraskinda. Esconde-esconde. Brincavam disso quando
crianças.
— Muito esperto, Cas — sussurrou ela. A mensagem dele realmente não
havia sido um desafio.
Eram instruções exatas de onde encontrá-lo.
SETE

SURPREENDENTEMENTE, LORE NÃO PERCEBERA QUE HAVIA DESENVOLVIDO MEDO


de altura até se encontrar a três andares acima do chão, se equilibrando em
um parapeito de concreto de um antigo armazém em Tribeca.
— Plano fantástico, como de costume — resmungou ela.
Seu corpo tremia com o esforço da escalada e as pontas de seus dedos
estavam machucadas por agarrarem o tijolo. Lore virou a cabeça para a
esquerda uma última vez, se certificando de que ainda estava fora da visão da
câmera de segurança mais próxima.
Apesar de os Aquilídeos possuírem outras propriedades na cidade, este
edifício, conhecido como Casa Tétis, fora o único lugar em que ela e Castor
brincaram de apodidraskinda.
Quando eram crianças, Castor a mostrara como se aproximar do edifício
pela parte de trás sem ser pega pelas câmeras de segurança e pelos franco-
atiradores no telhado — uma façanha que envolvia se esgueirar até um
elevador de serviço no estacionamento separado dos fundos, rastejar por um
buraco escondido em uma cerca elétrica e usar uma fileira de latas de lixo
como escudo.
Depois disso, só faltava a irrelevante tarefa de desafiar a morte escalando o
canto do edifício usando a alvenaria decorativa da fachada como apoio para
os pés e as mãos. Mas havia uma significante diferença nessa escalada em
comparação com a última que havia feito há sete anos.
Agora, Lore sabia que tinha que ter medo — não apenas da chance de
queda, mas também do que encontraria do lado de dentro daquelas paredes.
Ela fez força e subiu mais quatro tijolos, passando pelas varandas e janelas
do terceiro andar. Antes que pudesse prosseguir para o andar, seus ouvidos
captaram algo. Música distante, acompanhada pelo tilintar de cristais e o
fraco burburinho de vozes animadas.
Lore ajustou seu peso, olhando para cima, depois para baixo, antes de
inclinar o corpo para a esquerda para espreitar por entre os vidros filmados
das portas da varanda. Alguém havia deixado a porta aberta.
Você só pode estar brincando — pensou ela.
Uma festa.
Dentro do edifício, era como um sonho de uma vida diferente, ancestral.
Lore captou vislumbres de Aquilídeos passando pela varanda. Mulheres
passavam desfilando pelo espaço, e seus vestidos brilhantes de seda tinham o
estilo antigo dos quítons e peplos. Suas joias cintilantes eram
complementadas por coroas de folhas de louro, reais e de ouro.
Os homens se misturavam uns aos outros em volta das amplas travessas de
comida, cascatas de champanhe e taças de vinho, todos usando quítons ou
mantos modernos sobre calças folgadas de seda.
Eventos como este, que se transformavam em festejos nublados por vinho e
rituais, eram muito comuns — qual a graça, afinal, de um destino glorioso se
nunca lhe for permitido deleitar-se nele? Algumas envolviam cerimônias
como sacrifícios para Zeus em busca de favores, dias antes do Ágon, e mais
rituais após sua conclusão, quando chegava a hora de enterrar os mortos.
Essa não era nenhuma dessas opções.
É melhor que você esteja aqui, Cas — pensou Lore, incomodada, apesar de
se surpreender por também sentir uma pontada de entusiasmo.
Dentro das paredes de tijolos, estavam inúmeros cômodos — quartos,
campos de treinamento, salas de conferência —, closets e armários que
fariam pessoas se perderem. Oficialmente, Lore somente fora convidada para
o terceiro andar, um amplo espaço aberto preenchido por suportes de armas,
onde ela havia treinado com o jovem Aquilídeo.
Embora seus pais tenham tentado treiná-la quando criança, tiveram
dificuldade de encontrar tempo entre os empregos que pagavam o aluguel e
botavam comida na mesa. Lore nunca pensou sobre o quanto deve ter custado
para seu pai procurar o arconte dos Aquilídeos para tratar do treinamento da
filha — o verdadeiro preço a se pagar não teria sido dinheiro ou promessa de
favores, mas a perda do orgulho que acompanhava a necessidade de pedir.
Lore respirou fundo novamente conforme chegava ao quarto andar. No
passado — e, queiram os deuses, no presente —, o último andar era usado
para estoque, e como havia caçadores de vigilância no telhado acima dele, ele
nunca teve o mesmo nível de segurança que os andares abaixo, mais
acessíveis. Isso incluía a não tão secreta entrada subterrânea do edifício
imediatamente à direita da Casa Tétis.
Havia um parapeito de um centímetro e meio que percorria a borda do
edifício até a varanda mais próxima. Lore prendeu a respiração e segurou o ar
enquanto ajeitava as pontas dos pés nele. Seus ombros e braços gritavam em
protesto, mas sua preocupação residia nas pontas dos dedos das mãos,
naquele momento dormentes devido ao esforço de agarrar os tijolos.
Antes que pudesse se permitir pensar com calma na tamanha estupidez que
era essa invasão, Lore se arrastou rapidamente pelo parapeito até a varanda.
O sol do final da manhã queimava em suas costas. Enquanto ele galgava o
horizonte, levava o calor intenso e úmido da cidade ao ponto de ebulição,
deixando-a tonta. Lore piscou, impedindo que o suor lhe caísse nos olhos
enquanto se esticava para alcançar o corrimão de pedra da varanda.
Ela estava tremendo quando conseguiu se alavancar sobre o corrimão,
caindo suavemente sobre o estreito bloco de concreto. Lore se aproximou das
portas, fora de visão a qualquer um que estivesse patrulhando acima dela, e
ajoelhou ali por um momento, esperando a dormência se dissipar na parte
superior do corpo.
Você não tem tempo para isso. Ande logo — pensou ela.
Cortinas blecaute obscureciam o que e quem quer que estivesse no cômodo.
Lore pressionou o ouvido no vidro quente da porta tentando captar algum
movimento, mas apenas ouviu a festa no andar de baixo e o próprio coração
batendo.
Os painéis de vidro nas portas eram à prova de balas, mas o alarme preso a
eles representava um problema maior. Ou teria representado, se o Castor de
onze anos fosse só um tantinho mais resistente à estratégia diabólica de Lore
de dez anos: apenas entrar em apostas que sabia que iria ganhar.
Havia um único tijolo solto bem acima da soleira da porta. Lore usou seu
canivete para soltá-lo com mais facilidade e agradeceu em silêncio ao
caçador apaixonado — aquele que Castor observara usar esse truque para ver
o homem com o qual havia sido proibido de se casar.
Lore pegou o ímã da ONG Kars4Kids que estava no bolso de seu short
jeans, desenrolando o cadarço que prendeu nele com fita. Cuidadosamente,
baixou o ímã pela abertura na parede e usou o cadarço para balançá-lo de um
lado para o outro até ouvir o denunciante clique do objeto magnético
beijando o sensor do alarme.
Por favor, funcione — pensou ela. — Por favor, que pelo menos essa parte
seja fácil.
Os sensores do alarme sempre foram magnéticos e eram ativados quando o
ímã da porta se separava de sua metade fixa. Era um sistema simples e
costumava ser eficaz, então, com sorte, eles não o haviam atualizado para
aparelhos modernos, a laser.
Lore pôs novamente a mão no bolso, procurando um fino pedaço de
plástico que havia cortado de uma garrafa vazia de Pepsi. Levou um tempo
para que conseguisse manobrá-lo entre as portas e abrisse o fecho inferior,
mais simples. Ela precisou esperar que o caçador passasse no andar de cima
novamente antes de inserir na fechadura a chave micha que comprara em uma
loja de ferragens no bairro. Enrolando o tijolo na parte de baixo da blusa, ela
bateu na chave, forçando-a o suficiente para conseguir virar a maçaneta e,
pela misericórdia, destrancar a porta.
Lore se afastou para a lateral, com as costas totalmente grudadas contra a
outra porta, e a abriu na direção da pesada cortina atrás dela, com um sorriso
de satisfação.
— Seus idiotas previsíveis.
Com todos os milhões que essas famílias gastavam com sistemas de
segurança e armamento, eles ainda não podiam vedar essas portas ou
construir uma parede atrás delas, como fizeram com as janelas. Isso
significaria diminuir potenciais rotas de fugas, caso outra família ou deus os
atacasse aqui.
Quando teve certeza de que nenhum alarme silencioso havia sido acionado,
Lore deslizou para dentro e fechou a porta cuidadosamente. Recebeu de bom
grado o afago do ar-condicionado e a relativa escuridão enquanto puxava o
cadarço pelo buraco, retirando o ímã e recolocando o tijolo.
Como ela já esperava, o cômodo ainda era usado para armazenamento. Era
um labirinto de caixas e baús velhos, tudo com um cheiro de umidade, como
se houvessem sobrevivido por um triz a uma inundação no porão. Lore foi
tateando-os até encontrar um conjunto de mantos pretos mofados de caçador.
Ela vestiu um deles por cima do short jeans rasgado e da regata preta
encharcada de suor.
No fundo do baú estava uma máscara lascada. Lore a encarou, odiando o
fato de ainda se sentir enjoada com a ideia de usar qualquer símbolo que não
fosse o de sua família.
Você precisa fazer isso — disse a si mesma. — Pegue a máscara. Só por
garantia.
A única coisa que ela não havia sido capaz de achar foi algum tipo de arma,
cortante ou não.
— Bom — murmurou ela, enquanto pegava uma chave de fenda solitária de
uma das caixas de ferramentas abandonadas. — É pontuda.
Lore guardou-a em um bolso oculto na parte interna do manto. Colocou o
capuz sobre a cabeça, em seguida o puxou de volta para baixo quando
percebeu o quão ridícula ficaria.
— Vamos lá, Perseus — sussurrou ela. — À procura.
O corredor era exatamente como lembrava, com a exceção de teclados
numéricos que foram instalados em algumas portas.
Olhou para cima, procurando por câmeras disfarçadas no teto.
Uma voz cortou o silêncio como uma lâmina em sua nuca.
— O que está fazendo aqui em cima?
OITO

LORE GIROU EM SEU EIXO. UM HOMEM QUE ELA NÃO RECONHECIA, VESTINDO UM
manto idêntico ao dela, estava parado no fim do corredor, bem no topo da
escada.
— Eu… — ela começou a dizer, falando a primeira coisa que veio à mente.
— Pensei ter ouvido algo.
O olhar do homem se estreitou. Lore deslizou instintivamente uma das
mãos para dentro do manto a fim de pegar a chave de fenda, mas se forçou a
parar. Ela apenas pareceria ainda mais culpada se não fosse na direção dele,
então foi.
— Ele parecia estar correndo algum perigo? — perguntou o homem, na
língua antiga. Uma nota de ansiedade ressoou entre as palavras. — Pensei
que ele estava com acompanhantes.
Acompanhantes?
— Acabou não sendo nada — disse Lore, suavemente, se mantendo fora do
alcance da fraca luz de velas em uma mesa próxima. Segurou a máscara com
mais força, desejando ter vestido aquela coisa idiota. — O andar está seguro.
Antes de sair de casa, Lore pegara um marcador e desenhara a letra alfa,
junto com o símbolo da linhagem, no pulso esquerdo. Era uma marca que ela
via traçada no peito e nos braços dos Aquilídeos que treinaram com ela.
Levantou preguiçosamente a manga, fingindo coçar uma coceira fantasma.
A expressão do homem relaxou quando percebeu a tatuagem falsificada.
Embora sempre houvesse espiões dispostos a fazer o que fosse necessário
para invadir as defesas de uma linhagem, os caçadores eram supersticiosos o
suficiente para acreditar que estampar o símbolo de outra casa no corpo
irritaria seus ancestrais, fazendo com que eles os abandonassem.
Visto que a desgraça vinha sendo uma companheira constante de Lore pelos
últimos sete anos, ela tinha certeza de que seus ancestrais não tinham como
odiá-la mais do que já odiavam.
— Que bom — disse o caçador. — Vamos lá para baixo. A gente deve
conseguir comer alguma coisa antes de nos chamarem de volta para ficar de
vigia. Você é uma das garotas de Tassos, não é?
— Acertou de primeira — disse Lore, deixando o rosto relaxar em um
sorriso. — Como…
Uma porta na outra ponta do corredor se abriu, e várias meninas, com
menos de cinco anos de idade, foram conduzidas para fora de um dos
cômodos.
O coração de Lore se apertou como um punho.
Todas as meninas vestiam uma túnica branca simples, com detalhes
bordados em dourado combinando com as sandálias e os cintos. Estilos
diferentes de coroas e laços estavam entrelaçados em seus cabelos trançados.
Uma mulher, com cachos escuros em pequenos e apertados anéis, emergiu
atrás delas. A seda violeta de sua toga longa e drapeada estava estampada
com símbolos clássicos e ilustrações, incluindo uma de Aquiles preparado
para a guerra.
A mulher gesticulou para as meninas, e todas elas, cada uma das nove,
ficaram em silêncio e imóveis, e seus pequenos corpos se enrijeceram com o
que Lore sabia ser obediência polida pelo medo.
Um homem emergiu do cômodo do outro lado do corredor como um raio
estrondoso. Ao vê-lo, Lore ficou com uma expressão furiosa.
Philip Aquileu estava grisalho, e a permanente carranca em seu rosto havia
apenas se intensificado com a idade. Suas cicatrizes pareciam mais
proeminentes do que nunca em seu rosto pálido, e, embora o bode velho
ainda tivesse o peito protuberante, o corpo debaixo do manto safira vivo
claramente havia murchado por ele ter deixado o auge da juventude para trás.
Sua esposa, Acantha, o seguia, elegante e perfeitamente penteada. Ela
sempre foi a melhor caçadora entre os dois — tornando-se praticamente
lendária até a conclusão de seu primeiro Ágon. Mas seu casamento e a
aliança temporária que ele trouxe entre as Casas de Aquiles e de Teseu
cortaram suas asas.
— Pater — disse a mulher em violeta, se curvando para Philip —, permita-
me apresentar…
Ele circulou pelas meninas com um olhar de desgosto. Uma delas arriscou
lançar um olhar na direção dele. O dorso da mão do homem chicoteou na
têmpora dela.
A raiva cresceu dentro de Lore. Ela deu um passo na direção deles, mas
parou quando a menina se endireitou novamente, com o rosto
cuidadosamente impassível conforme erguia o queixo.
Você precisa encontrar Castor — lembrou Lore a si mesma. — Não se
entregue tão facilmente.
Mas as meninas… essas crianças… ela não podia suportar. Estar dentro da
Casa Tétis de novo a deixara vulnerável por um momento, mas agora Lore se
lembrava de seu ódio — dos caçadores, dessa vida. Isso a atingiu como um
raio.
A visão da menina se curvando para aquele porco com um respeito que ele
não merecia, na esperança de nada além de agradá-lo, fez com que ela
quisesse gritar.
Philip não ligava para aquelas crianças, assim como não ligou para Castor.
O fato de que o arconte havia negado pessoalmente ao pai de Castor
continuar financiando o tratamento médico do garoto foi o suficiente para que
Lore o odiasse nesta vida e por toda a eternidade.
— Estas foram as melhores que conseguiu? — sibilou ele para a mulher de
violeta. — Disse-lhe para selecionar meninas bonitas. Onde encontrou estas,
se arrastando pelos túneis do metrô junto com os outros ratos?
— Pater? — disse a mulher, com a voz mais baixa agora.
— Talvez — disse Acantha, colocando uma mão tranquilizadora sobre o
braço do marido. Ela compartilhou um olhar disfarçado com a mulher,
inclinando a cabeça até que o fio dos brincos de diamantes pendurados em
suas orelhas brilhasse à luz das velas. — Talvez, Pater, a visão delas seria
menos ofensiva para vós se ela as pintasse de dourado.
Philip Aquileu soltou um rosnado baixo antes de latir.
— Que assim seja. Lembre-se de que não é apenas a minha decepção que
você deve temer.
— Sim, Pater — disse a mulher, apressando as meninas até ela. — Sim, é
claro. Elas estarão prontas a tempo para a cerimônia.
Cerimônia — observou Lore. Não apenas uma celebração.
Philip virou-se, percebendo a presença dela e do outro caçador no fim do
corredor.
— Por que estão parados aí como idiotas preguiçosos, querem levar uma
surra?
Nem Lore nem o outro caçador precisaram de nenhum outro incentivo para
fugir escada abaixo.
Lore deixou que o homem conduzisse a breve conversa entre eles e
manteve a cabeça baixa, contando os degraus conforme passavam por
debaixo de seus pés. O cheiro de incenso e óleo de cipreste era o suficiente
para fazer a cabeça de Lore ficar anormalmente pesada, e o corpo, como se
estivesse embriagado.
O salão de treinamento, o único andar aberto no edifício, fora convertido
para hospedar a cerimônia. A entrada estava coberta por um tecido branco de
seda, grosso o suficiente para encobrir o cômodo atrás dele. Dois caçadores
em mantos cerimoniais completos, capacetes e corpos pintados de cores
vivas, vigiavam a porta.
Lore deixou que o outro caçador se aproximasse primeiro, em seguida
estendeu a mão para o braço estendido do outro guarda, segurando o
antebraço dele com dois dedos estendidos, da mesma forma que Castor
relutantemente a ensinou anos atrás, quando ela havia ganho outra aposta. O
guarda retribuiu o gesto.
— Bem-vinda, irmã — sussurrou ele e, depois, deu um passo para o lado.
Lore assentiu, depois desceu a máscara de bronze sobre o rosto, sentindo-se
melhor com isso quando viu que alguns dos outros caçadores fizeram o
mesmo. Ela não queria se destacar como a única usando máscara, mas o risco
maior era o de alguém reconhecê-la.
Podem ter se passado sete anos desde a última vez que pisou ali, mas sua
aparência não mudou tanto assim com a idade, e qualquer um que conhecesse
a mãe de Lore a veria agora no rosto dela. Ela tinha o mesmo cabelo
indisciplinado e grosso, a pele morena e os olhos castanhos.
Mas talvez não a reconhecessem. Sua mãe estava morta, e, ainda que
ressentimentos pudessem ser alimentados por si mesmos ao longo dos
séculos, memórias desapareciam com o passar dos anos. Não havia ninguém
ali que se importasse em se lembrar de Helena Perseus.
Ninguém, exceto sua própria filha.
Lore arrastou a cortina de seda para o lado, apenas para ser interrompida.
Levou um momento para que percebesse para o que estava olhando.
Um templo. Ela estava dentro de um templo.
Conforme Lore dava outro passo para a frente, a ilusão se revelou. Imagens
holográficas fantasmagóricas estavam sendo projetadas nos espelhos
transparentes que cobriam as paredes e o teto. Colunas reais e falsas se
erguiam em direção à imagem digital de um teto abobadado, decorado com
cores ousadas e aparentemente enfeitadas de dourado e prata.
Mesmo sabendo que era tudo de mentira, um entusiasmo cresceu nela — o
qual ela não queria analisar muito profundamente.
Lore deu meia-volta e percebeu que as colunas holográficas na entrada
davam para a cena diurna de uma paisagem marítima rochosa e selvagem. As
sombras do cômodo se intensificavam quanto mais ela se afastava. Dando
espaço para a sensação de um sonho se transformando em um pesadelo.
Fileiras de braseiros davam direto a uma espécie de altar; eles iluminavam o
piso decorativo que havia sido colocado sobre o assoalho maltratado de
madeira no qual Lore e centenas de outros se escoriaram, se arranharam e
sangraram.
— O que diabos…? — sussurrou ela, incapaz de deter a si mesma.
Uma piscina com velas flutuantes e flores espalhadas estendia-se diante do
altar. Entre elas estava um assento imponente — um trono, na verdade, com
um delicado sol esculpido na parte de trás. Parecia ter sido feito de ouro
fundido ou folheado pelo metal.
Julgando pelo que já havia visto, Lore tinha a impressão de que a primeira
opção estava correta.
O homem e a mulher ao redor do trono dançavam ao gentil som de uma
lira, outros rodopiavam pelo salão armados com vinho e fofocas, em vez de
espadas. Mesas compridas cobertas por toalhas brancas como ossos tomavam
o lado direito do salão. Os Aquilídeos exibiam suas mais estimadas vasilhas e
louças cerimoniais, e todas transbordavam com uma vívida variedade de
frutas frescas. Além disso, havia travessas de prata contendo carne em cortes
bem finos e peixe, queijo, doces folhados e montes de azeitonas recheadas.
Com um olhar rápido ao redor para se certificar de que ninguém a vigiava,
Lore roubou uma taça de vinho, virou-a de uma só vez e, então, começou a
avaliar o banquete à sua frente. Ela precisava encontrar Castor o mais rápido
possível, mas sua última refeição havia sido feita há horas, e ela não ignoraria
a dor aguda no estômago, apenas se precisasse.
Quando a mulher que caminhava lentamente por ali — a que vinha
contemplando a amygdalota de um jeito que Lore conseguia entender muito
bem — finalmente seguiu em direção à baklava, Lore pegou um dos biscoitos
de amêndoas. Ela estava tentada a levar uma das maçãs cobertas de chocolate
enroladas em folhas de ouro para Atena — apenas para ver como ela reagiria.
Sentindo-se mais firme após colocar comida no estômago, Lore voltou sua
total atenção para o enorme salão e adentrou mais fundo nas sombras,
caminhando pela extensão da parede mais à direita. As imagens projetadas
não pareciam nada mais do que distorções, agora que ela olhava de perto.
Beleza, Cas — pensou Lore. — Cadê você?
Moveu-se novamente, dessa vez ficando próxima à piscina brilhante, mas
fora do halo de luz. Lore procurou por ele pelo salão. Os Aquilídeos, como
todas as linhagens de caçadores, tinham raízes em seu antigo lar, mas cada
século trazia consigo maridos e esposas de todo o mundo. Os rostos ao redor,
com uma variedade de tons de pele e feições, refletiam isso.
Seu pulso acelerou, mesmo que ela estivesse parada.
Estar de volta ali, naquele lugar, no meio daquelas pessoas… era ruim para
ela. Lore queria ir embora, mesmo que não fosse. Queria desviar o olhar,
mesmo que não conseguisse.
Quando criança, havia ficado admirada com a ostentação das linhagens,
muito diferente da situação da própria família. Ela devorara os segredos
convidativos das tradições de seu mundo oculto e se sentira orgulhosa, tão
altiva quanto qualquer daemon, sabendo que sua família, dentre muitas
outras, havia sido escolhida. Eles eram os Puro-sangues, herdeiros dos
maiores heróis.
Isso não é nada além de uma festa à fantasia — pensou Lore.
Esse mundo era como as projeções distorcidas ao seu redor. Templos uma
vez foram locais sagrados de adoração, não de excessos autoindulgentes. As
linhagens foram despidas das verdadeiras crenças de seus rituais há séculos;
sua única religião era a brutalidade febril e o materialismo. Somente o
próprio Zeus recebia qualquer agradecimento, e mesmo assim os sacrifícios
eram gestos rasos nascidos da superstição, não da devoção.
Diversos membros de sua antiga turma de treinamento estavam aqui; vê-los
fez com que sua temperatura sofresse um pico repentino. Orestes, com aquele
babaca de marca maior, incomodando uma entediada Selene, uma das poucas
crianças que se dignara a falar com Lore nos três anos que ela treinou ali.
Ágata, mergulhando a mão na água para recuperar um bracelete de esmeralda
que havia derrubado; e do lado dela, Iesos, com bem mais cicatrizes do que
Lore lembrava que ele tinha — não que ela gostasse de se lembrar dele de
qualquer forma. O rapaz era obcecado com o fato de ela não ter um nome
“adequado” e “real”, e decidira chamá-la de Clóris, como se ela devesse se
sentir ofendida com aquilo.
Cadê você, Cas? — pensou ela novamente, angustiada.
Conforme o tempo passava e Lore continuava sem ver Castor, o desespero
começou a diluir o pouco de esperança que ela tinha. Talvez ele estivesse
trabalhando, curando caçadores feridos, ou será que estava descansando em
outra das propriedades da linhagem?
Embora a mãe dele tenha morrido em um Ágon logo depois de seu
nascimento, Lore estava surpresa de não ter visto o pai de Castor, Cleon.
Como gerente de longa data da Casa Tétis, ele morava no edifício e seria o
responsável por organizar tal festa.
Você já perdeu muito tempo — pensou Lore, indo em direção à entrada. Ela
precisava usar a distração da celebração para procurá-lo nos quartos do andar
de cima, e, se fracassasse nisso, roubaria qualquer suprimento médico que
pudesse encontrar e o levaria de volta para Atena.
Mas Lore não dera nem um passo quando um silêncio caiu sobre a Casa de
Aquiles. Os caçadores se inclinaram em direção à entrada, se afastando do
caminho iluminado até o altar. Os olhares famintos nos rostos ao redor e os
olhos brilhando febris com o vinho e a excitação embrulharam o estômago
dela.
Philip Aquileu apareceu no topo da escada; Acantha estava a um passo atrás
dele. Moveram-se com o ritmo da lira, os olhos fixos no altar conforme
caminhavam até o trono. Em vez de sentar-se nele, Philip ficou em pé do lado
esquerdo do trono e Acantha do lado direito.
Por um momento, Lore não entendeu a relutância de Philip. Mas, como a
colisão de uma onda desenfreada contra o litoral, a ficha acabou caindo.
A euforia daqueles ao seu redor. Os símbolos do sol, a lira e todos os louros
nos relevos e guirlandas ao redor.
Isso tudo foi feito para parecer com o Grande Templo na ilha de Delos.
A terra natal de Ártemis… e seu irmão gêmeo, Apolo.
— Ah… — inspirou Lore. Um choque percorreu sua coluna, deixando-a
eletrizada. — Ah…
Estavam todos errados, até mesmo Lore. O novo Apolo não residia na Casa
de Teseu, mas sim na Casa de Aquiles.
Mas não é Philip? — Olhou na direção do velhote, tentando ler sua
cautelosa expressão.
Interessante. Um acidente, talvez. Talvez Apolo tenha morrido antes que o
velho pudesse matá-lo. Não teria sido a primeira nem a última vez.
Crianças, da mesma idade que Lore viu no andar de cima, desceram os
degraus, todas com a pele pintada de dourado. Era quase insuportável olhar
para elas, tão orgulhosas enquanto seguravam uma vela em uma das mãos e
um pequeno objeto de prata na outra. Uma delas segurava um livro, outra um
telescópio, outra uma lira, outra uma máscara de teatro. Então, Lore
percebeu. Elas deveriam representar as Musas. Canta para mim, ó Musa…
Elas também formaram uma procissão até a piscina. Uma a uma, sentaram-
se na extensão da borda e colocaram suas velas na água. As chamas
flutuaram junto com as flores brancas.
Um fraco cantarolar preencheu o ar, parecendo se elevar de todos ao
mesmo tempo. A jovem mulher negra à lira começou a tocar uma nova
canção, que parecia espiralar até o beiral em notas de ar e luz. Ela também se
ajeitou na cadeira para ter uma visão melhor do que — ou melhor, de quem
— estava chegando.
Lore soube que devia prestar atenção na cena antes mesmo de ouvir os
fracos suspiros. Um calor repentino percorreu sua pele, um poder incendiário
que acendeu cada nervo de seu corpo em chamas.
Ele desceu as escadas como o primeiro raio de sol adentra pela janela de
manhã. Sua constituição era imaculada — alto, cheio de músculos e com um
rosto que ecoava na região mais doce da memória de Lore.
Castor.
DEZ ANOS ATRÁS

EM UMA MANHÃ DE INVERNO, ANTES DE O SOL COMEÇAR A NASCER E SUA IRMÃ


despertar de sonhos desvanecentes, Lore acordou para o seu destino.
Abriu os olhos e deu de cara com o rosto do pai pairando sobre o dela.
— Chrysaphenia mou — sussurrou ele, com seu típico afeto. Minha áurea.
Seu rosto era terno. — Ainda quer treinar? Encontrei um lugar para você.
Lore olhou para Olympia, aninhada ao seu lado como um filhote de gato na
caminha, em seguida olhou de volta para o pai. Estava repentinamente
desperta. Todo seu corpo parecia estar prestes a explodir.
— O agogê?
O pai assentiu.
— Os Aquilídeos vão te aceitar no treinamento deles, mas você vai ter que
começar hoje.
Lore jogou as cobertas para o lado, pulando da cama tão rápido que fez seu
pai rir. Ele se curvou sobre ela, dando um beijo em sua cabeça. Ela retribuiu.
— Obrigada, obrigada, obrigada!
— Shhh — lembrou ele, apontando para Olympia.
Lore fingiu lacrar os lábios, mas não conseguia parar de sorrir. Ela quicava
sobre os pés.
— Lá não é como os lugares dos seus livros — disse ele, alisando o cabelo
dela com a mão. — Não quero ver você desapontada quando chegar lá e
perceber que não é nenhuma Esparta.
Os caçadores haviam adaptado os programas de treinamento da grande
Esparta, tirando as partes de que não gostavam. Lore não ligou; a única coisa
que importava era que seria capaz de lutar como os pais. Que agora poderia
ver as cerimônias, os arquivos e todas as coisas que não tinham em sua
pequena família. Os grandes mistérios dos quais só ouvira falar.
— Hoje? — disse ela, apenas para certificar-se de que não estava sonhando.
— De verdade?
— De verdade — respondeu ele. — Agora, vá se arrumar e lavar esse rosto.
Vou te levar antes de ir para o trabalho.
Lore correu até a pequena cômoda que compartilhava com sua irmã,
arrancando a gaveta do topo. As fotos em cima dela chacoalharam, fazendo
com que Olympia se revirasse na cama. Lore olhou na direção do tufo de
cabelo escuro misturado ao lençol e se forçou a pegar silenciosamente uma
blusa, um suéter e um par de jeans, e então fechou a gaveta. Foi até a cama
novamente e puxou as cobertas sobre Pia, se certificando de que a boneca,
Coelhinha, estava ao alcance da menina.
Finalmente — pensou ela, e a empolgação cresceu até que Lore mal
pudesse respirar. Correu para fora do quarto, parando apenas quando
percebeu que não havia calçado os sapatos.
Três meses antes, seus pais sentaram-se com ela à pequena mesa da cozinha
e explicaram que talvez ela não pudesse começar o treinamento com as outras
crianças caçadoras de sua idade.
— Não é o momento disso — disse sua mãe. — Eu sei que é chato, mas
também sei que você vai entender que não somos como as outras linhagens.
A minha… a Casa de Odisseu não vai abrir as portas para nós depois que
renunciei ao meu nome, e mesmo assim a escola deles fica do outro lado do
oceano. Seu pai e eu vamos ter que cuidar de seu treinamento. Quando o
verão chegar, talvez eu consiga trabalhar menos horas, e a Sra. Osbourne
poderá cuidar das suas irmãs…
Lore assentiu, deixando que as lágrimas e a dor se acumulassem dentro de
sua cabeça até que pudesse fugir para o quarto. Chorou em silêncio contra o
travesseiro e enfiou o livro de mitos que o pai lhe dera bem debaixo da cama,
de forma que não pudesse mais alcançá-lo.
Ela caiu em um sono profundo, e ali seu destino veio até ela, cintilando.
Sonhos eram mensagens de Zeus. Era importante se lembrar de tudo. Ela viu
a borda de um escudo sendo segurada firmemente à sua frente, repelindo a
escuridão. Uma asa feita de luz dourada. Olhos brilhantes refletiam na lâmina
de sua espada.
Ela guardou o sonho para si. Agora, ao que parecia, as Moiras estavam
prontas para ela.
Sua mãe já estava na cozinha, preparando o café da manhã. Damara estava
aninhada no berço, balbuciando quietamente para si mesma. Ela era menor
que uma boneca, e sua pele era tão macia e fina que Lore às vezes tinha
receio de tocá-la e deixar um hematoma.
Lore se curvou e beijou suavemente a irmã na cabeça. Gostava de sussurrar
segredos para Damara, porque, ao contrário de Pia, Damara não podia contar
aos pais nada do que Lore lhe dizia.
— Estou um pouco nervosa — disse ela, suavemente, depois fez cócegas
até Damara arrulhar.
Lore riu.
— Ela mia que nem um gatinho.
— Um gatinho? — Papai colocou a mão dentro do berço, acariciando a
bochecha de Damara, deixando-a morder seu polegar.
— Ela é uma Perseus mesmo — disse ele às filhas, com orgulho. — Olha
como ela tem força na mão!
— É um gato persa, isso sim — disse Lore, rindo.
— Parece que alguém está animada — disse mamãe, enquanto colocava
uma tigela de aveia em frente à Lore, na mesa. Lore inalou o doce cheiro de
canela e banana que a mãe acrescentou. Ela havia feito seu café da manhã
favorito.
— Quer que eu trance o seu cabelo? — perguntou mamãe.
Lore assentiu, ansiosa, deixando que a mãe penteasse seu cabelo ondulado e
cuidadosamente o tecesse em uma trança, enquanto ela acabava rapidamente
com a comida diante de si. Papai e mamãe conversavam baixinho sobre as
notícias no rádio.
— Podemos ir? — perguntou Lore. — Podemos ir mais cedo?
O pai riu.
— Você não tem nada a dizer para sua mãe?
— Ah! Obrigada, mamãe — disse Lore, subindo na cadeira para beijar a
bochecha dela. Sua mãe a ajudou a descer, seguindo-os até a porta. Então,
entregou o casaco do pai de Lore a ele e ajudou a filha a vestir o dela.
— Este já está quase ficando pequeno em você também — disse ela,
surpresa. — Você vai ser alta, como a minha mãe.
Lore podia apenas sonhar. Isso a ajudaria na hora de treinar e, depois, a
caçar.
— Vai parecer muito difícil no começo — disse a mãe, abotoando seu
casaco. — Seja forte e não deixe que isso te desanime. Tudo vai acontecer na
hora certa. Você é uma filha de Perseu.
As palavras permaneceram na mente de Lore enquanto ela e o pai
caminhavam até o centro, pegando o metrô para o lugar mais distante que ela
já foi. Quando saíram da estação, as ruas eram tão desconhecidas quanto
emocionantes.
Seu pai segurou sua mão, resistindo aos esforços de Lore de se desvencilhar
dele até que finalmente chegassem a um grande edifício de tijolos aparentes.
O pai parou por um momento, checando o número, e então pôs a mão no
ombro dela para guiá-la até o edifício menor ao lado. Lá, a porta abriu antes
que ele pudesse levantar a mão para bater.
Um homem os encontrou ali, olhando de forma ameaçadora para onde
estavam, nos primeiros degraus. O cabelo escuro dele estava alisado para
trás, colado no couro cabeludo, e Lore percebeu imediatamente que o rosto
dele parecia o de um bode irritado.
— Estamos honrados por sua benevolência — disse seu pai, e fez uma
reverência, abaixando a cabeça e levando a mão ao bolso interno do casaco
para pegar um envelope grosso. O homem o aceitou sem pensar duas vezes.
— Permita-me apresentar minha filha, Melora.
— Você compreende os termos deste acordo? O favor que peço em troca?
— disse o homem, com a voz estrondosa.
Lore olhou para ambos, confusa. Favor?
— Compreendo — disse o pai. — Vou mandar todas as informações que
tenho da Portadora da Maré a vocês.
— Até hoje à noite.
— Até hoje à noite — concordou o pai.
O cenho de Lore franziu. A Portadora da Maré havia causado a destruição
de sua família, mas ela não gostava da ideia de dar qualquer coisa a este
homem, um rival de sua casa.
Mas tudo ficaria bem. Seu pai nunca estava errado.
Finalmente, o bode velho voltou o olhar para ela.
— Sou Philip Aquileu, arconte dos Aquilídeos — disse ele e deu meia-
volta, deixando a porta aberta. — Venha, criança. A entrada de seu pai não é
permitida aqui.
O peso da mão do pai foi retirado de seu ombro, liberando-a.
— Volto para buscar você esta noite — prometeu ele.
Mas Lore não olhou para trás, nem mesmo quando a porta bateu e trancou,
selando a luz do sol da manhã. O edifício não era nada mais do que uma
casca vazia, percebeu ela. Havia carros estacionados na parte de dentro.
O homem a guiou escada abaixo até um corredor escuro. Estavam no
subsolo e indo em direção à construção maior.
— Você é uma convidada na Casa Tétis — disse Philip Aquileu a ela. — Se
revelar qualquer coisa que presenciar aqui, haverá consequências em sua
vida, assim como nas de seus familiares. Se você ficar para trás com relação
aos outros, será removida do agogê como garantia de que não atrasará nossas
crianças com sua incompetência.
Lore respondeu sim, como se tudo aquilo fossem perguntas. Ela faria o que
fosse necessário para permanecer. Treinaria o quanto fosse preciso para
alcançar a aretê — aquela perfeita combinação de coragem, força, habilidade
e sucesso — e, um dia, o kleos. Seu destino era um presente, e agora ela o
manifestaria.
O arconte a levou até o segundo andar do local, um espaço iluminado,
apesar da falta de janelas. O chão era revestido de madeira e já havia alguns
grupos de crianças ali, algumas tão novas quanto ela, com uns sete ou oito
anos de idade. Algumas eram mais velhas, e havia aquelas ainda mais velhas.
Um pesado silêncio se instalou quando ela e Philip passaram, indo em
direção à extremidade do salão. As crianças fizeram uma mesura para o
arconte, mas Lore estava muito impressionada pelas prateleiras de armas e
grupos de treinamento para ouvir efetivamente o burburinho mencionando
Perseídeos e Perseu.
Finalmente, eles alcançaram as outras crianças da idade de Lore. Todas
usavam quitões e brandiam pequenos bastões, como lanças sem a ponta
mortal. Lore examinou os rostos com avidez e estava surpresa por encontrar
olhares de desgosto e apreensão ali.
Eles só não te conhecem — pensou ela. — Você precisa mostrar a que
veio, como as histórias dizem.
— Esta é Melora Perseus — disse Philip. — Ela se juntará ao agelé de
vocês como convidada da nossa linhagem.
Aquela seria a única apresentação que fariam a ela. Com um aceno de
cabeça do instrutor, Philip se retirou.
Por um momento, o instrutor, um brutamontes de cabelos claros,
simplesmente a mediu com os olhos.
— Perseus — disse ele, zombando. — Ao que parece, a grande Casa de
Perseu foi reduzida a implorar e fazer trocas por piedade.
As outras crianças sorriram de escárnio umas para as outras, soltando
risadinhas e sussurrando.
A mandíbula de Lore se enrijeceu até ela começar a pensar que talvez
quebrasse os dentes.
— Você está com semanas de atraso para se juntar aos outros da sua idade
— prosseguiu ele, rodeando-a. Na extremidade oposta do salão, os demais
alunos começaram as lições do dia, treinando com espadas e bastões. Lore
resistiu à incômoda tentação de se virar para assistir, deixando que o som de
metal contra metal, madeira contra madeira, pele contra pele, fosse o
suficiente.
Você é uma filha de Perseu. Ela repetiu o pensamento até que virasse uma
armadura que só ela pudesse ver. Você é uma filha de Perseu.
— Coincidentemente, ele também está — disse o instrutor, gesticulando
para um garoto nos fundos da sala. Ele caminhou por entre as outras crianças.
Lore lançou-lhe um olhar avaliador, e a incerteza ia se instalando dentro dela.
O garoto era mais ou menos da altura dela, mas seus membros eram como
gravetos. Sua pele era pálida, como se ele não visse a luz do sol há meses.
Um vestígio de cabelo escuro crescia ao longo de seu couro cabeludo
raspado. Ataduras grossas enfaixavam a pele machucada na área interna dos
braços e no dorso das mãos.
Ele está doente — percebeu ela. Ou havia estado, já que agora estava neste
lugar.
Ela gostava ainda menos das risadas das outras crianças agora, e gostou
ainda mais do garoto por não reagir quando começaram a rir de novo. Lore
olhou nos olhos escuros dele, estreitando os dela. O garoto parecia exausto,
mas estava aqui, mesmo que os outros claramente acreditassem que não
deveria.
— Castor será seu hetaîros por enquanto — disse o instrutor, friamente. —
Mas ele está destinado a ser aprendiz do curandeiro, e não estará sempre
disponível para você. Nesses momentos, você apenas observará. Nesse meio-
tempo, vocês devem estar… no mesmo nível.
Os outros riram de novo. Lore se perguntou se achavam que ela ficaria
magoada por ter virado par de alguém que se recuperava de uma doença, ou
se Castor se ofenderia porque estava encalhado com alguém nascido da Casa
de Perseu.
Há sempre rivalidades entre as casas — pensou ela. Mas com ela e Castor
não haveria nada disso. Seu sangue corria animado nas veias por saber que
tinha um parceiro. Lore ergueu o queixo. Eles não tinham ideia do que ela era
capaz ou qual seria seu destino. Ela não decepcionaria sua linhagem e não
decepcionaria seu hetaîros.
Lore acenou com a cabeça para Castor. Ele acenou de volta, com olhar
suave, mas determinado. Ela gostava dele. A calma do menino a acalmava
também.
O único alerta foi a sensação de incerteza em sua nuca, e então o estalo de
dor no local a alavancou para frente. As outras crianças a cutucavam com os
bastões, mantendo-a dentro do círculo que formaram ao seu redor. O próximo
golpe veio da direita, depois da esquerda, espancando-a de um lado para o
outro enquanto a rodeavam.
Castor ofegou nitidamente à direita dela, erguendo um braço para bloquear
um dos garotos conforme ele girava o bastão e golpeava suas escápulas.
Não caia — pensou Lore, tentando chamar a atenção dele. — Não caia.
Era tudo parte do treinamento. Doía, mas era necessário. Os golpes
choviam sobre eles, implacáveis e destrutivos. Lore tentou respirar fundo
para evitar que as lágrimas escorressem por seu rosto. As pancadas e a dor a
envolveram como ondas esmagadoras. Ela fitou Castor de novo, apenas para
perceber que ele já a estava fitando de volta.
— Este é o ensinamento mais importante que tirarão deste salão — disse o
instrutor. — Devem aprender a não temer a dor ou, então, ela os acorrentará e
tirará sua coragem. O medo é o maior inimigo.
Sua visão periférica começou a escurecer conforme os rostos em sua frente
se desfocavam, dividindo-se em dois e então em três, como as cabeças de
Cérbero.
Você é uma filha de Perseu.
A voz de sua mãe ecoou em sua cabeça, fulminante enquanto um bastão
atingia Lore atrás da orelha direita. Houve uma explosão de sangue em sua
boca quando ela mordeu a parte interna da bochecha.
Castor estava cambaleando, seu corpo tremia com o esforço para não cair.
Ele a lançou outro olhar e se forçou a endireitar a postura, assim como ela.
Não caia — pensou ela.
Não vou — prometeu o olhar dele.
E enquanto ele não caísse, ela não cairia.
— Dor é a essência da vida — disse o instrutor. — Nascemos da dor e, se
vocês se tornarem caçadores, se honrarem seus ancestrais, morrerão nela.
Não vou morrer — pensou Lore, com a escuridão tumultuando sua visão.
Ela olhou para Castor de novo, se apegando a imagem dele.
— Seus pais e suas mães podem até tê-los dado à luz em suas linhagens —
disse o instrutor. — Mas eles não são suas famílias. Estes à sua volta são seus
irmãos e irmãs. Seu arconte é seu guardião, sua luz e seu líder. Ele é seu
pater. Seu pai de verdade. É por ele que você aprende a sentir dor. É por ele
que você sangra.
Lore cuspiu sangue, quase se engasgando com ele. Seu pai era seu arconte.
— Vocês almejarão por aretê, mas não há morte mais honrosa do que a de
um guerreiro que conquistou a imortalidade do kleos para si e para sua
linhagem — disse o instrutor. — Honra. Glória.
Os outros — todos no salão de treinamento — repetiram junto com ele.
— Honra.
Golpe.
— Glória.
Golpe.
— Honra.
Golpe.
— Glória.
Eles não sabem — pensou Lore. — Não sabem qual é o meu destino.
Ela teria honra e glória. Ela conquistaria o kleos e restabeleceria sua casa.
Não havia nada mais importante do que aquilo. A Casa de Perseu se
reergueria, e seu nome se tornaria uma lenda.
Castor se apoiou nela, ainda tremendo. Ela vislumbrou relances dele entre
os golpes, entre os olhares de desdém e diversão à sua volta. Muco e sangue
escorriam pelo rosto do menino, e ele piscava, tentando clarear a visão. Ela
agarrou o pulso dele, ajudando-o a se firmar.
Eles não cairiam. Juntos, mostrariam a que vieram. Mostrariam que
mereciam estar ali.
Quando o golpe seguinte veio, Lore soube como desfazer a zombaria
daqueles rostos.
— Obrigada — disse ela. E disse de novo, com o crac seguinte da madeira
contra o ombro, a canela, o joelho. — Obrigada. Obrigada. Obrigada.
— Obrigado — repetiu Castor. — Obrigado.
Repetidamente, até que suas vozes se cansassem e os golpes diminuíssem,
e, finalmente, parassem. O instrutor ergueu o punho, e as outras crianças
recuaram.
Lore percebeu que ainda segurava o pulso de Castor, mas estava receosa
demais para soltar.
— É suficiente. Vão tomar banho e trocar de roupa — disse o instrutor, de
algum lugar próximo. — Todos os demais, começaremos com a primeira
posição.
Eles mancaram até a entrada, Lore seguia Castor por um lance de escada até
o vestiário. Ambos encontraram quitões vermelhos dobrados e empilhados
por tamanho e cada um escolheu o seu.
Grandes pias estavam dispostas ao longo do canto do vestiário e chuveiros
ficavam no fundo. Lore pegou uma das toalhas de rosto ali perto e, depois de
umedecê-la, começou a limpar o sangue no rosto dele. Castor fez o mesmo
por ela, com um toque gentil.
Seus olhos se encontraram e ambos sorriram.
NOVE

NÃO.
A palavra esmagou o crânio de Lore. Suas costas foram de encontro à
superfície espelhada da parede bem quando seus joelhos cederam.
Cas — pensou Lore, enquanto deslizava até se agachar.
Mesmo com seu corpo poderoso, sua maneira de andar não tinha a
confiança rígida de Atena ou a passada firme e reservada de Philip e Acantha.
Havia apenas a mesma estranheza que ela havia notado durante a luta deles,
como se os músculos do rapaz estivessem apertados enquanto caminhava até
o altar.
Castor — o novo Apolo — parecia estar se concentrando em manter os
braços relaxados e a cabeça erguida, mas de vez em quando olhava para
baixo, como se receasse tropeçar. Seus dedos se fechavam, um de cada vez,
apenas para voltarem a se abrir repetidas vezes a cada passo.
De todo modo, sua respiração ficou presa na garganta. A linhagem dele o
adornara em um quíton branco reluzente, e a seda do traje fora bordada com
símbolos dourados representando sua recém-divindade. Um dos ombros e
parte de seu tórax liso e musculoso estavam à mostra, e seus braços e pernas
estavam desnudos, a não ser pelas manoplas cintilantes em volta dos pulsos e
pelas tiras das sandálias.
O efeito era deslumbrante, mesmo antes de Lore notar a coroa de folhas de
louro douradas aninhada nas ondas escuras dos cabelos dele.
A face do novo deus era desprovida do sorriso provocativo que havia
mostrado à Lore durante a luta. Era desprovida de qualquer coisa; se ela não
tivesse visto a breve preocupação em seus olhos, talvez não o tivesse
reconhecido como sendo Castor.
Mas não é o Cas — lembrou-se. Não mais. Independentemente de quem
havia sido, seja lá quem possa ter se tornado, era algo diferente agora.
Lore não entendia como não percebera antes — era muito estranho ele ter
crescido tanto em relação a ela e estar no auge de sua forma física quando os
curandeiros Puro-sangues e os médicos Mundanos, por todos aqueles anos,
diziam que a morte poderia acometê-lo a qualquer momento. Ela até mesmo
considerou que as faíscas de poder nos olhos dele eram nada mais do que
suas íris escuras refletindo a luz das lâmpadas do porão do restaurante.
Ela criou uma história na qual pudesse crer. Vira um fantasma em vez de
um deus.
A máscara abafou sua respiração quente e rápida e a soprou de volta contra
seu rosto até que ela tivesse a sensação de estar sufocada. Como se sentisse
sua presença, o novo deus começou a se virar na direção dela, apenas para ser
interrompido.
— Meu senhor — chamou Philip. Castor virou-se para onde ele e Acantha
ainda estavam, nas laterais do trono. — Podemos começar? O sol está no
pico, ardendo intensamente pelo senhor.
— É claro — disse o novo deus tomando seu assento. Então, com mais
firmeza e força: — Minhas desculpas.
Como? — pensou Lore. — Como tudo isso é possível?
Castor era um garoto de doze anos no último Ágon. Mal tinha forças para
levantar a cabeça, muito menos para matar um dos últimos deuses antigos.
Isso tinha que ser um engano — de algum modo, isso era um engano.
É real — uma voz sussurrou em sua mente. Então, por que ele a procurou
no ringue? Por que os Aquilídeos se permitiram serem despistados por ele
após o recuperarem com segurança no Despertar?
Um sentimento de receio começou a consumi-la enquanto assistia a Philip
gesticular em direção ao trono que aguardava pelo deus. Havia um quê de
tensão no tom do homem — algo… algo. Lore se viu estudando o arconte
conforme o novo deus se aproximava dele.
As palavras de Castor retornaram a ela como se tivesse acabado de
sussurrá-las em seu ouvido. Algo está acontecendo. Não sei em quem posso
confiar.
Ela ainda não havia visto o pai dele — por sinal, também não vira Evander.
O pensamento seguinte da jovem veio com uma certeza súbita e implacável.
Philip vai matá-lo — pensou Lore. Castor estava marcado agora, fosse deus
ou não. Ele quebrou seu juramento com o arconte e derramou sangue que não
cabia a ele derramar.
Esse espetáculo todo era isso? Uma ilusão para atrair o bezerro de ouro até
o altar de sacrifício, para que então Philip pudesse tomar o poder para si?
Castor sabia disso. Tinha que saber.
Houve inúmeros assassinatos de parentes ao longo dos séculos do Ágon,
todos no intuito de roubar o poder daqueles que um dia alegaram amar e
estimar. A maioria se conteve, temendo que o pior tipo de maldição caísse
sobre eles. Assassinos de parentes não sobreviviam por muito tempo.
Mas a linhagem honrou e serviu a Philip Aquileu por muito mais tempo que
ao novo deus, que no passado era nada além de um estorvo aos olhos deles.
Lore se questionou se ele teria aliados de verdade além dela.
Ela levou a mão para dentro do manto em busca da chave de fenda
enquanto Castor caminhava ao redor da piscina, olhando para as meninas
reunidas à borda. O trono parecia cintilar, como se brilhasse com deleite ao
avistá-lo.
Os anciões eram horrivelmente astutos na matança de rivais e inimigos.
Quando Lore olhou para a cadeira novamente, tudo que conseguia ver eram
as diversas formas de torná-la letal para um deus mortal. Um veneno poderia
ter sido misturado no ouro, como aconteceu com a túnica de Nesso dada a
Héracles. Ou uma lâmina poderia estar escondida dentro de um painel, pronta
para deslizar para dentro da pele macia do novo deus.
Mas se Philip queria o poder de Castor, teria que dar o golpe final. Lore
sacudiu a cabeça, liberando um pouco da tensão acumulada entre as
escápulas. Ele não faria aquilo ali, na frente de todos.
O rosto do homem era calmo, mas Lore percebeu o desprezo que estava
reprimido. Philip e Acantha foram os primeiros a se ajoelharam diante de
Castor. Quando Philip falou, usou a língua antiga, tão melódico quanto um
rio fluindo em direção ao mar.
— Nós o honramos, ó Deus Resplandecente, o agradecemos por guiar o sol
através do vasto paraíso. Auriga, matador de serpentes. Atirador distante,
trabalhador distante; portador da peste, curandeiro do homem; arauto da
canção, da poesia e do hino, voz da profecia; flagelo do mal, mestre do
furor…
— Sim — interrompeu Castor com um tom engraçado que era muito atípico
ao que ela estava acostumada vir dele. — Acredito que esses sejam quase
todos os títulos.
Lore abriu ligeiramente a boca. Ela teria rido da expressão no rosto de
Philip, se o salão não tivesse ficado em total silêncio.
— Nós… — recomeçou ele, lançando um olhar para Castor. O novo deus
apoiou um cotovelo sobre o braço aveludado de seu trono, repousando o
queixo na palma de sua mão. Ele acenou com a outra mão para que Philip
continuasse, parecendo entediado.
Se havia algo que Castor sempre fora era respeitoso. Não exatamente dócil,
mas nunca desafiador. Se alguma vez existisse uma pessoa sem a menor
chance de que a divindade recém-descoberta subisse à cabeça, seria ele.
Deveria ter sido ele.
Essa ideia já era — pensou Lore, esfregando uma das mãos no peito. Poder
era a droga mais forte de todas.
— Nós o recebemos de volta ao berço mortal que o embalou. Nós o
honramos e rogamos que continue protegendo a Casa do poderoso Aquiles —
disse Philip. — Como sinal de nossa gratidão, minha esposa, Acantha, filha
de…
— Sei quem sua esposa é — disse Castor. — Felizmente, não perdi a
consciência junto com minha mortalidade, apesar de você estar me fazendo
questionar isso.
Os caçadores murmuraram, trocando olhares de desconforto e confusão.
Philip prosseguiu, com as mãos fechadas em punhos nos joelhos e a cabeça
ainda curvada:
— Como sinal de gratidão, organizaremos uma hecatombe sagrada ao redor
do magnífico altar que construímos para o senhor nas terras dos nossos
ancestrais.
Lore franziu o cenho. Um desperdício de cem gados, todos abatidos em um
ritual de sacrifício. Castor pareceu concordar com ela.
— Preferiria que dessem a carne para os famintos desta cidade — disse ele,
com a voz insuportavelmente fria.
Alguém suspirou atônito do outro lado do salão. O rosto de Philip ficou
vermelho devido à raiva reprimida. Sua mandíbula abria e fechava, como se
estivesse com dificuldade para começar a falar.
Provavelmente havia décadas desde que alguém se dirigira a ele com um
tom desses, e Lore decidiu se permitir aproveitar aquilo, só por um tempinho
a mais.
— Também oferecemos esta apresentação e uma canção composta em sua
honra — disse Acantha, suavemente.
As pequenas Musas se levantaram, reconhecendo a deixa. A mulher da lira
voltou a tocar, e a canção era serena e alegre. As meninas começaram a
cantar, dançando em uma harmonia cuidadosamente ensaiada. Conforme elas
lançavam olhares de soslaio na direção do novo deus, seus movimentos se
enrijeciam.
Castor deu a elas um pequeno sorriso de encorajamento, que desapareceu
assim que viu uma das meninas — Calliope — começar a chorar. Elas eram
crianças — mais novas do que Lore quando veio à Casa de Tétis pela
primeira vez. O ar nos pulmões de Lore tornou-se fogo enquanto assistia à
menina chorar ainda mais, com ranho e lágrimas escorrendo pelo rosto
enquanto ela se enrolava na coreografia, sem dúvida imaginando a punição
severa que receberia.
Quando a apresentação chegou ao seu misericordioso fim, Castor não
aplaudiu como os outros caçadores. Ele simplesmente acenou, e seu olhar
escuro retornou para Philip. O homem mais velho estalou os dedos para as
meninas e elas formaram uma organizada fila.
— Estas perante o senhor são nossas… melhores parthénoi — disse Philip,
tendo dificuldade para dizer a palavra melhores. — Se uma delas o agradar,
pode tê-la como seu oráculo. Ou, talvez, uma amante, quando ela sangrar
pela primeira vez.
Lore se perguntou onde conseguir uma blusa envenenada hoje em dia, e se
o veneno se sustentaria bem dentro do embrulho de presente quando ela o
enviasse diretamente para Philip Aquileu.
As parthénoi eram jovens meninas mantidas fora do Ágon, sem permissão
para se tornarem leoas caçando em nome da linhagem, cuja existência era
reservada apenas para garantir a sobrevivência da linhagem por meio da
gestação de mais crianças. Virar uma delas, nunca ser permitida de participar
no Ágon, fora um dos grandes medos de Lore, antes de descobrir que
existiam coisas muitos piores a se temer.
Prisioneiras — pensou ela, e o fel pulsou em suas veias. Essas meninas
eram apenas isso. Era tudo que lhes era permitido ser.
Lore conseguia imaginar isto claramente — atravessar os caçadores que
estavam ao redor, alcançar as meninas e carregá-las para longe antes que
qualquer um pudesse machucá-las. Mas então o novo deus falou.
— São encantadoras — disse Castor, com uma expressão sombria no rosto.
— Entretanto, eu o proíbo que as ofereça para qualquer um desta linhagem,
ou de qualquer outra, até que alcancem a vida adulta e escolham seus
parceiros.
A faixa de raiva apertando em torno do peito de Lore foi solta de uma só
vez.
— Meu senhor? — disse Philip, e sua voz ecoava no silêncio atordoado.
— É uma prática desprezível prometer a mão de crianças em casamento
quando elas deveriam estar concentradas em se alfabetizar e brincar com seus
brinquedos. Paramos há muito tempo de arranjar casamento para meninos.
Todas as crianças devem ser protegidas disso — disse Castor, e sua voz
aumentava a cada palavra. — Você é o arconte desta linhagem, Pater, mas eu
sou seu deus. Se deseja receber as minhas bênçãos, isso é o que lhe peço.
Lore sentiu o primeiro raio de esperança irradiar dentro dela e logo
desaparecer quando aferiu a reação dos caçadores à sua volta.
Desapontamento, raiva e até mesmo confusão reinavam. Ser amado e temido
era uma coisa; ser temido e insultado era outra. A única coisa que caçadores
desprezavam mais do que a desonra era a mudança.
Acantha agarrou o braço do marido, puxando-o para trás. Lore suspeitou
que ela não odiava totalmente a forma como Castor havia falado com ele,
mas a mulher estava arraigada demais em sua vida terrível para deixar isso
transparecer.
— Ó Deus Resplandecente — disse ela —, nós ansiamos aprender a melhor
forma de honrá-lo. Como o senhor escolheu não aparecer perante a nós, não
pudemos criar artes com sua imagem. A propriedade que construímos para o
senhor nas montanhas permaneceu vazia, e as oferendas, intocadas. Se há
algo que deseja de nós, diga-nos.
O quê? — Lore finalmente se levantou, tentando ter uma vista melhor do
rosto de Castor. Os novos deuses eram conhecidos por se manifestarem
fisicamente o mais rápido que podiam, para viverem o melhor de suas vidas
imortais.
— Meus presentes não foram satisfatórios? — perguntou Castor.
— Foram maravilhosos — disse Acantha, pacientemente. — Apenas
desejamos agradá-lo. Se o senhor nos conceder o conhecimento de seu
epíteto, seremos capazes de realizar grandes feitos em seu nome.
Com isso, Castor pareceu perder um pouco da perspicácia de seu
comportamento. Ele se inclinou para trás no assento nobre, como se
ponderasse sobre aquelas palavras. Então, voltou o olhar para Philip.
— Venha até mim, arconte da casa de Aquiles — disse Castor. — Irei
honrá-lo dizendo meu nome escolhido primeiramente a você.
O homem parecia um tanto amolecido quando se aproximou. Castor deixou
que ele se aproximasse antes de anunciar, alto o suficiente para todos
ouvirem:
— Serei conhecido como Castor.
Philip finalmente explodiu.
— Você deve escolher um nome, como manda a tradição! — disse ele, se
soltando do aperto firme da esposa. — Não pode manter seu nome mortal!
Castor havia passado do ponto da importunação e ido direto para o
lançamento da isca. Mesmo agora, seu tom suave e seu sorriso só serviam
para aumentar ainda mais a raiva do velho.
— Desejo usá-lo em homenagem à minha mãe mortal, que me nomeou.
Existe alguma regra da qual não estou ciente ou você está questionando tanto
a qualidade do nome quanto minha decisão?
Lore soltou um leve suspiro. Você está tentando se matar?
— É claro — continuou Castor —, você pode continuar se referindo a mim
como meu senhor ou Deus Resplandecente. Responderei até mesmo a Vossa
Excelência Suprema, de vez em quando.
A apreciação e a exasperação guerreavam dentro dela. Lore e Castor
odiavam Philip pela forma como sempre zombou deles, desde antes de o
homem mais velho descontinuar os tratamentos do rapaz. Lore supôs que o
amigo agia assim devido a mais de uma década de raiva acumulada, apesar de
ela ponderar se menosprezar o arconte e zombar da própria linhagem fosse a
maneira mais produtiva de fazer aquilo.
— Nós o ofendemos? — perguntou Philip ao novo deus. — Não lhe demos
o devido respeito?
— Estou satisfeito — disse o novo deus.
A ideia disso tudo é se manter vivo, seu idiota — pensou Lore.
Como se Castor a tivesse ouvido, cedeu, suavizando novamente o tom
conforme dizia:
— Com esse assunto resolvido, diga-me como está a Casa de Aquiles e qual
favor você busca, Arconte.
Philip inspirou de forma audível, girando os ombros para trás.
— Você ficará satisfeito, meu senhor, de saber sobre os nascimentos que
ocorreram nesses sete anos desde sua ascensão.
De canto de olho, Lore percebeu alguém subindo as escadas atrasado —
Evander. Ele teceu caminho por entre a multidão, com a mão esquerda
ajeitando a fronte de seu manto de seda prateado. A outra mão, envolta em
uma luva preta, permanecia imóvel sobre o estômago.
Bem — pensou Lore —, merda.
Van era muito sagaz, a ponto de se prejudicar por isso, e não deixava
absolutamente nada passar. Até um falcão se submeteria a ele em vez de
confiar nos próprios olhos.
O que significava que ela realmente devia ter ido embora há cinco minutos.
Castor também o avistou, e seu olhar rapidamente encontrou o do jovem
antes de voltar a atenção para Philip, que estoicamente continuava relatando
os casamentos, mortes, as várias propriedades da Casa e os empreendimentos.
— O desenvolvimento de seus medicamentos e de suas vacinas foi
acelerado com o incentivo federal, e esperamos que os lucros venham de fato
a partir do início do próximo trimestre — continuou Philip. — Aliás, acredito
que este seja apenas o começo do que alcançaremos, se o senhor utilizar seu
poder para aumentar a demanda.
Castor se inclinou para frente com o cenho franzido.
— O favor que lhe peço, Deus Resplandecente — disse Philip —, é que,
quando o senhor retornar à sua forma e poder imortais, crie uma doença da
qual nós seremos os únicos capazes de curar.
Lore cerrou os dentes ao ponto de doer para manter a boca fechada.
— Nós fomos abençoados por sua habilidade de curar as pessoas, mas
devemos superar isso por agora e agarrarmos uma nova oportunidade. Não há
necessidade de muitas mortes — prosseguiu Philip, claramente se sentindo
empoderado com o barulho animado das vozes crescendo ao seu redor com a
ideia. — Algumas centenas seriam o suficiente para garantir uma demanda
global…
— Não — disse Castor, áspero. — Não cabe a mim trazer doenças ou
enfermidades, e nem o faria, se pudesse. Farei tudo o que estiver ao meu
alcance para servir a esta linhagem. Mas não serei um mestre da morte nem
do terror.
Philip recuou.
— Meu senhor…
— Estou certo — interrompeu Castor, com o mesmo tom rígido — de que
não preciso lembrá-lo do motivo pelo qual o Ágon teve início e pelo qual
Zeus negou a Apolo e aos seus sucessores tal poder, muito menos preciso
lembrá-lo das muitas moléstias horríveis já existentes neste mundo. Talvez
você deva até mesmo perguntar o que fiz para ajudar aqueles afligidos pela
mesma doença que me acometeu em minha vida mortal, e como você
continuará a girar a roda que eu pus no lugar estabelecendo preços razoáveis
a medicamentos.
Acantha se curvou.
— Um sábio plano de ação. Ficarei contente em liderar tal esforço para o
senhor.
Os deuses antigos eram monstros: egoístas, vaidosos e com uma sede
incontrolável de sangue. Olhando ao redor do salão agora, absorvendo os
olhares de frustração e raiva, Lore viu a promessa de algo ainda mais
obscuro.
— Evander, filho de Adonis — disse Castor, olhando para o jovem de pele
escura. — Conte-me sobre o Ágon. Foi capaz de barganhar por nossos
mortos?
Evander se aproximou da piscina, se ajoelhando na lateral. Algo passou de
relance na expressão de Castor e sua boca se abriu ligeiramente, mas Van
falou antes que o deus pudesse dizer algo.
— Tenho o dever de lhe reportar a morte do deus Hermes…
Os caçadores ao redor não o deixaram terminar. Uma algazarra tomou conta
do salão, se tornando cada vez mais intensa. As mãos de Lore penderam ao
lado do corpo, com dedos dormentes.
Atena e Ártemis eram agora as últimas integrantes dos deuses originais.
Outro pensamento, que conseguia ser ainda pior, lhe ocorreu — preciso
contar a ela.
Claro, o número poderia ser reduzido à Ártemis se Lore não fosse embora
agora e encontrasse outro apoiador para Atena, mas essa… essa era uma
informação útil.
— Quem foi o autor do abate? — questionou Philip.
Van tinha um jeito de ser bem específico, uma calma enervante, mesmo
diante de más notícias, como a que trazia agora:
— O novo Ares, que escolheu atender por Fúria.
O barulho aumentou de novo, pulsando com uma espécie nova e distinta de
ira.
— Ele o matou sabendo que não seria capaz de tomar-lhe o poder? — disse
Philip, enfurecido.
— Está certo disso? — perguntou Castor.
— Meus drones gravaram o momento da morte — disse Van. — E há mais.
Os Cadmídeos também capturaram a Portadora da Maré.
O salão novamente suspirou vigorosamente, surpreso.
— Viva ou morta? — perguntou Castor.
— Ela estava viva, mas por muito pouco. Minhas fontes me disseram que
Fúria queria extrair informação dela sobre algo, mas que ela não voltou a
acordar e ele terminou o trabalho em seu recinto.
Lore não sentiu… tristeza, exatamente, apenas um frio reconhecimento de
que ela agora era a última da Casa de Perseu. Seus ancestrais deviam estar
uivando no Mundo Inferior.
— Sobre o que ele a interrogaria? — perguntou Castor.
— Estou atrás dessa informação — disse Van e, então, acrescentou, de
forma séria —, mas será que é sobre o que discutimos mais cedo?
Por um momento, Lore pensou que se referiam à nova versão do poema.
Mas, então, lembrou-se do silencioso aviso de Castor durante a luta.
Ele está procurando algo, e eu não sei se é você.
Não… não poderia ser isso. A Portadora da Maré não teria ideia de onde ela
estava, ou como ele poderia encontrá-la.
— Ele está tentando intimidar as linhagens — declarou Philip para o salão,
reclamando a atenção de todos com sua veemência. — Não seremos acuados.
Van não disse nada, mas lançou um olhar cheio de significado na direção de
Castor. — Creio que ele esteja tentando fazer mais do que isso, e que
devemos fechar a guarda. A Casa de Teseu se aliou formalmente à Casa de
Cadmo. Ambas estão sob o comando de Fúria.
— O quê?! — vociferou Philip, sobre o crescente murmúrio de vozes.
— Como deve lembrar, a Casa de Teseu perdeu grande parte das suas
parthénoi durante o último Ágon após Ártemis localizar o esconderijo delas
— disse Van.
O estômago de Lore se embrulhou com a lembrança. Dezenas de meninas,
todas massacradas pela deusa que um dia havia sido sua padroeira e
protetora.
— Meus espiões me dizem que, além de uma compensação financeira
generosa — continuou Van —, Fúria os prometeu casamentos e proteção em
troca de lealdade.
— Covardes! — gritou alguém próximo à Lore.
— Quietos… quietos! — ordenou Philip. — Eles não têm um novo deus
para protegê-los, assim como nós.
Se ela não estivesse observando a reação de Castor, Lore talvez teria
deixado passar — a maneira como seu rosto parecia se recolher em si mesmo,
com os olhos se fechando. Um tremor percorreu sua mandíbula conforme ele
agarrava os braços do trono.
— Meu senhor — disse Van —, se eu puder…
As imagens nos espelhos saltaram, se distorcendo. Lore saltou para longe
da parede, com o coração saindo pela boca.
Os alto-falantes escondidos que carregavam o distante som de ondas agora
rugiam com estrondosos tambores que sacudiram os Aquilídeos e os fez se
dispersarem pelo salão.
— O que está acontecendo? — perguntou Philip sobre o barulho. —
Alguém desligue isso!
Os espelhos piscaram até ficarem pretos, deixando apenas a luz dos
braseiros os guiando até as escadas.
Tão rápido quanto veio, o som dos tambores parou. Castor então se
levantou, como se já soubesse o que vinha pela frente.
No centro de cada espelho, um brilho vermelho cresceu, respingando entre
as telas até que todo o salão estivesse banhado nela.
— Aquilídeos — disse uma voz profunda e rouca, quase se rastejando pelos
alto-falantes. — Aquilídeos, ouçam a mim.
DEZ

O MEDO QUE VARREU LORE PARECEU CORTÁ-LA POR DENTRO. O SUOR


percorreu sua pele, tão frio quando os dedos de Tânato.
Gritos cortaram o ar. Alguns caçadores se apressaram para a entrada,
apenas para desmaiarem no chão. Os outros caíram como chuva, e suas
roupas de seda se empoçaram sobre o chão enquanto arranhavam as colunas e
uns aos outros, tentando se levantar novamente. Outros lutaram para sacar
suas pequenas armas cortantes escondidas nas dobras das roupas.
O próprio corpo de Lore a traiu. Suas pernas pareciam drenadas de sangue e
força; ela atingiu o chão polido em uma onda renovada de medo. Seus
membros pareciam repentinamente pequenos e ocos, e ela não tinha a força
necessária para erguer a cabeça.
Aristos Cadmou — Fúria.
Esse era um de seus poderes. Lore se apegou a esse pensamento e se
agarrou nele, tentando afastar o pânico antes que ele tomasse conta. O novo
Ares era capaz de induzir a sensação de sede de sangue em alguém, assim
como podia facilmente roubá-la ao enfraquecer sua determinação e seu corpo.
Lore tentou espernear para esticar os membros inferiores sob si mesma, mas
eles não respondiam. Respirou fundo pelo nariz e se contorceu, procurando
por Castor.
Ele estava exatamente no mesmo lugar em que esteve desde o início,
aparentemente sem ser afetado enquanto observava em pânico o resto do
salão. Quando Acantha gemeu no chão, o novo deus foi até ela, tentando
erguê-la. As palmas de suas mãos brilhavam nos pontos em que a segurava,
mas a mulher estava molenga como uma boneca.
Preocupação e medo dominaram a feição de Castor. Lore podia ouvir os
pensamentos dele como se ele os gritasse. O que eu faço? O que eu faço?
Agora ela entendia. Fúria queria que ele assistisse àquilo. Para saber o que
estava por vir.
Então, finalmente, ele falou.
— Saudações a você, Castor Aquileu, e à sua parentela — disse Fúria.
— Não há necessidade nenhuma disso. Todos nós conhecemos seu poder
— disse Castor, rispidamente. — Diga o que quer.
Os sentidos inundaram o corpo de Lore novamente. Ela ofegou com a
sensação, ouvindo os caçadores ao redor gritarem e se esforçarem para
levantarem conforme a influência de Fúria se esvaía.
— Ofereço-lhe o kleos — disse Fúria. — Ajoelhe-se perante mim, jovem
deus. Use seu poder ao meu comando, e a Casa de Aquiles não será
destruída. Recuse, e todos morrerão sob minha lâmina, a começar por você.
— Ameaças vazias — sibilou Philip, se erguendo aos tropeços. —
Lutaremos de igual para igual, golpe a golpe.
— Deixará que o mortal fale por você, jovem deus? — questionou Fúria.
— Ofereço a todos os interessados um lugar no mundo que está por vir, o
mundo que criaremos juntos; um lugar de poder e riqueza além do que
podem imaginar. O Ágon chegará ao fim, mas todos aqueles que me servirem
serão recompensados.
Lore levantou com dificuldade, se apoiando em uma das mesas viradas.
Castor apertou as costas do trono dourado, com os olhos novamente
fechados. Ele os forçou a se abrirem.
— Os Aquilídeos não servem a ninguém.
— Essa é sua resposta? — disse Fúria. — Que assim seja.
— Desliguem isso! — gritou Philip. Ele pegou um dos braseiros e jogou na
direção do espelho mais próximo, espatifando-o. — Cortem a energia!
— Seu novo deus os ressente. — prosseguiu Fúria, falando agora aos
caçadores. — Ele é fraco, o mais fraco dos deuses. Incapaz de manifestar
uma forma física. Incapaz de acessar as profundezas de seu poder. Cuidarei
de vocês e os servirei, como servirão a mim. Me alegrarei em sua honra,
compartilharei meu poder e minha força. Somente eu sou capaz de protegê-
los. Somente eu sou capaz de libertá-los.
— A Casa de Aquiles não se renderá — disse Philip. — Você não é nada
além de um covarde, se escondendo por trás de telas. Você os protegerá?
Você não tem nem mesmo a cortesia de devolver nossos mortos.
Os caçadores bateram os pés no chão em concordância, soltando um rugido
feroz de aprovação.
As telas piscaram novamente, e a pulsação carmesim foi substituída por
algo ainda mais horrível.
Uma fileira de cabeças decepadas, cujos olhos arrancados foram
substituídos por moedas de prata em um bueiro cheio de lixo. Mandíbulas
abertas e bocas escancaradas, uma referência debochada à máscara dos
Aquilídeos.
Philip e diversos outros estilhaçaram os espelhos restantes, mas já era tarde
demais.
— Venham reclamá-las — disse Fúria, e a sua voz ia falhando conforme a
conexão era interrompida. — Se juntarão a elas em breve.
ONZE

LORE APROVEITOU O CAOS QUE SUCEDEU A DECLARAÇÃO DE GUERRA DE FÚRIA


para fugir rapidamente.
Ela passou por entre os Aquilídeos aglomerados, indo direto para as
escadas. Havia pouco tempo para fugir antes que as medidas de segurança
emergenciais tornassem aquilo impossível. Ela precisava voltar para Atena.
Precisava encontrar outro apoiador, de outro lugar, e contar o que aconteceu.
Mas Castor…
Lore lançou um breve olhar para o novo deus, não se surpreendendo ao
encontrá-lo cercado de caçadores armados. Ele estava pálido enquanto um
dos caçadores dava ordens em um tom baixo e gesticulava para o outro lado
do salão.
Ele poderia curá-la — pensou Lore. A conversa anterior confirmara que ele
havia herdado esse poder de Apolo. Seria uma solução fácil para seu
problema mais complicado.
Não. Ela não poderia levá-lo consigo. Sabia disso, o que não aliviou o
remorso que se apossara dela. Atena nunca permitiria que o assassino de seu
irmão vivesse, e não havia maneira alguma de tirar o novo deus da Casa Tétis
sem que os Aquilídeos fossem atrás deles e provavelmente os rastreassem até
sua casa. Ela não podia colocar nenhum deles — Miles, Castor ou Atena —
em um perigo maior do que já estavam.
Castor estaria mais seguro aqui, com sua linhagem. Até mesmo com Philip,
mesmo depois da declaração de guerra de Fúria. Ainda que a mensagem do
novo deus da guerra tenha sido perigosa por ter tratado Castor como fraco
diante dos Aquilídeos, ela, de certa forma, também salvou o novo Apolo.
Sempre se podia contar com o orgulho monstruoso dos caçadores,
principalmente os Aquilídeos. Eles nunca entregariam voluntariamente seu
novo deus, e morreriam antes de se sujeitarem ao jugo de um forasteiro.
Lore deu uma última olhada furtiva ao redor, com a mente acelerada.
Não me decepcionem, idiotas — pensou ela. — Não o deixem morrer.
Van saiu do local onde conversava com Acantha e foi até Castor, cruzando
o salão em poucas passadas largas. Ele passou a centímetros de distância de
Lore, perto o suficiente para que ela sentisse o aroma de laranja e sândalo de
seu perfume, e por muito pouco resistiu à vontade de agarrá-lo.
Muito tempo havia passado desde a última vez que o vira. Eles ainda eram
crianças na época, correndo livremente pela cidade. Enquanto Castor sempre
foi um livro aberto, feliz de ser lido e entendido, Van era o diário mantido
trancado e escondido debaixo do colchão, exceto nos momentos em que
culpava Lore por colocar Castor em apuros ou de influenciá-lo a fazer algo
que Van julgava ser perigoso, ou seja, praticamente tudo que era divertido.
E a verdade era que a confiança de Lore era como um livro raro —
dificilmente emprestado, e nunca de forma descuidada. A lealdade de Van
com sua linhagem ultrapassaria sempre a quase amizade que tinham, e Lore
teria que encontrar um jeito de sair da Casa Tétis sozinha, como sempre fez.
Então, ela seguiu escada acima, refazendo o mesmo caminho que traçara ao
descer, sentindo-se mais inquieta a cada momento que passava. Um
insuportável peso ancorava no fundo de seu estômago. Lore subiu os últimos
degraus com dificuldade e falta de ar conforme um pânico desolador
novamente a cercou.
Fúria.
A voz dele havia ecoado nas áreas mais quebradas dela, trazendo à tona
imagens de seus pais e irmãs que por anos lutou para suprimir.
Se a Casa de Teseu se aliara a ele, teriam somado centenas de pessoas entre
ele e Atena; a deusa antiga não conseguiria chegar perto do deus para cumprir
sua parte do juramento. O pensamento a escaldou.
Na verdade, a situação é ainda pior — percebeu ela.
Se Fúria estava indo atrás dos outros deuses, antigos e novos, seus
caçadores viriam atrás de Atena implacavelmente. Aristos Cadmou nunca foi
um homem de resoluções pequenas ou objetivos pacatos. Ele estava
removendo seus inimigos do tabuleiro e, seja lá o que estivesse planejando,
não terminaria ali.
E Cas…
Lore tinha tão poucos vínculos com a vida anterior que a ideia de encontrar
outro havia sido uma droga poderosa, independentemente de ela querer
admitir isso ou não. A jovem não acreditava mais nas Moiras há anos, mas
podia vê-las claramente em seus pensamentos, o reluzir de suas adagas
cortando alegremente a tudo e a todos, até que ela não tivesse mais nada,
mais ninguém.
— Controle-se, sua bêbada chorona — murmurou Lore. Ela teve uma vida
boa e decente aqui na cidade, um verdadeiro lar. E tinha Miles, que ainda
esperava por ela em casa com a deusa que, de muito bom grado, faria uso de
seu sangue.
Mas ela queria a única pessoa que sempre foi capaz de acalmar tanto seu
temperamento como seu medo. Queria a única pessoa na qual sempre
confiou, sabendo que ela o encontraria ali.
Queria Castor.
Lore mordeu o lábio, lutando para engolir o nó na garganta. Encontrou a
porta pela qual entrou ali e agarrou a maçaneta. Ela chacoalhou, mas não
cedeu.
— Ah, que ótimo. — resmungou ela. Lore tentou abrir a porta de novo,
desta vez com mais força. — Não tenho tempo para isso.
Empurrou o manto para o lado, tateando o bolso traseiro do short em busca
do pedaço de plástico para tentar forçar a fechadura. Não havia nada ali a não
ser fiapos.
Merda.
Ela provavelmente o derrubou enquanto passava pelas portas francesas ou o
deixou em algum lugar enquanto trocava de roupa.
As velas no corredor estavam quase no fim, tremeluzindo. O cheiro de
fumaça e cera quente estava por toda a parte, se misturando com o incenso
que ainda queimava no andar de baixo. Lore lambeu os lábios secos, tentando
avaliar suas opções em meio à exaustão e ao nervosismo. Seguiu em frente
para tentar a próxima porta no corredor. Então, a próxima. E a próxima.
— É claro que eu entendo — disse alguém, e as vozes vagaram escada
acima. Passos pesados e rápidos vieram em seguida. — A falha na
segurança… receio que…
Um xingamento passou como um raio nos pensamentos de Lore enquanto
ela se apressava até a próxima porta, já arranjando mil desculpas para o que
estava fazendo. Patrulhar, investigar um barulho, procurar minha bolsa,
ficar sozinha…
Nenhuma foi necessária. A última porta no corredor, com um teclado de
segurança, estava escancarada. Esgueirou-se para dentro, fechando-a com
firmeza e respirando intensamente sob a máscara.
O quarto estava escuro, mas tinha luz solar suficiente entrando pela
claraboia fumê para iluminar todo o cômodo. Uma cama grande e
impressionante com dossel de seda branca ficava no centro, bem entre duas
janelas bloqueadas por tijolos. Um armário que parecia ter passado de
geração em geração ao longo dos séculos estava encostado em uma parede,
pintado com uma cena desbotada pastoril contendo gado e fazendeiros.
Almofadas felpudas estavam arrumadas como pétalas de flores no chão e, em
todo o canto, espalhados pelo quarto, havia elaborados candelabros
aguardando para serem acesos.
O cheiro de tinta fresca ainda pairava no ar, e o carpete parecia intocado,
novo em folha. Este devia ser o quarto de Philip e Acantha, recentemente
reformado para a estadia deles durante o Ágon.
Um movimento na cama atraiu seu olhar. Na ponta, dormia um cão enorme
e peludo. A cor branca se acumulava no focinho de sua face ursina e nas
pontas de suas longas orelhas. Seu pelo preto estava polvilhado com ela,
como se tivesse acabado de voltar de uma corrida pelo Central Park coberto
de neve com Lore e Castor.
Uma fina linha de baba pendia de sua boca até o edredom de seda. Seus
olhos enormes abriram. Ele ergueu a cabeça, como se a reconhecesse.
— Quíron? — sussurrou Lore.
Ela ergueu a máscara para dar uma olhada melhor nele, e uma pequena
explosão de felicidade acendeu dentro dela. Ele ainda estava vivo — ele
devia ter, o que, quatorze anos agora? Ela se aproximou do pastor-grego
devagar, estendendo a mão.
O cão havia sido o companheiro constante de Castor, praticamente desde
que o garoto era pequeno o suficiente para montar nas costas de Quíron. Ele
trotava fielmente atrás dela e de Castor, como uma babá incomodada pelas
muitas das aventuras deles pela cidade.
Sua cauda chicoteava no edredom de seda e Lore ficou estranhamente
aliviada quando ele lambeu os dedos dela como cumprimento.
— Também senti saudades, bobão — disse ela, acariciando as orelhas dele.
— Não imagino que você tenha aprendido a falar e pode me dizer como sair
daqui, não é?
O cão abaixou a cabeça e imediatamente voltou para seu cochilo.
— É — murmurou Lore. — Foi o que eu pensei.
O tapete grosso absorvia seus passos enquanto ela circulava pelo quarto.
Sem varanda, sem janelas, com exceção da claraboia. O mesmo servia para o
banheiro surpreendentemente luxuoso anexo a ele. Lore continuava
vislumbrando sua expressão irritada no piso de mármore preto.
Ela lançou outro olhar para a claraboia, pensando. Se ela conseguisse subir
ali, talvez pudesse abrir o suficiente para se esgueirar por ela, mas ainda teria
que lidar com os caçadores no telhado — e eles estavam no auge de suas
condições de combate. Lore estava atualmente lutando contra os últimos
fragmentos remanescentes de seu orgulho, mas até mesmo ela conseguia
reconhecer que não havia comparação entre lutar contra caçadores e bater em
crianças ricas e mimadas.
O cão abriu um olho.
— Não me olha assim — disse ela. — Estou me esforçando para planejar
minha fuga.
A cabeça de Quíron virou em direção à porta. Um momento depois, Lore
também os ouviu.
— Esteja certo de que iremos… — disse uma voz abafada, aumentando
conforme se aproximava.
Lore vestiu a máscara e mergulhou debaixo da cama, apenas para rolar para
fora quando percebeu que ainda podia ser vista da porta. Começou a ir em
direção ao armário, mas Philip e Acantha trocariam de roupa em algum
momento, e enquanto Lore podia arrumar desculpas para um monte de coisas,
não tinha certeza de que era capaz de inventar uma explicação decente que
justificasse estar enfiada dentro daquele móvel. Restava a pior opção.
Esgueirou-se para trás do biombo, que com sorte seria decorativo, no canto
inferior do quarto conforme a porta era destrancada e se abria. Havia um vão
entre os dois painéis, largo o suficiente para que ela pudesse ver os três
homens que entraram.
Em um instante, Lore percebeu seu erro.
Este não era o quarto de Philip e Acantha.
DOZE

QUÍRON LEVANTOU NAS QUATROS PATAS E ROSNOU. LORE DEU UM PULO. ELA
nunca o ouviu latir do jeito que latiu, um ruído profundo e barulhento.
— Acalme-se, besta-fera — disse Philip, levantando uma das mãos para
acalmá-lo. — Deita.
A postura de Quíron era rígida, sua cabeça abaixou, assim como sua
cauda… mas ele não encarava Philip. Estava de olho em Castor.
O pouco de cor restante no rosto do novo deus desapareceu. Ele observou o
cão, e seu corpo estava tenso, até que Van ficou entre eles.
— Vou tirá-lo daqui — disse Philip. — Ele parece… não se lembrar do
senhor.
— Está tudo bem — disse Castor, bruscamente. — O que quero saber é
como diabos Fúria teve acesso à sua transmissão.
— Os técnicos estão sendo interrogados — disse Van. — Vou fazê-los
contarem tudo. É provável que tenham hackeado o sistema sem nenhuma
ajuda interna. Estou mais preocupado com o fato de Fúria ser capaz de usar
seu poder dessa forma.
— Minha prioridade imediata é a de proteger o deus da nossa linhagem. É
só uma questão de tempo antes que tentem um ataque direto — disse Philip.
— Os guardas virão buscá-lo, meu senhor, quando for a hora de ir para um
local mais seguro, fora da cidade.
— Você acha que isso é realmente necessário? — perguntou Van. — Se
eles de fato têm um espião infiltrado em nossa linhagem, sempre saberão
nossos movimentos antes de serem executados. É um risco enorme.
— Você não é o arconte desta linhagem, Mensageiro — disse Philip. —
Essa decisão é minha.
Mensageiro, é claro. O broche que Van usava, uma asa dourada para indicar
sua posição como emissário da linhagem. A função era nada mais do que
espionar, hoje em dia, mas os Mensageiros eram protegidos da matança sob
um juramento entre as casas. Dessa forma, poderiam levar mensagens sem
temerem a morte e lidarem com as trocas dos corpos coletados por outras
linhagens.
— Tem certeza de que isso não é sua rivalidade com Aristos Cadmou
falando no lugar da razão? — perguntou Van, sem precisar erguer a voz para
dar às suas palavras um tom afiado.
Lore estava chocada por eles não terem sido capazes de ouvir sua
respiração irregular.
— Evander, filho de Adonis — sibilou Philip. — Dirija-se a mim dessa
maneira novamente e não apenas removerei esse broche de você, como
arrancarei sua outra mão.
Outra mão? — Lore se inclinou para frente.
Ela podia ver agora — a maneira como os dedos da mão direita eram
ligeiramente mais longos e duros do que os da esquerda. Ele tinha movimento
nos dedos e conseguia curvá-los um pouco, mas todos os movimentos eram
mais lentos e seu alcance, mais limitado. Ele, assim como muitos caçadores,
havia perdido parte do corpo e o substituído com uma prótese avançada.
Droga — pensou Lore.
Deve ter sido algum tipo de acidente de combate. A mão direita de Van era
a dominante, pelo menos até onde ela conseguia se lembrar das poucas
sessões de treinamento das quais ele fez parte enquanto os pais do jovem
tocavam negócios na cidade.
Enquanto alguns caçadores lutavam para voltar a treinar a fim de
aprenderem novos estilos de luta mais adequados para seus corpos
modificados e, assim, continuarem na caça, a maioria era convencida pelo
arconte a se aposentar mais cedo em alguma função não combatente, como
arquivista ou curandeiro.
Lore sempre viu aquilo como uma prática revoltante; se alguém queria
lutar, se queria se empenhar para alcançar o kleos, deveriam permiti-lo,
independentemente das circunstâncias.
— Se pudermos ter uma profecia, meu senhor — recomeçou Philip,
voltando-se para Castor —, talvez sejamos capazes de antecipar os
Cadmídeos…
— Quantas vezes preciso dizer a você que não há nenhuma profecia? —
disse Castor. — Esse não é um dos meus poderes. Sinto que devo lembrá-lo
novamente de que, ainda que eu tenha alguns dos poderes de Apolo, não sou
ele.
Lore prendeu a respiração enquanto o novo deus dava alguns passos em sua
direção, tirando as luvas de ouro e colocando-as na mesinha ao lado do
biombo.
Philip se endireitou, mas assentiu.
— Sim, meu senhor. Claro, todos estamos ansiosos para ouvir a história de
como um inocente garoto de doze anos derrotou um dos deuses originais
mais fortes e ascendeu. Talvez você possa falar com um dos historiadores de
nossa linhagem…
— Basta — disse Castor, soando cansado. Ele estava tão perto agora que
Lore podia sentir o cheiro de incenso impregnado em sua pele. Por um
momento, ela teve certeza de que os olhos do novo deus relancearam e
encontraram os dela, mas ele foi em direção à cama. — Gostaria de descansar
antes de viajarmos.
— Cas… Meu senhor — começou Van. — Talvez devêssemos discutir
sobre…
— Eu disse basta — disse Castor, agarrando uma das colunas da cama com
tanta força que a fez rachar. — Me chamem quando for a hora de partir.
Philip segurou o ombro de Van e o guiou em direção à porta.
— Há caçadores de vigia do lado de fora. Tem alguma coisa que posso
providenciar, meu senhor?
— Apenas sua ausência — disse Castor, ainda de costas.
— Tranque a porta depois que sairmos — relembrou Van.
Castor assentiu, mas não fez qualquer menção de trancá-la até que ambos
tivessem deixado o quarto e se passasse um longo intervalo. Ele deu meia-
volta, batendo com o joelho no baú ao pé da cama e xingou. Lore teria rido
ao ver um deus poderoso pulando e fazendo careta, só que seus movimentos
pareciam ainda mais duros do que antes.
Ele tentou alongar os braços cruzando o tórax largo, girando o pescoço.
Fechou os três trincos e apertou um botão próximo da porta, na parede.
Lore levou um susto quando uma porta de metal deslizou cobrindo a outra.
Trancando-o ali dentro.
Prendendo-a ali com ele.
Quíron rosnou quando Castor tentou se aproximar dele, oferecendo a mão
da mesma forma que Lore fez mais cedo. Os lábios do cão estavam retraídos
e seu focinho se enrugava ferozmente.
Castor não tirou a mão até que Quíron atacasse, mordendo seu punho.
— Você me conhece — sussurrou ele. — Conhece, sim.
Lore pressionou a mão contra a boca de novo para evitar emitir qualquer
barulho. Claro que Quíron não se lembra dele. Esse não era o corpo do garoto
que o cão amava tanto e protegia. Ele era… outra coisa.
Não havia nada a temer; ele foi até ela pedir ajuda — não teria nenhum
motivo para matá-la, mesmo que ela tenha invadido sua casa. Mas, ainda
assim, Lore não conseguia se mover. Sentia-se como uma das estátuas de
outrora, sempre presas em uma única pose, com olhos eternamente abertos.
A boca do cão relaxou e ele se aquietou o suficiente para que Castor
tentasse se aproximar de novo. Enquanto sua mão pairava sobre as costas do
animal, Quíron se levantou e mudou de lugar. Aninhou-se na montanha de
travesseiros, lançando um olhar de profunda suspeita na direção do novo
deus.
Castor o encarou de volta, sem nenhum sinal de animação ou esperança
restando em sua expressão. Algo obscuro parecia estar passando por dentro
dele enquanto circulava pelo quarto, sua respiração estava ficando mais forte,
quase com falta de ar. Ele parava de vez em quando, passando a mão ao
longo do tecido adamascado do papel de parede, da seda dos lençóis e
cortinas, das bordas curvadas das flores esculpidas nas costas de uma cadeira.
Era como uma espécie de ritual silencioso, cada toque de seus respeitosos
dedos. Lore conseguia apenas distinguir seu perfil e a interminável
tempestade de emoções que atravessava seu rosto. Ele murmurou algo para si
e ela não conseguiu ouvir.
Finalmente, ele parou no centro do quarto, estremecendo. Erguendo as
mãos, o novo deus tirou a coroa de cima de seu escuro cabelo e a segurou
entre os dedos. Houve um pequeno estalo quando ele a partiu em dois e
deixou os pedaços caírem no chão.
Mas não houve som algum quando o painel escondido na parede atrás dele
se abriu e um caçador vestindo uma máscara de minotauro entrou
silenciosamente no quarto.
Castor se empertigou lentamente, ficando com a coluna totalmente ereta, e
olhou para trás bem na hora que o caçador sacou uma pequena arma de
dentro do manto. Por um momento, ele não fez nada a não ser encarar o
caçador. Não se moveu. Não parecia nem respirar.
Merda — pensou ela. — Merda, merda… reage!
Ele não reagiu. O caçador atirou.
Lore derrubou o biombo com um empurrão, pegando sua chave de fenda.
Não era nenhuma faca, mas quando arremessada traçou uma espiral no ar,
como ela esperava. Ela ricocheteou na máscara do atacante, jogando-o no
chão.
Ela se lançou para a frente enquanto o caçador tentava aos tropeços voltar
para a porta secreta, furiosa demais e temendo deixá-lo escapar.
O caçador sacou uma longa adaga da bainha em seu flanco. Quíron saltou
da cama, latindo descontroladamente… aquilo foi distração suficiente para
que Lore pudesse pegar um pequeno busto de mármore no armário e o
esmagasse na cabeça do caçador. Uma vez. Duas vezes.
O assassino caiu bruscamente no chão, imóvel. Sangue escorria por baixo
do manto escuro. Lore puxou o manto e arrancou a máscara, revelando o
indolente rosto de Philip Aquileu.
— Desgraçado — vociferou Lore, fervendo por dentro. E também um
traidor, se escondendo por trás da máscara de outra linhagem. Isso não o
protegeria da maldição contra assassinos de parentes, assim como não o
protegeu dela.
Quíron choramingou, trazendo Lore de volta de seu torpor. Ele estava
próximo de onde Castor havia caído no chão, cheirando a mão do novo deus.
Lore pegou a chave de fenda de volta e cambaleou até ele, procurando por
sinais de um tiro ou de um ferimento. Havia apenas um pequeno dardo
emplumado próximo ao coração… um tranquilizador.
Ela adicionou covarde à conta do arconte. O velho não queria nenhuma
resistência do novo deus quando enfiasse uma lâmina no coração de Castor e
ascendesse.
— Ah, vai se ferrar! — Ela agarrou a frente do manto de Castor, sacudindo-
o. — Você podia ter evitado isso facilmente… sai dessa!
A cabeça dele tombou para trás. Ela pressionou o ouvido no peito dele, mas
não conseguiu escutar nada além da própria pulsação.
— Castor? — disse ela, o sacudindo mais. — Cas!
Ele não reagiu. Lore pressionou a palma da mão contra o peito dele,
fazendo força para baixo repetidas vezes. Castor voltou a si rapidamente,
arfando. Virou de lado, desorientado, com as pernas e os braços deslizando
sobre o tapete.
— Cas… — disse Lore, estendendo a mão até ele.
O novo deus se arrastou para longe, erguendo uma das mãos na direção
dela.
Um agudo suspiro de surpresa foi o único som que Lore conseguiu emitir
antes que o ar se transformasse em fogo em seus pulmões e uma massa
disforme de calor e luz explodisse das pontas dos dedos de Castor.
TREZE

LORE FOI CRIADA COM UMA FACA EM SUA MÃO.


Ela treinava por horas e dias infindáveis com bastões de treino, adagas,
lanças e escudos, repetindo aqueles movimentos letais até que não tivesse
mais força para segurar as armas. Seus cabos deixaram sulcos escuros de
recordação em suas palmas, como os rios no Mundo Inferior. Ela estimulava
aqueles calos, que deixavam sua pele mais grossa para que não mais
descascasse.
Lore queria que seu corpo se lembrasse de tudo: do peso das armas, do
ângulo do golpe, da força exata que ela precisava extrair dos músculos.
Alguma parte dela sempre entendeu que chegaria o momento em que sua
mente se esvaziaria por conta da exaustão ou dor, e tudo que ficaria guardado
seria aquele trabalho todo, aquele treinamento. Um momento em que a
habilidade enraizada se mistura com o reflexo.
Como agora.
O armário atrás dela explodiu em milhares de lascas, atingindo seu cabelo e
pele. Ela não sentiu nada daquilo. Não desperdiçou nem um único suspiro.
Ela mergulhou para longe, arfando.
Máscara — pensou ela, tentando tirá-la do rosto. As amarras estavam
emaranhadas com seu cabelo, e ela não conseguia erguê-la, por mais que
tentasse.
Ficou sem ar quando foi lançada contra a parede atrás dela. O braço de
Castor envolveu o peito dela como uma barra de aço.
Ele mudou de posição, levando o braço até a garganta dela. Pontos escuros
começaram a surgir na visão periférica de Lore conforme sua fonte de ar era
cortada. Não havia emoção alguma no rosto de Castor; era como se ele
também estivesse agindo puramente por instinto agora, e seu corpo estivesse
se esforçando para sobreviver.
Ela dava chutes violentos no ar, tentando atingir as rótulas dele. Em algum
ponto no plano de fundo, ela estava ciente de latidos, do borrão escuro atrás
do oponente mordendo-o e atacando-o.
Lore deu uma forte cabeçada em Castor, deixando a máscara de bronze
fazer sua parte. Ele gemeu, e o sangue jorrou de um corte na testa. O novo
deus cambaleou para trás e ela atacou, com as unhas quebradas e com força
bruta desesperada. O peso dele era insuportável, sufocando-a quando caiu
sobre ela, mas ainda era feito de carne e osso.
Ela envolveu o tórax dele com as pernas e o girou, para que pudesse ficar
por cima. Lore levou a chave de fenda até a garganta dele, mas Castor
agarrou o metal e empurrou a ponta de volta na direção do rosto dela. O
sangue dele fervia contra o aço, esquentando-o em sua mão e transformando-
o em ouro derretido. Sua intensidade escaldante estava tão perto do olho dela
que finalmente a tirou de seu frenesi nebuloso.
Quíron latia sem parar, agarrando o outro braço do novo deus com a boca.
Ele não parecia sentir os dentes afiados ou a força bruta do enorme cão. As
pupilas de Castor dilataram, aneladas pelas brasas douradas de seu poder. Ele
olhava para ela, mas não a via, mesmo quando arrancou sua máscara.
— Sou eu! — exclamou Lore, sufocada, tentando afastar o rosto da arma
incandescente. — Sou eu… sou eu, Lore!
A transição que tomou conta do rosto do novo deus foi como o lento abrir
de uma asa. A fúria se transformou em choque e, então, em pânico.
Ele a soltou, e Lore cambaleou, saindo de cima dele e caindo sobre os
joelhos, ofegante. A chave de fenda caiu no tapete. O cheiro de lã
chamuscada preencheu rapidamente o quarto. Lore ainda teve bom senso
suficiente para chutá-la para o piso frio do banheiro.
O silêncio que se seguiu foi quase tão doloroso quanto o calor fora. Por um
longo período, Castor não fez nada a não ser encará-la enquanto ela se
curvava para frente de joelhos, tentando puxar mais ar para os pulmões. O
sangue ainda pulsava como um tambor em suas veias.
Quíron trotou até ela com as patas firmes e, por um momento, Lore não fez
nada a não ser pressionar o rosto no pelo do pescoço dele. Sua parte fraca
queria desaparecer ali dentro.
Finalmente, Lore se forçou a dar meia-volta.
— Surpresa?! — disse ela, porque Lore nunca enfrentou uma situação que
não poderia ficar ainda mais constrangedora, a ponto de doer.
— Eu podia ter… Eu podia ter te matado — disse Castor, roucamente. —
Eu pensei… Eu estava confuso, e o assassino…
Não. Ele a teria matado. Os braços de Lore estavam latejando devido ao
esforço que foi necessário para afastar a chave de fenda de si.
— Se bem me lembro, eu que estava por cima, grandalhão — disse ela.
Castor fechou os olhos, soltando o fôlego demoradamente. Ele esfregou a
testa, o que a lembrava do quanto a própria testa doía.
— Eu devia ter percebido que era você com aquele primeiro golpe — disse
ele. — Só você iria direto na cabeça. Posso saber onde conseguiu aquela
máscara?
Quíron lambeu o queixo de Lore, confortando-a.
— Ah, claro — disse Castor, lançando um olhar sombrio para o cão. —
Enfiou o punhal e ainda tem que girar, não é mesmo?
Lore acariciou a cabeça de Quíron em um agradecimento silencioso, depois
apontou para a cama. Ele se afastou com dificuldade, deixando um grande
espaço entre ele e Castor.
— Não que eu não tenha gostado de quase ter sido apunhalado por uma
chave de fenda — disse Castor. — Depois de como você reagiu naquela luta,
não achei que ia te ver de novo… mas você veio.
— Na verdade, eu estava fugindo, antes de ter sido rudemente interrompida
por você — disse Lore. — E, para constar, eu não fazia ideia de que este era
o seu quarto.
O cão talvez fosse uma forte dica, mas vamos deixar esse detalhe para lá.
— Se não veio me ajudar — disse Castor lentamente —, então o que está
fazendo aqui?
— Acho que eu acabei de ajudar você. Será que devo falar do fato de você
ter só ficado parado ali enquanto o seu quase assassino atirava na sua
direção? — Lore apontou o polegar na direção de Philip. — Espero que eu
não precise te contar quem é.
Ele respirou fundo entre os dentes, olhando para a forma enrugada do
homem. — Eu não…
— Você não, o quê? — questionou Lore, sentindo os primeiros vestígios de
raiva no coração. — Não ficou parado ali e deixou que ele tentasse te matar?
Castor virou o olhar.
— Você não vai entender.
— Bom, definitivamente não vou se você não me explicar — disse Lore.
Quando o novo deus continuou a evitar o olhar dela, ela adicionou: — O que
está pegando? Não me diga que só queria ver se ele ia ter coragem de ir até o
final. Nós dois sabemos o tipo de pessoa que ele é, e você não fez nenhum
amigo novo com aquela atuação que teve lá embaixo.
— Você viu quanto daquilo?
— O suficiente — disse Lore, engatinhando até ele. — Mesmo quando
você… mesmo quando você estava no auge da sua doença, continuava
lutando.
Lá embaixo, com toda aquela bravura, não era Castor. Este era Castor.
— Você… — disse ela. — Você queria que ele te matasse?
A hesitação dele foi resposta suficiente.
— Não — insistiu ele. — Foi apenas um erro… eu não estava tomando
cuidado.
Lore balançou a cabeça negativamente.
— Você sempre toma.
Ele esfregou o joelho que havia batido sem querer mais cedo.
— Ultimamente não. É como se…
Ela o esperou terminar.
— Como se eu estivesse em um corpo que não é meu — disse ele,
finalmente. — Não pude me mover… ou sentir… ou… — Castor respirou
fundo mais uma vez. — Eu só não tive certeza do que fazer ou como evitar
matá-lo.
— E isso seria tão ruim assim? — perguntou Lore.
— Logo nessa semana, em que os Aquilídeos precisam de liderança? —
rebateu ele. — Sem nenhuma prova de ele ter me atacado primeiro? Não tem
câmeras aqui dentro. Eu já chequei.
— O líder deles não é você? — perguntou Lore, de forma direta. — Eles
não servem a você, até mesmo acima do arconte?
— Eles nunca me quiseram — disse ele. — Nem quando eu era criança e,
com certeza, nem agora. Talvez eu tenha pensado, só por um minuto, que eles
estariam melhor se Philip ascendesse. Que ele iria…
Lore titubeou com as palavras totalmente cruas de Castor, mas ele não
concluíra seu argumento.
— Que ele iria o quê? Se tornar ainda mais insuportável? Abusar de ainda
mais poder? — pressionou Lore.
— Pelo menos ele seria capaz de controlar essa energia — disse Castor. —
Ele não iria… Eles acreditariam nele.
— Você morrer e Philip Aquileu se tornar deus não é melhor em nenhum
mundo. Me diz que você entende isso. Que acredita que merece viver.
Aquilo não fazia sentido para ela; por que Castor teria matado Apolo, se
não fosse pelos seus poderes?
A resposta veio até ela de repente. Para se curar. Para renascer em um
corpo novo e saudável.
Ele lutou contra uma forma agressiva de leucemia desde que tinha quatro
anos, enfrentando quimioterapia, radioterapia e transplantes de células-tronco
ao longo dos anos. A doença havia voltado com força total pouco antes do
início do último Ágon, e todos, incluindo o próprio Castor, acreditaram que
ele morreria por causa dela.
Todos menos Lore.
— Por favor, pare de me olhar desse jeito.
— Que jeito?
— Como se estivesse com medo.
— Não estou com medo — disse ela. — Estou preocupada. Estou tentando
entender o que está acontecendo e como isso — ela gesticulou na direção
dele como um todo — aconteceu.
Até agora, Lore nunca havia pensado sobre o quão esmagador deve ser, de
repente, ter que lidar com o peso das necessidades de sua linhagem ou perder
a pessoa que foi um dia. Talvez aquilo explicasse o peso que via sobre ele
agora e a relutância de aceitar quem era. Mas também havia outra coisa —
algo que ela não conseguia exatamente dizer.
— Que coincidência. Eu também estou confuso — disse Castor, se
esquivando da abertura dada por ela para que se explicasse. — Como você
entrou no edifício, para começo de conversa? Eles trancaram tudo e
colocaram guardas vigiando por toda parte. Eu verifiquei. Não vai me dizer
que você se transformou em uma aranha.
Ela fez uma careta.
— Entrei do mesmo jeito de sempre.
— Não, não entrou — disse ele, olhando para Lore por debaixo da franja de
seu cabelo escuro. — Tem caçadores em todas as escadas de emergência.
Você não tinha como ir por elas.
— Que bom que não usei as escadas de emergência, então — disse ela.
— Você não… — disse ele, e ajeitou a postura. — Você me disse que
costumava subir pela escada de emergência!
Ah — pensou Lore. — É verdade.
Ela havia dito isso a ele — assim como disse que as Erínias preferem o
gosto da pele macia de garotos e que a iniciação de caçador envolvia beber
xixi de sátiro e correr pelado sob a lua.
Não era a primeira vez que Lore percebia que foi um pouco babaca quando
criança. Agora, entretanto, não havia sido o caso.
— Eu não quis que você ficasse preocupado — disse ela, rispidamente.
Castor se preocupava com tudo: as árvores no parque, os cães de rua, se ela
havia sido punida por fugir de casa para vê-lo, se o câncer o mataria e se seu
pai ficaria bem sem ele. Essa era a única preocupação que ela podia ter
aliviado para o amigo.
— Era o único jeito de entrar quando você estava… quando eles pararam de
deixar que eu viesse ver você.
O medicamento havia comprometido o sistema imunológico de Castor, mas
Lore não conseguia lidar com o pensamento de ele ficando sozinho, dia após
dia. Ela sempre foi muito cuidadosa para não o tocar, sabendo o tipo de
sujeira da cidade que trazia consigo. Na maioria dos dias, ela apenas se
sentava ao lado da cama dele enquanto ele dormia e ficava de olho no amigo
com Quíron.
Ele balançou a cabeça negativamente em descrença e uma quantidade nada
pequena de medo.
— É uma queda de quatro andares. Você não sobreviveria a isso.
Lore agitou a mão com desleixo, voltando-se para onde Philip ainda estava
deitado de costas, com a respiração fraca.
— Você disse que não sabia em quem confiar — disse Lore. — É isso que
quis dizer?
— Sim — disse ele, respirando fundo. — Mas também eu só… queria ver
você e alertar sobre Aristos… sobre Fúria. Van me levou até você em vez de
virmos direto para cá do Despertar no Central Park.
— Por quê? — perguntou ela. Lore odiou o tom grosseiro com que aquelas
palavras saíram. — Você teve sete anos para vir me encontrar antes disso. A
mortalidade fez com que se você sentisse particularmente nostálgico ou só
estava a fim de acabar com a minha noite?
— Eu tentei — disse ele. — Tentei encontrá-la por anos, mas foi como se
você tivesse desaparecido. Não tinha vestígio nenhum seu.
— É, isso foi meio que de propósito — disse Lore, e seu coração batia forte
com essa lembrança.
— Pensei que talvez estivesse morta, mas Van conseguiu rastrear você
ontem à tarde — disse Castor. — Ele estava preocupado com Philip e
pensou… eu pensei… que você talvez estaria disposta a ajudar a me esconder
ou me tirar da cidade.
Ela estava com alguma placa pendurada nas costas oferecendo abrigo para
todos os imortais em perigo?
— Mas você está certa — disse ele. — Você está certa. Não foi justo jogar
esse peso em você. Acho que eu só pensei…
— O quê? Que ainda éramos amigos? — concluiu ela, antes que pudesse se
segurar.
Ele titubeou e tentou disfarçar ficando de pé. Lore também se levantou, não
gostando da sensação de estar na sombra dele.
— Então por que você veio aqui? — perguntou ele baixinho. — Você me
disse claramente que não tinha nenhuma vontade de me ajudar, então por que
se arriscar?
A pergunta pendeu como uma espada acima de seu pescoço. Lore se voltou
novamente para ele, tendo dificuldade para responder.
Porque você é o único no mundo em quem achei que podia confiar.
— Por desespero — ouviu-se dizer, cortando a verdade na raiz. Seus olhos
capturaram o brilho do ouro no chão e, ignorando a dor em seu corpo, ela se
inclinou para pegar um dos pedaços da coroa. A mentira saiu mais fácil do
que ela esperava. — Para ver se você já sabia o que Fúria está procurando.
Lore estendeu a mão para entregar a ele o pedaço da coroa, mantendo o
olhar nas folhas de louro moldadas de forma elaborada em vez de no rosto
dele.
— Entendo — disse o novo deus, suavemente. — Soube de alguns
movimentos dele nos últimos anos, mas nunca consegui descobrir exatamente
o que ele procurava, e Van também não. Queria poder ter uma resposta
melhor para você, Áurea.
— Não… — disse Lore, forçando sua voz a se firmar. — Não me chame
assim.
Havia sido burrice da parte dela escolher esse apelido para o ringue de
Frankie, mas foi a primeira coisa que veio na cabeça, e Frankie gostou
demais para deixá-la trocar na semana seguinte. Era uma brincadeira com o
apelido carinhoso que seus pais usavam, que por si só era uma ode ao mel.
Lore havia sido nomeada em homenagem às suas avós: Melitta, que significa
abelha, e Lora.
— Acho que sei o que é — disse ela. — O que ele está procurando.
A mão de Castor pairou ao lado da dela. Um pouco de calor passou pelos
nós dos dedos dela instantes antes de ele tocar sua mão. O toque era suave,
hesitante e não estava mais lá tão logo ela o sentiu.
— O quê? — perguntou ele. Seus olhos estavam fixados nela. Ela não sabia
dizer o que a mantinha ali, esperando, com a mão ainda estendida. Mas então
o toque veio novamente, e a ponta dos dedos dele deslizaram até o pulso da
jovem, passando pela curva do polegar, até, finalmente, se engancharem no
pedaço da coroa, e Lore lembrou que deveria soltá-la.
— Outra versão do poema da origem — disse ela. — Que explica como
vencer o Ágon.
O aperto de Castor se intensificou na fina faixa de ouro. Ela não aguentava
a ideia de levantar o olhar e ver a expressão no rosto dele.
— Por que você acha isso?
Um forte temor passou por Lore quando a ficha da realidade da situação
caiu.
Antes de vir, Lore queria encontrar o novo poema por dois motivos.
Primeiro porque sabia que Fúria procurava por ele pessoalmente e arriscaria
sair de seu esconderijo para encontrá-lo, dando à Atena a rara chance de
matá-lo. A outra era de evitar que caísse nas mãos de algum deus, novo ou
antigo, que poderia usá-lo para se tornar um verdadeiro imortal com um
poder inimaginável capaz de destruir ou subjugar a humanidade.
Agora, ao que parece, ela tinha um terceiro motivo: Castor.
Se o poema revelasse que o Ágon só poderia terminar quando um único
vencedor surgisse, teria que ser ele.
Mas ela já havia se aliado a outro deus. Que não hesitaria em matar Castor
na primeira oportunidade que tivesse.
— Lore? — perguntou Castor. — Por que você acha isso?
— Foi outro aviso que eu recebi essa semana — disse Lore. — De outra
pessoa.
— Vou ver se Van sabe de alguma coisa — assegurou Castor. — Isso vai,
pelo menos, dar um ponto para reforçar a investigação dele.
Quando ela arriscou um olhar por debaixo das mechas soltas de seu cabelo,
Castor fitava sua mandíbula. Fitava a longa cicatriz que percorria seu rosto.
Seus pulmões pareciam estar envoltos em aço escaldante. A respiração que
seguiu causou espasmos dolorosos neles.
Cicatrizes — o pai costumava dizer à Lore e às suas irmãs — são registros
das batalhas que você sobreviveu. Mas Lore não havia merecido aquela; ela
fora marcada com ela.
— Não me lembro dessa — disse ele.
Ela ignorou a pergunta escondida ali.
— Eu soube da sua família — começou Castor. — Os seus pais… as
meninas…
— Não quero falar sobre isso — disse ela, abruptamente. — Uma das
vantagens de virar deus não é parar de se importar com as vidas dos mortais
deploráveis fora da sua linhagem?
O maxilar dele se enrijeceu.
— Lore, eu ainda sou o Castor.
Ela balançou a cabeça negativamente, com uma risada triste, mesmo que
sentisse um aperto no peito.
— Eu sou. Eu sou. — O pedaço da coroa caiu no chão de novo enquanto as
mãos dele se fechavam nos punhos da jovem, como se o toque pudesse fazê-
la entender de alguma forma. Parecia se espalhar por seu sangue, acendendo
suas terminações nervosas, e foi mais do que o suficiente para comprovar a
mentira nas palavras dele.
Como se acabasse de perceber o que havia feito, ele a soltou e deu um
passo para trás.
Este era Castor, mas de alguma forma não era. Ela só precisava olhar em
seus olhos para ter certeza. Ele pode ter mantido parte do destino genético de
Castor com sua aparência, mas ele havia sido… aprimorado. As imperfeições
que o tornavam um ser humano tão desajeitado quanto os demais foram
suavizadas, e o resultado era atordoante, em várias maneiras.
Contudo, ela também não era mais a Lore que ele conhecia.
— Desculpe — disse Castor, com uma ponta de desespero naquela palavra.
— Apenas… fale comigo. Por que você quer saber quais são os planos de
Fúria? — Os olhos dele arregalaram. — Me diz que não vai atrás dele…
Um silêncio pairou entre eles, dividindo a distância entre passado e
presente. Era o único limite em sua vida que Lore não tinha ideia de como
cruzar.
Ele fechou os olhos, e seu corpo inteiro enrijeceu.
— Por que ele tinha que matá-los?
Lore se perguntou, então, se era possível que os Cadmídeos tivessem, por
todo esse tempo, guardado segredo sobre o que ela fez. Ela supôs que o
orgulho talvez pudesse explicar isso também. Às vezes, quando as
lembranças daquela noite vinham à tona e ela revivia tudo em sua cabeça
para se punir, Lore se confortava em saber o quão humilhante era para
Aristos Cadmou e para todos os Cadmídeos saber que foram superados por
uma garotinha.
— Van achou que você pudesse estar com a linhagem da sua mãe, mas
ninguém quis confirmar — disse Castor. — Ninguém quis arriscar ser punido
pelos Cadmídeos por proteger você. Mas por que ele iria atrás da sua família,
para começo de conversa?
Eles arriscaram, e ela os compensaria com sangue. Curiosamente, a
investigação de Van não desenterrou aquela história horrível.
— Não é óbvio? — disse Lore. — Fúria quis terminar o que seu avô
começou. Ele quis que a Casa de Perseu fosse eliminada da caça.
— Por que ele não ordenou isso antes? — perguntou Castor. — Por que
esperar até que ascendesse? Por que ele não veio e tratou disso com as
próprias mãos, como um imortal?
— Não quero falar disso — disse Lore abruptamente. — Eu não sei por que
ele fez isso, beleza? Porque o meu pai rejeitou a oferta dele. Porque o meu
pai o humilhou. Porque ele estava a fim. Tudo que eu sei é que os Cadmídeos
os tiraram de mim. Tiraram tudo de mim.
Mas aquilo não era verdade, e ela tinha a prova disso bem em sua frente.
Não foram eles que tiraram Castor dela. Foi o Ágon.
Sua garganta ficou embargada, mas Lore não era mais uma garotinha.
Controlaria suas emoções.
— E eu pensei… Eu pensei que você também estivesse morto.
— Desculpe. Pelos deuses, Lore — disse Castor baixinho. A voz dele
diminuiu para um tom que ela nunca ouviu antes, de raiva e autodesprezo. —
Eu não pude ajudar você. Eu não pude ajudá-los. Eu não pude fazer nada, por
anos. Mesmo que eu te encontrasse, você nunca saberia.
— O que você quer dizer? — disse Lore, se inclinando na direção dele e
fitando as faíscas de poder que brilhavam nas íris escuras dele. Sua mão abriu
ao seu lado e começou a se erguer, como se precisasse alisar as linhas duras
que formavam no rosto dele.
— Eu não conseguia manifestar uma forma física. — Castor deu uma risada
sombria e sem humor. — Pelo visto eu sou tão fraco e inútil como um deus
do que quando eu era um mortal.
Lore franziu o cenho. Acantha havia dito algo sobre durante a cerimônia. A
propriedade que construímos para o senhor nas montanhas permaneceu
vazia, e as oferendas, intocadas.
— Você não é inútil — disse ela. — E nunca foi. Nunca, não importa o que
qualquer um dessa linhagem horrorosa tenha dito para você.
Castor parecia estar querendo desesperadamente acreditar nela.
— Não pude nem salvar meu pai — disse ele, e olhou para as próprias
mãos. — Ele está morto agora, sabia? Eu vi acontecer… eu estava lá,
vagando por entre os lugares que costumava ir e as pessoas que queria ver.
— Não sabia — disse ela, suavemente.
— Um infarto. Eu vi acontecer — disse ele, e suas mãos se fecharam em
punhos. — E o que eu não posso superar, o que eu não posso aceitar, é que eu
tinha o poder de curá-lo. De salvá-lo. Mas naquela época… era tudo muito
novo. Pelo menos aprendi como invocar o meu poder, mas controlar…
Lore pressionou a mão contra o peito. Na mente da jovem, a última imagem
que tinha do corpo do próprio pai se entrelaçou com os últimos momentos
que imaginou que Castor tivera. Ela teve que fechar os olhos e respirar fundo
para não passar mal.
— Eu vim atrás de respostas — disse ele, com a voz tão obstinada quanto o
olhar. — É o suficiente para me manter vivo. Você não precisa se preocupar
comigo.
Lore tentou reunir os pensamentos enquanto se abaixava para pegar um
livro de capa de couro que fora derrubado de uma mesa próxima. Ela avistou
a porta de canto de olho e parou. E apertou o livro com mais força.
— O que foi? — perguntou Castor, indo na direção dela.
— Os guardas — disse ela. Eles deviam ter ouvido ela e Philip lutando.
Deviam ter ouvido ela e Castor lutando. Deviam ter ouvido Quíron, do jeito
que vinha se comportando. Ela não deveria ter sido capaz de encaixar um
único golpe nele sem que uma bala ou lâmina a atravessasse. — Cadê eles?
— Nunca houve nenhum guarda, Melora — disse uma voz irregular.
Philip se levantou, segurando firme a faca em uma das mãos e pressionando
com a outra o ferimento em sua cabeça. Ele foi na direção do novo deus.
— Eu sempre me lembrei de você como uma criança estúpida. —
prosseguiu Philip —, mas nunca imaginei que seria tola o suficiente para dar
as caras aqui.
— Engraçado — disse Lore —, eu sempre me lembrei de você como um
cuzão e eu com certeza pensei que você seria tolo o suficiente para tentar
matar o seu novo deus.
O arconte cuspiu nela. Castor deu um passo para frente, furioso.
— Saia, agora — disse Castor. — Ninguém precisa saber o que aconteceu,
e você não vai correr o risco da maldição contra assassinos de parentes.
— Me amaldiçoarei com orgulho — disse Philip. — Vou recebê-la de bom
grado, se isso significa que esta linhagem sobreviverá. Você sabe disso. Você
é patético demais para carregar o manto de Apolo e nunca terá o respeito dos
Aquilídeos. Se eu soubesse o que você se tornaria, eu teria poupado a todos
nós sufocando-o quando ainda era um garoto.
As palavras bateram, eram um perfeito eco do que o próprio Castor dissera.
As mãos do novo deus se curvaram em punhos ao lado do corpo, mas ele não
negou o que foi dito.
— Vou tentar proteger eles — disse Castor.
— Tentar? — repetiu Philip, com deboche. — Tentar! Não pense que não
sei que você tinha planejado nos abandonar; planejado ir embora da cidade,
deixando sua linhagem para trás. Você sempre foi fraco, mas agora sua
fraqueza egoísta envergonhou a todos nós.
Castor titubeou. Lore segurou o braço dele na esperança de deixá-lo firme.
— Faço uma oferta, mas somente uma vez — disse Philip. — Eu o
libertarei desta vida com uma morte rápida e limpa. Você sabe que esse é o
único jeito. Tentar? Você nunca será bom o bastante.
Lore agarrou o livro com mais força, pensando em qual ponto fraco do bode
velho ela deveria atingir. Ela viu uma breve expressão de medo no rosto de
Castor — a preocupação de que fosse verdade o que Philip dissera, de que ele
não seria bom o bastante — e seria liquidado em dois golpes: um na garganta
e outro nas entranhas.
Philip entrou em postura de combate.
— Nunca saberei como você, um projeto de moleque moribundo, matou um
deus antigo, mas de uma coisa estou certo: se eu lhe permitir viver, você
falhará com eles, e todos morrerão o amaldiçoando.
Um fino feixe de luz do sol passou cortando o tapete próximo aos pés de
Lore. Ela olhou para baixo, confusa, e não viu a flecha que atravessou
rasgando o coração de Philip.
O velho encarou Castor, e seus olhos se arregalaram enquanto uma de suas
mãos subia em direção da flecha para tocá-la. Ele estava morto antes mesmo
de atingir o chão.
Castor se moveu instintivamente para segurá-lo, mas Lore levantou o olhar,
na direção da claraboia. Outra flecha apareceu na fresta de azul e foi atirada
sem nem mesmo um sussurro, cortando o ar e voando em direção à nuca de
Castor.
QUATORZE

LORE SE LANÇOU COM TUDO, ERGUENDO O LIVRO PESADO PARA QUE FICASSE NO
caminho da flecha.
Os seus braços tremeram quando absorveram o impacto do projétil. Em vez
de ricochetear ou ficar presa na capa de couro, a ponta de aço perfurou
centenas de páginas finas e rasgou as costas do livro. Atingiu o batente
reforçado da porta e finalmente parou.
O livro caiu das suas mãos.
— Se afaste! — disse Castor. Quando ela não se mexeu, ele agarrou a
frente do manto da amiga e a girou para trás de si. Houve um pesado baque
contra o chão quando alguém saltou da claraboia, fazendo a mobília
estremecer e as pernas de Lore ficarem instáveis.
Uma voz se ergueu como um vento noturno frio por entre as árvores:
— Assassino de Deuses.
A mulher — o ser — parecia ter sido esculpida na escuridão de uma
profunda e antiga natureza selvagem. O cabelo loiro da deusa estava
emaranhado com folhas e preso em nuvens claras, quase brancas como a
neve, circundando seu rosto riscado de terra. Mesmo esmaecida pelo sangue
mortal, havia um aspecto perolado em sua pele de marfim, como se ela
irradiasse o luar.
Era Ártemis.
A deusa mostrou os dentes, mas o olhar de Lore estava fixo na forma como
os seus dedos se fechavam em garras em volta do arco composto.
Provavelmente furtado de um caçador morto.
Quíron saltou da cama, rosnando. A deusa deu meia-volta quando ele a
atacou, e seus olhos se arregalaram subitamente. O cão ficou imóvel de
repente, como se atingido por um dardo tranquilizador. O corpo relaxou e ele
rolou para o lado, expondo a sua barriga macia para ela.
— Dama da Caça — disse Castor, neutro.
Ártemis lançou um olhar nefasto a ele enquanto avançava vagarosamente.
Cada passo revelava um detalhe novo e horrível.
Não era terra no rosto da deusa, era sangue seco. Que havia ensopado a
frente do seu manto, de um tecido azul-celeste espetacular. O olhar de Lore
se fixou na aljava amarrada nas costas da deusa — estava presa ali não com
uma faixa de couro desgastado, mas com cabelo humano trançado. Todos
com cores e texturas diferentes, todos pegajosos com sangue e pedaços de
escalpo.
O estômago de Lore embrulhou violentamente.
Ártemis ergueu o arco. Outra flecha já estava encaixada.
— Você devia saber que eu viria atrás de você. Que eu iria caçá-lo, até a
Casa de Hades, até as profundezas obscuras do Tártaro, até qualquer
escuridão infernal na qual você esperava se esconder.
Sem pensar, Lore pôs a mão no ombro de Castor para alertá-lo e sentiu os
músculos da área se enrijecerem em resposta.
— Por favor — disse ele —, você não é minha inimiga, e eu não sou o seu.
Preciso perguntar uma coisa para você. Se estava lá naquele dia. Se viu o que
aconteceu.
O olhar de Lore foi em direção a porta trancada atrás deles, e ela percebeu.
Ninguém está vindo — pensou.
Lore começou a vasculhar o quarto com intensidade, e seus olhos avistaram
um espelho apoiado no chão. Ela poderia quebrar o espelho e usar os cacos.
Tudo que precisava era chegar perto o suficiente para cortar um dos tendões
ou artérias da perna da deusa. Isso pelo menos os faria ganhar tempo
suficiente para que escapassem.
— Aguardei sete anos por este momento — vociferou Ártemis, fervendo
por dentro. — A morte do meu irmão é sua ruína. Um destino maligno paira
sobre você agora, Assassino de Deuses. Quando eu terminar, não sobrará
nada de seu cadáver mortal para as aves carniceiras.
Os gêmeos haviam sido duas metades de uma alma, em um fluxo e
contrafluxo constante ao redor um do outro, como a noite virando dia, e o dia
virando noite. Eles haviam zelosamente vigiado e protegido um ao outro,
raramente se separando durante o Ágon, se pudessem evitar. Agora parecia
que a morte de Apolo retalhara o pouco da sanidade que a deusa tinha. Seus
olhos queimavam com as brasas de seu poder.
— Você estava lá? — perguntou Castor, com um tom de súplica na voz. —
Me responda.
— Saia, garota — disse a deusa, se dirigindo a Lore diretamente. — Não
tenho nenhuma desavença com você. Ainda.
Lore sentiu as palavras como gotas frias em sua pele. Ela não entendia por
que Castor ainda não tinha atacado a deusa, por que continuava fazendo
aquela pergunta.
— Deixe que eu lhe mostre a saída — disse Castor, guiando a amiga
lentamente em direção à porta. — Como você mesma disse, não tem
nenhuma desavença com ela.
Sucedeu-se uma horrível simulação da maneira que costumavam treinar,
um refletindo os passos do outro. Castor pegou a flecha da deusa, lascando a
moldura de madeira da porta quando a arrancou. Enquanto a sua mão voltava
para a lateral do corpo, ele virou o pulso para que a ponta da flecha apontasse
para o tecido do seu cinto dourado — para a pequena faca que ele tinha
enfiada ali, contra a lombar.
Lore respirou fundo, sabendo exatamente o que ele queria. Ela se
aproximou dele, fechando os dedos ao redor do cabo da faca. A arma havia
absorvido o calor da pele dele e agora queimava as pontas dos dedos dela.
— Você se engasgará no próprio sangue antes de eu ouvir outra palavra
sua…
Castor se curvou para a frente e Lore se moveu mais rápido do que já havia
se movido antes na vida, deslizando a lâmina para fora e a arremessando.
Seja porque a faca estava levemente torta, ou porque Lore estava
simplesmente fora de forma, a lâmina voou mais para a direita do que ela
pretendia, e foi girando na direção do braço da deusa, em vez de seu ombro.
Ártemis sacudiu o arco para bloquear o golpe. A faca ricocheteou no chão,
girando para longe.
Lore não ouviu nem viu a flecha até que sua ponta afiada sibilasse pelo ar
na direção dela, mas ela já estava caindo, apenas registrando a força do
empurrão de Castor antes de ela tombar no chão.
Sangue escorreu para dentro de seu olho, vindo de onde a lateral da flecha
havia passado de raspão, ao longo da têmpora e do couro cabeludo. Ela
limpou o sangue com o ombro e se levantou, ignorando o olhar preocupado
de Castor.
A deusa se voltou para a cama, sibilando. Seus olhos foram até Quíron, que
tentou da melhor forma que pôde espremer o corpo enorme embaixo da
cama.
— Não — pediu Castor —, por favor…
Quíron choramingou, depois ganiu como se ela o tivesse furado com uma
lâmina. O cão ficou rígido, e seus pelos se arrepiaram. Ele expôs os caninos e
o seu rosnado se estendeu pelo quarto como um trovão.
— Quíron, não — disse Lore. — Não!
O cão avançou na direção deles, emitindo um som diferente de qualquer
coisa que Lore já havia ouvido antes. Fios de baba voaram do focinho e da
boca, que espumava. Os olhos dele brilhavam dourados com o poder da
deusa e não havia qualquer consciência ali, nenhuma noção — só raiva.
Fome e raiva.
QUINZE

LORE PERDEU QUÍRON DE VISTA QUANDO CASTOR SE COLOCOU ENTRE ELA E O


cão. Uma rajada de energia explodiu das mãos estendidas dele, clareando o ar
enquanto ia na direção de Ártemis.
Lore jogou um dos braços sobre os olhos, para protegê-los. Fragmentos de
concreto e tijolos voaram e a parede do quarto fez um estrondo quando foi
estourada.
Em algum lugar próximo, Quíron choramingava. Lore tateou às cegas em
volta, procurando por ele, agarrando seu pelo e puxando-o para perto, para
trás da proteção do corpo de Castor.
Tão rápido quanto veio, a luz intensa se foi. Lore abaixou o braço. O quarto
esfriou em volta dela enquanto a energia se dissipava em centelhas quentes e
oscilantes.
Castor já estava no buraco fumegante na parede e exibia uma expressão de
preocupação. Lore se levantou, cambaleando um pouco enquanto chegava ao
lado dele. Ela se debruçou na borda do edifício, procurando pelo corpo.
Havia um grande amassado na tampa da lixeira sobre a qual Ártemis havia
caído e rolado para fora. A deusa estava novamente de pé, se fundindo às
sombras das ruas laterais. Gritos vieram de dentro da casa, seguidos pelo som
estridente das sirenes de emergência.
— Você errou — disse Lore, com voz rouca.
— Não — disse ele. — Não errei.
O maxilar de Castor se enrijeceu novamente enquanto ele se voltava para
ela.
— Você está bem? — perguntou, acariciando suavemente a lateral do rosto
de Lore. Ela se afastou.
— Por que você não fez aquilo antes? — disse Lore, sentindo como se
ofegasse a cada palavra.
Ele a fitou como se a resposta fosse óbvia.
— Porque Quíron estava na frente.
O cão choramingou ao lado da porta do quarto, arranhando e cavando para
sair dali.
— Ártemis vai voltar — disse Lore. — Geralmente, quando aves
carniceiras são citadas em uma conversa, normalmente quer dizer que a
pessoa tem certeza de que vai haver um abate.
— Não se preocupe comigo, Lore — disse ele, com um sorriso triste. —
Não sou um antílope que ela possa caçar e matar. — Castor apontou para a
parede que desabou. — Se ela me der o bote, será que eu consigo fugir
saltitando?
— Primeiro, não foi engraçado — disse Lore, passando a mão no cabelo
totalmente bagunçado. — Segundo, não foi isso que eu quis dizer.
A porta chacoalhou com alguém a socando do outro lado. Lore se
posicionou à frente de Castor enquanto alguém mexia nas fechaduras,
ignorando um músculo agonizante fisgando na lombar e o alerta que ressoava
em sua mente.
O que você está fazendo? — pensou ela, furiosa consigo mesma. — Você
ainda pode fugir se passar pela claraboia.
Atena precisava dela, e Lore precisava que Atena permanecesse viva. Ela
tinha que encontrar um médico ou algum posto de saúde clandestino para
tratar eventuais ferimentos internos que Atena ainda tivesse — e logo, se eles
quisessem pegar Fúria quando ele emergisse de seu esconderijo para abater
Castor e os outros novos deuses.
Se Fúria tentaria atacar outro deus, elas precisariam tirar vantagem de sua
saída para fazê-lo, e rápido, antes que ele matasse Castor ou voltasse para
qualquer buraco no qual estava se escondendo.
Cas… — Lore o olhou de relance. A incerteza se apoderou dela. Ela não
gostava da ideia de deixá-lo, mas o que mais poderia fazer? Tentar
argumentar com Atena, mostrá-la a lógica por trás de aceitar ajuda de um
inimigo extremamente odiado? Lore teria mais chances de sucesso tentando
acalmar Cérbero.
A porta de metal do quarto subiu, permitindo que a de madeira abrisse e
batesse contra o reboco fumegante da parede mais próxima. Van parou na
entrada, sua pele negra estava pálida e a boca, apertada de preocupação.
— Castor? — chamou ele, na direção das nuvens de fumaça que vagavam
entre eles. Quíron passou trombando por baixo das pernas do rapaz,
finalmente escapando das ruínas do quarto. — Cadê você?
— Aqui — respondeu o novo deus.
Van girou na direção deles, com a adaga na mão.
Castor estendeu um braço na frente dela. — Está tudo bem, Van. É apenas a
Lore.
— Lore — repetiu Van, puxando um fôlego breve.
Lore viu o olhar acusador se intensificar nele e se arrepiou com um
incômodo familiar.
— Isso não foi culpa minha — alertou ela. Depois, complementou, sem
verbalizar: Dessa vez. — Van abaixou a arma.
— Como você entrou aqui?
— Eu tenho uma pergunta melhor — retrucou Lore. — Como diabos
Ártemis entrou aqui? Por que a claraboia não estava cimentada?
— Ártemis? — Van olhou para ambos, para as flechas espalhadas, para a
mobília revirada e para o buraco na parede. O seu olhar se fixou na porta
secreta e no corpo de Philip, jogado ali perto. — Algo me diz que ele não
morreu defendendo vocês valentemente do ataque…
— Não, não foi desse jeito — disse Lore. — Ninguém nunca pensou em ver
se havia entradas escondidas…?
Van ergueu a mão, interrompendo-a.
— Por mais que eu amasse ficar parado aqui discutindo, há pelo menos
duzentos Cadmídeos vindo nessa direção, e metade dos nossos caçadores está
lá fora procurando pelos nossos mortos. Castor, você precisa ir embora.
Agora.
A pulsação de Lore acelerou, mas seus pés ainda não se moviam.
Castor contraiu o maxilar. Seu rosto ficou subitamente sombrio, e Lore
podia apenas supor que as palavras de Philip ecoavam na cabeça dele de
novo. Você falhará com eles, e todos morrerão amaldiçoando-o.
Ele podia odiar os Aquilídeos, podia odiar o Ágon, mas não seria Castor se
fosse embora sabendo que a morte estava chegando para os demais e ele
pudesse impedir.
— Você não tem que provar nada para eles — argumentou ela.
— Não vou partir — disse Castor. — Não importa o que eu acho deles ou o
que acham de mim. Eu tenho uma responsabilidade com eles.
— Você é um completo idiota — perguntou Lore, em tom sério — ou a
fumaça deixou você dopado?
— Charmosa, como sempre, Melora — disse Van. — Que mal lhe
pergunte, o que está fazendo aqui? Anteriormente, você não quis ajudá-lo.
— Vim fazer uma boquinha — disse Lore. — E você?
Mas mesmo nesse momento sua mente gritava para que ela saísse dali.
Você precisa ir embora antes que ele e suas serpentes cheguem aqui —
pensou ela, e um medo frio penetrou seu corpo. — Você precisa voltar para
Atena. Precisa contá-la sobre Hermes, Ártemis, Portadora da Maré e
Fúria…
Van lançou um olhar frio e avaliador sobre ela. Lore lutou contra o impulso
de desviar o olhar daquele exame minucioso ou de exigir saber o que raios
ele estava analisando. Aquele olhar e aquele silêncio, mesmo quando eram
crianças, sempre a fizeram se sentir escandalosa, suja e simplória.
— Ela veio investigar se sabíamos alguma coisa sobre outra versão do
poema da origem, uma versão que talvez explicasse como vencer o Ágon —
contou Castor a ele. — Alguém a disse que é isso que Fúria está procurando.
— Quem? — perguntou Van.
— Isso é coisa minha — disse Lore.
— Você não ouviu nada a respeito? — questionou Castor. Lore sentiu uma
espécie estranha de culpa por, até mesmo nesse momento, ele ainda tentar
ajudá-la, colocando suas necessidades em primeiro lugar, da forma que
sempre fez.
Van balançou a cabeça negativamente.
— Não… se ele existe, com muito destaque no se, seria algo que os
Odisseídeos saberiam. Eles possuem os arquivos mais detalhados de todas as
famílias. Vou falar com a minha fonte de lá, mas você precisa sair daqui, Cas.
Imediatamente.
Merda — pensou Lore. Ela devia ter pensado nos arquivos dos
Odisseídeos, mas geralmente queria evitar pensar na Casa de Odisseu.
— Eu tenho um dever com essa linhagem — insistiu Castor. — Ainda
tenho algum senso de honra, aparentemente.
— Sua honra seria adorável se não fosse pura estupidez — disse Lore. — A
autopreservação é a primeira coisa que tiram de você quando deixa de ser
mortal ou só o bom senso, mesmo? Esta cidade não mudou muito desde que
você foi embora. Você a conhece melhor do que a maioria dos caçadores lá
fora. A coisa segura a se fazer é se esconder e esperar pelas próximas cinco
noites, ou ver se dá para chegar a um dos bairros da periferia. Não é o ideal,
mas pelo menos você não vai ter que se defender constantemente em dois
frontes. A última coisa que precisa fazer é ficar aqui e morrer pelas pessoas
que…
— Exatamente — disse Van vindo ficar do lado dela. — E por isso, você
vai com Melora.
Levou um momento para Lore processar aquilo. — Espere… o quê? Não.
Ele não pode vir comigo.
— Eu não vou — disse Castor.
— Ele tem que ir com você — insistiu Van, ignorando-o.
Lore ficou enojada.
— Você ainda corre de briga, não é?
— Você sabe que isso não é verdade — disse Castor a ela, de maneira
abrupta.
Lore se exaltou e forçou-se a respirar. Ela sempre foi desse jeito; mesmo
quando crianças, Castor tentava puxá-la quando estava à beira de estourar,
não importando se tinha ou não algo a ver com Van. A diferença era que
agora ela era mais que capaz de decidir quando se jogar.
— Se eu quisesse uma bússola moral, eu teria parado numa loja no caminho
para cá e comprado uma.
Ela não podia explicar tudo a eles; não podia contar sobre o acordo que fez
e lidar com a revolta deles e, com toda a certeza desse mundo, ela não podia
levar mais problemas para casa.
Van ergueu a mão enluvada e inclinou a cabeça, estudando-a de um jeito
que Lore odiava. Ela teve que resistir para não ter um espasmo de raiva
quando ele disse:
— O problema de fato aqui é que você não acredita que pode protegê-lo,
não é? Nunca pensei em você como uma covarde, Melora.
— Ah, vá com os corvos, Evander — disse ela. — Já tenho problemas
suficientes.
Lore sabia que ele estava lhe jogando uma isca. Ela sabia que seu
temperamento era reativo e que se arrependia depois do desenrolar dos fatos,
mas havia algo naquela palavra — covarde. Não foi como se ele a tivesse
arremessado como uma faca; ela já estava dentro da jovem, como uma
infecção dolorosa. Ao ouvir seu chamado, a palavra começou a sair de dentro
dela, dilacerando-a.
Que todos os covardes sejam devorados por sua desonra — sua mãe
costumava dizer.
— Vocês dois, podem me ouvir? — disse Castor. — Não posso fugir. Me
recuso a transformar as palavras do velho em uma profecia. Minha linhagem
me considera um fracasso desde o dia que eu nasci. Não vou provar que
estavam certos.
Lore se voltou para ele, assustada com a veemência naquelas palavras. Até
mesmo Van pareceu um pouco pego de surpresa.
— Cas… — disse ela.
Pneus cantaram do lado de fora, esse barulho foi seguido pelo som de
motores roncando e gritos vindos dos andares inferiores da Casa Tétis.
As mãos de Lore se fecharam, e a sua cabeça guerreou com o seu instinto.
A teimosia de Castor acabaria matando-o se ela o deixasse aqui. Tinha que
haver um jeito de fazer Atena enxergar a razão. E se não houvesse, bem, Lore
tinha todo o trajeto até sua casa para pensar em um plano B.
— Vá embora, Cas — disse Van.
Castor balançou a cabeça negativamente, pesaroso.
— Não posso.
— Você tem que ir — disse Van. Era o tom presunçoso de alguém que já
sabia que vencera a luta. — Você pode estar disposto a sacrificar sua vida,
mas eu sei que não está disposto a sacrificar a dela. — Van acenou com a
cabeça na direção de Lore.
Ela abriu ligeiramente a boca em sinal de protesto, mas Castor respirou
fundo e fechou os olhos.
— Van… — disse ele.
Mas o Mensageiro já havia encontrado o ponto certo para enfiar a lâmina.
— Ela não o deixará aqui agora, sabendo que estão vindo matá-lo. Vai
arriscar que a encontrem?
Lore e Van trocaram outro olhar; ela leu o dele perfeitamente. Confio
Castor a você.
Ela resmungou.
— Se você vem comigo, precisamos sair agora. — Lore enlaçou o braço no
de Castor e o puxou na direção do buraco que ele fizera na parede. — Eu não
sei como diabos eu vou cruzar a cidade com você sem deixar nenhum
rastro…
— Pegue um táxi — disse Van. — Pague em dinheiro.
Lore ficou raciocinando por um tempo.
— Só para registrar, eu mesma teria pensado nisso em algum momento.
Van se voltou novamente ao novo deus. Castor havia inclinado o corpo na
direção da porta e ao barulho do encontro de armas cortantes. Passos fortes
soaram escada acima.
— E quanto a você? — demandou Lore.
— Venha com a gente — implorou Castor.
— Não até eu descobrir o que puder — disse Van. — Vou perguntar sobre
o poema. Onde posso encontrar vocês quando tudo isso acabar?
Lore cerrou a mandíbula. Castor confiava nele, mas isso não significava
que ela tinha que confiar.
— No Martha’s Diner, fica no Harlem. Espera lá.
Van assentiu, passando sorrateiramente para o corredor. As fechaduras
foram trancadas, uma de cada vez. A porta de metal desceu novamente com
um estalo, os separando do resto da casa. Castor encarou a porta, e os
músculos dos seus ombros se contraíram de angústia e frustração.
Lore estava estupefata com a rapidez que o tempo curto deles passava.
— Vamos. Esta é uma luta que você não vai ganhar. Às vezes você precisa
esquecer esse lance de honra…
— Isso não é sobre honra — disse ele, rispidamente. — É sobre as pessoas
que eu estou abandonando para a morte.
Ela soltou o braço dele, sentindo como se o amigo a tivesse queimado com
as palavras. Lore se moveu para a beirada da parede destruída novamente,
voltando o olhar para a lixeira.
— Merda — xingou ela.
A queda não era mais o maior problema deles. Caçadores vestindo a
máscara de serpente dos Cadmídeos estavam se reunindo ao redor dos
destroços da parede, os avistando e apontando para cima. Ela se inclinou para
trás, se esquivando de uma seta disparada por uma besta de metal. O bater
das hélices de um helicóptero forçou a sua atenção de volta para o telhado.
Um raio passou em suas veias ao som das passadas pesadas indo em direção
à claraboia aberta.
Castor estava repentinamente ao lado dela, estendendo ambos os braços.
Levou um momento para entender o que exatamente ele queria.
— Você está brincando — disse ela.
— Está com medo? — disse ele. — Acha que eu vou derrubar você?
— Não, acho que vou ter que raspar o seu corpo mortal do concreto —
disse ela. — Você está falando sério? Estamos no quarto andar.
— Confie em mim — disse Castor.
As vozes eram altas o suficiente agora para ela captar fragmentos do que
diziam.
— Ele está logo abaixo de nós…
Lore fez uma carranca.
— Se você me derrubar, eu juro que vou voltar como uma Keres e não vou
deixar nada de você a não ser cinzas e sangue.
Castor assentiu, e sua expressão era austera.
— Eu quero ver você tentar.
Lore deu relutantemente um passo para o lado dele, ficando na ponta dos
pés para envolver um dos braços ao redor do pescoço de Castor. Ele se
abaixou, levantando-a com uma facilidade irritante, os braços fortes dele a
envolveram no pescoço e embaixo dos joelhos sem o menor sinal de esforço.
Castor desceu os olhos até fitar a face dela.
— Pronta?
Ele não esperou pela resposta dela quando se aproximou da beirada da
parede. Cordas caíram de cada lado da construção e a última coisa que ela
ouviu nitidamente foi uma voz profunda e familiar rosnando:
— Peguem-no! Não o deixem fugir!
Castor soltou uma das mãos e lançou uma explosão de energia nos
caçadores escalando as paredes abaixo e nos que atiravam nele do chão.
Lore deu as costas para o buraco, pressionando o rosto contra o ombro de
Castor enquanto o odor de cabelo queimado, pele e metal inundava suas
narinas.
— Pronta? — perguntou ele, novamente.
Ela assentiu. Então, Castor a segurou com força, pegou uma das cordas
penduradas e deu um passo para o vazio.
A queda roubou diversas batidas do coração de Lore e pareceu arrancar o
oxigênio dos seus pulmões. Esse foi o único motivo para ela não gritar.
Castor grunhiu quando a corda deu um puxão forte, fazendo-os parar. Os
olhos de Lore se abriram. Eles pousaram na pilha de lixo derretido e
fumegante que antes havia sido a lixeira.
— Você está bem? — disse ela, ofegando e se arrastando para fora dos
braços dele. A mão de Castor estava esfolada pelo atrito da corda. Ele fez
uma careta, um brilho emanou ao redor da palma de sua mão e a pele se
regenerou sozinha.
Lore deu um grande salto para evitar os corpos carbonizados que os
cercavam.
— Vamos… Cas!
Castor olhou para trás uma última vez, mesmo que houvesse balas e flechas
novamente caindo como chuva acima deles.
Lore agarrou o pulso de Castor, arrastando-o para longe da construção, e
não o soltou até que ele acompanhasse o ritmo dos seus passos. Ela o
conduziu para as outras lixeiras, passando pela grade, na direção do
estacionamento — um dos milhares de segredos que atavam a vida deles
juntas.
— Não me perca de vista — alertou Lore. — Não vou parar por sua causa.
— Vou dar meu melhor para conseguir acompanhar você — disse ele,
visivelmente chateado.
Lore aceitou a ajuda dele para subir na entrada do elevador, depois deu
meia-volta, oferecendo-lhe uma das mãos.
— Quero ver você tentar.
Ele pegou sua mão, mesmo que ela soubesse que não era preciso, e
seguiram adiante de novo.
O sangue de Lore corria disparado por seu corpo enquanto corriam,
ganhando vida com a onda de calor que passava por seus músculos e o ritmo
familiar dos passos de Castor, logo atrás dela. A trilha antiga e secreta deles
os esperavam, como se nunca tivessem ido embora e nunca tivessem perdido
um ao outro.
Naquele momento, o passado se tornou o presente, e o presente se tornou o
passado, e tudo se resumia aos dois nas sombras de sua cidade, do jeito que
sempre foi.
Do jeito que sempre deveria ser.
DEZESSEIS

O CALOR DO VERÃO PERMANECIA NA CIDADE, PROLONGANDO OS PIORES ODORES


que Manhattan tinha a oferecer. Conforme se dirigiam para o oeste, na
direção do Rio Hudson, Lore sentiu como se estivesse presa dentro de uma
sacola de lixo úmida.
Despiu-se de seu manto de caçadora, mas para Castor isso não adiantava
muito. Nova York era uma das poucas cidades em que um homem vestido
inteiramente em trajes antigos não seria nem a terceira coisa mais estranha
que as pessoas veriam ao longo do dia. Mesmo assim, tudo sobre ele, desde
sua altura até seu físico e seu rosto, conspiravam para atrair olhares.
Lore pediu para o taxista deixá-los a alguns quarteirões de distância de sua
casa. Ela ainda tinha o dinheiro que ganhou da luta no bolso e se despediu
dele com dor no coração, descontando o valor do táxi de sua pilha cada vez
menor de notas de vinte. Não sabia ao certo sobre o que estava mais ansiosa:
ser vista por outras linhagens ou a reação que teria quando entrasse pela
porta.
Castor não havia dito uma palavra sequer desde que deixaram a Casa Tétis.
E não precisava dizer.
A pulsação da cidade diminuiu de ritmo com o fim da tarde. De vez em
quando, eles passavam por alguém a caminho do mercado ou da lavanderia,
ou por crianças apreciando o esguicho de um hidrante, mas, enquanto seguia
com pressa, Lore estava aliviada por não avistar ninguém que conhecia.
Quanto menos mentiras precisasse inventar, melhor.
Parte da tensão e da aflição no rosto de Castor se esvaiu quando ele viu
Lore se abaixar para pegar uma sacola perdida da farmácia Duane Reade que
flutuava pela calçada como um fantasma sem rumo.
— Que foi? — perguntou ela, na defensiva. — Não gosto de lixo na rua.
Ela sempre cuidaria do bairro que cuidou dela. Era uma cláusula do
contrato assinado quando se era uma nova-iorquina.
Lore percebeu Castor a observando novamente enquanto viravam outra
esquina. Ela espiou Bo, o Gato da Bodega, esperando no banco de sempre,
mas apressou Castor para passar logo pela fachada da loja e evitar que o Sr.
Herrera a visse ensanguentada e coberta de poeira e fuligem.
Lore hesitou enquanto se aproximavam do Martha’s.
— Vamos — disse a ele, guiando Castor até a porta dos fundos. Ela bateu,
tentando prestar atenção na rua.
Levou alguns minutos, mas o rosto de Mel apareceu atrás da porta enquanto
ela se abria. Seus olhos se arregalaram em choque com a aparência de Lore.
Lore a lançou um sorriso esperançoso.
— Pensei que fosse a entrega de frutas. Você está bem? O que aconteceu?
— Mel ficou confusa quando finalmente avistou Castor. — Mm, oi.
— Acidente de bicicleta — mentiu Lore. — Comi poeira quando bati nele.
Você se importa se a gente usar o banheiro para se limpar? Você conhece o
Miles, ele vai surtar se me vir desse jeito.
— Imagine. — Mel os conduziu para dentro, apressando-os pela cozinha
onde Joe, o cozinheiro da lanchonete, começava os preparativos para os
clientes da janta. — Aqui, use o dos fundos. Você tem certeza de que não é
melhor ir para o hospital?
— Estamos bem — assegurou Lore, enquanto fechava a porta do banheiro.
— Obrigada.
— Aham… — balbuciou Mel, com as sobrancelhas arqueadas. — Me
chame se precisar de alguma coisa, ouviu?
Castor esperou até que Lore estivesse em frente à pia, jogando água no
rosto, para perguntar:
— Quem é Miles?
Ela ergueu o olhar na direção dele por debaixo da toalha de papel que usava
para limpar o corte na testa.
— Um amigo que divide o apartamento comigo.
O novo deus assentiu, se recostando na porta. A observou em silêncio, e
Lore se perguntou se um dia, em toda sua vida, já se sentiu tão mexida por
outra pessoa fora de uma luta. O tamanho dele e sua plenitude absoluta
tomavam o pequeno espaço.
Ela o fitou através do espelho, assimilando sua expressão perturbada e os
trapos do que um dia foi um manto luxuoso.
— Não foi culpa sua — disse ela. — Você teve que fugir.
— Tive mesmo? — perguntou ele, com honestidade.
— Você não tem serventia a eles morto — relembrou Lore.
— Ao que parece — disse ele —, eu já não tenho serventia nenhuma.
Lore jogou sua toalha de papel molhada no rosto dele. Ele se assustou e a
encarou, em choque.
— Você é a melhor coisa que saiu da Casa de Aquiles — disse a ele. —
Talvez a única coisa boa. Há vezes em que é preciso apenas sobreviver para
lutar mais um dia. Até eu sabia que suas chances lá eram ruins, e você sabe o
que eu acho de fugir de uma luta.
Ele suspirou, descansando a cabeça contra a porta.
— Eu fui fraco a minha vida toda. E quando finalmente ganhei poder…
quando finalmente me tornei forte…
— Você é a pessoa mais forte que eu conheço. Sempre foi — interrompeu
Lore.
— Agora eu sei que você está mentindo — disse ele. — Na maioria das
vezes, eu mal conseguia acompanhar você.
Ela lutou para controlar o calor que aumentava em suas palavras.
— Você é a pessoa mais forte que eu conheço, Castor Aquileu, e não foi
por correr rápido ou bater forte. Mas porque mesmo quando você foi
nocauteado, lutou para se reerguer. Você tem que fazer isso de novo agora. O
que quer que esteja sentindo, precisa ficar no tatame e você tem que se
levantar.
Lore havia deixado passar o incidente com Philip por conta do caos que o
sucedeu, mas não havia esquecido disse.
— Você precisa ficar vivo — disse ela. — Se quiser ajudá-los, você tem
que viver.
O rosto de Castor era tão bonito que olhar para ele quase doía. Então, Lore
não olhou.
— E você? — indagou ele. — É isso que você está fazendo; se reerguendo
e voltando para o Ágon depois de escapar dele?
— Isso é ótimo, vindo de alguém que quis me arrastar de volta.
— Aquilo foi um erro — disse ele. — Você estava fora. Eu devia ter
deixado as coisas assim, mas sou egoísta e quis ver você. Eu precisava saber
se estava viva. Mas se eu sou o motivo que fez você colocar essa ideia na
cabeça de ir atrás de Fúria…
Lore não disse nada. E nem podia dizer, não com seu maxilar cerrado com
tanta força.
— Seus pais não gostariam que você os vingasse e não gostariam que
ficasse presa no inferno que é ser imortal. Ou ser caçada — disse Castor. —
Eles queriam que você vivesse uma vida plena e livre.
Um formigamento gélido subiu pelas pontas dos dedos de Lore e se
espalhou por seu corpo. Sua respiração ficou presa enquanto ela lutava contra
a maré habitual e esmagadora que surgiu dentro dela.
— Você não faz ideia do que está falando. Eles merecem descansar. Eles
merecem… eles foram… isso foi um erro.
As palavras pareciam lentas, quase letárgicas em comparação à rapidez de
seus pensamentos. Castor pôs a mão no seu ombro. Lore tentou se
desvencilhar, se afastar, mas a lembrança dos rostos de suas irmãs veio na sua
cabeça. Como elas estavam quando as encontrou…
— Lore?
— Eu estou… eu estou bem. Eu estou bem — disse Lore, com dificuldade.
Seu pulso estava forte e rápido, a ponto de escurecer as vistas. Ela tentou
respirar, tentou se lembrar de onde estava, mas tudo que conseguia ver era
Olympia e Damara com as órbitas escuras, sem globos oculares. O sangue
ainda fresco em suas faces, como lágrimas.
Agora não — pensou ela, e as palavras formavam uma espiral, em gritos —
agora não — ela tinha que se controlar. A pressão aumentava novamente
dentro dela, e a tensão por tudo aquilo a deixava fraca. Lore não conseguia
encontrar uma saída para a escuridão que a envolvia.
— Você soube dos pombos na Broadway?
As palavras chegaram à mente dela como uma tocha no escuro, repentina e
clara, interrompendo seus pensamentos.
— Eu já… o quê? — perguntou ela, piscando para ajustar as vistas.
— A peça dos pombos na Broadway — disse Castor, suavemente.
— Não… do que você está falando? — questionou Lore, ainda sem
entender.
— Sério? — disse ele, com o olhar ainda fixo nela. — Soube que foi de
rachar o bico.
A pressão se dissipou, aliviando seus ombros e seu peito até que ela
estivesse rindo.
Lore olhou para seus pés, para o azulejo antigo debaixo deles, e tentou
esconder a vergonha. Gil costumava contar-lhe histórias sobre sua vida como
professor, as anedotas sobre seus alunos ou suas longas viagens em uma
entonação baixa e calma, até que ela voltasse a si. Eles beberiam chá e
conversariam, o quanto Lore fosse capaz.
Mas ela não queria falar sobre isso agora. Castor, pelo menos, pareceu
entender.
— É fácil ser tomado pela exasperação ao lidar com imortais — disse ele,
com simplicidade.
— Nem me fale — disse ela, quando confiou que a sua voz havia se
estabilizado. — Vocês todos dão mais trabalho do que deviam.
— Com certeza — concordou ele.
— A piada foi horrível, por sinal.
— Não se preocupe — disse ele. — Tenho sete anos de piadas ruins
guardadas.
— Isso é uma ameaça? — perguntou ela.
O ar se aqueceu ao redor de Lore. Essa foi a única razão pela qual sua pele
se aqueceu com o sorriso que ele a deu.
Uma batida forte veio da porta.
— Amada! Tem uma pessoa aqui procurando por uma garota que é
igualzinha a você. Ele é alto, negro, parece que acabou de sair de um
comercial de perfume…
Lore e Castor trocaram um olhar surpreso. Van foi rápido.
— Pode falar para ele vir aqui? — perguntou Lore. — Desculpe. Prometo
que vamos sair do seu pé logo.
— Querem algo para comer antes de irem? — perguntou Mel. — Algo para
levar?
— Panquecas? — perguntou Castor, antes que Lore pudesse impedi-lo. Ela
o encarou, mas ele a encarou de volta, sem um pingo de vergonha.
— Sem problemas — disse Mel.
O novo deus foi até a pia e jogou água no rosto e nos braços. Lore abriu a
porta do banheiro um pouco e fechou de novo quando viu que era, de fato,
Van quem vinha na direção deles. Ele estava usando calça jeans e uma blusa
de linho bonita, com as mangas enroladas. Por um momento, ela se perguntou
como ele chegou até a parte alta da cidade sem estar com a roupa amarrotada
e nem suado.
Van entrou no banheiro e o alívio tomou conta de sua feição.
— O que aconteceu? — perguntou Castor. — Você está bem?
— Estou — respondeu Van, apesar de parecer inquieto. — Consegui fugir.
Assim como os outros. Estou esperando o contato dos nossos caçadores que
foram recuperar os corpos. — Ele entregou a Castor uma sacola de plástico.
— Aqui, para você se trocar.
Castor tirou um par de tênis, calção de basquete e uma blusa esportiva.
— Nike? Sério?
— Não é fácil comprar roupa para você — disse Van, gesticulando para o
tamanho de Castor. — Foi a única coisa que pensei que caberia. Além disso,
é bom ter um pouquinho da deusa da vitória ao nosso lado.
— Conseguiu contatar os Odisseídeos? — perguntou Lore.
— Ainda não — respondeu Van, balançando a cabeça negativamente.
— Me passe as outras roupas depois que se trocar — disse Lore para Castor
enquanto abria a porta do banheiro e saía.
— Por quê? — perguntou Van, rispidamente. — O que vai fazer com elas?
— Van — disse Castor, sempre apaziguando os dois. — Está tudo bem.
— Vou me livrar delas de um jeito que vai confundir os caçadores e os cães
rastreadores — disse Lore. — Essa resposta te satisfaz?
Ela nem fez questão de esperar pela resposta. Como prometido, Castor lhe
entregou as roupas após se trocar.
— Volto em alguns minutos — disse ela. — Fiquem aqui.
Lore rasgou o tecido quente e manchado de sangue em pequenas tiras e as
distribuiu em latas de lixo, em sofás abandonados no meio-fio, em pontos de
ônibus e estações de metrô, cobrindo o perímetro mais amplo que teve
coragem no bairro. Quando voltou, Castor e Van estavam na saída dos fundos
da lanchonete; o Mensageiro andava de um lado para o outro, e o novo deus
saboreava cada mordida da panqueca.
— Até que enfim! — disse Van.
— Vamos — disse ela, então, chamando os dois para a frente do
restaurante, e acrescentou:
— Obrigada, Mel! Eu te devo uma!
— Para onde estamos indo? — perguntou Van, assim que voltaram para a
rua.
Lore se forçou a parar. Essa não era uma conversa para terem a céu aberto.
— Estamos indo para a minha casa. Mas vocês vão precisar me ouvir com
atenção e fazer exatamente o que eu disser quando a gente chegar lá.
— Por quê? — perguntou Van. — Se quebrarmos suas regras, vai nos
expulsar?
— Não — disse Lore, calmamente —, porque, se não as seguirem, a deusa
que já está na casa vai matar você dois.
Castor se engasgou com a sua comida e bateu com o punho no peito.
— Eu com certeza ouvi mal… — disse Van. — Com certeza.
— Agora vocês entendem por que eu não achei que seria uma boa ideia Cas
vir comigo? — perguntou ela.
— Quem… — Van começou a dizer. Seus olhos se arregalaram quando ele
respondeu a própria pergunta. — Não. Não acredito nisso. Ela nunca buscou
a ajuda de um mortal antes…
— Ela nunca precisou da ajuda de um mortal antes — disse Castor, jogando
o resto de sua refeição na lixeira. — O que aconteceu?
— Fúria atacou a ela e à Ártemis — disse Lore, mantendo a voz baixa. — E
Ártemis decidiu atrasar a irmã da melhor forma possível. Cortando suas
entranhas.
— Caramba — disse Van, com uma certa satisfação.
— Encontrei-a na minha porta — prosseguiu Lore. — Aparentemente, ela
ficou de olho em mim ao longo dos anos e resolveu arriscar se eu queria
matá-la ou não.
Van abriu a boca para falar novamente mas a fechou em seguida,
permitindo-se refletir por um momento.
— Fui procurar você porque pensei que seu treinamento de curandeiro
havia acabado — disse Lore a Castor. — Eu estanquei o sangramento, mas o
estado dela não é nada bom.
— E por que você se importa? — perguntou Castor. — Ela é uma cobra.
Deixe-a morrer, se é que já não morreu.
— Ela ainda está viva. Tenho certeza disso — disse Lore, olhando para
baixo. Van também não deixou aquilo passar.
— Você não fez isso — disse ele, lentamente. — Me diga que não foi burra
a esse ponto.
— O que eu deveria ter feito? — exigiu saber Lore.
— Deixá-la morrer? — sugeriu Van. — Sorrir com a satisfação de saber
que um caçador nunca tomaria seu poder?
— Eu não estava sozinha quando a encontrei — disse Lore, percebendo o
aumento em seu tom de voz. — E ela me ofereceu uma coisa que eu queria.
Um momento depois, Castor também entendeu. A cor sumiu de sua pele
bronzeada, por raiva, medo ou os dois.
— Você vinculou seu destino ao dela? O que diabos ela prometeu para
fazê-la concordar com isso?
Ela pensou em mentir, mas parecia inútil, devido ao perigo que corriam
agora.
— Ela prometeu matar Fúria.
Os dois a encararam em silêncio.
— Ah — disse Van. — Bom, isso é ótimo. Tirando, é claro, a parte em que
você morre se ela morrer durante a semana em que esse é o principal objetivo
de quase mil pessoas. Fora isso, que plano maravilhoso, Melora.
— Não preciso de um sermão — vociferou Lore. — Eu fiz uma escolha e
arcarei com ela.
— Concordo — disse Castor, e suas palavras estavam agitadas pela
frustração. — Mostre-nos onde é sua casa, então.
— Você ainda quer vir? — perguntou ela.
O olhar que ele lançou-lhe fez com Lore se sentisse exposta.
— Eu deveria simplesmente deixar você morrer? Não quer que eu a cure?
Então eu vou curá-la.
Ela deu-lhes as costas com firmeza, deixando que ambos trocassem olhares
atrás dela. Quando Lore teve certeza de que não estavam sendo seguidos por
nenhum caçador na rua, guiou-os até sua casa em silêncio.
— É aqui — disse Lore. — Vamos pelos fundos, pelo porão. Vou tirar
vocês da rua e me dar tempo para prepará-la.
Havia uma cópia da chave escondida atrás de um dos tijolos da fachada da
casa. Lore a pegou com um suspiro suave.
— Fiquem atrás de mim, está bem?
Ela conduziu os dois para o porão entulhado, trancando a porta atrás deles.
Castor e Van olharam em volta, observando as pilhas de caixas e tubos de
plástico.
— Isso tudo é seu? — perguntou Van.
— Você é sempre enxerido assim? — resmungou Lore. — Não. E antes
que você pergunte, eu herdei a casa da pessoa para a qual trabalhei como
cuidadora. Gilbert Merrit.
— Você foi cuidadora de alguém? — indagou Van, incrédulo. — Você?
— Van — disse Castor. — Aí, não.
Pela primeira vez, Lore guardou sua resposta áspera. Ela virou para a
escada que dava para o andar de cima e chamou:
— Sou eu!
Castor fez menção de segui-la. Lore levantou um braço, impedindo-o. Van,
pelo menos, teve o bom senso de ficar para trás.
— Você precisa esperar — sussurrou ela. — Me dê uns minutos para
garantir que vou conseguir apagar o incêndio que sua presença vai causar.
Aquele foi um eufemismo bem apropriado, dado o vislumbre horripilante
que ela teve dos sentimentos da deusa antiga pelo seu novo colega. Ela se
apressou escada acima, dando a Castor um último olhar sério para que ficasse
ali antes de abrir a porta e dizer espalhafatosamente:
— Estou entrando.
Tudo aconteceu muito rápido, o tempo se dividiu em imagens instantâneas.
Primeiro, Miles e Atena de pé, próximos à lareira da sala de estar, a televisão
atrás deles. Segundo, Atena pegando algo encostado na parede. Terceiro, o
rosto desta se endurecendo com um rosnado e o braço dela se projetando para
trás. Quarto…
Algo comprido e reto voou de sua mão, chiando no ar enquanto traçava um
caminho ousado pelo cômodo. Lore deu um pulo de susto, ofegando, mas a
arma não tinha a intenção de acertá-la.
Castor segurou a lança segundos antes que ela se alojasse em seu peito.
DEZESSETE

O CHICLETE QUE MILES MASCAVA CAIU DA SUA BOCA ABERTA.


— Aquilo… aquilo era a minha vassoura? — disse Lore, ofegante. A haste
de madeira da lança era de um verde vivo, gasto nos pontos onde deveria ser
segurada.
Ela olhou para Miles, tanto para confirmar o que disse quanto para se
certificar de que ele estava bem. A boca do amigo se esticou em um sorriso
aflito.
— Sim — disse ele, por entre os dentes cerrados. — Ela é muito criativa.
Uma onda de calor cresceu à sua direita. A energia de Castor se expandiu
pela arma improvisada até que a madeira se transformasse em cinzas em sua
mão. Seu olhar feroz, que não piscava, não desgrudou do de Atena.
— Minha vassoura… — disse Lore, pesarosamente.
— Assassino de Deuses! O cômodo vibrou com as palavras estrondosas.
Atena estendeu novamente a mão para trás, tateando outra lança rudimentar
Lore se posicionou entre os dois deuses, erguendo as mãos.
— Parem… apenas parem!
— Você ousa trazer esta… esta abominação para cá, para este santuário?
— vociferou Atena.
— Bom, é o meu santuário, então, sim — disse Lore. — Escute…
— Isso não fazia parte do nosso acordo, Melora — disse Atena. A deusa
não precisava gritar para fazer com que suas palavras soassem como um
machado golpeando um crânio. — Você jurou fidelidade a mim.
— Ele está aqui para curar você — disse Lore, tentando uma tática
diferente. — Ele vai ajudar a gente. É uma estratégia. Pensei que você fosse
gostar disso.
— A não ser que o tenha trazido aqui para me matar, não vejo estratégia
alguma — vociferou Atena. — Eu soube, impostor, que mesmo com os
poderes de Apolo você não pôde manifestar uma forma corporal. Que
desperdiçou os últimos anos patéticos que lhe foram concedidos em
relutância, como um novilho desgarrado.
Apenas quando Miles ficou movendo o olhar entre todos eles, visivelmente
ansioso, que Lore percebeu que estavam falando na língua antiga.
— Bom, eu nunca transformei uma artesã habilidosa em um aracnídeo,
nunca atirei uma criança de uma montanha nem amaldiçoei alguém a passar
toda uma vida tendo o próprio fígado bicado por uma águia — disse Castor
—, então suponho que eu ainda tenho que aprender algumas coisas sobre
como ser um deus.
Atena não exibia sua face mais aterrorizante quando a sua pele estava
vermelha de raiva, nem quando vociferava juras de morte. Mas em momentos
como esse, seus olhos relaxavam e o seu corpo ficava imóvel, com a
confiança de um predador que não deixava nada escapar. A mão de Castor
repousou no ombro de Lore, como se quisesse gentilmente afastá-la para o
lado.
Ela afastou a mão dele e falou em inglês, enunciando cada palavra.
— Chega. Não temos tempo para isso. Lore se aproximou lentamente de
Atena, fitando a lança que, aparentemente, havia apreciado a curta vida como
ferramenta de limpeza. — Preciso contar a você o que aconteceu. Nós
precisamos da ajuda dele.
— Eu não preciso. — resmungou Atena. — Os outros…
Lore puxou o trunfo que mais importaria para a deusa e o pôs na mesa sem
rodeios.
— Hermes está morto. Fúria o matou no Despertar.
Foi Miles quem reagiu, dizendo com voz ofegante:
— O quê? Sério?
Atena simplesmente encarou Lore, como se esperasse que a mentira fosse
virar pó aos seus pés.
— Impossível — disse ela, por fim.
— Ele está morto — confirmou Castor. — E a Portadora da Maré, também.
Van se juntou ao grupo, na escada.
— Ele diz a verdade, Deusa — disse ele, mais como uma confirmação. —
Nós dois viemos aqui não como seus inimigos, mas aliados.
Lore sentiu um pequeno toque de satisfação quando a deusa o avaliou com
a mesma intensidade que Van avaliava os outros. Talvez por isso, ele tenha
escolhido se concentrar em outra pessoa.
— Quem é você? — questionou ele.
Miles se endireitou quando o olhar de Van caiu sobre ele, e suas orelhas
ficaram coradas.
— Oi… eu sou Miles. Quer dizer, eu divido o apartamento com a Lore. E
sou amigo dela.
— Eu sou Castor — disse o novo deus. — Este é Evander… Van.
A mochila de couro simples de Van parecia a casca de um besouro. Ele
ajustou as alças, lançando um olhar de soslaio a Lore.
— O que diabos você estava pensando quando trouxe um Mundano para o
meio disso?
Miles se retraiu diante da fria desaprovação nas palavras de Van.
A raiva de Lore, no entanto, ainda estava muito próxima da superfície.
— Ele estava comigo quando a encontrei. Caso tenha perdido a noção da
realidade, devo lembrá-lo de que… o mundo real não funciona como as
linhagens. Você escolhe como viver quando está do lado de fora.
— Eu posso ser novo nisso tudo, mas não sou inútil — disse Miles. — Que
tal você me conhecer por mais de dez segundos?
— Eu não preciso de mais do que dez segundos — disse Van.
As mãos de Lore se fecharam em punhos nas laterais do corpo. Ela já
estava com dificuldade de lidar com Miles sendo arrastado para o Ágon, mas
a condescendência atrelada àquelas palavras — como se ela intencionalmente
o tivesse colocado em perigo, como se Miles fosse nada — a enfurecia.
— Van — disse Castor, em tom de reprimenda.
Evander Aquileu cresceu em um lar elegante em Londres e foi criado por
pais que falavam com sotaque fortíssimo e faziam as refeições em louças de
porcelana com bordas de ouro, mas você nunca saberia disso apenas
observando esse momento. Nas poucas vezes em que seus pais o trouxeram
para Nova York em viagens de negócios e ele treinou na Casa Tétis ou se
juntou à Lore e Castor no Central Park, ele falava apenas por educação —
mesmo que ficasse claro que ele não suportava Lore, pelo motivo que fosse.
Ele não fazia ideia de quem Miles era e definitivamente não fazia ideia de
quem Lore se tornara.
— Eu aprecio este mortal — disse Atena, ao lado de Miles. — Ele
permanece.
Lore olhou para a prótese de mão de Van e para sua postura rígida enquanto
a mantinha na altura do estômago.
— O que você vai contar à família quando levar o corpo a eles? —
perguntou ele à Lore.
— Jesus — disse Miles. — Não precisam falar por mim.
— Se você vai insultar meu amigo, pode ir embora — disse Lore. Fitou
Miles, para ver como ele havia recebido as palavras de Van. Em vez de
medo, ela viu um olhar francamente desafiador, daqueles que ele guardava
apenas quando via estranhos roubando táxis e para o preço do kimchi na
mercearia.
O olhar demorado e frio de Atena finalmente deixou Van.
— Conte-me sobre esta certeza de que Hermes e a impostora de Poseidon
estão mortos.
Van respirou fundo e disse:
— Eu filmei com… eu vi com os meus próprios olhos. O novo Ares, Fúria,
matou Hermes no parque e deixou o corpo lá. Alguns dos seus caçadores, os
Cadmídeos, levaram a Portadora da Maré quando deixaram o local. Minhas
fontes dentro da Casa de Teseu me confirmaram que ela foi morta
posteriormente por Fúria em sua base atual.
A deusa estava tão empertigada e ereta quanto a lança na mão dela.
— E você crê nessas… fontes?
— Sim — disse Van, de forma direta. — Porque sabem o que eu faria com
eles se mentissem.
— A sua irmã ainda está viva — disse Lore. — Isso eu testemunhei em
primeira mão. Ela atacou Castor em uma das bases dos Aquilídeos.
— E isso é direito dela. Ela não cessará até que o impostor esteja morto —
disse Atena, bufando de ira.
— Ah, que fantástico — disse Lore, em tom lúgubre.
— A presença dele garante que minha irmã nos encontrará antes do previsto
— disse Atena, acenando a cabeça na direção de Castor. — Nada está fora do
alcance da ponta de sua flecha.
— Você está com medo dela? — perguntou Lore. Por mais que ela quisesse
lançar a isca para a deusa, havia uma parte dela que verdadeiramente se
perguntava se um ser como ela era capaz de sentir medo. Temer significaria
aceitar que não se é infalível.
— O medo é uma terra estrangeira que nunca hei de visitar e um idioma
que nunca proferirei — disse Atena. — Os descendentes do divino Aquiles
estavam lá para protegê-lo?
— Estavam preocupados com outras questões — respondeu Castor, com
olhos estreitos.
— E, ainda assim, cá está você, sozinho, distante da proteção deles — disse
Atena. Ela entendeu a conjuntura da situação em questão de segundos.
Castor avançou, erguendo um punho, mas Lore o segurou.
— A base foi atacada pelos Cadmídeos. Fúria tentou recrutar os Aquilídeos
mandando um aviso para Castor. Os descendentes de Teseu já haviam se
aliado aos Cadmídeos e servem a ele.
— Então desonram seu ancestral — disse Atena, e seus lábios se curvaram
em clara repugnância. — Quantos Aquilídeos seguem vivos e livres do
controle de Fúria?
Tanto Lore quanto Castor se voltaram para Van com expectativa.
— O número é irrelevante — disse ele, cuidadosamente, evitando o olhar
de Castor.
Tão ruim assim, é? — pensou Lore.
— Quantos restaram de nós? — As palavras de Castor percorreram a sala
silenciosa como uma nuvem carregada, escurecendo o ambiente.
O peso das palavras parecia insuportável à boca de Van. Caíram no silêncio
pesado como um escudo de bronze.
— Vinte e sete.
Lore observou Castor processar aquele número. Os tendões em seu pescoço
ficaram salientes enquanto ele dava meia-volta e apertava um dos braços
curvados da poltrona com as duas mãos.
— Quantos eram no início deste Ágon? — insistiu Atena, sem se importar
em ocultar seu deleite.
— Trezentos e setenta e oito caçadores da Casa de Aquiles estavam na
cidade nesse ciclo — disse Van, com a voz distante. — Quase cem foram
mortos na Casa de Tétis quando os Cadmídeos invadiram. Os traidores se
juntaram a quase quinhentos Cadmídeos e a toda a Casa de Teseu, que na
última contagem eram quatrocentos e trinta.
— Eu preciso curar os sobreviventes — disse Castor, com a voz tensa.
— Não, você precisa ficar aqui — disse Van. — Eu levei suprimentos a
eles. Estão com um curandeiro, pelo menos.
— Van… — Castor começou a dizer.
— Eu sei — respondeu Van. — Eu sei que você quer ajudar, mas não pode.
Não agora. Fúria quer matar todos os outros deuses e fundir as linhagens em
uma só força sob seu comando. Ele não vai parar de caçar você até que ele
mesmo esteja morto, então essa tem que ser nossa prioridade. Se você morrer,
os Aquilídeos que restarem estão sob os pés dele. Diga-me que entende isso.
Castor deixou os ombros caírem.
— Eu entendo.
À menção dos Aquilídeos desertores, o deboche transformou a feição
perfeita de Atena em algo monstruoso.
— Ora, veja como o rebanho corre para o abrigo do protetor mais apto.
Castor girou no próprio eixo, e sua expressão era selvagem, puro
sofrimento e raiva.
— Você entende bem disso, não é?
Atena se ergueu completamente, ficando frente a frente com ele. Lore
prendeu um ruído de frustração.
— Vocês vão ter tempo suficiente para sangue, combate e competição de
quem pisca por último quando os dois estiverem felizes e imortais de novo —
disse Lore. Ela se voltou para Atena. — Eles eram caçadores que teriam
seguido Castor e nos ajudado. Agora vamos ter que lidar com um círculo de
proteção maior ao redor de Fúria e mais caçadores na rua procurando por
você.
— Nunca me acovardarei diante da lâmina de um impostor nem recuarei de
um juramento de vínculo. Digo-lhe, agora, assim como antes, que o impostor
de Ares morrerá por minha mão. Não necessito de assistência alguma.
— Necessita, sim — disse Lore. — Acredite na mortal que já teve sua cota
de feridas. Eu estanquei o sangramento, apenas. Se você concordar com essa
aliança, ele vai curar você e restaurar a sua força. Não vai precisar
desperdiçar dias em repouso.
— Talvez eu deva deixar que o falso Ares tenha o trabalho de eliminar
meus rivais por mim — disse Atena —, antes de eu tirar a sua vida e acabar
com essa caçada de uma vez por todas.
Lore não era tola, sabia que qualquer parceria entre os deuses duraria
somente até o fim deste Ágon, e que, em algum momento, Atena e Castor
entrariam no caminho um do outro, livres da caçada. Isso era apenas adiar o
inevitável, principalmente se a nova versão do poema existisse e confirmasse
que o vencedor seria o último deus de pé.
— Você não vai, mesmo — disse Lore à Atena, expressivamente. —
Porque não sobreviveria até o fim deste ciclo.
Os outros ficaram em silêncio ao ouvirem as palavras dela. Atena ergueu o
queixo, mas seu olhar era de aprovação.
— Não vou fazer um juramento de vínculo com você — disse Castor, por
fim. — Mas como sua vida está vinculada à de Lore, não posso, e não vou,
deixar você morrer.
Atena assentiu. Um arrepio passou pela nuca de Lore enquanto a deusa
estudava Castor.
— O impostor me curará — disse Atena, em desfecho, se sentando no meio
do sofá de veludo de Gil. A deusa levantou a camisa que Lore lhe dera,
revelando o ferimento inflamado — E começaremos a planejar de forma
diligente.
— Certamente que sim — disse Castor, fazendo uma mesura sarcástica.
Os outros se sentaram pela sala, Van em uma das cadeiras, Miles e Lore no
chão, ao lado da mesinha de centro de vidro.
Castor pôs uma das mãos no ferimento da deusa. Uma luz emanou das
pontas dos seus dedos; não aquela energia escaldante e crepitante das rajadas
que ele lançou, mas um brilho suave e pulsante.
Atena puxou o ar sibilando conforme a luz se afundava na pele
avermelhada e enrugada. Ela virou-se, a fim de encontrar o olhar de Lore.
— Conseguiu descobrir mais sobre o poema que o falso Ares procura? —
perguntou ela.
— Nada particularmente útil. Mas, como Van disse, se alguém tem um
registro de uma versão diferente do poema, são os Odisseídeos — explicou
Lore. Ela girou os ombros para trás para aliviar a tensão que se acumulava
neles.
— Entendo — disse Atena, sibilando novamente quando Castor mudou a
mão de posição. — Suponho que o falso Ares também saiba disso.
— Com certeza, assim como também sabe que o novo Afrodite está com
eles — disse Lore. — Eu apostaria qualquer coisa nisto: eles são o próximo
alvo de Fúria. A única questão é quando.
— Hoje à noite — disse Van.
— Hoje à noite? — repetiu Lore. — Como pode ter tanta certeza?
— Raciocínio dedutivo — disse Van, rápido; rápido até demais. — A Casa
de Cadmo não arriscará outro ataque à luz do dia sabendo que podem atrair a
atenção indesejada da mídia.
— Seu raciocínio é falho. Se estão dispostos a atacar os Aquilídeos em
plena manhã, não hesitarão em fazer o mesmo com a linhagem de Odisseu —
disse Atena. — Algum guardião da cidade respondeu ao ataque à sua
linhagem?
— Isso é estranho — disse Lore, olhando para Castor. — Eu esperaria, pelo
menos, que alguém ligasse para a polícia depois de ouvir as explosões,
mesmo que não tenham visto nada.
Ele soltou um ruído leve de concordância, mas ainda estava concentrado em
sua tarefa.
— Não é nada estranho — disse Van. — Todas as linhagens subornam
membros diferentes da cidade e serviços de emergência para fingirem que
não sabem de nada. É possível que Fúria e os Cadmídeos estejam mais
metidos nisso do que o resto de nós.
— Isso é… assustador, mas acho que não é totalmente inesperado — disse
Miles, perplexo.
— Então eles não temem ser vistos por quem está fora do Ágon — afirmou
Atena a Van. — Diga-me, então, como pode falar com tanta certeza de que a
Casa de Cadmo atacará esta noite? Suas “fontes”, presumo?
A armadura de autocontrole e compostura de Van sempre pareceu
inatingível para Lore. Mas desde quando ele passou pela porta e deu de cara
com a deusa, ela sentiu os nervos disparando logo abaixo da pele do rapaz.
Até mesmo agora, enquanto ele permanecia em silêncio, Lore o viu se alterar
sob a força do olhar investigador de Atena.
— Eu detesto meias-verdades e sombras — alertou a deusa a Van.
Castor recostou-se no assento, seu trabalho finalmente havia se encerrado.
Ele fitou Van.
— Conte a eles.
Van puxou o ar, insatisfeito.
— Uma fonte, sim. Depois de anos, consegui obter um contato entre os
Cadmídeos; um ancião. Quando falei com ele, há uma hora, ele confirmou as
informações sobre a morte da Portadora da Maré e que eles agiriam contra os
Odisseídeos hoje à noite. O horário exato ainda não tinha sido decidido, mas
ele acredita que vai ser perto da meia-noite.
— Um ancião? — disse Lore, surpresa. Aqueles homens tendem a ser os
mais leais das suas linhagens, porque obtinham as maiores recompensas. —
Por que ele ajudaria você?
O sorriso dele era desprovido de emoção.
— Porque eu descobri algo sobre ele, e ele morreria antes de revelar para a
sua linhagem. Porque eu sempre consigo o que eu quero no final.
— Hum. — Atena não pareceu estar impressionada.
Castor se levantou, atravessando o cômodo para se sentar no outro braço da
poltrona.
— De nada — resmungou ele.
A deusa o ignorou, concentrando-se novamente em Lore.
— Parece que teremos uma oportunidade real de matar o falso Ares esta
noite e talvez até mesmo coletarmos informações sobre o poema.
Lore apertou os lábios à menção do poema, torcendo para seu rosto não
trair seus pensamentos. Se dependesse dela, nem Atena nem Fúria saberiam
nada sobre o poema.
— E mesmo que ele não apareça em pessoa para matar o novo Afrodite —
disse ela —, os Cadmídeos vão ter que levar o novo deus de volta para onde
estão se escondendo. Podemos segui-los.
O sofá rangeu quando Atena se recostou.
— De fato.
Lore percebeu que Castor a fitava, mas se recusou a fitá-lo de volta e ver a
preocupação que estaria em seu olhar.
— Parece bom para mim.
— Sério? Nem me parece um plano. Não sabemos onde os Odisseídeos
estão; a base deles em Nova York nunca foi identificada. E mesmo deixando
esse detalhe de lado, teremos Fúria e a força combinada dos seus caçadores e
dos Odisseídeos tentando nos matar — disse ele. Antes que Lore pudesse
protestar, acrescentou: — E sim, eu falei nós, porque eu não vou ser deixado
para trás.
— É simples; vamos pedir aos Odisseídeos e ao seu falso deus uma trégua
por algumas horas — disse Atena. — Certamente um de vocês tem vínculos
com a linhagem e pode entrar em contato, não é?
— Você não tem uma amiga Odisseídea? — perguntou Castor a Lore. —
Iro, certo? Eu me lembro de você falar em se encontrar com ela…
Lore queria sumir no ar quando Castor e Van voltaram suas atenções para
ela. Ela talvez conseguisse contatar Iro, se pudessem encontrá-la…
Não.
Suas mães foram melhores amigas, parceiras de treino que se tornaram
próximas como irmãs, e apenas pela insistência da mãe de Iro Lore foi morar
com elas depois que sua família foi assassinada. Na verdade, se esconder com
elas.
Naqueles quatro anos em que morou com os Odisseídeos, Lore e Iro
passaram de estranhas que só se viram uma vez a tão próximas quanto suas
mães foram um dia.
Independentemente do que Iro sentia por ela agora, Lore sabia que a prima
se sentiria no dever de matá-la pelo que Lore fizera na noite em que fugiu da
casa delas.
— Eu acho que sei onde os Odisseídeos estão — disse Lore, finalmente. —
Mas não posso ir até eles. Me matariam antes de eu chegar à porta.
— O quê? — disse Miles. — Por quê?
Ela não se arrependia do que fez, mas também não queria sentir como se
precisasse compartilhar aquilo com uma plateia.
— Problemas de família.
Atena inclinou a cabeça, aumentando sua semelhança com um velociraptor.
— Sua morte seria justa?
— Na visão deles? Sim — disse Lore. — Não é como nos tempos antigos,
quando você podia compensar o malfeito ou se exilar.
— Você não está exilada no momento? — perguntou Atena. — Isso não
basta para saciar-lhes a raiva?
As leis antigas eram focadas na raiva, a raiva de quem sofreu pelo crime, e
a necessidade de retribuir o dano. A raiva era como uma doença da alma e
nenhum aspecto dela era mais contagioso do que a violência. Se pudesse ser
evitada, um ciclo vicioso seria extinto antes de começar. Mas esta era uma
sociedade viciosa.
— Não sei — disse Lore. — Estava pensando em nunca pagar para ver.
— Então você passou um tempo com eles — disse Van. Pela forma que ele
a fitava agora, Lore sabia que o rapaz tinha uma boa ideia do que ela fizera,
mesmo antes que ele falasse. — O novo Afrodite, o Guardião do Amor…
— Guardião do Amor? — repetiu Lore, fazendo uma careta. — Só eu acho
que esses nomes estão ficando cada vez mais ridículos?
— Se Lore não pode se aproximar deles — disse Castor — um Mensageiro
seria capaz de fazer isso.
Van balançou a cabeça negativamente.
— Meu contato nos Cadmídeos quer me encontrar de novo hoje à noite.
Não posso estar em dois lugares ao mesmo tempo.
— Eu posso ir — disse Miles. — Encontrar com o seu contato, quero dizer.
— Espere aí… não — disse Lore. — Eu não acho que é uma boa ideia.
— É uma ideia horrível, na verdade — disse Van. — Não é só um encontro.
Eu tenho que pegar uma mala de fuga com dinheiro.
— E daí? E só me dizer onde está, que eu trago e ainda encontro o contato
— disse Miles.
Van não disse nada.
— O que foi, eu tenho que aprender algum aperto de mão secreto? —
perguntou Miles. — Ele não fala inglês?
Lore suspirou, levando a mão ao rosto.
— Miles…
— Me deixa fazer alguma coisa — disse Miles. — Eu não posso lutar, mas
conheço esta cidade e sei como me virar nela.
— Não — disse Van, com firmeza.
— Você alega ser um discípulo da lógica — disse Atena. — Então
certamente percebe que esta é a melhor opção. Ele é desconhecido à sua
espécie e familiarizado com a cidade. A tarefa em si não requer nenhuma
habilidade específica além de discrição.
— Exato! — disse Miles. — Eu vou lá e volto em um pulo.
— E se o meu contato tentar roubar o dinheiro e matá-lo? — perguntou
Van.
— Você continua tendo o segredo sujo dele — retrucou Miles, mais que
disposto a encarar o olhar frio de Van. — Ele não vai fazer nada que arrisque
sua retaliação.
— Miles tem razão… — disse Castor.
— Eu estava planejando me encontrar com os vinte e sete Aquilídeos
depois — disse Van. — E tentar encontrar um abrigo para eles. Todos os
nossos esconderijos foram comprometidos, junto com a maior parte dos
nossos cofres e estoques…
— Eu conheço um lugar que eles podem usar — interrompeu Miles. — Isto
é, se você for capaz de aceitar a ajuda de um mero Mundano.
Van não disse nada e o seu rosto o traiu ligeiramente.
— Onde? — perguntou Castor.
— Um armazém abandonado — disse Miles. — No Brooklyn. Participei de
uma reunião sobre ele no meu estágio. O lugar está vazio há mais de uma
década por causa de um litígio entre a cidade e os construtores.
— É uma boa — disse Castor. — Obrigado.
Miles sorriu.
— Isso pelo menos dá a eles uma chance de se reagruparem. Qual é a
melhor forma de passar o endereço?
— Van? — perguntou Castor.
O outro jovem se sentava com as costas rígidas e o olhar fixo na luz que se
infiltrava pelas cortinas pálidas da janela.
— Posso mandar uma mensagem.
Lore respirou fundo.
— Você quer mesmo fazer isso, Miles?
— Quero — disse Miles.
— Você precisa me prometer que vai fugir se alguma coisa, qualquer coisa,
parecer estranha — disse Lore.
— Tudo é estranho no seu mundo — respondeu ele, relembrando-a. — Mas
tomarei cuidado.
— Beleza — disse Van, se levantando.
— Beleza — disse Miles, fazendo o mesmo.
— Esse é o nosso plano, então — arrematou Lore.
— Ainda não sabemos onde encontrar os Odisseídeos — relembrou-a
Castor, apertando os joelhos com as mãos.
— Eu sei — disse Lore. — Ou tenho pelo menos uma ideia. — E fitou o
relógio de pêndulo. — Vou tomar um banho e cochilar por uns minutos, para
não estar totalmente morta depois. Vamos tentar sair no máximo às cinco
horas da tarde, antes do pôr do sol.
— Eu tenho que esperar isso tudo? — perguntou Miles.
— Você está mesmo com tanta pressa assim de se matar? — disse Van. E
pegou o celular. — Eu vou avisar ao meu contato para adiar o encontro para
amanhã…
— Não — disse Miles. — Fim de papo. Lore vai guiar todo mundo até
onde os Odisseídeos estão para que vocês possam oferecer uma trégua, pegar
Fúria e saber mais sobre o poema. Castor vai jogar na defesa contra ele.
Atena vai jogar no ataque. Eu vou para esse encontro e conseguir essa
informação que o seu contato tem, qualquer que seja ela, porque você não
tem outra escolha.
Tudo aquilo dependia, é claro, de que os ocupantes da casa de Lore não
matassem uns aos outros antes.
Van abriu ligeiramente a boca e encarou Miles por um instante a mais,
antes de voltar a mexer no celular.
— Quando a gente decidiu que eu fico na defesa? — perguntou Castor, ao
mesmo tempo em que Atena disse:
— Não haverá jogo algum em meu ataque…
Lore deixou os outros e foi para o andar de cima, fechando a porta do
quarto ao entrar nele. Ajustou o alarme e se arrastou para a cama.
Deitou por cima das cobertas, ouvindo as vozes no andar de baixo se
reduzirem a um fraco sussurro. Após mais alguns momentos, suas pálpebras
pesadas se fecharam.
O rosto de Iro apareceu ali, emergindo da escuridão de sua memória. O
último vislumbre que Lore teve dela, com um sorriso de encorajamento.
Alheia ao monstro em meio a elas.
DEZOITO

LORE ACORDOU COM O TOQUE FRENÉTICO DO ALARME DO SEU CELULAR,


sacudindo-se para sair de um sono pesado sem sonhos. Ela espremeu os olhos
para ver as horas no celular — quatro e quinze da tarde — e imediatamente
arrependeu-se de ter dormido. Seus músculos estavam rígidos sobre os ossos,
e não houve alongamento que desse jeito nisso.
Depois de vestir uma calça jeans e uma blusa preta limpas, Lore foi para o
corredor, tentando ouvir as vozes dos outros. Mas a casa estava em silêncio.
Um último momento de paz — pensou ela, inspirando e expirando
calmamente.
Mesmo que as coisas corressem bem com o Guardião do Amor, nada nunca
mais seria o mesmo para Lore. Assim que os Odisseídeos soubessem que ela
estava viva, não lhe dariam descanso. Depois de hoje à noite, talvez ela não
pudesse mais permanecer na cidade, muito menos nesta casa. Não haveria
mais nenhum lugar seguro aqui.
Lore deu uma última olhada em tudo, segurando o corrimão liso. Ela estava
prestes a continuar descendo as escadas quando um movimento no quarto de
Gil chamou a sua atenção.
Van estava lá, analisando algo na cômoda de Gil — uma estatueta antiga
que ele amava, apesar de ser claramente horrorosa; uma tartaruga de prata.
Lore não reparou que havia encurtado a distância entre eles, mas de repente
estava ali, arrancando o objeto das suas mãos.
— Isso não é seu.
Com cuidado, ela a devolveu para o devido lugar, ao lado de uma velha
caixa de madeira e uma foto dela, Gil e Miles, tirada logo após Gil oferecer o
quarto vazio do terceiro andar a Miles depois de conversar com ele em um
café. Gil e Miles tinham o mesmo temperamento; adoravam diversão, eram
leais ao extremo e, apesar da desconfiança prévia de Lore, suas noites
jogando jogos e fazendo graça sem parar no jantar fizera da casa um lugar
acolhedor e seguro, de uma forma que Lore não sabia ao certo se já
vivenciara.
Lore olhou em volta no quarto. Antes de Gil morrer, ela vinha aqui
centenas de vezes, seja para dar bronca nele para que tomasse os remédios,
para ajudá-lo a deitar e a se levantar da cama nos dias em que a idade furtara
a força de seu corpo ou simplesmente para trazer chá ou um jogo de tabuleiro
para distrair a si mesma das sombras de sua mente. Ele a chamava de
“querida”, e Lore tinha quase certeza que essa era uma palavra que ninguém
mais, nem mesmo seus pais, teriam usado para descrevê-la.
Embora Lore nunca tenha conhecido os avôs — ambos morreram anos
antes de ela nascer —, ela amava a ideia deles, a fantasia que havia criado a
partir das histórias de seus pais. Mas ela amava o Gil real, exasperado e
obstinado como era. Ela queria ficar com ele apenas por uns meses, até que
seu braço e sua perna quebrados estivessem curados e ela tivesse juntado
dinheiro suficiente para um recomeço; mas, assim como a cidade, ela não foi
capaz de deixá-lo. Ele era gentil, brilhante, e tinha a habilidade infalível de
fazê-la rir. Ele atravessou todas as defesas da jovem.
E agora, para a vergonha de Lore, o cômodo passava uma sensação sombria
e envelhecida. A coleção de bengalas de Gil, cada uma com uma cabeça de
animal diferente entalhada, nem mesmo foi guardada no closet com o resto
das suas coisas, e suas estantes de livros acadêmicos estavam cobertas por
uma camada espessa de poeira. Por mais que ela tivesse tentado deixar a casa
exatamente como Gil deixara, ela não teve forças para entrar em seu quarto
por meses.
— Esta casa não é exatamente o que eu teria imaginado para você — disse
Van. — O estilo é bem…
— Eu o aconselho a não terminar essa frase — ordenou Lore.
— Eu ia dizer exuberante — disse ele, gesticulando para a mobília
ornamentada de carvalho escuro, toda adornada com detalhes feitos de osso e
com flores e videiras esculpidas com requinte. — Como você acabou
trabalhando para ele?
Lore deu meia-volta, com o maxilar cerrado e o coração batendo forte.
— Se quer saber tanto assim, descubra sozinho.
A voz dele a pegou enquanto saía pela porta.
— Eu sempre tive inveja de você, sabia?
Lore congelou.
— Você tinha inveja de mim? — disse ela, voltando-se novamente para
Van. — O que você cobiçava? A pobreza, o ostracismo e a humilhação eterna
ou a constante ameaça de extinção?
Van apertou sua prótese com a outra mão, deixando que ambas
repousassem à frente. Teria sido uma postura relaxada se ele não estivesse
segurando a prótese com tanta força.
— Você sempre soube exatamente quem era e o que deveria fazer. Como
você desejava muito as coisas, elas pareciam vir fáceis a você — disse ele. —
Eu costumava achar que, se eu tivesse uma vontade tão grande quanto a sua,
eu encontraria alguma coisa enterrada dentro de mim. Algo que me fizesse
correr tão rápido e bater tão forte quanto você. Que me fizesse querer
empunhar a espada.
— Eu era uma criança idiota — disse Lore. — Achava que sabia de tudo,
mas não sabia.
Van lhe deu um sorriso amarelo.
— E sabe qual é a parte mais irônica? Mesmo enquanto eu procurava por
você, tentando acompanhar o ritmo, você fez a única coisa que eu queria mais
do que respirar. A coisa que eu disse a mim mesmo que era impossível. Você
foi embora.
Lore respirou fundo, e seu estômago deu um nó doloroso.
— Eu fui embora porque precisei.
— Você foi embora porque nunca soube o que é o medo — disse ele. —
Porque queria viver.
— Eu sei bem — respondeu ela. — Conheço o medo melhor do que meu
próprio reflexo.
— Não sei o que aconteceu com você — disse ele. — Eu costumava me
perguntar sobre isso o tempo todo, mas nunca duvidei que você ainda estava
viva.
Van foi na direção do banheiro adjacente ao quarto, provavelmente para
entrar no chuveiro que o esperava. Isso a libertou da silenciosa dor daquele
momento antes que ela a sufocasse.
— Sabe, algumas pessoas ficam tão acostumadas a olhar para a vida de
dentro de suas jaulas que não veem mais as barras — disse ele. — Eu nunca
me esqueci delas, eu só aprendi como viver ali nos meus próprios termos.
Não… não deixe seu amigo ficar preso aqui com o resto de nós.
A garganta de Lore deu um nó ao ouvir essas palavras. Ela levou a mão ao
rosto, ajeitando uma mecha solta do cabelo, sem saber o que dizer.
Van crescera em meio a conforto financeiro, mas nunca se encaixou
totalmente como um caçador. Ela se sentiu culpada pela forma como o havia
julgado por isso, tanto no passado quanto no presente, em menor grau. As
atitudes dele com Miles faziam mais sentido para ela agora, e uma parte de
Lore se questionava se o que sentiu quando criança não foi uma cisma com
ela, mas sim as próprias frustrações — consigo mesma e com aquele mundo.
— Será uma só missão — disse Lore finalmente. — Depois de hoje à noite,
vou pensar em um jeito de convencer Castor a ir embora.
— Que bom — disse Van.
Mas logo antes de ele fechar a porta do banheiro, Lore se ouviu dizer:
— Você ainda pode sair disso. Nunca é tarde.
— Eu escolhi ficar — disse ele. — Não vou sair antes de pegar as pessoas
que me enjaularam.
Essas palavras acompanharam Lore para o andar de baixo e a perturbavam
ainda mais por refletirem sua própria conjuntura. Ela pensou em voltar para o
andar de cima, em contar a ele o que os últimos anos a haviam ensinado: que
é a sua mente que fortalece a jaula.
Ela escolhera fazer o voto para Atena. Escolhera entrar na jaula esta última
vez para pegar o homem que havia lhe tirado tudo.
Não está perdida — disse Lore, para si mesma —, está livre.
Lore chegou ao último degrau e parou.
Castor estava no sofá, alongando o corpo alto e deixando que seus pés
pendessem na borda. Ele havia entrelaçado os dedos e os apoiado no peito.
Agora eles subiam e desciam a cada respiração profunda e uniforme.
Atena estava ao lado dele, observando-o. Suas mãos descansavam ao lado
de corpo. Seu rosto não estava forjado em sua costumeira máscara de ódio. O
que Lore viu ali a deixou ainda mais assustada.
Curiosidade.
— O que você está fazendo? — perguntou Lore, com rispidez.
Enquanto Castor abria seus olhos, Atena foi até a fileira de armas
improvisadas que havia organizado caprichosamente na parede. Ele se
sentou, correndo os olhos por todas elas.
— Preparativos — disse Atena, suavemente. Ela pegou uma das armas: o
varão da cortina de Lore, percebeu a jovem, com uma careta. — Você foi
treinada para lutar com tal arma? Não permitirei que a desonre com
incompetência.
Castor bufou com a pergunta, esfregando as mãos no rosto.
— Eu nunca vi Lore ser incompetente em nada que faz.
— Possível incompetência à parte — disse Lore —, já faz pelo menos uns
mil anos desde que era socialmente aceito carregar uma dessas pela rua como
se fosse normal.
— Você não deixará este santuário sem uma arma para se defender — disse
Atena. — Não enquanto nossos destinos estiverem vinculados. Então,
pergunto novamente, você foi treinada para lutar com esta arma?
Não era uma mera lança, era uma dory, a arma carregada pelos exércitos
antigos da Grécia e por muitos dos maiores guerreiros. Atena havia criado a
ponta da lança em formato de folha com pedaços de metal, mas ela equilibrou
o peso da arma usando outro espigão de metal como sauroter. A criação era
rudimentar, mas feita cuidadosamente. Lore não tinha dúvidas de que a lança
seria tão robusta e mortal em suas mãos do que qualquer outra criada por um
ferreiro qualificado.
— Sim — disse ela, deixando aborrecimento escorrer na palavra. — Eu
treinei com uma por mais de seis anos. Vou cuidar dela.
Atena a fitou, e duas chamas prateadas ardiam no seu olhar. O que quer que
tenha visto no rosto de Lore, a convenceu. Ela a entregou a lança.
Lore sentiu o peso e a empunhadura, odiando como era familiar e bom
senti-la nas mãos.
— Não é um presente nascido da bigorna de Hefesto, criador de artifícios
— disse Atena —, mas confiarei em sua palavra.
— Como vamos andar por aí com isso? — perguntou Castor, pegando a
dory que Atena lhe dera mais cedo e que ele havia deixado perto da porta. —
Devemos dizer às pessoas que vamos pescar à lança no Hudson?
Aquela ideia não era tão ruim, na verdade.
— Acho que tenho um plano — disse Lore. Extremamente estúpido, talvez,
mas ainda assim é um plano.
Ela desceu as escadas para o porão, dois degraus de cada vez, só para dar
um passo para trás quando percebeu que não estava sozinha.
Miles andava de um lado para o outro traçando um caminho estreito por
entre as caixas, com as mãos nos quadris. Ele parecia estar murmurando
alguma coisa baixinho.
— Tudo bem aí, companheiro…? — perguntou ela.
Miles rodopiou, quase derrubando uma pilha de tubos.
— O quê? Desculpa… sim, tipo…
Lore pulou dos últimos degraus, lançando um olhar de soslaio a ele.
— Você tem certeza de que quer ir no encontro? Não é tarde demais para
desistir.
— Sim! — disse ele, e depois abaixou o tom de voz. — Sim, eu estou bem.
E ao contrário do que Evander pensa, eu vou continuar bem.
— Não deixe o Van te afetar — disse Lore. — Mas ele está certo sobre uma
coisa. Só vai ficar mais perigoso daqui para frente. Você não tem que provar
nada, nem para ele, nem para mim.
— Eu sei — disse Miles. — Não vou ficar no seu caminho.
Ela balançou a cabeça negativamente, com um nó na garganta.
— Não é isso que eu quero dizer. Depois de hoje à noite, eu preciso que
você vá embora. Visitar os seus pais. Fazer uma viagem. Sair da cidade.
Promete?
— Eu vou prometer uma coisa — disse Miles. — Uma nova vassoura. Ok,
duas coisas, porque a gente precisa de um esfregão novo. E, na verdade, você
vai precisar de um cabideiro novo para o seu armário.
— Mais alguma coisa? — perguntou ela, aflita.
— Eu prometo que vou ficar de olho em você — respondeu ele. — Se você
compartilhar a sua localização comigo de novo.
Ela fez uma careta.
— Eu não gosto da sensação de estar sendo vigiada.
Miles trouxe à tona aquele velho argumento de novo.
— É só por segurança… espere, o que você está procurando?
— Isso, na verdade. — Lore pegou uma cabeça de esfregão desgrenhada
que nunca havia sido usada e uma caixa com espanadores de penas amarelas.
— Você viu aquela caixa velha de panos de chão que Gil não me deixou
jogar fora?
— Sim, está ali…
Miles puxou o celular de Lore do bolso de trás dela enquanto a seguia para
o andar de cima.
— Qual a senha? Vou configurar o compartilhamento de localização.
Ela o fitou, contrariada, mas lhe deu a senha. No andar de cima, ele
devolveu o celular e observou, junto com Castor e Atena, enquanto Lore
colocava o espanador de penas amarelas em uma das pontas da dory e a
cabeça do esfregão na outra.
— Nós vamos… O que é isso? — perguntou Van enquanto descia as
escadas.
Lore ergueu a dory, gesticulando com uma das mãos ao lado.
— Engenhosidade. Tudo certo para gente ir?
Atena levou um dos espanadores ao nariz e cheirou, depois o tocou com a
língua. Seu rosto se contorceu em aversão.
— De que criatura isto foi tirado?
— De uma anêmona-amarela — disse Lore, séria.
— Nós vamos… fingir que somos uma equipe de limpeza? — chutou
Castor.
— Você acha que um balde ajudaria a vender melhor a história? —
perguntou Lore. Ela se abaixou para amarrar vários panos de chão em uma
das pontas da sua dory.
Atena estendeu a outra lança para Van, mas ele balançou a cabeça
negativamente. A deusa se incomodou visivelmente com a rejeição.
— Estou indo — disse Miles aos outros. — Vejo vocês em algumas horas.
Van se colocou no caminho dele, bloqueando a passagem para a porta da
frente.
— Não estrague tudo — alertou Van. — Eu preciso manter esse contato.
— Sai do meu caminho — disse Miles, passando por ele com uma
ombrada. Ele voltou o olhar à Lore uma última vez e disse: — Não se
esqueça de mandar mensagem.
— Não vou esquecer — disse Lore. — Tome cuidado.
— Pegue um táxi — disse Van a ele.
— E pague em dinheiro — finalizou Miles. — Viu, por incrível que pareça,
eu entendi a ideia de primeira.
Ele acenou em despedida, saindo pela porta e fechando-a atrás de si.
— Então, onde é esse lugar? — perguntou Castor a ela.
— Na esquina da Broadway com a 36th Street — disse Lore. — Vamos.
Mas quando eles caminhavam pela rua e chamavam o primeiro táxi, ela de
súbito fitou novamente sua casa, só para o caso de ser a última vez que a via.
DEZENOVE

OS ODISSEÍDEOS POSSUÍAM UMA PROPRIEDADE EM MANHATTAN GRANDE O


suficiente para a linhagem inteira usar para se reunir durante o Ágon. Foi uma
aquisição recente, feita durante o primeiro ano em que Lore morou com eles.
A única questão era se eles a venderam ou não nesse meio-tempo.
Ela teve sua resposta assim que o táxi em que Atena e ela estavam parou no
cruzamento da 37th Street com a 6th Avenue, e teve um vislumbre do
edifício a um quarteirão de distância.
Lore e Atena pegaram cuidadosamente as suas lanças no banco de trás,
ignorando a forma como o taxista as encarou pelo retrovisor. Atena olhou ao
redor, procurando por ameaças enquanto andavam para o edifício vizinho. O
táxi de Castor e de Van encostou atrás delas.
A casa dos Odisseídeos, o Baron Hall, tinha outro nome dentro da família:
Casa Ítaca. O edifício histórico havia sido construído no estilo arcaico, ambas
as entradas de arenito cinza eram decoradas com colunas coríntias. Em sua
vida anterior, fora um banco. Agora, nos anos de intervalo do Ágon, foi
alugado como um espaço para eventos grandiosos como fachada por seus
verdadeiros donos.
Estacionado ao lado da entrada da 6th Avenue estava um ônibus grande
com janelas filmadas. Uma tenda havia sido erguida para conectar a porta do
ônibus e a entrada, mas Lore conseguia ver a luz do lado de dentro oscilando
enquanto pessoas passavam apressadamente por ela. O ônibus balançava
enquanto embarcavam nele.
Castor veio ficar ao seu lado, mantendo as costas viradas para a parede.
— O que eles estão fazendo? — perguntou ele.
— Será que estão transportando alguma coisa? — chutou ela. — Ou
evacuando o local?
Van se aproximou deles.
— O que você sabe sobre o edifício?
— Tem duas entradas, uma na 6th Avenue e a outra na 37th Street.
Algumas janelas pequenas na fachada — disse Lore. — É um banco
convertido, então o construíram levando a segurança em conta; tem um
grande saguão central e salas menores ligadas nele, incluindo um cofre que
estavam planejando converter em uma sala segura.
— Há uma forma de observarmos a parte interna do edifício sem nos
expor? — perguntou Atena. — Devemos avaliar antes que Evander se
aproxime da entrada.
— Tem uma cúpula grande de vidro que dá para o saguão central, mas eles
seriam burros de não vigiarem — disse Lore. — E eu tenho certeza de que
eles têm caçadores de guarda lá em cima.
Van removeu sua elegante mochila de couro do ombro e remexeu dentro
dela até puxar um estojo pequeno. Ele abriu o fecho.
Dentro dela estava um dispositivo preto, no formato de um pássaro e não
maior do que o punho de Lore. Deixando-o ali, ele puxou o seu celular de
volta, digitou a senha mais longa que Lore já viu, e abriu um aplicativo
desconhecido. Ele foi passando imagens de próteses de mão e selecionou
uma, o que mudou a forma de sua mão. Então, ele abriu outra foto. Após
tocar em mais alguns pontos na tela, o pássaro mecânico ganhou vida com
um zumbido e voou para fora do estojo.
Atena afastou o olhar, enojada.
— Claro. Eu deveria saber que sua… tecnologia substituiria a astúcia e a
habilidade. Está é certamente a pior era dos homens.
— Ah, sim, qualquer coisa que não venha dos deuses é horrível — disse
Lore, revirando os olhos. — Bem, eu estou impressionada.
— Obrigado — disse Van enquanto fazia o drone ganhar altitude na direção
do telhado do Baron Hall. Ela e Castor se inclinaram para mais perto
enquanto a câmera do dispositivo se ativava. — Fui eu mesmo quem o
projetou.
O corpo de Castor irradiava calor enquanto ele estava ali, próximo a ela.
— Vejo três caçadores. Sem máscaras.
Uma pontada de receio desceu pela coluna de Lore.
— Isso me parece incomum, pelo que sei acerca da covardia dos caçadores
— disse Atena.
— É incomum. — confirmou Van.
— E inútil — disse Lore. — Os Odisseídeos podem apenas não querer que
as suas máscaras sejam vistas pelas pessoas dos edifícios aqui perto…
— Ou então esses caçadores possivelmente não são da Casa de Odisseu. —
concluiu Atena.
Lore estava certa sobre outra coisa. Os Odisseídeos haviam construído uma
cobertura de concreto sobre a enorme cúpula de vidro colorido.
— Aquilo é uma porta?
— Parece que sim — disse Van, guiando o drone para mais perto.
Havia uma pequena escotilha embutida na estrutura de concreto. Precisava-
se dela, percebeu a jovem, para que se tivesse acesso aos refletores da cúpula.
Estava trancada pela senha de um teclado eletrônico e pelo que
provavelmente era uma porta resistente a explosivos.
— Não há outro jeito de ver o que está havendo lá dentro? — perguntou
Van a ela. — O sensor infravermelho apenas nos diz que há alguém lá, não
quem é.
Lore balançou a cabeça negativamente. Qualquer janela existente no
edifício teria sido reforçada e filmada.
— Tudo bem, então — disse Castor. Ele caminhou até as portas de vidro do
térreo de um dos edifícios vizinhos. As maçanetas brilharam sob as mãos
dele, e as fechaduras de metal amoleceram o suficiente para que ele os
puxasse e os abrisse.
— Cas! — sibilou Lore, mas ele já havia entrado, saindo de vista.
— Finalmente — murmurou Atena. Havia um ansioso cintilar em seus
olhos enquanto ela dava longas passadas até a porta.
O edifício não tinha vigilantes, muito menos elevadores. Eles subiram as
escadas correndo até chegarem ao cômodo escuro do último andar. Quando
entraram, Lore se assustou com as silhuetas sombrias dos manequins. Pudera,
eles estavam no Garment District, o epicentro das compras em Nova York. O
edifício não continha apartamentos, como ela havia presumido, mas estúdios
de moda e espaços de trabalho, todos aparentemente vazios em uma noite de
domingo.
Castor se agachou por baixo da fileira de janelas que davam para o telhado
do Baron Hall.
Os dois edifícios eram adjacentes, com as laterais coladas. Seria apenas
uma questão de abrir uma janela e saltar cerca de um metro.
Lore se abaixou, indo até a extremidade de uma das janelas, fora de vista
dos caçadores abaixo. Atena se posicionou ao lado oposto de Lore,
removendo o espanador da lâmina de sua dory com uma petulância óbvia.
— Como vamos fazer isso? — perguntou Lore, dando um olhar de relance
para os caçadores enquanto eles patrulhavam a área de ponta a ponta.
— Como um pique-pega no Central Park — disse Castor. Lore prendeu um
riso à lembrança, mas sabia do que ele estava falando. Eles teriam que
agrupar os caçadores enquanto ainda os mantinham virados de costas. — Se
um deles nos vir e avisar no rádio, já era.
— Você tem algum truque divino na manga para servir de distração? —
perguntou Lore a ele. — Uns fogos, quem sabe?
Van tocou alguns comandos na tela de seu celular.
Castor e Lore se voltaram novamente para a janela enquanto os caçadores,
encobertos por mantos pretos, se reuniam ao ver o pássaro drone balançando
pelo ar em um padrão estranho e errático.
Um deles levou a mão até o ponto eletrônico no ouvido para reportar a
situação estranha. Antes que pudesse fazer isso, o drone ficou estável e atirou
em rápida sequência três dardos. Os caçadores cambalearam para longe um
do outro e então, desabaram.
Atena se voltou na direção de Van enquanto ele percorria calmamente os
dedos pela superfície do celular, guiando o drone de volta para eles.
— Embora eu não aprove este falso pássaro, aprecio sua letalidade.
— Eles não estão mortos — disse Van. — Apenas nocauteados por mais ou
menos uma hora.
Castor quebrou o trinco na moldura da janela e a abriu. O pássaro zuniu
para dentro, se acomodando de volta no estojo.
— O que mais você tem aí dentro? — perguntou Lore, olhando para a
mochila de Van.
Van ergueu as sobrancelhas enquanto sacava uma pequena adaga.
Eles saltaram entre os edifícios e mantiveram os seus passos leves enquanto
cruzavam o telhado. Lore agarrou a dory com muita força, a ponto de os
dedos doerem. Castor e Atena foram resolver o problema da escotilha
enquanto ela e Van se aproximavam dos caçadores inconscientes. Ele deu a
ela várias abraçadeiras de plástico.
Grunhindo, Lore virou um dos caçadores de barriga para cima, levantando
as mangas folgadas do manto. A tatuagem com a marca dos Cadmídeos, a
serpente, se enrolava em seu braço.
— Droga — sussurrou ela.
Van a olhou nos olhos, erguendo o braço do outro caçador para revelar a
mesma coisa.
Eles chegaram tarde demais.
— Estamos dentro — disse Castor, com a voz baixa.
Lore amarrou as mãos e os braços dos caçadores juntos, depois se levantou,
com o coração palpitando no peito. Enquanto dava meia-volta, um fraco
zumbido lhe chamou a atenção — vozes abafadas, chiando. Lore pegou o
ponto eletrônico do caçador mais próximo e, depois de limpá-lo, o colocou na
própria orelha. Van fez o mesmo, depois tirou o terceiro e guardou no bolso.
Eles se juntaram novamente a Castor e Atena na escotilha, que agora
parecia uma latinha de alumínio meio amassada. Lore parou ao avistá-la,
quase incapaz de entender. A força bruta que seria capaz de…
Os seus olhos vagaram até Atena. A deusa olhava para baixo pela enorme
cúpula de vidro, com lábios apertados e expressão fúnebre.
A câmara central do Baron Hall era um saguão redondo, um espaço amplo e
luxuoso. O velho balcão da recepção havia sido convertido em bares,
incluindo um bem no centro, diretamente abaixo do teto da cúpula. Luzes
azuis, douradas e verdes iluminavam o espaço de maneira artística, como se
nenhum dos Cadmídeos invadindo o edifício tivessem descoberto como
acender as luzes principais.
Aquilo não importava. Lore viu tudo.
Os Odisseídeos, com as mãos amarradas e as cabeças cobertas com
capuzes, cada um deles ajoelhado, esperando a sua vez de ser arrastado para o
ônibus do lado de fora. Os Cadmídeos, enquanto isso, coletavam os bens da
outra linhagem: armamentos, dinheiro, comida e antiguidades escondidas em
outro lugar do edifício.
E Fúria, de pé, no centro de tudo, com a mão ao redor do pescoço do
Guardião do Amor.
VINTE

FÚRIA PARECIA ENORME NA VISÃO DE LORE, TÃO ALTO E SÓLIDO QUANTO UMA
das colunas de pedra que circulavam o salão. Sua postura calma enquanto
estava lá, pronto para quebrar o pescoço de outro deus, era assustadora.
— O informante se enganou sobre o horário — sussurrou Van, atordoado.
— Ou eles mudaram no último minuto.
Lore não havia percebido que estava agarrando a mão de Castor até ele
apertar levemente a dela, para tranquilizá-la.
— Por que o falso Afrodite ainda vive? — perguntou Atena baixinho. —
Por que ainda não foi morto?
A pele negra do Guardião do Amor estava oleosa, devido ao suor ou ao
sangue. Seu rosto, que sempre havia sido lindo, mesmo antes da imortalidade,
agora estava quase irreconhecível de tão inchado. Um manto cor de marfim
se enrolava por entre suas pernas, ambas dobradas em ângulos anormais,
incapazes de sustentá-lo sob a influência do poder de Fúria. Sua boca havia
sido selada com fita adesiva, impedindo-o de falar, de usar seu poder de
persuasão com o novo deus. Uma coroa, feita de pérolas e pedras de um azul
pálido, estava em pedaços ali perto.
— Isso não precisa ser difícil. — A voz de Fúria crepitou pelos pontos
eletrônicos que eles haviam roubado dos caçadores. — Diga-me como abrir o
cofre e permitirei que estes homens ajoelhados vivam. Permitirei que você
me sirva na nova era.
Lore se moveu, circulando a cúpula para ver o outro lado do salão. A
enorme porta prateada do cofre estava fechada. Havia sido projetada para
aguentar quase tudo, incluindo explosões.
— Acho que o poema está na sala segura — disse ela.
Fúria sinalizou para um dos Cadmídeos próximos.
— Encontrem a sua filha mortal. Talvez ela possa causar a pressão
necessária.
O Guardião do Amor arranhou as mãos de Fúria, mas foi um esforço débil.
— Onde está Iro, filha de Iolau? — indagou o caçador aos Odisseídeos
agrupados sob vigia. — Se ela for covarde demais para se revelar, não
merece sua proteção, nem você merecerá o sofrimento rápido que isso trará.
Aquilo foi uma faca projetada para passar por entre as costelas e se cravar
no coração do orgulho deles. Lore fechou os olhos, esperando.
— Eu sou ela.
Os olhos de Lore se abriram. Van a fitou, surpreso, mas Lore balançou a
cabeça negativamente. Aquela não era a voz de Iro.
— Eu sou ela — disse outra voz.
— Eu sou Iro — disse uma terceira.
Fúria deu meia-volta, derrubando o Guardião do Amor no chão. O novo
deus mal conseguia levantar a cabeça, muito menos se arrastar para longe.
— Mate cinco deles a cada minuto que ela permanecer escondida. Peguem
os que estão no ônibus, se for preciso.
— Onde está Iro, filha de Iolau? — questionou o caçador novamente,
circulando o grupo.
Vários lutaram contra suas amarras, mas não houve hesitação quando um
dos prisioneiros falou, fazendo a voz masculina ecoar:
— Eu sou Iro.
Ele foi o primeiro a morrer. Seu sangue manchou o chão de mármore e os
rostos corajosos dos caçadores à sua volta.
Fúria se curvou sobre o Guardião do Amor, pegando sua cabeça e o fazendo
encarar fixamente a matança, prendendo-o naquela posição com o seu pé. Ele
se inclinou para a frente, colocando mais pressão.
— Diga-me como abrir o cofre. A informação não vale o custo de todas
estas vidas. Não vale que se recordem de você como o covarde chorão que
permitiu que morressem.
A cabeça de Lore girava, tentando recordar-se de uma memória incompleta
antes que ela tivesse a chance de escapar. Havia alguma coisa sobre o cofre
— alguma coisa sobre a construção da sala segura. Lore e Iro haviam
invadido o escritório do seu arconte uma vez para ver os documentos e
plantas do lugar.
— Por favor! — implorou um dos caçadores, enquanto era arrastado na
direção da fileira de corpos. — Por favor, não!
Os caçadores Cadmídeos riam em zombaria. O que detinha a espada a
aproximou da garganta do jovem apavorado.
— Parece que aqui temos um que deseja servir a seu novo senhor.
— Sim! — suplicou ele. Os Odisseídeos ao redor rosnaram. — Sim… a
garota, Iro. Ela está no cofre.
Castor olhou para Lore. Ela balançou a cabeça negativamente, e seu pavor
se intensificou. Mas havia algo a mais…
— Já que o pai não nos contará, talvez sua filha esteja inclinada a isso —
disse Fúria, retornando para o corpo jogado de Guardião do Amor, e olhou
para trás. — Mate-o também.
— Meu… meu senhor — implorou o caçador dos Odisseídeos.
Os gritos dele estouraram os ouvidos de Lore quando irromperam do ponto
eletrônico.
— Eu nunca gostei de ratos — disse Fúria, de forma indiferente, e deu
meia-volta antes que pudesse ver a cabeça do caçador ser decapitada.
Ele foi até o cofre, erguendo a mão para dar uma batidinha debochada.
— Criança. Você não gostaria de se juntar a nós? Não creio que você
gostaria de assistir enquanto faço o seu pai sangrar até morrer nem
enquanto extermino toda a Casa de Odisseu. É algo terrível ser a última da
sua linhagem.
A memória voltou à Lore, como um clarão. Outra entrada.
— Há outra entrada para o cofre — disse ela, rapidamente.
— Tem certeza? — perguntou Castor.
Ela assentiu com a cabeça.
— Eu vi na planta do edifício quando morei com os Odisseídeos. Iro me
contou que ajudaria o pai dela a fugir porque salas-fortes normalmente têm
apenas uma entrada, e nenhum inimigo esperaria que houvesse outra.
— Você lembra como chegar a ela? — perguntou Van. Lore hesitou, mas
assentiu.
— Há um túnel que se conecta a uma loja; acho que é na 39th Street.
— Talvez possa haver outra maneira de matar Fúria e resgatar a garota e
qualquer que seja o conhecimento que ela possa ter sobre o poema. Talvez
até mesmo o falso deus e os outros Odisseídeos — disse Atena, proferindo
lentamente as palavras. — A surpresa é a nossa aliada, mas esperar o
momento certo é a chave.
Lore olhou para baixo novamente, para onde Fúria se demorava, próximo à
porta do cofre.
Por quatro anos da vida de Lore, Iro havia sido a única pessoa em que ela
podia confiar completamente, e Lore havia sido a única amiga verdadeira que
a menina tinha, já que sua linhagem ficava competindo por poder e por
favores do pai de Iro, que havia ascendido recentemente. As duas falavam
aquele idioma secreto e silencioso do luto enquanto perdiam todos que lhes
eram próximos.
Lore sempre idolatrou a prima, como ela parecia calma e perfeita diante da
incerteza, quando as emoções de Lore pareciam grandes demais para caber no
corpo. Exceto por aquela última vez, elas haviam sempre protegido uma à
outra, e Lore sabia que a insistência de Iro para treinar com ela havia sido a
única coisa que estava entre Lore e uma vida como serviçal da propriedade
dos Odisseídeos.
Abandoná-la foi uma das decisões mais angustiantes que Lore já tomara na
vida. Não faria aquilo novamente.
Iro — pensou ela. — Aguente só mais um pouco…
VINTE E UM

VAN FOI RESGATAR OS CAÇADORES ODISSEÍDEOS NO ÔNIBUS. LORE NÃO GOSTOU


daquilo — não era como se Van não pudesse se defender ou usar seu poder
de persuasão para se livrar do perigo, mas ele não fazia ideia de quantos
Cadmídeos estavam naquele ônibus ou do que estavam dispostos a fazer para
manter seus prisioneiros.
Não morra — pensou Lore. — Por favor, não morra.
Ela ajustou o ponto eletrônico com a mão. Ela ouviu um chiado na
frequência, pontuado por algumas informações soltas sobre os caçadores
Cadmídeos de vigia nos edifícios próximos.
— Tudo limpo, nenhum movimento nas ruas…
— Ele quer que a gente verifique o transporte da garota…
— Merda — resmungou ela, olhando para a brilhante tela de seu celular
pela centésima vez em cinco minutos. — Ande logo, Van…
Se Lore queria uma evidência de que o Mensageiro sempre trabalhava
sozinho, isso teria ficado claro pelo fato de ele carregar um drone avançado
dentro da mochila, mas não algo que lhe permitisse se comunicar com ela e
com Castor, que estava esperando para atacar no telhado caso Fúria chegasse
a Iro antes de Lore. Por fim, Van apenas entregou um celular descartável para
Castor e abriu uma chamada em conferência com os três.
— Você está certa de que esta é a entrada? — perguntou Atena, em voz
baixa.
Lore olhou para o outro lado da 39th Street, avistando a sapataria
novamente. Elas fizeram uma busca frenética pelas ruas antes de Lore
perceber a fachada desocupada.
Como os imóveis comerciais em Manhattan não costumavam ficar vagos
por muito tempo, pareceu uma boa aposta mesmo antes de ela notar a
pequena letra lambda maiúscula sob a placa de tombamento ao lado da porta.
Os Odisseídeos a usavam como uma marca secreta — lambda é a inicial
grega de Laércio, o epíteto patronímico de Odisseu, filho de Laerte.
Agora, agachadas atrás de uma fila de carros estacionados, esperavam. O
sinal veio antes do que Lore esperava.
— Tudo certo — disse Van, de repente. — Me aproximando agora.
Lore respirou fundo e se voltou para Atena.
— Essa é a nossa deixa.
Elas desceram a rua em disparada e se posicionaram de cada lado da loja
vazia. As janelas e a porta haviam sido cobertas com papel para esconder o
lado de dentro. Lore segurou a dory de Atena junto com a sua quando a deusa
se curvou para quebrar a fechadura do portão metálico.
Enquanto subia com um rangido, Atena puxava a porta atrás dele. A
fechadura se rompeu com facilidade.
Agora que estavam do lado de dentro, a última das dúvidas de Lore
desapareceu. A sapataria estava vazia, com exceção de alguns pacotes de
suprimentos e água, claramente deixados ali para emergências.
— Por aqui — disse Lore, indo na direção do que aparentava ser o estoque
dos fundos. Lá, embaixo de um alçapão escondido por um tapete de borracha,
havia uma escada.
Lore ergueu seu celular para iluminar o que estava ali embaixo, mas não foi
necessário. Algumas luzes dispersas piscaram até acender quando elas
passaram por um sensor escondido, revelando o túnel inacabado escondido
embaixo dos edifícios e ruas.
— Inteligente — percebeu Atena.
— Veremos — sussurrou Lore.
Van deve ter colocado o celular no mudo antes de entrar no ônibus, porque
foi Castor quem trouxe as novidades.
— Van está… parece que… eles partiram — disse ele. As palavras ficaram
picotadas por chiados, depois cessaram de vez com a queda da ligação.
— Qual é o problema? — perguntou Atena, com uma expressão alerta.
— Não tem sinal aqui embaixo — disse Lore, correndo para a frente.
A luz do celular passava tremulando pelo túnel, acompanhando o ritmo de
seus passos. Havia uma leve subida no caminho agora, conduzindo-as para a
parte mais profunda do túnel. Mais luzes piscaram, revelando uma enorme
porta prateada à frente.
Assim que estavam próximas da porta, o ponto eletrônico de Lore começou
a captar trechos de alertas de caçadores sendo gritados.
— O que diabos está acontecendo?
— …seguiu para a oeste, pela 36th…
— …peguem as motos…
— Kyrios, Dorian… tem alguém com visão da cobertura?
Uma voz levemente aflita respondeu:
— Não vimos nada até o ônibus ir embora. Um deles deve ter se soltado…
— Você consegue abrir? — disse Lore, tentando ligar de volta para o
número de Van. O celular ainda não completava as ligações, mesmo com as
vozes no ponto eletrônico se tornando indistinguíveis enquanto gritavam uma
por cima da outra.
— Iro? — Lore tentou chamá-la do outro lado da porta. — Consegue me
ouvir? É a Lore.
Atena tateou as bordas da porta sem nenhum vão, depois deu um passo para
trás, erguendo um dos punhos. Lore deu um pulo quando ela deu uma
pancada bem no centro da porta. A pele dos nós de seus dedos rachou,
deixando uma mancha de sangue no metal. Ela bateu de novo.
— Ela é reforçada para aguentar uma explosão. Você não vai conseguir
abrir na pancada… — protestou Lore.
Mas Atena não precisava. Conforme o centro da porta se amassava para
dentro, criava espaço suficiente entre o chão e a parte inferior da porta para
que Atena passasse os dedos por debaixo dela. Seu corpo tremeu com o
esforço de erguê-la.
— Iro! — chamou Lore. — Venha!
Mas não havia ninguém do lado de dentro. Iro abrira a porta do cofre.
Um pico de adrenalina veio ao organismo de Lore, fazendo sua pulsação
entrar em frenesi assim que ela passou por baixo da porta, entrando na sala-
forte. Logo além dela, Lore avistou o grande salão.
E a matança.
Os Cadmídeos estavam fixados demais na cena adiante para notar Lore e
Atena. Eles batiam com os punhos no peito, sibilando enquanto Fúria
inclinava uma orelha na direção de uma jovem mulher trajando um manto de
caçador. Ele segurou a cabeça do Guardião do Amor com firmeza e
pressionava uma faca na garganta do deus.
Iro tinha a mesma aparência da qual Lore se lembrava — seus cachos
escuros estavam puxados para trás em um coque baixo, revelando o conjunto
de hematomas e cortes recentes no seu rosto e no seu pescoço. Sua pele
morena estava pálida, e mesmo quando os seus lábios se moviam, seu rosto,
uma pintura de forte beleza, estava lívido de desprezo.
Aquilo foi a última coisa que Lore notou antes que o mundo explodisse.
A cúpula de vidro se estilhaçou quando Castor soltou uma rajada de calor e
luz, arremessando cacos de vidro e fragmentos de metal nos Cadmídeos ainda
reunidos abaixo.
— Não! — rosnou Atena.
Castor esperou o máximo que pode, Lore sabia disso, mas uma pequena
parte dela ecoava a frustração de Atena quando a energia do novo deus caiu
em ira sobre a cúpula. Seu ataque as ajudaria a salvar Iro, o que Lore queria
desesperadamente, mas também forçaria Fúria a recuar novamente para as
sombras, e Atena perderia a melhor chance de matá-lo.
Ainda podemos fazer as duas coisas — pensou Lore. — Só precisamos agir
rápido…
Atena abaixou a cabeça e entrou na briga com um grito feroz, apenas para
ser impedida quando o calor da rajada de Castor a jogou para trás.
Gritos preencheram o ar. Os Cadmídeos caíram, cravejados de vidro e
estilhaços, e outros fugiram, mas não chegaram muito longe — a energia de
Castor se dividiu, estalando e se contorcendo pelo chão como um raio
atingindo o solo. Isso os manteve presos ali.
Lore cambaleou para frente, protegendo os olhos enquanto procurava por
Fúria e Iro. O piso e o concreto cederam, mandando os caçadores fugitivos
para o andar inferior. Eles desapareceram em meio à fumaça e à escuridão.
— Onde ele está? — vociferou Atena.
Quatro Cadmídeos avançaram na sua direção, com espadas erguidas, mas
Atena era mais rápida, cortando-os no peito com sua dory. Lore lutou contra
as ondas de calor que emanavam do núcleo incandescente que era a rajada
explosiva de Castor. Ela avistou a silhueta de Fúria por trás da coluna de
fumaça.
Um caçador avançou na direção dela, e Lore se esquivou para evitar a
espada. Uma dor aguda atravessou seu ombro quando a lâmina errou o seu
pescoço por pouco, e ele girou para longe novamente, desaparecendo tão
completamente que era como se as nuvens rodopiantes de cinzas o tivessem
engolido.
Mas Lore o deixou para lá quando ouviu a voz desesperada de Iro
chamando:
— Papai!
— Aqui… — Lore chamou Atena. A deusa ainda estava cortando os
Cadmídeos restantes, os olhos dela queimavam, as linhas de seu rosto
estavam profundas com o prazer da luta. — Eles estão aqui!
Lore passou a dory por debaixo dos pés de um caçador próximo, fazendo-o
cambalear direto para um raio ardente. Ela tossiu, se engasgando com a
fumaça espessa enquanto tinha dificuldade para avançar.
— Iro! — chamou ela. — Iro!
Mas foi a voz acometida do Guardião do Amor que a alcançou primeiro. —
Não olhe! Iro, não…
Iro gritou.
Até Lore chegar a ela, os restos mortais do Guardião do Amor estavam aos
seus pés, com o tórax partido ao meio. A garota se ajoelhou lentamente, com
o rosto rígido de choque. Suas mãos tremiam quando tocou o rosto do pai.
E Fúria não estava em lugar nenhum.
Castor parou sua rajada, deixando chamas e algumas últimas chicotadas de
fúria pelo seu rastro. Lore olhou para cima, procurando por entre a fumaça
que subia e a borda queimada da cúpula, e uma nova onda de medo a
percorreu. O único motivo pelo qual Castor pararia o seu ataque seria se os
Cadmídeos chegassem à cobertura e ele estivesse em perigo.
— Onde você está, Assassino de Deuses?! — berrou Atena para a escuridão
caótica ao redor delas. — Não fuja da luta, covarde!
Lore segurou Iro envolvendo o seu peito com os braços, puxando-a para
trás.
— Sou eu… sou eu, Lore! Precisamos sair daqui! Iro, precisamos ir…
Iro se desvencilhou de Lore, girando para encará-la. Ela tirou a dory da mão
de Lore e pôs a ponta na garganta dela em questões de segundos.
Lore viu o exato momento em que o susto se desfez, e a outra jovem a
reconheceu.
Um tremor foi aumentando no corpo de Iro enquanto ela se mantinha
encarando Lore. Havia um hematoma em seu olho esquerdo, e sua pele
estava marcada por suor e fuligem. Os seus olhos estavam arregalados e
vermelhos, os tendões em seu pescoço saltavam e seu desespero era como o
de um animal encurralado.
— Você não devia estar aqui! Você precisa ir embora! Ele não pode vê-la!
Atena avançou na direção delas por trás, espalhando fumaça e brasas. Sem
dizer palavra, ela ergueu a haste da sua dory e acertou o pescoço de Iro. A
garota caiu amolecida nos braços de Lore.
— O impostor fugiu — disse Atena, visivelmente furiosa — e agora nós
devemos fazer o mesmo. Se o falso Apolo fosse capaz de controlar seu
poder, poderia ter sido capaz de impedi-lo. Intencionalmente ou não, ele
sabotou nossos esforços.
— Isso não é verdade… — Lore começou a dizer.
A deusa caminhou até o cofre que as esperavam, passando por cima dos
corpos e destroços no caminho. Lore se ajoelhou, erguendo Iro nos ombros.
Ela engoliu um gemido de dor conforme o peso da garota se acomodava ali,
mas a dor desapareceu assim que ela começou a correr.
Elas haviam acabado de alcançar a sala segura quando Lore sentiu uma
pressão na base de sua nuca. Ela deu meia-volta lentamente.
Fúria apareceu novamente em meio à destruição e aos redemoinhos de
fumaça espessa. Ele foi na direção delas, devagar, com passadas longas,
chegando perto… mais perto…
A mão dela encontrou o painel de segurança da porta e ficou imóvel. Ela
esqueceu o motivo de terem ido lá. Esqueceu o peso de Iro e a ardência nos
pulmões. Não chamou por Atena. Não conseguia falar, com as mãos frias do
medo que envolviam seu pescoço.
Atrás dela, o restante dos Cadmídeos se reagrupava, se aglomerando como
sombras.
A deusa percebeu que Lore não a seguia e deu meia-volta. Ao avistar Fúria,
pegou a arma de Iro e a lançou com toda a sua força. Fúria girou, deixando
que ela passasse raspando pela sua bochecha enquanto cortava o ar ao seu
lado.
Aristos Cadmou havia sido o monstro dentro do labirinto de sua mente por
muito tempo, ela tinha uma memória quase perfeita do seu rosto cheio de
cicatrizes e da forma como seu cabelo escuro e grosso era salpicado de
grisalho. Ele parecia mais jovem agora do que Lore lembrava, como se a
imortalidade o tivesse feito voltar algumas décadas.
Mas havia ecos dele que permaneciam ali — as sobrancelhas baixas e
grossas. O profundo tom oliva de sua pele. O rosto em forma de um diamante
lapidado.
Por entre o turbilhão de vidro incandescente que rodopiava em volta dele,
seus olhos dourados encararam os de Lore, e ele sorriu.
— Encontrei você.
Lore bateu com o punho no painel de segurança e a porta se fechou.
SETE ANOS ATRÁS

SEU PAI NÃO QUERIA DIZER PARA ONDE ESTAVAM INDO.


Lore carregou obedientemente o pequeno pacote que sua mãe lhe dera e o
acompanhava a um passo de distância. O seu pai amava sorrir, mas não dera
nem mesmo um risinho naquela manhã. Ele e mamãe nem se falaram. Agora,
suas escápulas estavam contraídas como as asas de uma vespa. A julgar pela
expressão no rosto do pai, ela estava com medo de perguntar sobre o destino
deles, sob risco de ser ferroada por uma palavra pontiaguda.
Ela não gostava daquilo. Nem um pouco.
O mês de abril havia feito desabrochar toda a vida secreta da cidade. Lore
evitava cuidadosamente as pequenas flores e a grama que cresciam apertadas
entre as rachaduras da calçada. Os pássaros que cantarolavam no topo das
árvores ao longo da rua deles a cumprimentavam quando ela passava. Lore
sorriu para eles.
Apesar de Lore estar mais velha, e mais alta, a sua visão do seu papai nunca
parecia mudar. Para a menina, ele era tão grande e forte quanto qualquer
edifício do centro da cidade que cortava o céu como lustrosos punhais de
vidro.
Lore se apressou para acompanhar o ritmo das longas passadas do seu pai.
Após um momento, no entanto, ele parou para esperá-la. Quando Lore o
alcançou, seu pai colocou uma das mãos atrás de sua cabeça, depois passou
um braço em volta de seus ombros. Ela finalmente relaxou.
— Me conta — disse ele, mantendo o tom de voz leve —, como vai o seu
Castor?
Com o sol atrás dele, Lore não conseguia ver o seu rosto.
— Ele não é o meu Castor — disse ela. — Ele é o meu hetaîros.
— Ah, sim — disse o pai, inocentemente. — Eu nunca tive o meu próprio
hetaîros, só o meu pai. Os hetaîros se encontram fora do treinamento ou
apenas dentro das paredes da Casa Tétis?
Lore mordeu o interior da boca tão forte que sentiu o gosto metálico de
sangue. Ela se encontrava com Castor fora da Casa Tétis o tempo todo. Nos
dias que não havia nenhuma lição para a turma deles ou quando eram
liberados mais cedo, e nem seus pais, nem sua babá, a Sra. Osbourne, sabiam
disso.
A menina era grata por ter irmãs mais novas. Elas podem ter roubado o seu
velho cobertor e Coelhinha, mas mantinham o olhar de Sra. Osbourne
constantemente afastado dela.
— Agora ele está treinando cada vez mais com a Curandeira Kallias —
disse Lore, tentando não soar tão magoada quando se sentia com aquilo. Um
dia, Castor seria o melhor curandeiro que os Aquilídeos teriam, mas, até lá,
não queria treinar com nenhum dos outros que perderam seus parceiros, que
foram treinar com os arquivistas e os ferreiros. — Eu acho que não me
importaria de encontrar Castor fora do treino…
— Fora do treino… por exemplo, quando vocês foram para o Central Park,
na última quinta-feira?
Lore desacelerou o passo, e sua mente rodopiou com desculpas esbaforidas.
Ela poderia dizer que teve que voltar andando para casa por um caminho
diferente por causa do trânsito ou de obras…
— Ahá! — disse ele. — Nunca se corrige uma mentira com outra.
Ela abriu a boca, depois a fechou novamente.
— Me prometa que vocês não vão lá de novo sem um adulto — disse seu
pai.
Lore fez uma careta e recebeu um olhar de aviso que a desfez
imediatamente.
— Por quê? — perguntou ela, confusa.
— Porque eu mandei, Melora — disse ele. — E porque não é seguro.
O queixo de Lore caiu. Não é seguro? Ontem seu instrutor lhe mostrara
entre quais costelas deveria enfiar uma lâmina para acertar o coração. Ela
havia praticado os movimentos esta manhã na frente do espelho do banheiro.
— Eu estou bem, papai. Sempre levo minha faca comigo.
O pai parou novamente, respirando fundo. Uma expressão passou pelo rosto
dele, e Lore não o compreendeu. Não era exatamente medo — era mais como
se ela tivesse lhe socado o estômago e ele estivesse lutando para não se
curvar. Ele ficou em silêncio por um longo tempo.
— Desculpa? — sussurrou ela. Essa geralmente era a resposta que ele
procurava.
Ele se libertou de seu transe, pegando a mão dela novamente.
— O que eu disse sobre a sua faca?
— Que eu só posso usar ela na Casa Tétis ou em casa — repetiu ela
diligentemente. O que era idiota. Todos os caçadores precisavam ter suas
armas com eles o tempo todo, mesmo no período entre um Ágon e outro. Mas
as palavras não pareceram deixá-lo feliz.
Ele olhou em volta para as pessoas que passavam por eles, indiferentes ou
checando os celulares. Então, começou a falar na língua antiga.
— Porque os Mundanos não vão entender. Eles vão levá-la embora se
pegarem você com uma arma dessas.
— Eu sei me defender! — As palavras explodiram de sua boca. — Eu sou a
melhor da minha turma. O instrutor me chama de Espartana…
— Nem mesmo os espartanos eram espartanos, Melora — disse o pai.
Lore se afastou, saindo do alcance dele. Ela abraçou o pacote junto dela.
Seus pensamentos se tornaram um emaranhado confuso.
— O que você quer dizer?
Ele se ajoelhou para olhá-la direto nos olhos.
— Não é sempre a verdade que sobrevive, mas sim as histórias em que
queremos acreditar. As lendas mentem. Elas passam por cima das
imperfeições para contar uma história boa, ou nos ensinam como devemos
nos comportar, ou atribuem glória a vitoriosos e desonra àqueles que hesitam.
Talvez tivesse um pouco de verdade na Esparta que encarnou esses mitos.
Talvez. Mas como somos lembrados é menos importante do que o que
fazemos agora.
O coração de Lore começou a palpitar. Ela apertou o pacote com tanta força
que amassou o papel pardo.
— Mas as nossas lendas são verdadeiras. Nossos ancestrais, os deuses…
— Se um dia houve heróis, todos já se foram agora — disse seu pai, se
levantando. — Só restaram monstros. Sua coragem sempre foi grande,
chrysaphenia mou. Para alguns monstros, isso será o suficiente para
afugentá-los; mas haverá outros, bestas maiores que se deleitarão com a
caçada. Entende?
Lore não disse nada. Sua raiva resmungava no peito, forte e torturante. Ela
daria conta de qualquer um — ou de qualquer coisa — que tentasse atacá-la.
Monstros tinham presas, mas por isso foram dadas garras às leoas.
— Entende? — repetiu ele, mais incisivo dessa vez.
— Sim, papai — disse ela, taciturna.
— O pai de Castor é um conhecido meu — disse ele. — Vou falar com ele
sobre vocês se verem fora da aula e pedir a permissão de Philip Aquileu, se
for necessário. Mas você… você precisa me prometer.
— Prometo — disse ela, depois acrescentou, baixinho —, ter mais cuidado
para não ser vista quando sair.
Eles começaram a andar, se juntando novamente ao fluxo de pessoas
cruzando a cidade. Lore ficou ao lado de seu pai, tentando evitar ser
empurrada por grupos de alunos em movimento enquanto atravessavam a
Quinta Avenida. Lore não lhes deu mais que uma olhada. Não eram como
ela.
— A sua irmã vai se juntar a você na Casa Tétis logo. Você gostaria disso?
Lore deu de ombros. Ela não conseguia imaginar Pia, com seus olhos
grandes e seus pequenos dedos sempre manchados com tinta, levando golpes
dos bastões de treino de seus colegas de turma. A ideia fez o peito de Lore
resmungar de novo, apesar de ela não ter certeza do motivo.
— O que devemos fazer para o aniversário dela? — perguntou ele, voltando
a falar inglês.
Lore deu de ombros novamente. Ela já sabia o que daria para a irmã como
presente: uma promessa de arrumar a cama e trançar o cabelo dela todos os
dias até o verão ser varrido pelos ventos do outono.
— Ver um filme? — arriscou ela. O seu pai não gostava muito de ver
filmes, mas talvez dessa vez…
— Um piquenique? — sugeriu ele, em vez disso.
— Uma visita ao zoológico do Central Park? — ofereceu ela.
Sem parar, eles ficaram trocando ideias até que se esgotaram as coisas que
haviam feito e tiveram que inventar coisas que nunca fariam.
— Uma viagem para a Lua? — disse Lore.
— Uma dança com cavalos alados?
Lore ajeitou o pacote nas mãos. Não era pesado, mas o tilintar dentro dele a
fazia ficar curiosa.
— Uma caminhada seja lá para onde estamos indo? — sugeriu ela,
inocentemente.
Um canto da boca do pai se retorceu, mas voltou ao lugar novamente
quando ele contraiu os lábios.
— Não, chrysaphenia mou — disse ele, olhando para frente. — Não vamos
levá-la ali. É um lugar de monstros.

Lore não reconheceu o restaurante. Nem mesmo achou que estivesse aberto.
As cortinas estavam fechadas e a porta, trancada. Ela olhou por cima do
nome estampado na maior das duas janelas. O Fenício.
Ela suspirou de surpresa.
— Não fale nada — disse o pai, com o tom de voz baixo, pegando o pacote
de suas mãos. — Você se lembra do que eu ensinei sobre como as visitas
devem se comportar? Os Cadmídeos nos convidaram em um gesto de boa
vontade e paz.
Lore recuou.
— Eles não, papai… foram eles que mataram…
— Melora — interrompeu ele, rispidamente. — Você acha mesmo que eu
esqueci? Nós estamos sozinhos nesse mundo agora, nós cinco. O pessoal da
sua mãe não se aliará a nós no próximo Ágon, nem os Aquilídeos e os
Teseídeos. Eles ficariam felizes vendo os últimos da linhagem de Perseu
deixarem o Ágon. Nós precisamos de aliados.
Ela respirou fundo pelo nariz, segurando o ar para evitar que dissesse algo.
— O próprio Aristos Cadmou, o arconte dessa linhagem, me escreveu
pedindo para que eu viesse junto com a minha filha mais velha — disse ele.
— Eu não podia recusar sem que ficasse parecendo um insulto. Eles não são
conhecidos por reagirem com cortesia quando se sentem desprezados.
O ar explodiu para fora dela.
— Mas papai…
— Precisamos deixar o passado se vamos, um dia, encontrar um futuro —
disse ele. — Não tenha medo. Eu estou com você, e somos estranhos aqui.
Zeus Xênios nos protegerá.
Do mesmo jeito que protegeu o resto da nossa linhagem? — Lore estava
surpresa com esse pensamento maldoso. É claro que ele os protegeria. Eles
eram os caçadores escolhidos por Zeus.
Lore sabia que sua família não era como as outras linhagens. Mas uma
coisa era treinar na casa do grande Aquiles, outra era ir até o pior inimigo dos
Perseídeos em busca de armas, armaduras e informação. Ela odiava que
tivesse que ser daquele jeito. Perseu era um herói muito maior do que Cadmo.
Seu pai ergueu a mão e bateu na porta.
Uma voz respondeu através da porta na língua antiga.
— Quem é?
— Demos, filho de Demóstenes, e sua filha, Melora, dos Perseídeos —
respondeu ele. — A pedido do arconte dos Cadmídeos.
A porta se destrancou. Lore agarrou a barra do velho casaco de couro do
seu pai, depois se forçou a se afastar e se endireitar. Ela não era mais uma
garotinha. Não se esconderia atrás de ninguém.
A mulher que abriu a porta era bem mais velha, com cabelo branco e pele
desgastada. Ela trancou a porta assim que entraram.
O restaurante estava escuro, havia apenas a tênue luz do sol se infiltrando
por entre as cortinas. O local era menor do que ela esperava, e, para abrir
espaço, todas as cadeiras e mesas foram empurradas para os cantos e
empilhadas. Os Cadmídeos reunidos se moveram, criando um corredor entre
eles. Eles sibilavam e sorriam pretensiosamente quando Lore e o seu pai
passaram por eles.
Lore os encarou de volta, desafiadoramente. Um caçador nunca deve expor
a outro o seu medo. Não se quisesse ser respeitado.
Aromas familiares cobriam o ar — orégano e alho, carne assada, couro
oleado, pessoas. Sentado próximo aos fundos do restaurante, elevado acima
dos outros em um pequeno palco, estava um homem de meia-idade, e seu
cabelo preto tinha manchas prateadas.
O homem se recostou no trono conforme eles se aproximavam. Uma árvore
antiga e poderosa havia sido derrubada para que fosse esculpido; os olhos de
Lore se fixaram nos salientes dragões entalhados de cada lado, um alerta a
qualquer um que se aproximasse demais.
O homem tinha a aparência que Lore sempre imaginou que Hades teria
enquanto comandava o reino dos mortos.
Sentado próximo aos seus pés estava um garoto que parecia ter por volta da
idade de Lore. Ele vestia um traje parecido com o do homem — uma túnica
sombria de seda, calças sombrias, botas sombrias e um sorriso sombrio. Ele a
olhou com o nariz empinado, como se ela fosse um cão que ele pretendia
chutar para longe.
— Bem-vindo, Demos dos Perseídeos — disse o homem. — Estou feliz que
tenha aceitado o nosso convite.
Lore ouvira histórias sobre Aristos Cadmou. Suas esposas mortas. Ártemis
quase ter sido assassinada por ele. Sua impiedosa ascensão na hierarquia da
própria linhagem para se tornar arconte. Seu rosto contava todas essas
histórias, suas linhas de expressão profundas e suas cicatrizes brutas faziam
parecer que a face fora esculpida da mesma árvore que deu origem a seu
trono.
Pelo que Lore sabia, ele era apenas dez anos mais velho que o seu pai, mas
ela supôs que uma alma vil o apodreceria de dentro para fora mais rápido até
mesmo que do que Cronos conseguiria fazer.
— Eu agradeço o convite — disse seu pai. — Deixe-me apresentar a minha
filha, Melora.
Lore o olhou fixamente.
— Bem-vinda, Melora — disse Aristos Cadmou, com um ligeiro sorriso.
— Minha esposa envia um presente — disse seu pai, segurando o pacote.
Aristos acenou para o garoto, que se levantou com um olhar de
aborrecimento e foi pegar o presente. Foi ele quem o abriu, erguendo dois
potes de mel.
Lore hesitou ao vê-los. A sua mãe cuidava de uma colmeia no terraço do
edifício deles e vendia o mel em uma das feiras livres da cidade nos fins de
semana. Era ouro líquido para eles, mas o garoto, Belen, enrugou o seu
narizinho de porco ao vê-los.
— Para que precisamos disso? — zombou ele. — A gente pode
simplesmente comprar isso na loja com alguns trocados.
O sangue de Lore subiu quente às bochechas, e apenas o aperto do pai em
seu ombro a impediu de voar na cara do garoto.
— Ora, Belen — disse Aristos suavemente, lançando ao garoto um olhar
que era de qualquer coisa, menos repreensão. —, todas as oferendas, até
mesmo as mais… humildes, são bem-vindas aqui.
Risos abafados se seguiram. Lore sentiu o corpo do pai se enrijecer ao seu
lado. A mão que ele havia colocado no ombro dela ficou tensa e, apesar de a
cabeça dele ainda estar curvada, ela viu a dificuldade que o pai tinha para
controlar sua expressão.
Aristos estalou os dedos para uma das mulheres ali perto, que se curvou
diante dele e trouxe uma garrafa antiga.
— Meu Madeira favorito — disse o arconte. — Envelhecido por mais de
duzentos anos.
O seu pai a cutucou para que fosse aceitar o presente. Lore encarou a
mulher enquanto ela avançava lentamente, uma massa de músculos e tendões.
Seus olhos eram delineados por kajal preto, assim como os de muitas das
outras mulheres e garotas com cerca de sua idade reunidas à sua volta. A
pintura fazia com que os seus olhos parecessem brilhar.
Elas são as leoas dos Cadmídeos — percebeu Lore, pegando a garrafa.
— Você é muito generoso — disse seu pai, em palavras tensas. — Eu o
agradeço em nome da minha família.
— Mas é claro — disse Aristos. — Pense nisso não como um ato de
generosidade, mas como um sinal da minha boa-fé nos negócios que
conduziremos aqui.
— Negócios…? — repetiu seu pai.
— É claro — disse o outro homem. — Por que mais um homem renunciaria
ao orgulho para vir até o covil daqueles que quase extinguiram sua linhagem,
senão puramente por negócios?
Lore estava com as narinas dilatadas de raiva, mas o pai se mantinha calmo.
— Ora, de fato.
— Ouvi dizer que você estava indo de linhagem em linhagem como um
mendigo, buscando conforto e auxílio — disse Aristos. — É uma pena que
eles não viram a oportunidade que você oferece.
— De uma aliança? — indagou o pai, ignorando os sussurros e risos
sarcásticos em volta deles.
— Uma aliança? — Aristos se inclinou para frente no trono, pendendo a
cabeça para o lado. — Não, Demos. Eu tenho uma oferta para você. Um
acordo que mudará a sua sorte.
— Se é que tal coisa está ao alcance de outro homem — disse o pai,
friamente.
— Eu pedi que trouxesse sua filha, porque eu gostaria de trazer o nobre
sangue de Perseu para a nossa linhagem — prosseguiu o homem. — Desejo
comprá-la de você, para casamento.
A pulsação de Lore começou a trovejar na sua cabeça. Suas têmporas
latejavam.
O seu pai olhou para Belen, que estava esfregando ranho na frente da
túnica.
— Certamente as crianças são muito jovens para terem os seus futuros
decididos…
— Os nossos destinos são decididos ao nascermos — disse Aristos
Cadmou. — Como você bem sabe.
— Não estou tão certo quanto a isso — respondeu seu pai. — Creio que
escolhemos o que vamos nos tornar.
— Então você se opõe às Moiras? — disse o arconte. — Talvez esse tenha
sido o seu erro todos esses anos. Eu reconheci meu destino quando jovem. Eu
o herdei, junto com o vasto timé e o aclamado kleos de meu pai e senhor.
— E mesmo assim você decidiu o destino do jovem Belen — disse Demos
—, pedindo a mão de minha filha em casamento em nome do seu filho
bastardo.
Houve um silvo de surpresa e um clangor de armas àquele desprezo. Belen
se afastou, e seu rosto ficou vermelho com a raiva que a vergonha trouxera.
Mas quando o arconte dos Cadmídeos falou novamente, silenciou o pai de
Lore.
— Não a quero para Belen — disse ele. — Quero-a para mim mesmo.
Os dedos de Lore ficaram frouxos, e apenas seu reflexo lhe permitiu que
pegasse a garrafa antes que caísse no chão e quebrasse. Ela voltou o olhar
para o pai, implorando em silêncio para irem embora agora, antes que outras
palavras depravadas saíssem dos lábios de cobra do homem.
— Ela tem apenas dez anos — disse seu pai. — Você é meio século mais
velho do que ela… e suas outras esposas…
Um murmúrio baixo passou pelos Cadmídeos. Alguns sibilaram, outros
bateram em seus peitos, mas foi o arconte a quem Lore observou. Uma
expressão trovejante passou pelo rosto dele com a menção de suas seis
esposas; todas partiram para o Mundo Inferior sem dar-lhe um herdeiro
legítimo.
— Eu aguardarei até que ela faça doze anos, como o costume ancião
permite, para me casar com ela, e aguardarei seu primeiro sangue para deitar-
me com ela — disse Aristos Cadmou, sem olhar para Lore. — Ela ficará
comigo até lá, para garantir que seja criada corretamente.
— Não! — vociferou Lore. O pai a segurou, apertando seu ombro
novamente.
— Perdoe-a, ela é muito espirituosa — disse o pai, com um esforço
descomunal. — A sua oferta é… generosa. Contudo, Melora já iniciou o
treinamento com os Aquilídeos.
— Por quê? — perguntou Aristos. — Por que se incomodar, quando você
sempre soube que só há um futuro para ela?
— Não vejo dessa forma — disse seu pai. — Ela é minha herdeira…
— Certamente não — disse Aristos. — Quantas filhas você tem agora,
Perseus? E nenhum filho. Ninguém para passar seu nome adiante. Ela nunca
receberá uma oferta melhor do que a de servir ao arconte dos Cadmídeos.
Você sabe que é verdade.
A fúria cresceu dentro de Lore.
— Seja sensato, Demos. Você tem duas outras filhotinhas para desovar em
outras linhagens — disse Aristos. — Se livre de uma sanguessuga e respirará
com mais facilidade. Pagarei muito bem por ela.
Levou um momento para que Lore percebesse que o fraco som de rosnado
que ouvia estava vindo dela.
O pai, de modo surpreendente, soltou uma risada vazia.
— Você me acha tão tolo — disse ele —, a ponto de não saber o real
motivo de sua oferta?
O cômodo ficou em silêncio novamente. Aristos Cadmou se inclinou para a
frente, apoiando os cotovelos nos joelhos e erguendo uma sobrancelha
desafiadora.
— Isso deve assombrá-lo, assim como assombrou o seu pai e o pai dele —
continuou o pai de Lore —, ter tal herança em sua posse e ela não poder ser
nada além de decoração. Quão pesada ela é em suas mãos? Você consegue
levantá-la sem nenhuma ajuda, como as minhas filhotinhas conseguiriam?
Os olhos do outro homem piscaram, e sua expressão foi ficando sombria.
— E como vai assombrá-lo saber que a herança que perdeu está bem
debaixo dos seus pés, a apenas um andar abaixo — disse Aristos. —
Esperando. Esperando. Esperando, para que tente reavê-la.
Lore viu lampejos vermelhos conforme o calor dentro dela crescia. Eles
estavam falando sobre a égide, o escudo de Zeus carregado por Atena. A
herança que Zeus presenteara à sua linhagem nos primórdios do Ágon, a
herança que os Cadmídeos haviam roubado deles. Ela estava aqui.
— Ela chama por você? — questionou Aristos. — Você é capaz de ouvi-la,
mesmo agora? Ou você ouve o lamento dos seus ancestrais, massacrados
como porcos?
— Eu ouço apenas o desespero na sua voz — disse seu pai, calmamente. —
Mas minhas filhas nunca lhe darão um filho que possa portá-la.
O rosto do arconte passou por entre as sombras no palco enquanto se
levantava.
— Não preciso misturar seu sangue inferior ao meu para usá-la.
— Ela nunca lhe será dada voluntariamente — disse o pai. — Se
morrermos, então ela desaparecerá conosco. Que lástima para você que a
mais teimosa das famílias dos Perseídeos foi a única a sobreviver.
Aristos desceu do tablado lentamente. Os seus braços eram tatuados com
um padrão de pele de cobra, e suas veias grossas protuberaram quando ele os
cruzou.
— É mesmo? Diga-me, garota, o que você deseja?
Lore olhou para o pai e o imitou. Olhou diretamente para frente, se
recusando a fitar o arconte.
— Não posso imaginar que deseje a imundície em que vive agora. Não
gostaria de viver em meio a uma linhagem mais poderosa; de possuir ouro,
joias e seda? — perguntou Aristos.
Seu pai lhe havia dito para que não falasse. Ela sabia que não deveria,
mesmo agora, mas não podia evitar. O orgulho queimou em seu coração.
— Serei uma léaina — disse Lore. — Meu nome será lendário.
As risadas dos Cadmídeos a arranhavam por todos os lados, mas o
sorrisinho pretensioso de Aristos Cadmou era, de alguma forma, pior. Lore
sentiu que todo o seu corpo explodiria em chamas. A mão de seu pai
permaneceu em seu ombro, mas ela não a sentia mais. Não sentia mais nada
além do forte bater de seu coração.
— Você, uma léaina? — disse Aristos. — Tenho muitas delas, como pode
ver. Todas mais corajosas, mais rápidas e mais fortes que você…
Lore soltou um grito que havia acumulado em seus pulmões, batendo a
garrafa contra uma coluna de pedra ao lado dela. O vinho jorrou no chão
como sangue, dando ao ar um odor levemente adocicado enquanto ela
atacava a leoa mais próxima, segurando o gargalo da garrafa quebrada como
se fosse uma adaga. Os olhos delineados de kajal da outra garota se
arregalaram, mas Lore era mais rápida, mais forte…
A mão do seu pai a prendeu pelo pulso, puxando-a para trás antes que o
vidro pudesse perfurar a garganta da garota. Por um momento, Lore não viu
nada além do rosto dele, o horror estampado ali. Seu peito subia e descia com
força, e ela não entendia por que aquilo lhe dava vontade de chorar.
Ele a afastou das leoas e do Cadmídeo que veio na direção dela. Pela
primeira vez na vida, Lore ouviu medo de verdade na voz do pai.
— Por favor — começou ele —, ela é apenas uma criança… não conhece o
próprio temperamento, e não houve a menor intenção de insultá-lo como
anfitrião. Se formos punidos, que seja a mim, que falhei em criá-la melhor.
Os Cadmídeos se aproximaram, diminuindo o espaço entre eles como um
nó. Alguém agarrou a trança de Lore e deu um puxão muito forte. Ela
pressionou o rosto na lombar do pai, agarrando a blusa dele enquanto um
golpe a atingiu entre os ombros.
O pai os afastou dela. Um chicote estalou contra o braço dele, tirando
sangue instantaneamente.
— Parem — sussurrou ela. — Parem…
Foi outro comando que silenciou a sala. Quietude total.
— Saiam.
Os Cadmídeos obedeceram, da maneira como Lore deveria ter obedecido.
Eles trouxeram orgulho ao seu líder quando saíram do restaurante, enquanto
Lore envergonhara o pai. Ela sabia sobre a xenia, sobre como uma visita
deveria se comportar. Ela violara algo sagrado.
Quando o último dos Cadmídeos saiu, Aristos Cadmou começou a circulá-
los. Os seus passos eram lentos e pesados enquanto ele apertava as mãos
juntas atrás do corpo.
— Peço desculpas pela minha filha — disse Demos. — Eu o compensarei
da maneira que achar mais adequada.
— Só há uma coisa que quero — disse Aristos Cadmou. — Por sorte, gosto
de fogo nas minhas mulheres… — disse ele, se inclinando para mais perto —
e do desafio de extingui-lo.
O arconte deslizou um envelope para dentro do bolso da blusa do pai.
— Está é a minha oferta pela garota. Dê-me sua resposta até o fim do Ágon.
Seu pai deu um curto assentir de cabeça, agarrando a mão dela com tanta
força que Lore não tinha escolha a não ser segui-lo até a porta. Ela não ousou
olhar para trás, nem mesmo quando o outro homem falou pela última vez.
— Este é o futuro dela — disse ele. — Não há nada mais para ela em nosso
mundo. Eu me certificarei disso, de um jeito ou de outro.
Algumas das serpentes de Aristos se demoraram do lado de fora. Sibilaram
e cuspiram em Lore e em seu pai quando passaram. A humilhação fez seu
coração e seu pequeno corpo se sentirem doentes, mas não era nada
comparado a saber que ela envergonhara o pai.
Eu nunca vou alcançar o kleos — pensou Lore, com um nó na garganta e os
olhos queimando. — Eu nunca serei nada.
Eles haviam andado por quase vinte minutos quando o pai diminuiu o
ritmo.
Ele não disse nada quando se ajoelhou e a puxou para um forte abraço.
— Desculpe — sussurrou ela, pressionando o rosto contra o ombro do pai.
— Desculpe, papai…
Ele a pegou no colo, apertando-a junto dele, como fazia quando a filha era
menor, e a carregou pelo resto do caminho até em casa.
VINTE E DOIS

A PORTA DO COFRE SE FECHOU.


Atena se voltou para Lore, incandescente de raiva.
— Por quê? — vociferou ela. — Logo agora, que nosso inimigo estava ali,
ao nosso alcance…
Lore deu um jeito de dizer alguma coisa, mesmo que as mãos frias do terror
ainda agarrassem sua garganta, sufocando-a.
— Muito tempo… muitos deles… Castor…
A porta vibrou com um bang ensurdecedor quando algo bateu nela. Atena
ajeitou a postura assim que ouviu o som, controlando o suficiente a raiva para
apenas vociferar:
— Se recuaremos como covardes, faremos isso agora, então.
Lore deu meia-volta, observando a porta chacoalhar. A indecisão a rasgava
por dentro. Elas podiam se impor. Ainda podiam matar Fúria ali e acabar com
esse pesadelo.
Iro gemeu, se remexendo no colo da amiga.
Lore engoliu a bile em sua boca e sentiu seu coração ainda furioso no peito.
Não… o risco era grande demais agora. Era preciso ajudar Castor e levar Iro
para um local seguro.
— Vamos — disse ela à deusa.
As batidas as seguiram pela passagem do subsolo, mesmo depois de Atena
desamassar a segunda porta, colocando-a de volta em seu lugar. Duas batidas,
como as de um coração. Bang bang. Elas abafaram cada pensamento na
mente de Lore, até que ela tivesse certeza de ter ouvido uma mensagem nelas.
Bang bang.
Tarde demais.
Tarde demais.
O celular de Lore vibrou assim que elas alcançaram a sapataria vazia. A
mensagem veio de um número desconhecido, bloqueado pela operadora.
A salvo.
Um momento depois, ela percebeu de quem era. Um alívio caiu sobre si
enquanto enviava uma mensagem de volta: A salvo. Me encontra no
endereço que o Van passou.
— Castor está bem — disse Lore à Atena. A deusa havia se aproximado
devagar até a porta da loja e arrancado um pedaço do papel pardo que a
cobria. Ela observou a rua, procurando por caçadores.
— É uma pena — resmungou Atena. — Agora ele terá que responder a
mim por arruinar a nossa esperança.
Lore ajeitou o peso de Iro. A garota era mais alta que Lore, o que
dificultava bastante a tarefa de carregá-la.
— Não… — disse ela. — Não deu certo dessa vez.
O olhar de Atena foi rapidamente na direção dela. — Por que você fechou a
porta? Sua fé em nosso objetivo vacilou?
Lore balançou a cabeça negativamente.
— Não. É que… nós estávamos expostas demais. Tem uma diferença entre
ter poucas chances de vencer e estar certa da derrota, e somente havia a
última opção.
A expressão da deusa não ficou mais leve, mas se tornou contemplativa
enquanto analisava Lore. Quando falou novamente, suas palavras eram
calmas e medidas.
— Você tem medo dele?
— Não — disse Lore. — Eu…
— Seu medo o alimentará — disse Atena. — Dará prazer a ele. Não lhe
conceda isso. Ele é tão mortal quanto você nesses próximos seis dias. Se você
fraquejar novamente, lembre-se do que ele lhe tirou. Ele pode ser poderoso,
mas você tem retidão. E, caso isso a abandone, lembre-se de que estou ao seu
lado, e eu não a deixarei fracassar.
Lore tentou pensar em uma resposta. Ver Fúria vindo na direção dela,
sabendo que ele a reconheceu, havia sido como uma onda de dúvida
quebrando contra a sua confiança. Não é que ela queria menos a morte dele
em relação a outrora. O que houve foi a repentina e dura percepção de que o
Ágon poderia lhe pedir que fosse ela a responsável pela morte de um homem.
Eu ainda posso me conter — disse ela a si mesma. — Eu não vou matar.
Esse é um fim, não um começo.
— Precisamos encontrar os outros — disse Lore. — A rua está deserta?
— Sim — disse Atena. — Carregarei a garota.
Lore entregou Iro para ela, e Atena adentrou a escuridão.
Lore se demorou por um momento, assimilando a cena, e tentou se lembrar
de como era não sentir medo.

O endereço que Van dera a ela e a Castor antes de se separarem era uma
lavanderia a umas vinte quadras ao norte, em Hell’s Kitchen.
Eles se aproximaram pela porta lateral, deixando o calor das saídas de
ventilação banhá-los. O ar estava tomado pelo cheiro de sabão em pó.
Lore foi ligeiramente ofuscada com as luzes florescentes quando entraram,
mas Atena já havia girado na direção do som de uma voz familiar.
Miles se apoiava em uma mesa no escritório apertado da lavanderia, seu
rosto estava animado enquanto conversava em coreano com uma mulher de
cabelos brancos que estava ali. Mas, quando as avistou, sua expressão se
fechou.
— O que aconteceu? — perguntou ele. — Onde estão os outros? Quem é
essa? Por que vocês se atrasaram?
— Qual pergunta você quer que eu responda primeiro? — indagou Lore,
cansada.
A mulher mais velha suspirou e se levantou da cadeira. Ela desligou o
monitor de seu computador velho, tirou a bolsa da gaveta e disse:
— Vou encerrar por hoje. Fale para o Evander deixar o pagamento no
cofre, dessa vez com notas diferentes.
Ela se afastou, e em questão de segundos as luzes da lavanderia ficaram
mais fracas. Apenas algumas máquinas estavam batendo quando ela saiu e
trancou a porta.
— Veja só você, fazendo amigos aonde quer que vá — disse Lore,
enquanto Atena deixava Iro em uma das cadeiras do escritório. A deusa se
afastou, deixando Lore sentir o pulso de Iro e tentar acordá-la.
— Você não bateu com força demais, não? — perguntou Lore. Iro estava
inconsciente há quase vinte minutos.
— Quem era aquela mulher? — questionou Atena, ignorando a pergunta.
— Era a Sra. Cheong — disse Miles. — Um amor de pessoa. Ela me disse
que eu lembrava seu neto, por causa desse monte de tatuagens. — Ele
respirou fundo e acenou para o corpo inerte de Iro. — Beleza, me contem
quem é essa.
— Iro, dos Odisseídeos — disse Lore. — Filha do Guardião do Amor.
Miles lançou-lhes um olhar aflito.
— Por que eu estou com a sensação de que as coisas não saíram como
planejadas?
— Quer um resumo? — disse Lore, se recostando contra a parede. O seu
corpo estremecia enquanto tentava se recompor do esforço de carregar Iro. —
Fúria está vivo, o Guardião do Amor está morto e Iro pode saber a outra
versão do poema ou onde encontrá-la.
A porta lateral rangeu e abriu novamente. Atena já estava fora do escritório
com a sua dory na garganta do recém-chegado antes que Lore pudesse
respirar.
Van levantou as mãos.
— Todos já voltaram?
Atena abaixou a lança, dando um passo para o lado a fim de permitir que
ele entrasse.
— O falso Apolo ainda está por vir.
Van parecia menos preocupado com esse fato do que Lore. Ele parou na
porta, assimilando a visão de Miles. Os seus lábios estavam contraídos, mas
não disse nada enquanto o estudava.
— Sim, ainda estou vivo — disse Miles, de um jeito sardônico pouco
característico. Ele pegou a mochila preta a seus pés e a empurrou para Van
com um pouco de esforço. Os braços de Van se curvaram levemente com o
peso.
— Seu contato é um verdadeiro cavalheiro — continuou Miles. — Ele só
me chamou de “lixo mundano” duas vezes, mas ainda assim disse que
preferia lidar comigo do que com você.
— Possivelmente porque você não tem a chave da eterna desgraça dele —
disse Van.
— A Sra. Cheong quer o dinheiro dela — lembrou Miles a ele. — E que
você pague com notas variadas. Ela disse que você é um bom parceiro de
negócios, seja lá o que isso quer dizer.
— Quer dizer que eu sei quanto tenho que pagar para garantir que ela se
esqueça de tudo que vê e escuta — disse Van.
Ele abriu a mochila e despejou o conteúdo no chão do escritório apertado.
Lore deu um pulo quando pelo menos três dúzias de bolos de notas de cem e
de vinte dólares atingiram o piso. Ele agarrou o notebook no fundo antes que
caísse junto com o dinheiro.
Lore cobriu um dos bolos com o pé e tentou trazê-lo para perto de si sem
ser notada.
— Boa tentativa — disse Van. — Precisaremos desse dinheiro se quisermos
sobreviver essa semana. — Ele pegou dois bolos e se voltou para o cofre
perto da mesa, onde os depositou. — Correu tudo bem lá?
— Tudo, só notei alguns olhares estranhos quando eu insisti em uma sala
específica do karaokê e depois não fiquei lá depois de cantar só uma música
da Whitney Houston — disse Miles.
Havia uma faísca de algo nas suas palavras — uma alegria, como uma
criança que havia acabado de se safar depois de burlar as regras pela primeira
vez. Seus olhos brilhavam quase febris com aquela lembrança, e suas
bochechas estavam coradas, do jeito que sempre ficavam quando ele se
animava.
As mãos de Van repousaram em cima da pilha de dinheiro. Seu tom foi
ficando acusatório.
— Tem quase trezentos dólares faltando. Você comprou alguma coisa na
sua aventura?
— Claro, eu parei para me mimar com uma refeição cara — retrucou Miles.
— Não sou ladrão. Ele tinha outra informação, mas queria mais dinheiro por
ela.
— E você deu a ele? — vociferou Van. — Sem ao menos ver comigo se
podia? Ele provavelmente vendeu uma mentira…
— Tudo o que você conseguiu foi a confirmação de que os Cadmídeos
compraram uma nova propriedade no Central Park South, e que fizeram a
aquisição por meio de uma empresa fantasma — disse Miles. — O que eu
consegui descobrir foi que o novo Dionísio, o Folião, era aliado de Fúria e
vinha trabalhando com ele e os Cadmídeos desde o último Ágon. Ele fugiu
no começo da caçada desse ano e não voltou mais. Fúria também está atrás
dele.
Lore abriu ligeiramente a boca. Mesmo Atena parecia ligeiramente
desconcertada com a ideia.
— Então, me diz aí, qual informação é mais valiosa para a gente agora? —
disse Miles, triunfante.
Van se levantou, mas Miles não recuou, nem mesmo para fugir do olhar
furioso de Van.
— Isso não é um jogo — disse Van. — Não há nada a se ganhar e nenhuma
regra para proteger você.
— Eu sei disso — disse Miles. Mas Lore conhecia o amigo, e ela
reconheceu o olhar de entusiasmo e triunfo que levantava seu humor.
Van estava certo. Miles estava gostando demais daquilo.
A porta lateral se abriu de novo, dessa vez com mais força.
Castor — pensou Lore, passando espremida por Atena.
Ele encostou a mão contra a parede e se inclinou para a frente, e a exaustão
desabava sobre seu rosto.
Lore foi até ele, se abaixando para tentar olhá-lo nos olhos. Fora um corte
na linha forte da maçã esquerda de seu rosto, ele parecia estar bem. A tensão
no rosto dele diminuiu quando a viu.
— Você está bem? — perguntou ela. — O que aconteceu?
Castor limpou o suor do rosto no ombro, mas sua blusa já estava colada em
cada linha do seu peito e braços.
— Demorei mais para despistá-los do que…
Ele se endireitou de repente, segurando o cotovelo da amiga. O movimento
ligeiro sacudiu o ombro de Lore, enviando uma onda de dor por ele. Sangue
quente escorreu em sua testa, e ela oscilou, se sentindo repentinamente aérea.
Castor rasgou uma sacola de roupas que estava esperando ali perto para ser
entregue e fuçou por entre as peças até encontrar uma toalha.
— Como isso aconteceu?
— Ataquei quando era para ter desviado — disse Lore, com dificuldade,
tentando se concentrar no rosto dele.
— O que… Ah, não… — Miles começou a regurgitar quando viu a toalha
manchada de sangue.
— Ela está…
— Cure-a, impostor — ordenou Atena.
— Não — disse Lore, se afastando. — Iro primeiro. Iro. Ela… ela precisa
acordar.
— Não vou ficar assistindo enquanto você sangra bravamente até a morte
— disse Castor, exasperado.
Ela pressionou a toalha no seu ombro, dando mais um passo para fora do
alcance dele.
— Iro primeiro.
Castor passou por Atena e foi até o escritório. Lore não se juntou a eles até
que a luz do poder de Castor se infiltrasse no corredor escuro. Ele trabalhou
rapidamente, assentindo enquanto Miles repetia o que havia descoberto do
informante Cadmídeo.
— Precisamos sair daqui o mais rápido possível — disse Van. — Se Fúria e
os Cadmídeos ainda estão nos seguindo, não devem estar muito longe.
— Podemos tirar um segundo para descansar e pensar no nosso próximo
passo — disse Lore.
— Vamos começar com o que teria assustado o Folião o bastante para
quebrar uma aliança com Fúria — disse Castor. Ele segurava gentilmente a
parte de trás da cabeça de Iro, mas a garota não demonstrou sinais de que
acordaria, mesmo enquanto ele a curava.
— A morte de Hermes — disse Van.
Castor suspirou.
— Isso o assustaria.
— Por quê? — perguntou Miles.
— Eles foram amantes por décadas — explicou Lore, descansando o ombro
são no batente da porta. — Tiveram esse caso no intervalo entre as caçadas,
se curtindo em festas, viajando o mundo, visitando velhas relíquias do mundo
antigo nos museus. Supostamente, eles conseguiram roubar algumas de volta.
— Ela olhou para Atena. — Você disse que não tinha conseguido sentir a
presença de Hermes nesses últimos anos, acha que tem a ver com isso?
— Hermes nunca concordaria em formar uma aliança com o falso Ares —
disse Atena. — Acho mais provável que a escolha do falso Dionísio de se
aliar tenha criado uma brecha entre eles, e Hermes teve que buscar abrigo
fora dos esconderijos habituais.
— Não o ajudou muito, no fim das contas — disse Lore. — Bom,
independentemente do que tenha acontecido entre os dois pombinhos, se
Fúria está procurando pelo Folião, temos que encontrá-lo primeiro. Acho que
podemos reformular nosso último plano e repetir a armadilha.
— De fato — disse Atena, já tendo pensado nisso. — O Ares impostor não
permitirá que ele viva depois da sua traição.
— Isso só se ele concordar em nos ajudar — disse Van.
— Ele não precisa participar voluntariamente — disse Atena. — E não
precisa saber que estamos lá até que o falso Ares chegue e a armadilha seja
ativada.
— Estamos supondo que Fúria ainda não percebeu o que estamos tentando
fazer — destacou Castor —, e que ele não vai prever isso.
— Não… — disse Lore, lentamente. — Não acho que ele vá perceber. Não
isso. Ele pode saber que estamos indo atrás dele, mas não tem ideia de que a
gente sabe sobre o Folião quebrando a aliança deles. Nem mesmo Van soube
sobre eles serem aliados, e ele aparentemente tem fontes em todo lugar.
O Mensageiro parecia indignado por ser lembrado do fato.
— Beleza — disse Miles —, mas como vamos encontrar o Folião primeiro,
se Fúria provavelmente tem centenas de caçadores procurando por ele?
Castor voltou a fitar Van, parecendo indagar algo. Van não disse nada,
apenas balançou a cabeça negativamente em resposta.
— Do que vocês sabem e eu não? — perguntou Lore, olhando para ambos.
A toalha estava ficando pesada, assim como sua cabeça. Ela precisou
encostar a têmpora contra o batente da porta para se manter na vertical.
— Não seria mais rápido? — perguntou Castor a ele.
— Levaria uma eternidade — respondeu Van. — Chegaríamos tarde
demais.
Ele arrastou a mochila até Castor, tirando o notebook de dentro dela. Em
vez de conectá-lo na tomada ou ligá-lo, usou uma pequena chave de fenda
para remover o fundo.
Miles e Lore se inclinaram para a frente, intrigados, enquanto ele removia
um pequeno dispositivo prateado de debaixo da bateria. Ele o conectou na
base do último celular descartável de Castor.
— Esta é uma cópia do programa de rastreamento dos Cadmídeos. —
explicou Van, esperando o programa carregar. — Eles o usam para registrar
quando outras linhagens e deuses são avistados. Vou ver se postaram alguma
coisa sobre o Folião, mas não posso ficar logado por muito tempo sem que o
Mensageiro deles ou outra pessoa perceba.
— O que mais você sabe sobre o falso Dionísio? — perguntou Atena.
— Quase nada além do que todo mundo já sabe — disse Van. — Ele
ascendeu há pouco mais de cem anos. Ele era conhecido como Iason
Heracliou na sua vida mortal, filho do arconte Iason, o Ancião. Ele
assassinou a família inteira quando ascendeu e destruiu todos os registros
deles para aumentar a dificuldade de caçá-lo.
Miles parecia genuinamente chocado.
— Todos eles? Todo mundo na família?
— Todos eles — confirmou Lore. — O Expurgo dos Heraclídeos continua
sendo uma coisa horrível.
— E ainda assim totalmente dentro do esperado da natureza brutal daquela
linhagem — destacou Van. — Eles celebravam todas as piores características
dos seus ancestrais. É incrível que tenham sobrevivido por tanto tempo.
— Ele está há bastante tempo sendo um novo deus — percebeu Castor. —
Acho que não ter mais uma linhagem para puni-lo por ser um assassino de
parentes ajudou.
— Além disso, ele tem sido o Dionísio menos empreendedor que já vimos,
o que quer dizer que não conseguimos rastreá-lo por meio dos negócios —
disse Van. — Nenhum vinhedo, nem nenhuma droga, nenhuma seita,
religiosa ou não… não consigo prever como ele vai reagir à gente, mas
precisamos estar preparados para tudo. Não esqueçam que o poder dele pode
induzir uma sensação de entorpecimento e frenesi. Ele é conhecido por lançar
ilusões na mente dos caçadores para poder fugir.
— Você tem uma foto dele, Van? — perguntou Lore. — Eu nunca o vi.
Enquanto o programa dos Cadmídeos carregava no celular descartável, Van
voltou a atenção para o próprio celular e, após um momento, abriu uma foto
de baixa resolução de um recorte de jornal velho. Ela mostrava um homem
com uma mão enfiada no colete por baixo do terno antiquado. Seu rosto
redondo estava parcialmente escondido debaixo de um magnífico bigode
enquanto ele posava, com expressão séria, entre duas pistas de boliche.
— Isso é um homem ou um pug bigodudo de terno? — perguntou Miles,
cuidadosamente.
Van deu uma risada alta, para a surpresa de Lore, e até mesmo, ao que
pareceu, do próprio Van. Ele se recuperou rapidamente, contraindo os lábios
como se para apagar completamente o sorriso.
— Há rumores de que ele foi arquiteto — disse Van. — Já ouvi também
que ele morava aqui, na cidade, mas não tem nada que fundamente isso.
Como eu disse, não sabemos quase nada.
— Bom, nós sabemos de uma outra coisa — disse Miles. — Ele está em pé
no Frick.
Lore estava tão concentrada em tentar analisar o rosto do homem que mal
prestou atenção no cômodo ao redor dele.
— No quê?
— Na Coleção Frick. — repetiu Miles. Seus olhos se arregalaram e seu
rosto acendeu em deleite quando percebeu o olhar de surpresa de Van. —
Você não conhecia? Sério?
— Inteligente — disse Atena. — Mais uma vez, o conhecimento do mortal
sobre esta cidade ultrapassa de longe o que o resto de vocês traz à mesa.
— Como pode ter certeza? — perguntou Van, com um tom ríspido.
— A pista de boliche; esses arcos, o teto com padrões de hexágono — disse
Miles, tentando não se gabar demais. Van parecia realmente perdido
enquanto dava zoom no teto da imagem. — É o Frick. Costumava ser uma
mansão antiga que pertenceu a um tal de Sr. Frick, que usava os infinitos
montes de grana que ganhava como empresário industrial para comprar arte.
Eles transformaram a mansão em um museu depois da morte dele. O boliche
fica no porão. Aposto que é lá, e se for verdade que o Folião era arquiteto, eu
não ficaria surpreso de ele ter trabalhado lá.
— Como diabos você sabe disso tudo? — perguntou Lore.
— Você saberia também, se tivesse vindo comigo quando te convidei no
mês passado — disse Miles, incisivamente. — Eu consegui ingressos de
graça no estágio, lembra? Você disse, com todas as letras: “Nova-iorquinos
legítimos não ficam turistando.”
— Eu nem falo desse jeito aí — disse Lore, indignada.
— Você fala exatamente assim — disse Castor. — É a sua cara isso de
“Nova-iorquinos legítimos não tostam o bagel”.
Lore estava horrorizada.
— Só um monstro faria isso.
— Isso não significa nada — interrompeu Van. — Só porque ele foi
fotografado no local há cem anos não significa que a informação é relevante
para a gente hoje.
— É tudo relevante — disse Atena. — Pois é bem próximo de onde o
Despertar aconteceu e um local familiar a ele.
— Então seria um lugar seguro para se esconder — concluiu Lore. — Ele
pode não estar mais no local, mas vale a pena investigar.
— Ah, eu nem contei a melhor parte — disse Miles, pausando para um
efeito dramático.
Lore o fitou. Ele sorriu.
— O lugar fechou para reformas há duas semanas — concluiu ele. — O
museu não abre de novo até janeiro.
— Caramba — disse Lore. — Acho que devemos começar procurando lá.
— Concordo — disse Miles.
— Eu ainda vou ficar de olho no programa dos Cadmídeos — disse Van,
categoricamente. — Não podemos apostar em um palpite.
— Boa — disse Castor —, e enquanto você faz isso… — Ele soltou a mão
de Iro com cuidado. — Ela deve acordar em alguns minutos.
Ele se voltou para Lore com sobrancelhas erguidas. A jovem pressionou a
toalha no ombro ferido e, só para fazer Castor se sentir melhor, permitiu que
ele a ajudasse a seguir pelo corredor, até o precário banheiro de funcionários.
— Sejam rápidos — disse Van a eles. — Temos uns dez minutos antes de
termos que sair daqui.
Isso — pensou Lore — se Fúria não nos encontrar primeiro.
VINTE E TRÊS

LORE QUASE SE ESQUECEU DE COMO ERA SER CUIDADA POR OUTRA PESSOA.
Ela tomou conta de Gil por anos e se acostumou a assumir esse papel. A
estranheza de ser cuidada — a relutância que sentiu — a fez se lembrar de
algo que Gil dissera a ela três anos atrás, na noite em que se encontraram.
Lore havia perambulado dia e noite depois de deixar a propriedade dos
Odisseídeos, tentando chegar a Marselha e começar a pedir esmolas para
viajar de volta aos Estados Unidos e fazer uma vida nova. Aqui, seus
documentos falsificados pelo menos lhe dariam algumas escolhas de escola e
de um recomeço. Gil, à época com 87 anos, foi assaltado na periferia da
cidade, e ela o achou brutalmente espancado, com um braço e uma perna
quebrados. Ele estava rouco de tanto chamar uma ajuda que não veio.
Lore ficou abismada, e apesar do próprio medo e cansaço, ela carregou Gil
nas costas até o hospital mais próximo e sentiu-se compelida a ficar lá com
ele, não tinha intenção de deixar aquele homem vulnerável sozinho. Ela
fingiu ser sua neta para cadastrá-lo e ouviu quando ele falou sobre si mesmo
— um professor solteiro da cidade de Nova York, e ele sabia que essa seria
sua última viagem para o exterior. Quando o médico suturou as feridas de Gil
e tratou do corte em sua face, a ideia havia se formado completamente na
cabeça de Lore.
Gil não fazia parte do mundo dela, e estava sozinho no seu. O que Lore
propusera foram apenas negócios: ela viajaria para Nova York com ele e
trabalharia como cuidadora até que ele não precisasse mais de cadeira de
rodas. Ele ruminou essa ideia com uma relutância tão óbvia que Lore havia se
preparado para o desapontamento. Enquanto esperavam que lhe dessem alta,
Lore indagou o que o fizera mudar de ideia. Ele respondeu:
— Às vezes, a coisa mais corajosa a se fazer é aceitar ajuda quando todo
mundo faz você pensar que não precisa dela.
Lore guardou aquelas palavras no coração, usando-as para afastar o último
resquício de relutância quando Castor a levou para o banheiro sujo da
lavanderia.
Ele teve que se abaixar devido ao teto baixo. Os pensamentos de Lore
foram diminuindo e se aquecendo enquanto observava seu pomo de Adão e a
incerteza de suas mãos sobre em que ponto dos quadris dela deveriam se
apoiar enquanto a davam apoio.
Ele é lindo demais — pensou ela. Não apenas pelo que havia se tornado,
mas de um jeito que era inegavelmente único.
Em um movimento rápido, ele a ergueu para que se sentasse na borda
estreita da bancada que cercava a pia. Como em muitos banheiros na cidade,
aquele beirava ao inóspito, muito provavelmente para desencorajar as pessoas
a passarem muito tempo nele.
— Que homão, hein — disse ela.
Ele a lançou um olhar desconfiado enquanto tirava a toalha das mãos dela e
a deixava cair no chão. Cuidadosamente, sem incomodar com o ferimento,
ele puxou o colarinho da blusa dela para poder ver melhor.
— Foco na lesão, ok?
A concentração dele era repleta de seriedade e ansiedade. Remetia Lore à
época em que eram mais novos, à maneira silenciosa com que o amigo a
observava depois de treinarem, como se precisasse ter certeza de que ela
estava bem.
— Calma, crush. Só feriu meu ego, mesmo — informou ela. — Fui idiota,
só isso.
Ele balançou a cabeça negativamente.
— Eu juro, você é a única pessoa que eu conheço que ficaria discutindo
numa hora dessas.
— Isso é porque, diferente de você, eu sou multitarefas — disse ela, com
uma piscadela. — Qual é o prognóstico, doutor? Eu vou sobreviver?
Subitamente, ela percebeu que aquilo soaria mal.
— Desculpe… Cas, desculpe. Eu e minha boca grande.
Ele pareceu ignorar o comentário, mas Lore podia dizer que o amigo foi
parcialmente afetado por ele.
— Posso rasgar a blusa para que ela não me atrapalhe?
Ela assentiu com a cabeça, se encolhendo enquanto ele rasgava
cuidadosamente o tecido do colarinho até a manga. Foi só então que ela viu
toda a extensão do ferimento profundo e irregular. Vários pedacinhos de
vidro estavam cravados no músculo, e Lore, que já vira muitos ferimentos em
sua curta vida, ficou com o estômago embrulhado ao fitar o seu.
A alça de seu sutiã estava sobre ele, presa na casca de uma das feridas mais
superficiais. Os dedos de Castor hesitaram sobre a alça, e eram quentes sobre
a pele lisa. O sangramento havia diminuído, mas o frio que ela sentiu se
acumular debaixo da pele estava se aprofundando.
Ela assentiu com a cabeça, engolindo a seco. Ele cortou a alça, observando
a face de Lore o tempo todo.
— Não está doendo mais — disse ela. — Isso é um bom sinal, certo?
— Isso é o oposto de bom sinal — disse Castor, com a voz firme. — Quem
deu o golpe?
— Por que quer saber? Vai me vingar? — indagou ela, e tentou olhar para
baixo para ver o ferimento. — Está tão ruim assim? Não parece estar.
— Eu acho que você está em choque — disse ele. — Quem foi? Eu perdi
você de vista quando a poeira e a fumaça aumentaram.
— Eu não sei — disse Lore.
Em um movimento breve, Castor pegou o maior dos cacos de vidro e o
arrancou. A dor era tão escaldante que Lore não conseguia respirar fundo o
suficiente para gritar, mesmo enquanto ele removia os cacos que restavam.
Mas, então, a mão dele estava ali, pressionando firmemente o sangue que
escorria do ferimento. Lore sentiu calor, uma queimadura aguda que se
desfazia em um calor anestesiante.
— Filho da… — conseguiu pôr para fora.
— Não diga nada — disse Castor. — Tente apenas respirar.
— Você podia… ter me avisado… — disse ela.
— Você teria contraído o músculo e seria mais difícil tirar o vidro — disse
Castor. — Parece que eu ainda me lembro de algumas coisas que a
curandeira Kallias me ensinou.
Ela sabia que ele estava certo, mas isso não queria dizer que Lore não
ficaria chateada com aquilo por um tempinho.
— Apenas respire — disse ele.
E assim o fez. E a cada respiração ela sentia o poder de Castor reparando a
pele rasgada. A energia dele tinha um efeito quase entorpecente. Envolvia-se
ao redor de seu corpo e mente, embalando-a com leveza.
Castor pegou a mão dela. Lore fechou os olhos e encostou a cabeça contra o
espelho atrás de si. Segurou-se no amigo, querendo ficar naquele momento,
querendo se apoiar em alguma coisa real antes que os poderes dele deixassem
sua mente leve.
— Fui eu? — perguntou ele, baixinho. — Fui eu que fiz isso com você?
Lore se forçou a abrir os olhos. O dourado nas íris dele rodopiava, brilhante
na escuridão do banheiro sujo.
— Fui eu, por não conseguir controlar a minha força? — perguntou ele
novamente.
— Não — disse ela. — Foi um dos Cadmídeos.
Castor não parecia estar convencido. Ela apertou a mão do amigo
novamente, a puxando até que ele a fitasse.
— É uma habilidade nova — disse ela. — Assim como qualquer outra,
você precisa treinar para dominá-la, certo?
O polegar dele começou a acariciar distraidamente toda a clavícula de Lore
enquanto a curava, deixando um rastro quente e brilhante na pele. Ela se
inclinou na direção do toque.
— Queria que fosse fácil assim — disse ele —, e que eu pudesse explicar
isso melhor, mas… desde que recuperei minha forma física, é como se eu não
conseguisse recuperar totalmente meu equilíbrio. Tem uma desconexão entre
o que a minha mente espera e o que o meu corpo realmente faz.
— Por que você não me falou isso antes? — perguntou Lore.
— Você me confunde — disse ele simplesmente. — Sempre foi assim. Eu
quero contar tudo para você, mas tem uma parte de mim que ainda tem medo
de parecer fraco.
Lore agarrou o pulso dele.
— Eu nunca achei você fraco.
— Eu sei — disse ele. — Mas eu era fraco, por um bom tempo, e não por
culpa de nada nem de ninguém. Era só o meu corpo. Forte ou fraco… Eu
odiava termos que ser ou um ou outro. Eu queria ser definido pela vida que
eu tive.
A vida que ele teve. A vida que seria interrompida impiedosamente cedo
demais, não fosse pela ascensão. Ela podia quase sentir a história que ele
estava guardando. A forma como se agitava debaixo da sua pele, como se
estivesse desesperada para ser contada.
— Cas — disse ela suavemente —, como você matou Apolo?
O pomo de Adão dele subiu e desceu quando ele engoliu em seco. Ele
parecia refletir sobre algo, e Lore quase desejou não ter perguntado. De todas
as coisas que havia mudado entre eles, ela não tinha certeza se poderia lidar
pela primeira vez com uma mentira dele.
— Eu não sei.
Lore ergueu o olhar.
— O quê?
Castor olhou para a porta, como se estivesse preocupado de alguém estar
ouvindo.
— Eu não sei. Não tenho nenhuma memória do que aconteceu.
Ela abriu a boca, depois a fechou.
— Eu sei — disse ele, tenso. — Não havia câmeras no meu quarto. Van me
disse que as outras câmeras de segurança pararam de funcionar quando Apolo
entrou na Casa Tétis. Eu estava sozinho quando aconteceu.
— Van sabe? — perguntou Lore. Ela não tinha motivo nenhuma para se
sentir magoada com a revelação, mas estava.
— Ele não sabe sobre a perda de memória — disse Castor. — Eu sei que
ele vem tentando descobrir sozinho. É que…
— Por isso que você estava tentando falar com Ártemis? — disse Lore,
finalmente ligando os pontos. — Você acha que ela pode saber?
Ele assentiu.
— Eu não sei como era a conexão deles ou se ela viu o que aconteceu.
Atena não parece saber. Ártemis teria contado a ela se tivesse testemunhado a
morte de Apolo?
— Ártemis tentou esfaqueá-la depois de uns cinco minutos que o Ágon
começou, então, no caso, não vamos contar com o amor fraterno — disse
Lore.
Castor deu um sorriso pequeno e efêmero. Lore pegou a mão livre do rapaz
e a apertou.
— Eu preciso descobrir — disse ele. — Eu preciso. Eu não posso… Isso
tem que ter acontecido por alguma razão. Ter esse poder precisa significar
alguma coisa.
Lore sentiu algo no seu peito se partir com o desespero silencioso nas
palavras dele.
— Eu não acredito nas Moiras, mas acredito em você — disse Lore. — O
que quer que tenha acontecido, foi porque você era você. Nós vamos
descobrir o que houve, eu prometo. Pode me cobrar.
Castor assentiu.
O calor desapareceu do toque dele quando terminou de curá-la, mas ele não
se afastou, nem Lore. Ele umedeceu uma toalhinha de rosto e começou a
limpar o sangue da nova pele corada de sua amiga com uma ternura que
quase partiu o coração dela. Lore abriu as pernas, deixando-o se aproximar
mais, e fechou os olhos.
— Você está bem? — perguntou ele. — De verdade?
Os longos dedos do novo deus subiram pela curvatura do ombro de Lore,
tocando-a levemente, vindo envolver a sua outra bochecha, para acariciar a
sua velha e longa cicatriz. Os tensos músculos de seu pescoço relaxaram
quando ele acariciou a área onde a base da cabeça se encontrava com a
coluna.
— Eu o vi — murmurou Lore. — Eu disse a mim mesma que eu nunca
voltaria para este mundo… que eu nunca deixaria que ele forçasse a minha
mão ou me fizesse querer matar. Eu pensei que podia voltar de mãos limpas
se Atena fizesse o trabalho sujo, mas… Eu não sei se eu consigo fazer isso,
ficar com um pé no ringue e outro fora.
— Você pode — disse Castor. — Não deixe que puxem você de volta. Não
há nada além de sombras aqui.
Lore sabia exatamente quão fácil era se perder naquela escuridão. E
precisar dela.
Até mesmo agora, conseguia imaginar as suas mãos envoltas no pescoço de
Fúria, sufocando-o até que as faíscas de poder sumissem dos olhos dele — ou
sua espada brilhando enquanto ela a mergulhava no peito dele repetidas
vezes. Mas não se sentia enojada com a ideia.
Apenas ansiava ainda mais por isso.
Lore se inclinou para a frente, apoiando-se no peito de Castor, ouvindo a
poderosa batida do seu coração mortal.
— Eu costumava acreditar nesse mundo — disse Lore. — Eu costumava
querer muito tudo que ele prometia.
— Eu sei — disse Castor. — Mas nunca pensei que você venceria o Ágon.
Pensei que o destruiria.
Lore ergueu o olhar com as palavras dele, e suas sobrancelhas também,
confusa. Mas antes que pudesse perguntar, uma batida quebrou o silêncio,
seguida por um grito feroz.
Iro finalmente acordara.
VINTE E QUATRO

QUANDO LORE CHEGOU NO ESCRITÓRIO, IRO ESTAVA PRENDENDO MILES PELO


pescoço com um braço, e tinha a ponta afiada de um abridor de cartas
pressionada contra a jugular do rapaz.
Van estava com as mãos erguidas, falando em um tom baixo e pacificador
enquanto a garota arrastava Miles em direção à porta. Atena assistia do canto
do escritório com os braços cruzados sobre o peito. Ela parecia entretida, mas
sua dory estava ao alcance.
— Não! — disse Lore, tirando a arma da mão de Iro e dando a Miles um
momento para cair e rastejar para longe. — Iro, me escute…
Ela tentou prender os braços da garota junto ao corpo, mas Iro sempre foi
mais rápida e com instintos mais aguçados. Lore não notou nenhuma
racionalidade no rosto da garota quando ela agarrou um dos pesados fichários
da estante e o atirou na direção de Castor.
Ele se esquivou, deixando o fichário atingir a parede atrás dele. Ele se
voltou para Lore com os olhos alarmados, sem saber o que fazer.
Ao ver Lore, Iro avançou, não para atacá-la, mas para protegê-la dos outros;
— Saia daqui, Melora!
— Ei! — vociferou Miles. — Isso era da Sra. Cheong!
As palavras pegaram Iro desprevenida. Ela se voltou para ele.
— Eu… o quê?
Lore afugentou a perplexidade que sentiu ao perceber que Iro a protegia e
conseguiu segurar a garota em seus braços antes que ela pudesse se recuperar.
— Me solte! Você precisa sair daqui! — disse Iro, por entre dentes
cerrados, fazendo força e se debatendo para se soltar de Lore. Seu fraco
sotaque francês nunca ficava tão forte quanto nos raros momentos em que ela
levantava a voz.
— Pare — disse Lore, forçando as duas para o chão com uma queda brusca
— com isso! Ninguém vai para lugar nenhum. Você está segura aqui… eu
estou segura aqui.
— Iro — disse Van, se agachando ao lado delas. —, esse é Castor Aquileu.
Assim como Atena, ele está trabalhando com a gente para tentar matar Fúria.
Ele usou o poder para ajudar você a escapar. E não vai machucá-la. Nenhum
de nós vai.
Iro se livrou de Lore, se levantando para poder encará-la. Seu manto preto
de caçadora estava torto, revelando o fino colete à prova de balas que ainda
usava por baixo deles. Pareceu levar um momento para que ela entendesse o
que Van lhe dissera.
— Castor Aquileu está morto. Você mesma me contou… ou mentiu sobre
isso também?
— Isso foi o que o seu pessoal me contou — relembrou Lore, se levantando
do chão. Ela pensou que fosse vomitar com a lembrança; o puro prazer no
rosto do arconte da Casa de Odisseu enquanto se aproximava para lhe dizer:
Menos um Aquileu no mundo.
— Você sabe o que aconteceu com os Aquilídeos — disse Van. —
Qualquer um que esteja contra Fúria precisa se unir, senão ele vai acabar com
todos nós.
— Esse não é o Castor. — disparou Iro. — Esse não é o seu amigo.
— Sim, é ele — disse Lore, vindo ficar ao lado dele. — Ele é o Castor, do
mesmo jeito que o Guardião do Amor era o seu pai.
— Ele… ele não era… — disse Iro, sem conseguir achar as palavras certas.
— Ele é… ele era… o meu senhor. Nosso protetor. Ele…
— Ele era seu pai. — repetiu Lore.
Ele havia sido o arconte dos Odisseídeos por anos antes de ascender para se
tornar o novo Afrodite no último ciclo do Ágon. Lore chegou à família
depois e não estava presente quando o novo deus manifestou uma forma
física e apareceu para eles.
Pelas histórias que ouviu de Iro e de outros membros da família, ele era
severo, mas não um pai totalmente desprovido de amor pela única filha.
O problema sempre foi a determinação da linhagem em favorecer a lógica
acima de todo o resto, incluindo sentimentos. Mas Iro não era assim, não
sempre. Lore a encontrou apenas uma vez antes de buscar asilo com os
Odisseídeos, mas Iro sempre a tratou como se a conhecesse desde bebê,
assumindo o papel de irmã mais velha, mesmo que Lore tivesse quase um
ano de idade a mais que ela.
Nas primeiras semanas de Lore na propriedade dos Odisseídeos, ela ficou
tão chocada com o assassinato da sua família que somente se manteve viva
porque Iro a forçava gentilmente a isso. Ela a fazia comer, ficava acordada
conversando depois de Lore acordar gritando por causa de pesadelos e
deixava Lore segui-la dia após dia. Não era a força e a habilidade de Iro como
lutadora que Lore admirava, apesar de respeitá-las. Era sua compaixão dentro
de uma linhagem que se esforça para não ser assim.
— Ela não vai entender — disse Castor. — Não quer entender.
— Você não sabe nada sobre o que eu penso — vociferou Iro, fervendo de
raiva. — Venha para mais perto para ver como eu entendo o que você é,
assassino de Apolo. Me diga, você se sentiu inteligente quando montou a
armadilha para ele? Quando o matou de longe como um covarde e roubou o
poder que era devido ao seu arconte?
Todos na sala pareceram se voltar para Castor de uma vez só, cujo rosto
mudava como o céu ao nascer do sol. A perplexidade se tornou negação e,
depois, desespero.
— Quem lhe contou isso? — indagou ele, em tom imperativo. — Quem?
Iro parecia se sentir vitoriosa.
— Então, é verdade. Não houve honra na sua ascensão.
— Isso é… — começou Lore, e suas palavras diminuíam enquanto olhava
para os dois. Para o ódio absoluto de Iro e para a repentina incerteza de
Castor. — Isso é impossível. Castor estava confinado na cama nessa época.
O novo deus soltou o ar com força, e suas mãos se fecharam com a
lembrança.
— Você fala baseada em rumores — disse Van. — Os Odisseídeos sempre
propagam ofensas e mentiras para se sentirem melhor com os próprios
fracassos.
— Se ela não diz a verdade — disse Atena a Castor —, então diga-a você.
— Eu não tenho que lhe dizer nada — disse Castor. — Os Odisseídeos
podem distorcer a verdade o quanto quiserem. Eu nunca tive honra alguma e
não posso começar a me importar com isso agora.
— Você pode não se importar — disse Iro, alternando o olhar entre os dois
deuses. — Mas eu vou fazer o que Melora não conseguiu. Vou garantir que a
Casa de Odisseu traga a morte a vocês e retomarei o kleos roubado do meu
senhor em morte.
Atena bufou, mas os pulmões de Lore se fecharam com as palavras de Iro.
Ela se ouviu nelas.
Ouviu os seus pais e os seus instrutores. Ouviu as frases dos textos antigos
que leu de novo e de novo. Nem mesmo a lógica apagaria dezessete anos de
um cuidadoso condicionamento psicológico.
— Você tem os olhos dele — disse Atena, neutra.
— Não fale do meu… de Guardião do Amor — alertou Iro.
— Não estou falando dele — disse Atena —, mas do homem de muitos
estratagemas.
Sucedeu-se um longo período de silêncio.
— Estamos tentando matar Fúria — disse Lore, finalmente repetindo as
palavras que Van dissera antes. — Ninguém vai machucar você. Nós fomos
até a Casa Ítaca hoje na esperança de conseguir uma trégua com o seu pai e
com os Odisseídeos antes de eles atacarem. Chegamos tarde demais.
Os tendões no pescoço de Iro se destacavam com a respiração acelerada.
— Os Odisseídeos no ônibus estão seguros — disse Van. — Consegui tirá-
los de lá, o que foi algo que não pude fazer pela maior parte da minha própria
linhagem. Nosso arconte está morto, e ninguém está disposto a tomar o lugar
dele. Pelo menos você está viva para servir à sua linhagem.
— Eu não posso ser arconte — disse Iro, rispidamente.
— Por que não? — indagou Lore.
— Nenhuma mulher se tornará arconte de uma linhagem antiga. Mas se os
outros estão vivos, então… Eu irei até eles.
Iro suavizou sua postura rígida. Pela primeira vez, Lore sentiu algo que
remetia a uma abertura.
— Precisamos saber o que você contou para Fúria — disse Lore. — Foi
sobre o poema da origem? Uma versão alternativa dele?
Iro se levantou, com os pés enraizados no chão, mãos fechadas em punho.
Querendo correr, querendo lutar, mas presa ali pela sua mente.
— Você me conta se estivermos sozinhas? — perguntou Lore.
— Só nós duas? — hesitou a outra garota, e nada doía mais em Lore do que
aquilo.
— Nós costumávamos conversar sempre — disse Lore suavemente. —
Agora você me odeia tanto assim?
Iro ficou pálida.
— Eu não odeio você.
O celular de Van apitou, cortando a tensão. Os seus olhos escuros fitaram
Iro, piscando repetidamente, antes que ele dissesse, cuidadosamente:
— Não apareceu ninguém ainda. Mas tem uma classificação nova que pode
te interessar, Lore.
Ele virou o celular para que Lore visse o que estava na tela.
— Mas o quê? — Ela pegou o celular da mão dele, incrédula.
Melora Perseus aparecia na lista bem abaixo do nome do Folião, mas antes
do de Castor. Quando ela clicou nele, o mapa de Manhattan se acendeu com
marcadores brilhantes que destacavam supostos locais em que a viram.
Alguns eram assustadoramente precisos — próximos ao restaurante que
sediou o ringue de luta, fora da Casa Tétis, mas outros eram espalhados pelo
sul de Manhattan, em locais onde ela nunca esteve.
Lore pressionou a mão livre contra os jeans, tentando esconder como ela
estava suada. O chiado aumentava em seus ouvidos novamente. Ela tentou
falar, mas nenhuma palavra saiu de sua boca.
— Somente Fúria teria ordenado algo assim — acrescentou Van. — Ele
deve ter um número grande de caçadores procurando por você, já que estão
revirando tantas pistas.
Lore se forçou a respirar fundo quando devolveu o celular para Van. — Eu
feri o orgulho dele quando escapei de sua tentativa de acabar com a Casa de
Perseu. Ele não vai deixar isso barato.
— Não — disse Castor, baixinho —, não vai.
A preocupação estava de volta ao olhar dele. Lore odiava o fato de que,
com todo o poder que ele tinha, com toda sua óbvia força física, as escolhas
dela podiam fazê-lo voltar a ser o garoto que fora. Ele já tinha que lidar com
coisas demais nesta semana para ter que temer por ela.
— E é por isso que nós temos que encontrá-lo primeiro — disse Lore.
— De fato — disse Atena, assentindo com a cabeça.
— Se vamos procurar pelo Folião, precisamos ir logo — disse Van. Ele se
levantou e rapidamente dividiu o restante do dinheiro, parte na sua mochila
de couro, que entregou a Castor, e parte na outra mochila, mais simples, que
estava com Miles. — Me encontrarei com vocês lá. Vou me reagrupar com os
Aquilídeos restantes e levar suprimentos a eles.
— Você vai levar os Odi… — começou Miles.
— Não — disse Van, rispidamente. Lore deu-lhe um olhar suplicante, mas
o rapaz a ignorou. Ele não revelaria a localização dos Aquilídeos para
ninguém, nem mesmo para oferecer ajuda aos Odisseídeos. Ela não sabia por
que teria esperado algo diferente, tendo em vista em que semana estavam.
Lore seguiu Van pela porta lateral para tentar debater sobre a localização do
armazém, apenas para descobrir que Iro a seguira. A garota saiu para a rua,
cruzando os braços na altura do peito.
Lore observou Van desaparecer na escuridão e ficou tentada a ligar para
ele. Contudo, Iro falou primeiro.
— Dizem que aquilo foi obra do pai dele.
— Aquilo o quê? — perguntou Lore, voltando-se para ela.
— A mão dele — disse Iro. — A história que me contaram foi que o pai
estava tão envergonhado da falta de vontade do filho de lutar, da sua
inaptidão para o combate, que cortou a mão da espada de Evander para dar-
lhe uma desculpa honrosa para não lutar.
Lore ficou pálida.
— Não. Me diz que isso não é verdade.
— Eu acho que ele mesmo fez aquilo — disse Iro, e sua expressão se
tornou pensativa. — Não por fraqueza, mas por força. Pela vontade de decidir
o próprio caminho.
As palavras deram à Lore o primeiro brilho de esperança de que ela poderia
fazer Iro falar. Se a garota acreditava que um ato daquele poderia ser corajoso
e não o dispensara com covardia, como foi ensinada a acreditar, havia algo ali
para Lore explorar.
— E essa caçada, essas famílias que fariam Van lutar contra a própria
vontade; é esse o mundo no qual você acredita? — perguntou Lore. — Ao
qual tem tamanha lealdade?
— Nenhum mundo é perfeito. Nem o dos deuses, nem o mortal, nem o dos
caçadores — disse Iro. — Acredito no nosso propósito divino. Acredito em
honra e no kleos, e que nunca seremos destruídos. Acredito nisso, mesmo que
você tenha se permitido desviar do caminho.
— Você sabe por que eu fui embora — disse Lore. — Todo mundo sabia o
que aquele homem era e ninguém disse uma palavra. Onde está a honra na
sua linhagem ao elevá-lo à posição mais alta? Onde está o kleos nisso, Iro?
A garota abaixou o olhar.
— Você devia ter ficado. Eu teria protegido você deles.
— Não seria suficiente — disse Lore.
— Não acredito nisso — sussurrou Iro.
— Não precisa acreditar para que seja verdade — disse Lore. — Você
consegue afirmar honestamente que eles não teriam me matado pelo que eu
fiz?
— Não sei o que eles teriam feito — disse Iro. — Nós não falamos sobre o
ocorrido. Tudo agora é considerado somente um terrível acidente.
É claro — pensou Lore, amargamente. Dizer a verdade teria desonrado o
falecido, porque isso significaria admitir que o monstro da sua família não foi
confinado a um labirinto ou exilado para algum local distante. Ele caminhou
livremente entre eles.
— Eu sei que lhe parece errado que eu esteja trabalhando com deuses —
disse Lore. — Mas veja Prometeu… ele nos trouxe o fogo, mesmo sabendo o
que isso lhe custaria. Há um ponto em que você precisa decidir o que é certo
e agir, não importando as consequências.
Iro respirou fundo de forma irregular ao lado dela.
— Não nascemos para portar o fogo.
— Toda a minha família está morta — disse Lore. — Eu não quero perder
você de novo. Por favor, fique com a gente. Nos ajude.
Iro fechou os olhos e permaneceu em silêncio por um bom tempo.
— Agora a minha família também está.
— Até a sua mãe? — perguntou Lore. — Você tem certeza?
A presença de Dorcas permaneceu como um fantasma pela casa dos
Odisseídeos; ela desapareceu uns dias depois de Lore chegar e ninguém,
exceto Iro, estava disposto a reconhecer ou questionar aquilo. Uns meses
depois, Iro e Lore invadiram os seus aposentos permanentemente trancados,
procurando respostas. Dentro de sua caixa vazia de joias elas encontraram um
pedaço de papel com uma única palavra escrita: Mákhomai. Eu faço a guerra.
— Eu não posso procurar pelo Folião com você — disse Iro, com o sotaque
suavizando as palavras até que pareceram sair juntas em um sussurro. — Eu
tenho um dever com a minha linhagem. Mas há uma dívida que deve ser
paga, até mesmo eu sei disso, porque nenhum de nós sobreviveria sem você.
A garota ficou de pé, com as mãos fechadas à sua frente. Lore esperou,
lutando para esconder a impaciência.
— O poema sobre o qual me perguntou mais cedo — disse Iro. — Existe
outra versão mais completa do que Zeus disse aos caçadores em Olímpia
quando deu a ordem inicial do Ágon.
Lore abriu ligeiramente a boca, surpresa.
— E você o conhece? A versão completa?
O seu coração ficou como uma pedra no peito quando Iro balançou a
cabeça negativamente.
— Nosso arquivista encontrou uma carta de séculos atrás, esquecida em um
cofre-forte nos Alpes — continuou Iro. — De um dos seus ancestrais para um
dos meus.
— Sobre a existência do poema? — pressionou Lore.
— Sobre onde encontrá-lo — disse Iro. — Lore, ele diz que o texto
completo está inscrito na égide.
Lore recuou um passo, e um chiado queimava em seus ouvidos enquanto a
descrença esvaziava os seus pensamentos. Era como se ela tivesse corrido até
ali, para aquele momento. — Impossível. Isso… Eu saberia disso. O meu pai
saberia. Eu teria…
Eu teria visto com os meus próprios olhos.
Teria? Naqueles poucos momentos preciosos em que pôs os olhos nela?
— Fúria sabe o que está escrito? — perguntou Lore. Os Cadmídeos
mantiveram a égide na posse deles por décadas. Eles devem ter estudado cada
milímetro dela para descobrir os seus segredos.
— Não acho que saiba — disse Iro. — A carta dizia que o texto estava
oculto ou de alguma forma protegido por um enigma. O único motivo para
ele ter descoberto isso foi porque alguns dos caçadores invadiram o cofre
onde guardávamos a carta original.
— Então por que ele precisa de você? — perguntou Lore. — Qual
informação você tem e ele não?
Iro ficou pálida.
— Os seus caçadores não encontraram apenas a carta. Encontraram o
documento registrando que abrigamos você.
— Não — respondeu Lore, inspirando.
— Ele queria saber onde você estava — disse Iro. — Acho que ele acredita
que você sabe como ler a inscrição e, qualquer que seja o plano dele, precisa
de você para dar continuidade.
VINTE E CINCO

ELES SE DIVIDIRAM EM DUPLAS PARA IREM ATÉ O FRICK, SE APROXIMANDO DO


museu por caminhos diferentes. Lore tentou manter a compostura, mas estava
com dificuldade de conter seus nervos à flor da pele.
Ela passou por Atena e a sua dory quando a deusa saiu do táxi a vários
quarteirões ao nordeste do edifício. As pontas de ambas as lanças delas
estavam cobertas por fronhas roubadas das trouxas de roupas sujas que
alguém deixou na lavanderia. O motorista mantinha o olhar fixo nas armas
ocultas com certa suspeita, mas não o suficiente para não querer completar a
corrida.
— Por aqui — disse Lore, se apressando pela calçada. Ela deu meia-volta
quando percebeu que Atena não a seguia.
A deusa estava parada próxima às escadarias da igreja de St. Jean Baptiste,
e seus olhos cinzentos brilhavam no profundo tom violeta da madrugada. A
igreja, com frontão e colunas clássicas, torres e cúpulas em estilo
renascentista, e estátuas cristãs de anjos, atingiu Lore repentinamente como a
personificação da própria história: o modo como parecia marchar sempre à
frente, com cada civilização devorando a anterior.
— Você está sentindo a presença de algo? — perguntou Lore. — Ou de
alguém?
A deusa balançou a cabeça negativamente.
— Certo — disse Lore, lentamente. — Então por que você está olhando
como se quisesse destruir o lugar com as próprias mãos?
Atena a encarou como se fosse cortar seu pescoço.
— Como devo olhar para o templo de um deus cujos seguidores destruíram
a cultura dos helenos, destruíram nossas imagens, santuários e templos, e
devastaram a fé das pessoas em seus deuses?
— Justo — disse Lore.
Atena lançou um último olhar à igreja.
— Mas este deus fez o que não somos mais capazes de fazer, mesmo no
fim. Fez com que o temessem e tomou o controle dos corações do nosso
povo.
— Talvez — disse Lore. — Mas essa é apenas uma interpretação de medo.
Para alguns, significa apenas que respeitam ao deus que seguem e
permanecem tomados por seu poder.
— Você não está com raiva? — perguntou Atena. — Seu próprio modo de
vida foi ameaçado.
— Que bom — disse Lore. — Já foi tarde. Esse é um jeito horrível de
viver. Demorou muito para acabar.
Uma centelha de surpresa passou pelo rosto da deusa. Ela parecia mudar de
ideia sobre o que estava prestes a dizer, apesar de sua voz não traí-la.
— Não negue sua herança — disse Atena. — Você não é uma mera mortal.
Já a vi lutar. Você pode silenciá-la, pode suprimir sua gloriosa raiva, mas
uma guerreira ainda vive dentro de você.
Meu nome se tornará uma lenda.
A lembrança de sua declaração e da confiança que a fez dizer isso causou
enjoo em Lore. Ela não pensava no sonho há muito tempo, a não ser agora,
que passou pela sua cabeça. A borda de um escudo. A asa dourada. Olhos na
lâmina de uma espada.
Besteira. Tudo aquilo.
— As Moiras. — Atena começou a dizer.
Lore balançou a cabeça negativamente.
— Elas não têm nada a ver com isso. Eu recuso qualquer coisa que esteja
fora do meu controle.
— Você pode negar as Moiras, mas elas não a negarão — disse Atena. —
Lutar contra elas não a salvará do que está por vir. Apenas acelerará o curso
das coisas.
— É o que você diz — disse Lore. — Mas isso significaria que você acha
que sempre esteve destinada a cair em desgraça e ser caçada. Todas as Eras
dos Homens chegaram a um fim, de um jeito ou de outro, com exceção desta.
Por que não podemos ver o fim da Era dos Deuses?
— A Era dos Deuses é eterna. — Atena segurou sua dory com mais força, e
Lore perguntou a si mesma se um dia se acostumaria com os olhos da deusa,
com a forma como eles pareciam destruir suas defesas. — Posso ter sido
fadada à desgraça, mas assim o foi para que mais uma vez eu possa provar
meu valor ao meu pai.
Se você diz… — pensou Lore.
Atena finalmente a seguiu quando Lore começou a descer a rua novamente,
desta vez muito rapidamente.
— Tenha bom ânimo, Melora. Se Fúria crê que você possui a chave para
desbloquear os segredos do poema, sobreviveremos a esta caçada. Ele não
pode matá-la. Sua morte como a última dos Perseídeos a removeria deste
mundo.
— Nossa, muito reconfortante — resmungou Lore.
Mas mesmo assim este pensamento lhe deu calafrios. Com a morte recente
da Portadora da Maré, Lore era, de fato, a última de sua linhagem.
Após a partida de Iro, deixando apenas um número de telefone para contato,
Lore contou aos outros sobre o que estava gravado na égide, o que, como
esperado, trouxe mais perguntas para as quais ela não queria responder.
— Por outro lado, a ideia do Ares impostor em posse do escudo do meu
pai… — Atena começou a dizer, e sua expressão ficou sombria. — Se sua
família tivesse sido mais forte… mais esperta… e não a tivesse perdido…
A raiva disparou em Lore, rápida demais para ser controlada.
— Eles não a perderam… ela foi roubada, junto com todo o resto.
— Ocorreu-me agora que ele não assassinou imediatamente a falsa
Poseidon por essa razão — disse Atena. — Ele pode ter acreditado que ela,
sendo de sua linhagem, poderia decifrar o poema no escudo.
Lore mordeu o interior da boca com tanta força que sentiu gosto de sangue.
— Você provavelmente tem razão.
A verdade era que Iro apenas vira um fragmento de um pesadelo muito
maior. Por mais que Lore não quisesse contar à Atena sobre o poema estar
gravado no escudo, viu uma oportunidade nisso. Se a deusa acreditasse que
Fúria já estava com o poema, que detinha a chave para escapar do Ágon,
seria mais um motivo para que se concentrasse totalmente em sua busca.
Obviamente, o problema seria lidar com o que aconteceria uma vez que
Fúria estivesse morto e Atena percebesse que ele não estava com a égide, no
fim das contas.
Mas esse era um problema futuro, e, pela primeira vez em todo aquele dia,
Lore se sentiu mais calma. Segura, pelo menos, por saber que nenhum dos
deuses encontraria o escudo ou os segredos que carregava.
Atena leu equivocadamente a expressão da jovem como sendo de
preocupação.
— Não se aflija, Melora. É vantajoso que ele a procure. Isso o trará direto
para a frente da minha lança.
— Ótimo — disse Lore. — Mal posso esperar.
— O que não posso tolerar, no entanto — continuou Atena, com palavras
cortantes como lâminas —, é saber que os seus ancestrais mancharam a
aparência perfeita da égide com um entalhe. Profanando o escudo do meu
pai, e mesmo assim orando e fazendo oferendas por suas bênçãos… Não é
nenhuma surpresa que ele não proteja esses caçadores.
— Nunca precisamos de deuses para nos proteger — disse Lore, convicta.
Atena lançou à jovem seu olhar penetrante.
— Quando a verdadeira escuridão estiver sobre vocês, se lembrarão de nós.
Mas se o mundo persistir como está agora, quem restará para atender-lhes?
— Quem disse — respondeu Lore, rispidamente —, que nos lembraremos
de vocês?
A deusa não tinha resposta.
— Você não liga para essa cidade, nem para qualquer outra — prosseguiu
Lore, incapaz de se conter. — Tudo o que importa para você é poder.
Lore odiava o seu temperamento mais do que odiava qualquer outra parte
de si; odiava a velocidade em que saía de uma faísca a uma explosão,
incinerando todos ao redor.
— Escute — começou Lore, reduzindo sua intensidade. — Eu não quis
dizer…
Mas antes que pudesse se voltar à deusa, algo pontiagudo pressionou sua
lombar, bem na altura do rim. Ela olhou para trás.
Uma máscara de Minotauro a encarava de volta.
Lore segurou firme a sua dory, erguendo-a.
— Eu não faria isso — alertou ele. — Eu não faria nada além de largar a
lança e vir comigo, quietinha.
Lore vasculhou a rua à sua volta, mas Atena não estava em lugar nenhum.
— Se mancomunando com deuses — prosseguiu o caçador, compelindo-a
para a frente. — Eu deveria ter previsto que em algum momento você se
tornaria uma traidora da lâmina. — Seu tom mudou quando ele começou a
falar com outra pessoa, provavelmente pelo ponto eletrônico. — Sim, diga a
ele que a encontrei…
Lore se esquivou para a esquerda, deixando que a adaga dele a arranhasse,
mas ganhando tempo suficiente para golpeá-lo com sua dory. Ela a girou,
trazendo a ponta coberta para cima para batê-la com força na máscara. As
alças partiram, lançando a cobertura facial para o chão.
— Sua vadia! — vociferou o caçador.
Ela deu uma estocada com a dory, mas ele bateu nela com sua arma e partiu
o cabo de madeira da lança de Lore em dois. Lore girou para a frente,
evitando o alcance dele quando veio com tudo na sua direção novamente com
a adaga. A única coisa que finalmente o parou foi a sensação da ponta da
dory, uma faca de cozinha, cortando a fronha e fazendo pressão na traqueia
do caçador.
Ela ofegava e seus braços se tensionaram com a necessidade de empurrar a
ponta afiada só um pouco mais à frente para acabar com a luta
completamente.
— Você devia ter me matado quando teve a chance — sibilou Lore.
— Eu não posso — disse ele, com um tom irritante de excitação em suas
palavras.
O caçador girou para a esquerda, chutando o peito dela com força suficiente
para derrubá-la na calçada. O pedaço da dory voou das mãos dela, rolando
para debaixo de um carro estacionado ali perto.
Ele estava em cima dela em questão de instantes, levando sua adaga direto
para o ombro da jovem. Lore a bloqueou com um braço, tentando aparar o
golpe, mesmo enquanto tateava pelo chão procurando a ponta da dory. Sua
mão encontrou outra coisa em vez disso.
Lore bateu o pedaço quebrado de concreto na lateral da cabeça do caçador,
tirando-o de cima dela. Bateu o bloco com força na cabeça dele e ouviu o
satisfatório som do caçador se engasgando com o sangue que preenchia a sua
boca. Ele se arrastou para longe, desesperado para se afastar dela.
Ela ergueu o bloco novamente, focando o olhar na têmpora do caçador. A
voz infantil de Olympia cantava repetidamente em sua mente as palavras que
ela ouviu milhares de vezes. Matar ou morrer, matar ou morrer, matar ou
morrer…
Lore saiu de cima dele. O caçador estava jogado no chão, com o rosto
ensanguentado. Ele respirava fazendo um ruído chiado, devido ao líquido nos
pulmões desesperados por ar.
Eu podia tê-lo matado. Agulhas geladas perfuravam sua pele, esfriando
instantemente seu sangue. Ela estremeceu.
Depois de tudo… depois do que Gil a havia ajudado a superar…
Alguém saiu das sombras ao lado deles. Atena.
— Ele — disse Atena — nunca a terá.
Ela foi a última coisa que o caçador viu.
O corpo do jovem caçador sofreu um espasmo quando a deusa cravou sua
lança por entre suas costelas. O ruído úmido do músculo quando ela puxou a
lança de volta tornou a cena ainda pior. Os olhos dele se arregalaram, e
jorrava sangue de sua boca quando ele tentou falar.
Atena arrastou o caçador e o apoiou sentado na parede do edifício mais
próximo. Ela limpou o sangue da boca do homem com o manto preto que ele
vestia, envolvendo-o firmemente em volta do corpo para disfarçar o
ferimento.
— Quando você o vir — disse Atena, se agachando para ficar na altura do
olhar do caçador —, diga ao Senhor Hades que o resto da linhagem de Teseu
logo se juntará a você no Mundo Inferior, pois hoje você amaldiçoou a todos
eles.
Lore abaixou a cabeça, e suas mãos estavam cruzadas com força, agarrando
os braços.
— Não desvie o olhar — disse-lhe Atena. — Você não é nenhuma covarde.
E não era. Mas naquele momento Lore quase invejou Atena por ter um
espaço oco dentro de si onde sua humanidade mortal deveria estar.
Atena entregou à Lore a adaga do caçador e depois recolheu os pedaços da
sua dory. Ela ficou com uma das facas de cozinha, mas jogou a outra, junto
com a haste partida, num bueiro próximo.
— Desculpe — disse Lore, com voz mansa. Sua vida não era inteiramente
sua naquela semana.
— Não há perdão no Ágon — disse Atena. — Apenas sobrevivência, e o
que deve ser feito.
VINTE E SEIS

NO MOMENTO EM QUE LORE PÔS OS OLHOS NO MUSEU, PERCEBEU QUE JÁ VIRA O


Frick, muitas vezes. Passava por ele e nunca pensou em parar e dar uma
olhada no belo e grande edifício que se estendia da 70th à 71th Street. Esta
cidade era um lugar no qual só se vê o que se procura.
A fechadura na cerca que demarcava a obra estava arrombada. Lore a abriu
para revelar a indescritível entrada do museu, a alguns centímetros de
distância, e Miles sentado em um dos degraus. Ele ergueu o olhar com o
barulho delas se aproximando, e tinha o rosto abatido.
— Você está bem? — perguntou Lore.
Miles abraçou uma garrafa de água contra o peito.
— Eu devia ter ouvido Castor e ficado aqui fora…
Atena estava inquieta atrás dela.
Lore olhou pela vidraça das duas portas de madeira da entrada, se
assustando ao ver dois vigilantes sentados em cadeiras altas, de costas para
ela. Castor estava de pé entre eles. Sua expressão extremamente séria fez com
que os pulmões de Lore enrijecessem como pedra.
Ela sentiu um cheiro assim que abriu a porta. Putrefação, mofo e sangue. Os
pelos de seu corpo se arrepiaram.
— Quer esperar pelo Van lá fora? — sugeriu Lore a Miles.
Miles balançou a cabeça.
— Ele não vem. Mandou mensagem para o Castor falando para a gente se
encontrar com ele em casa.
— Por que você não vai? — disse ela. — Não precisa voltar lá dentro.
— Não — disse ele, forçando as palavras a saírem. — Eu aguento. Eu não
preciso ir embora.
— Eu não quero que você tenha que aguentar — disse ela.
Todavia, Miles passou por ela, entrando.
A respiração de Atena estava leve e rápida atrás de Lore quando elas
passaram pela entrada. A deusa se aproximou da vigilante à direita. O cabelo
da jovem estava trançado e descia por suas costas, tal como o de Lore. Sua
cabeça descansava contra a parede, como se estivesse apenas cochilando.
Lore viu o que realmente aconteceu quando parou ao lado de Castor.
A garganta da mulher havia sido cortada tão profundamente que Lore podia
ver o osso branco de sua espinha dorsal pela abertura. Consequência de uma
morte rápida, mas brutal. Ela não foi nem capaz de gritar.
O outro vigilante teve a face espancada, mas qualquer sofrimento que tenha
suportado acabou assim que foi esfaqueado no coração.
— Uma léaina? — chutou Castor. — Os Cadmídeos devem ter chegado
antes da gente de novo.
— Ou um deus desesperado — disse Lore.
Ela não tinha certeza do que seria pior.

Havia mais quatro corpos. Um policial e três seguranças uniformizados. O


assassino os trouxe para o pátio do jardim e os arrumou em um padrão
grotesco ao redor da fonte seca. Seus olhos sem vida observavam o céu pela
cúpula de vidro no teto. Não havia sinal de sangue ou luta em nenhum outro
lugar do museu e os monitores do da cabine de segurança pareciam estar
repetindo as imagens.
O que significava que a probabilidade de caçadores estarem por trás das
mortes aumentara de forma significativa.
Miles se recostou em uma das colunas próximas, abraçando a si mesmo.
Talvez esse seja o seu limite — pensou Lore. Talvez Miles tenha percebido
que um Mundano mortal não seria poupado da matança se entrasse no
caminho do Ágon.
— Todos estavam… — disse ele, parecendo escolher uma palavra melhor
para descrever a chacina na frente deles — dilacerados. Os caçadores não
usam armas de fogo?
— Alguns, sim, — disse Lore, tocando-o no ombro brevemente, de um
modo reconfortante. — Geralmente contra outros caçadores. Deuses são
mortos com flechas ou armas cortantes.
— Por quê? — perguntou Miles.
— As palavras de Zeus em Olímpia foram interpretadas como um
mandamento — disse ela. — Recompensar-vos-ei com o manto e o poder
imortal do deus cujo sangue manchar vossa ousada lâmina. Ninguém quis
arriscar perder a chance de conseguir o poder de um deus testando outros
métodos.
Ela observou enquanto Atena passava um dos cassetetes dos vigilantes nas
maçanetas das portas, reforçando as fechaduras arrombadas.
— Levando em conta como estão, essas pessoas morreram há algumas
horas — disse Lore. Castor assentiu com a cabeça. Além do sangue
escurecendo enquanto oxidava em contato com a atmosfera e o leve cheiro de
morte impregnado neles, quase não dava para notar nenhuma decomposição.
O rigor mortis ainda não acontecera.
Miles fitou a amiga, parcialmente surpreso e parcialmente horrorizado.
— Nenhum funcionário do museu e nenhum operário… os mortos são do
turno da noite — disse Lore. — Senão alguém já teria vindo saber o que
houve com seus entes queridos, não é?
— Você acha que o Folião é capaz disso tudo? — perguntou Castor,
abismado. — Sozinho?
— Sim — disse Atena, segurando sua dory com firmeza. — Ele não
sobreviveu esse tempo todo por ter uma natureza gentil.
— Mal posso esperar para conhecê-lo — disse Miles, aflito. — Mas agora
acho que temos que seguir em frente, antes da troca de turnos.
Lore e os outros levaram os vigilantes, ainda em suas cadeiras, para longe
da porta dupla, limparam as suas impressões digitais dos assentos e Castor
derreteu a fechadura, mas Miles estava certo. Cada segundo que gastavam
permanecendo ali era outra oportunidade de ficarem rodeados de cadáveres.
Se os Cadmídeos fossem os responsáveis pelas mortes, um membro deles
voltaria ali até o nascer do sol para limpar a cena; estranhamente, ela
esperava que viessem. Embora ela e os outros não tivessem DNA ou
impressões digitais nos sistemas oficiais, havia uma grande chance de Miles
ter e acabar sendo associado à cena.
— Você ficará de olho na entrada, impostor — disse Atena e fitou Lore em
seguida. — Você e eu procuraremos por ele, começando no andar debaixo e
depois subindo.
Castor parecia ter alguma objeção a fazer, mas acatou o comando.
— Está bem, mas se o encontrarem, não se aproximem ainda. Precisamos
saber seu estado antes de decidir como o faremos de isca.
Atena deu-lhe um sorriso insensível.
— Veja só, alguém como eu recebendo uma aula de estratégia.
— Você vem com a gente, Miles — disse Lore. — Agora… como
chegaremos ao andar de baixo?

Os andares inferiores eram tão silenciosos e escuros quanto o de cima. Lore


estendeu uma das mãos, tateando pelas paredes. O corredor estaria um breu
se não fosse pela luz da placa de saída de emergência.
Lore tirou o celular do bolso de trás e acendeu a lanterna. Ela guiou o grupo
enquanto seguiam em direção à primeira das duas galerias interligadas pelo
longo corredor. Pinturas e documentos haviam sido removidos para a
reforma, deixando paredes vazias e plaquinhas informativas para trás.
Fora das galerias inferiores e do átrio que as conectava, não havia
sinalização que os auxiliasse, apenas portas que davam para algum tipo de
área administrativa.
Portas que haviam sido arrombadas à força.
Atena removeu uma das portas, erguendo sua dory. Lore gesticulou para
que Miles ficasse mais para trás. A luz do celular passou por um escritório e
um depósito. Ambos pareciam ter sido estripados e sangraram materiais de
escritório e papelada.
Eles seguiram a trilha de mobília quebrada por entre os cômodos além dali.
Caixotes de transporte haviam sido abertos à força, as pinturas dentro deles
foram destruídas, os vasos e relógios de parede, quebrados.
Eles passaram pela famosa pista de boliche e continuaram a busca até,
finalmente, Lore ver sinais do que os aguardava adiante.
O cofre do museu.
Ela saltou quando uma colisão estrondosa rasgou o ar, seguida por outra, e
mais outra — vidro se estilhaçando — e uma única voz soltou um grito
áspero e contrariado.
Lore sacou a adaga do caçador morto, que ela havia amarrado na coxa com
uma tira de tecido. Apagou a lanterna e passou o celular para Miles. Ele
assentiu, compreendendo o que fazer quando ela pressionou um dedo nos
lábios, mas ignorou quando ela ordenou com um gesto que ele ficasse ali
enquanto a amiga se aproximava da porta e a empurrava.
Pinturas estavam armazenadas em finas grades metálicas de correr, todas
alinhadas como estantes em uma biblioteca. Depois delas, o corredor escuro
seguia para a esquerda. Lore espiou pela curva, apenas para recuar
rapidamente devido ao estrondo seguinte.
Miles fitou-a com um olhar desorientado, mas Atena a encorajou,
assentindo.
Lore se aproximou da porta no fim do corredor. Ela havia sido deixada
aberta, e, se a jovem se mantivesse próxima à parede, conseguia ver o que os
esperava dentro dela.
Um homem titânico corria pelo depósito, passando entre as paredes com
prateleiras enfileiradas, todas transbordando com caixas, relógios de parede e
estatuetas. Bustos de pedra e estátuas de bronze observavam o homem de
olhos sem pálpebras em uma plataforma no centro da sala, e sobreviveram
por pouco a um raivoso golpe de seu braço.
Ele arrastou uma das caixas de uma prateleira ali perto e a jogou no chão,
grunhindo. Ela se quebrou em um instante, permitindo-o fuçar seu conteúdo.
Ele chutou os destroços de um vaso quebrado para o lado, que derraparam
por entre cacos de vidro e materiais de empacotamento no chão.
Iason Heracliou. O novo deus ainda vestia o seu manto azul-claro e
sandálias, ambos imundos de grama e sujeira de rua.
A foto mostrava um homem de meia-idade que, embora estivesse em
forma, tinha calvície e exibia outros sinais de envelhecimento. Mesmo assim,
esse homem — esse novo deus — parecia ter sido esculpido de arenito
aquecido pelo sol. Seu cabelo tinha quase o mesmo loiro-escuro de Atena e
sua pele apresentava um forte tom oliva, mas estava coberta de lama e sangue
seco.
O Folião pegou a garrafa grande de uísque que deixara em uma das
prateleiras e deu um longo gole no líquido ardente. E então virou a garrafa de
ponta-cabeça, derramando o resto do conteúdo sobre um talho enorme na sua
coxa. Ele rugia e gritava de dor, batendo um punho contra a parede de blocos
de concreto até que passasse.
Lore tateou para trás e, sem olhar, agarrou Miles pela blusa. Ela o empurrou
para trás, depois apontou para o corredor, indicando um lugar seguro.
Este, é claro, foi o exato instante em que o celular de Miles, que estava no
bolso, soltou um toque de estourar os tímpanos.
— Merda… — disse ele, todo atrapalhado, apertando vários botões. O
celular deixou sair a voz: — Miles, preciso da sua ajuda com uma coisa…
Lore o encarou.
Ele desligou a chamada com a respiração ofegante enquanto colocava o
aparelho no silencioso e o pressionava contra o peito.
A porta do cofre se fechou com força na frente deles, e o som ecoou no
aterrorizante silêncio que sucedeu. Lore segurou sua faca com firmeza,
aguçando os ouvidos para tentar rastrear os passos do novo deus, mas não
ouviu nada.
Onde ele está? — pensou ela, e o suor se acumulou em gotas no seu buço.
— Para onde diabos ele foi?
Uma enxurrada de gesso e estilhaços de concreto explodiu da parede à sua
direita. Lore foi jogada longe pela força da explosão, ficando
momentaneamente atordoada por uma pancada na cabeça, apenas para então
ser agarrada pela mão que atravessou o buraco irregular e se fechou ao redor
de seu pescoço.
VINTE E SETE

LORE, COM A CABEÇA LATEJANDO E MEIO CEGA PELO VÉU DE POEIRA QUE
tornava o ar sufocante, cravou as unhas na mão que a estrangulava.
Ele apertou o pescoço de Lore com mais força, e, conforme sua visão
escurecia, ela sentiu a pressão em torno de sua coluna, pronta para se partir.
Ela golpeou para cima com a adaga por repetidas vezes, até que finalmente
acertasse o antebraço do Folião. Ele uivou de dor e afrouxou a mão o
suficiente para que ela caísse de joelhos e rolasse para longe, tossindo.
O Folião retraiu o braço pela parede. O buraco que ele abriu revelou o resto
da sala, de modo que uma parte dela se estendia até quase o local exato que
ela havia escolhido ficar.
Lore fez uma careta. Ótimo trabalho, como sempre.
Atena olhou ameaçadoramente e afastou Lore. Ela quebrou a parede
danificada com a mão e com a dory, alargando o buraco até que estivesse
grande o suficiente para que pudesse passar.
— Folião! Não estamos aqui para matá-lo! — disse Lore, com a voz rouca.
Um grito bestial foi a resposta. Dentro da sala, prateleiras caíram em uma
cacofonia de partir os ouvidos.
Atena arrancou o último bloco de concreto e se esgueirou para dentro do
cofre. Lore cambaleou atrás dela, virando a cabeça para encarar Miles na
parede quebrada.
— Vá buscar Castor!
Ela nem quis saber se ele a ouviu de fato.
— Eu sabia que você eventualmente viria atrás de mim, sua vadia
desprezível — disse o Folião, rangendo os dentes na direção delas. Atena o
encurralou em um canto, e tudo que ele tinha para se defender era a adaga de
Lore, arrancada de seu braço, e a tampa de uma caixa que usava como
escudo.
Atena o observou com rosto pétreo, enquanto o corpo dele se enchia de
ódio.
— Ninguém está aqui para matar você — disse Lore, novamente, erguendo
as mãos para mostrar que estava desarmada e acalmá-lo.
— Ainda posso mudar de ideia — disse Atena, friamente.
O rosto do Folião se fechou, retorcido de raiva e repulsa. A imagem dele,
bêbado e reduzido ao caos do medo e da autopreservação, poderia ter
despertado um traço de pena em Lore, se ele não tivesse acabado de
assassinar brutalmente seis pessoas inocentes no andar de cima.
— O meu nome é Melora Perseus — disse Lore.
O Folião soltou uma risada sombria.
— É claro. Que os deuses amaldiçoem a todos. Não sei por que esperava
outra pessoa nessa merda de ciclo.
Ela não sabia o que responder, então, prosseguiu:
— Eu apelo a você, descendente do poderoso Héracles, o mais famoso e
renomado dos antigos Perseídeos…
— Essa merda não funciona comigo, criança idiota — vociferou o Folião.
— Caguei para isso, e, mesmo que não cagasse, Euristeu dos Perseídeos
tentou destruir todos os filhos de Héracles antes da existência do Ágon.
— Certo — disse Lore, com dificuldade, tendo se esquecido daquele
detalhe obscuro da história. — Justo. Mas nós estamos aqui para conversar.
— A não ser que prefira lutar — disse Atena. — Vamos extrair as respostas
de você de qualquer maneira.
— Acha que eu não sei que você e a caçadora psicótica estão em missão
querendo coletar todas as cabeças dos novos deuses? — rugiu ele. — Pois
venham. Eu as desafio.
— Se esse fosse realmente o caso — disse Lore —, então por que ela
estaria trabalhando com o novo Apolo?
O Folião apontou a adaga para Lore.
— Mentirosa.
— Ela não está mentindo — disse Castor, e sua voz vinha de trás deles. Ele
passou pela abertura na parede, e seu olhar disparou até Lore antes de se fixar
no novo deus.
— Então você é o maior idiota dessa sala — disse o Folião, cambaleando
um passo para frente. — Seja lá quais forem seus planos, o dela está a anos-
luz na frente. Você… você não faz ideia. As coisas que ele me contava sobre
ela…
Ele — pensou Lore. — Hermes.
— Seja como for — disse Castor, parando ao lado de Lore —, Fúria é quem
está matando os novos deuses, não ela.
O Folião zombou.
— Fúria não apenas matou Hermes — prosseguiu Castor —, mas a
Portadora da Maré e o Guardião do Amor também, e tentou vir atrás de mim.
Estamos tentando pará-lo…
— Eu vou matá-lo. — rugiu o Folião, limpando o suor do rosto pálido. —
Eu. Mais ninguém. Vou matar qualquer merdinha que ficar no meu caminho.
— Isso não vai acontecer se Fúria pegar você primeiro — disse Lore.
— Acha que não sei disso? — disse ele, em tom de zombaria. — Eu sabia o
que me custaria fugir dele.
— Hermes… — tentou dizer Lore.
— Não diga o nome dele! — vociferou ele. — Você… não se atreva!
— Eu? — indagou Lore. O que diabos aquilo significava?
O Folião esfregou o dorso da mão na boca e não disse nada.
— Você está sozinho — relembrou ela. — Precisa de ajuda. Se vai
simplesmente sangrar até a morte aqui embaixo, então para que isso? Qual é
o sentido disso tudo?
— Eu tenho uma aliança com o Apolo impostor — disse Atena. — A
estenderei temporariamente a você, contanto que concorde em servir como
um meio de atrair Fúria.
—É a isso que fui reduzido? Uma isca? — indagou o Folião, balançando a
cabeça negativamente com uma risada sarcástica, lutando para se manter em
pé sem o apoio da parede atrás dele. Lore não tinha certeza se ele sabia que
emitia um ruído baixo e sofrido. O ferimento na perna do deus estava muito
pior do que o que ela lhe causara. Já estava ficando vermelho por causa do
avanço de uma infecção.
— Prefiro enfiar uma faca no estômago e me matar — sibilou o Folião. —
Encerrar essa farsa de existência. Isso é… tudo isso, é baboseira… não
significa nada. Até mesmo o supostamente grande Apolo sabia disso. Ele
sabia.
— O que isso quer dizer? — questionou Castor, incapaz de esconder a
surpresa e a ansiedade. — O que você sabe sobre a morte de Apolo?
O ar pareceu evaporar do peito do Folião. Seu corpo tombou para a frente,
deslizando pela parede.
— Não sei de nada — disse o Folião, e sua agitação e embriaguez estavam
se tornando exaustão. — Apenas que a caçada é longa, e existe um limite do
quanto alguém pode aguentar.
Castor se aproximou dele lentamente, pegando a adaga da mão frouxa do
outro deus e a devolvendo para Lore. Ele fitou o Folião com uma compaixão
que o deus não merecia.
— Por que veio a esse lugar? — perguntou Atena. A repulsa tomou conta
do seu semblante enquanto assimilava a arte destruída ao redor. — O que
procura tão desesperadamente?
— Pensei que ele tivesse deixado algo para mim. Que ele tivesse escondido
aquilo — disse o Folião, olhando para Atena e Lore.
Lore inspirou de forma irregular, e sua mão livre se fechou em um punho
no flanco de seu corpo.
— Por que você decidiu trabalhar com Fúria depois do último Ágon? —
perguntou Lore. — Por que concordou, quando Hermes não o fez?
O novo deus não respondeu. Lore passou a mão no ponto em que os
pedaços de concreto o cortaram, na lateral da cabeça, lançando um olhar
incerto na direção de Castor. Ele se agachou na frente do Folião.
— Prometa que não vai matar ninguém do meu grupo e que vai responder
às nossas perguntas — disse Castor —, e eu curo você.
O Folião zombou.
O temperamento de Lore despertou imediatamente, mas Castor não perdeu
o tom calmo e sensato.
— Você vai ter uma chance maior de sobreviver se puder fugir dos
caçadores, Iason, e ainda mais se nos ajudar.
O Folião o encarou à menção de seu nome mortal, enfurecido. Lore tinha
certeza de que ele diria não; que o icor, o poder e a violência infinita haviam
removido até o último resquício da sua humanidade. Em vez disso, a
aparência feroz desapareceu das suas feições.
— Você percebe, afinal, a lógica em uma parceria temporária — observou
Atena. — Talvez ainda haja esperança para sua sobrevivência.
Folião desdenhou da deusa.
— Soberba até o fim.
— Temos um acordo ou não? — indagou Castor.
Os últimos traços de zombaria sumiram do rosto de Folião. Ele fitou Castor
e todo o resto, e Lore pôde praticamente sentir o esforço na mente dele para
buscar por outra opção.
Finalmente, disse:
— Responderei a duas perguntas de vocês, mas não os ajudarei a matar
Fúria e não serei uma isca nem ferrando.
Atena repousou uma mão fria e pesada no ombro de Lore. O toque
silenciou tanto os seus pensamentos quanto o seu ultraje.
— Duas respostas bastarão.
— Trabalhando com mortais — disse o Folião, e seu sorriso pretensioso
tornou suas feições perfeitas novamente horríveis. — Pobrezinha de você.
Um dia comandou civilizações e agora não é nada mais do que uma história
que vai sumindo a cada geração. A cada batida ridícula dos corações destes
mortais, você deve se coçar de vontade para arrancá-los.
Atena deu um passo firme à frente, fazendo com que o concreto sob seus
pés se envergasse.
— Ah, finalmente se revelando — provocou o Folião.
— Eu calaria a boca antes que eu a deixe matar você — disse Lore,
friamente. — Ela é o que sempre foi. Mas para alguém que costumava ser um
mortal, você não teve problema nenhum em matar as seis pessoas lá em cima
que não tinham nada a ver com o Ágon.
O Folião se levantou lentamente, confuso, franzindo o cenho.
— Do que diabos está falando, criança? Eu não matei ninguém desde o
Despertar — disse ele. — Se há mortos neste edifício, não foi minha mão que
os abateu.
VINTE E OITO

CASTOR CUROU A PERNA DO FOLIÃO BEM O SUFICIENTE PARA QUE ELE


conseguisse sair andando do depósito sem precisar de ajuda. O novo Dionísio
ansiava ver os corpos, mas visivelmente tinha aversão à ideia de se apoiar em
alguém para fazer o caminho até o andar de cima.
Atena foi na frente do grupo, vasculhando corredores e salas escuras. Lore
ficou na retaguarda, movendo os olhos pelas silhuetas sombrias dos outros,
que seguiam a uns passos adiante, descansando uma das mãos suavemente na
faca que novamente prendeu na coxa.
Miles os encontrou perto das escadas, com as mãos segurando firmemente
os próprios braços.
— Tudo bem? — disse Lore, apenas movendo os lábios, sem emitir sons.
Ele assentiu com a cabeça, mas seu rosto estava pálido.
— Impostor — Atena começou a dizer, mantendo a voz baixa. —, como é
possível que os assassinos não o tenham encontrado e que você não saiba
nada sobre quem são?
Lore estava se perguntando o mesmo. Foram caçadores; a única questão era
saber a qual casa pertenciam.
— Me escondi em um dos caixotes e fiquei lá até que as coisas se
acalmassem no andar de cima e os guardas parassem de patrulhar… Merda!
— O Folião deu uma topada com a perna machucada e se curvou. Castor
estendeu rapidamente as mãos para apanhá-lo, mas o outro novo deus se
desvencilhou, rosnando.
— Me deixe terminar de curar você — pediu Castor novamente. — Eu
prefiro que você não desmaie ou morra antes de responder às nossas
perguntas, como tão generosamente nos prometeu.
— Então faça suas perguntas, babaca — disse o Folião, endireitando o
corpo. Seus olhos brilharam. — E me deixem em paz, todos vocês.
Castor o fitou de volta, sem se impressionar. Mas ele estava em silêncio
pelo mesmo motivo que Lore: nenhum dos dois queria desperdiçar uma
resposta fazendo a pergunta errada.
Até mesmo Atena parecia preocupada com a estratégia que desenvolvia
internamente, qualquer que fosse ela. Sua postura estava tão tensa que Lore
estava começando a temer que a resposta à próxima tirada sarcástica do
Folião seria uma estocada da dory, direto no estômago.
— Está bem, então eu começo — disse Miles. Lore abriu a boca para
impedi-lo, mas já era tarde demais. — Por que você concordou em trabalhar
com Fúria quando Hermes recusou?
— Porque vi potencial na sua visão — soltou Folião. — Hermes não
gostava de Fúria nem acreditava nele.
Lore estava prestes a perguntar o que, exatamente, era aquela visão, além
de Fúria assassinando os seus rivais e procurando pelo poema, mas Miles
falou de novo.
— Nossa, ele ter chamado você de tolo e virado as costas depois deve ter
doído — disse ele. — Mas você não fugiu até o Despertar, mesmo que
soubesse que Fúria mataria os seus inimigos, o que incluía Hermes… Isso
significa que parte do seu acordo era que Fúria não podia matá-lo, presumo.
Mesmo na escuridão, Lore conseguia ver a forma como o lábio superior do
Folião subiu, expondo os dentes dele.
— E se você estava tão certo de que Hermes tinha escondido alguma coisa
aqui, em um lugar que representava algo para você — continuou Miles —,
isso quer dizer que você estava em contato com Hermes antes do começo do
Ágon e sabia o que ele estava fazendo nos anos entre os Ágons. A não ser
que apenas suponha que ele deixou algo aqui e não abandonou você, o que é,
obviamente, uma possibilidade.
— Ele não me abandonou. — o Folião avançou nele, sendo bloqueado por
um encontrão de Castor. Lore agarrou Miles pelo braço e o puxou para trás
dela, mas de repente entendeu o que ele estava fazendo: conseguindo
respostas enquanto testava as suas suposições, em vez de fazer perguntas.
Lore estalou a língua.
— Então, no fim das contas, Hermes não queria nada com você. Ele não te
deixou nada. Provavelmente nem se despediu.
O Folião cambaleou na direção dela.
— Sua estúpida…
Castor o empurrou novamente, dessa vez contra a parede. Ele pressionou o
antebraço contra a garganta exposta do deus.
— Não toque nela.
Atena golpeou com a dory de cima para baixo no espaço entre os dois,
impedindo que Castor o imobilizasse.
— Chega.
Mas ela também entendera o jogo de Miles e Lore. Um frisson de satisfação
percorreu a coluna de Lore quando a deusa lhe sorriu ligeiramente.
Hermes desaparecera, não necessariamente para se esconder de Fúria, mas
para esconder alguma coisa — algo que o Folião presumia, naquele
momento, que Hermes deixara para que ele encontrasse e usasse.
Lore estava prestes a pedir um esclarecimento sobre os planos de Fúria
quando Atena falou primeiro.
— Qual é o envolvimento de Melora nisso tudo?
— Espere… o quê? — perguntou Lore.
Atena ergueu a mão, silenciando-a.
Os olhos do Folião eram desafiadores. Mas, quando falou novamente, seu
tom era mais comedido. — Vocês são todos uns tolos. Os planos de Fúria
vêm se desenrolando há décadas. Ele planeja acabar com o Ágon, mas
precisa de uma última coisa para mover suas peças.
— O poema da origem — disse Lore. — Nós sabemos.
O novo deus hesitou, cerrando sua mandíbula com força.
— Você está muito longe de estar totalmente desesperançado com a caçada,
mas tenta nos convencer que está — disse Atena. — Se estivesse mesmo,
teria se suicidado ou convocado um mortal para acabar com a sua vida. Você
quer sobreviver. Vejo em seus olhos. O anseio, a necessidade de sentir o icor
queimando suas veias mais uma vez…
O Folião a encarou, mas não negou.
— Você nos deu respostas que sabe que queremos, mesmo assim, não
respondeu à pergunta que fiz — disse Atena. — Qual é o papel de Melora
Perseus nisso tudo?
— Não sabem ainda? — perguntou o Folião.
— Responda à pergunta — disse Castor.
O Folião cuspiu sangue nos pés dele.
— Está bem. Fúria precisava de mim para uma coisa, apenas uma. E antes
que qualquer um de vocês, insuportáveis acéfalos, pergunte, eu não sei o
resto dos planos dele. Eu só quero me enfiar no buraco mais fundo desse
mundo de bosta e tentar esperar o Ágon acabar.
— Ainda não é uma resposta — disse Castor, dessa vez com um tom de
alerta mais intenso em sua voz.
— Eu fiz uma promessa, e não vou quebrá-la por babacas como vocês —
disse o Folião. — Posso contar apenas a você, garota. É o que ele disse.
Venha comigo se quiser saber, ou não. Eu não me importo.
O Folião deu meia-volta e subiu as escadas mancando. Lore olhou para os
outros, assimilando as suas expressões de choque e confusão.
— Manteremos nossa distância — disse Atena. — Mas não estaremos
longe.
Lore seguiu o novo deus. Os outros a acompanharam, freando o passo
quando alcançaram o topo da escada.
O novo deus parou quando alcançou a fonte no centro do pátio interno,
forçando Lore a encurtar a distância entre eles. Ele examinou os corpos, com
a expressão estranha.
Lore ouviu o desespero em sua própria voz quando perguntou:
— Para que isso tudo?
— Minha única missão para Fúria era encontrá-la — disse ele, sem
delongas. — Ele acha que você está com a égide e vai fazer qualquer coisa
para pegá-la de volta.
A escuridão em sua visão periférica se ampliou, e um formigamento
novamente adormeceu a ponta de seus dedos. Ela já esperava isso, mas a
semente de medo que a conversa com Iro plantara finalmente floresceu.
— Por quê? — disse Lore, com dificuldade. — Os Cadmídeos estão com
ela…
— Não tem por que mentir para mim. — O novo deus se voltou para Lore,
e ela não conseguia dizer se o que passou por seu rosto era asco ou pena. —
Você o humilhou. Toda a linhagem do deus da guerra sabe a verdade, mesmo
que não revelem às outras. Aristos Cadmou, superado por uma garotinha.
Mas isso cria um problema para você, não cria?
Lore sacudiu a cabeça, incapaz de falar.
— Eu encontrei você, sabia? — disse o Folião. — Foi um inferno… mas no
fim das contas, um acaso feliz, porque fui procurá-lo, e ele a encontrou
primeiro.
— De quem você está falando? — sussurrou Lore. — Quem me encontrou?
— Hermes — disse o Folião. — Você sabe onde ele estava todos esses anos
em que desapareceu… você sabe, porque ele estava com você.
VINTE E NOVE

LORE DEU UM PASSO PARA TRÁS.


— Não. Eu nunca o vi. Eu não…
— Durante todos esses anos, ele não estava planejando a própria
sobrevivência. Ele estava protegendo você — disse o Folião. — Uma jogada
idiota.
O Folião olhou para a fonte e para sua a água ensanguentada.
— Ele escolheu uma forma patética, mas funcionou contigo, não é? Aquele
homenzinho franzino. Ele fez que você sentisse pena dele. Fez com que você
quisesse ajudá-lo.
— Eu… — disse Lore. — Não, ele… não…
— Você achou mesmo que um estranho qualquer faria tanta coisa assim
para pagar o que você fez? Dar a você uma merda de casinha e uma vidinha
doce? — Seu tom passou a ser debochado. — Ele protegia aquela casa e
você. Ninguém podia entrar a não ser que fosse convidado. Demorei dias
para entender isso quando encontrei aquela casa. Que havia alguma coisa…
alguém… lá dentro que eu não conseguia ver. Ele usou seus poderes para
deixá-la invisível para todos nós, deuses. Muito esperto, Hermes. Você é só
uma merdinha que deu sorte por ninguém ter descoberto isso.
— Isso é impossível — disse Lore, lutando para manter a voz firme. Mas as
palavras de Castor já haviam ressurgido na sua memória: Tentei encontrá-la
por anos, mas foi como se você tivesse sumido. Não tinha vestígio nenhum
seu.
— É mesmo? — disse o Folião, como se falasse com um bebê. — Os
deuses podem se envolver com uma merda de névoa e desaparecer da vista
dos mortais e de outros celestiais. Ele deu algo a você, não deu? Algo para
que usasse o tempo todo e que continha o poder dele de afastar os deuses. É
claro, ele teria encantado essa coisa para fazer com que você se sentisse
inclinada a continuar usando, independentemente do que acontecesse. Ele
teria feito seu pequeno cérebro estúpido pensar que essa ideia era sua. Que
você amava o presente.
As mãos de Lore foram até seu pescoço desnudo. O colar com a pena.
Sua cabeça começou a latejar, martelando no mesmo ritmo da batida do seu
coração.
— A proteção dele durou até sua morte — prosseguiu o Folião. — Esse é o
único motivo pelo qual qualquer um de nós, incluindo os seus dois amigos
divinos, pode vê-la agora.
Lore cerrou as mãos em punhos para evitar que tremessem. Balançou a
cabeça negativamente com força, mas seus pensamentos já haviam começado
a juntar as peças para encontrar a verdade nas palavras dele. Não podia ter
sido coincidência que o fecho do colar tenha se quebrado na noite da morte
de Hermes…
— Mesmo depois que encontrei a casa, Hermes ainda não queria me ver —
disse o Folião. — Ele não me dirigia a palavra, não importando quantas vezes
eu fui lá, não importando o quanto tentei convencê-lo de vir comigo e servir a
Fúria. Não importando quantas vezes jurei pelo Rio Estige que nunca o
trairia, nem ao seu segredo. — Ele girou no próprio eixo, indo na direção de
Lore. — E tudo porque ele sentiu que tinha uma dívida com você… uma
merdinha, que deveria ter sido aniquilada junto com a sua família. — O
Folião ergueu a mão, como se fosse agarrar o pescoço dela novamente, mas a
deixou parada no ar.
Acompanhando cada batimento cardíaco, o Frick começou a desaparecer.
Cores e luzes rodopiaram ao redor dela, pintando a imagem da sua rua, da sua
casa. A cabeça de Lore parecia muito pesada, como se tivesse bebido uma
garrafa inteira de vinho.
— Você… — A boca da jovem ficou inteiramente dormente. — Você…
Isso não está certo… Gil…
Ela viu Gil na sala de estar, ligando seu toca-discos barulhento, fingindo
que a vassoura era um par de dança enquanto a música enchia o ar. Porém,
quando Lore se aproximou, viu que os pés do idoso estavam pairando sobre o
chão.
— Gil? — O Folião soltou uma risada perversa. — Era assim que ele
chamava a si mesmo?
A imagem de Gil se alterou diante dela. Ele ficava mais alto, com braços e
pernas mais musculosos, a pele macia, plena de juventude. Um brilho diáfano
crescia à sua volta.
— Eu vi o disfarce dele — disse o Folião, e sua voz estava distante. — Não
me surpreende que você confiasse nele. Deve ter parecido uma merda de
conto de fadas.
Lore sentiu o corpo se curvando enquanto uma onda de lembranças passava
por ela, levando embora as mentiras felizes.
— Não — disse ela. — Você está mentindo…
Mas…
Quais eram as chances de Gil estar jogado na sarjeta por horas naquela
noite e ninguém ter ouvido o assalto nem seus gritos por socorro? De ele ter
sido violentamente espancado em uma cidadezinha pacata? Até mesmo o
médico ficou pasmo por um ataque desses ter acontecido ali.
Gil nunca pressionou Lore sobre os machucados da jovem, nem naquele
momento, nem anos depois. Ele nunca questionara suas intenções. Gil lhe
dera boas-vindas em sua casa. Ele deixara tudo para ela quando faleceu…
Quando faleceu, poucos meses antes do início do Ágon
Hermes saberia que ele, Gil, desapareceria no começo da semana, sendo
levado para o lugar em que o Ágon aconteceria naquele ciclo, não
importando onde. Que havia uma chance de que morrer durante a caçada,
deixando Lore à deriva sobre o que houve com Gil.
Talvez a “morte” de seu disfarce tenha sido uma gentileza, mas só fez Lore
ficar mais furiosa. Ele deveria ter contado a verdade. Deveria ter se revelado.
Lore pensou ter ouvido Castor chamar por ela, mas não conseguia virar o
corpo na direção do chamado. Não podia se mover.
Foi mentira.
Mas isso também era. O novo Dionísio tecia loucuras. Ilusões.
— Pare — disse Lore, levando as mãos à cabeça. — Eu não quero ver isso.
A sua casa queimou até tudo em volta dela escurecer e o Frick voltar, sem
graça e uniforme, comparado com a vivacidade da alucinação.
— Diga-me — disse o Folião —, aquela casa tinha muito veludo verde? Ele
sempre teve um gosto horrível.
Lore levou a mão à boca.
— Tudo que eu queria dizer a ele era o motivo de Fúria querer a égide, mas
ele já devia saber, senão por que diabos se importaria em proteger você? —
disse o Folião. — Pensei que ele podia ter trazido o escudo para cá… não
para que eu o entregasse a Fúria, mas para que eu o destruísse. Não entendo
por que o idiota simplesmente não o destruiu e não acabou com isso e com
você!
— Porque eu não estou com a égide! — disse Lore a ele, novamente. —
Nada disso faz sentido!
— Não, sua merdinha — vociferou ele, baixinho. — O que não faz sentido
é por que você…
Um jato de sangue esbofeteou Lore no rosto quando o Folião cambaleou
para frente, caindo dentro da fonte. A pedra escureceu enquanto bebia o
sangue fresco. Lore assistiu, atordoada, enquanto a flecha que atravessou a
garganta do novo deus subiu à superfície da água.
Um corpo pesado caiu em cima de Lore, derrubando-a no chão enquanto o
vidro do telhado chovia em cima deles. Castor respirava com esforço e, cada
vez que soltava o ar, agitava as mechas soltas de seu cabelo contra o rosto
dela. As mãos dele tatearam a cabeça dela e o peito em busca de um
ferimento.
— Eu estou bem… Cas, eu estou…
Outra flecha passou rasgando no ar, fincando-se no azulejo ao lado da
cabeça dela.
Castor os arrastou para trás das colunas que cercavam o chafariz, até que
estivessem fora de vista do atirador desconhecido sobre o teto em forma de
domo. Com a visão periférica, ela viu Miles correr para a entrada do museu.
— É a Ártemis? — indagou Lore, ofegante, esticando o pescoço para cima.
— Leoas! — gritou Atena, arremessando uma das suas facas detrás da
coluna que lhe dava cobertura. A caçadora mudou de posição, evitando a
lâmina, mas não a dory que Atena atirou. O seu corpo caiu dentro do museu,
e a sua máscara de serpente rachou quando atingiu o mármore.
Lore ignorou a mão firme de Castor em seu ombro e se inclinou para a
frente, o suficiente para ver onde um dos grandes painéis da cúpula havia se
espatifado. Mais duas pessoas de preto emergiram; uma apontava para Atena.
A outra, erguendo o arco novamente, desta vez, o direcionava a Castor.
Castor lançou uma rajada de energia, desmoronando o telhado sob os pés
das caçadoras. As duas leoas caíram, que, muito bem treinadas, não gritaram,
nem mesmo quando os seus ossos se quebraram sobre os escombros.
Uma expressão de culpa esmagadora passou pelo rosto do novo deus e ele
fez menção de ir até elas. Lore o puxou para trás.
— Preciso curá-las — disse ele, se desvencilhando da amiga.
— Elas não merecem — disse Lore, e uma raiva terrível floresceu nas suas
palavras. — Deixe-as morrerem.
Castor a encarou, e ela ficou ressentida com esse olhar chocado. O que ele
esperava?
— Galera — gritou Miles —, nós temos que ir!
Com um último olhar para ela, Castor se soltou e correu pelo pátio na
direção das duas leoas. Lore teria ido atrás dele, não fosse o gemido
agonizante que a alcançou primeiro.
Ela deu meia-volta e se deparou com Folião lutando para firmar os pés nos
azulejos escorregadios enquanto tentava, em vão, sair da fonte.
Não estavam tentando matá-lo. O pensamento a animou. Elas eram leoas.
Precisavam incapacitá-lo, mas mantê-lo vivo por tempo suficiente, a fim de
que Fúria o liquidasse.
Lore correu até ele, chamando:
— Castor!
O novo deus deu meia-volta ao ouvir o chamado, soltando a leoa que havia
imobilizado. O brilho que a envolvia se apagou.
— Tola! — gritou Atena para Lore. — Pare!
— Ele está vivo! — disse Lore, agarrando o Folião pelos ombros e o
puxando de volta para o solo firme.
Os olhos do Folião estavam delirantes enquanto sua mão deitava-se flácida
sobre sua pele ensanguentada, tentando pressionar o ferimento no pescoço. A
flecha, de alguma forma, não acertou a artéria carótida. Lore cobriu a mão do
deus com a sua, pressionando com força para tentar estancar o sangramento.
— Tente relaxar — disse ela.
Ele balançou a cabeça negativamente, desvairado de dor. — Deve… ser…
entregue… deve ser… entregue…
— O que você está tentando dizer? — perguntou Lore.
Atena removeu a mão de Lore do pescoço dele e a substituiu com a sua. A
pele do novo deus estava pálida e pegajosa. Tudo que Lore via em sua face
era medo. Atena fitou o Folião com uma expressão distante.
— Cas! — chamou Lore de novo. O novo deus estava há poucos metros de
distância, mas parecia se mover em câmera lenta. Ela focou no Folião de
novo, dizendo:
— Aguente firme… só…
Um crac ecoou por entre as colunas de pedra quando Atena fechou a mão e
quebrou o pescoço dele.
— Por que você fez isso? — perguntou Lore, sufocada de perplexidade.
A deusa ficou de pé, limpando a mão ensanguentada no manto azul-claro
do Folião.
— Ele não podia ser salvo. Você preferia que o assassino ficasse com seu
poder? Você preferia tomá-lo para si?
Não, não preferia.
— Eu podia tê-lo salvado! — disse Castor, furioso.
— Aquele tolo nunca nos ajudaria — disse Atena. — Melhor morrer pela
minha mão misericordiosa do que pela dos inimigos.
— Ele não precisava morrer!
Passos vieram do telhado acima. Lore girou, os rastreando conforme
corriam em direção ao canto do edifício.
— Tem outro? — perguntou Miles.
Os pensamentos de Lore passaram como uma labareda pelas hipóteses.
Talvez não tivessem sido as leoas que atiraram no Folião, afinal de contas.
Talvez tenha sido o próprio Fúria.
Lore correu para a entrada, ignorando o grito assustado de Miles enquanto
arrancava o cassetete da maçaneta da porta.
Ela irrompeu porta afora, com os pés derrapando na calçada. Uma silhueta
sombria descia da parede que dava para o telhado. Ele pulou a uns cento e
cinquenta centímetros do chão, pousando com força no gramado.
Não era Fúria. O caçador deu meia-volta, sua máscara de serpente refletia o
luar. Ele escalou a cerca que demarcava a obra e pulou para a 70th Street.
Ela o seguiu.
— Lore! — chamou Castor. — Espere!
Ela não podia esperar. Não mais.
O caçador era uma sombra na escuridão da madrugada e se dirigia ao oeste,
cruzando a Quinta Avenida e passando por cima do pequeno muro de pedra
que marcava os limites do Central Park.
As mãos de Lore rasparam contra a parede quando ela pulou do muro. O
parque estava fechado a essa hora, mas os postes de luz ainda estavam
acesos. Se o caçador pensou que a despistaria ali, logo no seu parque, estava
prestes a ficar extremamente desapontado.
— Isso mesmo — murmurou Lore — continue correndo.
Ela o seguiria até os confins da cidade, e ele a levaria direto ao esconderijo
de Fúria, onde quer que fosse.
Gil…
Não, isso era bom. Agora ela manteria o olhar adiante, não olharia mais
para trás. Se não reconhecesse a dor, ela a abandonaria, assim como todo o
resto. A dor a abandonaria. A raiva, por uma vez na vida, lhe seria útil. Ela a
faria seguir em frente.
Não está perdida — pensou ela — e nunca será livre.
Lore não sentia apenas raiva, mas humilhação — todo esse tempo, ela
acreditou que existia fora do alcance dos deuses, que finalmente estava no
comando da própria vida.
Nada disso era real.
Nem o amor que sentiu por Gil, nem a esperança, nem mesmo os dias bons.
Lore não queria mudar uma única coisa sequer da sua casa ou mover um
único objeto. Ela sentia que preservar sua memória era uma coisa que devia a
Gil, mas tudo que fizera foi criar outro santuário para um deus.
Ele deve ter rido dela todos os dias.
— Construir uma nova vida, uma vida melhor — Gil a dissera —, vai
manter você seguindo adiante, até que, um dia, vai perceber que não está
mais tentada a continuar voltando para tudo o que perdeu.
Hermes. Hermes dissera-lhe aquilo. E para quê? Para ver se ela
eventualmente lhe entregaria a égide?
Pela primeira vez em sete anos, pensar no escudo não fazia o seu corpo
paralisar, como normalmente acontecia. Quase podia se imaginar segurando-a
— a sensação da alça de couro apertada em seu braço, o ronronar do poder
contido nela passando por seus sentidos…
Ela podia pegá-la. Podia tomar de volta o que era seu por direito. Se o Ágon
não a deixasse sair, derrotaria os seus integrantes no seu próprio jogo e
acabaria com eles antes que acabassem novamente com ela.
Lore enviaria a Fúria e a todos os outros uma mensagem que não poderiam
ignorar.
Para onde você está indo, serpentezinha? — questionou-se ela,
observando-o correr por entre as árvores do parque vazio. — Para que
buraco está rastejando?
Lore logo teve resposta.
O caçador havia ficado longe dos caminhos marcados do parque, preferindo
se manter pelas colinas do gramado e passar entre os parquinhos e as
estátuas. Agora ele diminuía o passo conforme se aproximava da cerca que
limitava a alameda.
A ampla passarela era ladeada por bancos de jardim e olmeiros. Ela ficou
um pouco mais atrás, mas ele já havia parado no centro do caminho.
Esperando por ela.
O caçador ergueu a sua máscara.
— Vamos lá, Melora — disse Belen Cadmou. — Vamos brincar.
TRINTA

A ADRENALINA, QUENTE E DOCE, PERCORREU O CORPO DE LORE.


Belen tinha todos os mesmos traços de arrogância do pai. A postura
relaxada e destemida. O sorriso presunçoso de alguém que nunca foi
derrubado de um trono. Mesmo como um bastardo, Belen foi agraciado com
um certo grau de respeito, por ser o filho único de Aristos Cadmou.
Mais respeito do que jamais foi concedido à Lore quando criança.
Belen jogou a sua besta para o lado, mas sacou um punhal comprido da
bainha amarrada na parte interna de seu braço. Lore empunhava a própria
faca, fazendo uma análise rápida dele. Lore era alta, mas o oponente era um
pouco mais. Lutar usando uma arma curta daria uma vantagem a ele, que
teria o alcance mais longo.
Mas ela estava mais furiosa. Belen era um presente. Não teria forma melhor
de mandar uma mensagem para Fúria do que deixando o corpo do jovem no
parque para que o deus da guerra o achasse.
Lore saiu das sombras.
— Vamos brincar então, seu babaca melodramático.
— É assim que você cumprimenta seu velho amigo depois de tanto tempo?
— lamentou ele, em tom de zombaria.
— Na última vez que eu o vi, você estava sentado aos pés do seu pai como
um cachorrinho obediente — disse Lore, olhando para o rapaz de cima a
baixo. — Parece que nada mudou.
— Para uma mulher, você quer se impor demais — disse ele, observando
Lore saltar sobre a pequena cerca.
— Que irônico, já que esta é a primeira vez que estou ouvindo você falar
por si próprio — disse ela. — O papai afrouxou a coleira, foi?
— Ele é o meu senhor e pai — disse Belen. — Um conceito desconhecido
para você, eu sei, já que não teve nenhum dos dois.
Lore ignorou o insulto e começou a rodeá-lo.
— Como será que o seu senhor e pai vai reagir ao saber que você não
conseguiu matar nenhum dos três deuses que estavam no museu?
— Não estava mirando no Folião — disse ele, e seu olhar a penetrava. —
Eu estava atrás de você.
Ela se esforçou para que sua surpresa não deslizasse sorrateiramente para
sua expressão.
— Estou lisonjeada.
— Ele quer aquilo de volta, Melora — disse Belen. — Ele não vai parar até
que o tenha novamente.
— O que quer que seja aquilo, não está comigo — disse Lore,
aproximando-se enquanto o circulava novamente. — Você está
desperdiçando seu tempo.
— Eu disse isso a ele — informou Belen, apontando sua faca. — Que você
já a teria usado se ainda estivesse com ela ou a teria entregado para um dos
deuses dos quais você vem se escondendo atrás.
— E mesmo assim, cá estamos nós — disse Lore. — Parece que ele não
liga muito para o que você pensa.
A expressão de Belen se fechou.
— Você é uma distração. Ela é uma distração. Tudo o que eu preciso fazer
é culpar a vadia de olhos cinzentos. Ela é leal apenas a si mesma. E quando
você estiver morta, ela desaparecerá para sempre e ele poderá se concentrar
no que deveria estar fazendo.
— E o que seria isso? — perguntou Lore.
Belen apenas sorriu e depois atacou.
Lore bloqueou o golpe com o braço livre, caindo sobre um dos joelhos e
girando para longe antes que ele pudesse prendê-la em uma posição
vulnerável. Ela se endireitou de novo, mantendo a arma em movimento para
evitar que ele se aproximasse muito.
Ele deveria ter outra adaga enfiada na bota e, muito provavelmente, outra
nas costas ou no quadril, mas ambas estavam escondidas sob seu manto de
caçador. Ela respirou fundo, tentando acalmar o aumento veloz de sua
pulsação. O problema dos combates de faca era que a maior parte envolvia
luta de contato. Raramente dava para sair ileso de uma situação dessas.
Mas Lore nunca teve medo de se cortar.
— Não sei como você escapou da primeira vez, mas não vai acontecer de
novo — disse ele. — Ouvi dizer que eles arrancaram os olhos das garotinhas
primeiro, mas as deixaram vivas por tempo o suficiente para ouvirem os pais
morrerem, só para que soubessem que ninguém viria salvá-las.
Lore avançou para cima dele, golpeando com a faca, forçando-o a manter
uma das mãos alta, para proteger o peito e o pescoço. Sua mente se
desconectou do corpo, e tudo o que lhe restou foi o poço profundo de pura
dor que cozinhava dentro dela por anos.
Vou na artéria — pensou ela, cruelmente, e se projetou na direção da perna
dele.
Foi um erro idiota, estabanado. Ela sabia disso, mesmo quando o seu corpo
não a ouvia e continuava atacando. Belen agarrou o braço dela e o bateu com
força contra a própria coxa, fazendo a arma da jovem voar longe. Lore
mergulhou para recuperá-la, mas Belen investiu contra ela, soltando um grito
gutural. Ele pressionou os joelhos e todo o peso na lombar de Lore, até que
ela pensasse que o oponente lhe quebraria a pélvis.
Lore resistiu, esperneando e gritando. Ela estendeu a mão na direção da
faca. A lâmina cintilou como uma garra, um pouco além das pontas dos seus
dedos.
Belen tirou o peso de cima dela apenas o suficiente para que a virasse
bruscamente. Ela ofegava, escorria sangue pelos braços dele, derramado das
mãos que bloquearam o golpe dela. Eles rolaram e rolaram, com a grama
grudando na face e nos braços da jovem que o agarrava, lutando para
imobilizá-lo. Ela aproveitou uma oportunidade e levou uma das mãos à bota
dele para ver se conseguia achar uma faca oculta, e achou. Pegando-a pelo
cabo, fez um corte na testa de Belen.
Ele soltou um grito abafado; não foi um corte profundo, mas uma cortina de
sangue escorreu até os seus olhos. A distração deu a ela tempo suficiente para
agarrar o pulso e dedos dele, desarmando-o. Ela deu outro golpe, enfiando a
faca na panturrilha esquerda. Dessa vez, Lore ficou satisfeita de ouvi-lo
gritar.
Com um impulso de força, ela inverteu as posições, prendendo-o sob si.
Belen tentou girar para se livrar dela, mas Lore o imobilizara, passando as
pernas ao seu redor e aumentando a força da pegada nos braços dele. Ele
cuspia como um cão raivoso. Lore ergueu a faca de novo, observando o
rápido subir e descer do peito dele, onde o coração estaria batendo sob
armadura, pele e ossos.
Lore teria enfiado a lâmina ali, se não fosse pelo sussurro de lógica que
escapou por entre a parte mais animalesca de seu cérebro.
Matá-lo não será o bastante.
Não seria. Fúria merecia conhecer a dor de perder um membro da família
de novo, mas matar Belen não traria nada ao rapaz, a não ser a glória. O kleos
vinha por meio da batalha, e não havia kleos maior do que o daqueles que
morreram bravamente.
Havia outra mensagem que ela podia enviar ao pai dele. Uma ainda melhor.
— Você já ouviu falar de Faetonte? — perguntou ela, se aproximando da
boca feroz de Belen. O sangue cobria o rosto dele, como uma segunda
máscara. — De como ele estava desesperado para provar a si mesmo para o
pai… tão desesperado que exigiu guiar a carruagem alada do pai, Hélio, pelo
céu?
— Cale a boca, vadia — vociferou Belen. — Cale a boca…
— Ele foi alertado de que não seria capaz de controlar os cavalos selvagens
da carruagem, mas sua arrogância o fez pensar que poderia tentar —
prosseguiu Lore. — Sabe o que aconteceu com ele?
Belen rosnou, tentando novamente tirá-la de cima dele por meio de sua
força bruta.
— Ele não conseguiu controlá-los. Os cavalos subiram alto demais. A terra
começou a esfriar quando a carruagem do deus sol foi se afastando — disse
Lore. — Zeus teve que acertá-lo com um raio. Ele pagou o preço por seu
desespero e orgulho com a própria vida.
Lore aliviou um pouco da pressão nos braços dele; deixou que ele pensasse
que ela havia se distraído, que ele tinha uma chance. As mãos de Belen se
ergueram, um brado se originou em seus pulmões, e ele foi na direção dela —
para empurrá-la, para estrangulá-la, ela não sabia ao certo. Parcialmente cego
com o próprio sangue, ele não viu o arco que a arma de Lore traçou até que já
tivesse decepado seus dois polegares.
Belen uivou de dor e raiva.
— Você pode viver. — debochou Lore. — Mas não conseguirá mais
empunhar uma arma.
Ela o cortara com uma faca, mas sua verdadeira arma foi o próprio Ágon —
todas as realidades cruéis que homens como ele e o pai adoravam infligir nos
outros. Agora ele as sentiria na própria pele.
Belen nunca alcançaria o kleos, não neste Ágon, e provavelmente em
nenhum outro. Talvez um dia alguém lhe desse uma prótese e o fizesse voltar
para a caçada, mas sempre carregaria as cicatrizes de perder para ela. Sempre
saberia o que é ser perseguido por sussurros: Derrotado pela garota Perseus,
a última do seu nome. Derrotado por um rato de esgoto que deveria ter
morrido há anos. Derrotado.
Ela escreveu a história de Belen, em vez dele mesmo.
— Lore!
Castor estava a uma curta distância deles, com o rosto pálido de choque.
Ela se afastou com um salto do corpo prostrado de Belen, ficando de pé.
Seu peito ficou apertado com a maneira com que Castor a olhava. Ele
devolveu a nitidez para o mundo: o céu que estava clareando conforme as
horas pendiam para a manhã; o sangue em suas mãos, braços e jeans, a
respiração que entrava e saía dela queimando.
Lore se viu através dos olhos de Castor, e como ela devia parecer meio
selvagem a ele. Como se fosse um monstro.
Algo nela se agitou de medo e raiva.
Um galho se quebrou e ela voltou a atenção para Belen. Ele se arrastava,
lutando para ficar de pé. Ele se engasgava a cada fôlego, abraçando o próprio
peito com força, com as mãos ainda jorrando sangue.
Castor começou a andar na direção dele, mas Lore entrou no seu caminho.
Ele fez um inventário mental dos cortes nos braços dela, metade dos quais ela
nem havia notado ou sentido, e estendeu a mão para curá-la. Lore resistiu,
não querendo ser tocada nem sentir nada que fosse gentil.
— Onde estão os outros? — perguntou ela.
— Voltando para a casa. Lore, o que o Folião disse a você? — perguntou
Castor. — O que poderia ter causado… isso?
As palavras dele a irritaram.
— Isso? Tipo, tomar uma atitude?
— Lore — recomeçou ele, com uma nova intensidade em sua expressão. —
O que aconteceu? O que está acontecendo?
Lore não disse nada. Ele tentou passar por ela, apenas para ser novamente
impedido.
— Aquele era Belen Cadmou? — perguntou ele. — Por que você o deixou
fugir?
Lore se ajeitou, bloqueando o caminho dele pela terceira vez.
A expressão de Castor passou de choque para raiva, de um jeito que ela
nunca vira antes.
— Nós podíamos interrogá-lo. Por que você o deixou fugir?
— Ele vai ser uma mensagem melhor do que um corpo — disse Lore.
Castor balançou a cabeça negativamente, emitindo um ruído de frustração.
— Mas você não está apenas se arriscando ao irritar Fúria — disse ele, de
forma direta. — Está arriscando a todos nós, incluindo Miles.
O zumbido estava de volta em sua cabeça, transformando o ar em chiado
nos seus ouvidos. A sua pulsação deu um salto e sua visão periférica ficou
escura. Miles…
Ela não havia pensado em Miles.
— O que o Folião te disse? — perguntou Castor. — O que te deixou com
tanta raiva a ponto de fazer isso, depois de tudo que você me disse mais
cedo? Essa não é você!
— Talvez seja — retrucou ela.
— Não — disse Castor. — Você é uma boa pessoa, Melora Perseus. Você
não é o que eles tentaram fazer de você, nem mesmo o que tentou ser por
eles. Nenhum de nós é.
— Somos exatamente o que eles nos tornaram — disse Lore, não se
importando com a voz que falhava, com as palavras que saíam trêmulas
devido à dor que foi reprimida por muito tempo. — Somos monstros, Cas,
não santos. E não, matar Fúria não mudará o que aconteceu, mas é a única
coisa que eu sei fazer. É a única coisa que fomos ensinados a fazer.
As mãos de Lore foram como garras contra o peito dele, mas ele mantinha a
leveza ao segurar-lhe os pulsos, como se a desafiasse. O calor que ele emitia
afastava o ar frio e o cheiro da grama. Ele apagou o resto do mundo. Criou o
próprio eclipse.
— Eu quero que Fúria sofra — sussurrou ela. — Eu quero que ele sinta
medo e quero ser a pessoa que tomará a vida de seu corpo.
— Vamos encontrar outras formas de lidar com ele — disse Castor,
suavemente. — Formas melhores. Não deixe que eles tirem essa esperança de
você.
Castor se aproximou. Dessa vez, Lore foi quem se afastou. Aquilo pareceu
alarmá-lo mais do que qualquer coisa. Ele se afastou, dando um espaço que
Lore não queria — quando Lore não tinha certeza do que queria.
Ele fechou os olhos.
— Lore…
A forma como ele disse o seu nome…
Uma tempestade estourou dentro dela. Lore o atingiu com o braço e Castor
bloqueou, como ela sabia que ele faria, deixando a parte central vulnerável,
como ele sempre deixava.
A raiva se transformou em confusão, depois em instinto, e em seguida, em
necessidade. Ela agarrou o rosto de Castor e o puxou para baixo, trazendo os
lábios dele até os dela.
Castor ficou imóvel como uma pedra, seus lábios se abriram levemente. Ele
não se afastou. Nem Lore. Os dedos dela deslizaram por entre o cabelo
grosso e encaracolado dele.
— Lore…
Ela queria que ele continuasse dizendo o seu nome daquele jeito, como se
fosse a única palavra que conhecesse.
Ela era sem jeito, inexperiente e selvagem, mas Castor também era. Suas
mãos cobriram as dela, as mesmas mãos que a ajudaram a levantar do chão
inúmeras vezes. As mesmas mãos que a ergueram para alcançar patamares
mais altos enquanto escalava. As mesmas mãos que ela segurou enquanto ele
se deitava, morrendo.
Lore não queria pensar. Queria desaparecer naquela sensação. Raios
desceram por sua coluna quando ele gemeu.
Castor a envolveu até que nada mais importasse no mundo a não ser seus
lábios e seu toque. O calor dentro dela aumentou, absorvendo a sensação da
pele dele e amolecendo o seu corpo novamente contra os traços rígidos do
corpo dele. A língua de Castor acariciou a dela, e ele a puxou para mais perto,
até que ela sentisse a necessidade gritante que ele tinha dela, e um peso se
instalou em seu estômago em resposta.
Nos anos em que treinaram juntos, Lore passou a conhecer o corpo do
amigo tão bem quanto o seu próprio. Mas cada parte dele era como uma
revelação para ela agora, algo que ela precisava, mas não sabia que queria até
agora. Eles estavam lutando de novo, tentando recuperar a noção, para
controlar o beijo.
— Lore — murmurou ele. — Lore…
Castor se afastou tão repentinamente que a deixou desequilibrada.
Lore ainda tentava tocá-lo, desorientada e desesperada, quando ele ergueu
uma das mãos para impedi-la. Ele a olhava de uma forma que era quase de
partir o coração.
— Faça isso de novo quando você realmente quiser, Áurea — disse ele,
com a voz grave. — Não para me distrair.
Ele não esperou pela resposta de Lore; partiu, procurando por Belen. Lore
tentou recuperar o fôlego, passando as mãos no cabelo e agarrando-o.
— Merda… — sufocou ela. — Merda.
Ela correu atrás dele.
Belen atravessara todo o caminho, saíra do parque e se dirigia ao centro da
cidade. Ele andava mais rápido do que ela esperava, mas o corpo podia fazer
coisas incríveis sob a influência da adrenalina.
Lore e Castor seguiram o rastro do sangue de Belen até a Quinta Avenida,
assustadoramente vazia sem os turistas fazendo compras e a aglomeração de
nova-iorquinos tentando chegar nos prédios comerciais.
Ela evitou cuidadosamente olhar para Castor enquanto corriam, confusa
demais, corada demais devido ao constrangimento pungente e ao anseio pelo
que ela — pelo que eles — haviam feito. Era uma sensação parecida com ter
quebrado um osso e ele não ter se curado do jeito certo. Por um momento, ela
ficou apavorada ao pensar que aquela seria a sensação entre eles para sempre.
Que havia feito algo que nunca poderia ser desfeito.
Belen estava a uns quatro quarteirões à frente, mas ainda cambaleava. Seu
celular acendeu em suas mãos, e ele tinha dificuldade de segurá-lo.
Castor cerrou o punho até que brilhasse de energia. Ele o ergueu, como se
fosse enviar uma rajada na direção do caçador, mas parou. A luz crepitante
desapareceu quando ele relaxou a mão.
— O que foi? — perguntou Lore, hesitante, atrás dele.
— Ele está longe demais — disse Castor. — E eu… eu posso acabar
explodindo o quarteirão todo.
Ele estava certo por se preocupar. Conforme se aproximavam do
Rockefeller Center, várias pessoas já começavam a ir para o trabalho ou
estavam saindo de um turno tardio. A enorme estátua de bronze de Atlas,
lutando com o peso do mundo nos ombros, observava esse ir e vir.
Houve um fraco zumbido ali perto, como o de abelhas. Lore deu meia-
volta, avistando Belen de pé, bem do outro lado da rua.
— Ei, Melora — disse ele, com voz irregular. — Já ouviu falar dos
pássaros de Estinfália?
Um drone desceu, ficando entre eles, com penas gravadas nas suas asas
metálicas. Um bracinho mecânico surgiu debaixo delas e soltou algo — um
dispositivo, uma faixa de prata.
O ar em volta de Lore rugiu, explodindo em uma onda de pressão e calor
que devorava tudo em seu caminho e dissolvia o chão sob seus pés.
Lore saltou, entrando na frente de Castor. A explosão a atingiu em cheio, e
ela voou, entrando completamente na luz furiosa.
TRINTA E UM

EM ALGUM LUGAR, PARA ALÉM DO LAMÚRIO ECOANDO EM SEUS OUVIDOS, LORE


ouviu um ruído, como areia se movendo. Ao perceber que respirava, se deu
conta de que ainda estava viva e que suas costas ardiam.
Lore se levantou ofegante, e suas costas atingiram a parede de chamas que
pairava sobre ela. Luzes e cores explodiam em sua visão.
A explosão…
— Lore — disse uma voz tensa, acima dela. — Está… tudo bem…
A dor era latejante, tomando vida assim que Lore voltou a si. As palmas de
suas mãos estavam em carne viva, e suas roupas, rasgadas. Corria uma dor
incômoda por seu corpo, que não era nada em comparação à dor na cabeça,
que latejava como se tivesse sido aberta.
— O quê…?
Sua boca estava coberta de poeira e cinzas. Lore tossiu, lutando para se
manter de pé, para escapar do calor que ondulava atrás dela. Ela não
conseguia entender o que via.
Montes de asfalto escuro, destroços amarelos do que restava de um táxi e
blocos de concreto que haviam caído, formando um círculo de destruição ao
redor dela. Todo esse caos acontecia fora da redoma de luz intensa e
crepitante que a rodeava como uma barreira protetora.
Lore esticou o pescoço para trás, erguendo a cabeça. Ela conhecia esse
poder.
— Cas? — disse ela, sufocada.
Castor estava curvado sobre ela, com os braços erguidos e as palmas das
mãos estendidas. Acima dele, tentando atravessar a barreira do novo deus,
estava uma placa enorme de concreto.
Ela balançava no ar, montada na explosão de calor e luz. Aquela era a fonte
do som de areia se movendo que ela ouvira. O concreto estava sendo
incinerado até virar um pó fino, escorrendo pelas bordas da barreira e se
empilhando ao redor.
— Não. Se. Mexa — disse Castor, por entre os dentes.
Os tendões do pescoço do novo deus estavam retesados devido ao esforço
para manter seu poder estável. À medida que o concreto queimava,
fragmentos do céu da manhã e fumaça eram revelados logo além dos ombros
largos de Castor. Seu corpo estava tenso com o esforço, como se ele, de fato,
erguesse todo o peso dos céus nas costas.
Pingava suor de seu queixo, e Lore percebeu que o próprio corpo estava
encharcado de transpiração.
A palavra passou sussurrando por ela. Deus.
Lore o fitou e seus pensamentos eram um verdadeiro caos. Ele a fitou de
volta por um segundo, e as brasas de seu poder brilhavam mais do que ela já
havia visto; depois ele fechou os olhos com força e virou o rosto.
— Fique. Perto.
O círculo de luz incandescente encolheu para mais perto dela, cintilando
como uma chama prestes a se extinguir.
Lore virou o rosto de modo a encará-lo e se aproximou o suficiente para
descansar a bochecha em seu ombro e envolver os braços ao redor do novo
deus.
Belen.
Eles não deviam ter ido atrás dele.
— Todas essas pessoas… — ela começou a dizer, sufocada com as
palavras.
A explosão lampejou novamente em sua cabeça, ardendo de maneira
terrivelmente detalhada. As pessoas que diminuíram o passo para observar o
drone. O chão em erupção, como uma ferida. Vidro estilhaçando. O rugido de
metal sendo destruído e entortado.
Castor balançou a cabeça.
— Eu tentei…
A luz estremeceu em volta deles de novo, ficando menor.
— Você está bem? — perguntou ela. — Está machucado?
— Bem — prometeu ele, virando o rosto para repousar a face no topo da
cabeça de Lore.
Lore se forçou a respirar com calma, na esperança de deixar sua pulsação
estável. Ou será que ela sentia a dele agora, batendo firme e forte pelos dois?
Vivo. Lore tentou imaginar como ele encurtou a distância entre eles e a
protegeu, não só da explosão, mas também da queda. Ela imaginou a cena de
diversas maneiras, mas cada uma fazia menos sentido do que a outra.
A areia continuava descendo pela barreira de luz. Uma sirene soava ao
longe. Lore se fixou no som conhecido, utilizando-o para se ancorar no
momento. Eles precisavam sair dali antes que chegassem os veículos de
emergência.
Pelo menos esse receio era uma ferramenta. Lore o transformou em base
enquanto o terror maior se desprendia de sua mente.
— Não posso. — Castor soava aflito. — Por favor.
Os últimos centímetros do bloco de cimento partiram pela metade acima
deles, caindo com força sobre os escombros no entorno. A barreira protetora
sumiu como um sopro no vento.
Castor caiu para a frente, envolvendo-o com os braços e enterrando o rosto
em seu cabelo. Lore cambaleou, absorvendo o enorme peso dele.
— Não consigo — disse ele, fraco.
— Cas? — chamou ela, com a garganta doendo. Quando ele não respondeu,
ela o chacoalhou. — Cas!
Seus joelhos começaram a ceder, mas Lore resistiu, procurando um jeito de
sair da fenda e voltar para o que quer que tenha sobrado da rua.
— Não me faz te arrastar, grandão — disse ela, com a voz rouca.
Lore tentou chacoalhá-lo de novo, mas Castor estava apagado. Por um
momento aterrorizante, ela se preocupou, pensando que o poder que a deixou
tão maravilhada esgotara seu corpo mortal.
O peso de Castor era insuportável, mas Lore não tinha escolha. Ela foi
conduzindo o amigo para a esquerda, onde havia um caminho mais óbvio,
mesmo que instável, para subir e sair do entulho que desmoronou.
De vez em quando, concreto meio frouxo e cinzas se moviam, mas as
passadas de Lore eram estáveis, e sua força não vacilou enquanto carregava
Castor. Ela teve dificuldade, o arrastando e o empurrando e o erguendo até
que todo o seu corpo estivesse tremendo e a borda da cratera, ao alcance
deles.
Lore olhou para cima.
Atena estava a uns metros de distância. Seus braços estavam erguidos
acima da cabeça, aguentando o peso de uma das pedras gigantescas da
fachada de um edifício vizinho. A pedra pairava sobre as pessoas que
carregavam as vítimas e os feridos para longe do local da explosão. Se
alguém notou tamanha exibição de poder, estava muito grato por estar vivo
para prestar atenção nisso.
As ruas e calçadas estavam tomadas por corpos, alguns explodiram em
formas grotescas, outros estavam estendidos sobre poças do próprio sangue.
Era como um campo de guerra. Cinzas e poeira de cimento tomavam o ar,
rodopiando em um movimento melancólico antes de pousarem nos corpos
como mortalhas.
Atena esperou até que o último ferido fosse removido antes de abaixar os
braços, soltando os destroços em brasa na calçada com um cuidado
inabalável.
Defensora das cidades. Algo desconfortável se agitou em Lore com este
pensamento, e ela afugentou essa sensação antes que ela pudesse crescer.
Lore se preparou para a ira da deusa, para ouvir o quanto fora egoísta por
arriscar a vida deles. Em vez disso, enquanto passava por entre uma parede
de fumaça para alcançá-los, Atena a olhou com aqueles olhos cinzentos e
sábios.
— Eu o carregarei — disse Atena. — Vamos embora deste lugar.
Atrás dela, uma onda formada de policiais fardados e bombeiros chegava e
abria caminho até as vítimas e os escombros. Aqueles que sobreviveram
fugiram em pânico, puro e primitivo. A poeira dos escombros os deixara
pálidos como fantasmas.
Atena ergueu Castor em seu ombro com facilidade, e eles correram o
máximo que Lore podia aguentar, evitando cuidadosamente as barreiras que
estavam sendo erguidas em volta do complexo de edifícios.
— Miles? — disse Lore, ofegante.
— Ele retornou para a casa — disse Atena.
Lore assentiu, tentando engolir a bile e as cinzas que se acumulavam no
fundo da garganta.
— Diga-me o que aconteceu — disse Atena, com um tom de urgência. —
Quem você perseguia?
Lore repassou a história, com a voz hesitante. Ela se preparou para a
desaprovação e a ira da deusa pelas atitudes que Castor claramente viu como
imprudentes. Em vez disso, Atena assentiu com a cabeça.
— O que você fez foi necessário — disse ela. — Sua conduta irritará o
falso Ares, mas também o deixará impulsivo, e isso, Melora, nós podemos
usar a nosso favor.
— Castor acha que tudo o que eu fiz foi pôr um alvo maior nas costas de
todo mundo — disse Lore, fitando-o brevemente.
— Então talvez seja hora de nos separarmos dos outros — disse Atena. —
Eles não entenderão o que deve ser feito agora. Vejo que você se culpa pelo
que aconteceu, mas essa culpa não deveria recair sobre os ombros do falso
Apolo? Não foi você quem optou por seguir Belen Cadmou.
— É só que… — começou Lore, precisando respirar fundo de novo, e seu
peito ficou apertado com essa ideia. Ela podia ter se esforçado mais para
fazer Castor mudar de ideia. Ela deveria ter feito isso.
O ocorrido foi resultado de uma cataclísmica série de escolhas, e ela não
negaria seu papel nisso tudo.
— E o falso Dionísio? — indagou Atena. — O que ele podia contar
somente a você?
Todos os pensamentos de Lore estavam desgastados demais, e sua cabeça
ainda latejava. Ela não confiou em si mesma, acreditando que deixaria a
verdade escapar.
— Mais tarde. Prometo.
A deusa deu um pequeno aceno com a cabeça, voltando sua atenção de
volta para a rua.
— Desculpe pelo que eu disse mais cedo — disse Lore. — Sobre você não
se importar. Obrigada por salvar aquelas pessoas.
Atena podia odiar os mortais que a rejeitaram, mas não renunciou ao seu
cargo sagrado. Palas Atena, a temida defensora das cidades.
— Sempre farei o que deve ser feito — disse Atena. — Ainda assim, a
questão permanece a mesma, você fará?
Não deixe que puxem você de volta — Castor a havia alertado. — Não há
nada além de sombras aqui.
Mas ele não entendeu o que Lore acabara de fazer. Monstros vivem nas
sombras. Para caçá-los, você não pode temer segui-los. E a única forma de
destruí-los era ter os dentes mais afiados e o coração mais sombrio.
TRINTA E DOIS

JÁ ERA BEM DEPOIS DO NASCER DO SOL QUANDO CHEGARAM EM CASA. COM O


aumento absurdo de viaturas de emergência no centro da cidade bem no
horário do rush matinal dos nova-iorquinos, o tráfego estava impossível para
que se pudesse pedir um táxi ou usar aplicativos de transporte.
Lore apenas conseguia imaginar o estado que aparentavam para quem os
olhava na rua, especialmente com Atena carregando Castor, mas ela não
ligava. Não conseguia nem pensar se poderiam estar sendo rastreados ou
quem poderia estar seguindo-os.
Apesar da necessidade de entrar logo em casa e sumir de vista, Lore seguia
lentamente quando entrou em seu quarteirão, e tudo pareceu paralisar quando
aquela que foi sua casa nos últimos três anos emergiu na névoa matinal.
Olhando agora para a sua velha casa, para os vasos de plantas alinhados nos
degraus, para as cortinas de renda na janela — tudo o que ela sentiu foi
repulsa. A vista a fez lembrar de repente do falso templo na Casa Tétis: a
ilusão feita de imagens e mentiras. Todas as memórias que ela construíra ali
foram manchadas, e por um momento Lore não conseguiu lidar com a ideia
de passar pela porta da frente.
Ela não lutou contra a raiva desta vez. Deixou que o sentimento falasse por
ela.
Use a casa. Use-a da mesma forma que ele tentou usá-la.
— Qual é o problema? — perguntou Atena.
Lore balançou a cabeça negativamente.
— Nada. Vamos entrar.
Van os encontrou na porta, conduzindo-os para dentro com um olhar
preocupado.
— Ele está bem?
Lore assentiu com a cabeça. Esperava que sim. Então, reparou que alguém
não estava lá.
— Miles?
Van suspirou.
— O chefe do estágio pediu que ele fosse até a prefeitura, no centro, para
ajudar com a demanda da mídia e com briefings sobre o ataque. Ele disse que
estaria de volta em algumas horas.
A televisão estava ligada, mas no mudo, exibindo relatos sobre a explosão
no Rockefeller Center. Mas foi a tela do notebook de Van que chamou a
atenção de Lore, na mesinha de centro. Estava reproduzindo uma série de
vídeos; em intervalos de poucos segundos, a imagem mudava para um ângulo
diferente. Algumas cenas eram claras, outras eram embaçadas, mas todas
estavam rastreando uma única pessoa enquanto ele atravessava a rua.
Miles.
— O que diabos é isso? — questionou Lore.
Com uma relutância óbvia, Van se voltou para o computador e depois a ela.
Ele deixou os ombros caírem enquanto fechava o notebook e o pegava.
— Vamos… vamos levar o Cas para cima. Eu vou explicar.
Atena fez o que ele pediu, seguindo cuidadosamente pelo corredor para não
bater com Castor nas paredes, apesar de Lore saber que ela queria fazer isso.
Ela o colocou na cama de Lore, deixando que a jovem pusesse os membros
pesados do rapaz em uma posição mais confortável. As longas pernas de
Castor pendiam da ponta da cama.
— Esse programa se chama Argos — disse Van, colocando o notebook
sobre a cômoda. Passei anos codificando. Foi feito para procurar por deuses e
inimigos usando reconhecimento facial; ele consegue hackear imagens ao
vivo de qualquer câmera de segurança, contanto que ela ou o sistema de
backup esteja conectado à internet.
Atena se inclinou na direção da tela, assistindo à pequena imagem de Miles
na plataforma do metrô e tentou cutucá-la com o dedo. Van a puxou de volta
antes que quebrasse a tela sem querer, o que lhe rendeu uma encarada feroz.
— Você está me dizendo — disse Lore, tentando não perder o controle
sobre o último pingo de paciência restante nela — que desperdiçamos todo
esse tempo andando em círculos para descobrir onde o Folião estava e você
poderia simplesmente ter usado esse programa para procurar por ele? Tem
algum outro programa secreto que você queira revelar agora, ainda que seja
tarde?
— O programa não é perfeito — disse Van. — Eu preciso importar uma
foto para que ele funcione, e a única que eu tinha do Folião em sua forma
mortal não era nítida o suficiente… e antes que pergunte, eu já procurei por
Fúria. Se ele anda pela cidade, está usando uma máscara. O programa não
consegue localizá-lo.
Lore inspirou profundamente.
— O que os noticiários estão falando sobre o ataque?
— Não muito, além de que estão suspeitando ser uma atividade terrorista
— disse Van. — Agora seria um ótimo momento para me contar o que
aconteceu, porque todo o falatório entre os Mensageiros é que o Folião está
morto e que as imagens das câmeras de segurança do museu, do parque e do
Rockefeller Center foram apagadas.
É claro. Lore não tinha dúvidas que os Cadmídeos puseram as mãos nas
gravações do Central Park e as deletaram também. Ela tentou contar a ele o
que aconteceu no Frick, sobre Belen, sobre a explosão, mas era como se a sua
mente não conseguisse formar frases que expressassem seus pensamentos.
— Eu lhe contarei o que houve nessas últimas horas, Evander — disse
Atena.
Lore fitou a deusa com um olhar agradecido.
— Vou cuidar de Castor.
A deusa assentiu.
— E de você mesma também. Descanse, por hora.
Ela esperou até que os passos pesados de Atena entrassem em um ritmo
estável nas escadas antes de se aventurar no banheiro do corredor. Lore pôs
as mãos na pia, encarando a fuligem e as crostas de sangue que se
acumulavam nelas. Então, quando se sentiu corajosa o suficiente, se olhou no
espelho.
Seu cabelo estava todo emaranhado e coberto por uma poeira clara. Sua
pele perdera quase toda a cor e seus olhos estavam vermelhos e cheios de
hematomas em volta, como se ela tivesse entrado em uma briga de socos
contra a própria noite e perdido. Ela se surpreendeu por nenhuma pessoa que
passou por eles ter chamado a polícia ou a ambulância, porque Lore nunca
pareceu tão assustadora na vida.
Ou tanto com uma caçadora.
Ela lavou o rosto rapidamente e umedeceu a escova de cabelos para
desembaraçar o emaranhado ondulado antes de trançá-lo nas costas. Levou
alguns minutos para limpar e desinfetar os cortes no braço e para fazer
curativos maiores nos mais profundos. Sabendo que a toalha que usou não
tinha mais salvação, jogou-a fora e pegou novas para cuidar de Castor.
O quarto fedia à fumaça rançosa, um cheiro que emanava dos dois. Ela
ficou ali por um momento, olhando para Castor, para seu grande corpo
fazendo a armação da cama envergar. Apesar das fortes linhas de seu rosto e
de seu maxilar quadrado, ele parecia quase um garoto para ela ali.
Vulnerável.
Lore passou a toalha pelos braços e pernas de Castor. Os cortes já estavam
se curando, graças ao seu poder, mas ele estava coberto de fuligem. Ela o
limpou, de forma calma e metódica, deixando que seus pensamentos
surgissem e depois fossem embora, para que não tivesse que lidar com eles.
Pés. Pernas. Mãos. Braços.
Ela havia feito aquilo incontáveis vezes na Casa Tétis depois de treinarem,
quando não significava nada além de cuidar do seu amigo e hetaîros. Mas
enquanto ia limpando o pescoço e o rosto dele, Lore sentiu repentinamente
livre ao perceber que aquilo não era a mesma coisa que foi um dia.
Sua mão estremeceu quando ela passou a toalha pelos lábios dele, lutando
contra a onda de calor que serpenteava em seu corpo. Ela estava com raiva de
si mesma por tê-lo beijado, por ter cruzado o limite, por tê-lo chateado, por
ter mudado tudo.
— Não me odeie — sussurrou ela. — Por favor, não me odeie…
Quando ela terminou, e Castor parecia novamente consigo mesmo, Lore
sentou-se ao lado da cama, se inclinando para trás e levando os joelhos até o
peito. Deixou a cabeça cair no colchão e fechou os olhos. A voz de Atena a
encontrou ali, ecoando em aviso.
Eles não entenderão o que deve ser feito agora.
Quando Lore abriu os olhos novamente, a luz no quarto já estava diferente
com o cair da noite.
Ela ficou desorientada por um momento, tentando se lembrar de como
chegou ali e por que seu corpo estava tão rígido. Havia um peso leve e quente
sobre seu ombro. A mão de Castor escorregou da cama, como se o novo deus
precisasse confirmar, mesmo aparentando estar em sono profundo, que ela
ainda estava ali.
Lore a segurou, levando-a até a testa, enquanto tentava sair do sono que
persistia em sua mente.
Seu polegar acariciou os nós dos dedos de Castor, e ela sentiu… não soube
ao certo o quê. Antes, Lore estava muito segura de que os sentimentos que se
moviam dentro dela, uma dolorosa fusão de afeto, saudade e proteção, eram
bem diferentes dos que existiram entre eles quando crianças. Mas eram
mesmo? Ou a ausência e o tempo simplesmente os deixaram em evidência de
um jeito que ela pudesse finalmente compreendê-los?
Lore teve sua família. Sua linhagem. Seu nome. Ela carregou o peso dessas
responsabilidades desde o primeiro momento que aprendeu a palavra Ágon.
Castor, no entanto… Castor sempre foi diferente. Parecia um presente dos
deuses para ela, que parecia um presente para ele.
E agora eu vou perdê-lo para os mesmos deuses — pensou ela, com um nó
na garganta. Se ele morresse ou vencesse o Ágon, o resultado seria o mesmo.
Nunca mais estaria com ela desse jeito de novo. Ela nunca mais sentiria sua
pulsação nem colocaria o ouvido no coração do rapaz para ouvi-lo ecoar o
dela.
Lore segurou a mão de Castor com mais força, e ele emitiu um ruído suave
e reconfortante. Ela pensou que seu coração se despedaçaria quando ele se
voltou para ela, cujos cílios escuros roçavam-lhe as faces. Lore se forçou a
ficar de pé, para gentilmente descansar o braço de Castor em seu tórax, pois a
única opção que restava era ceder à necessidade de chorar como uma criança
e implorar aos deuses pela misericórdia que ela sabia não merecer.
Silenciosamente, Lore separou roupas limpas e se trocou no banheiro. De
lá, ouviu a porta da frente se abrir e se fechar e a voz distante de Miles
chamar:
— Olá?
Ela começou a descer as escadas, querendo muito vê-lo, estando mais que
um pouco desesperada para se certificar que ele estava bem, mas diminuiu o
ritmo quando ouviu o barulho dos armários da cozinha se abrindo e se
fechando e o começo de uma conversa em voz baixa.
— …teve nenhum problema? — perguntou Van.
— Você ligaria se eu acabasse tendo? — retrucou Miles. Então, um
segundo mais tarde: — Desculpa. Isso foi rude. O metrô estava zoado, mas
tirando isso, tudo correu bem. Lore e os outros, como estão…?
— Descansando.
Lore desceu os últimos degraus cuidadosamente para evitar que algum
deles rangesse. Passou, encostada na parede, pelo corredor que dava para a
cozinha. Dali, pôde ver os dois pelo reflexo da janela. Van à mesa com o seu
computador, Miles perto do fogão.
— Quer alguma coisa? — perguntou Miles. — Estou fazendo um chá
normal, posso tentar preparar o que Lore fez, que é meio estranho.
— Néktar? Não, obrigado. Sempre detestei o gosto daquilo — disse Van,
sem tirar os olhos do computador. Lore ouviu o barulho dos seus dedos
digitando. — Se bem que um copo de leite morno cairia bem agora.
Houve um longo período de silêncio. O barulho de digitação finalmente
parou.
— O quê? — perguntou Van.
— Um copo de leite morno — disse Miles, entretido. — Está bem. Saindo
já, já, vozão.
Van deu uma risada, mas voltou a dar atenção para aquilo em que estava
trabalhando, o que quer que fosse. Atrás de Lore, na sala de estar, a televisão
estava ligada, mas o volume era bem baixo. Ela se concentrou no som da TV
e na própria respiração que subia e descia em seu peito.
Após alguns minutos, bem quando Lore estava tentada a anunciar a sua
presença, Miles pôs duas canecas na mesa e abriu o próprio notebook.
Conhecendo-o, Miles escolheu a cadeira ao lado de Van só para irritá-lo de
brincadeira, mas Van não conseguiu resistir a olhar para a tela de Miles.
— Posso te ajudar com alguma coisa? — disse Miles, afastando a tela.
— Você está… está pesquisando mitologia grega na Wikipédia? —
perguntou Van, incrédulo.
— Qual o problema? — disse Miles, na defensiva. — Estou um pouco atrás
nesse grupo. A última aula de mitologia que eu tive foi no sexto ano.
— Você pode simplesmente me perguntar o que quiser saber — disse Van.
— Ah é? — perguntou Miles, se inclinando para trás a fim de bebericar seu
chá. — Posso perguntar qualquer coisa e você vai mesmo me dar uma
resposta?
— Eu não disse qualquer coisa — disse Van, atipicamente perturbado. —
Eu disse qualquer coisa relacionada ao Ágon.
— Está certo, aqui vai uma — disse Miles. — Uma boa quantidade de
caçadores da sua linhagem abandonou Castor, então por que você é tão leal a
ele?
Lore quase caiu para trás quando Van respondeu.
— Castor é o único… — Van começou a dizer, parecendo ter dificuldade
para encontrar as palavras certas. — Ele é o único amigo que já tive. O único
disposto a ser meu amigo, está bem?
— Está bem — disse Miles, suavemente.
— Não… — disse Van. — Não faça isso. Não sinta pena de mim. As coisas
simplesmente aconteceram assim. Ao contrário de todo o resto, ele nunca me
diminuiu por não querer combater e por ser relativamente ruim nisso. Ele não
gostava de lutar, e ainda não gosta.
— Eu ia fazer uma comparação comigo na educação física, mas desisti
dessa ideia — disse Miles. — A educação física de vocês ensinava como
matar os outros.
O comentário tirou uma risada leve de Van.
— Eu sei que você acha que eu estou sendo… duro. Mas a única coisa com
a qual me importo é protegê-lo e garantir que ele sobreviva a essa semana. Eu
não pude ajudá-lo antes, quando teve uma recaída e o câncer voltou. Eu não
consegui convencê-lo a parar de treinar quando nos falamos no telefone,
mesmo que isso o deixasse exausto.
— Por que ele continuou treinando se era tão ruim?
— Por causa da Lore — disse Van. — Ele não queria desapontá-la, porque
ela perderia o parceiro de treino e teria que abandoná-lo. Mas, além disso, ele
sempre queria se encontrar com ela. Sempre queria segui-la, mesmo se isso
desse diretamente em algum perigo.
— Alto lá — disse Miles. O coração de Lore ficou quente com o tom de
advertência em sua voz. — É da minha amiga que você está falando.
Van soltou um longo suspiro.
— Eu sempre tive um pouco de ciúmes do tanto de atenção que ela recebia
de Castor. Pode parecer idiotice agora que estamos mais velhos…
— Ah — disse Miles. — Então você está apaixonado por ele.
Van engasgou com o leite.
Miles descansou o queixo na palma da mão e aguardou, as sobrancelhas
erguidas com expectativa.
— Não é assim com Cas — disse Van.
— Como se você fosse o primeiro cara a ter crush secreto não
correspondido — disse Miles. — O meu foi um quarterback do ensino médio
que era tão hétero, mas tão hétero, que falava “topzera” sem ironia. Tinha
músculos enormes e a tendência de responder brother a qualquer coisa que
falavam para ele.
Van riu. Miles sorriu.
— Não tenho esse tipo de sentimento por ele — disse Van, concluindo. —
Nunca tive.
Miles emitiu um ruído baixinho, como quem diz “sei”. Van tomou um gole
do leite. Miles fez o mesmo com o chá.
— Enfim, por que você é tão leal à Lore? — quis saber Van. — Você mal
conhecia o passado dela e o pouco que conhecia era uma mentira.
— Nem tudo — disse Miles. — Sempre soube que a família dela morreu,
mas não os detalhes sobre como ou o que aconteceu com ela nos anos que
seguiram. Levou um bom tempo para ela se abrir para mim. Tipo… meses
depois de Gil deixar eu alugar o quarto extra. Eu tive que cavar de pouquinho
em pouquinho, e valeu a pena, porque eu amo o coração mole que encontrei
debaixo da superfície meio ranzinza. Essa parte nunca foi mentira. É muito
raro encontrar alguém que aceita você completamente, e eu tento devolver
isso a ela.
— Então, você entende — disse Van baixinho.
Miles assentiu.
— Eu sei que você pensa que eu estou sendo um idiota inconsequente…
— Eu não acho que…
Miles não o deixou terminar.
— E talvez eu esteja sendo. Mas estou nessa por ela.
Lore se recostou na parede, fechando os olhos.
— Bom discurso — disse Van, com um sorriso em sua voz.
— Obrigado — disse Miles, dando outro gole no chá. — Achei que você
fosse gostar. Tudo é vida, morte e riscos épicos com vocês. Eu preciso descer
a esse nível.
— Seria um mundo muito melhor — disse Van — se todos nós subíssemos
ao seu.
O som da televisão se alterou, ficando mais alto e acentuado enquanto
soava a vinheta do plantão de notícias. Um momento depois, os celulares de
Miles e Van vibraram e tocaram.
Lore foi direto para a sala, pegando o controle da televisão de cima da
mesinha de centro. Passos vieram das escadas; eram os passos de Castor
descendo do quarto e de Atena subindo do porão.
O noticiário local começou. Dessa vez, em vez de transmitir o perímetro de
segurança em volta do Rockefeller Center, um repórter familiar — um
homem branco de meia-idade — estava em frente a um lindo edifício de
pedra. Pessoas se aglomeravam no entorno, chorando, ou visivelmente
atordoadas. Os rostos brilhavam com as luzes vermelhas e azuis da viatura
policial ali perto. A fumaça serpenteava pelo ar escuro, como um grupo de
cobras prateadas.
Lore chegou mais perto. As palavras que passavam no rodapé da
transmissão congelaram o sangue de Lore nas veias.
Corpos de duas crianças foram encontrados dentro da estátua vandalizada
do Touro de Wall Street.
Miles afundou no sofá lentamente, com as mãos na boca enquanto o
jornalista falava, visivelmente perturbado.
— A polícia fez uma terrível descoberta quando testemunhas ligaram para
o 911 depois de avistarem fumaça, a princípio, e depois fogo sob a estátua.
Parece que… que a estátua, que é oca, teve um pedaço removido para que os
corpos pudessem ser lacrados lá dentro. Há diversos relatos ainda não
confirmados de outras testemunhas oculares que alegam ter ouvido gritos
quando o fogo começou, mas a Polícia de Nova York ainda não determinou
se essas crianças estavam vivas ou mortas quando foram colocadas na
estátua.
Castor ficou mais afastado, com o rosto virado para não assistir. Mas Lore
se recusou a desviar o olhar. Ela já sabia que, não importando se as crianças
eram Puro-sangues ou Mundanas, seriam duas garotinhas.
— Meu Deus — disse Miles. — São só… são só crianças.
Lore sabia que viria uma retaliação de Fúria pelo que fizera com Belen, mas
cometeu o erro de presumir que ele a atacaria fisicamente. Diretamente. Não
emocionalmente. Não desse jeito.
Ela não cometeria o mesmo erro de novo.
Atena se aproximou da televisão, estudando as imagens que a tela exibia.
Lore a enxergou como um borrão, e a voz do jornalista desaparecia sob o
martelar em seu ouvido. Seu corpo inteiro flamejava com raiva.
Miles pode não ter reconhecido, mas todas as outras almas vivas naquela
sala sabiam que Fúria e os Cadmídeos transformaram a famosa estátua
próxima a Wall Street em um touro de bronze; um instrumento
indescritivelmente perverso de tortura da Idade Média que assava as vítimas
vivas em sua barriga metálica.
— A polícia armou tendas em volta da cena do crime, mas uma testemunha
ocular nos forneceu esta foto exclusiva, tirada momentos antes de eles
chegarem — disse o jornalista. — Por favor, alertamos que a imagem é forte
e que a Polícia de Nova York nos pediu para ocultar a mensagem deixada
pelo autor do crime até que tenham colhido mais informações.
A tela mudou, mostrando a estátua cercada por brasas e fumaça. Várias
pessoas se apressaram levando extintores de incêndio, mas uma mulher parou
para ler algo escrito na parede mais próxima ao touro.
Lore se voltou para Van e perguntou se ele podia acessar a câmera, e viu
que ele já estava a um passo à frente, entregando com uma das mãos uma
nova caneca de leite morno para Miles e equilibrando o seu notebook com a
outra; o aparelho já estava com o programa ativo.
Miles ergueu o olhar, surpreso, pegando a caneca.
— Isso vai ajudar — disse Van. Sua mão foi até o ombro de Miles, mas ele
a afastou rapidamente, antes que Miles parecesse notar o toque.
— Eu sei que isso não é um jogo — disse Miles. — Eu sei disso. Mas por
que eles fariam… isso?
Lore mordeu o interior da boca com tanta força que sentiu gosto de sangue.
Os dedos de Van passavam pelo trackpad, voltando o vídeo que acabara de
ver.
— O que é? — perguntou Lore. — O que é?
Van virou a tela e apertou play. A gravação, feita em modo visão noturna,
estava com resolução granulada, e a câmera estava em um ângulo alto. O tom
esverdeado dava à cena um ar macabro. Seis caçadores estavam ao redor do
touro, e suas máscaras de serpente estavam parcialmente escondidas pelos
capuzes dos mantos. Um deles se ajoelhou para atear fogo, que surgiu e ardeu
rapidamente. Outro chegou à parede mais próxima do touro, usando um
pincel e um pequeno balde de tinta para pintar letras na superfície pálida. As
letras vermelhas escorriam, como se estivessem chorando.
TRAGA-A DE VOLTA
A mensagem era destinada a uma única pessoa. Ela.
— Precisamos acabar com esse monstro. — Lore se ouviu dizer. — Agora.
— Espere um segundo — disse Castor. — Isso é exatamente o que ele quer,
uma reação emocional. O que aquela mensagem significa?
Atena olhou para Lore, aguardando.
Não conte — sussurrou a sua mente. — Não conte a eles…
Mas que escolha ela tinha naquele momento? Precisava contar alguma
coisa, se não a verdade, uma versão na qual acreditariam. Que não levantaria
suspeitas em Atena nem poria Lore na posição de fazer algo que jurou que
nunca faria.
— O Folião… ele me disse que Fúria está procurando por mim porque acha
que eu estou com a égide — disse Lore, com a pulsação trovejante a ponto de
fazer o corpo estremecer. O chiado aumentava em seus ouvidos de novo, mas
ela fez força para prosseguir, tentando manter sua voz a mais regular
possível. — O dever do Folião era me rastrear… e rastreá-la.
Van estava confuso.
— E só para confirmar…
— Não estou com ela — disse Lore, firme, evitando o olhar preocupado de
Castor, que caiu sobre ela. — Ninguém na minha família a possuiu desde que
os Cadmídeos expurgaram nossa linhagem. O Folião disse que ela
desapareceu no final da última caçada. O meu palpite é que tenha sido um
trabalho interno.
— Enxergo lógica na suposição do falso Ares — disse Atena.
— Eu tinha dez anos no último Ágon — relembrou Lore.
— Ele pode achar que um dos seus pais a pegou — disse Castor, com a
testa franzida de preocupação —, e que eles contaram a você onde a
esconderam. Caramba… não me surpreende essa obsessão dele em te
encontrar.
— Que bom — disse Lore. — Ele que venha me encontrar. Estarei
esperando.
— Precisamos de uma estratégia diferente — disse Castor, balançando a
cabeça negativamente. — Uma que não coloque você diretamente na frente
da lâmina dele.
— Isso — disse Miles, rapidamente, apontando para ele. — Essa opção, por
favor.
— O que você está pensando? — perguntou Van.
— Que precisamos ir atrás de Ártemis — disse Castor. — E convencê-la a
se aliar a nós.
Atena riu, debochando da ideia.
Mesmo que Lore soubesse qual era o outro motivo pelo qual ele queria
encontrar a deusa, ela ainda estava assustada com a ideia de procurar um ser
que queria tanto matá-lo.
— Posso procurá-la de novo — disse Van, se oferecendo. — Não a avistei
desde que ela deixou a Casa Tétis… Você tem certeza de que realmente quer
encontrá-la, Cas? Não consigo enxergar Ártemis como uma recruta animada.
— Sei bem que ela quer arrancar meu coração e comer — disse Castor. —
Ela é a melhor rastreadora da caçada. Melhor que qualquer programa de
computador… sem ofensa.
Van deu um aceno indicando que não se ofendera.
— Se alguém pode encontrar Fúria e descobrir quais são os planos maiores
dele sem ser detectado, é ela — disse Castor. — E, francamente, estamos
precisando de mais força para enfrentá-lo quando chegar a hora.
— Se ela não matar você primeiro — comentou Lore.
— Concordo. Essa é uma ideia absurda — insistiu Atena. — Deixe de lado
essa distração e concentre esforços na questão atual. Não precisamos de
Ártemis para matar o impostor, assim como não precisamos de ajuda para
encontrar a égide e o poema gravado nela.
Lore respirou fundo, agora entendendo melhor a relutância da deusa.
— Eu nem levantei a questão da égide — disse Castor — ou do poema.
Mas é bom confirmar que você prefere ver sua irmã morta do que arriscar que
ela a encontre primeiro. Você tem mesmo tanto medo por haver somente um
vitorioso, filha de Zeus?
— Ártemis nunca consentirá em trabalhar ao lado do assassino de Apolo —
disse Atena, ignorando a isca nas palavras dele. — E como ela me feriu para
se salvar, não sinto nenhuma urgência de partir em seu auxílio. Entretanto,
concordo que uma nova estratégia é necessária para desfazer os planos de
nosso inimigo e sua busca por Melora. — Ela se voltou para Van. — Você
tem mais conhecimento sobre o patrimônio e as propriedades dele? Talvez
haja uma vulnerabilidade nesse aspecto.
— Claro que tenho — disse Van. — Tenho arquivos de todos os líderes e
anciãos das linhagens. Acredite ou não, um dia eu fui inocente o suficiente
para acreditar que poderia neutralizar as linhagens divulgando todos os
esquemas sujos e tendo todos os seus bens apreendidos e seus líderes presos.
— Por que não fez isso então? — perguntou Lore.
— Por que o Ágon é uma hidra — disse Van. — Não importa se eu cortar a
cabeça da linhagem. Sempre terão mais caçadores para substituí-las, e mesmo
que eu tivesse exposto o Ágon para o mundo, alguns deles ainda
encontrariam um jeito de continuar a caçada.
Ocorreu a ela, então, como nunca ocorrera antes, que todos eles queriam, na
verdade, que o Ágon acabasse, mas por diferentes motivos e diferentes
meios.
— Entendo o que está dizendo — disse Castor. — Mas tem alguma coisa
que poderia ser divulgada para a imprensa para levar atenção indesejada até
Fúria? Ele pode ter algum oficial da cidade ou da polícia nas mãos, mas não é
dono de todos eles…
— Você sabe onde ficam os arsenais deles? — interrompeu Atena. Um
olhar assustador de concentração estampava o seu rosto. — Onde seus cofres
estão escondidos?
— Sei de alguns deles — disse Van. — Não tenho dúvida de que eles têm
mais cofres do que eu conheço, aqui na cidade e fora dela.
— Alguns serão o suficiente — disse Atena.
— Onde vamos chegar com isso? — perguntou Lore.
— Há mais de uma maneira de matar um rei — disse Atena. — Você pode
fazê-lo sangrar até a morte ou pode exaurir a confiança que seus homens lhe
depositam.
Van entendeu o que ela quis dizer com aquilo.
— Atacar seu arsenal pode abalar o jugo que ele tem sobre os caçadores
que debandaram para ele pensando que era o líder e protetor mais poderoso.
— Como ele havia dedicado muitos caçadores à busca por Melora e por
seus deuses rivais, esses cofres e arsenais podem não estar tão bem vigiados
como em outrora — disse Atena.
— Os Aquilídeos restantes que ainda são leais ao Castor estão precisando
desesperadamente de armas… — disse Van. — E eu imagino que também
seja o caso de Iro e os caçadores dela. Todos os locais trocam de turno dos
vigias no mesmo horário. Podemos atacar amanhã de manhã.
— Podemos encontrar outras armas — disse Castor, teimoso. — Um ataque
silencioso não vai fazer nada a não ser instigá-lo a dobrar os esforços para
encontrar Lore e acelerar seu plano. Nós precisamos de ajuda. Precisamos de
alguém com as habilidades da Ártemis…
— Não vamos perder tempo procurando por Ártemis agora — interrompeu
Lore, com rispidez.
Castor tentou atrair o olhar dela, com as sobrancelhas erguidas, surpreso.
Uma lança de culpa a atravessou, mas Lore o ignorou. Atena estava certa.
Neste momento, Ártemis não era nada além de uma distração.
— Pessoal — disse Van —, não precisa ser uma coisa ou a outra. Podemos
seguir os dois planos de uma vez só. Eu vou deixar uma busca permanente
correndo no Argos…
— Você acabou de dizer que não conseguiu encontrá-la — disse Castor. —
Precisamos sair e procurar nós mesmos.
— Você continua esquecendo que também é um alvo — disse Lore —, e
que ainda há caçadores interessados em tentar a sorte de se tornarem deuses.
O maxilar de Castor se enrijeceu.
— Vamos procurar por ela depois do ataque às armas, pode ser? — disse
Lore, fazendo uma concessão. — Os Cadmídeos estarão distraídos tentando
se reagrupar. Vai ser mais seguro para você estar em campo aberto.
— Eu não ligo para estar seguro — disse ele.
Ela respirou fundo, com narinas dilatadas.
— Bom, sinto muito. Eu ligo. — E se voltou para Van. — Avise aos
Aquilídeos quais arsenais eles atacarão e me passe um ou dois locais e
horários que eu mando uma mensagem para Iro.
Ele fitou Castor. O novo deus assentiu.
— O programa vai continuar em modo de busca — prometeu ele a Castor.
— E também vou sondar mais as minhas fontes …
O celular de Van vibrou na mesa. Ele o pegou, e a tela brilhava contra a sua
pele negra enquanto ele lia a nova mensagem.
— O contato Cadmídeo disse que sabe de algo que pode nos interessar
sobre os próximos movimentos de Fúria.
O coração de Lore deu um sobressalto.
— Mas?
— Eu não acho mais que essa seja uma boa ideia — disse Van. — Não
depois do que aconteceu com Belen, e agora isso… alguma coisa não me
cheira bem. Ele está insistindo que apenas se encontrará com Miles.
— Porque ele odeia você. — Miles o lembrou. — Eu posso fazer isso.
— Você pode, mas não quer dizer que deva — disse Van.
— Quantas vezes eu vou ter que provar que você está errado? — exigiu
Miles. — Eu posso…
— Não — vociferou Van, rodeando-o. — Você não é um de nós e não
decide nada sobre isso, beleza?
Miles se levantou, e sua expressão confusa se contorceu em raiva por causa
do semblante glacial de Van.
— E você não me diz o que fazer. Eu tenho mesmo que ficar te lembrando
que você não teria chegado tão longe se não fosse por mim?
— Fúria acabou de matar duas crianças inocentes — lembrou Castor. — Se
isso for alguma armadilha, eu não quero nem pensar no que ele faria com
você.
Miles ficou ao lado de Lore, até que estivesse do lado oposto dos outros no
cômodo.
— Então que bom que ele não vai conseguir me pegar.
— Estamos fazendo isso pelas menininhas — insistiu Lore.
Castor a fuzilou com o olhar.
— Quais delas?
O corpo de Lore congelou. Ela respirou fundo, segurando o ar até que seu
peito começasse a doer.
— Eu vou com Miles — disse Castor. — Me sentirei melhor sabendo que
tem alguém lá para protegê-lo.
— Por que eu não posso? — retrucou Lore. — Se alguém vai com ele, esse
alguém sou eu.
— Não — disse Miles. — Digo, obrigado aos dois, mas ninguém vai
comigo. O cara é cheio de coisinha e não vai em frente com o encontro se
suspeitar que eu levei alguém comigo. E ele pode ter algo de que realmente
precisamos ou, pelo menos, uma pista do paradeiro atual de Fúria.
Van manteve o olhar fixo em Castor, avaliando sua resposta.
— Ele quer se encontrar amanhã de manhã. Seria por volta da hora em que
precisaremos iniciar os ataques nos arsenais, assim que houver a troca de
turno dos caçadores de vigia.
— Se o sábio Miles acredita que será bem-sucedido — disse Atena —, não
há razão para vocês bloquearem seu caminho.
Lore sentiu os olhos de Castor nela novamente. Seu coração começou a se
rebelar no peito, mesmo antes de ouvir a voz baixa de Miles dizer:
— Lore?
Talvez… talvez seja um risco muito grande ir ao encontro agora, levando-
se em conta a raiva de Fúria. Se ele, de alguma forma, pusesse as mãos em
Miles, Lore nunca se perdoaria.
Quanto mais ela pensava sobre isso, mais se perguntava se Castor não
tivera a melhor ideia quando sugeriu que ficassem ocultos e se concentrassem
na procura por Ártemis, em vez de realizar os ataques aos arsenais. Se
conseguissem convencer a deusa a se aliar a eles — e esse é um se enorme e
mortal —, talvez não precisassem depender da informação do contato de Van
ou se arriscar com o encontro. Ártemis poderia rastrear qualquer um e
qualquer coisa, coletando informações conforme necessário.
Como se percebesse a tempestade na mente da jovem, Atena se aproximou.
A deusa irradiava uma certeza serena e, de algum jeito, apenas por estar perto
a ajudava a ter clareza mental. Ela deu a coragem que faltava em Lore; deu
força para o que Lore sabia que era certo e necessário.
Pelas meninas — pensou ela. O que Fúria fez demandava retaliação.
— Miles vai ao encontro — disse Lore, concluindo. — Nós vamos em
frente com o ataque aos arsenais pela manhã, durante a troca de turno. E se a
fonte de Van não tiver informação sobre o paradeiro de Fúria, vamos
começar a procurar por Ártemis de tarde. Beleza?
Mas mesmo enquanto dizia aquilo, Lore sabia que Atena estava certa.
Ártemis nunca concordaria em trabalhar com eles, e nunca daria a Castor a
informação que ele queria sobre a morte de Apolo, se é que a tinha. Talvez
até lá Fúria já tenha saído do buraco em que esteja se escondendo, seja onde
for, e assim não precisem arriscar a vida de Castor tentando persuadir a
deusa, cuja determinação é tão inflexível quanto aço.
Van assentiu, e seu rosto não traiu nenhuma de suas emoções.
— Eu enviarei uma mensagem para você com as informações que serão
repassadas a Iro, então.
Lore mal ouviu os outros enquanto subiam as escadas, com certeza indo
dormir como pedras pelo resto da noite. Apenas Castor ficou ali, com uma
das mãos no corrimão e observando Lore pegar o celular. Ela digitou a
mensagem para Iro com mãos trêmulas.
Preciso da sua ajuda.
A raiva que se acumulara dentro dela subiu como a fumaça do corpo do
touro de bronze, até que ela pudesse sentir o gosto das cinzas em sua boca, e
sua mente ardesse com as palavras em vermelho sangue que foram deixadas
na parede.
Quando ela ergueu novamente o olhar, Castor já não estava mais ali.
TRINTA E TRÊS

O AR DO FINAL DA MANHÃ ESTAVA DENSO DE TANTA UMIDADE, MAS NÃO ERA NADA
comparado à atmosfera opressora que tomou conta da casa.
Depois que eles souberam pelos Aquilídeos que os ataques foram bem-
sucedidos e não houve nenhum problema ou baixas entre eles, Lore ainda não
tivera notícias de Iro, exceto pela curta resposta da garota à mensagem com
as instruções do ataque: Confirmado.
Apesar disso, Lore não estava preocupada, principalmente depois que Van
se encontrou com um dos caçadores Aquilídeos e trouxe para casa um
conjunto grande de armas que eram dos Cadmídeos. Atena ficou obviamente
satisfeita por separá-las e examiná-las uma a uma, incluindo uma dory de
verdade. Mas qualquer animação que Lore sentira com este sucesso
desapareceu no buraco negro emocional do silêncio de Van e Castor.
Quando Lore não conseguiu mais aguentar os olhares de julgamento de Van
quando ele estava sentado assistindo pelo Argos ao progresso de Miles, sem
contar a porta fechada atrás da qual permanecia Castor, ela voltou para seu
quarto. Lá, finalmente percebeu o que Miles deixara para ela sobre a cômoda.
O pingente de pena no colar piscava para Lore ao refletir a luz solar. Ela
hesitou por um momento, passando os dedos levemente na borda dele.
E nunca será livre — pensou ela.
Lore passou a mão sobre a cômoda, fazendo com que o colar caísse dentro
de uma pequena lixeira ao lado. Mas ela sentia sua presença, mesmo que não
pudesse mais vê-lo. Precisando fugir dele, e da casa, Lore abriu a janela e
passou para a escada de emergência, subindo até o telhado. Lá, viu
carregadas nuvens cinzentas vagarem ao longe.
Lore olhou para trás por cima do ombro ao ouvir alguém na escada, mas
relaxou quando viu quem era.
— Você não devia estar aqui.
Atena examinou o terraço deserto. Não havia muito para ver além de Lore,
duas espreguiçadeiras velhas e o motor do ar-condicionado. Na verdade,
ninguém devia subir ali, mas Miles e Lore às vezes faziam essa escalada
quando o clima estava bom e queriam beber vinho. Eles conversavam sobre
fazer alguma coisa no local, um pequeno jardim, talvez, mas isso foi antes de
Gil morrer.
Depois de Hermes ir embora — corrigiu-se Lore, esfregando os braços. Ela
se voltou novamente para as nuvens prateadas de tempestade que se reuniam
ao leste.
A deusa não quis sentar-se na outra cadeira, escolhendo, em vez disso, a
superfície áspera do terraço. Ela colocou a dory no colo e começou a afiar
ambas as pontas com a pedra de amolar que pegou da cozinha.
— Era Hermes.
Ela não sabia exatamente por que era mais fácil contar para a deusa. Talvez
fosse por saber que Atena, franca como a parte cega de uma espada, não
tentaria consolá-la ou fazê-la conversar sobre isso.
— O que tem? — perguntou Atena, soltando a pedra de amolar.
— O homem para o qual eu trabalhei… a pessoa que era dona desta casa e a
deixou de herança para mim — disse Lore, engolindo em seco. — Era
Hermes o tempo todo. Quando ele sumiu, veio para cá. O Folião me contou
tudo no museu.
— Ah — disse Atena. E então, acrescentou cuidadosamente: — E você
acredita no impostor?
Lore assentiu.
— Aparentemente, Hermes também pensou que eu estava com a égide.
Deve ter sido uma frustração enorme para ele quando percebeu que eu não a
tinha, e que ele fez todo… — sua voz ficou presa de um jeito que ela odiava.
— E que ele fez todo aquele esforço me amparando para nada.
Atena contraiu os lábios.
— Mas eu não entendo — disse Lore. — O Folião disse que Hermes se
sentiu em dívida comigo e que queria prevenir que Fúria conseguisse a
égide…
— Hermes claramente descobriu sobre o poema — disse Atena — e
esperava usá-lo para fugir do Ágon.
— Isso — concordou Lore —, ou ele não fazia ideia e só queria usar o
escudo no próximo Ágon, e pensou que talvez eu o daria de bom grado se ele
fosse gentil o bastante. Mas por que ele se sentiu em dívida comigo? Por que
ir tão longe ao ponto de entrar assim na minha vida, se ele nunca me
perguntou sobre o meu passado nem me pressionou a falar sobre ele? Ele até
me deu um amuleto protetor que me escondia dos deuses. Deixou esta casa
para mim.
— Imaginei que ele teria feito isso — disse Atena, lentamente. — Como
disse, segui seus rastros ao longo dos anos e procurei por você. Só a vi uma
única vez, há três anos, caminhando por uma das ruas perto daqui, e a segui
até sua casa. Mesmo assim, nunca a vi novamente e, no início desta caçada,
tudo que pude fazer foi esperar que você ainda morasse no mesmo lugar.
A ideia de ter passado a centímetros de distância da deusa oculta encheu
Lore de um receio estranho e tardio.
— Você lembra se eu estava usando o colar? — perguntou Lore. — Com
um pingente dourado de pena.
A deusa pensou cuidadosamente na pergunta.
— Você não o usava.
Deve ter sido logo depois de Lore voltar para lá com Gil — com Hermes.
Passaram-se duas semanas antes que ela acordasse e encontrasse o colar em
sua cômoda. Pareceu que ele acreditou que o aniversário dela era na data de
nascimento que estava no passaporte falso. O aniversário real já havia
passado.
— Você se pergunta por que Hermes pôs tal charada em prática? —
indagou Atena. — Porque ele é astuto e porque se deleita com isso. Contudo,
não é nenhum tolo. Se acreditou que você possuía a égide, ele teve suas
razões. Então, devo perguntar-lhe novamente, Melora: você possui o escudo
do meu pai, e há perigo de ele cair nas mãos do Ares impostor existe?
As pontas dos dedos e as palmas das mãos de Lore começaram a ficar
dormentes, assim como as mãos. Seus pensamentos traçavam espirais, cada
medo sombrio perseguindo o próximo em ciclos. Ela cravou as unhas na pele
dous braços, usando a dor para sair desse transe.
— Não está comigo — disse Lore. — Talvez ele tenha descoberto que
Aristos Cadmou ficou se vangloriando para meu pai sobre saber onde ela
estava.
— De fato — disse a deusa, e emitiu um ruído baixinho.
Lore se lembrou, então, do que Belen dissera. Você é uma distração. Ela é
uma distração.
Lore encolheu os braços no peito, se inclinando para a frente, sobre os
joelhos.
— Você acha que isso pode ter a ver com algo a mais do que só o poema…
que a ideia de uma garota roubando a égide fere o orgulho de Fúria?
— Ele pode ter muitos motivos para a desejar. Ele anseia saber o segredo
de como vencer o Ágon. Anseia reparar o orgulho ferido por ter sido
superado por uma garotinha. Anseia obter a glória da égide como um símbolo
de poderio — disse Atena —, e usá-la como uma ferramenta. Ela pode evocar
o trovão e conjurar o relâmpago, mas não precisa ser usada em seu poder
máximo para instigar medo nos corações daqueles que a veem.
A deusa pareceu considerar algo mais, acrescentando:
— Se você não entregar o escudo a ele por vontade própria, ele irá precisar
que você o empunhe, e fará o que for preciso para coagi-la a isso.
— Você fala isso como se você se importasse — disse Lore. — Por que
fingir que liga para mim além dos termos do nosso acordo?
— Como qualquer artesão — disse Atena, inclinando a cabeça na direção
dela —, se vejo potencial na matéria-prima, tenho o ímpeto de moldá-la em
algo grandioso.
— Que irônico, vindo de você — disse Lore.
— Não compreendo sua acusação — disse Atena, diretamente.
— Você nunca orientou mulheres — disse Lore. — Não da mesma forma
que orientava seus heróis. Mas nunca teve problema em puni-las.
— Mulheres e meninas pertenciam à minha irmã e não eram minha
responsabilidade — disse Atena, com palavras em tom de alerta. — Não lhe
devo nenhuma satisfação.
O rosto de Atena a desafiava a prosseguir, e Lore nunca fugiu de uma briga
impulsiva.
— Você sabe por que caçadoras não devem tomar o poder de um deus,
como os anciãos das linhagens sempre disseram? — questionou Lore,
deixando anos de raiva silenciada preencherem seu peito, como vapor. —
Eles se baseiam no poema da origem, mas também recorrem a você. Para o
fato de você apenas ter escolhido ser mentora de homens como heróis em
suas jornadas. Você ajudou apenas eles a alcançar o kleos nascido da batalha,
o único que importa para os anciãos. Para eles, você sempre foi uma extensão
da vontade de Zeus.
— Eu nasci da mente do meu pai. Eu sou uma extensão da vontade dele.
O maxilar da deusa se enrijeceu, transformando seu rosto em uma máscara
de ira.
— Minha presença aqui, agora, é tudo que é necessário para que se entenda
o que acontece com aqueles que perturbam a ordem natural das coisas. Que
traem o pai.
— Você não ficou com raiva? — perguntou Lore, ouvindo sua voz oscilar.
— Como pode não estar furiosa por nem mesmo você ter sido totalmente
livre para decidir quem ou o que queria ser?
A deusa permaneceu em silêncio, mas havia algo em sua expressão agora:
uma forte concentração.
Você deixou os homens usarem o seu nome e sua imagem para reforçarem
as próprias regras… você representava o que eles poderiam, por si mesmos,
se empenhar para ser — disse Lore. — Mas e o resto de nós? Todas nós, que
nos intitulamos mulheres, e todos os outros, que não são tão facilmente
definidos?
— Não me recordo do meu dom do ofício artístico pertencer
exclusivamente aos homens — disse Atena. — Ou de não reconhecer
mulheres que demonstram excelência no lar e no cuidado com a família.
Lore inspirou, vacilante.
— Sabe, o que quase torna isso pior é que você realmente se enxerga como
o mito que os homens criaram. Você acabou de afirmar que nasceu da mente
de seu pai, mas teve uma mãe, não teve? Métis. A própria sabedoria. Esse
dom era dela, não de Zeus, e ele devorou vocês duas para se salvar, e o tomou
para si. Negá-la é negar quem você é. É negar o que os homens são capazes
de fazer.
— Eu sei exatamente o que são capazes de fazer, filha de Perseu — disse
Atena, com frieza.
Lore titubeou ao ouvir o nome de seu ancestral.
— Você lança suas opiniões com total certeza, mas sem base alguma —
disse Atena. — Contudo, não é contra mim que está batalhando agora. Sua
raiva não me é direcionada, mas a você mesma. Por quê?
Lore passou a mão no cabelo, segurando-o.
— Você está com muita raiva. Eu a senti desde o primeiro momento em
que lhe vi, e quanto mais você tenta reprimi-la, mais ela cresce e fica
poderosa — disse Atena. — Você me questiona, pois não julguei adequado
usar meu poder da forma que você usaria, e mesmo assim você limita seu
próprio potencial. Não imaginei que fosse tão covarde.
Não sou especial ou escolhida — Lore esfregou os olhos com os punhos. A
lembrança dessa constatação era tão agonizante quanto o que acontecera.
— Não estou me limitando, eu apenas… apenas não posso cometer outro
erro.
Atena emitiu um ruído de zombaria.
— O falso Apolo conseguiu entrar na sua cabeça e fazê-la duvidar de si
mesma. Você sabe o que deve ser feito. Ele não sabe nem como veio a ter o
poder que tem.
Lore ergueu o olhar de forma abrupta ao ouvir aquelas palavras.
— Você achou que eu não descobriria a verdade? — perguntou Atena. —
Que não perceberia seu interesse em indagar a todos que encontra sobre a
morte de meu irmão? Por que mais ele pareceria menosprezar e ressentir o
seu poder? Por qual outro motivo ele iria querer encontrar minha irmã,
sabendo que ela apenas deseja que ele morra?
— Ele… — Lore começou a dizer, insegura. Ela não queria falar sobre isso.
A sensação era de que trairia Castor. — Ele não quer que eu vá longe demais.
— E você não é capaz de determinar esse limite por si mesma? —
perguntou Atena. — Você depende do julgamento dele em vez do seu?
— Ele está tentando me proteger — disse Lore. Foi o que Castor sempre
fez, por mais que ela tentasse, à sua própria maneira, protegê-lo.
— De quem? Do quê? — perguntou Atena. — De você mesma? De tudo o
que pode se tornar se aceitar ser quem realmente é, e não quem ele deseja que
seja?
Lore confiou em Castor por toda a vida, sabia que ele nunca a machucaria
intencionalmente. Mas o jeito que ele a olhou quando a encontrou no Central
Park, o choque e a repulsa em seu rosto…
Talvez ele realmente não tenha entendido. Os sete anos que perderam nunca
pareceram tão longos.
— Eu odeio o Ágon — disse Lore.
— Não — interrompeu Atena. — Não acho que odeie. Você odeia o que ele
custa a você, mas este mundo a entedia. Você pertence ao Ágon. Essa é sua
herança por direito. Você sempre foi destinada à glória, mas ela lhe foi tirada,
e agora você nunca se sentirá satisfeita, nunca se sentirá inteira, até possuir o
que merece.
Na sua cabeça, Lore ouviu a versão mais nova de si mesma dizendo aquelas
palavras novamente. Meu nome se tornará uma lenda.
— Não é sobre merecer — disse Lore, forçando as palavras a saírem. —
Não quero me tornar o tipo de monstro que eles são.
— Você não é um monstro. É uma guerreira — disse Atena. — E se você
não fosse destinada a um papel grandioso, teria morrido com sua família.
— Não diga isso — sussurrou Lore — Por favor, não diga isso.
A vontade a despedaçava por dentro. O desejo de que tudo o que aconteceu
não tenha sido sua culpa, de que não tenha sido em vão… toda a sua alma
doía de vontade de que isso fosse verdade.
— Há coisas muito piores a se tornar do que um monstro — disse Atena.
— Foi isso que você falou para si mesma quando puniu Aracne por sua
arrogância? — perguntou Lore. — Quando se voltou contra Medusa?
A deusa pareceu confusa com a pergunta.
— O que você me acusa de ter feito com Medusa?
— Poseidon a estuprou em seu templo e, em vez de impedi-lo, de puni-lo,
você… — disse Lore, sufocando com aquela palavra. — Você fez com que
ser a vítima fosse o pior crime. Você a transformou em um monstro e depois
mandou alguém matá-la.
— É nisso que acredita? — perguntou Atena.
— Seu pai, seus irmãos… se forçaram sobre tantas mulheres contra a
vontade delas… Como você não pôde compreender a experiência de Medusa,
sendo que Hefesto tentou abusar de você? — Lore respirou fundo para
manter a calma. — Eles tomaram tudo o que quiseram. Por que os homens do
Ágon tratariam mulheres e meninas de um modo diferente? Eles nos fazem
acreditar que nossas vidas pertencem a nós mesmas, enquanto passam a
coleira nos nossos pescoços. Até mesmo Gi… Hermes. A qualquer momento
eles podem encurtar as rédeas.
— Por isso você abandonou seu caminho como guerreira? — perguntou
Atena. — Não desejava ser controlada? Eu teria imaginado que as mortes da
sua família eram a raiz dessa decisão, mas você continuou seu treinamento,
não? Ainda assim, algo a afastou da caçada… deste mundo.
Por anos, Lore havia se recusado firmemente a lembrar o que aconteceu
aquela noite. Ela esperava que, se enterrasse aquele momento bem fundo em
seu coração, ele não a faria se sentir tão enjoada ou apavorada de ter que
responder por aquilo.
Mas agora ela se viu falando sobre ele, e as palavras se desenrolavam com
tanta força que Lore não tinha certeza se seria capaz de pará-las nem se
tentasse.
— Quando o pai de Iro ascendeu e virou o novo Afrodite, ele não tinha
nenhum filho — disse Lore — e nenhum parente imediato do sexo
masculino. Um primo de segundo grau se tornou o arconte interino dos
Odisseídeos. Ele nunca ia à casa deles nos primeiros dois anos que eu morei
lá. Durante esse tempo, me concentrei no meu treinamento com a Iro. Disse a
mim mesma que, mesmo que não tivesse nada, teria o Ágon. Eu ainda
poderia trazer honra para minha família.
Atena a observava, em espera.
— Foi aí que o novo arconte dos Odisseídeos chegou. Para ficar. E parecia
estar em todos os lugares ao mesmo tempo, sempre nos seguindo, nos
observando da janela enquanto a gente treinava e lutava, do outro lado da
mesa nas refeições, enquanto a gente nadava no lago… — disse Lore, e suas
mãos se fecharam ao se lembrar disso. — Ele encontrava qualquer desculpa
para me tocar… para corrigir minha postura quando eu não precisava, ou
passar a mão no meu braço ou na minha perna quando estava passando por
perto. Meu instrutor me disse para nunca contar isso para ninguém, senão o
arconte descobriria como eu era ingrata pelo apoio e pela atenção. Que eu
seria jogada na rua com apenas uma faca para me defender e mais nada. Sem
dinheiro, sem futuro.
As mãos de Lore se fecharam firmemente em punhos.
— Uma noite, depois do jantar, ele me disse para ir até seu escritório e
esperar por ele lá — continuou ela. — Os outros na mesa deveriam saber o
que aconteceria, mas ninguém fez nada. Os criados olharam para o outro
lado. Iro estava tão animada… Ela pensou que ele ia me oferecer uma
posição como léaina.
Ela precisou respirar fundo para encontrar as palavras certas. A bile subiu
até a sua garganta.
— O escritório estava escuro, a não ser pelo fogo na lareira. Ele trancou a
porta. Me disse que eu não continuaria o meu treinamento. Que eu apenas
serviria a ele. Às vontades dele.
Atena sibilou.
— Eu sabia que ele estava certo. Eu não tinha ninguém. Não tinha família.
Foi naquele momento que eu percebi que meu futuro estava inteiramente nas
mãos dele… só que aí… — Lore respirou fundo de novo. — Ele colocou as
mãos em mim… Forçou a boca dele na minha e me prensou na mesa. Ele era
maior. Mais pesado. E eu pensei: Eu não sou especial ou escolhida. Aquele
era o escudo que eu usei contra a verdade por anos… a certeza de que eu
estava destinada a algo mais. Mas naquele momento, com ele sobre mim, foi
quando eu entendi o que aquele mundo era. Sempre haveria um homem
decidindo o meu destino, seja ele meu pai, um arconte ou um marido.
Os olhos da deusa se acenderam, e faíscas cresciam em tumultuosos
espirais. Aquilo fez Lore pensar na lareira do escritório de novo, como
parecia tão mais intensa quando o seu pavor entrou em ação.
— Nunca me foi dada escolha — disse Lore.
Pelo menos, não uma com consequências que ela compreendesse antes de
escolher.
— Ele tirou de mim a última das ilusões.
A respiração do arconte estava agitada de excitação enquanto ele a assistia
perceber aquilo tudo.
— Era para os deuses serem os meus inimigos. As outras linhagens. Não o
arconte da casa da minha mãe… o que me acolheu. Que me deu abrigo.
O puxador da gaveta da mesa pressionou seu quadril. Seu corpo se movia
para se proteger, quando a sua mente não podia. Seus dedos se fecharam em
volta do metal frio. Ela o puxou e deslizou a mão para dentro da gaveta. Ele
colou o corpo no dela fazendo força, e a sensação não foi nada parecida com
a que ela tinha em uma luta.
— Eu encontrei o abridor de cartas. Me cortei quando o tirei da gaveta. Ele
agarrou meu queixo e forçou minha cabeça para trás, para que eu tivesse que
olhar para ele.
Ele puxou o colarinho da blusa dela até rasgar. O tecido cedeu facilmente,
mas não tanto quanto a pele da garganta dele.
— Eu percebi que sempre tive escolhas, mesmo que eu não as enxergasse
— disse Lore. — E eu fiz uma escolha. Escolhi não pertencer a ele. Escolhi
matá-lo para que ele não ferisse a mim nem a mais ninguém.
A lembrança do sangue jorrando, manchando a sua pele alva e o seu
vestido, o peso dele caindo sobre ela enquanto tentava matá-la, mesmo em
meio à agonia da própria morte, voltou como uma onda fria. Ela tocou a
cicatriz comprida em sua face, o último corte que ele abrira nela quando ela
conseguiu sair debaixo dele. O suor pingava por seu corpo e ela tremia, mal
conseguindo respirar.
Mas do que Lore mais se lembrava daquela noite era de sua raiva. A forma
como ela ardia por sobre seu medo, choque e desespero, e dava o que ela
precisava para sobreviver.
Lore fizera o que foi treinada, esfaqueando o corpo dele até que não se
movesse mais e ar não percorresse os pulmões dele. Foi a raiva que a
carregou descalça através dos campos e estradas de terra. Foi a raiva que a
manteve viva e em movimento. A sua raiva a alimentou quando ela sentiu
fome.
E depois Lore fez exatamente o que Atena a acusava de ter feito. Reprimiu
essa emoção, reduzindo-a, tornando-a irrelevante e desmerecida. E depois
Hermes a encontrou, quando ela estava quase vazia.
— É por isso… — Lore começou a dizer. — É por isso que me mata saber
que eu estava errada a respeito de Gil. Eu devia saber. Eu sabia. Mas deixei
minha guarda baixa, mesmo depois do que aconteceu com o arconte, porque
eu pensei que era eu quem estava fazendo as escolhas. Que ele não seria
capaz de me machucar ou me controlar, como os homens do Ágon tentaram
fazer.
— Mas você se arrepende de seus atos naquela noite? — perguntou Atena.
Lore balançou a cabeça negativamente. Nunca se arrependeu, exceto por
saber que deixou Iro para trás.
— Porque eles tinham justificativa. Você fez o necessário — disse Atena.
— Assim como agora agimos por necessidade. Você teme o julgamento dos
outros sobre a nossa busca pelo Ares impostor, mas não se arrependerá das
suas escolhas quando ele estiver morto… somente das oportunidades que
perderá permitindo que os temores alheios a mantenham prisioneira de sua
própria dúvida.
— É que… — Lore começou a dizer, fechando os olhos — não é tão
simples. Eu não…
Eu não quero me lembrar de como era boa a sensação de ter um propósito
— concluiu ela, em pensamento. — Não quero esquecer o motivo pelo qual
eu tive que deixar o Ágon quando ele parecia ser ideal para mim.
Crianças gritaram umas com as outras enquanto desciam a rua em suas
bicicletas. As risadas leves pareciam brilhar no silêncio. Lore se perguntou se
um dia já havia sido tão despreocupada.
— Eu dei força à sua ira — disse Atena, baixinho.
Lore se voltou a ela, confusa.
— Eu transformei Medusa — continuou Atena — para que ela pudesse se
proteger daqueles que tentariam machucá-la.
— Isso é puro papo. Você não deu nenhuma escolha para ela, deu? —
retrucou Lore. — E agora a história se lembra dela como uma vilã que
mereceu morrer.
— Não. Isso é como os homens a retrataram, por meio da arte e dos contos
— disse Atena. — Eles a imaginavam como um monstro porque temiam
encontrar o verdadeiro olhar de uma mulher, temiam testemunhar a
tempestade poderosa que vivia ali dentro, esperando. Ela não foi derrotada
pelo abuso de meu tio. Apenas renasceu como um ser que poderia encarar o
mundo de volta, sem medo. Não é o que a própria linhagem fez por séculos,
olhar por detrás da máscara dela?
Lore quase se encolheu com aquelas palavras.
Os Perseídeos usaram a máscara da górgona — a máscara da Medusa, com
os cabelos de cobras e a boca apertada com determinação — por séculos.
Ambas as máscaras de seus pais foram levadas quando limparam o
apartamento e queimaram os corpos.
Lore não era velha o suficiente para ter a sua, embora uma das suas
lembranças mais vivas era ela tirando a máscara da mãe do embrulho de seda
e trazendo-a para perto do rosto. A sensação das cobras de bronze em seus
pequenos dedos e o que ela viu refletido no espelho a fizeram se sentir mais
poderosa.
Agora ela apenas sentia o estômago embrulhar. Quantos homens, incluindo
seu amado pai, usaram aquela máscara e a ira do olhar da Medusa, retorcendo
o significado em algo que lhes servia? As linhagens usavam as máscaras dos
maiores feitos dos seus ancestrais e daqueles a quem mataram, não para
honrar os terríveis monstros de suas eras, mas como troféus.
— Seus ancestrais carregaram o escudo que trazia a cabeça dela — disse
Atena. — Eles brandiram seu poder até perdê-la. Se era para o escudo ser
carregado por alguém, deveria ser por você… você, que conhece a escuridão
do homem e mesmo assim se recusa a se amedrontar.
Lore conseguia se ver claramente com o escudo, a forma como seu rosto
refletiria a expressão de Medusa fundida em prata. Não havia medo e nem
vergonha em pensar aquilo, e nenhum dos arrependimentos agonizantes que a
preveniram de dizer o seu nome por anos.
A égide deveria ser carregada por ela. Era o seu direito de nascença, sim,
mas mais do que isso: era a representação de tudo que ela tinha a ganhar, e
tudo que ela sempre quis realmente ser. Não a farsa que Hermes a convenceu
de que precisava viver, mas a fome poderosa que ainda habitava dentro dela.
Se ela pudesse usar a égide contra Fúria, se o rosto da Medusa e o seu
próprio fossem a última coisa que o deus visse enquanto a vida abandonava
seu corpo, significaria que tudo valeu a pena.
Significaria que a sua família não morreu por nada.
Vá pegá-la — sussurrou sua mente.
— Mas… você deu o escudo para Perseu — disse Lore. — Que o usou para
matá-la. Você o guiou, e era como uma amiga para ele.
Atena estendeu a dory no colo.
— Tive meu papel em muitos jogos perversos e vivi à mercê de deuses
mais poderosos. Tenho meu temperamento e desfrutei das vezes que ataquei
aqueles que feriram meu orgulho ou me desonraram.
As primeiras gotas de chuva começaram a cair, tamborilando gentilmente
no terraço.
— Você podia ter impedido — sussurrou Lore. — Podia ter impedido
Poseidon.
O rosto de Atena se tornou medonho de raiva gélida.
— Entenda isso, Melora: mesmo os deuses estão presos ao destino. Mesmo
os deuses servem a um mestre. Eu fiz muitas coisas, entre elas atacar um ser
mais fraco quando não tive força suficiente para punir outro ainda mais
poderoso do que eu.
Atena fez uma pausa, passando a mão na haste de sua dory.
— Há um enredo maior do que todos nós, um tecido que se estende por
toda a parte, guiado por mãos mais poderosas que a minha — disse Atena. —
Você pode chamar isso de complacência, e talvez seja. Eu creio que seja
sobrevivência.
— Como você pode ter tanta certeza de que seu destino foi escrito para
você? — indagou Lore. — E se você sempre teve a chance de viver sob seus
próprios termos e não enxergou isso?
Atena emitiu um ruído de deboche.
— Tudo o que sempre desejei foi fazer o que nasci para fazer.
— Que é…? — perguntou Lore.
— Guiar os corações dos guerreiros, as mentes dos filósofos e as mãos dos
artesãos — respondeu Atena. — E nunca falhar novamente em defender uma
cidade sob minha tutela.
A deusa ficou de pé, apreciando a vista dos edifícios distantes.
— Você se equivoca em um último ponto — disse Atena, enquanto se
virava para entrar novamente.
— Eu não escolhi guiar mulher alguma por uma grande aventura, mas as
aconselhei. Não por malícia ou por crer que eram criaturas inferiores. Pelo
contrário, senti que, ao elevar uma delas dessa forma, estaria desonrando
minha grande amiga, que não se compara a ninguém nesta terra, seja em vida
ou em morte.
Palas. Ela falava da companheira criada junto a ela, a quem matara
acidentalmente quando treinavam.
Atena voltou para a escada de emergência nos fundos do prédio, descendo
para a janela abaixo.
— A única coisa da qual sempre tive medo foi de ser impotente. De não ser
capaz de proteger as pessoas que amo. Mas não sei o que vai acontecer
comigo se eu ceder — disse Lore. Com tudo que sinto. Com tudo que quero
fazer.
A deusa falou, sem voltar-se a ela.
— Você será transformada.
A chuva começou a apertar, batendo em sua pele com força, mas Lore não
conseguia se mexer. Ela se sentia esgotada, mas não de um jeito que a
deixava fraca. Pela primeira vez em dias, talvez até em anos, sua mente
estava clara. Lore se apegou à dor aguda dentro de si e não soltou mais. Ela
segurou firme, esperando que suas garras se projetassem para fora.
Um trovão ressoou acima dela, como um escudo atingindo outro. Horas se
passaram desde que ela subiu pela escada de emergência, e Miles estaria em
casa logo, mas ela ainda não conseguia se mexer. Não conseguia fazer nada a
não ser deixar que a chuva caísse sobre ela.
O seu celular vibrou no seu bolso, tirando-a de seu devaneio em um susto.
Lore se levantou, pegando o celular. A mensagem era de Miles; ela soltou um
pequeno suspiro de alívio e começou a desbloquear o celular para responder,
sendo interrompida pelo aparelho vibrando repetidamente, com a mesma
mensagem inúmeras vezes.
socorro
socorro
socorro
TRINTA E QUATRO

— POR QUE NÃO ESTÁ FUNCIONANDO? — A MÃO DE LORE TREMIA ENQUANTO


mostrava o celular para Van. Ele o pegou de sua mão, tendo dificuldade em
controlar a raiva.
— Ele nos fez compartilhar a localização — prosseguiu ela. — Esse era o
nosso acordo…
— Você está compartilhando sua localização com ele — disse Van, de
forma direta. — Ele provavelmente se esqueceu de compartilhar a dele ou
alguém a desativou. De qualquer modo, precisamos sair daqui. Se eles podem
rastrear sua localização, esta casa está comprometida.
Castor ficou atrás dela, encostado na escada. Ele não disse nada, o que por
si só já dizia tudo. Nem ele nem Van olhavam para ela.
— Não vamos sair daqui — disse Lore. — Ele pode nem ter sido levado.
Talvez ele tenha só se machucado ou está escondido ou…
— Ou morto — concluiu Van, friamente. — Que é exatamente o que eu
disse que aconteceria se você o convencesse a ir.
— Não a considere como inimiga por acreditar nas habilidades do rapaz —
interrompeu Atena. — Você o tem difamado repetidamente e tentado forçá-lo
a uma escolha que deve ser feita voluntariamente. Melora não é responsável
por qualquer coisa que lhe tenha ocorrido.
Lore queria acreditar nela. Queria acreditar nela mais do que qualquer
coisa.
— Pensei que você ficaria de olho nele.
— Eu fiquei, mas precisei atender uma ligação — disse Van. — Não se
atreva a virar isso contra mim. Você acha que eu não sinto…
Ele mesmo se interrompeu.
— Procure por ele de novo no Argos — disse Castor, calmamente, já em
movimento de saída. — Eu fico de vigia do telhado. Acredito que consigo ver
alguém se aproximando e ganhar tempo para fugirmos se Fúria e os
caçadores tentarem atacar.
Atena se reposicionou ao lado da janela de sacada, abrindo uma fresta da
persiana para espiar a rua.
Van foi até a cozinha pegar seu segundo notebook. Enquanto um estava
com o Argos aberto, procurando ativamente por Miles, ele usou o outro para
ver os vídeos salvos.
— Essa é a filmagem arquivada de uma câmera de rua há algumas horas —
disse Van. Ele deu play e, juntos, assistiram a Miles desaparecer ao virar a
esquina.
— Não tem câmeras no ponto de encontro — disse Van, frustrado. —
Estava offline.
Lore se aproximou da tela.
— Não tem um jeito de saber se ele realmente se encontrou com seu
contato?
Van balançou a cabeça negativamente.
— Imagino que ele teria mandado uma mensagem ou ligado assim que
surgisse algum problema.
Miles apareceu na mesma filmagem minutos depois. Não havia nenhum ar
triunfal, como o que ele tinha quando foi no primeiro encontro, que foi bem-
sucedido; agora ele apenas parecia estar com medo. O programa pulou para a
próxima câmera, rastreando-o quando ele virou na Lexington. Outra câmera o
capturou na contramão do tráfego, ainda olhando em volta.
Depois, o vídeo foi cortado.
— Só isso? — disse Lore, sufocada.
O rosto de Van tinha a expressão mais sombria que ela já vira.
— Foi aí que o Argos o perdeu de vista. Ou ele está se escondendo muito
bem, ou foi levado.
— Merda — sussurrou Lore. Sua pulsação martelava, e sua respiração
estava enfraquecendo. A escuridão contornou sua vista, e seus pensamentos
começaram a espiralar com os piores cenários.
O outro computador fez um bipe. Van o pegou, ajeitando a postura
enquanto os dedos voavam sobre o teclado. Miles não — implorou ela,
silenciosamente. — Por favor, ele não…
Uma nova filmagem de uma câmera de segurança carregou. Nela, uma
silhueta pequena se ajoelhava em uma espécie de lago. As mãos estavam
amarradas nas costas e apenas seu perfil era visível, mas Lore reconheceu as
roupas de Miles.
— Quando foi isso? — perguntou ela.
— Está acontecendo agora mesmo — disse Van, olhando a hora. 15:21.
— Consegue aproximar a imagem? — suplicou Lore.
— Não dá — disse Van. — Você reconhece esse lugar?
Ela se aproximou mais, analisando a transmissão ao vivo. O terror tornou
ainda mais difícil para ela se concentrar em algum detalhe.
— Parece … o lago e a cachoeira atrás dele… acho que é o Morningside
Park. Não é longe daqui.
— Ele foi deixado lá como isca — alertou Atena. — O Ares impostor deve
ter descoberto o que ele significa para você. Precisaremos de reforços se
vamos ajudá-lo.
A cabeça de Lore estava a mil por hora.
— Você consegue reunir os Aquilídeos aqui em quanto tempo?
— Eles estão lá no Brooklyn — disse Van. — Mesmo de carro, leva pelo
menos meia hora. Há alguma possibilidade dos Odisseídeos não terem
deixado Manhattan?
Ela pegou o celular.
— Vamos descobrir isso agora. Vá buscar o Cas.
Enquanto Atena observava, Lore digitava uma mensagem para Iro.
Preciso da sua ajuda. Venha até o lago no Morningside Park o mais
rápido possível.
Mas não recebeu nenhuma resposta.

O Morningside Park servia como um limite estreito entre o Morningside


Heights, com os seus penhascos de três metros, e o Harlem, abaixo. Lore e
Miles caminhavam por ele, indo da 123rd Street até a 110th Street inúmeras
vezes; às vezes, ela o encontrava lá depois que as aulas dele terminavam, ou
porque ele lhe prometera pagar o almoço.
Sempre a perturbou ver aquele pedaço da paisagem original de Manhattan
se erguendo em desafio aos prédios modernos do entorno. O terreno irregular
se recusou a ser domado pelos construtores. Penhascos escuros interrompiam
várias ruas, e a única forma de continuar diretamente de uma parte da estrada
para a outra era atravessando o parque a pé e usando suas diversas escadas
para subir e descer superfície íngreme.
Enquanto caminhavam até uma das entradas do parque, Lore avistou uma
câmera de segurança ali perto e a mostrou para os outros.
— Eu coloquei as transmissões de todas as câmeras do parque em loop —
disse Van. — Estamos seguros. Por enquanto.
Bem de longe, a pálida Catedral de São João, o Divino, era quase
imperceptível em meio ao ar melancólico. Lore pensou que fosse um local
tão icônico quanto qualquer outro para seu confronto mortal.
Mesmo considerando a tempestade que se avizinhava, o parque estava
assustadoramente silencioso. Ela finalmente entendeu o motivo quando
passaram pelo primeiro corpo dentro do portão. Uma mulher com uma flecha
nas costas.
— Alguma notícia dos Odisseídeos? — perguntou Atena.
— Nada — disse Lore. — Mas não quero esperar mais. Se eles vierem,
vieram.
Castor assentiu, firmando a postura enquanto se levantava da sua posição
agachada.
— Vamos.
Então, os cães começaram a uivar.
Lore diminuiu o ritmo quando percebeu o que era.
— Ah não — disse ela suavemente.
— O quê? — perguntou Van. — O que está acontecendo?
— Não foi Fúria quem preparou a armadilha — sussurrou Lore.
— Foi minha irmã — disse Atena, segurando sua dory com firmeza. —
Ártemis.
TRINTA E CINCO

— ESTÃO VINDO — ALERTOU VAN.


Dezenas de cães, com os pelos emaranhados e cheios de lama, vinham pelo
caminho demarcado, latindo e uivando. Alguns eram vira-latas, outros
pareciam ter fugido dos seus donos e ainda tinham suas coleiras. Saliva
espumava das suas bocas.
— Cães uivadores — disse Atena, com repulsa. A deusa e seus aliados
estavam empunhavam as armas superiores dos Cadmídeos, Lore escolheu
uma adaga, mas a deusa escolheu uma pequena faca e a dory, e usava esta
para manter os cães afastados.
Cães uivadores eram usados por caçadores para perseguir e depois cercar as
suas presas. Eles latiam e uivavam para manter a caça encurralada até que os
cães de presa, ou o caçador, chegassem.
Com a visão periférica, Lore avistou vultos escuros se reunindo nas árvores
logo atrás da cabeça de Atena. Pássaros e esquilos se agrupavam nos galhos,
empoleirados um ao lado do outro com uma tranquilidade anormal e com os
olhos brilhando com o dourado do poder de Ártemis.
Eles não podiam nem fugir. A perseguição faria o sangue dos cães
esquentar, e eles os destruiriam.
— Ideias? — perguntou Castor ao grupo. — Alguém?
De uma só vez, os cães se calaram. O couro cabeludo de Lore formigou e se
retesou à sensação dos olhares invisíveis ao redor dela.
Gatos começaram a se agrupar na grama, com os pelos das costas eriçados
como facas.
Lore devia ter imaginado que o instinto de Ártemis seria de se esconder na
natureza, mesmo dentro dos limites de uma cidade feita de concreto e aço.
Eles teriam sorte se ouvissem o sussurro da flecha antes que perfurasse seus
corações.
Os cães os cercaram. Os que estavam atrás vieram mais para a frente, se
aproximando, enquanto os da frente deram meia-volta e começaram a seguir
uma trilha. Não para guiá-los, ela percebeu, mas para evitar que escapassem.
— Nós vamos simplesmente ficar aqui que nem idiotas e esperar que eles
nos ataquem? — disse Lore, sacando a faca da bainha amarrada em sua
perna. — Vamos lá.
Sua respiração soava em seus ouvidos enquanto seguiam a trilha para o sul.
Eles estavam cercados por árvores frondosas e arbustos espessos que os
margeavam. Conforme o caminho se estreitava, se tornava claustrofóbico.
Havia mais corpos: homens e mulheres que foram correr, outros que
claramente faziam o trajeto de ir e vir da escola e do trabalho. Todo o ser de
Lore se contorceu ao vê-los, alimentando a sua raiva.
Ártemis responderia por aquelas mortes. Atena tinha razão esse tempo todo.
Sua irmã estava fora de si. Castor poderia tentar, poderia ter esperança, mas
Ártemis nunca se aliaria a ele, e naquele momento Lore nunca aceitaria a
ajuda da deusa, mesmo que fosse oferecida.
— Essa é sua última chance de voltar atrás, impostor — alertou Atena. —
Não desperdiçarei meu fôlego para protegê-lo dela.
Lore olhou para Castor.
— Talvez você devesse…
Ele não quis ouvir.
— Estou aqui por Miles e não vou embora sem ele.
— Como Ártemis soube que ele estava envolvido nisso? — sussurrou Lore.
— Não é óbvio? — disse Atena. — Ela vem observando e rastreando
nossos movimentos. Ela precisava de uma forma de nos atrair.
— Não tem mesmo um jeito de falar com ela? — sussurrou Van. — Ela é
sua irmã.
Olhando para Atena ali, no entanto, Lore se perguntou se cometera um erro
ao trazê-la aqui. Atena não faria nada para pôr a vida de Lore em perigo, pois
isso significaria colocar a própria vida em risco, mas… ela não vinculou o
próprio destino com o de Castor. O que impediria a deusa de entregar Castor
em uma bandeja para a irmã e assim recomeçar a parceria?
Eu — pensou Lore, observando os músculos poderosos das costas de Castor
trabalharem a cada passo dado.
— Ela não é uma fera que deve ser acalmada — alertou Atena. — Quando
Apolo caiu, a sua mente se desgastou e ela se tornou uma alma pela metade.
Castor não disse nada enquanto olhava para o parque pouco iluminado.
Quando chegaram ao lago e à cachoeira, a leve garoa se tornara uma chuva
muito forte. Ela abria cortes na água esverdeada, fazendo com que a
superfície se movesse em uma dança frenética. Bem no meio do lago,
ajoelhado e curvado para frente até que o seu rosto quase alcançasse o nível
crescente da água, estava Miles.
Lore disparou adiante, mas Castor a segurou, forçando-a a pegar cobertura
com os outros atrás de um banco ali perto.
Ela examinou a área em volta deles, procurando por algum sinal de
movimento. Os cães formaram uma fileira na borda da água. Eles sentaram-
se, obedientes, esperando pelo próximo comando. Lore seguiu os olhares
deles atravessando o lago.
— Ali! — disse Lore, apontando. — Ela está ali!
A arqueira se equilibrava em uma pequena área florida entre a cachoeira e
um salgueiro-chorão gotejando e chuva.
Lore protegeu os olhos das rajadas da tempestade. O rosto da deusa estava
pintado com listras de lama e uma coroa de folhas e espinhos repousava sobre
seu cabelo claro. Sua túnica, outrora azul-claro, estava quase preta, de sangue
e sujeira. Ela ergueu o arco, mirando sua flecha preparada na direção de
Miles.
— Não! — gritou Van, pulando por cima do banco e correndo para o lago,
espalhando água fria para todo lado ao entrar no lago na hora em que Ártemis
fez sua flecha alçar voo.
TRINTA E SEIS

— CAS… — LORE COMEÇOU A DIZER, MAS O NOVO DEUS JÁ ESTAVA DE PÉ. A


energia saiu ardente de suas mãos, incinerando a flecha e explodindo pedras
irregulares ao redor da cachoeira.
Ártemis saltou para longe, desaparecendo entre as árvores bem quando Van
se atirou sobre Miles para protegê-lo. Castor e Atena correram em direções
opostas em volta do lago, no encalço dela. Os cães correram atrás deles,
latindo e rosnando.
Isso vai chamar a atenção de alguém — pensou Lore. Ela passou por cima
do banco e mergulhou no lago. — Ele está…?
Van ergueu uma das mãos, impedindo que se aproximasse. Sua voz furiosa
tinha um tom baixo.
— Não toque nele.
Lore congelou, com o estômago embrulhando.
— Precisamos… Precisamos tirá-lo daqui.
Van estava furioso, falando baixo, e todo seu corpo tremia com a força das
palavras.
— Você sempre… você sempre faz isso. É sempre sobre o que você quer e
todo mundo tem apenas que… Só… não encoste nele.
Ela não sabia o que fazer, exceto se afastar, enquanto Van arrastava Miles
para fora do lago. Ele se ajoelhou, colocando Miles sobre o ombro e, então,
correu de volta para a segurança das ruas mais próximas.
— Assassino de Deuses! — gritou Ártemis da escuridão. — Eu esperei por
isso!
Lore se abalou. Ela podia lidar com as consequências do que aconteceu
com Miles depois; nesse momento, ele estava a salvo com Van, e havia outro
problema mais urgente a se lidar.
Ela subiu correndo pelo lance de escadas mais próximo, parando quando
alcançou a trilha estreita de pedestres. Ela não conseguia ver ninguém por
entre o véu de chuva e os arbustos frondosos, mas podia ouvir vozes sem
corpos enquanto ecoavam pelos penhascos. Ela freou quando alcançou a
trilha do nível acima, vasculhando as árvores.
— Vá embora, irmã! — gritou Ártemis. — Você sabe que este abate é meu!
Se me trair novamente, será a sua vida que tirarei em seguida!
Traí-la? — pensou Lore, incrédula.
— Deseja discorrer sobre traição? — disse Atena, com voz trovejante. —
Depois de me abandonar para ser a presa do novo deus?
— E agora você me trai a cada fôlego de vida do assassino do meu irmão
— disse Ártemis. — Deveria tê-lo trazido até mim. Você prometeu que ele
era meu!
Lore tentou correr na direção do som das vozes ecoantes, mas elas pareciam
vir de todos os lugares ao mesmo tempo.
— Me escute. — pediu Atena. — Controle seus sentimentos antes que a
destruam.
— Escute, escute, escute! — retrucou Ártemis, vociferando. — Nunca mais
a escutarei. Você tece mentiras e trama promessas que nunca teve intenção de
cumprir. Foi você quem nos causou isso … você! Nós a seguimos, e você nos
levou à ruína!
— Sim, irmã, mas agora encontramos um possível fim para a caçada —
disse Atena. — Novas instruções. Nos ajude a encontrá-las e retornaremos
para casa. A caçada se findará.
— Nunca nos será permitido retornar para casa — rosnou Ártemis. —
Quando enxergará isso? Nunca nos deliciaremos novamente na luz de nosso
pai. Nunca teremos sua graça. Tudo que restou foi matar os caçadores e os
falsos deuses pelo que fizeram a nós. Puni-los por sua falta de fé. Se estou
fadada a morrer, então eles também estarão… a começar por ele!
Lore subiu correndo outro longo lance de escadas para ter um melhor ponto
de observação. Os penhascos estavam reforçados com alguns blocos de
pedra, fazendo-a sentir como se escalasse as paredes de um antigo castelo,
quando alcançou o mirante bem no topo. Ela se debruçou sobre o parapeito
de concreto, observando todo o parque. O medo subiu dentro dela como uma
névoa.
Lá — pensou Lore. Atena e Castor estavam ambos perseguindo Ártemis,
que os guiava para fora da trilha inferior. Eles sumiram debaixo da cobertura
da folhagem.
Lore disparou de volta pelos degraus escorregadios. Ela estava totalmente
encharcada, mas não sentia mais o toque frio da chuva. O barulho dos galhos
caindo de uma árvore foi a sua estrela-guia enquanto corria na direção deles.
Os deuses deram a volta na cachoeira, para as copas de árvores no cume,
não muito distante de uma das trilhas. As formações rochosas de cada lado
pareciam mais pedregulhos fundidos e achatados quando vistos de cima. Eles
se sobressaíam nas pequenas falésias do lago e alimentavam a cachoeira com
mais chuva.
Atena estava próxima dos outros deuses, arrancando redes de espinhos,
cipós e galhos que a irmã criava e lançava sobre ela.
Castor e Ártemis estavam próximos, batendo nas árvores enquanto
brigavam para controlar o terreno. Ártemis teve dificuldade para erguer o seu
arco de fibra de carbono. Ela tateou a parte superior das costas e percebeu
que não tinha mais flechas.
Deixando o arco de lado, ela sacou uma pequena faca de caça que havia
amarrado no braço. Castor foi forçado a andar em zigue-zague para evitar os
ataques erráticos dela. Ele sibilou quando a faca cortou seu antebraço e ela
redobrou os esforços, disparando adiante e mirando a lâmina no pescoço dele.
— Não! — Lore se jogou no chão para pegar a dory que Atena havia
deixado cair e a arremessou na direção de Ártemis.
A deusa a bloqueou com facilidade e com uma risada sem humor, mas Lore
não tentava matá-la. Ela só precisava dar uma segunda oportunidade a Castor.
E ele a aproveitou. Quando Ártemis recuou para evitar a lança, ele deu um
soco em seu pulso, forçando-a a derrubar a faca, e a derrubou no chão em luta
corpo a corpo.
Finalmente livre da rede, Atena seguiu aos tropeços na direção dos outros
deuses com o som do grito voraz de Ártemis. A ferocidade do grito fez com
que os pássaros ali perto piassem em uma cacofonia estridente. Ártemis
chutou Castor para longe dela, o fazendo estatelar as costas na grama e na
lama.
Ela recuperou a faca e a ergueu na sua frente, se protegendo tanto de Castor
quanto de sua irmã.
— Me escute… — disse Castor, com a mão pressionando seu flanco. —
Por favor… precisamos da sua ajuda…
Ártemis se movia com a graça de um cervo e a fúria incontrolável de um
javali raivoso. Enquanto Lore conseguia ver um ocasional toque de
humanidade na determinação de Atena, não havia nada que não fosse
animalesco em Ártemis. Ela era impossível de se ler, no que um dos antigos
escritores descreveu como sendo seus mistérios cruéis. Era tão imprevisível e
impiedosa quanto a própria natureza.
— Pare com isso, Ártemis! — disse Atena. — A caçada é tão nossa inimiga
quanto os caçadores. Juntos, nós podemos acabar com isso…
— Ah, sua tola! — vociferou Ártemis. — Você é incapaz de ver a verdade
bem diante do seu nariz. O Ágon não pode ser vencido. Não pode ser evitado.
É nosso próprio Tártaro.
— Não acredito nisso — disse Atena, dando outro passo na direção da
irmã. Ela levantou a mão para evitar que Lore a seguisse.
Lore engoliu um ruído de frustração, mas entendeu: Ártemis ficaria apenas
mais agitada caso sentisse que estava encurralada em uma situação de três
contra uma.
— Se acalme, irmã — prosseguiu Atena. — Escute o que estou dizendo
agora. Sua ira a fez ficar perdida, deixe-me guiá-la mais uma vez. Eu
entendo…
— Você não entende! — gritou Ártemis. — Senão o teria trazido até mim!
Nós devemos matá-los, todos os impostores! Todos eles!
Água passava pelos tornozelos de Lore, fluindo adiante, até a cachoeira.
Mas à medida que Ártemis se movia, Lore notou que parte do escoamento
chuva estava sendo drenado para baixo de um monte de folhas e lama ali
perto. Enquanto observava aquilo, uma camada de terra foi levada, revelando
a borda de um buraco e a cuidadosa camada de galhos finos que foi posta
sobre ele.
Lore arquejou quando algo pesado a atacou pela lateral. Um grande
labrador estava sobre ela, depois outro, rosnando e tentando mordê-la.
— Parem… com isso… — disse ela, lutando contra o frenesi deles. Saliva
quente voava para todo lado.
Um dos cães afundou os dentes em seu antebraço, e Lore soltou um grito de
dor, arremessando-o para longe dela, em cima de outro cão. Mais e mais cães
se reuniam ao redor deles. Ela deu um rolamento para poder se levantar e
agarrou um grande galho para se defender dos animais e mantê-los afastados
dos outros.
— Sim, você tem razão — disse Atena, mantendo os olhos fixos na irmã.
Ela se aproximou lentamente, deixando à mostra as mãos vazias enquanto
Ártemis empunhava sua faca. — Irmã, já esqueceu? Não consegue ver nem
mesmo agora? A primeira luz brilhando muito acima das nuvens, o modo
como ela passava sobre os jardins e salões de nosso lar, dourada como o ouro
mais puro… o ar doce de incenso e fumaça… a lareira, sempre acesa… o
mundo abaixo de nós, tão verde e vasto, tão promissor… nosso
inconquistável pai, os outros…
Lore se chocou com as emoções ocultas naquelas palavras, com o poço
profundo de dor que elas revelavam.
Ártemis gemeu, arranhando o próprio rosto enquanto sacudia a cabeça em
negação. A crueldade da sua expressão estava se estilhaçando. Atena havia
perfurado a sua armadura.
Mas de uma só vez, Ártemis se endireitou, e seus olhos ficaram estreitos de
puro ódio enquanto ela assimilava a presença da irmã.
— Você — disse ela. — Você roubou isso de mim.
Ártemis havia virado as costas momentaneamente para Castor, permitindo
que ele se aproximasse por trás dela. Ela girou, mas ele foi mais rápido,
prendendo os braços em volta dela e a imobilizando.
Um dos cães tentou se soltar para atacar Castor, mas Lore o afastou com o
galho e virou o pescoço na direção dos deuses, só por um momento, para ver
o que estava acontecendo.
— Não… não! — O corpo de Ártemis se contorcia, e houve um estalo
nauseante e molhado quando ela deslocou o próprio ombro para se libertar. A
mente dela estava em algum lugar aonde a dor não chegava. Usando a outra
mão, cravou a faca na coxa de Castor.
Ele recuou com um grito, fazendo uma careta enquanto a removia.
— Sinto o poder do meu irmão, mas está distante, muito distante —
vociferou Ártemis, arregalando os olhos. Ela pisou com o calcanhar na borda
da armadilha quando se recuou na direção da cachoeira e, por pouco, não
perdeu o equilíbrio. — Você passa uma sensação diferente dos outros… o
que você é?
Lore olhou de volta para a deusa quando ouviu a pergunta.
— O quê?
Castor foi em direção a ela, lentamente. Ártemis balançava a cabeça
negativamente, incapaz de tirar o olhar de cima dele enquanto seguia em
retirada, em sentido à beira do afloramento rochoso mais próximo, acima do
lago. A cachoeira jorrava logo abaixo dela, afogando algumas de suas
palavras.
— Você viu como ele morreu? — perguntou Castor, desesperadamente. —
Você estava lá? Sabe o que aconteceu?
Um trovão soou estrondoso sobre eles. Ártemis se atirou para cima dele
mais uma vez, socando-lhe o estômago, os rins e qualquer outro lugar que
conseguisse. Sangue irrompeu da perna do novo deus, se misturando com a
água da chuva.
Ártemis o empurrou para trás com um único chute. Ele a bloqueou com um
braço e, com a outra mão, a esfaqueou no ombro, usando a faca da própria
deusa.
Ela gritou de dor, arranhando o rosto de Castor. Ártemis arrancou a lâmina
do ombro e o atacou de novo. Castor derrubou a faca da mão dela, fazendo-a
girar pelos ares, para o lago abaixo deles.
A borda do afloramento formava um leve ângulo e se inclinava na direção
do lago. Ártemis tinha a vantagem do terreno superior, forçando Castor a
lutar para se firmar enquanto o vento e a água corrente conspiravam para
fazê-lo cair.
— Não se mexa — alertou Castor. — Por favor… ele não gostaria que
você…
— Se mencionar o nome dele, arrancarei a língua de sua boca — disse
Ártemis, enfurecida. E seguiu lentamente na direção dele.
— Não chegue mais perto! — alertou Castor.
— Pare! — gritou Lore. — Por favor!
— Fique aí, Lore! — gritou ele, vencendo o som da chuva. — A correnteza
está forte demais…
O corpo de Ártemis se movia pesadamente a cada respiração, e seu braço
deslocado pendia inutilmente na lateral do corpo.
— Não importa o que você é — disse Ártemis. — Não importa quem você
é ou o que você pode ter sido. Porque agora você está morto.
— Ártemis! — gritou Atena. — Não destrua a si mesma por este mortal!
Lore conhecia o olhar no rosto da caçadora, a ardente determinação por trás
dele. Ártemis sempre foi uma criatura solitária, mesmo quando andava com
um pequeno círculo de caçadores e ninfas favorecidos por ela pelas selvas do
mundo. Lore sentiu a dor que ecoou dentro dela. A deusa era de uma natureza
singular, envolta em sombras e silêncio, mas, sem o irmão gêmeo, ela estava
verdadeiramente só. Não restava nada a perder agora.
— Há um monstro no rio — disse ela, com a voz se desgastando enquanto
formava-se um frenesi. — Um assassino de deuses e mortais. Devorará todos
vocês… inclusive você, irmã.
— Um monstro? — Atena começou a dizer. — Diga-me…
— Sua morte foi escrita, impostor — Ártemis disse a Castor. — Meu
caminho é justo.
Castor lançou outra rajada de energia brilhante nela, depois outro, tentando
fazê-la ir para a trilha e afastá-la da formação rochosa. O vento os açoitava
por todos os lados, forçando Castor a se ajoelhar e usar uma das mãos para se
proteger e não cair da borda.
Ártemis recuperou o arco chutando-o para cima, depois o segurando em
frente ao corpo como se fosse um porrete, depois voltou a ir na direção dele.
Castor lançou uma última rajada, e, sem pensar, Ártemis deu um passo para
esquerda, se desviando.
— Pare! — gritou Lore.
O pé de Ártemis parou bem na borda da armadilha que ela preparara. A fina
camada desmoronou, caindo sobre as estacas pontiagudas de madeira abaixo.
Atena estendeu a mão para ela, mas Ártemis girou, se afastando tanto da irmã
quanto da armadilha.
— Ele é meu! — vociferou Ártemis. — A vida dele é minha! A vida dele é
minha!
Aquele pequeno movimento levou seu pé para dentro da forte correnteza
formada pela chuva e que agora alimentava a cachoeira. Uivos preencheram o
ar mais uma vez. Ártemis rosnou, mostrando os dentes em provocação
enquanto se endireitava e tentava pular sobre o espaço entre o topo da
cachoeira e o ponto em que Castor estava ajoelhado, na borda da formação
rochosa.
Um arbusto em flor ocultava a verdadeira borda da falésia. Todos os
músculos do corpo de Lore se contraíram quando Ártemis pisou nas flores e
escorregou para baixo. Castor esticou a mão para alcançá-la, tentando pegá-la
antes que afundasse no lago, mas Ártemis recusou, enojada.
E caiu.
TRINTA E SETE

ATÉ QUE O ÚLTIMO DIA DE SUA VIDA A DEIXASSE E ELA ACORDASSE NO SOMBRIO
Mundo Inferior, Lore se lembraria do barulho dos ossos quebrando e do grito
estrangulado sendo subitamente interrompido.
Castor caiu de joelhos, agarrando os cabelos e soltando um áspero grito de
frustração.
Lore teve dificuldade de ir até eles, apoiando as mãos nas árvores e pedras,
rastejando até que alcançasse a borda da cachoeira.
A alça da aljava de Ártemis ficou presa em um galho sobre a cachoeira,
quebrando seu pescoço em um instante.
E o rosto da deusa…
O grito de choque ainda estava preso na garganta de Lore, tentando sair. Ela
pensou que, se tentasse respirar, ele a sufocaria.
Atena se aproximou dela, olhando para a coroa de folhas e espinhos de
Ártemis. O único sinal de emoção em seu rosto foi a contração da mandíbula.
Era o semblante de uma guerreira, endurecida demais pelos séculos de morte
para estar à mercê do luto.
— Eu sint… — Lore começou a dizer, sem saber como continuar. Ela não
sentia muito. Mas… — O que fazemos agora? Você quer que eu a solte para
que você possa… possa enterrá-la até que o Ágon termine?
— Como se enterra um deus? — disse Atena. — Ela era poder, não carne e
osso. Isso nada mais era do que um recipiente rudimentar. Agora ela está…
livre.
E Lore se deu conta de que Atena era a última dos nove deuses originais.
Os cães nas trilhas começaram a choramingar e a uivar em luto. Diante de
tudo que aconteceu nesta semana, Lore não se sentiu nem perto de se
desfazer em pedaços como naquele momento, ouvindo os animais abafarem o
rangido da aljava enquanto o corpo de Ártemis girava, girava e girava, como
a infinita roda da vida, morte e renascimento.
Lore foi até a pequena falésia ao lado da cachoeira, na direção de Castor.
Ele continuava no mesmo lugar, curando sua perna. O novo deus ainda
parecia estar em agonia quando se levantou, embora claramente não tivesse
nada a ver com a dor.
— Você está bem? — perguntou ela, estendendo uma das mãos para ajudá-
lo com os últimos passos perigosos da formação rochosa.
— Já estive melhor — admitiu ele, estendendo a mão de volta para segurar
a da amiga.
De repente, Lore ouviu um zunido. Inicialmente, pensou ser o vento
ganhando força novamente, raspando galhos e pedras. Depois veio a dor
abrasadora no ombro esquerdo.
Lore olhou com descrença para o novo rasgo em sua blusa, para o sangue
brotando de seu ombro. Atrás dela, uma flecha tremia no tronco da árvore
que havia acertado.
— Lore…
A expressão de Castor era pesarosa e assustada. Ela observou, com a mão
ainda estendida, enquanto o sangue florescia na blusa encharcada dele,
derramando-se de uma única ferida no lado esquerdo de seu peito dele. No
coração.
Lore gritou, avançando para pegar o braço dele, mas foi devagar demais. Os
lábios do novo deus formaram uma última palavra silenciosa.
Lore.
A vida abandonou seus olhos dele, extinguindo as faíscas de poder. Castor
deslizou pela borda do afloramento, em direção à água abaixo dele.
SETE ANOS ATRÁS

LORE LUTAVA COM CASTOR HÁ TEMPO O SUFICIENTE PARA SABER QUANDO ALGO
estava errado.
Os outros estavam distraídos com a empolgação do começo do Ágon em
dois dias, elétricos com o andar dos preparativos enquanto o resto dos
Aquilídeos se reunia na cidade. Lore estava distraída com outra coisa: o prazo
que Aristos Cadmou dera dois dias antes, quando ela e o pai foram visitá-lo.
Dê-me sua resposta até o fim do Ágon.
Isso seria daqui a nove dias. Seu pai lhe disse para não se preocupar, ele
nunca diria sim. Mas Lore não conseguia parar de pensar nisso.
Castor não estava preocupado como ela e os outros estavam. Os
movimentos dele pareciam se arrastar pelo ar, como se o seu corpo tivesse se
tornado pesado demais. Eles sempre foram perfeitamente compatíveis no
quesito velocidade — ou, pelo menos, ele acompanhava o ritmo dela, da
maneira que ela tentava acompanhar a força dele.
O rosto dele a preocupava também. Ela passou a ver uma sombra sobre ele,
como acontece quando uma nuvem passa sobre o sol e escurece o mundo
abaixo.
Pá-pá-pá.
Lore colocou mais força no último golpe com o bastão de treino. Castor
recuou um passo, e seu pé de apoio escorregou na poça de suor que se
formava debaixo dele.
— De novo! — ordenou o instrutor. — Mais rápido!
Lore ergueu o bastão mais uma vez. Castor estava ligeiramente curvado
para a frente, sacudindo a cabeça. Seus olhos piscaram rapidamente, lutando
para se concentrar no rosto dela.
Ela curvou a cabeça em silêncio, como se perguntasse:
— Pronto?
Ele ergueu o próprio bastão. Ela interpretou a resposta no semblante que a
boca do jovem exibia. Lore começou a série de novo: pá, golpe alto, pá,
golpe médio, pá, golpe embaixo, repetidamente. Castor bloqueava as
pancadas, mas, conforme ele diminuía o ritmo, ela era forçada a fazer o
mesmo.
O rápido clangor dos bastões em volta deles funcionava como batidas de
tambor em uma canção de golpes de escudos e choques de lâminas. As outras
turmas que treinavam eram borrões ao redor deles. O cheiro dos corpos, do
óleo e dos tatames era forte em seus pulmões.
No último pá, Lore testou a sua teoria, batendo mais forte do que precisava.
Castor perdeu o equilíbrio, caindo de joelhos e ofegando levemente.
Lore olhou para o instrutor. O homem estava de costas para eles enquanto
andava pelo salão de treinamento, corrigindo os alunos e dando elogios sutis.
— Bom, Abreas… com mais força, Theron…
Enquanto Castor se recuperava, Lore fingiu dar um golpe de luta livre nele,
se inclinando para frente até que suas testas se tocassem e ela pusesse a mão
na sua nuca. Era a única forma que encontrou para conseguir falar com ele
fora dos intervalos.
— Você está bem? — sussurrou ela. — Se estiver passando mal, precisa
pedir para sair.
— Estou bem — prometeu Castor. — Meu ranque já é ruim o suficiente
sem perder mais pontos. E você não teria ninguém para treinar, agora que
Van foi para casa.
Evander, um dos primos distantes de Castor, veio ficar na Casa Tétis por
uns meses antes do Ágon, mas foi levado para casa pelos pais depois de uma
sequência desastrosa de sessões de treinamento. Lore tinha ciúmes dele, por
se intrometer no tempo que ela tinha com Castor e ainda mais pelas lições nas
quais os instrutores a mandavam apenas olhar para que Castor e Evander
pudessem formar uma dupla.
Isso a deixava muito irritada. Evander não conseguia bloquear um ataque
sem se encolher e cobrir a cabeça. Ela merecia treinar mais do que ele,
mesmo que não tenha nascido Aquilídea.
— Pausa para água! — disse o instrutor. — Rápido. Vamos encerrar com
treino com facas.
Lore tomou o bastão de Castor antes que ele pudesse reclamar.
Vai — ordenavam os olhos dela. Ela acenou com a cabeça na direção do
longo banco nos fundos do salão onde as garrafas de água deles estavam.
Mesmo assim, Castor esperou por ela.
— Desista, Cassie — disse uma voz sarcástica. — Você não consegue
acompanhar nem mesmo uma garota.
— Está com ciúmes, Orestes? — retrucou Castor, ainda ofegante. — Como
o instrutor disse, somos tão bons quanto nossos pares. O coitado do Sabas
não teve nem chance, não é?
— Melhor do que um verme fraco e doente — disse Orestes. — Anda logo
e morre de uma vez, pode ser? Se a sua mãe não tivesse sido tão covarde,
teria te largado em uma colina qualquer.
Lore bateu sua garrafa de água com força no banco e voltou a atenção para
ele. Castor apertava levemente o pulso da amiga, impedindo-a.
— Você sabe bem sobre essas coisas — disse Castor —, já que consegue
viver bem com metade do cérebro. Não se preocupe, ninguém percebeu que
você ainda não dominou as habilidades de espada do primeiro ano. Estamos
todos torcendo por você.
Os alunos da turma dele cochicharam entre si, olhando para o instrutor para
ver se ele interviria. Ele estava ocupado consultando outro instrutor. Outros
sorriram maliciosamente, antecipando a briga que estava prestes a acontecer.
— Pelo menos eu não vou virar noiva de uma serpente — zombou Orestes.
Lore respirou fundo. Castor olhou para ela, franzindo as sobrancelhas
escuras. Orestes parecia um corvo que acabara de pegar uma minhoca.
— Ela não contou para você? — disse ele, enquanto voltavam aos tatames
finos de treinamento. — Este é o último dia dela aqui. O pater está furioso
pelo babaca do pai dela ter concordado em fazer o casório da filhinha com o
arconte dos Cadmídeos. Os anciões se reuniram ontem à noite e decidiram
expulsar essa garota. Meu pai me contou. O único motivo de ainda não terem
mandado ela para casa hoje de manhã foi porque o pai dela implorou que
nem um cachorro por um último dia.
A mágoa e a confusão travavam um combate no rosto de Castor enquanto
ele a fitava, esperando a confirmação. Lore ficou vermelha devido ao sangue
quente.
— Isso não é verdade — disse ela. — Não é!
Ela não contara a ele sobre o encontro com os Cadmídeos porque… porque
ela ainda não entendia direito o que aconteceu. Mas o seu pai recusaria a
oferta de Aristos Cadmou. Nunca a entregaria a ele.
— Ninguém diz não para o arconte dos Cadmídeos — disse Orestes a ela,
de forma presunçosa. — Talvez ele te estrangule enquanto estiver em cima de
você como…
Castor deu um soco na parte lateral da cabeça de Orestes, fazendo-o tombar
para o lado. Os outros transbordaram de alegria quando Orestes investiu
contra Castor.
Se ele estivesse com toda a sua força, Castor nunca teria caído da maneira
que caiu.
— Chega! — disse o instrutor. — Voltem para as suas posições.
Começaremos de novo… — Mas Castor não se moveu. Não conseguia se
mover.
— Cas? — disse Lore.
Ele não reagiu. Os olhos dele reviraram e todo o seu corpo começou a
convulsionar.
Lore caiu de joelhos ao lado dele, tentando mantê-lo imóvel.
— O que você fez? — gritou para Orestes. Mas até mesmo o garoto parecia
chocado. O instrutor colocou uma mão embaixo da cabeça de Castor para
evitar que ele a batesse no chão de madeira.
— Chame o curandeiro de plantão! — vociferou ele a um dos alunos.
— O que você fez? — questionou ela, novamente. Orestes se afastou
quando ela o atacou, com socos no estômago. Foi a última coisa que de que
se lembrou antes de sua mente escurecer. A próxima coisa que viu foi o
instrutor com os braços a imobilizando e a tirando de cima de Orestes. O
rosto do garoto era uma massa sangrenta e mole. As mãos dela estavam
cobertas com esse sangue.
— Eu vou te matar — prometeu ela. Orestes tossiu, cuspindo muco e
sangue. Seu próprio hetaîros ajoelhou ao seu lado, fitando Lore com olhos
arregalados.
— Você precisará esperar mais sete anos para tentar, pequena górgona —
rosnou o instrutor. — Isso é, se a serpente deixar que você saia do seu covil.
Lore tentou se desvencilhar, mas ele a segurava firmemente. Ela estendeu
as mãos na direção de Castor, mas não conseguia vê-lo, apenas seu pé
calçado com uma sandália atravessando o círculo de garotos que o cercava.

Horas depois da chegada da Curandeira Kallias com notícias indesejadas, a


entrada de Lore no quarto que Castor e o pai dividiam na Casa Tétis foi
permitida.
Lore ficou do lado esquerdo da cama dele, observando o subir e descer de
seu peito, contando os movimentos como contaria os passos em um treino.
Quíron dormia aos pés de Castor. Ele lambeu a mão da menina quando ela
acariciou atrás de sua orelha.
— Você acha que eu estava errada? — sussurrou ela. Ela viu o não nos
olhos escuros de Quíron e concordou.
O coração dela batia forte no peito, ecoando os golpes que ela desferira
contra Orestes. Ela tocou as ataduras ásperas que o pai de Castor passou em
volta de seu punho depois que a Curandeira Kallias se recusou a fazê-lo.
Orestes, aparentemente, era sobrinho dela.
Ela ouviu pela fresta na porta do quarto seus pais chegarem. Como zelador
do edifício, o pai de Castor podia passar escondido com eles por uma entrada
lateral e subir pelo elevador de serviço, diminuindo as chances de serem
vistos pelos Aquilídeos. Lore estava envergonhada com o quanto que ela
queria sua mãe e ser abraçada por ela até as palavras da curandeira
desaparecerem.
Não há mais nada a ser feito. Nenhum tratamento Mundano pode curá-lo.
Fragmentos da conversa baixa deles vagaram pelo cômodo, interrompendo
os suaves zunidos e bipes dos estranhos aparelhos médicos em volta da cama
de Castor. Lore foi até a porta, com ouvidos aguçados para ouvi-los, mas
lendo os lábios deles para captar as palavras completamente, da forma como
ela e Castor ensinaram um ao outro para espionar os anciões de sua linhagem.
Um ruído com o chiado de um rádio aumentou em seus ouvidos.
— O que eu deveria fazer? — sussurrou o pai de Castor. — Ele está
sofrendo porque eu não consigo deixar ele partir? É arrogância pensar que eu
posso alterar um resultado inevitável?
— Não, claro que não — respondeu a mãe de Lore, com voz baixa e
tranquilizadora enquanto segurava as mãos dele. — Sempre há esperança.
— A esperança nos abandonou — disse Cleon. — Os anciões me
informaram que não pagarão mais pelo tratamento e que ele está fraco demais
para viajar até quem talvez possa nos ajudar.
Lore cerrou os punhos nas laterais do corpo, e todo seu ser, da pele até a
alma, começou a vibrar de raiva. Isso não era certo. Não era para ser assim…
— Não há nada a fazer senão nos rendermos ao tecer das Moiras e permitir
que ele tenha uma morte digna — disse Cleon.
— Não! — Ela irrompeu pela porta. Quíron latiu atrás dela, assustado com
o barulho e com o movimento. Seu corpo parecia que ia explodir enquanto
ela ralhava com aquele arremedo de pai. Ele queria que Castor morresse; ele
deixaria Castor partir. Um caçador sempre luta, como os homens das lendas;
eles nunca deveriam desistir
— Pare com isso, Melora — ordenou o pai, segurando-a pelo braço e a
puxando para trás. — Pare com isso agora!
— Seu covarde! — vociferou Lore a Cleon, lutando contra a mão do pai. —
Que Hades o leve, seu cachorro fraco! Você é quem merece morrer, não ele!
— Melora! — disse sua mãe, horrorizada.
Mas o pai de Castor apenas começou a chorar.
— Eu queria que ele, eu queria que ele…
— Peça desculpas agora — disse seu pai, voltando a filha para Cleon
Aquileu.
Lore virou a cabeça para o outro lado, com maxilar cerrado.
— Não. — Os deuses odiavam covardes, e ela também.
O seu pai a arrastou de volta para o quarto com uma ordem ríspida:
— Fique aqui até se acalmar.
E o pai fechou a porta. Lore bateu nela com ambas as mãos, e as lágrimas
escorriam por suas bochechas. Dentro dela havia um turbilhão de dor e
confusão, e ela não aguentava isso.
Os instrutores disseram por repetidas vezes que não há desonra maior que a
covardia. O pai de Castor pode ter desistido, mas ela nunca o faria. Levaria
Castor a todos os médicos na cidade, nem que tivesse que carregá-lo nas
costas. Lutaria até que seu corpo não aguentasse mais e depois se arrastaria,
se fosse preciso.
— Ele apenas está triste, Lore.
A voz de Castor nem chegava a ser um sussurro quando chegou a ela.
Lore ergueu o olhar, limpando as lágrimas nos olhos com o braço. Foi até
ele e subiu na cama estreita. Castor chegou para o lado no colchão o máximo
que pôde para dar espaço a ela. A menina deitou, com as mãos ainda
tremendo quando as repousou na barriga. Quíron soltou um barulho
rabugento enquanto se movia para dar espaço para seus pés.
— Eu não ligo — sussurrou Lore, voltando-se para ele a fim de fitá-lo. A
pele do menino ainda estava pálida, quase tão translúcida quanto os tubos em
seu nariz, que lhe forneciam oxigênio. Mas então ele sorriu e a fez se sentir
um pouco melhor.
— Você vai ficar bem — disse ela. — Sempre tem um outro jeito.
— Não acho que tenha — disse ele. — Não dessa vez.
Ela pressionou as mãos com força na altura do estômago para forçá-las a
pararem de tremer.
— Eu tenho um plano para conseguirmos assistir ao Despertar sem que
ninguém saiba.
— A Curandeira Kallias disse que eu não posso sair desta cama — disse
Castor. — Que… eu preciso descansar.
— E depois — prosseguiu Lore, se sentando. As palavras saíram
atropeladas, mas ela não se importou. — Depois disso, podemos comprar
sorvete naquele lugar perto do nosso apartamento que está sempre aberto.
Nossa vizinha me deu alguns trocados por regar as plantas dela quando ela
estava fora da cidade…
— Lore — disse ele, e então usou aquela palavra que ela odiava mais do
que qualquer outra. — Pare… Está tudo bem. É sério.
Ela respirou fundo. Algo selvagem cravou garras dentro de seu peito.
— Não está tudo bem! Você vai melhorar. A Curandeira Kallias é uma
idiota. Ela não sabe de nada.
— Está tudo bem — disse ele, suavemente. — Vou ver minha mãe de novo.
Não estarei sozinho. Não estou com medo.
— Não vou deixar você ir — disse ela, com a voz baixa e determinada. Não
deixaria. Ele era o seu amigo e hetaîros, seu companheiro e parceiro em todas
as coisas. Ela o defenderia se ele caísse, derrotaria qualquer coisa e qualquer
um que o ameaçasse; sua lâmina era dele, e a dele, era dela.
— Ei — disse ele, suavemente —, você já ouviu aquela sobre os cachorros
dançarinos?
Lore franziu as sobrancelhas quando seus pensamentos em espiral pararam
repentinamente.
— O quê?
O sorriso dele era fraco, mas ainda estava lá.
— Ninguém queria fazer par com eles porque tinham dois pés esquerdos.
Lore balançou a cabeça negativamente. Até Quíron pareceu gemer.
— Castor Aquileu, esta é a pior piada que você já contou.
Ele deu de ombros ligeiramente, mas mesmo seu fraco sorriso sumiu
quando o silêncio caiu sobre eles e sua respiração ficou mais ofegante.
— Você não vai morrer — sussurrou Lore. — Não vai. E se morrer, eu vou
te seguir até o Mundo Inferior e te arrastar de volta. Eu também não tenho
medo. Não tenho medo de nada.
A mão da menina envolveu o pulso fino dele, como se pudesse mantê-lo
vivo apenas com sua força de vontade. A pulsação de Castor estava agitada
sob as pontas dos dedos de Lore.
Ele a observou, com os lábios pálidos contraídos formando uma linha fina.
Ele lutava contra a fadiga, piscando para afastar seu toque. Lore também não
queria aquilo, então se forçou a assentir.
— Não — disse ele. — Não, Lore… me prometa que você não vai.
Quando ela não prometeu, Castor agarrou-a pela nuca, encostando sua testa
na da amiga. A mão do menino estremeceu com o esforço, mas Lore fingiu
não perceber.
— Me prometa — sussurrou ele. Seus cílios escuros contrastavam com as
bochechas alvas quando fechou os olhos. A tensão no corpo de Castor se
amenizou com o sono, mas a mente dela, a alma dela, queimavam.
— Eu conheço meu destino — sussurrou ela.
E vou mudar o seu.
TRINTA E OITO

POR UM TERRÍVEL MOMENTO, LORE NÃO CONSEGUIA SE MOVER, NÃO CONSEGUIA


pensar, não conseguia fazer nada que não fosse encarar o local onde Castor
estivera. A chuva lavou a poça de sangue, alimentando a mancha na água
abaixo.
Morto.
Logo além do lago estavam dezenas de caçadores. Alguns usavam
máscaras, mas Iro não. Nem o caçador alto que estava ao lado dela. Que
ainda estava com a besta preparada e apontada para ela.
Atravessando a distância e a chuva, o olhar de Lore encontrou o da amiga.
Iro a encarou, com olhos desafiadores e rosto inexpressivo.
— Se abaixe! — gritou Atena a ela. — Melora!
Outra flecha voou, desde vez de um caçador diferente. Ela passou cortando
o braço de Lore. A dor ardente rompeu seu estado de choque. Iro vociferou
algo para os caçadores, alguns se espalharam, voltando para as ruas da
cidade. Os outros pararam de mirar os arcos em Lore e apontaram para onde
Atena estava escondida, atrás de uma árvore.
Mais flechas voaram. Atena se agachou ainda mais, mantendo a cabeça
cuidadosamente coberta enquanto lascas do tronco voavam acima dela.
Todo o corpo de Lore latejava com as batidas de seu coração. Ela não
parecia conseguir trazer sua mente de volta a si.
Morto.
— Precisamos sair deste lugar — gritou Atena. Ela fez algo cruzar a
distância entre elas deslizando pela superfície úmida. Lore olhou para baixo e
viu o lampejo prateado da faca de caça de Ártemis, vendo a chuva cair sobre
ela.
Morto.
Uma pequena chama cresceu no centro de seu peito. Ela se prendeu àquilo,
deixou que queimasse, porque era algo no meio daquele vazio dormente.
Lore se prendeu até reconhecê-la pelo que realmente era.
Fúria.
Ela pegou a faca e levantou, mantendo-se agachada entre os arbustos. Cada
parte de si a forçava a disparar para a frente e cortar a garganta do assassino.
A punir Iro. Seria justo. Seria até mesmo obrigatório, pelas regras da caçada.
Iro e o caçador que disparou a flecha mortal foram até a beira do lago e
caminharam com dificuldade em meio à chuva implacável. Ele deixou o arco
cair e desembainhou lentamente uma espada, com o olhar fixo na forma
sombria de Castor boiando de bruços na água. Iro tinha uma dory na outra
mão e a usou para manter o equilíbrio enquanto atravessavam a bacia do
lago, que não se podia ver.
Armas que roubaram dos Cadmídeos, por insistência de Lore.
E assim eles a retribuíram, fazendo isso. Tirando Castor dela.
Sua cabeça latejava com a força alucinante dos pensamentos. Lore chegou
ao nível inferior do parque, passando pelo rio de lama, chuva e pedras soltas
até a borda do lago.
— Iro Odisseus! — gritou ela, com voz rouca.
Iro girou quando Lore pulou na água, erguendo sua dory. Ela acenou para
os outros caçadores que pairavam pelo lago. — Fique longe, Lore!
— Como você pôde? — vociferou Lore. — Depois de tudo que fizemos por
você…
Seu pé escorregou em alguma coisa longa e fina no solo macio do lago. Um
impulso elétrico subiu por sua coluna quando ela percebeu o que era.
A dory de Atena.
Ela a ergueu com o pé, tirando-a da água com prazer. O comprimento da
lança a daria a maior das vantagens contra o caçador.
— Nós precisamos de um deus na nossa linhagem — gritou Iro. — Você
virou as costas para este mundo, mas nós não! Se vamos fazer Fúria pagar
pelo que fez com nossa linhagem, precisamos do nosso próprio protetor!
Lore virou a dory nas mãos, ainda caminhando na direção dela. O caçador
ao lado de Iro se moveu, sem saber direito o que fazer.
— Você nem mesmo foi capaz de fazer o trabalho sujo — criticou Lore. —
Deixou um homem matá-lo por você.
— Eu tinha esperanças de que seria Ártemis, ou Atena — disse Iro, lutando
para manter a calma em sua voz. Ela não recuou nem mesmo quando Lore
arremessou a faca que estava na sua mão esquerda, acertando a garganta do
outro caçador Odisseídeo.
Ele caiu soltando um arquejo assustado, engasgando no próprio sangue. Iro
girou no próprio eixo, voltando a fitar Lore, chocada.
— Você vai… você vai ascender — disse Iro, com dificuldade. — Por que
o poder não foi tomado…?
As palavras passaram por Lore como se fossem ditas em um idioma que ela
não entendia. Não havia nada mais no mundo além da lança em sua mão e
Iro.
Lore fez um movimento ascendente com a sauroter da dory, acertando a
parte de baixo do queixo de Iro e cortando o lado direito de seu rosto. Lore
teria cortado o olho de Iro como uma uva se ela não tivesse esquivado para
trás, batendo com a haste de sua própria dory contra a de Lore para aparar o
golpe.
Você o tirou de mim — pensou Lore, deixando a dor alimentar a explosão
de ódio que crescia em sua mente. — Você não vai tocar nele.
— Ele pode não estar… — disse Iro, tentando estancar com a mão o sangue
que escorria pelo seu rosto, cuspindo um pouco do que estava na boca. —
Você não é minha inimiga, Lore!
— Você me tornou sua inimiga! — Lore girou a dory acima da cabeça,
permitindo que Iro bloqueasse seu golpe para que pudesse chutar o peito da
garota. A água ajudou Iro a manter o equilíbrio, mas diminuiu o ritmo de seu
avanço na direção de Lore.
Ela se inclinou para a esquerda quando Iro deu uma estocada. Lore tentou
golpear o pé de Iro com a sauroter, mas era quase impossível ver qualquer
coisa sob água se movimentando freneticamente. A chuva caía sobre elas. Iro
agachou, recuperando a faca do pescoço do caçador morto e a arremessando.
Lore se defendeu com o corpo metálico da dory, com tal força que soltou
uma faísca.
O combate estabeleceu seu ritmo, e Lore sumiu em meio à força do seu
corpo, indo ao passado, até encontrar a garotinha que teria arrancado o
coração de seu oponente para declarar vitória.
Então a libertou com toda a sua ferocidade. Cada perda agonizante, cada
humilhação e cada lembrança daquela desesperança sufocante revoltaram-se
dentro dela como uma tempestade.
Iro finalmente acertou um golpe, rasgando a pele do braço de sua oponente
enquanto aparava a tentativa de Lore de cravar a ponta da lança em seu peito.
Ela merece morrer — pensou Lore, cruelmente. — Todos eles merecem.
Que ela se torne o monstro que assombrou as lendas de todos. Seu kleos
seria a infâmia gloriosa.
Lore fingiu que golpearia o estômago de Iro em uma finta para ter tempo de
enfiar a mão debaixo d’água e pegar novamente a faca. A parte branca dos
olhos de Iro faiscou quando Lore esfaqueou a coxa da garota e virou a dory
para conduzir a sauroter à garganta da oponente.
A silhueta de Atena surgiu na beira do lago, não muito longe de onde os
corpos dos outros Odisseídeos estavam, agora, espalhados.
Iro tinha muita dificuldade em recuar com a perna machucada, tentando
realizar uma fuga veloz. Sangue escorria em seu rosto. Lore teve o distante
pensamento de que a ferida de Iro podia ser igual à cicatriz que o arconte dos
Odisseídeos deu a ela na noite de sua morte.
Lore novamente foi em direção a ela, lentamente. A ferida não teria tempo
de cicatrizar. Iro ergueu a dory para afastá-la, lutando para ficar de pé.
A arma começou a ficar em um tom vermelho quente. Parecia irradiar calor
da ponta, transformando a chuva ao redor delas em vapor. Iro observou
enquanto o calor se espalhava, e o aço ficava mole em suas mãos. Ela jogou a
lança na água antes que queimasse sua mão.
Lore deu meia-volta.
Castor erguia-se lentamente da água, com o rosto totalmente inexpressivo, e
seus olhos queimando em dourado.
TRINTA E NOVE

O AR BRILHAVA AO REDOR DE CASTOR, VIVO COM A ENERGIA PURA.


Enquanto a dory escorregava dos dedos de Lore, ela perdia todos os
sentidos em seu corpo.
Não é real. Isso é… É impossível.
Ela o viu morrer. O olhar de Lore foi ao peito dele, onde a flecha perfurara
o coração. Por baixo do rasgo manchado de sangue na blusa estava uma pele
nova e sem marcas onde o ferimento deveria estar. O que significava que…
A luz e a energia ao redor de Castor se intensificaram. Ele assimilou a visão
do caçador morto, depois olhou para Iro.
— Vá — disse ele.
— O que… é… isso — arfou Iro. — Quem você é? Você estava…
— Vá — ordenou Castor, com voz de trovão.
Desta vez, Iro teve o bom senso de sair correndo. Ela lutou contra a chuva e
a água, segurando a perna machucada. Castor não prestou atenção nela, mas
olhou de novo para os corpos do caçador.
— Você fez isso? — perguntou ele, suavemente.
A mandíbula de Lore cerrou-se dolorosamente com a aflição na voz dele.
— Sim. E eu faria de novo.
Os olhos dele se fecharam e se abriram lentamente, como se estivesse
acordando de um sonho.
— Independentemente do que aconteça comigo, você não pode fazer isso
com você mesma.
A breve alegria que ela sentiu se transformou em cinzas em sua boca. Como
ele se atreve… como ele se atreve a julgá-la desse jeito, como se fossem
crianças novamente e ela não soubesse distinguir o certo do errado?
— Eu posso fazer o que quiser — disse Lore friamente.
— Mas não é isso que está fazendo — disse ele. — Eu não acredito que
isso seja realmente o que você quer… matar pessoas, ser uma caçadora.
— Eu faço minhas próprias escolhas — disse ela. — Você é o único que
não joga seguindo as mesmas regras que todo o resto. Não é complacência. É
sobrevivência.
Ele a encarou com descrença.
— Você está se ouvindo? Acha que é isso que os seus pais iriam querer…
que você se perca ao vingá-los?
— Não se atreva a usá-los como munição contra mim! — criticou Lore.
Qualquer coisa que Castor falou depois disso desapareceu quando Atena se
intrometeu.
— O que você é, impostor? — questionou Atena. — Você não é mortal, o
que significa que não é nenhum deus. O que você é?
— Eu… — Castor olhou para as mãos, fios de poder ainda estavam
envoltos nelas, como anéis de ouro, depois ele tocou o local onde a flecha o
atingiu.
Ártemis havia perguntado a mesma coisa: O que você é?
— Como você está vivo? — questionou Atena. — O que está escondendo
de nós?
— Nada — disse ele, olhando para Lore. — Eu não consigo explicar isso…
eu não me lembro do que aconteceu naquele dia…
— O que sabe sobre o Ágon que nós não sabemos? — continuou Atena. —
Não acredito que você não se lembre de nada. Se você é um imortal nesses
sete dias, você aprendeu algo… fez algo… e guardou isso para si mesmo,
escondendo de nós, suas aliadas.
— Eu não… — disse Castor, com a voz baixa e rouca. — Eu não lembro.
Senti dor, tudo ficou escuro… e depois eu acordei.
— Você mente — disse Atena. — Você está aqui, mas não faz parte da
caçada. Não de verdade. Diga-nos o que você é. A minha irmã está correta,
sua energia passa uma sensação de algum modo diferente. Sempre passou…
ela flui por você, mas não nasce de você.
Lore voltou-se para ela, em choque.
— O que isso quer dizer?
A deusa continuou encarando Castor até que, finalmente, Lore também o
fitou. Seu coração acelerou e ela sentiu como se de repente estivesse se
afogando fora d’água quando uma voz nítida surgiu.
Nada disso é real.
— Você perder a memória é uma mentira conveniente que esconde a
verdade sobre como um deus pode escapar da caçada — disse Atena. — É
por isso que não tomou uma forma humana nos últimos sete anos? Você
estava mesmo nesta dimensão?
Nada disso é real.
Nem Gil, nem sua vida aqui, nem mesmo Castor e o abrigo que a sua
presença familiar dava ao seu coração eram reais.
Castor ignorou a deusa, mas tentou fazer Lore fitá-lo novamente.
— Você não acredita em mim.
Lore não podia cair na armadilha de outro deus. Não podia se reduzir a uma
peça no jogo do qual não queria fazer parte. Mas este era Castor.
Não era?
— Nós só estamos tentando descobrir o que está acontecendo — disse
Lore.
Ele observou Lore, e sua desolação era clara.
— Nós — repetiu ele.
Lore repetiu as próprias palavras em pensamento. A presença de Atena arás
dela a acalmava. Ela a apoiava, dando-lhe um último resquício de força para
se manter desafiante.
— Nós — confirmou ela.
Ela e Atena fariam o que fosse necessário, o que fosse justo, até que o
último fôlego de vida deixasse o corpo mortal de Fúria.
Castor nunca quis ajudá-las a levar o plano adiante. Se ele realmente não
sabia como ascendeu e não podia morrer… se realmente não tivesse nenhum
motivo oculto para trabalhar com elas… Lore precisava que ele a
convencesse agora. Seria sua última oferta: junte-se a nós ou vá embora.
Com um último olhar sobre ela, ele deu as costas e foi embora.
Castor passou pela água, de cabeça abaixada e ombros curvados. O pânico
tomou conta de Lore ao vê-lo ficar cada vez mais distante e ser encoberto
pela chuva. Lore deu um passo para frente, mas Atena a bloqueou com um de
seus braços. O som das sirenes ecoou na direção delas, aumentando de
volume enquanto se aproximavam.
— Ele não é necessário — disse a deusa. — Fomos escolhidas para isto,
você e eu.
O corpo de Lore parecia de madeira enquanto subiam as escadas até a
quietude de Morningside Heights. Ao alcançarem o mirante, no entanto,
Atena girou de repente em direção ao parque, com o rosto tenso de
concentração. Ela estudou as luzes vermelhas e azuis das viaturas e
ambulâncias conforme apareciam abaixo, disparando pela rua.
— Precisamos ir — disse Lore.
Atena ergueu uma das mãos para silenciá-la.
Um tremor passou pelo chão, como uma serpente na areia. A vibração subiu
pelas pernas de Lore e foi para sua coluna, incendiando cada um de seus
nervos. Um trovão soltou um pequeno murmúrio de desprazer.
Só que não era um trovão.
Ele invadiu as ruas com um rugido monstruoso, atropelando tudo que
estava em seu caminho enquanto avançava com uma brutalidade que roubou
o ar dos pulmões de Lore.
Água escura. Uma quantidade enorme dela, mais do que Lore já tinha visto
em toda a vida, correndo, correndo, correndo, vinda do rio mais próximo,
rasgando as ruas. As ambulâncias e as viaturas em todo o parque
desapareceram debaixo da onda crescente, sendo arrastadas como
brinquedos, e suas luzes se apagavam repentinamente. Os policiais e
socorristas correram, mas não eram rápidos o suficiente.
E mesmo assim a água não estava satisfeita.
Seu nível aumentava a cada segundo, engolindo placas, postes de luz e
edifícios, afogando a cidade inteira.
QUARENTA

DO ALTO DO MIRANTE, LORE ASSISTIA IMPOTENTE ENQUANTO A DESTRUIÇÃO


implacável da água arrebentava muros e carregava os escombros como
troféus de guerra. Ela ouviu gritos e começou a seguir para as escadas. Atena
a segurou pelo punho com força de aço, impedindo-a.
— Temos que ajudá-los! — disse Lore, tentando se desvencilhar da força
absurda de Atena.
A deusa olhou para o nível crescente das águas, assimilando o que via e o
cheiro que sua agitação fazia subir.
Lore fechou os olhos, mas os ruídos cataclísmicos da água quebrando
janelas, a buzina, o bater dos carros e as baixas e distantes vozes implorando
por ajuda abriram um buraco na sua mente até que Lore pensou que gritaria
nem que fosse para abafar aquilo tudo.
O rosto de Atena era impassível. Não havia nenhum traço do pânico que
Lore sentia, tampouco havia sinal de desamparo. Havia lembrança. Ela vira
inundações maiores e piores, que tinham como objetivo apagar a humanidade
da face da Terra. Dilúvios deveriam significar uma nova vida na Terra após
os fracassos dos homens condenados da Idade da Prata e do Bronze.
— Isso não pode ser só uma maré de tempestades — sufocou Lore. — Tem
água demais, e não está parando… isso não pode ser natural. E as pessoas
que moram nos andares mais baixos dos edifícios e das casas…
Lore não suportou concluir o pensamento em voz alta. Nenhum deles teria
tempo de fugir.
Por toda Manhattan e arredores, zonas de evacuação para furacões e outras
supertempestades estariam sendo inundadas. O relevo de Manhattan se eleva
quanto mais se vai para o interior, mas os litorais mais baixos — as áreas
residenciais margeando os dois rios — e as regiões mais ao sul até a 34th
Street estavam propensos a enchentes.
Se estava tão ruim assim aqui…
Todas essas pessoas… — pensou ela, desesperada.
O medo a cortou, fazendo até sua alma doer. Se Van não tivesse levado
Miles para bem longe, para um terreno mais alto…
Lore pegou o celular, mas estava sem sinal. Merda.
— Não são os rios — disse Atena, com uma sombra em seu rosto. — É
uma deusa.
— A Portadora da Maré — sussurrou Lore.
A deusa assentiu com a cabeça.
— Evander dos Aquilídeos estava errado. A falsa Poseidon vive e se aliou a
nosso inimigo.
Lore deixou o fel da raiva arder novamente dentro de si ao ver a água
escura jorrando pelas ruas. Ao assistir à destruição que o Ágon trouxe para
sua cidade.
— Você tem certeza de que não tem chance de o falso Ares ter encontrado
a égide? — perguntou Atena novamente. — Como um dos Perseídeos, ela
seria capaz de decifrar o poema…
— Tenho… quer dizer, eu não sei — disse Lore. Seu medo aumentava com
a ideia de que ela não havia sido tão cuidadosa como pensou. — Podia ser
pior do que isso. Mesmo como deusa, ela poderia empunhar a égide para
Fúria.
E o dilúvio talvez fosse só a primeira fase do plano de Fúria para vencer o
Ágon.
Lore se forçou a respirar fundo.
— Não acho que ele esteja com a égide, pelo menos não ainda. Ainda
temos tempo de matá-lo e acabar com isso.
Talvez uma parte dela estivesse começando a acreditar novamente nas
Moiras e que havia um padrão nisso, que sempre chamava por ela e pela
deusa para darem um fim em tudo juntas.
Lore virou as costas para Morningside Heights, seu corpo estava tenso com
a necessidade de se mexer.
— Então, vamos à caça.
— Então, vamos à caça — repetiu Atena e a seguiu.

Lore sempre sentiu um certo conforto no movimento oculto de sua cidade.


Mesmo quando as ruas estavam vazias, com exceção dos poucos táxis que
rodavam de manhã cedo, ela sabia que a cidade ainda estava viva. Que a água
passava pelos canos subterrâneos. Que os trens levavam vagões vazios de
estação em estação. Os cabos de energia murmuravam uma canção que
apenas o concreto conseguia ouvir.
Agora, a quietude da cidade trazia uma sensação de definhamento.
Seis andares acima, Lore tinha uma visão clara dos quarteirões inundados
da cidade e dos nova-iorquinos que eram corajosos o suficiente para se
aventurar por águas que iam até a cintura. Equipes da prefeitura tentavam
drenar a água das ruas, mas os rios, tanto o East quanto o Hudson,
continuavam a encher. A água parada era tão profunda em alguns lugares que
a polícia de Nova York e a guarda costeira usavam barcos e helicópteros para
resgatar pessoas que ficaram ilhadas ou levar suprimentos.
Lore não conseguia mais sentir o pulso da cidade.
Ela e Atena ouviram fragmentos de boatos em sua lenta jornada até o centro
da cidade e os uniram para traçar um panorama do que a cidade havia se
tornado. Uma tempestade histórica. Erros na previsão do tempo. O nível
crescente do mar. Uma louca convergência de eventos. Todos tinham uma
teoria diferente.
Os profissionais de emergência e guardas da prefeitura davam instruções
pelo rádio, já que as torres de celular foram derrubadas. Hospitais estavam
sendo evacuados primeiro à medida que os geradores-reserva paravam de
funcionar, um por um. Seções inteiras do Central Park estavam sendo
transformadas em abrigos emergenciais. Voluntários da Cruz Vermelha, em
conjunto com a Guarda Nacional, tentavam distribuir suprimentos, mas,
conforme as horas passavam, ficavam sobrecarregados com a demanda.
Lojas de conveniência e mercearias estavam sendo saqueados pelos
moradores desesperados da cidade, e não havia nada que se pudesse fazer
para impedi-los. Os túneis do metrô estavam inacessíveis e nenhum trem
podia entrar ou sair da cidade. Pontes foram fechadas ao tráfego. Um barulho
de helicópteros de policiais e de reportagem vinha de cima, tumultuando os
céus.
Os nova-iorquinos eram algumas das melhores pessoas no mundo, mas até
mesmo Lore reconheceu que tinham limites. O sentimento de isolamento
deles foi instantâneo e devastador.
É isso que Fúria quer — pensou Lore. Deixar a cidade tensa, drenar todos
os recursos.
Ela fechou a mente e o coração para o dilúvio nas ruas, para a visão dos
feridos, para o choro copioso. Fechou o coração de qualquer coisa, exceto o
que tinha que ser feito agora.
Ela e Atena passariam a noite inteira procurando pelos caçadores de Fúria e
seguiriam nisso até ficar de manhã. Por volta das dez horas, Lore avistou uma
leoa Cadmídea próxima ao Empire State Building, reconhecendo-a do ataque
na Casa Ítaca. Elas a seguiram indo a Uptown, até que desaparecesse em um
pequeno hotel-boutique no Upper East Side. Agora, estavam em cima da
cobertura de um edifício do outro lado da rua observando a entrada,
esperando-a sair novamente.
— Você ama esta cidade — disse Atena. — É seu orgulho.
A deusa brilhava ao sol do meio-dia. A breve pausa deu às duas a
oportunidade de secar seus calçados e roupas, por mais que fosse inútil, já
que logo voltariam para a inundação.
Lore deu de ombros.
— Mesmo que eu a divida com oito milhões de pessoas, sempre foi meu
relacionamento menos complicado.
— Hum. — A presença de Atena era opressora, de diversas formas, mas,
após as últimas horas que se passaram, algo mudara. Ela tinha uma vontade
transbordante, ou talvez fosse apenas ansiedade por saber que chegaram à
manhã da quinta-feira e faltava menos de meia semana para concluírem seu
trabalho.
— Se apegue ao que sente por seu lar — disse Atena. — Ele nunca a
abandonará se servi-lo bem, pois não é tão instável quanto mortais.
O rosto de Castor surgiu nos seus pensamentos. Lore o apagou antes que
ficasse ali por tempo demais.
— Isso é verdade, talvez — disse Lore, por fim. Ela se debruçou na borda
da cobertura, vasculhando rapidamente a calçada abaixo. — Cadê essa
garota?
Atena bebeu o resto de sua água, jogando a garrafa fora. Lore sentou-se
apoiada nos calcanhares e, pela primeira vez, começou a duvidar do plano
que criaram. Elas não tinham tempo para ficar esperando a leoa descansar ou
se encontrar com qualquer pessoa lá dentro. Precisavam de outra pista.
— O que sua irmã disse? — perguntou ela. — Que há um monstro no rio?
Um assassino de deuses e mortais?
— Eu não perderia muito tempo pensando nas palavras da minha irmã —
disse Atena. — Ela não estava bem e perdeu a noção de seus pensamentos.
No entanto, havia algo ali, algo que Lore não conseguia decifrar.
— Ainda há muito que não sabemos — disse Atena. — Sinto como se os
fragmentos da verdade estivessem espalhados diante de nós. Hermes, o
desejo do impostor pela égide, até mesmo o falso Apolo — seu olhar se
aguçou. — Talvez ele seja, de alguma forma, um deus verdadeiro; ou mesmo
outro, disfarçado, e deseje participar da caçada para apurar alguma
informação.
— É o Castor — disse Lore, mais certa disso agora do que quando ele
estava bem na frente dela. — De algum jeito… ele é o Castor. Ele sabia
demais do meu passado para ser qualquer outro.
— Qualquer deus saberia essas coisas — disse Atena. — Eles se
integrariam em sua vida, guiando-a subitamente pelo caminho que
escolhessem, sem que você percebesse. Como eu disse, nós aparecemos para
você da forma que necessita ou deseja.
— Como Hermes — disse Lore, suavemente. O deus havia se tornado a
única pessoa em que Lore confiaria naquele momento: um amigo sensível,
bem distante do mundo do Ágon. Ele se aproveitou de seu medo e de sua
angústia.
— Talvez você esteja correta e seja mesmo Castor dos Aquilídeos — disse
Atena. — Apolo se foi. O falso deus possui seu poder, apesar de a sensação
ser estranha… não entendo. Não há explicação lógica.
Lore balançou a cabeça negativamente. Pensamentos rodopiavam em sua
cabeça, todas as inúmeras dúvidas e coincidências tentando se conectar,
como raios chicoteando pelo céu.
— Mesmo nisso, há uma lição a se aprender. Siga meu conselho acerca
disso: é aceitável, até mesmo preferível, ficar sozinha — disse Atena —,
quando aqueles à sua volta a prendem ou a enganam. Quem se destaca entre
os mortais sempre estará sozinho, pois ninguém no mundo foi feito para
realizar os feitos deles. Tenha confiança nisso e faça este conhecimento ser
um veneno para seu medo.
Um pequeno sorriso apareceu no rosto da deusa.
— O que foi? — perguntou Lore.
— Me esqueci de como era — disse Atena — envergar o manto de
mentora.
O coração de Lore deu um salto involuntário no peito quando percebeu o
que aquilo significava.
— Nenhum disfarce foi necessário dessa vez — comentou Lore,
debruçando-se à beira do edifício novamente. A Guarda Nacional ainda se
movia lentamente pela rua, no campo de visão do edifício. Ela recuou.
— De fato — disse Atena, com um tom alegre nas palavras. — É cansativo
vestir o rosto de outro, mas frequentemente homens só dão ouvidos a outros
homens.
Lore ergueu as sobrancelhas, mas não tinha como discordar daquilo.
— Você ainda volta para a sua cidade? A que foi nomeada em sua
homenagem?
— Volto para todas elas — disse Atena. — E sempre voltarei, até que a
última voz chamando por mim seja vencida pelo tempo.
— E o que fará depois? — perguntou Lore.
— Continuarei me esforçando para voltar a meu pai e a meu lar — disse
Atena. — É tudo o que desejo no momento.
Qualquer leveza que surgira no rosto da deusa desapareceu em um instante.
Lore sentiu um toque gélido na base da coluna ao ver isso.
— Preciso contar-lhe algo, Melora — disse Atena, com faíscas
tempestuosas em seus olhos cinzentos. — E dar-lhe um aviso. Estou tendo
menos certeza de que posso lutar contra o Ares impostor sozinha. Ao
contrário do falso Apolo, eu posso ser morta. Por mais forte que eu seja,
nosso inimigo roubará essa força. Precisarei de sua ajuda para derrotá-lo… A
não ser, é claro, que deseje tomar o poder dele.
Lore respirou fundo.
— Não. Não desejo.
Ela nunca mais queria se sentir sendo caçada e presa. O poder de Ares
levaria a sua mente ao limite.
E a tornaria invencível — sussurrou sua mente.
Não. Os poderes de Ares eram tanto uma maldição quanto uma bênção,
mesmo que tenha trazido o kleos aos incontáveis caçadores que o tomaram.
Lore já havia causado danos e mortes suficientes na sua curta vida. Mas havia
aquela garotinha dentro dela, ainda faminta. A última do seu nome no mundo
todo. Quem se lembraria dela?
Lore balançou a cabeça negativamente, abraçando o peito. Ela lutaria para
restabelecer a honra e glória da família como ela mesma. Iria vingá-los, como
Melora Perseus.
Vá buscá-la — o pensamento passou por ela, reconfortante e poderoso. —
Vá reclamar sua herança. Use-a contra ele.
Mesmo com a égide, Lore ficaria fraca sob o efeito do poder de Fúria. Mas
se estivesse nas mãos de alguém mais forte… alguém que soubesse usá-la em
seu potencial máximo…
— Você acha mesmo que não consegue lidar com ele sozinha? —
perguntou Lore, lentamente. Seria algo aterrorizante de ver; Atena brandindo
a égide, rugindo batalha adentro.
— Apenas as Moiras poderiam dizer ao certo — disse Atena. — Me dói
admitir tal coisa. Não me pergunte novamente.
— Mas e se tivesse alguma coisa que pudesse nivelar o jogo…? — disse
Lore, com a voz apertada.
O olhar da deusa se voltou para ela.
— Seria mais que bem-vindo.
O chiado nos ouvidos de Lore voltou, acelerando seu coração.
Mas o poema… — pensou ela.
Seria mesmo tão ruim se Atena se sagrasse vencedora, se isso significasse
que o Ágon finalmente terminaria?
Após séculos sendo caçada, Atena apenas queria deixar este mundo e voltar
para o próprio lar. Ela mesma disse isso, tanto para Ártemis quanto agora
pouco.
Entregar o escudo à Atena não mudaria o passado, mas talvez desse início
ao caminho de Lore, e da própria Atena, rumo à absolvição.
Houve um movimento em sua visão periférica. A leoa finalmente saiu do
hotel, segurando um envelope pardo. Ela foi novamente em direção ao norte,
na Park Avenue, passando entre os carros e escombros parcialmente
submersos.
Atena acenou com a cabeça para Lore. Elas desceram pela escada de
emergência, até a água fria. Tinham que se mover lentamente para evitar
chamar a atenção da leoa com o barulho. A distância entre elas e a garota
cresceu, mas havia pouquíssimas pessoas na rua, segui-la não era difícil.
Quando alcançaram a 78th Street, a leoa fez uma curva acentuada para a
direita, e fez Lore parar.
Ela havia esquecido algo. Anos atrás, ela e Castor criaram um jogo no qual
tinham que encontrar todos os esconderijos das linhagens na cidade. Muitos
não eram tão secretos assim, porém ainda mais existiam entre os que não
passavam de rumores e os que existiam de fato. Eles só encontraram esse
lugar depois de ouvir um dos instrutores falando a respeito, dando palpites de
onde poderia ser.
Atena diminuiu o passo, olhando para ela. À frente delas estava o Rio East,
e no trecho entre ele e elas havia uma série de edifícios residenciais
construídos antes da guerra.
— Uma das propriedades dos Cadmídeos — explicou Lore. — Me esqueci
completamente dela. Vamos ver se tem algum lugar no qual possamos ter
uma visão melhor de quem entra e quem sai.
Esse lugar acabou sendo uma janela com grade de uma escola pública do
outro lado da rua. Após entrarem por uma porta na York Avenue, elas
seguiram pelos corredores da escola até encontrarem uma janela com visão
desobstruída do edifício dos Cadmídeos.
Em alguns minutos, três pessoas vestindo os tradicionais mantos pretos de
caçador caminharam com dificuldade pela faixa entre o lado oeste do prédio e
o edifício adjacente.
Os portões estavam abertos, mas a leoa esperou os caçadores se
encontrarem com ela na rua. Um dos recém-chegados abriu o envelope pardo
e tirou o que pareceu ser um molho de chaves. Ele as distribuiu para os
outros, incluindo a leoa.
Ela foi a primeira a ir embora, voltando pelo caminho que veio. Os outros
pararam para remover os mantos antes de segui-la. Lore esperou até que
estivessem bem longe antes de falar.
— Se tiver qualquer semelhança com a Casa Tétis, a entrada não é a porta
da frente…
Quase no momento em que as palavras saíram de sua boca, mais caçadores
apareceram. Todos vindo do mesmo corredor apertado até a rua, encharcados.
A entrada só podia estar em algum lugar na extensão daquela estreita entrada
de garagem e tinha que ser no subsolo, já que estavam todos encharcados.
Um porão, talvez?
Eles avistaram placa de bronze com o número e nome do condomínio
gravados. CASA RIO, III
— Então existe um monstro no rio — disse Lore.
Atena se voltou para ela com as sobrancelhas erguidas em um silencioso
convite.
Que Lore aceitou.
SETE ANOS ATRÁS

LORE ESTAVA LAVANDO O PRATO DA JANTA QUANDO OS SEUS PAIS VOLTARAM DO


Ágon um dia antes do que deviam.
O pai deixou a mala do lado da porta, com o rosto tenso à medida que
absorvia a visão do apartamento mal iluminado. Sua mãe segurou o ombro
dele e deu um leve aperto para tranquilizá-lo.
Lore não conseguia entender o que estava vendo. Os pais lhe contaram que
ficariam por sete dias dormindo em um hotel na cidade, para garantir que
ninguém os seguiria até em casa.
Lore deu o melhor para manter o apartamento arrumado e limpo enquanto
isso. Ela guardou a louça, guardou os brinquedos coloridos de Damara e Pia
nas respectivas gavetas e trancou as armas da avó no cofre depois de afiá-las.
Suas irmãs eram novas demais para tocá-las, mas ela, não. Lore gostava de
passar os dedos sobre os padrões esculpidos no punho, fechar os olhos e
imaginar.
Mais um ciclo — dissera sua mãe. — Você só precisa se esforçar mais e ser
paciente até lá.
Mais um ciclo, e ela poderia provar o seu valor.
Mais um ciclo, e ela poderia salvar Castor. Ele ainda estava vivo e
continuaria lutando, em seu âmago, sabia disso. Se ela ajudasse papai a matar
um deus, eles teriam dinheiro suficiente para encontrar médicos melhores e
remédios para o amigo.
Mais um ciclo.
Ela manteve a si mesma e as irmãs dentro do apartamento a semana toda,
inventando jogos e atividades para deixá-las ocupadas. Esta noite não deveria
ser diferente: ela guardaria o prato, jogaria a caixa da pizza congelada pelo
duto da lixeira, escovaria os dentes, daria um beijo de boa-noite em Damara
no berço e depois iria para cama com Pia, cobrindo-as com o cobertor que
tinha o perfume de flor de laranjeira que a mãe usava.
— O que vocês estão fazendo aqui?
Ambos deram meia-volta ao som da voz de Lore.
— Ah… não achei que ainda estaria acordada — disse a mãe, indo até ela.
Lore desceu da banqueta, se afastando dos braços estendidos dela.
— O que estão fazendo aqui? — perguntou Lore novamente.
Os seus pais trocaram um olhar que Lore não entendeu. O pai não se
barbeava há dias e o rosto dele pinicava por isso. Havia um corte acima do
olho esquerdo, e ele parecia se estar ligeiramente manco. Lore sondou a mãe,
encontrando apenas um hematoma na bochecha e um em volta do pulso.
Nenhum dos dois tinha uma lesão grave o suficiente para forçá-los a deixar a
caçada de forma precoce e enfrentar a desonra dessa escolha. Nenhum que
ela pudesse ver.
— Eu estava cuidando bem delas — insistiu Lore. — Estava sendo uma boa
garota. Fiz tudo o que vocês me pediram.
— Eu sei que fez — disse a mãe suavemente.
Então, por quê?
O pai se ajoelhou em sua frente, tentando envolver Lore com os braços. Ela
se afastou até ir encostar no balcão.
— Não vai dar um beijo no papai?
Lore virou a cabeça, o coração batendo forte, os pensamentos disparando
em milhões de direções ao mesmo tempo.
— Vocês não deviam estar em casa. Ainda não acabou.
— Acabou para a gente — disse o pai, gentilmente.
Mais um ciclo.
Ela se voltou para ele, ofegante. Lore odiou a forma como sua voz vacilou.
— Até a próxima caçada?
— Até sempre, chrysaphenia mou — disse a mãe. — Seu pai e eu tomamos
uma decisão que devíamos ter tomado há anos. Não iremos mais caçar.
Lore sacudiu a cabeça, cobrindo os ouvidos para bloquear as palavras. A
mãe trocou outro olhar com o pai, que se levantou.
— Esperamos o máximo que pudemos — disse o pai. — A situação se
tornou grave e precisamos aproveitar a distração do Ágon para sair da cidade.
Esta noite, pegaremos o que precisamos e, amanhã, começaremos uma nova
vida em outro lugar.
Aquilo não fazia sentido. O que havia mudado?
— Vocês estão com medo de Aristos Cadmou? Vocês me disseram que os
Perseídeos não têm medo de nada — disse Lore. — Vocês me disseram que a
Casa de Perseu era a mais nobre de todas. Vocês disseram… Vocês
disseram…
Todas as outras linhagens cuspiam neles e riam sempre que o seu pai
oferecia uma aliança. A linhagem deles perdeu sua herança; eles lutavam com
armas malfeitas que as outras linhagens descartavam. Mas Lore nunca pensou
que perderiam o orgulho. Honra era a coisa mais importante e a única que os
restava.
É mais importante do que o ar que respiram — dissera o seu instrutor. —
Você não poderia sobreviver sem ela e você não desejaria isso.
— Eu sei o que dissemos, Melora — disse o pai. — Mas isso não pode
continuar. Não aguentamos este mundo. Aristos Cadmou tomou o poder do
Ares. Você entende o que isso significa?
Lore se ofendeu com a pausa cautelosa dele, com a suposição implícita de
que ela não poderia lidar com a verdade.
Ela ignorou o pico de medo que veio com o pensamento de um homem
como Aristos com a imortalidade, com um poder que não merecia. Ela
entendia o que aquilo significava.
Entendia que, em sete anos, iria apunhalá-lo até que o sangue mortal dele
escorresse, e que ela o traria para que o seu pai pudesse matá-lo.
— Estamos fazendo isso por você e pelas suas irmãs — continuou ele. —
Estamos deixando o Ágon e esta cidade, e iremos o mais longe que a estrada
nos levar.
Eu nunca irei caçar.
Aquelas palavras trouxeram um terrível frio no fundo do estômago de Lore.
Ela nunca seria mais do que era agora: uma garota de pé na divisa de um
mundo secreto, sem a chave que desbloqueia o caminho.
— Não — disse Lore. As facas da avó esperavam por ela, era uma
promessa que ainda tinha que ser cumprida. — Vocês são covardes. Vocês
são covardes e, se não vão caçar, eu vou!
A sua mãe desviou o olhar, levando a mão à boca, obviamente angustiada.
— Você não vai falar conosco desse jeito, Melora — disse o pai. A raiva
nas palavras dele a fizeram se sentir ainda mais enojada.
— Eu odeio vocês — sussurrou ela entre os dentes cerrados.
— Lore — disse a mãe. — Por favor.
— Eu odeio vocês — repetiu Lore. — E vou odiar para sempre!
— Muito bem — disse seu pai, fitando-a com o rosto envolto em sombras.
— Pelo menos estará viva para odiar.
Ela passou por ele aos empurrões, cruzando o apartamento correndo até o
quarto que dividia com as irmãs. Seu corpo tremia enquanto ela estava parada
no escuro e as lágrimas escorriam pelo rosto. As tábuas do chão rangeram do
outro lado da porta. Ela ouviu a conversa baixa dos pais.
Não querendo falar com eles, não querendo olhar para eles, subiu na cama
ao lado de Olympia e puxou o cobertor por cima da cabeça.
— Dê um tempo a ela, Helena — disse o pai. — Ela tem o meu
temperamento, que nós dois sabemos que só o tempo pode acalmar.
— Ela precisa entender — sussurrou a mãe de volta.
— Não quero que as garotas vivam com medo — disse o pai. — Não quero
que isso as assombre
A mãe persistiu:
— Ela precisa entender que ele ascendeu. Nós devíamos ter ido embora
antes que a semana começasse.
— Nós tínhamos que pelo menos tentar — disse o pai. — Se um de nós
conseguisse ascender, poderíamos protegê-las.
— Elas precisam saber das consequências — disse a mãe. — Que não
podemos nos esconder dele. Que ele não vai vir atrás dela, apenas, mas de
todos nós… e daquilo.
Os passos deles se afastaram, e as vozes iam junto com eles. Lore cerrou os
punhos e fechou os olhos com força. Seu corpo tremia de raiva e ela pensou
que explodiria se não gritasse.
Olympia virou e se aninhou ao lado dela como um filhotinho sonolento,
colocando a cabeça cheia de cachos contra o peito de Lore.
Lágrimas caíram, quentes e dolorosas. Elas escorriam como um rio sem
começo ou fim, pingando das suas bochechas até o travesseiro e o colchão.
Seus pais estavam tirando tudo dela só porque estavam com medo.
Lore não tinha medo de nada, nem dos deuses, nem da morte, nem de
Aristos Cadmou e suas serpentes.
— Não briga, Lolo — sussurrou Olympia, agarrando a frente do pijama de
Lore. — Não briga. Dorme.
Mas brigar era tudo que ela podia fazer.
Seus pais haviam sido humilhados e desprezados por anos, passaram
dificuldade por muito tempo, apenas para colocar comida na mesa. Ela havia
sido ridicularizada e zombada todos os dias na Casa Tétis até que finalmente
encontrassem um motivo para a mandarem embora. Mas Lore praticava suas
habilidades por horas enquanto os seus pais trabalhavam, porque sabia o que
seus pais haviam esquecido.
Eles eram destinados àquela vida.
Eles eram destinados a alcançar o kleos e viver para sempre.
Eles não seriam os últimos Perseídeos, e ela não deixaria Castor morrer.
Seus pais só precisavam lembrar. Precisavam de um novo motivo para
acreditar no Ágon e na própria força. Precisavam do que era deles por direito.
Lore aguçou os ouvidos, tentando escutar os pais, mas não captou nada
além da suave brisa do ar-condicionado na cozinha. Ela se afastou
cuidadosamente de Olympia, que a segurava dormindo, e trocou de roupa.
Seu coração pulava pela boca enquanto ela amarrava os tênis e se levantava,
dando um beijo na testa da sua irmã. Ela foi até Damara, reclinando sobre o
berço para dar-lhe um beijo também.
O senhorio não permitiu que seu pai bloqueasse nenhuma janela do
apartamento alugado deles, mas ele as reforçou com fechaduras extras e um
sistema de alarme. Lore descobriu há meses que o alarme funcionava como o
da Casa Tétis. Tudo que ela tinha que fazer era colocar um imã da geladeira
no sensor e ele não seria acionado. Ela guardava um no fundo da gaveta
desde então.
Lore se esgueirou pela abertura da janela, olhando para o pequeno pátio que
ladeava o edifício. Eles estavam no sexto andar, mas os tijolos aparentes lhe
dariam apoio suficiente para que escalasse sem precisar usar a escada de
emergência. Ela estaria de volta antes que os pais acordassem.
Imaginar o rosto deles quando vissem o que ela havia feito a fez sorrir e seu
coração bater forte com animação.
— Lo? — disse Olympia, esfregando os olhos. Mas a sua voz soava
sonolenta demais para que estivesse totalmente acordada.
— Você está sonhando — sussurrou Lore. — Volta a dormir, Pia.
Logo depois, foi exatamente o que ela fez, abraçando o travesseiro. Lore
fechou lentamente a janela, deixando-a só um pouquinho aberta para quando
voltasse.
Então, ela desceu, saltando para o chão nos últimos centímetros, e correu
para as ruas escuras.
QUARENTA E UM

NÃO HAVIA NADA NA RUA AO LADO DA CASA RIO.


Nenhuma lixeira, nenhum carro, nem mesmo uma porta para o prédio ou
para o seu subsolo. A entrada da garagem dava direto para a 79th Street,
bloqueada apenas por portões em cada extremidade.
— Hum. — Lore manteve as costas viradas para a parede do prédio,
tentando ter uma vista ampla o suficiente da rua para ter certeza de que não
deixou nada passar.
Atena estava a uns centímetros de distância, e seu olhar passava pela água
imunda e para o solo abaixo dela.
— Talvez nós devêssemos ir embora — disse Lore. — Alguém pode
voltar…
A deusa parou e bateu o pé, mudou ligeiramente de posição, bateu de novo,
e depois repetiu.
Lore se afastou da parede.
— O que você está fazendo?
— Venha — disse a deusa, se ajoelhando na água. Um momento depois, ela
abriu uma escotilha coberta por uma fina camada de concreto que ajudava a
disfarçá-la.
— Nada mal — disse Lore, lutando contra a água que passava jorrando por
ela direto para a abertura. Ela se inclinou para a frente, olhando para o túnel
abaixo.
— Rápido — disse Atena, apressada.
Lore assentiu. Enquanto ela descia a escada de metal escorregadia, viu
como o local estava se alagando rapidamente. Quando Atena se juntou a ela e
fechou a escotilha, a água já estava até os joelhos de Lore, mas em
movimento, fluindo para longe delas, descendo pelo túnel.
Lore acendeu a lanterna do celular. O caminho era bem rudimentar, mas era
mais largo do que Lore imaginou originalmente.
O túnel se estendia sem fim, virando para a direita, depois para a esquerda,
aparentemente sem motivo, até que, finalmente, se dividia. Ela parou na
junção dos túneis, iluminando um deles com a lanterna do celular e depois o
outro.
— Para que lado? — perguntou Atena, baixinho.
Lore estava prestes a dizer quando ouviu um distinto tum-tum, tum-
tum,tum-tum. Quase como…
A batida de um coração.
Sua mão segurou firme a faca. Ela virou para a direita, seguindo o som por
mais curvas e divisões.
Até onde isso vai? — questionou-se ela. — Até o Rio East?
O caminho delas foi cortado por outra via, perpendicular ao que estavam. O
tum-tum continuava, cada vez mais alto e insistente. Elas estavam perto.
Lore desligou a lanterna do celular. Abriu a lente da câmera e, se
agachando bem no limite onde os caminhos se encontravam, inclinou o
celular em um ângulo que pudesse tirar uma foto do caçador que estava ali.
O homem lhe parecia familiar, mas não o suficiente para que viesse um
nome na sua cabeça. Tum-tum. Ele quicava uma pequena bola emborrachada
no chão, depois em uma das duas portas de metal na parede oposta à que ele
estava, sentado em um banquinho. Uma lanterna elétrica em forma de
lampião brilhava aos seus pés.
Lore encostou a cabeça na parede, revirando os olhos. Não eram batidas de
um coração. Não era um monstro.
Atena estava acima dela, estreitando os olhos para a tela. Lore desligou e
guardou o celular no bolso de trás. Pondo um dedo nos lábios, ela gesticulou
para que a deusa aguardasse, e então saiu.
— Com licença — disse Lore —, você poderia me dizer como chego à
Estátua da Liberdade?
O homem se assustou, pulando de pé e arquejando. Lore fez menção de
atirar sua faca na direção do coração dele, mas o rosto de Castor apareceu na
sua cabeça. No último segundo, sua mão mudou de posição e ela acertou o
ombro em vez disso.
— Sua… — gemeu o caçador.
Lore mergulhou para pegar o banquinho e o bateu com força na cabeça
dele. O caçador caiu com o rosto virado na água que empoçava o chão, e ela
teve que virá-lo de barriga para cima para que não se afogasse.
Seu coração ainda batia forte quando Atena passou por cima do caçador,
tirando a lâmina do ombro dele e a devolvendo para Lore. A jovem teve uma
ligeira lembrança do que sua mãe costumava dizer para ela e suas irmãs, a
velha superstição que uma faca passada entre pessoas evitava um conflito
entre elas.
— Mate-o — disse Atena. — Ele será um problema.
Lore franziu o cenho. O homem estava inconsciente.
— O número de mortos de contem não foi alto o suficiente para você?
— Não fico contando essas coisas. — A deusa deu meia-volta de repente,
avistando a dory do caçador encostada na parede ali perto. Ela fez um
pequeno som de satisfação enquanto a erguia, testando o peso e equilíbrio da
lança.
Lore voltou o foco para a primeira das duas portas de metal na frente delas,
pressionando o ouvido na superfície gelada. Atena a guiou para fora do
caminho, depois levou a mão ao cadeado pesado. Ela quebrou em dois,
caindo pesadamente.
A porta rangeu enquanto a deusa a abria.
A câmara era maior do que parecia ser do lado de fora. Suportes de metal,
quase como pés, foram deixados para trás, junto com algumas ferramentas
espalhadas.
Lore pegou a lanterna.
— Estranho. Por que deixar um vigia aqui embaixo se não há nada para
vigiar?
A cabeça de Atena pendeu em direção à porta, capturando o som antes de
Lore.
— Olá? — chamou uma voz distante. — Tem alguém aí?
A pulsação de Lore se agitou de repente com adrenalina.
— Quem está aí?
Atena passou por cima do guarda e se aproximou da outra porta na parede
oposta, que Lore não havia notado, mas o caçador estava encostado nela. Ela
seguiu a deusa de perto, erguendo a faca e entrando em uma posição
defensiva atrás dela. Atena quebrou o cadeado, abrindo um buraco na porta
pesada.
A mulher se encolhia no fundo da cela. Ela estava toda encardida, e sua
pele negra brilhava à medida que Lore erguia a lanterna com descrença.
Lutando para ficar de pé, a mulher cobriu os olhos brilhantes enquanto se
levantava e ficava de pé em toda a sua grandiosidade.
Esse, também, era um rosto que Lore reconhecia. Dessa vez, no entanto, ela
sabia seu nome.
Portadora da Maré.
QUARENTA E DOIS

— O QUE VOCÊS ESTÃO FAZENDO AQUI?


A voz da Portadora da Maré estava rouca, mas seus tons melódicos ainda
estavam ali, cada palavra subia e descia como o infinito movimento do mar.
As brasas de poder em seus olhos escuros faiscavam enquanto o seu olhar ia
de Lore para Atena. A confusão estampava a face da nova deusa. Lore se
perguntou se a Portadora da Maré temia estar tendo uma alucinação.
— Estamos… — disse Lore, mas as palavras se perderam quando ela a
encarou de volta.
Enquanto Lore era a última mortal dos descendentes de Perseu, a nova
deusa um dia fora Rhea Perseus, a ruína de sua linhagem. Levou um
momento para que a cabeça de Lore realmente entendesse que a Portadora da
Maré era real, que estava bem na sua frente, viva e respirando, em vez de ser
apenas a fábula a qual os caçadores a haviam reduzido para darem uma lição
de moral.
— Esta é Melora Perseus — disse Atena. — E eu sou…
— Eu sei quem você é — vociferou a Portadora da Maré. As correntes
presas em seus tornozelos se arrastaram no chão úmido quando ela deu um
passo instável para a frente. Ela olhou para além da deusa, direto para Lore,
como se dissesse — Eu também sei quem você é.
Lore foi examinar as correntes da deusa. Atena a bloqueou.
— Conte-me — disse Atena. — Por que você concordou em servir ao falso
Ares?
— Assim como o mar não tem um mestre — retrucou a Portadora da Maré
—, eu sirvo apenas a mim mesma.
— Então por que causou o dilúvio? — questionou Lore.
A nova deusa pensou naquilo com absoluto desdém.
— Os Perseídeos eram fracos e tolos, não aceitaram mudanças. Aquilo que
se recusa crescer destrói a si mesmo.
— Eu fiz uma pergunta esperando uma resposta, não um monólogo — disse
Lore.
A Portadora da Maré se recostou na parede, bufando.
— Se quer saber a história toda, terá que me trazer as chaves do vigia.
Lore ignorou o olhar de advertência que Atena lançou a ela e foi buscar as
chaves. Quando voltou para a pequena prisão escura e infernal, o cheiro de
restos humanos que emanava de um balde ali perto quase a derrubou.
O corpo da nova deusa estremeceu, e em nenhum momento, nem mesmo
quando Lore se aproximou, ela tirou os olhos de Atena. Lore começou a se
ajoelhar na frente dela para soltar as correntes, mas rapidamente repensou.
Mesmo acorrentada, Portadora da Maré ainda era perigosa, poderia quebrar
o pescoço de Lore antes que ela pudesse sentir a pressão dos dedos da mulher
na pele.
Ela passou as chaves para a nova deusa.
— Faça as honras.
A Portadora da Maré assentiu.
— Com todo o prazer.
— E o resto de sua história? — solicitou Atena, impaciente.
A Portadora da Maré deslizou pela parede, gesticulando para que Lore
trouxesse a lanterna para mais perto, a fim de que pudesse ver melhor. A pele
morena da nova deusa era firme sobre os músculos e havia nítidas cavidades
abaixo das maçãs do rosto. A julgar pela aparência dela, Lore não conseguia
imaginar a última vez que Portadora da Maré comeu ou bebeu alguma coisa.
— Os Cadmídeos me cercaram no Despertar. Fui trazida para cá e me
deram uma escolha simples: morrer ou usar meu poder quando Fúria
exigisse. Pensei que seria melhor viver, descobrir quais eram os planos dele e
me vingar no próximo ciclo.
— E você foi tola o suficiente para crer que ele lhe permitirá viver? —
questionou Atena.
— Ele não vê a si mesmo como o último deus — disse a Portadora da
Maré. — Apenas o que dará cabo ao Ágon. Ele acredita que conduzirá uma
nova era quando sua divindade for permanente e tiver acesso total aos seus
poderes.
Lore esfregou os braços, tentando dispersar um pouco do calor que subia
por eles. Ficar entre os olhares ardentes das duas deusas era como estar presa
na rota de duas estrelas prestes a colidir.
— Fúria pretende derrubar meu pai? — perguntou Atena.
— Ele acha que seu pai recuou totalmente para o reino divino e deixou este
mundo para ser reclamado pelo vencedor do Ágon — disse a Portadora da
Maré.
— Que absurdo — disse Atena, rispidamente. — Meu pai não controla todo
o mundo. Há muitas terras e muitos deuses.
— Bom, quantos ainda reinam no momento? — perguntou a Portadora da
Maré. — Fúria parece estar agindo com a crença de que destruirá todos os
rivais e respectivos adoradores por meio da guerra.
Atena reagiu instintivamente a isso, recuando como uma cobra prestes a dar
o bote. Em vez dela, foi Lore quem fez seguiu falando.
— Isso só acontecerá se ele conseguir a égide — disse ela. — E não vai.
Você sabe alguma coisa sobre o que está gravado nela? Sobre como ler essa
inscrição?
Portadora da Maré a fitou, e o terror lento e crescente no seu rosto, evidente
e cristalino, causou um guincho estridente nos ouvidos de Lore.
— Pelos deuses — disse a Portadora da Maré. — Vocês acham que ele
ainda precisa encontrar o poema. Que não sabe ler.
As mãos de Lore ficaram completamente dormentes. Assim como seu
corpo.
— Eles estão com o escudo há anos… você realmente acredita que eles não
vasculharam cada centímetro dele? A inscrição está atrás, no interior do forro
de couro. Tudo que precisaram fazer foi removê-lo — disse a Portadora da
Maré, balançando a cabeça negativamente e soltando um ruído de frustração.
— Vocês chegaram tarde demais. Ele não passou essa semana procurando
pelo escudo, esteve colocando o plano em ação. Ele está a dias… a horas…
de vencer a caçada.
— Eu só… — disse Lore, repetindo tudo na sua cabeça, tudo que Iro lhe
dissera, a sua conversa com Belen, a mensagem na parede. O vômito subiu-
lhe até a garganta, deixando um gosto amargo na boca. Ela o engoliu, junto
com o medo. — Não… não é tarde demais. Ele ainda precisa da égide, senão
não estaria procurando por mim.
— Rezo para que esteja certa — disse a Portadora da Maré. — Ele de fato
precisa de você. Não posso empunhar a égide ou entregá-la a ele nem mesmo
se eu quisesse. Só pode ser feito pelo último mortal da linhagem.
— E você não sabe para que ele precisa dela? — perguntou Lore. — Ele
não deu nenhuma pista?
A nova deusa balançou a cabeça negativamente.
— Quando ele me encontrou, já estava bem avançado em seus planos. Ele
já está uns cem passos à frente a essa altura.
— Ainda podemos impedi-lo. — insistiu Lore. — Ainda podemos matá-lo.
— Não será o suficiente — disse a Portadora da Maré, tirando uma de suas
algemas. — Seus seguidores continuarão o trabalho que estão fazendo aqui
embaixo, seja ele qual for.
— Trabalho? — questionou Atena. — De que tipo?
— Não tenho certeza… era alguma coisa química, pelo que eu consegui
ouvir e sentir o cheiro. Alguma espécie de explosivos, eu acho — disse a
Portadora da Maré, arrancando a outra algema. Seus olhos fitaram Atena
brevemente, depois voltaram para Lore. — Seja o que for, já matou alguns
deles enquanto trabalhavam. Há algumas horas, antes da inundação, eles
carregaram a coisa em que estão trabalhando pelo túnel.
Atena estava com as narinas dilatadas de raiva.
— Essa informação é inútil…
Houve um suspiro de pânico do lado de fora da cela, seguido por passos
rápidos que esguichavam a água que cobria o chão.
O guarda.
Merda — pensou Lore.
Ela começou a andar até a porta, mas Atena já estava lá.
— Não — disse a deusa. — Eu vou resolver o problema que você não
resolveu.
Ela saiu, não precisando correr. Seria uma perseguição lenta e confiante.
Alguém segurou o pulso de Lore, a puxando para trás. A dor subiu pelo seu
braço e seu pulso dobrou quando atingiu o chão.
A Portadora da Maré se projetou para a frente a fim de bloquear a porta.
Lore cambaleou até ficar de pé, com pulmões apertados enquanto tateava
para pegar a faca.
— Sua idiota! — sibilou a Portadora da Maré. — O que você está fazendo
com ela?
— Eu… nós temos um acordo — disse Lore, hesitante.
— O que ela poderia oferecê-la que seja maior do que ela já tomou para si?
— disse Portadora da Maré, balançando a cabeça negativamente. — Vá
embora agora, antes que ela volte!
— Do que você está falando? — indagou Lore. Aquele receio gelado, o que
despertou nela na primeira vez em que pôs os olhos na deusa moribunda na
porta de sua casa, rastejou pelo seu sangue, sussurrando — Você sabe.
— Depois que eu soube o que houve, procurei por você pelo mundo todo,
mas você desapareceu… não consegui achá-la — disse a Portadora da Maré.
— Eu estava com os Odisseídeos na propriedade protegida deles e depois
com Hermes, que me deu um amuleto — disse Lore. — Ele escondia minha
presença dos deuses…
A Portadora da Maré soltou um palavrão horrível.
— Aquele tolo não deveria nunca ter tentado protegê-la sozinho!
— Por isso você estava me procurando? — perguntou Lore, tentando
entender. A Portadora da Maré era uma deusa por tanto tempo que Lore
estava chocada por ela ainda se dar ao trabalho de se lembrar de sua
mortalidade, muito menos do restante da sua condenada família.
— Não, criança, para alertá-la… eu teria ido até você há dias se não tivesse
sido capturada no Despertar — disse a Portadora da Maré. — Eu só
concordei com os termos de Fúria porque pensei que isso me manteria viva
por tempo bastante para fugir e encontrar você. Para dizer que Hermes a viu
naquela noite e que contou para ela. Ele contou para ela, sabendo o quanto
ela queria aquilo de volta… como achava que precisava daquilo…
— O quê? — perguntou Lore — O que ele contou a ela?
Você sabe.
Os olhos da Portadora da Maré se arregalaram enquanto ela soltava uma
tosse molhada e rouca. O sangue verteu de sua boca quando a ponta denteada
de metal de uma dory atravessou seu peito, passando por ele com toda a
força. Ela tentou lutar, seu corpo chicoteava para frente e para trás no batente
da porta, como um peixe preso no anzol. Quando o olhar dela se fixou em
Lore, as faíscas de poder que ali estavam se dissiparam.
— Tudo — disse Atena, puxando a lança de volta. O corpo sem vida da
Portadora da Maré caiu no chão. — Ele me contou tudo.
SETE ANOS ATRÁS

FOI MAIS FÁCIL DO QUE ELA IMAGINAVA.


Lore odiava os Cadmídeos por diversas razões ao longo de seus dez anos de
existência, mas somente então, de pé no pátio apertado atrás d’O Fenício, foi
que ela os odiou mais por agirem como se nem precisassem fazer esforço.
Por pensarem que ninguém se atreveria a roubar o que eles mesmos
roubaram.
Havia um buraco estreito coberto por uma cerca entre o restaurante e o
edifício ao lado. Eles cometeram o erro de deixar o portão destrancado para
levar os sacos de lixo para a rua para a coleta da manhã seguinte. Lore se
esgueirou para dentro, agachada atrás das fileiras de lixeiras, observando
enquanto caçadores vinham e iam, como abelhas na colmeia.
Entre as viagens, a porta dos fundos do restaurante era sempre fechada atrás
deles. Todos digitavam o mesmo código na trava eletrônica.
3-9-6-9-3-1-5-8-2.
Ela repetiu a sequência na cabeça por várias vezes. Não a esqueceria.
A lua estava se aproximando do seu ápice no céu quando ela sentiu um
formigamento na nuca.
Lore deu meia-volta, vendo se havia outra sombra no pátio e em janelas
próximas. A única câmera que conseguia ver era a que estava em cima da
porta, e essa era fácil de evitar. Ela e Castor — bom, na verdade somente ela,
mas Castor ficava de vigia — treinaram movimentação no ponto cego das
câmeras de segurança para se esgueirarem para dentro dos aposentos de
Philip Aquileu na Casa Tétis. Ela nunca foi pega quando praticava e não seria
pega agora.
Ela seria como os heróis nas histórias. Não falharia.
— Só vai — disse Lore a si mesma, puxando o capuz do casaco sobre as
orelhas e colocando o cabelo rebelde para dentro. Quando ninguém novo
passou nos dez minutos que seguiram, Lore se aproximou da porta, mantendo
as costas contra a parede para evitar a lente da câmera. Ela digitou o código e,
respirando fundo, permitiu-se passar como um raio pelo campo de visão da
câmera e entrar.
A cozinha ainda soltava vapor da máquina lava-louças e cheirava a cebolas
na água. Um jovem rapaz mantinha-se de costas para ela nas pias,
cantarolando suavemente a música que saía do rádio. Lore passou lentamente
pelas extremidades sombrias do cômodo, seus passos eram leves e sua
respiração era ainda mais leve.
Vozes soaram de repente ali perto. Lore foi para debaixo da mesa de aço
inox e recuou para as profundezas de suas sombras. Ela pôs o punho na boca
e esperou.
Vários caçadores entraram na cozinha silenciosa rindo muito. Eles haviam
tirado as máscaras, mas todos ainda estavam armados até os dentes. Um deles
acenou para o rapaz na pia enquanto iam até o grande frigorífico.
— E aí, como foi? — perguntou ansiosamente o garoto, seguindo-os com
os olhos bem abertos.
— Decepcionantemente calmo para a última noite de um Ágon — disse um
dos caçadores. — Embora eu não saiba se nosso recém-divino senhor teria
apreciado uma divindade rival na família.
Lore retraiu o lábio superior ao pensar naquele velho nojento como um
deus.
Outro caçador o mandou calar a boca, mas acabaram caindo na risada,
bêbados.
— O que foi? — perguntou o primeiro. — Ele conseguiu o que queria, mas
ainda não tem ouvidos em todo o lugar. Pelo menos ainda não. Mal posso
esperar para ver quais serão as ordens dele.
Lore se inclinou para frente de novo, estreitando os olhos para ver o código
que inseriram no teclado à direita do frigorífico: 1-4-6-9-0. Ela deu um
sorriso maquiavélico quando desapareceram e ressurgiram alguns minutos
depois sem trajarem mantos ou estarem armados.
Isso respondia à sua maior questão. Enquanto ridicularizava o seu pai,
Aristos Cadmou revelou que mantinha a égide em algum lugar abaixo do
restaurante. E aqui ela pensou que seria um desafio encontrar o local do
acesso para o seu cofre.
— Vamos, Chares. Vou te levar para casa, para sua mãe — disse o primeiro
caçador ao rapaz enquanto os outros seguiam para a entrada lateral. Quando
passaram pela mesa de Lore, ela se encolheu e prendeu a respiração.
— Mas a louça… — ele começou a dizer, com a voz oscilante.
— Vai dar tempo de terminar de lavar antes do ritual — disse o homem,
gesticulando para a louça. — O restaurante vai fechar para as comemorações.
O rapaz assentiu, tirando o avental e o pendurando animadamente em um
gancho na parede. As mãos de Lore se cerraram no piso frio enquanto ela
contava os passos deles até a porta. Esperou pelo clique da porta fechando e
se trancando, e então contou até cem antes de sair de debaixo da mesa.
Lore se sentiu leve e inebriada enquanto abria a porta do frigorífico e ia em
direção a seus braços gélidos.
Pensando duas vezes, ela segurou a porta antes que fechasse e usou um
pesado corte congelado de carne para mantê-la aberta, deixando entrar mais
calor e luz.
As superfícies do frigorífico estavam todas cobertas por uma fina camada
de gelo, incluindo o chão. A área ao redor do tapete de borracha no centro
havia sido movida recentemente; Lore ergueu o tapete com o pé antes de tirá-
lo totalmente.
Ela deu um leve sorriso quando viu o alçapão vulnerável sem nenhum
cadeado — sua família não cometeria o mesmo erro.
Lore ergueu a escotilha e desceu os degraus abaixo dela. Luzes se
acenderam ao redor dela conforme os sensores de presença se ativavam,
revelando prateleiras e mais prateleiras de armamentos, dinheiro e
dispositivos. Seus olhos se arregalaram ao ver tudo aquilo, até mesmo antes
de ver os tesouros no centro do cômodo. Um deles, sobre um manequim,
muito provavelmente era a pele do leão de Nemeia. A Casa de Héracles a
havia trocado voluntariamente com os Cadmídeos há séculos em troca do
armamento que eles desesperadamente precisavam. E, logo depois dela,
dentro de uma proteção de vidro, estava a égide.
Pensamentos fugiram da sua cabeça, sendo substituídos por um involuntário
tremor que rastejava em seu couro cabeludo.
Mesmo forjada em ouro e prata, as feições de Medusa eram tão realistas
que os pés de Lore se fixaram no chão. Ela se encolheu quando os lábios da
górgona pareciam se abrir para permitir-lhe a respiração, mas era apenas o
reflexo dela ondulando no vidro.
A face de Medusa e o emaranhado selvagem de cobras no seu cabelo se
projetavam ligeiramente para fora do escudo, como se os deuses tivessem
derretido a sua cabeça decepada no couro enrijecido e no metal. Um delicado
padrão filigranado de raios e videiras emolduravam seu semblante. As borlas
de ouro que pendiam do escudo ainda estavam no lugar após milhares de
anos, tão resplandecentes e cintilantes como no dia em que foram feitas.
Eu a vejo — parecia dizer a górgona. — Eu a vejo, Melora.
Lore respirou fundo, tentando acalmar os nervos.
— Pare com isso — ordenou a si mesma. Deveriam ter câmeras escondidas
ali. Alguém viria impedi-la. — Vai logo.
Não havia tranca para abrir a proteção de vidro, e ela era grande demais
para Lore erguê-la sozinha. Só a restava uma opção para soltar a égide, e era
uma muito, muito ruim.
Lore andou em volta da proteção. Julgando pela espessura do vidro, era
reforçado, provavelmente à prova de balas. Ela olhou para a escotilha.
Soaria um alarme. Ela teria apenas segundos.
Lore se afastou, pegando a espada que parecia mais pesada na prateleira
perto dela e subiu as escadas do frigorífico. Ela passou pela abertura da
escotilha. Só para garantir.
Então, sem arriscar outro minuto duvidando de si mesma, Lore voltou para
a égide. Com um sorriso, usou toda a força do seu corpo para empurrar a
proteção de vidro e o pedestal.
Um alarme soou altíssimo e o cômodo começou a piscar em vermelho.
Houve um alto bangue, que fez Lore quase pular para fora da pele. Ela girou
no próprio eixo. A escotilha fechou quando o alarme foi acionado, mas a
espada estava ali e a manteve aberta.
Como ela esperava, a proteção de vidro em volta da égide não quebrou
quando atingiu o chão. Ela pegou uma dory que estava ali perto e encaixou a
ponta onde o vidro havia sido selado, na superfície plana do pedestal de
mármore. Os seus braços se tensionavam enquanto ela cortava o selante até
que, finalmente, a proteção e o pedestal se separaram de forma que ela
pudesse remover o escudo.
Era quase tão grande quanto ela, mas independentemente do tamanho,
parecia mais leve do que o braço que ela prendeu nas tiras de couro. Com o
coração na garganta, Lore deu meia-volta e subiu as escadas correndo. A
escotilha fazia força, ainda lutando para se fechar, mas ela pôs o escudo ali e
o empurrou para cima.
Uma explosão de pressão e luz foi emanada do escudo, abrindo a porta, que
caiu no chão do frigorífico com tanta força que quebrou as dobradiças
motorizadas e foi escorregando para baixo de uma estante. Lore olhou para a
porta da escotilha por um momento e depois para a égide. O surdo baque da
porta do frigorífico abrindo e fechando contra o pedaço de carne a trouxe de
volta para o presente e a fez correr novamente.
Lore passou em disparada pela abertura até a cozinha escura. A porta que
dava para o lado de fora havia se trancado quando o alarme foi ativado, mas
Lore, desenvolvendo rapidamente uma teoria, bateu nela com a égide. A
porta de metal caiu no asfalto irregular do pátio.
Lore correu até que o mundo fosse apenas um borrão à sua volta. O escudo
batia na lateral de seu corpo e embaixo do queixo, mas sentia como se
estivesse usando sandálias aladas enquanto fugia para o leste de Manhattan,
passando pela malha de ruas vazias.
Cada parte dela, dos ossos até a alma, parecia impregnada com orgulho e
satisfação. A égide estava de volta ao seu lugar, e os Cadmídeos nunca se
esqueceriam dessa noite e do seu nome. Sua família não deixaria o Ágon nem
a cidade, e Lore não deixaria Castor.
Quando ela chegou ao Central Park, no entanto, aquele mesmo embriagar
efervescente no seu sangue começou a se desfazer, e então veio o frio. Ela
começou a seguir para o oeste, indo para casa, mas seus pés recusaram a se
mover.
A noção do que fizera desceu sobre ela da mesma forma que o olhar de
Medusa transformava os homens em pedra.
Os Cadmídeos nunca esqueceriam o seu nome, porque eles saberiam
exatamente quem roubou o estimado tesouro deles. Ela não teve o cuidado de
checar se havia câmeras no cofre. Qualquer uma delas poderia ter capturado o
seu rosto.
Lore tombou em um banco próximo a ela, e seus pensamentos rodopiavam
em padrões terríveis e sombrios em sua cabeça.
Se os Cadmídeos a viram na câmera, saberiam onde procurar pelo escudo.
A quem culparia e a quem punir. E agora, com o arconte deles sendo um
deus, nada nem ninguém ficaria em seu caminho.
Lore começou a chorar copiosamente, e seu coração batia forte nas costelas,
ao ponto de pensar que vomitaria. Havia muitos Cadmídeos e pouquíssimos
Perseídeos.
Pela primeira vez, a coragem a abandonou. Seu corpo trêmulo assumiu o
controle, pulando sobre o muro de pedra para que voltasse à segurança
familiar do parque. Ela precisava encontrar um lugar para escondê-la.
Precisava fazer mais do que isso.
Eu tenho que levá-la de volta — pensou ela, sufocada com essa
compreensão. — Eles não vão punir a gente se eu devolver.
Mas a égide não pertencia aos Cadmídeos, não era deles, e agora que eles
tinham um novo deus, agora que Aristos Cadmou se desfizera de sua pele
mortal, ele poderia ser capaz de usá-la. Seu pai lhe contou que aquilo não era
verdade, mas ele já errou antes.
Lore se agachou atrás de um banco perto do Mall, com o corpo febril de
medo. Limpou o suor do rosto com as mãos sujas.
E todo o tempo, Medusa a observava. Eu a vejo. Eu sei o que você fez.
Não. Ela ainda poderia consertar isso.
Lore ficou ali, com o corpo curvado e o rosto enfiado nos joelhos, até que,
finalmente, decidiu o que fazer.
QUARENTA E TRÊS

O PEITO DE LORE ARDEU COM UM GRITO QUE NÃO SAÍA. ELA TENTAVA
desesperadamente gritá-lo, arrancando-o da parte mais profunda de sua alma,
mas apenas uma pequena lamúria escapou dos seus lábios.
O corpo não parecia mais ser completamente seu. Lore foi cambaleando até
a parede, desorientada.
— Você… — ela tentou fazer as palavras saírem. — Você… sabia…
— Percebe agora? — indagou Atena, falando na língua antiga. Qualquer
afeto, qualquer sinal de humanidade, havia desaparecido, como uma chama
que se apagou. — A mão firme que guia o tear?
O corpo de Lore tremeu com tanta força que foi um desafio manter a
empunhadura de sua faca. Sua visão estava repleta de pontos pretos. Se
Hermes contou para Atena que Lore roubara a égide… se Atena sabia onde
encontrar sua família e tivesse ido procurar pelo escudo naquele dia…
O veneno da verdade corria dentro dela, transformando tudo em cinzas.
Como se lesse seus pensamentos, um pequeno sorriso passou pelos lábios da
deusa.
Ela os matou.
Não foi Fúria. Não foram os Cadmídeos. Foi Atena esse tempo todo.
À medida que o choque de Lore dissipava, um pânico feroz se instalava.
— Eu pensei… — ela começou a dizer.
Ela a deixara sozinha com Miles e Van… ela havia confiado na deusa para
honrar o juramento de não ferir Castor… ela havia… ela havia…
Acreditado nela.
— Você pensou o quê? Que eu tinha um coração? — disse Atena. — O
coração é só um músculo.
— Você os matou — disse Lore, e sua voz não chegava nem a ser um
sussurro. — Por quê?
— Quase não acreditei quando Hermes me contou o que viu. A égide, o
objeto que passei séculos procurando, encontrado por uma criança. Carregado
por uma criança — disse Atena. — Eu sabia onde o último dos Perseídeos
residia. O casebre que chamavam de lar. Fiquei encantada ao descobrir que
uma janela havia sido deixada aberta para mim, quase como um convite.
Lore levou as mãos aos cabelos, sua respiração ficava irregular, seu
coração, à beira da autodestruição batendo em suas costelas. O desespero
inundou suas veias.
— Não… por favor, não…
— Mas, quando entrei no quarto, pensei: certamente o ladrão não poderia
ter sido nenhuma dessas pequenas e insignificantes criaturas. Elas eram
menores que o escudo — disse Atena, dando um único passo para dentro da
cela. — Eu fiquei parada ali perto de suas camas e pensei na facilidade que
seria simplesmente sufocá-las. — Ela se aproximou mais um passo de Lore.
— Mas eu esperei, até que seus pais viessem vê-las, até que meus poderes
estivessem totalmente restaurados com o fim do ciclo. — Atena parou diante
de Lore, olhando-a de cima. — E então fui arrancando um pedaço de cada
garota a cada pergunta que se recusavam a responder. Sobre a criança
desaparecida. Sobre onde você poderia estar se escondendo.
A lembrança de suas irmãs, cortadas a ponto de ficarem irreconhecíveis,
estourou a pressão contida em seu peito. A raiva e o luto a rasgaram inteira; o
mundo saiu do eixo, e Lore atacou.
Ela golpeou com a sua faca na direção do peito de Atena. A deusa usou sua
dory para apará-la com pouco esforço e a face inexpressiva, então girou a
arma, atingindo o ombro direito de Lore.
— Nenhum controle, nenhuma disciplina, nenhuma estratégia — disse
Atena. — Apenas raiva. Eu a vi em você imediatamente. Como bronze
derretido esperando para ser moldado por mãos habilidosas. Eu meramente
plantei a sugestão do novo poema. Eu sabia que você descobriria onde ele
está gravado e iria atrás dele. Foi apenas questão de ter paciência.
Lore caiu para trás com a força do golpe, mas usou a distância para jogar a
faca para a mão esquerda, mudando a empunhadura. Ela fez uma finta para a
direita, e, quando a deusa foi tentar bloquear, Lore golpeou de baixo para
cima. Atena desviou, mas a ponta da lâmina atingiu seu queixo. O corte
tingiu a lateral do pescoço dela de sangue.
Atena deixou escapar uma única risada ácida. Ela esfregou o corte com o
polegar, estudando-o por um momento.
— O problema com mortais tão pequenos, é claro, é que há um limite de
sangue neles. Eles morrem muito rápido.
Lore gritou. Sua voz saiu rasgada, separada de uma parte de si que havia se
quebrado. Ela se entregou à dor, cortando e arranhando até que a cela
desaparecesse em sua volta e ela começasse a se dissolver em puro instinto.
O golpe da dory veio por trás, batendo em cheio em sua cabeça. A faca
voou de sua mão enquanto Lore ia ao chão. Ela rolou, para ficar de frente,
mas Atena lhe deu outra pancada, depois afundou a sauroter da dory na coxa
dela. Com um único golpe, ela perfurou músculo, quebrou osso e prendeu
Lore no lugar.
A agonia era tão forte que Lore mal conseguiu puxar ar suficiente para
chorar. Atena girou a lança, cravando ainda mais sua ponta. O instinto de
sobrevivência rugia dentro dela. Lore batia a mão no chão úmido, procurando
a faca por meio do tato e conseguindo pegá-la, triunfante.
Mas, antes que pudesse erguê-la, Atena agarrou sua mão, arrancando a faca.
E então, com todo o esforço que seria necessário para esmagar as pétalas de
uma flor, ela fechou a mão em torno dos dedos de Lore e quebrou todos os
seus ossos.
Lore tremeu violentamente e soltava gritos ofegantes. O vômito azedo
subiu em sua garganta devido à dor e à visão da mão deformada.
— Por quê? — suplicou ela. — Por quê?
— Elas chamaram por você — disse Atena. Quando a deusa puxou a dory,
a sauroter se soltou, ficando enterrada na perna de Lore. — Ambas as
meninas. Acha que elas sabiam que foi você quem as matou?
A lembrança daquela noite a assolava. Lore não precisava fechar os olhos
para ver a cena: o sangue manchando as paredes e o chão, as irmãs jogadas
para fora de suas camas, as sombrias órbitas nas quais seus olhos deveriam
estar.
— Elas eram apenas garotinhas — chorou Lore. — Damara era apenas um
bebê. Elas eram inocentes!
— Nenhum de vocês é inocente — rosnou Atena. — Você, muito menos,
Melora. Seu pai morreu primeiro, implorando, depois a sua mãe, que pelo
menos soube que estaria desperdiçando fôlego se tentasse. Aguardei seu
retorno por horas, e quando você veio ela não estava mais em sua posse. Eu
assisti enquanto você ficou parada no batente da porta da casa, quando viu o
presente que deixei para você. Mas você não chorou. Você não emitiu um
único som sequer. Você era mais forte do que é agora.
— Por que você não me torturou para descobrir o que aconteceu com ela?
— disse Lore, ofegante, com a mão no rosto e no cabelo. — Por que
simplesmente não me matou?
— Eu precisava que você me mostrasse onde ela estava escondida — disse
Atena. — E a entregasse para mim voluntariamente. É claro, depois que
soube do poema, tive mais um motivo para mantê-la viva. Não vou deixá-la
desaparecer com a morte até que eu possa ler o conteúdo.
Lore arranhou a própria garganta. Ela quase a deu a ela, há apenas uma
hora. E pensava que o faria por ideia própria. Porque seria inevitável.
— Todos os anos na Casa de Odisseu, observei a sua existência patética,
aguardando pelo dia em que você a pegaria ou revelaria onde ela estava
escondida — disse Atena. — Eu mesma talvez fosse até você em outra
forma, para ganhar suas graças, se Hermes não a tivesse encontrado primeiro.
Lore sacudiu a cabeça em negação, tentando calar aquelas palavras.
— Eu o segui até esta cidade, curiosa com o motivo de ele estar vestindo
um rosto falso — disse Atena. — Tive minha resposta logo. Senti o poder do
encanto de afastamento que ele lançou na sua casa. Eu não podia entrar nem
me aproximar. Havia mais de uma razão para ele ir tão longe para me
impedir. Havia apenas uma mortal pela qual ele iria tão longe para proteger.
O fato de eu não poder vê-la… de eu só conseguir captar o som dos seus
passos, seu cheiro… confirmou as minhas suspeitas.
A deusa estudou a ponta de sua dory.
— Hermes se esforçou tanto, e tudo por causa de um sentimento de culpa
mal direcionado. Veja você, ele escolhera tomar conta de você e da égide
para manter o seu amado vivo. Ele sabia que eu havia encontrado o
esconderijo do falso Dionísio — disse Atena. — E quando esta caçada
começou, e observei Hermes morrer a distância, enxerguei minha
oportunidade. Seu poder não se sustentaria para além da morte. Eu finalmente
poderia ir até você, sem barreiras.
O corpo de Lore ficou pesado como chumbo, e manter a faca erguida ficou
impossível. Jorrava sangue de sua perna, que latejava a cada batida de seu
coração. Ela pressionou as costas na parede, e a umidade encharcou sua
blusa.
— Mas Ártemis atacou você… — disse Lore, sem forças.
— Como se minha irmã fosse capaz de desferir tal golpe sem meu
consentimento — disse Atena. — Nós planejamos matar todos os impostores
deste ciclo, mas ela concordou em me auxiliar na armadilha quando eu lhe
contei sobre sua conexão com o rapaz que assassinou nosso irmão. Mas ele é
tão intrigante, não é mesmo? Soube assim que senti seu poder que não
poderia matá-lo. Não até que eu descobrisse o que ele é. Isso a irritou, mas
permitiu que eu me aproximasse o suficiente de alguns dos outros impostores
para garantir que morressem nas mãos de um verdadeiro deus.
Ártemis não estava louca, como a sua irmã alegara, Atena havia traído
Ártemis ao não entregá-la Castor.
— Você disse à Ártemis que me rastreasse naquele primeiro dia, pensando
que eu procuraria por ele, não foi? — disse Lore, finalmente juntando as
peças. — E depois você apenas… a observou morrer?
— Nem todos nós estamos destinados a retornar ao Olimpo — disse Atena,
friamente. — Apenas os mais fortes de nós serão reconhecidos pelas Horas e
serão permitidos a passar pelos portões mais uma vez. Ártemis esmoreceu.
Atena moveu-se como um chicote, segurando o queixo de Lore com força.
— Vamos acabar com seu sofrimento e ir buscá-la afinal?
Lore a encarou, despejando cada grama de sua raiva trêmula no olhar. Sua
mente era uma torrente de terror e descrença.
— Ela não será dada a você voluntariamente se me torturar. Você não
poderia usá-la.
— Ainda não. No entanto, eu terei a inscrição. Saberei como acabar com o
Ágon — disse Atena. Lore sentiu seu maxilar começar a rachar com a força
da deusa. — E quando eu recuperar todo o meu poder, serei capaz de
empunhá-la novamente.
— Mas Fúria… Ele virá atrás de você — disse Lore, com a voz rouca. —
Ele não deixará que fique com ela…
— Quando eu alcançar a ascensão final, ele não será nada senão uma
minhoca que esmagarei sob meu calcanhar — disse Atena. — Junto a todos
que se atreverem a virar as costas para os deuses verdadeiros. Fique avisada,
Melora, destruirei tudo e todos que ama, um por um, até que me leve até ela.
O coração de Lore falhou no peito.
Não.
Miles, não. Castor, não. Van, não. Iro, não.
Sua cidade, não.
Uma segurança tranquilizante tomou conta da mente de Lore, silenciando a
tempestade caótica em seus pensamentos e deixando a escolha nítida. Ela a
aceitou, mesmo quando viu todos os seus rostos, mesmo quando pensou em
sua família e soube que suas almas nunca encontrariam paz.
Havia uma última escolha. Pelo menos seria ela quem tomaria a decisão.
Sinto muito — pensou ela. Haveria apenas um deus restante para que Castor
enfrentasse, mas ninguém tomaria posse da égide de novo.
A mão solta de Lore agarrou o pedaço quebrado da haste da lança ainda
preso ao sauroter e, com um grito, ela o puxou de sua perna. A jovem pensou
em suas irmãs. Em sua corajosa mãe. No rosto de seu pai, iluminado com a
luz da fogueira de acampamento, mostrando-lhe como segurar o cabo de uma
adaga.
Posicione seu polegar na crista do cabo, Melora. Isso vai dar um controle
melhor.
— Não — disse ela, erguendo a voz e se certificando de que a palavra fosse
estrondosa.
Atena ficou furiosa.
— Criança impertinente…
Lore a fitou por entre as mechas de seu cabelo escuro.
— A escolha é minha.
Ela virou a lâmina para si mesma e a afundou em seu peito.
QUARENTA E QUATRO

LORE SEMPRE PENSOU QUE A MORTE SERIA MAIS DO QUE ISSO.


Os caçadores acreditavam que não havia honra maior do que a de morrer na
caçada em busca da glória, em vez de ser levado por Tânato, o deus da morte
natural. Ela sabia que não deveria comprar essa baboseira, mas uma parte sua
ainda queria acreditar que a última chama de dor incendiaria seu passado e a
transformaria em alguém que seria considerada digna no Mundo Inferior.
Em vez disso, a morte era apenas um torpor. Sua mente se fechou para
protegê-la do choque do aço rasgando sua pele e raspando osso.
Sua mão escorregou da arma improvisada, caindo mole em seu colo.
Houve um terrível grito, como guincho de uma serra contra o metal.
Olhe — pensou Lore. — Abra os olhos.
Era a deusa de olhos cinzentos.
— Ah, sua tola — vociferou Atena. — Não vou deixar que faça isso… não
vou permitir que a tire de mim!
— Você… não… vai… precisar dela… — disse Lore com dificuldade —
no lugar… para onde vai…
A mão dela fechou ao redor do pescoço de Lore, apertando como se fosse
quebrá-lo. O rosto de Atena estava rígido de raiva, e seus dentes, à mostra.
Destemida e não abatida pela fraqueza da morte iminente.
— Você realmente acreditou em tudo — disse Atena, com uma voz áspera.
— Você achou que eu seria tola ao ponto de vincular minha vida a uma
mortal impetuosa? A você? Você fez isso em vão!
O pânico passou cortando por dentro de Lore. Ela encarou a deusa, lutando
para manter o foco enquanto a escuridão manchava a sua visão. Logo, ela
apenas conseguiria ver o redemoinho de faíscas rodopiando nos olhos de
Atena.
Em vão, não — pensou Lore, e as palavras em sua mente eram fracas.
Não havia sido apenas para matar Atena. Lore queria se certificar que
ninguém se apossasse da égide de novo. Pelo menos ela fizera direito, a única
coisa correta, depois de tantos erros.
Atena se afastou, recuando. Permaneceu ali, com o olhar sobre Lore. A
máquina intrincada que era sua mente girava até ela recuperar o controle mais
uma vez.
— Forçarei o falso Apolo a curá-la — disse Atena. — E você me levará até
ela.
Não…
Lore se arrastou para longe, enfiando as unhas no chão áspero para se
movimentar. A deusa havia encostado a dory na parede; Lore podia alcançá-
la se conseguisse fazer seu corpo se mover. — Não antes de eu matar você…
Atena a agarrou pelo cabelo, arrancando pedaços de seu couro cabeludo.
Ela arrastou Lore até a porta e pelo túnel além dela.
Mas um momento depois, a deusa a soltou. Lore caiu no chão molhado. O
impacto abriu o seu queixo. O sangue desceu-lhe pela garganta, quente contra
a pele fria.
— Não… — disse a deusa, dando um passo para trás para recuperar a dory.
— Acho que… não.
Lore abriu ligeiramente a boca, mas as palavras que ela queria dizer se
afundaram na crescente escuridão da sua mente e desapareceram. Uma
sensação congelante inundou as veias onde o sangue esteve há um momento.
— Há outro jeito — disse Atena, lentamente, como se desenrolasse o
próprio raciocínio.
Lore soltou um rugido estrangulado, de raiva e angústia.
A deusa deu meia-volta para ir embora, mas parou no batente da porta da
cela. Ela lançou um último olhar para trás, emitindo um ruído de falsa
simpatia.
— É uma pena que você não tenha tido nem mesmo a coragem de cravar a
lâmina em seu coração.
— Eu vou matar… você… — sussurrou Lore, mas não houve resposta
alguma.
Nunca haveria uma resposta.
Apenas o ar sombrio, o silêncio e a espera.
SETE ANOS ATRÁS

DE ALGUM JEITO, APESAR DA HORA, A LUA AINDA ESTAVA NO CÉU, MESMO QUANDO
enfraquecia com a chegada do pálido amanhecer. Lore manteve o olhar fixo
na lua crescente para evitar ter que fitar as ruas do bairro. Agora, em frente ao
apartamento da família, se forçou a espiar pela janela que usou para fugir há
algumas horas.
Estava fechada.
Ela soltou o ar suavemente, e o medo a pegou de novo. Seus pais estavam
acordados.
Ela fechou os punhos e os pressionou contra os olhos, se forçando a respirar
e a não chorar.
As mentiras eram tão fáceis — quando ela foi ver Castor, queria assistir às
últimas horas do Ágon, cogitou fugir e voltar —, mas a verdade a fez sentir
como se estivesse esfaqueando a própria barriga. Ela tinha que contar a eles.
O castigo nunca seria tão ruim quanto o que os Cadmídeos fariam. Seus pais
saberiam o que fazer.
Lore nem quis saber de escalar até a janela do quarto. Usou a porta da
frente.
Endireitando os ombros e engolindo o gosto amargo na boca, ela subiu a
grande quantidade de degraus da escada até o sexto andar. A noite anterior já
estava começando a parecer mais como um sonho do que uma lembrança.
O apartamento era no fim do corredor silencioso. O coração de Lore
martelava em seus ouvidos. Eles ficariam muito zangados. Ela teria que
tentar encontrar um jeito de fazê-los entender, de convencê-los a ficar na
cidade, apesar do que havia acontecido. Ela não queria deixar Castor nem
Nova York. Não desse jeito.
Lore parou do lado de fora da porta, pressionando a testa em sua superfície
lisa e fechando os olhos. Ela tentou ouvir o barulho de seus pais do lado de
dentro. Fazendo o café, alimentando Damara, conversando baixinho enquanto
ouviam o noticiário.
Mas não ouviu nada.
Algo molhado encharcou o seu tênis velho. Lore abriu os olhos ao sentir
isso.
Sangue escuro escorria pela fresta debaixo da porta e formava uma poça em
torno de seus pés.
QUARENTA E CINCO

OLYMPIA ESPERAVA POR ELA NAS SOMBRAS DA NOITE.


Ela estava sentada na cama que dividiam, com o cabelo bagunçado pelo
sono e os olhos cansados demais para se concentrarem. Lore ocupou o espaço
ao lado da irmã, observando enquanto o vento se esgueirava pela janela mais
próxima e balançava os desenhos de Olympia que Lore havia colado na
parede.
Sua irmã virou para ela. Lore começou a chorar.
— Não brigue, Lolo — sussurrou Olympia, agarrando a frente do pijama de
Lore. — Não brigue. Vá dormir.
Lore fechou os olhos, mas as lágrimas não paravam de cair.
Vá dormir.
Era tão fácil. Uma coisa tão simples. Mas quando ela estava prestes a
dormir, foi impedida pelo cheiro de algo afiado e metálico.
Não brigue.
Ela abriu os olhos e viu as lacunas escuras das cavidades oculares das suas
irmãs a encarando de volta.
O sangue fluía em volta delas na cama, revestindo a pele de Lore, enchendo
sua boca enquanto ela gritava. Ela rolou para fora da cama e caiu no chão,
mas estava lá também, escorrendo por entre as barras do berço de Damara.
Um gemido perfurou o silêncio, abrindo um corte que se aprofundava mais a
cada batida frenética de seu coração.
A porta do quarto estava aberta, e um único feixe de luz era visível na
escuridão do espaço além dele.
Lore cambaleou para frente. Ela não podia olhar em volta, não quando sabia
o que encontraria: a sua mãe estirada no chão perto da porta, dilacerada da
barriga até a garganta, o seu pai na cozinha, com a coluna quebrada e o crânio
esmagado. Ela já esteve aqui antes. Já viu isso antes.
A luz… se ela ao menos conseguisse alcançar a luz…
Vá dormir.
Sua mente ficou em silêncio e o seu corpo estava imóvel quando Lore
passou pela porta do quarto. Uma névoa fresca acariciou as suas bochechas.
A luz ainda estava lá, logo além do véu de névoa prateada, mas agora eram
muitas. Agora eram sete, e as luzes tinham formas, rostos que observavam,
inexpressivos, do outro lado de um rio. Uma se separou das outras e vagou
até ela, ficando maior e mais intensa a cada batida lenta de seu coração.
O mundo cinzento parecia respirar, como se tentasse inalá-la. Água fria
batia em seus pés.
Melora. — O ar úmido sussurrou seu nome, até que se tornasse uma
pergunta sem resposta. — Melora?
Uma mão pesada caiu sobre seu ombro. Ela deu meia-volta lentamente.
Seu corpo ganhou vida com uma dor que a serrou. Seus membros se
contorceram em formas agonizantes. Ela ofegou e arranhou o chão. Ela
estava fria… tão fria… rachando como gelo…
O mundo sombrio do rio tremeluziu na cela subterrânea, até que Lore não
conseguisse mais distinguir um do outro.
— Aguente firme, Melora — disse a mesma voz. — Temo que o pior ainda
esteja por vir.
Um rosto brilhante pairou sobre o dela. Ele era jovem e lindo, seus lábios
formavam um sorriso travesso. Seu cabelo era cacheado de uma forma quase
angelical; acima dele, asas batiam nas laterais de seu elmo, seguindo o ritmo
da pulsação dela.
— Você… — sussurrou ela. — Não…
A silhueta mudou na estranha luz. Sua forma se desamarrou como fitas, as
camadas dele se separaram para revelar o que estava escondido embaixo.
Outra pessoa.
Lore ergueu a mão trêmula e a passou nos olhos para clarear a confusão.
Um senhor de idade estava diante dela agora, e seus pés não tocavam direito
o chão. Seu cabelo parecia pairar no ar, tremulando como ondas em volta da
cabeça, acima de seu rosto comprido. Sua pele branca era marcada pela idade
e por veias, seus ombros estavam curvados. Seus olhos verdes brilhavam
enquanto ele a observava.
— Olá, querida — sussurrou Gil. — Você está bem?
— Você não é… — Lore começou a dizer, incapaz de recuperar o fôlego ao
vê-la. Ele estava impecável, com seu clássico paletó de tweed e com aquele
olhar sabido em sua face.
— Real? — terminou ele. — Levante-se e descubra por você mesma.
As pálpebras de Lore estavam pesadas demais. Elas se fecharam quando ela
deu um leve e único aceno negativo com a cabeça.
— Não — disse Gil rispidamente. — Olhe para mim. Eu preciso que você
olhe para mim.
Lore tentou.
— Você quer viver? — perguntou Gil. As palavras ecoaram pelos
pensamentos de Lore, se enroscando em lembranças.
Lore respirou levemente. Os outros… a cidade… Ela não havia terminado
ainda… mas seu corpo… ela não podia…
— Você já sabe que é suficiente — disse Gil. — Levante-se, Melora.
Vamos lá. Me mostre que estou certo.
Ela havia pensado ser suficiente para caçar, para salvar a sua cidade, para
proteger os seus amigos e vingar sua família. E agora não lhe restava nada.
Todo mundo que ela amava se foi.
Nem todo mundo.
Nem tudo foi uma mentira.
— Faça isso por você mesma — disse Gil, e sua voz era um bálsamo para a
mente confusa de Lore. — Não para dar o troco nela. Não por raiva. Por você
mesma.
A humilhação, a raiva e a traição estavam todas fundidas nela, mas havia
outra coisa. Ela poderia… ainda havia alguma coisa nela… alguma coisa…
— Você precisa se levantar sozinha. Eu não posso carregá-la como você me
carregou — disse Gil. — E eu não posso levá-la para muito longe, apenas à
fronteira, se assim ele permitir. Assim como eu devo fazer. Você precisa se
levantar sozinha e me seguir até lá.
Isso… havia força suficiente nela para isso. Para se levantar. Para ir até os
outros. Para alertá-los…
Lore estendeu o braço, apoiando a mão na parede atrás dela, tateando por
algo que pudesse servir como âncora. Seus dedos se engancharam em uma
depressão que a perfuração irregular deixara para trás. Seu ombro e seu braço
doíam à medida que sustentavam seu peso, mas ela cerrou os dentes. Sibilou
devido ao esforço necessário para que ficasse de pé.
— Muito bem — disse Gil, soando aliviado. — Isso mesmo, querida.
Sua perna direita estava boa, mas a esquerda, a que Atena empalara, estava
quebrada. Qualquer peso depositado nela fazia subir uma dor aguda no
membro. O joelho de Lore cedeu quando ela tentou dar um passo, mas ela
escorou o ombro na parede.
Sangue quente escapou do ferimento em seu peito quando ela se curvou,
forçando-a a pressionar a mão no local para estancar o fluxo. Ela estremeceu;
a dor era tão forte agora que ela quase se sentia entorpecida por ela.
— Siga-me, querida — disse Gil. — Não tire os olhos da luz.
Lore mancou para frente, um passo arrastado depois do outro. A água
esguichava em seus pés. O mundo do rio e o mundo do túnel se misturavam
um no outro, até que tudo fosse composto de escuridão e pedra. Mas agora
havia uma luz adiante. Ela podia vê-la — aquele brilho.
O lado direito de seu quadril era lançado para frente repetidas vezes, seus
músculos paralisavam com o esforço que precisava fazer. Adiante. Adiante.
O avanço delas era excruciante e lento.
Gil sabia o caminho, como sempre soube, fazendo todas as curvas com
confiança. Lore a deixou guiar, e seus olhos estavam fixos na luz que
emanava da tocha que agora aparecia na mão daquele homem.
A chama era hipnotizante, pregando peças nos olhos de Lore, fazendo ver
coisas que não estavam ali.
O paletó de tweed de Gil se desfizera em brasas, revelando uma túnica
marfim por debaixo. Na sua mão esquerda, surgiu um cajado alado com
serpentes de ouro enroscadas nele. Suas pequenas cabeças escamadas se
esfregavam uma na outra, depois viravam para observá-la.
Me ajude — pensou Lore, porque não conseguia dizer as palavras. — Fique
comigo.
Como se ela as houvesse chamado, sombras apareceram pelas paredes do
túnel. As silhuetas de um homem e uma mulher, de duas garotinhas, estavam
ao lado dela, acompanhando seu torturante ritmo. Rostos que ela conhecia.
Rostos que ela amava.
Lore estendeu uma mão para a mulher, os seus dedos tocando levemente o
rosto.
Fiquem comigo — pensou ela. — Fiquem comigo…
A silhueta de Gil ficou desfocada à medida que a visão de Lore vacilava.
Ela se apoiou com muita dificuldade na parede, usando o resto da força para
se arrastar para a frente com a sua mão intacta, rastejando pela água fria, se
esforçando para manter a cabeça acima da água.
Talvez essa fosse sua punição por tudo o que fizera. Ela seria forçada a
fazer esta jornada pela escuridão, a viver naquela pequena eternidade, para
sempre. Repetindo a agonia, repetindo a percepção de que nunca voltaria para
a entrada dos túneis ou encontraria forças para subir a escada.
Uma pequena badalada soou docemente em algum lugar atrás dela, depois
outra, até que se transformasse em uma canção, como pássaros de manhã.
Gil parou, se voltando para ela.
— Aqui é a distância máxima, então.
Lore respirou fundo, trêmula, com as costas apoiadas em uma parede
áspera. Ela tentou alcançar as sombras, trazê-las para perto, mas haviam
desaparecido junto com a sua visão.
Fiquem comigo.
— Pela minha parte nisso, eu sinto muito — disse Gil, e sua voz estava
próxima a ela. Ele tocou a testa dela de uma forma gentil e afetuosa.
Lore não conseguia mais dizer se seus olhos estavam abertos. Seu corpo
vagava abaixo dela, e sua mente estava solta. Quando Gil falou novamente,
as palavras floresceram na mente dela, e sua voz se derreteu em outra, mais
profunda e limpa.
— Os olhos dos deuses estão sobre você.
A luz diáfana da tocha desapareceu, mas a presença de quem estava ao seu
redor permaneceu por um tempo.
Fiquem comigo — suplicou Lore, sofrendo com o desespero. — Fiquem…
Não me deixem…
As sombras a rodearam, e quando os seus pensamentos se transformaram
em cinzas e o mundo desapareceu, ela não tinha mais medo.
QUARENTA E SEIS

A BATIDA DE UM CORAÇÃO A ENCONTROU NA ESCURIDÃO.


Lore seguiu o som da mesma forma que Orfeu deve ter olhado para a luz
acima dele enquanto tentava guiar Eurídice para fora do Mundo Inferior. Ela
sabia que se olhasse para trás para procurar pelos rostos da presença fria que
permanecia atrás ela, estaria perdida.
Em vez disso, foi na direção do calor crescente, na direção da energia
familiar que envolvia seus sentidos.
Seus olhos estavam encrostados com sujeira, mas ela se forçou a abri-los.
Os olhos de Castor estavam fechados, e seu rosto, inclinado para cima,
revelando a nítida linha de seu maxilar. Sua energia pulsava ao redor deles,
queimando a frieza do túnel. Ele transformara a água parada em uma névoa
espessa que preenchia o ar.
Ela estava envolta nas pernas dele, erguida do chão áspero. O novo deus a
segurava sobre um dos ombros para suportar seu peso e a outra mão
descansava no flanco da jovem, onde a lâmina a havia cortado.
Lágrimas escorriam pelo rosto dela, molhando seu cabelo enquanto ela o
fitava. Seu corpo parecia como se estivesse repleto de ar e luz solar, etéreo
demais para se mover. Castor mal parecia estar respirando.
Ela levantou a mão livre e traçou levemente a ponta do dedo pela bochecha
dele. Castor guiou a mão e a pressionou contra o peito, bem onde seu coração
mortal batia.
Ele a olhou nos olhos. Não disse nada, mas, naquele momento, não
precisava. Seu rosto era um livro que fora escrito apenas para ela. Seu enredo
se desenrolava enquanto ele a via observá-lo.
Mas conforme o toque gentil e entorpecente de seu poder a aliviava,
reparando sua pele, remendando seus ossos, ela começou a lembrar.
A vergonha se misturou com confusão e raiva, até que ela estivesse
chorando de novo, dessa vez de emoção. Por não ter enxergado a verdade
sobre Atena. Por saber o quão perto esteve de deixar este mundo e todos que
amava.
Pelo erro que cometeu e que nunca poderia ser reparado, e pelas preciosas
vidas que ele custou.
Lore olhou para as paredes ao redor, procurando novamente pelas sombras.
Mas parece que ficaram com ela somente até que a luz de Castor pudesse
substituí-las.
Castor tirou o cabelo de cima das bochechas molhadas de Lore, colocando
os cachos para trás de suas orelhas. Ela queria contar-lhe o que aconteceu, se
explicar, mas ele já sabia. Assim como era fácil ler o rapaz, Castor sempre
soube interpretá-la.
— Você estava gelada — disse ele, interrompendo as palavras. — Eu não
sabia… Eu não tinha certeza…
Ela pressionou a testa no ombro dele.
— Está tudo bem. Uma mudança bem-vinda, até. Nossos reencontros
geralmente envolvem muito mais socos.
— Nem sempre — disse ele, suavemente. — Às vezes nós perseguimos
nossos inimigos.
— Variedade — disse ela —, o tempero do combate mortal.
Castor soltou o ar, afastando-se ligeiramente para examinar o ferimento na
perna dela e a nova pele rosada que o substituiu. Lore ergueu a mão,
passando-a ao longo das costelas.
É uma pena que você não tenha tido nem mesmo a coragem de cravar a
lâmina em seu coração.
— Ei — disse ele, com suavidade. — Ainda está sentindo dor?
Ela balançou a cabeça negativamente, se perguntando como contaria a ele
tudo que aconteceu.
— Eu não deveria ter ido embora, mas achei que seria o único jeito de fazer
você ver… eu nunca deveria ter deixado você sozinha com ela — disse
Castor, soltando um fôlego trêmulo. Ele fechou os olhos novamente, mas
desta vez, quando os abriu, havia neles uma fria intenção.
— Eu vou matá-la. — As palavras eram baixas, sem qualquer polimento,
sem qualquer hesitação. E em nada combinavam com ele.
— Não — disse Lore.
— O que ela fez com você… — ele começou a dizer novamente.
— Não — respondeu Lore, com a voz rouca. — Fui eu.
Lore viu o exato momento em que ele entendeu o que ela quis dizer. O
choque dele aprofundou-se e tornou-se horror.
— Foi ela — sussurrou Lore. — Todo esse tempo, foi ela que os matou.
— Por quê? Por que eles e não qualquer outra linhagem?
— Por minha causa — disse ela. — E pelo que eu fiz no último Ágon.
Castor lançou-lhe um olhar questionador, esperando que ela explicasse
melhor.
— E eu pensei… se eu pudesse parar Atena e tirá-la do Ágon… se ninguém
pudesse ter a égide… — Lore balançou a cabeça. — Mas o juramento de
vínculo não foi real.
Castor levou a mão dela até a boca, dando um beijo suave na palma
calejada. Ele pareceu se afundar em pensamentos enquanto sua energia se
dissipava em torno deles.
— Mesmo que tivesse funcionado, você não teria simplesmente tomado o
poder dela? — perguntou ele, por fim.
— Não — disse Lore. — Não de acordo com as histórias. Eu acho que teria
que cravar a faca nela, mas eu não estava… Eu não estava muito bem…
Ela fechou as mãos ao lembrar.
À medida que seus nervos saltaram e os seus pensamentos se tornavam
mais nítidos, Lore se lembrou de repente da primeira pergunta que deveria ter
feito:
— Como você me achou?
— O seu celular — disse ele.
Lore o encarou, sem entender.
— Miles fez um tal de rastreamento… de amigo? — repetiu, parecendo
repentinamente perdido. — Ele teve que aceitar seu pedido. Todos nós nos
encontramos perto da sua casa depois da inundação e ficamos a maior parte
do dia procurando por você. O sinal de celular voltou a funcionar há uma
meia hora. Van e Miles foram se reagrupar com os Aquilídeos e encontrar um
lugar seguro para a gente se abrigar.
E você veio aqui — pensou ela, tomada de gratidão. — Você veio me
encontrar.
— O Miles está bem? — sussurrou ela. — Vocês estão todos bem?
— Todo mundo está bem — prometeu ele.
Ela se levantou apenas o bastante para tirar o aparelho do bolso de trás. A
tela estava quebrada, mas as mensagens e as notificações de ligações perdidas
ainda eram visíveis. Havia uma sequência de mensagens desesperadas de
Miles.
Tá aí? Só avisa se tá bem.
Ela se atrapalhou com o celular e suas mãos tremiam enquanto ela
respondia a mensagem com:
Tô bem. Mando mensagem quando estiver segura.
As respostas foram imediatas, fazendo o celular vibrar e tocar o som de
notificação familiar.
Ding.
Ok. Vou mandar o endereço pra gente se encontrar.
Ding.
Chego lá em 2h. Preciso alugar um barco para voltar.
Ding.
O que houve?
As badaladas. Os sons que ela ouviu foram reais, não foram alucinações.
Mas então…
Todo o resto também foi real?
Ela olhou em volta, só para perceber que estava a poucos centímetros de
distância da escada que dava de volta na rua. Mais para dentro do túnel, na
cela, não haveria sinal de celular.
Castor seguiu o olhar dela para o caminho distante atrás deles.
— O corpo da Portadora da Maré está lá — disse Lore, hesitante.
Ela sabia que os restos mortais desapareceriam ao final do ciclo, mas a
deusa merecia mais do que ser deixada para apodrecer.
Ele assentiu, ajudando-a a se levantar.
— Eu vou cuidar disso.
Castor desceu pelo sinuoso túnel, desaparecendo à primeira curva. Lore
encostou na parede, imaginando se conseguiria ver o brilho dourado do poder
dele quando transformasse o corpo da Portadora da Maré em cinzas. Antes do
que ela havia esperado, os passos do novo deus vinham novamente na direção
dela, respingando o que restava da água parada.
Ele balançou a cabeça negativamente.
— Nunca vi nada como isso…
— Espero não ver nada como isso nunca mais — disse Lore. — Eu vou
contar tudo… só não aqui.
— Não posso reclamar — disse Castor, olhando para a escada. — Eu vou
subir primeiro, para o caso de alguém estar esperando. Afaste-se… ainda
pode ter água lá em cima.
Ela pôs sua adaga entre os dentes. A escotilha rangeu ao abrir. Luz fraca e
água escorreram pela abertura. Lore se afastou, deixando que enchessem o
túnel a seus pés.
— Não tem ninguém aqui — alertou Castor. — Pronta?
Lore assentiu, agarrando a primeira barra da escada até que suas mãos
parassem de tremer. Sua perna curada estivera com uma dor oca, mas até
mesmo isso se dissipava conforme ela galgava o próximo degrau e, aos
poucos, subia na direção de Castor e do escaldante pôr do sol que o coroava.
QUARENTA E SETE

O NOVO ENDEREÇO CHEGOU ASSIM QUE ELES PASSARAM PELA INUNDAÇÃO E PELAS
barreiras em volta do Central Park para atravessar para o lado oeste. Era um
escritório vazio situado sobre uma loja de roupas fechada com tábuas, não
muito longe do Lincoln Center.
Castor derreteu a fechadura da porta, abrindo-a devagar e depois a
trancando. Lore olhou em volta. Julgando pelo brasão da cidade gravado no
vidro, o local provavelmente estava passando por reformas para se tornar
algum tipo de escritório do governo. O cheiro de tinta fresca e a lona de
plástico cobrindo a escadaria pareciam confirmar essa teoria, mesmo antes de
eles encontrarem uma amplitude de cubículos de trabalho vazios no andar de
cima. Na direção das janelas, que iam do chão ao teto, todas cobertas de
papel, havia uma pequena sala de estar, completa com uma mesa, um sofá e
cadeiras.
Desocupado e desprotegido, o escritório era uma boa escolha — e tudo
graças a Miles e ao acesso que seu estágio lhe concedia. Ela esperava que o
amigo e Van estariam de volta logo. Precisava ver com os próprios olhos que
os dois estavam bem.
Castor removeu o plástico que cobria o sofá, guiando Lore até ele. Ela se
jogou nele, exausta. Quando a noite caiu e a cidade permanecia sem energia,
os olhos dela começaram a se ajustar à crescente escuridão. O novo deus
fechou a mão em um punho, gerando um leve brilho em torno dela.
— Muito impressionante, grandão — disse ela.
— Estou começando a controlar melhor — disse ele. — Agora eu consigo
ir de zero a trinta, em vez de ir de zero a cem de uma vez.
O sorriso dela desapareceu enquanto o observava explorar a área da cozinha
e depois sumir na sala dos fundos. Quando voltou, Castor carregava um galão
de vinte litros de água nos ombros, claramente destinado ao filtro, e um
pacote de papel-toalha embaixo do outro braço.
Ele se ajoelhou na frente dela, molhando alguns dos papéis-toalhas. Tirando
a mão de Lore do colo dela, o único foco dele agora era limpar toda a sujeira
e o sangue. A jovem não percebera quanto frio estava sentindo até que o calor
da pele do novo deus se espalhasse por ela novamente. Tentou ajudá-lo
levantando o braço quando ele ergueu a blusa dela até os ombros, mas seu
corpo não lhe obedeceu.
Pela primeira vez em dias, Lore se sentiu segura o suficiente para parar de
fingir que conseguia continuar em frente, apesar da dor e da fadiga.
Foi por isso — pensou ela. Atena havia trabalhado em uma lenta e
metódica manipulação. Cada sugestão tinha como objetivo separá-la dos
outros, daqueles que talvez fossem capazes de perceber o que estava
acontecendo, e aprofundar a crença de Lore na deusa e somente nela.
Castor deu a ela um sorrisinho reconfortante enquanto pegava outro papel
toalha e começava a limpar o outro braço, passando o papel gentilmente nas
manchas escuras da mão que Atena havia quebrado e ele curara. Lore o
observou, e seu coração estava tão quente que poderia derreter.
A deusa não era mortal e não tinha uma compreensão humana do mundo.
Emoções são estorvos para uma mente puramente racional, mas até mesmo
Atena reconheceu a ameaça que os outros representavam simplesmente por
estarem perto. Uma pessoa sozinha poderia ser controlada, mas uma pessoa
amada pelos outros sempre estaria sob a proteção deles.
Lore havia sentido raiva por muito tempo — do mundo, do Ágon, mas,
acima de tudo, de si mesma. Não era questão da raiva ser inerentemente boa
ou má. Ela podia conceder força, propósito e determinação, mas, quanto mais
ela vive descontrolada dentro de você, mais venenosa se torna.
Até mesmo agora, cada fibra de seu ser estava se esforçando para descer de
novo a escada, para sair cidade afora com nada a não ser uma faca e a
imagem do deus que deveria queimar como uma estrela na sua mente. Este
impulso colidia-se com ela por todas as direções, e seu corpo inteiro tremia
com o esforço de se forçar a ficar inerte.
Castor passou um papel-toalha limpo por seu pescoço, e houve um breve
sinal de angústia na expressão dele enquanto o passava por toda a curvatura
de seu maxilar. Lore se perguntou, por um momento, se Atena o havia
quebrado, e se a dor nos outros pontos de seu corpo eram tão devastadoras
que ela não se dera conta disso.
Ele jogou um pouco de água na bochecha de Lore, brincando, e isso a
assustou e a trouxe de volta de seus pensamentos. Ela soltou uma risada
fraca. Para sua surpresa, ele passou a limpar seu cabelo, passando os dedos
úmidos pelo monte desgrenhado com o maior cuidado possível. Ele trançou
seu cabelo sobre o ombro, mas não havia nada para prendê-lo.
Finalmente, ele prestou atenção no rasgo em sua blusa, duro por causa do
sangue seco. O ponto em que ela havia cravado a faca.
Lore segurou espontaneamente o antebraço dele com as duas mãos, o
interrompendo.
— Preciso me desculpar com você.
Ele balançou a cabeça negativamente.
— Lore, sério…
Ela prosseguiu:
— Me desculpe pela maneira que eu te tratei. Por não ter ficado do seu lado
imediatamente na questão de procurar por Ártemis, apesar de saber o motivo
de você querer procurar por ela, e por não cumprir minha promessa de ajudar
você a descobrir o que houve.
— Está tudo bem — disse ele, baixinho.
— Não — interrompeu ela. — Não está. Se tem uma única coisa eu tenho
certeza absoluta na vida, é que você sempre está ao meu lado. Que eu sempre
posso confiar em você.
Ela respirou fundo.
— Você disse algo antes que eu não entendi completamente — disse Lore.
— Não naquela hora. Que o motivo de você precisar saber como matou
Apolo era porque precisava que isso significasse algo. Você precisava que
tivesse um motivo, que não tivesse sido apenas acaso.
Os dedos do novo deus envolveram a pele macia da parte interna do braço
dela, acariciando-a.
— Eu não consegui compreender isso — disse ela. — Eu disse a mim
mesma que não acreditava nas Moiras, mas alguma parte de mim sempre
torceu para que exist… para que fossem a causa do que aconteceu. Sem elas,
minha família inteira terá morrido por consequência de uma escolha que eu
fiz.
— O quê? — sussurrou ele.
— Eu culpei o Ágon. Eu culpei Aristos Cadmou e os Cadmídeos. Mas fui
eu. Foi… — Lore sentiu como se estivesse entalhando as palavras em seu
coração. — Foi minha… foi minha culpa.
— Não — disse ele —, eu sei que pode parecer isso…
Ela balançou a cabeça negativamente, com um nó na garganta.
— Foi minha culpa, Cas. Os meus pais voltaram para casa do Ágon e me
disseram que estavam deixando a caçada. Que deixaríamos a cidade. Eu não
consegui… Eu não consegui entender. Pensei que eram fracos e covardes,
mas…
Castor emitiu um ruído leve, já sabendo aonde a história chegaria.
— Eles sabiam que, quando Aristos ascendeu, puniria meu pai por recusar
me entregar a ele — disse Lore. — E eles sabiam que se ele descobrisse que
ainda não poderia usar a égide sendo um deus, encontraria um jeito de nos
forçar a usá-la para ele ou a entregar por vontade própria. Então eu pensei
que ela não pertencia a ele. Era nossa. Deveria ser nossa. Eu estava bem
convencida de que, se meus pais estivessem com ela de novo, bastaria para
fazê-los ficar.
— Então você realmente a pegou — sussurrou Castor, parcialmente
impressionado com isso. — Você a roubou.
Ela assentiu, agarrando o braço dele. Precisando se segurar em algo para se
manter estável antes que a correnteza de seus arrependimentos e seu luto a
levassem.
— Roubei. Eu era só uma criança idiota e queria muito ser destinada a algo
maior. A algo mais.
— Isso não é idiota — disse ele. — É como eles nos criaram. Não é algo
que se supera facilmente.
Ela assentiu, puxando o ar, trêmula.
— Eu peguei a égide e eu estava tão… eufórica. Tão orgulhosa. — A
lembrança a encheu de vergonha agora. — Mas então comecei a pensar na
quantidade absurda de Cadmídeos em comparação a nós, em que tipo de
punição um roubo traria, na crueldade de Aristos Cadmou com meu pai… Eu
pensei: vou levá-la de volta. Vou devolvê-la e eles não poderão me punir,
nem a meu pai, nem à minha mãe, nem à Damara, nem à Olympia. Mas não
consegui fazer isso. Não consegui devolver nossa herança. Então eu a escondi
no único lugar que eu sabia que eles não pensariam em procurar.
O seu corpo inteiro estava agitado. Ela se forçou a continuar.
— A essa altura, já estava de manhã. O Ágon tinha terminado há horas.
— E então você foi para casa — disse ele suavemente.
— E então eu fui para casa. — Lore balançou a cabeça negativamente. —
Eu… os encontrei.
Os olhos dela arderam. Ela levou uma das mãos a eles.
— Eu achei que os Cadmídeos provavelmente viram a gravação da câmera
de segurança, me identificaram e pediram a permissão do novo deus deles
para matar minha família fora do Ágon. Uma parte de mim sempre soube que
os horários não batiam, mas eu tinha muita certeza de que tinha sido ele…
todos eles. Mas foi ela. Foi ela esse tempo todo.
— O que aconteceu não foi culpa sua — disse Castor, com voz
determinada. — Você era só uma criança. Não tinha como saber.
Lore começou a chorar, deixando as lágrimas saírem de uma vez.
— Eles devem ter sentido tanta dor. As meninas devem ter ficado tão
assustadas… Eu não consigo parar de pensar nisso. Eu me preocupo que um
dia essa seja a única lembrança que eu tenho deles. Que eu vá esquecer seus
rostos, suas vozes…
Tudo o que sua família possuía fora destruído, inclusive as fotografias, os
diários e as heranças. Não havia mais nada.
Castor se inclinou para a frente, envolvendo-a em seus braços. Ela se
entregou ao abraço, ouvindo a chuva tamborilar suavemente na janela.
— Eu passei os últimos dias mentindo para você sobre ter pegado a égide
— disse Lore. — Para todos vocês. Eu disse a mim mesma que, enquanto ela
estivesse escondida, Fúria não ia poderia ficar com ela nem se ele quisesse…
que, se a tivéssemos buscado, eu faria de tudo para garantir que apenas você
visse o poema. Que você seria o vencedor e sairia do Ágon. Mas, no final, eu
quase a entreguei para ela. Por querer tanto ver Fúria morto.
Ela o fitou, e as palavras escapavam dela estremecidas.
— Você acha que eles me odeiam?
Castor balançou a cabeça negativamente, pressionando os lábios na têmpora
de Lore.
— Não — disse ele, com vigor. — Eles amam você. Eles sempre vão amar.
As lágrimas escorreram pela face dela. Ela queria acreditar nele.
— Eu devia ter trazido o escudo para você, mas não consegui. Eu não
consegui encará-la.
A herança que ela queria mais do que qualquer coisa havia se tornado a
arma que destruiu a sua família.
— Nenhum de nós pode mudar o que aconteceu — sussurrou ele. — Queria
que tivesse sido diferente. Quis isso mil vezes nos últimos sete anos. Mas
seus pais queriam deixar o Ágon porque queriam que você estivesse segura.
Que fosse feliz. Você ainda tem essa chance. É tudo o que importa para eles
agora.
Ela o apertou com mais intensidade e tentou não imaginar a sua família ali,
na melancolia cinzenta do Mundo Inferior, eternamente presa devido ao que
ela lhes fizera. Lore sentiu o perfume dele e fechou novamente os olhos,
esperando o aperto doloroso em seu peito e sua cabeça diminuírem.
— Se tem algo que aprendi esta semana, foi isto — disse Castor depois de
um tempo. — Quando não podemos mudar o passado, a única coisa que nos
resta é seguir em frente. Eu preciso fazer o mesmo. Eu preciso parar de
questionar um presente que me permite proteger as pessoas com quem eu
mais me importo.
Lore se afastou.
— Você merece saber o que aconteceu com você.
— Mas para que serve um deus egoísta? — disse ele. — Ou… qualquer
coisa que eu seja.
— Não acho que você poderia ser egoísta nem se tentasse — disse Lore.
— É aí que você se engana — disse ele. — A verdade é que eu também não
fui totalmente honesto com você. Eu não me lembro como Apolo morreu,
mas me lembro de momentos antes disso. Tudo o que houve depois sumiu,
até o momento exato em que eu acordei e percebi que não tinha um corpo e
que a vida que eu conhecia tinha acabado para sempre.
A dor na voz de Castor fez o peito de Lore se apertar.
— De início, eu não o vi. Ele sabia como brincar com as sombras e a luz.
— Castor respirou fundo. — Eu estava de cama. Mal estava vivo àquela
altura. A Casa Tétis estava vazia por causa da caçada e o meu pai tinha saído,
só por um momento, para cumprir uns afazeres. Eu acordei e Apolo estava lá,
parado na ponta da minha cama.
Lore abriu ligeiramente a boca, surpresa.
— Ele parecia… — disse Castor, com sua voz se perdendo. — Ele estava
coberto de sangue. Tinha um ferimento na lateral do corpo.
— O que você fez? — perguntou Lore. — Não tinha como você estar
armado.
Ele balançou a cabeça negativamente, virando as palmas das mãos para
cima a fim de olhá-las.
— Eu não estava. Eu perguntei se ele precisava de ajuda.
Lore o encarou.
— Eu sei. É ridículo só de pensar. Um menino de doze anos, achando que
pode ajudar um deus? — Ele soltou uma risada fraca. — Eu deveria estar
apavorado. Todos aqueles anos fomos ensinados a odiá-los, mas eu o vi e só
pensei: Ele parece doente. Eu vi algo nele, no rosto, nos olhos dele, que eu já
tinha visto tantas vezes no espelho. Ele era aníatos, como eu.
Aníatos. Incurável.
— Ele perguntou qual era meu nome e riu quando eu falei. Era um som
horrível, como uma trombeta. Mas algo me atraía para ele. Era… era como
todas aquelas vezes que falam para você não olhar para o sol, mas algo diz
para tentar, só uma vez — disse Castor. — Ele perguntou por que eu ofereci
ajuda. Eu disse que ele parecia precisar descansar. — Castor finalmente a
fitou. — Isso é tudo que eu lembro. Queria que fosse uma história melhor.
Queria que eu pudesse contar que fui corajoso e forte, que mereci esse poder,
mas não posso, e mesmo sabendo que eu talvez tenha que deixar isso para lá,
essa ideia me mata. Eu faria qualquer coisa para me provar para você.
— Você não tem que me provar nada — disse Lore. — Por que acha isso?
Castor desviou o olhar comum sorriso amarelo em seu rosto. Mas seus
olhos arderam com seu poder e com aquela mesma sensação selvagem e
irrepreensível em que ela estava se afogando…
— Não é óbvio? — perguntou ele baixinho. — Eu queria ser digno de você.
— Digno de mim? — indagou ela. Suas palavras saíram rápidas demais,
desajeitadas demais, rígidas demais, e ela não queria nada daquilo. Não dessa
vez. — Cas.
— Lore. — Ele manteve o mesmo tom suave. — Eu nasci sabendo fazer
três coisas: respirar, sonhar e amar você.
Lore começou a tremer. Sua respiração ficou superficial, tão rápida e leve
quanto seu pulso, que pegava fogo em suas veias.
Como ela diria isso? Como qualquer um diria? Era como desamarrar sua
armadura, soltar a faca e expor cada parte mole de si para o mundo. Mesmo
assim, no momento em que ele falou, Lore reconheceu aquela sensação de
inevitabilidade que atravessou todos os momentos deles juntos, antigos e
recentes. Como ela vinha tropeçando na direção dele, mesmo enquanto ela se
afastava desse vínculo.
Lágrimas gotejavam em seu rosto, fazendo curvas pelas bochechas. Ela
sempre foi aquela garota, de sentimentos insuportáveis e cabelo embaraçado
pelo vento enquanto corria pela cidade. E Castor sempre foi o garoto que
corria ao lado dela.
— Você soube dos pombos na Broadway? — disse ele, suavemente,
tocando uma lágrima com o dedo.
Lore desistiu das palavras e o beijou.
Castor respirou fundo enquanto os lábios dela tocavam os seus, incertos de
início. Lore se afastou, segurando o rosto dele com as duas mãos enquanto o
estudava e a seus olhos brilhantes e ardentes; ela se perguntou se esse seria
seu último beijo ou se isso importava agora que estavam ali, e o vento
crescente cantava pelas ruas da cidade.
Castor envolveu a cintura dela com um braço, cuidadosamente a trazendo
para o calor do seu corpo. Ele abaixou a cabeça e encontrou a boca dela
novamente, tocando os lábios da jovem com seus lábios sorridentes, como se
fosse um desafio.
E quando ela recusou um desafio?
Lore o beijou novamente, acompanhando-o, seguindo o seu ritmo, toque a
toque, até que estivesse perdida nele, subindo e descendo, puxando e
empurrando, avançando e recuando. Ela agiu por instinto no parque, cedendo
à atração por ele, mas agora… agora era para valer.
Lore havia beijado outras pessoas antes. Quase sempre bêbada e no escuro,
deixando o álcool se tornar a barreira entre ela e as emoções que não queria
sentir e as coisas que queria esquecer. O que aconteceu naquela noite na casa
dos Odisseídeos era como uma maré fantasma que fluía e recuava em sua
mente, marcando mais profundamente a areia cada vez que retornava. Às
vezes, ela podia passar semanas sem pensar nisso, às vezes dias, às vezes
apenas algumas horas. Mas então ela vinha de novo: o desprendimento do
corpo que ela batalhou duro para deixar forte, a sufocante sensação de
impotência.
Talvez isso sempre seria parte dela, mas estava aprendendo a passar por
isso e a se ancorar voluntariamente. Nesse momento, com Castor, ela não se
sentia impotente. Sentia-se triunfante. Como se tudo em seu corpo estivesse
repentinamente conectado e eletrificado.
Os lábios dele eram macios enquanto acariciavam os dela, capturando a
última de suas lágrimas, mas foram ficando insistentes, mais fortes, com o
desejo. Não era o suficiente. Ela queria tocá-lo em todos os pontos, queria
derreter no calor da vontade que se acumulava em seu corpo e na terna dor do
amor em seu coração.
Um clangor de trovão finalmente os separou. Lore começou a se afastar,
mas Castor a segurou um pouco mais, passando as mãos nas costas dela,
absorvendo a sensação da pele dela contra a sua.
Ela descansou o rosto na quente curva do ombro de Castor, sentindo seu
perfume. Sua mão percorreu o peito dele até o ponto em que ele levou a
flechada.
— O que vai acontecer com você quando o Ágon acabar? — sussurrou ela.
Lore sentiu o sorriso dele em sua pele.
— Vai sentir minha falta, Áurea?
— Talvez eu goste de ter você por perto — disse ela. — Você é um colírio
para os olhos.
Ela estava tentada a ficar ali para sempre, ouvindo a tempestade,
imaginando uma vida diferente. Mas quando outro trovão soou novamente no
céu, Lore tomou uma decisão.
— Eu vou até O Fenício — disse ela. — Você vem comigo?
Ele ergueu as sobrancelhas. — Aquele restaurante antigo dos Cadmídeos?
Por quê?
— Porque eu deixei uma coisa lá e finalmente chegou a hora de buscar.
QUARENTA E OITO

— NÃO POSSO DIZER QUE NÃO MELHORARAM O LUGAR…


Lore olhou para Castor, se permitindo a uma risadinha.
— Vir aqui faz bater uma nostalgia gigante.
Um dia antes do malfadado encontro entre seu pai e os Cadmídeos, Lore
levou Castor até à área de Murray Hill para espionar O Fenício com ela. Eles
subiram a escada de emergência do edifício do outro lado da rua, exatamente
como fizeram naquela noite. Naquela época, Lore não havia contado a
verdade para Castor sobre como encontrou o lugar, apenas disse que estava
fazendo a própria caçada.
Depois que os Cadmídeos venderam a propriedade, parece que ela virou
uma academia chique, que também fechou. Nos meses que se seguiram,
houve uma infestação de ratos, encheram o local de pesticida e agora ele
estava sendo convertido em um restaurante de pratos mediterrâneos. Um
verdadeiro ciclo de vida em Nova York.
Lore olhou para o rosto de Castor, para seu perfil estonteante realçado pelas
nuvens manchadas pela noite. O clima estava quente devido à umidade que
novamente caía sobre a cidade e causava uma sensação sonolenta. Se não
fosse pelo fedor da água rançosa e da podridão, ela poderia pensar que estava
sonhando.
A inundação se retraía lentamente após a morte da Portadora da Maré. Na
percepção de Lore, tudo estava começando a parecer como uma gravura em
aquarela; bordas suavizadas e manchas de cores mais escuras.
Lore estava de bruços na borda da cobertura, mas se levantou e deu uma
última olhada nos prédios próximos. Era quase meia-noite e o quinto dia do
Ágon estava começando, mas não havia nova-iorquinos transitando, nem
caçadores, ao que parecia. Castor também ficou de pé, soltando um ruído
pensativo. Seu cabelo estava enrolado e brilhante ao ar úmido.
Ele era realmente lindo. Lore se perguntara, desde quando descobriu o que
ele se tornara, o quanto do antigo Castor restava nele, como se os anos
afastados também não a tivessem mudado. Ela perguntou uma vez ao pai se
herdar um poder divino implicava absorver as crenças, a personalidades e a
aparência do deus.
O poder não transforma — disse ele. — Apenas revela quem você é.
Pelo que ela constatou, a imortalidade fazia o tempo voltar para os
caçadores mais velhos que a conquistavam, devolvendo-lhes o auge físico e
lhes concedendo mais poder, mais beleza e mais força. No entanto, não era
capaz de reparar o que estava quebrado ou ausente dentro deles.
O mesmo valia para Castor, mas o poder apenas fortaleceu o que ele tinha
de bom em seu coração. Cada vez que o olhava nos olhos, Lore via todas as
coisas que perdera quando ele saiu de sua vida. Coisas que pensou que nunca
teria novamente.
Coisas que lhe seriam novamente tiradas ao final do Ágon.
Era doloroso demais pensar naquilo, então ela resolveu não pensar.
— Tenho que admitir — disse Castor —, estou um pouco triste que as
coisas não estejam iguais lá.
Por um momento, Lore não soube ao certo do que ele estava falando.
— Da última vez que viemos aqui, nos imaginei mais velhos, entrando de
fininho no bar, debaixo dos narizes de todos os Cadmídeos, e pedindo uma
bebida — disse ele. — Você se lembra da máscara de serpente que eles
penduravam na janela?
— A que supostamente pertenceu a Damen Cadmou? — perguntou Lore. O
primeiro novo Dionísio. — Sim, por quê?
Castor tinha um leve sorriso no rosto quando disse:
— Eu nos imaginei roubando-a para ver se as histórias eram verdadeiras e
se ainda estava manchada na parte de dentro com o sangue dele.
— Eu fui mesmo uma má influência na sua infância — disse Lore.
Castor lhe deu uma piscadela. Lore corou, virando a cabeça para que ele
não visse seu rosto ficando vermelho. Ela se deitou ao lado dele novamente,
passando levemente os dedos onde os dele seguravam o parapeito de
concreto. Castor mudou a mão de posição, enrolando o dedo mindinho no
dela.
— Você pensou mesmo nisso? — perguntou ela, baixinho. — Em irmos
juntos para lá?
Na época, Lore pensou em atear fogo no local e observar os Cadmídeos
fugindo como ratos de seus buracos; o que provavelmente excedia os limites
saudáveis para uma criança de dez anos.
— Foi idiotice, eu sei — disse ele —, levando em conta o pouco de tempo
que me restava. Mas você era como uma força invencível para mim, mesmo
naquela época. Um esconderijo no qual eu podia depositar minhas
esperanças.
A boca de Lore se abriu ligeiramente e seu corpo transbordou de
empolgação e repentina sensibilidade. Ela não sabia o que fazer com aquilo,
então voltou a fitar as ruas.
— Vamos lá, grandão — disse Lore, se levantando para sair da cobertura.
— Eu só espero que ela ainda esteja lá.
Eles desceram pela escada de emergência. Lore se manteve atenta com a
pequena faca em sua mão enquanto atravessavam a rua.
O portão protegendo o estreito caminho até o pátio atrás do velho
restaurante estava bloqueado por sacos de lixo e andaimes caídos. Castor
quebrou o cadeado com facilidade.
A água imunda subiu até seus tornozelos quando seguiram adiante. O fedor
de lixo a fez voltar instantaneamente a esse mesmo lugar, há sete anos.
Lore vasculhou o chão molhado, abrindo caminho entre as pilhas de
materiais de construção no pátio. O terror deu um soco gélido em sua nuca.
Onde está?
— O que foi? — perguntou Castor.
— O bueiro… — disse ela, quando notou que a água estava correndo na
direção da pilha de compensados enfileirados na parede do restaurante. —
Pode me ajudar? Precisamos tirar isso do caminho.
Eles completaram a tarefa rapidamente juntos. Enquanto removiam as
últimas tábuas, a água correu para seus pés, se derramando pela grade
enferrujada de aço que cobria o bueiro.
Quando Lore tentou levantar a tampa, ela nem se mexeu.
— Se você não estiver ocupado demais aí parado e sendo lindo… — disse
ela, gesticulando para Castor.
Ele fingiu arregaçar as mangas. Esse movimento apenas realçou a maneira
como a blusa dele estava justa nas curvas de seus ombros e de seu peito. Um
nó quente se formou no estômago de Lore enquanto ela o observava se
inclinar para agarrar a grade.
Ele grunhiu, firmando os pés no chão. Os músculos de seus braços se
contraíram enquanto ele puxava a grade, até que, finalmente, usou seu poder
para aquecer a ferrugem que, com o tempo, lacrou a tampa. Castor deixou a
grade de lado com um olhar de alívio.
— Como você levantava isso quando era criança?
— Com a força do medo — disse Lore, se agachando ao lado da abertura.
A corrente intensa de água que passou por ela quase a empurrou para dentro.
Ela mudou de posição, sentando na borda para descer até o esgoto.
— Espere — disse Castor, ficando sério de repente. — Você realmente vai
fazer isso?
Não era uma queda muito grande; a escuridão do duto de drenagem parecia
muito mais profunda do que realmente era. A água rugia em volta de Lore,
correndo para ir de encontro ao duto maior, ao qual aquela abertura se
conectava. Estava mais cheio do que da última vez que esteve ali, mas ela
não tinha medo.
Lore olhou para cima, lançando um olhar de tranquilidade para Castor,
visivelmente preocupado.
Em vez de seguir o caminho que a água fazia, Lore foi para o outro lado,
atravessando a cachoeira criada pelo bueiro. Havia um pequeno espaço
parecido com uma alcova, onde o esgoto encontrava a parede do porão do
restaurante. Ela parou, encarando o saco de lixo preto encostado ali,
exatamente onde o havia deixado.
Houve um som parecido com sussurros, mil vozes sedosas falando uma por
cima da outra, instigando-a a seguir adiante.
Lore seguiu, e o mundo ficou em silêncio. A energia pareceu queimar o
saco de lixo, fazendo os dedos dela faiscarem onde o tocava.
— Lore? — chamou Castor.
Ela se forçou a sair do transe.
— Vou passá-la para você.
Lore lutou contra a água corrente para erguê-la até onde Castor pudesse
alcançar. Ele arquejou levemente de surpresa quando seus braços ficaram
rijos e ele quase caiu dentro do bueiro.
— O que você colocou junto com ela aqui dentro? — perguntou ele, tendo
dificuldade para tirar o saco completamente da abertura.
— Muito engraçado — disse Lore, aceitando a ajuda de Castor quando ele a
puxou também.
Ela sentou-se por um momento, tentando acalmar a respiração.
— Estou falando sério — disse Castor, lançando um olhar preocupado para
o escudo. — Deve pesar quase uns quinhentos quilos. Como você a levantou?
Lore lançou um olhar de descrença a ele, estendendo a mão para desfazer o
nó do saco de lixo. Ela abaixou o plástico, revelando a curvatura do escudo
redondo e o padrão de ouro gravado no couro.
Então, respirando fundo, abriu o saco até que o rosto feroz de Medusa os
encarasse do centro da égide.
Eu me lembro de você — ela parecia dizer.
Na primeira vez em que pôs os olhos na égide, Lore vira um monstro
transformado em um troféu divino. Agora, enquanto Lore fitava o olhar cego
de Medusa, apenas a via encará-la de volta.
Castor parecia não estar respirando.
— Você pôs o escudo de Zeus em um saco de lixo.
— E escondi em um bueiro de escoamento de chuva — confirmou Lore.
— Você… — ele começou, mas as palavras foram substituídas por: —
Como?
— Eu falei para você — disse Lore. — Deixei a égide no único lugar em
que eles nunca pensariam em procurar… onde eu a peguei. Bem, só que do
outro lado da parede.
Lore tocou a borda da égide, sentindo aquela mesma sensação inebriante
subindo por seus dedos, até sua mão, até seu coração.
A égide era dela. Como a usaria de agora em diante era decisão dela,
somente dela.
Castor não disse nada, mas Lore sentiu o olhar dele sobre ela o tempo todo.
Ela virou o escudo de modo que sua curvatura interna estivesse voltada para
eles. Tateando pela borda couro macio e gasto que revestia o interior, ela
encontrou uma pequena lingueta e a puxou. Ali, bem como Portadora da
Maré informara, estava o poema, escrito na língua antiga.
Castor suspirou de surpresa ao vê-lo, se aproximando para ler por cima do
ombro de Lore.
— É mais ou menos a mesma coisa… — disse ela.
Com exceção dos últimos versos.
— Assim será até o dia — Lore leu, traduzindo por alto — em que restará
apenas um, refeito por inteiro, que me evocará com a fumaça dos altares que
serão construídos pela temerária e derradeira conquista. — Ela fitou o rosto
pensativo de Castor. — O que você acha que quer dizer?
— Não tenho ideia — disse Castor. — Mas não gosto nada de como soa a
temerária e derradeira conquista.
— Me evocará… — Lore leu novamente. — Atena disse que a égide podia
ser usada para conjurar raios. Será que Fúria quer garantir suas chances
quanto a isso de evocar Zeus e pretende usar o escudo com a intenção de
chamá-lo para testemunhar o que ele está planejando?
— Talvez — disse Castor. E respirou fundo.
— O que foi? — perguntou Lore a ele.
— Eu não sei… Isso me deixou com mais dúvidas do que eu tinha antes.
Ainda não sei se é possível que mais de um de nós fique vivo — disse Castor.
— E como um deus pode ser “refeito por inteiro” se eles não têm acesso aos
plenos poderes mesmo na forma divina? E essa ação, o que quer que seja, é
algo que somente um deus pode realizar para vencer o Ágon? Ou todos os
deuses que sobreviverem têm que executar isso individualmente para
libertarem a si mesmos e os caçadores do Ágon?
Essa última ideia despertou em Lore uma esperança ardente que ela mesma
achava que não mais seria capaz de sentir. Todos eles estariam livres.
Atena vira nela o desejo secreto de ser algo mais. Lore apenas se enganara
quando pensou que seria capaz de se afastar dessa semana e voltar para a vida
que criou. O Ágon era um vício e apenas seu fim verdadeiro o expurgaria de
Lore — não apenas dela, mas de todos os outros que lutaram e mataram por
séculos por esse mesmo algo mais.
E mesmo se Castor fosse forçado a ir para o reino dos deuses e se separasse
dela novamente, estaria vivo. A dor de saber que ganharia e perderia fez Lore
se sentir como se arrancasse os próprios pulmões do peito.
Com o tempo, no entanto, ela poderia aceitar aquilo. Poderia ficar satisfeita
sabendo que ele estaria em algum lugar…
Bom, satisfeita, talvez não.
— Nesse caso, acho que Zeus teria sido um pouco mais específico —
resmungou Lore.
— Não se o Ágon tinha a intenção de ser mais do que apenas um castigo…
— disse Castor, divagando. — Esquece. Eu não tenho ideia do que estou
falando. Vamos levar isso de volta para Van e Miles. Tenho certeza de que os
dois vão pensar em algo.
Ela assentiu.
— Sabe — disse Lore, quando algo mais lhe ocorreu —, Atena ficou
pensando se você é um deus verdadeiro ou outro, disfarçado… mas isso
significaria que você, de algum modo, pegou emprestado o poder de Apolo;
ele não teria que estar vivo para que isso fosse verdade?
— Ártemis disse algo parecido — disse Castor. — Que eu tenho o poder
dele, mas que eu sou diferente… No entanto, os limites que elas têm se
aplicam a mim, mesmo na minha forma totalmente imortal. Eu não tenho
todas as habilidades dele, apenas as que já usei.
Ela o fitou, pensativa.
— Você acha que Apolo descobriu o significado disso tudo e fugiu? Talvez
ele tenha precisado mesmo da sua ajuda de alguma forma e você não
consegue se lembrar disso porque Zeus quer que todos os deuses descubram
por si mesmos.
Castor olhou para as próprias mãos.
— Mas então por que eu tenho o poder dele? Atena não estava errada.
Quando eu o conjuro, parece que… eu ponho a mão em um rio morno e puxo
ele dali. Ou… é como se tivesse vela dentro de mim sempre, mas eu só posso
levar fogo a ela se a tocar. Faz sentido?
— Sim — disse ela, tranquilizando Castor. — A boa notícia é que não
temos que descobrir tudo agora. Acho que temos que nos concentrar em
impedir o que Fúria está planejando. Cas, ele ainda precisa morrer. Não
podemos deixá-lo recuperar a imortalidade e ir atrás de Van, Miles ou
qualquer um dos outros.
— Atena também continua sendo um problema — disse Castor. — Ela não
vai hesitar em punir você e os outros.
Lore esfregou a testa, tentando não pensar em sua família. No que a deusa
fizera com eles.
— Eu posso fazer isso — disse Castor.
— Cas… — disse ela.
— Eu posso matá-los — insistiu ele. — Desse jeito, nenhum mortal poderá
tomar os seus poderes. E se eu realmente não posso morrer…
— Por favor, não vamos testar essa teoria de novo, ok? — pediu Lore.
— Não tem outra alternativa — disse ele. — Quando eles estiverem mortos
e a semana terminar, nós teremos sete anos para descobrir o enigma da égide
antes que a próxima caçada comece.
E sete anos para descobrir como perder você para sempre — pensou Lore,
com profunda tristeza.
Castor pegou a mão dela e a apertou.
— Atena deu alguma pista do que pretendia fazer agora?
Ela balançou a cabeça negativamente.
— Ela nem sabe que eu estou viva.
Houve o estrondo de um trovão, estremecendo os edifícios ao redor. Um
raio traçou um caminho em meio às nuvens, iluminando o rosto de Castor.
Lore pegou a égide, passando o braço na alça de couro. De algum modo, ela
sabia o que fazer.
Ela bateu com o punho contra a frente do escudo e o rugido que ele emanou
era mais profundo que o trovão — era primordial.
Ele subiu pelo ar, furioso, retumbando pelas ruas silenciosas. Ela bateu nele
de novo, e de novo, até que seus ouvidos zumbissem e ela ouvisse a
conjuração ecoar em edifícios distantes. O poder fulgurava nela. Ela se sentiu
invencível.
Castor girava no próprio eixo, como se o barulho fosse um monstro a ser
perseguido. Ficou pálido ao fitar novamente a égide, se afastando. Lore a
trouxe para mais perto do corpo.
Pare — pensou ela. — Eu não quero que ele tenha medo nunca.
Sim — uma voz parecia sussurrar de volta. — Ele não é nosso inimigo.
Ele esfregou a mão no peito enquanto a encarava novamente. Dessa vez,
sua postura e expressão relaxaram.
Obrigada — pensou Lore. — Uma última coisa.
Ela pegou sua pequena faca, fazendo um corte no escudo. Pelo céu escuro,
riscou o clarão branco de um raio.
— Agora ela sabe — disse Lore.
QUARENTA E NOVE

MILES ESTAVA ESPERANDO POR ELES NO TOPO DA ESCADA QUANDO VOLTARAM


para o escritório, girando o celular para cima e para baixo nas mãos. Ele
estava tão perdido em seus pensamentos que levou um segundo para perceber
a presença deles.
No segundo que ele levou para ficar de pé em um salto, Lore já havia
subido correndo os degraus entre eles, quase derrubando Miles quando jogou
seus braços em volta dele.
Miles soltou uma risada surpresa e sem fôlego antes de apertar muito a
amiga.
— Você está bem? — indagou ela, quase chorando de alívio por vê-lo.
— Se eu estou bem? — repetiu ele, se soltando do abraço para dar uma boa
olhada nela. Os olhos de Lore se fixaram em um hematoma brutal na testa
dele.
— Sinto muito pelo que aconteceu — disse ela. — Com o encontro, com
Ártemis…
— Eu quis ir — respondeu Miles. Ele fitou Castor de relance com uma
pergunta silenciosa em sua expressão.
— Bem onde você disse que ela estaria. — confirmou Castor.— Onde o
app disse que estaria — disse Miles, com tristeza.
Lore o abraçou. A nova pele sobre suas costelas repuxou com o movimento,
mas ela aguentou, se agarrando a Miles da mesma forma que ele se agarrava
a ela.
— Obrigada — disse ela.
— Obrigado, tecnologia e a mágica do sinal de celular — disse Miles. —
Tudo que eu fiz foi ficar preocupado.
— Você fez mais do que isso — disse Lore.
— Tem razão — disse ele. — Eu também comi um pacote inteiro de
biscoito por causa do estresse, e essa era para ser a nossa refeição do dia. Van
teve que sair e tentar achar mais comida e água.
— Estou falando sério — disse Lore.
— Não, é verdade — disse ele. — Minha mãe me ligou, também. Muito.
Então, foi ótimo. Ela estava prestes a entrar no carro e vir dirigindo até aqui.
Eu falei para ela não vir, mas ela se recusou a desligar até que eu mandasse
uma foto no maior estilo refém para provar que estava bem.
Miles passou a mão em seu cabelo escuro. Uma barba bem rala começava a
crescer e havia hematomas escuros sob seus olhos. Mas quando ele sorriu,
todo a estafa e os danos da semana pareceram desaparecer.
— Eu tenho algumas roupas para você — disse ele, guiando-os até o
escritório vazio.
Van e Miles haviam redecorado um pouco o local nas últimas horas.
Sacolas de suprimentos estavam em pilhas dispersas nas lonas de plástico que
cobriam o chão. Miles foi até uma delas, catando algumas roupas.
— Van não achou que seria seguro fazer uma segunda viagem à casa e a
variedade de modelitos no abrigo não era muito boa — disse Miles,
entregando-a as roupas. — Achei que você gostaria de uma calça jeans que
realmente coubesse em você, mas tenho que avisar que é um look de lavagem
vintage, não vê sabão há umas duas coleções.
Lore desdobrou a calça jeans.
— Por que e como você sabe o meu tamanho de calças?
— Por que e como você sempre consegue deixar as suas roupas na nossa
máquina de lavar e eu que tenho que secar e dobrar tudo?
Ele pegou um top esportivo, uma camiseta preta com uma logomarca
misteriosa desbotada e meias limpas.
Lore sorriu.
— Obrigada.
— Sem problemas — disse ele. — Esse seu estilo “não estou nem aí” é bem
fácil de encontrar.
Havia algo no bolso da camiseta. Lore enfiou a mão nele, apenas para se
ver encarando o colar de ouro que Hermes dera a ela. O amuleto de pena
estava frio ao toque.
Lore passou levemente o dedo por cima dele. Os olhos dos deuses estão
sobre você.
— Eu o achei na primeira vez que passamos em casa. Como você podia
querer ficar com ele, trouxe comigo — disse Miles, em voz baixa.
Lore não conseguia nem falar. Ela assentiu, abrindo o fecho para colocá-lo.
Qualquer poder que ele tivera já perdera o efeito, deixando para trás apenas o
leve peso e o significado que a fez se apegar nele. E isso nunca foi tão
importante quanto agora.
Não estou perdida. Estou livre.
Castor ficou imóvel ao seu lado. Lore acompanhou seu olhar até a porta.
Iro estava ali, ofegante. Não usava mais o manto preto de caçador, mas as
roupas típicas que vestiam por baixo deles: blusa preta, calças largas, colete à
prova de balas.
Ela fitou Lore com um olhar de súplica, mas não disse nada.
Lore se colocou à frente de Castor.
— O que você está fazendo aqui?
— Ela está ajudando a gente — disse Miles.
— Não. Não está — disse Lore, com frieza.
A garota se encolheu, e seus olhos foram em disparada até Castor.
— Eu… eu sei que cometi um erro. O que aconteceu foi um erro. Eu…
todos nós… desejamos repará-lo. Queremos lutar. Queremos impedir Fúria.
Lore a fitou com descrença.
— É verdade — disse Miles. — Iro nos achou quando estávamos indo nos
encontrar com os Aquilídeos. Eles dividiram suprimentos e informações.
Lore abriu a boca para falar, mas a voz baixa de Castor a interrompeu.
— Você está sendo sincera? — questionou ele. — O que mudou?
— Eu mudei — disse Iro. — Alguém me disse que havia um mundo melhor
para escolher, e eu sei que ele vai desaparecer assim que o plano de Fúria se
concretizar. Se não puder acreditar em mais nada, acredite que eu não vou
permitir que o assassino do meu pai se sagre vencedor do Ágon.
Castor pareceu considerar cuidadosamente o argumento e as palavras dela
antes de dizer:
— Está bem.
Lore girou na direção dele.
— O quê?
— Eu aceito as suas desculpas — disse ele à Iro. — Obrigado por ajudar os
Aquilídeos.
Lore soprou uma mecha de cabelo para longe do rosto.
— É por isso que eu sempre disse para você ser rancoroso quando éramos
crianças. Mas você sempre foi muito bonzinho. — Para Iro, ela disse: — Se
esse for outro truque…
— Não é nenhum truque — disse Iro. — Eu faço um juramento a você
agora…
Lore ergueu a mão.
— Pode parar. Não aguento mais juramentos. Me contento com a sua
palavra.
Passos pesados subiram pela escada atrás de Iro. Todos se voltaram para
ver um Van ligeiramente sem fôlego se apoiando no corrimão. Uma sacola de
mercado, cheia de garrafas d’água e comida pré-cozida embalada, estava
pendurada em seu pulso.
— Você está bem? — perguntou Miles.
Van levantou a mão e a agitou como se dissesse que sim. Ele virou a cabeça
para encarar a escada, mas não conseguiu evitar que Lore reparasse em seus
lábios contraídos e em seus olhos bem apertados devido ao alívio que sentia,
tão forte que chegava a doer.
Lore percebeu que esta era sua família agora. E ela estava bem na sua
frente, esperando para ser vista por todo o tempo em que ela ficou
perseguindo o passado.
Quando Van os fitou novamente, notou que faltava alguém.
— Onde está Atena?
Miles se sacudiu, como se não tivesse percebido.
— Espera… Eu pensei que ela estava só… na verdade, nem sei o que eu
pensei.
Lore respirou fundo.
— Preciso contar a vocês tudo o que aconteceu — disse ela, encostando a
égide coberta em uma parede próxima. — E depois precisamos pensar em um
plano.

— Bem — disse Van, elegantemente enquanto vasculhava uma das sacolas


de suprimento. — Caramba.
Levou um tempo até que alguém mais falasse.
— Gil… era Hermes… — disse Miles, parecendo que estava prestes a
desmaiar na cadeira. Lore sentou-se ao seu lado no chão e pôs a mão em sua
perna para firmá-lo. — Um deus… lavou as minhas inomináveis… Ele foi no
Family Weekend da Columbia comigo… Nós comemos pizza juntos. — Ele
sussurrou a palavra de novo, incrédulo. — Pizza.
— É — disse Lore suavemente. — Comemos.
— Por que ele me deu abrigo? — disse Miles. — Por que me ofereceu um
lugar para morar? Deve ter sido para ajudar a ocultar você, eu só não sei
como.
— Talvez ele apenas gostasse de você — disse Lore. Talvez Hermes tenha
pensado que ela precisaria de alguém como Miles.
— Não me surpreende você ter ficado tão chateada — disse Castor, com a
voz tensa. — Eu sabia que tinha sido algo horrível, mas não sei se
conseguiria imaginar isso.
— E Atena… — Van balançou a cabeça negativamente. — Eu devia ter
previsto. Eu devia ter acreditado nas histórias sobre ela, mesmo com ela
trabalhando conosco.
Ele abriu um pequeno pacote branco, em seguida foi até onde Miles estava
sentado e cuidadosamente tirou o cabelo dele da testa para que pudesse
colocar uma bolsa de gelo azul-claro sobre seu hematoma.
Miles o fitou, com os olhos arregalados. Van, como se percebesse o que
havia feito, se afastou, dando rapidamente o pacote a ele.
— Aqui — disse ele. — Eu… está bem feio.
— Onde você achou um pacote de gelo em uma cidade sem energia? —
perguntou Miles, com voz baixa.
— Vejo que ainda duvida de minhas habilidades — disse Van. — Eu
sempre consigo o que eu quero.
— Venha cá, me deixe curar você — disse Castor, se levantando.
Miles dispensou a ajuda, segurando o pacote de gelo no hematoma.
— Eu devia mesmo ter descoberto — disse Van, concluindo a linha de
pensamento anterior. — Se não o papel dela em si, então pelo menos que
Fúria sabia o conteúdo do poema.
— Ele não deu nenhum sinal de que sabia do conteúdo dele — disse Iro à
Lore, se desculpando. — Eu não esconderia isso de você.
— Eu sei. Se é culpa de alguém, é minha — disse Lore a todos. — Fui eu
quem trouxe todos vocês para dentro disso. Fui eu quem a deixou se
aproximar.
— Você está bem, mesmo? — perguntou Miles, estendendo a mão para
segurar a de Lore.
— Já estive melhor — respondeu ela. — Mas Castor me achou a tempo.
Van pressionou o celular na testa, pensando.
— E os novos versos… — disse ele, divagando novamente em
pensamentos.
— E você pegou mesmo a égide — disse Iro, com um olhar suave. — Por
todo esse tempo, você nunca disse nada… nem quando falávamos dela no
treinamento.
— Eu não me permiti pensar nisso — disse Lore. — Muito menos falar a
respeito.
— Onde ela está agora? — perguntou Iro.
Lore se levantou, alongando a rigidez nas juntas enquanto ia buscá-la. Não
se importou com o nó dessa vez. Rasgou o saco de lixo, chutando os pedaços
para longe enquanto segurava a égide para mostrar para eles.
O celular caiu da mão de Van.
— Eu sei — disse Castor.
Van e Iro se aproximaram lentamente do escudo, atordoados. Iro levou a
mão à boca, se agachando na frente dele.
— Isso é… — disse Van.
— Sim — respondeu Lore.
— Levada para a Guerra de Troia…
— Sim.
— Nascida do martelo de Hefesto…
— Sim
— Ostentando o Gorgonião…
— Não é melhor se sentar? — perguntou Lore, com tom sério. Van esticou
a mão na direção da égide e a puxou de volta antes que os dedos tocassem
Medusa. Como se ela pudesse morder. Mas nenhum deles estava com medo.
Lore se questionou se teria sido o fato de ela estar segurando o escudo que
instigava medo nos outros e se ela precisava querer que esse efeito
acontecesse.
— Isso é tão legal — disse Miles, se apoiando em um joelho. Ele olhou
para Lore. — Posso tirar uma foto com ela?
— O quê? — disse Lore, a recolhendo. — Não!
— Foi você quem fez aquilo há mais ou menos uma hora atrás? —
perguntou Iro. — Parecia um trovão no começo, mas…
Lore assentiu.
— Eu queria que Atena soubesse que eu estava viva e que eu estava com
ela. Eu posso não saber o que ela está planejando, mas pelo menos isso vai
ajudar a atraí-la.
— Nós precisamos atraí-la? — perguntou Miles, pesaroso.
— Precisamos — confirmou Lore. — Se vamos acabar com o Ágon, ela
não pode sobreviver, senão não haverá lugar no mundo onde estaríamos a
salvo dela.
O novo deus emitiu um ruído, frustrado.
— Estamos deixando alguma coisa passar aqui.
— É claro que estamos deixando alguma coisa passar — disse Van. —
Você não se lembra de como se tornou um deus, mas aparentemente não
pode morrer. Por que isso?
Castor havia contado a verdade sobre sua ascensão para os outros, mas a
história só gerou mais perguntas.
— Talvez nem tudo esteja conectado — apontou Miles. — Talvez seja só o
poder de cura de Apolo agindo tão rápido que nenhum ferimento consegue
matar Castor.
— Se fosse o caso, então eu duvido que o original tivesse morrido — disse
Lore. — Ele foi atingido no coração.
Iro fitou Castor.
— Desculpe.
Castor deu de ombros.
— E se Fúria está levando os novos versos ao pé da letra? — disse Van. —
E se, em vez de construir um templo ou chamar adoradores para honrar Zeus,
ele está planejando um sacrifício cerimonial de animais ou alguma outra
coisa em nome de Zeus? Temerária e derradeira conquista … conquista…
Sabemos onde ele está agora?
— Ele voltou para o Waldorf Astoria — disse Iro, levando a mão ao rosto.
— Quase me esqueci de contar para vocês, e é o motivo de eu ter vindo aqui.
Nós temos olhos por ali e eles reportaram que todos os caçadores Cadmídeos
retornaram. Eu posso apenas presumir que ele também tenha feito isso.
— Ele estava no Waldorf Astoria? — perguntou Lore, olhando para ambos.
— Eu perdi alguma coisa?
— Ah, sim… na verdade, perdeu — disse Miles. — Foi o que a fonte nos
Cadmídeos me contou no último encontro. O hotel está fechado para
reformas há anos e não está previsto a abrir por mais alguns meses. Os
Cadmídeos pagaram uma fortuna para os donos pararem a reforma essa
semana. Estão usando as suítes da cobertura.
O famoso hotel em reformas no lado leste do centro da cidade lhe parecia
uma escolha estranha, além de estar vazio, mas Lore deixou isso passar.
— Mas ele chegou a sair em algum momento?
— Todos os Cadmídeos evacuaram durante a inundação — explicou Van.
— É curioso que tenham voltado…
— Ele só voltaria se precisasse voltar — disse Miles. — Não acham? Se
Van estiver certo, talvez seja lá que estão construindo o altar de sacrifício.
Van esfregou o queixo.
— Por que ele precisaria que a Portadora da Maré causasse a inundação,
então? Ele podia simplesmente tirar as pessoas das ruas… ah.
— Ah o quê? — pressionou Lore. — Ah, não?
— Eles não irão atacar o Waldorf Astoria — disse Van. — E fitou Miles.
— O hotel está vazio, com exceção dos caçadores. Mas o que houve quando
ocorreu a inundação?
— Ela acabou com o abastecimento de água, com nossa eletricidade e com
todo sistema de transporte. — Miles se levantou. — Ah.
Van assentiu.
— Ela forçou as pessoas a se refugiarem em abrigos. Este é o motivo:
garantir que pessoas… muitas pessoas… estivessem reunidas em poucos
lugares na cidade.
— Você acha que eles estão planejando um sacrifício humano? —
perguntou Iro, horrorizada. — Sabendo que é proibido?
— Temerária e derradeira conquista — repetiu Van. — É uma conquista
daqueles que adoram a deuses rivais… pelo menos seria, aos olhos de Fúria.
— Mas em qualquer dia da semana tem milhares de pessoas nos prédios
comerciais, nas escolas, nos trens e nas estações de metrô — disse Lore. —
Por que ele precisaria que a Portadora da Maré causasse a inundação?
— Para tornar os serviços da cidade inúteis, e manter todo mundo
preocupado com os esforços emergenciais — disse Miles — Para se
locomover pela cidade sem ser notado devido à inundação e às suas
consequências. Todos que não foram subornados por eles estarão
extremamente ocupados garantindo a segurança da cidade.
— Onde ficam os maiores abrigos? — perguntou Iro.
— Muitos deles também foram afetados — disse Miles. — Eles estão
usando grandes estruturas como o Madison Square Garden, o Central Park, a
Grand Central Station…
Ele ficou muito pálido e em seguida olhou as horas no celular.
— Miles? — questionou Lore.
— Eu sei por que eles escolheram o Waldorf Astoria — disse ele. — E se
eu estiver certo, não temos até o fim do Ágon, no domingo, à meia-noite.
Temos até amanhã para impedi-los.
CINQUENTA

— QUER DIZER… — PROSSEGUIU MILES, ASSIMILANDO OS ROSTOS AO SEU


redor. — Eu posso estar errado. Eu espero estar errado.
— Vamos partir do pressuposto de que você não está — disse Van,
guiando-o novamente a uma cadeira.
— Eles vão evacuar as pessoas na Grand Central e nos outros abrigos
temporários a partir de amanhã, sexta à noite, e vão levar todo mundo para
um abrigo mais bem equipado no Queens — disse Miles, soando cada vez
mais perturbado. — Mas deixando a reforma de lado, definitivamente não é
uma coincidência ele ter escolhido aquele hotel em particular.
— O que faz você dizer isso? — perguntou Lore.
— Já ouviu falar da Linha 61? — disse ele, pegando o celular e fazendo
uma pesquisa rápida. — É uma linha do metrô supostamente “secreta” que
passa debaixo do hotel, construída para o presidente Roosevelt… O Franklin
Delano, não o que parecia um ursinho de pelúcia… para que ele pudesse se
locomover entre a Grand Central Station e o Waldorf Astoria sem que o
público visse que ele não podia andar. Eu fiz uma visita guiada com o meu
chefe do estágio uma vez… mas a maioria das pessoas não faz ideia de que
ela ainda existe.
Miles entregou o celular para Lore. Ela foi arrastando o artigo tela abaixo
enquanto Castor o lia por cima de seu ombro.
— Parece que o presidente entrava em seu carro blindado e eles iam
dirigindo até um elevador, que dava no estacionamento do Waldorf Astoria
— disse Castor. — O que quer que os Cadmídeos tenham levado da Casa Rio
pode estar escondido ali, na linha.
— Mas eu pensei que os túneis do metrô estavam inundados — disse Lore.
— Alguns estão — disse Miles. — Posso ver se tem alguma atualização
sobre isso no trabalho, mas eles talvez tenham o próprio sistema motorizado
para se locomoverem sem precisarem usar os trilhos em si. Mas o que vocês
acham que seja? Uma bomba?
— Um sacrifício aos deuses geralmente é feito com fogo — explicou Lore
a Miles. — Para que a fumaça suba até onde se acredita que eles moram, no
céu. Se não for uma bomba, provavelmente será outro tipo de dispositivo
incendiário. O alvo deles seria a Grand Central Station?
— Eles podem se conectar a uma variedade de linhas de metrô por lá —
disse Miles. — Mas com certeza teriam que passar por ela.
— Vocês estão se esquecendo de alguns passos — disse Iro. — Para que
seja um sacrifício adequado, teria que haver libações. A garganta de um
animal seria cortada… haveria orações.
— Acho que ele provavelmente está ignorando a parte do adequado —
disse Lore.
Iro assentiu com a cabeça.
— Verdade.
— Tem outro problema — disse Castor. — Mesmo que estejamos certos,
como vamos reduzir a janela de tempo do ataque?
— Deixe isso com os Odisseídeos — disse Iro. — Vamos descobrir quando
eles planejam atacar e cortaremos seus joelhos.
— Os Aquilídeos restantes podem ajudar em qualquer ataque ao Waldorf
Astoria — disse Van. — Ainda estaremos em menor número, mas, se
conseguirmos pegá-los desprevenidos e antecipar seus planos, o elemento
surpresa nivelará um pouco o jogo.
— Está bem, está bem — disse Castor. — Mas ainda teremos que enfrentar
Fúria. E Atena.
— Essa é a parte simples — disse Lore. — Tenho algo que os dois querem,
e agora ambos sabem disso.
Castor suspirou.
— Você quer usar a égide como isca?
— Eu não sei… — Van balançou a cabeça. — Fúria precisa dela para
alguma coisa. Será que é mesmo sensato levá-la até ele? Se ele achar um
jeito de forçar você a usá-la…
— Isso não vai acontecer — disse Iro, com firmeza.
Lore a fitou, surpresa pela demonstração de fé da velha amiga.
— Não vai — insistiu Iro.
— Não vai — concordou Lore. — Tanto ele quanto Atena estão se iludindo
se acham que podem usá-la na forma divina, tenho certeza. E eu nunca a
entregarei voluntariamente.
— Já não tentamos esse plano algumas vezes? — perguntou Castor,
gentilmente. — O que faz você pensar que dessa vez vai ser diferente?
— A égide — disse Lore. — É mais do que montar uma armadilha… é
sobre jogar um contra o outro. Fúria é obcecado por ela, e Atena nunca vai
deixar que ele a possua quando está tão perto de tê-la para si mesma. Cas, se
nós conseguirmos fazer um lutar contra o outro, vamos ter que lidar apenas
com quem sair vivo do combate.
Van pareceu repassar o cenário mentalmente, mas não o rejeitou de
imediato. Castor estava com seu costumeiro olhar de preocupação.
— Mesmo assim, há muitos talvez e incertezas — disse Van. — A essa
altura, é provavelmente o melhor em que vamos pensar. Nosso objetivo é
garantir que o dispositivo nunca seja ativado e que Castor seja o último deus.
— Isso não vai bastar para acabar inteiramente com o Ágon — lembrou
Miles. — E ainda não sabemos o que os novos versos querem dizer.
— Eu sei — disse Lore. O pensamento a encheu com uma frustração
amarga, mas o que eles poderiam fazer? Eles estavam sem a única coisa que
mais precisavam: tempo. — Se fizermos vocês sobreviverem a hoje, amanhã
e sábado, então vamos ter sete anos para descobrir antes que outro Ágon
comece.
Iro levantou da cadeira.
— Se vamos atacar amanhã, preciso ser rápida e descobrir o horário dos
planos deles.
— E como exatamente você vai fazer isso? — perguntou Miles.
Iro arqueou as sobrancelhas.
— Eu preciso apenas encontrar um dos caçadores de Fúria que saiba desses
detalhes. Eu vou gostar de… discutir isso com quantos forem necessários até
descobrir.
— Me mande uma mensagem quando descobrir algo — disse Lore.
— Farei isso — disse Iro. — Quase esqueci…
Ela foi até as escadas e pegou uma pesada mala de mão preta que deixara
ali quando chegou.
— Pensei que vocês pudessem precisar de armas, com tudo o que
aconteceu.
Iro as tirou dos embrulhos, colocando-as no chão.
Castor desembainhou a espada que Van entregou a ele, inspecionando-a.
— Você se lembra de como usar essa coisa? — perguntou Lore.
Ele deu um corte no ar, admirando o brilho da imaculada lâmina de prata.
— Acho que ainda tenho uma ideia.
Era uma xiphos, a curta lâmina reta que os antigos tradicionalmente
escolhiam. Todavia, os ferreiros das linhagens haviam substituído o ferro e o
bronze há muito tempo pelo aço, que era superior. Videiras prateadas
decoravam seu cabo: aquele pequeno detalhe de maestria era a assinatura dos
ferreiros deles.
— Elas vieram dos seus estoques? — perguntou Lore, surpresa.
Iro assentiu.
— Eu não lutaria usando o aço de nossos inimigos. Não confiaria nele.
Iro entregou para Lore a sua própria xiphos, a bainha, assim como a de
Castor, estava presa a um talabarte, uma tira longa de couro que passava do
ombro ao quadril, permitindo que a lâmina pendesse ali. A espada era
desprovida de qualquer adorno, mas Lore gostou de senti-la na mão.
Quando Iro se levantou para ir embora, Lore a seguiu pelas escadas.
— Você tem certeza de que vai ficar bem? — perguntou Lore.
Iro assentiu, parecendo lutar com os próprios pensamentos por um
momento.
— Me refiro a tudo — disse Lore. — Isso não é apenas sobre impedir
Fúria. É sobre acabar com o Ágon e a destruição de tudo que você conhece.
De tudo que você quis.
Todas as coisas que ela, também, teria que enfrentar.
— Nós todos votamos se queríamos ajudar ou não vocês, e foi unânime —
disse Iro. — O Ágon nunca foi um mestre gentil, mas esta caçada quase nos
destruiu. Tudo tem que mudar agora. Fúria rasgou todas as regras e crenças
que carregávamos conosco pelos séculos, tudo isso para revelar a podridão
que sempre esteve ali, fora de vista. Se não acabarmos com o Ágon, ele
acabará conosco.
Lore assentiu.
— Sim. Exatamente.
— Eu não contei isso para você antes — disse Iro quando chegou à porta
que dava para a rua —, quando você me perguntou sobre ela. Minha mãe está
viva, afinal.
— O quê? — sussurrou Lore. — Você tem certeza?
Iro assentiu.
— Ela me escreveu no começo do Ágon. Na carta, me disse que não
conseguia viver no nosso mundo, que ele a teria estrangulado — disse Iro,
suavemente. — Ela sabia que não podia me levar embora sem que os
Odisseídeos fossem atrás de nós duas. Eu acho que não entendi como me
sentia sobre isso até esta semana, talvez não tenha entendido até você nos
contar sobre sua família querer a mesma coisa. Para mim, ela não havia
alcançado a liberdade, mas a desonra. Como eu pude pensar isso sobre minha
própria mãe?
Lore soltou um leve suspiro.
— Entendo isso muito bem.
— Tudo o que posso fazer agora — disse Iro — é dizer que eu sinto muito
por tudo que aconteceu e que estarei lá quando me chamar.
Lore respirou fundo.
— As outras linhagens não estão dispostas a abrir mão do Ágon.
— Então isso é uma coisa boa — disse Iro, com um ligeiro sorriso —, nós
duas nunca tivemos medo de uma luta.
Ela abriu a porta e deu meia-volta.
— Por sinal, a espada tem um nome. Mákhomai.
Eu faço a guerra.
Lore sorriu.
CINQUENTA E UM

LORE DORMIU E SONHOU COM O MUNDO CINZENTO DA MORTE.


Um rio seguia lentamente, tão estagnado quanto as águas da inundação se
tornaram. A memória se mesclou ao devaneio quando ela caminhava sobre o
cascalho que se acumulou nas suas margens. O ar gelou em seus pulmões e
atacou seus braços e pernas desnudos. Uma mudança de corrente de ar, do
tipo que os caçadores se aproveitavam para espalhar o fogo quando queimam
seus mortos, arranhava sua pele.
Ela ouviu uma voz suave, um sussurro de seu nome, e olhou para cima. Do
outro lado das águas do rio estavam sete formas douradas, e suas silhuetas
brilhavam na paisagem deserta e rochosa.
Lore endireitou a coluna, arrancando a si mesma de seu sonho. Aquela
palavra ecoou dentro dela. Sete.
Não era possível distinguir seus rostos, pareciam cópias, mas Lore
reconheceu todos eles. Hermes, Afrodite, Hefesto, Poseidon, Ártemis, Ares e
Dionísio.
Se eles realmente eram os deuses do Ágon, se não foi tudo uma
alucinação… deveria haver oito. Mas isso significava… o quê? Que ela
estava certa e Apolo escapara da morte de alguma forma?
Lore balançou a cabeça negativamente, levando a mão fria à têmpora.
Levou um momento para lembrar onde estava. Ela examinou o escritório,
pousando os olhos em Van, sentado e desperto em uma das cadeiras.
Castor dormia no chão ao seu lado, com os dedos entrelaçados uns nos
outros sobre o peito, mas o olhar de Van estava fixo onde Miles dormia, todo
esparramado no sofá. Conforme os olhos de Lore se ajustavam à pouca luz, o
olhar de anseio de Van revelou-se como uma velha fotografia na escuridão.
Finalmente a notando, ele ficou sobressaltado. Após um momento, pareceu
decidir algo e levantou-se, gesticulando para que ela o seguisse para o outro
lado do cômodo, até a janela mais distante.
Lore se aproximou lentamente. Ao parar na frente dele, encostou o ombro
no vidro e cruzou os braços. Por fim, foi ela quem quebrou o silêncio.
— Escute… — ela começou a dizer. — Eu sei… Eu sei que as coisas entre
a gente sempre foram difíceis.
— Por assim dizer — murmurou ele.
— Eu nunca fui boa em falar de sentimentos… — disse ela.
— Ou em ouvir — interveio ele, baixinho.
Lore lançou a ele um olhar torto.
— Ou em ouvir. Mas eu respeito você e não quero mais que as coisas sejam
assim. Nós nos importamos com as mesmas pessoas e, independentemente de
como você se sinta com relação a mim, eu me importo com você também.
Desculpe se eu fiz você sentir que eu não me importava.
Ele suspirou.
— Não é como se eu também tivesse sido justo com você. Apesar de, só
para registrar, você ainda ter uma relação tóxica com o perigo.
Lore deu uma risada suave e seguiu o olhar de Van, que se voltava para
Miles.
— Não é errado querer coisas boas — sussurrou ela. — E acreditar que
você mereça uma vida boa.
Van balançou a cabeça lentamente, e sua mão esquerda ajeitou a prótese.
— Quanto a isso, não sei. Nunca me permiti refletir sobre… talvez naqueles
poucos momentos em que acreditei que o Ágon poderia mesmo acabar, mas
sempre havia mais trabalho a fazer.
— Eu tive apenas um vislumbre disso lá atrás — disse Lore. — E agora
vejo isso totalmente. Eu era feliz, mas o passado, o Ágon… sempre tinha
alguma coisa me impedindo de abraçar totalmente o que eu tenho aqui e de
ver como isso é bom, de verdade. Não cometa o mesmo erro.
Van deu de ombros, mas seus olhos vagaram instintivamente de volta para
Miles, que murmurava enquanto dormia.
— Eu tive um sonho estranho agora pouco — sussurrou Lore. — Uma
memória, talvez.
Zeus havia bloqueado a corrente de profecias, mas caçadores sempre
acreditaram que sonhos podiam trazer presságios e mensagens. Ela não ficou
nem um pouco surpresa quando Van disse:
— Conte-me.
— Você acha que o deus ausente pode ser Apolo? — perguntou ele, quando
Lore terminou.
— Eles podem nem ter sido deuses — lembrou ela. — Perda de sangue não
é moleza.
— Tem outra coisa na qual venho pensando — disse ele.
— Enquanto você olhava para Miles? Será que eu quero ouvir a respeito?
— Lore calou a boca ao ver seu olhar.
— É sobre esse conceito de sacrifício — disse Van. — Não sei se estamos
pensando sobre os novos versos do jeito certo.
Ele começou a pensar, movendo a mandíbula de um lado a outro.
— Me evocará com a fumaça dos altares que serão construídos pela
temerária e derradeira conquista. Um sacrifício precisa ter significado. Ele
demanda algo necessário… não poderíamos dizer que o que faz dele aceitável
seria o ato de entregar aos deuses essa coisa necessária?
Antes que Lore pudesse responder, seu celular vibrou em cima da bateria
portátil que Miles lhe dera para carregá-lo. A tela trincada acendeu quando
ela abriu a mensagem de Iro.
Confirmado. Ataque ao pôr do sol amanhã.
Ela e Van trocaram um olhar.
— É com você — disse ele. — Vamos precisar de algumas horas para
juntar os últimos suprimentos.
Lore respondeu com uma palavra: Meio-dia.

As horas passavam em um ritmo lento e constante. Lore pensou que talvez


conseguisse tirar um cochilo, apenas para passar o tempo, mas seu
nervosismo era muito grande para isso. Ela treinou com Castor, tão
cuidadosamente como se usassem espadas de verdade. Nem mesmo aquilo
foi suficiente para acalmá-la.
Por fim, às 10:30, Miles voltou de uma tarefa que insistiu fazer.
— Para você — disse ele, entregando uma pilha de baterias portáteis para
Van.
Miles pôs a mão em sua sacola e entregou uma camisa preta comprida e
jeans pretos para Castor, e, para Lore, um suéter escuro para vestir por cima
de sua blusa.
— Deve caber tudo, espero.
Castor entrou no depósito para trocar de roupa.
Quando ele voltou, Miles lhe entregou um colete à prova de balas, depois
deu meia-volta e entregou outro para Lore.
— São dos Odisseídeos. Iro mandou uma emissária me encontrar. Só para o
caso de vocês pensarem que eu de repente tenho acesso aos estoques do
exército ou de cartéis de drogas.
Lore tentou devolver imediatamente o seu.
— Nada disso — disse Miles. — Eu só vou correr até a Grand Central e
gritar Fogo! para evacuar todo mundo. Vou ficar bem.
Ela ofereceu o colete para Van, que balançou a cabeça.
— Vou pegar um com os Odisseídeos quando encontrar Iro e os outros no
hotel — disse ele.
— Tudo bem — disse Lore, abrindo as correias de velcro e passando o
colete pela cabeça. Castor se aproximou, ajeitando melhor o colete dela.
— Então… — Miles começou a dizer, tirando dois pares de fones de
ouvido sem fio da sacola. — São fones de ouvido com cancelamento de
ruído. Tem um botão no fone da direita que ativa o cancelamento de ruído;
sem isso, são fones normais e basicamente inúteis.
Castor pegou um deles, analisando o pequeno dispositivo, mas Lore ainda
estava confusa.
— Contra o poder de Fúria — lembrou Miles. — Não sei como funciona,
mas talvez, se vocês não puderem ouvir, ele não consiga entrar na cabeça de
vocês e enfraquecer vocês.
— Certo… — disse ela, de alguma forma tendo se esquecido de que isso
seria um problema. — Certo.
— A emissária dos Odisseídeos trouxe o que estava no meu estoque e que
eu pedi à Iro? — perguntou Van.
— Trouxe — disse Miles. Ele entregou um pequeno alicate de corte a ele e
uma lanterna do tamanho de uma caneta a Castor.
— Isso é bem mais poderoso do que parece — explicou Van, pegando a
lanterna da mão de Castor. — Na potência mais alta, ela pode cegar
temporariamente alguém, mas serve como lanterna na mais baixa.
Lore pôs a lanterna e o alicate no bolso de trás do jeans.
— Não consegui achar tiras de couro, mas tenho um pouco de fita adesiva,
se acharem que precisam para cobrir os pulsos e as mãos — disse Van.
Quando eles treinavam combate corpo a corpo, sempre usavam himantes, as
tiras de couro que eram amarradas para proteger punhos e nós dos dedos. A
fita seria mais flexível, facilitando a empunhadura da espada.
— Obrigada — disse Lore, aceitando a fita.
— E por último, mas não menos importante — disse Van, sacando dois
pequenos dispositivos presos em chaveiros, um dourado e outro prateado.
Eles pareceriam controles de garagem, não fosse pelos entalhes que
marcavam os alto-falantes. — Se vocês puxarem a corda e apertarem o botão,
eles soam um alarme de 140 decibéis.
— Sério que não solta spray de pimenta? — brincou Lore.
— Ah! Bem lembrado… — Miles puxou um tubinho da jaqueta. Abriu a
mão dela e fechou seus dedos dela em volta dele. — Pensei que você gostaria
de usar isso.
— Você me conhece tão bem… — disse Lore.
— Provavelmente poderemos rastrear vocês se compartilharem suas
localizações com o celular de Lore — disse Van —, mas o sinal pode cair lá,
dependendo da profundidade em que estiverem.
Lore assentiu.
— Obrigada por isso. Por tudo isso.
— Pode não ser o suficiente — disse Van —, mas é o melhor que
conseguimos encontrar nessas circunstâncias.
O grupo deixou para se despedir quando alcançassem a junção entre a 42nd
Street e a 11th Avenue. Miles iria para o leste, na direção da Grand Central;
Van se encontraria com Iro e com os membros restantes das Casas de
Odisseu e de Aquiles, no oeste, próximo ao cais; e Lore e Castor iriam para o
metrô na 34th Street e andariam pelos trilhos da Linha 7 para chegarem à
estação pelo subsolo.
Logo antes de se separarem, Lore puxou Miles para conversar longe dos
outros.
— Depois que você alertar todo mundo, tente sair da ilha — disse ela. —
Se alguma coisa acontecer e você for pego no meio da explosão…
— Não vou ser pego — disse Miles. — Mas, por favor, me prometa que vai
ficar bem.
Lore lhe deu um abraço apertado.
— Vou ficar. Depois disso, vamos fazer todas aquelas coisas idiotas de
turista que eu nunca quis fazer, beleza? Então você precisa ficar bem
também.
Miles conseguiu dar um pequeno sorriso.
— Espero que você esteja com vontade de comer um pouco de algodão-
doce em Coney Island.
Lore fez uma careta. Ele a abraçou uma última vez e depois deu meia-volta.
Castor e Van estavam do outro lado da rua, um apertando o braço do outro, o
cumprimento de despedida secreto de sua linhagem. O rosto de Van ficou
sério ao ouvir algo que Castor estava dizendo, e ele visivelmente teve
dificuldade para manter a expressão neutra.
Quando eles terminaram, Lore e Van acenaram um para o outro em
despedida.
— Ah, que se dane — murmurou Miles. — Já que a gente pode acabar
morrendo…
Ele atravessou a rua em passadas longas e cheias de propósito, passando
por Castor como se ele nem estivesse ali. O novo deus olhou para trás
enquanto se aproximava de Lore, aparentemente tão confuso quanto ela.
Van estava de costas para eles e procurava alguma coisa em sua mochila.
Miles parou atrás dele e deu um tapinha em seu ombro.
Assim que ele se virou, suas sobrancelhas se ergueram ao ver Miles, e um
sorrisinho se acendeu em sua face ao ouvir algo que o amigo de Lore disse.
Houve um instante de total inércia, e então Van segurou o rosto dele com as
duas mãos, se inclinou para a frente e deu-lhe um beijo ardente.
Lore ficou de queixo caído assistindo àquela cena.
— Eita.
— Eita — repetiu Castor, baixinho. — É… é.
Van envolveu Miles nos braços, se entregando; contudo, Miles
relutantemente se afastou e se ajeitou.
— Agora — disse Miles — nós podemos ir.
Castor sussurrou o que parecia ser uma leve oração na língua antiga quando
os dois seguiram seus caminhos em direções opostas. Quando Van passou
por eles pela última vez, ainda tinha a expressão atordoada.
— Acho que essa é a nossa deixa também — disse Lore.
Ele assentiu.
Eles haviam coberto a égide com lençóis, mas agora Lore os removeu,
portando o escudo próximo ao corpo.
Ela olhou para Castor, entrelaçando seus dedos nos dele enquanto seguiam
em silêncio, passando pela inundação até chegarem à estação de metrô da
37th Street.
Castor derreteu a fechadura que mantinha a grade de segurança no lugar,
erguendo-a o suficiente para que os dois passassem por baixo dela. A água
escorria pelos degraus, entrando na estação, mas Lore estava surpresa por ver
que não estava completamente submersa. O metrô devia ter algum meio de
drenar lentamente a água; a água nos trilhos chegava a quase um metro de
altura, apenas.
— Com seu escudo ou sobre ele, certo? — disse Lore suavemente,
ajustando as amarras da égide para que pudesse ser carregada nas costas.
Com seu escudo ou sobre ele. Era o que inúmeras mães espartanas diziam
aos filhos e maridos quando entregavam os escudos a eles antes da batalha.
Para uma sociedade que abominava rhipsaspides — aqueles que se
acovardavam e abandonavam seus escudos com o intuito de desertar, ou os
homens que os perdiam na batalha — para voltar para casa, havia duas
avenidas: vitória ou morte, na qual carregariam seu corpo ao lar sobre o
próprio escudo.
Castor segurou o braço dela, forçando-a a olhar para ele. A estação estava
escura, fazendo com que as faíscas de energia brilhassem mais intensas em
seus olhos quando ele disse:
— Não diga isso. Por favor… não diga isso.
Nem os espartanos eram espartanos — seu pai havia lhe dito. — Não é
sempre a verdade que sobrevive, mas sim as histórias em que queremos
acreditar. As lendas mentem.
— Então não vou falar — disse Lore.
Como seriam lembrados nunca seria tão importante quanto o que fariam no
presente. O seu pai também havia lhe dito isso.
Eles desceram da plataforma da estação esguichando água para todos os
lados e seguiram adiante pela água, com dificuldade.
Lore acendeu a lanterna na potência mais baixa. Sua espada balançava
contra seu quadril enquanto eles caminhavam pelos trilhos.
Ela não conseguia resistir à vontade de olhar para ele, se embebedando da
imagem dele para repelir o calafrio que crescia em sua coluna.
— Se estivermos errados sobre a sua imortalidade e eles acabarem pegando
você — sussurrou ela —, me espere no rio sombrio. Eu vou trazer você para
casa.
— O próprio Hades me mandaria de volta ainda nos portões se soubesse
que você viria — disse Castor —, e que eu lutaria como louco para encontrar
você no meio do caminho.
Lore aproveitou a sensação de sua mão na dele só por um momento a mais
antes de soltá-la. Ambos precisariam das mãos livres para empunhar as
espadas.
Ela ergueu a égide, mas manteve a lanterna mirada nos trilhos. Seria uma
marcha lenta, o túnel fazia parecer que estavam presos dentro de uma
eternidade deserta, que caminhariam para sempre em direção a um lugar que
nunca alcançariam. Era o tipo de castigo que os deuses amavam.
Eles seguiram a curva dos trilhos da 34th Street até a Times Square,
entrando em um cuidadoso silêncio conforme atravessavam com água até os
tornozelos. A água ali tinha mais espaço para se dispersar, ficando apenas na
altura do tornozelo. O ar no túnel estava inerte e pesado, e as paredes ao redor
estavam escorregadias devido à umidade. Lore aguçou seus ouvidos, tentando
captar o som de vozes ou passos, mas tudo que ouviu foi o caminhar
apressado dos ratos e o gotejar constante de água a seu redor.
— O sinal do GPS caiu — sussurrou Castor, mostrando o celular. — Mas
estamos quase na estação Bryant Park.
Eles andaram por alguns minutos antes de Castor parar repentinamente,
pegando a lanterna de Lore — não para apontá-la para algo, mas para desligá-
la. Lore ficou tensa, avançando um pouco para ver o que o havia feito parar.
Seus olhos se ajustaram novamente à escuridão e cada segundo vagaroso
revelava um novo detalhe da cena horrível. Os corpos de policiais, junto a
membros fardados da Guarda Nacional, se espalhavam pelo trajeto adiante.
Os corpos estavam imóveis, em poses angustiadas, como se tivessem sido
jogados de uma altura enorme.
Uma luz vermelha preencheu o espaço quando um sinalizador de
emergência foi aceso e jogado nas costas de uma mulher morta.
Dezenas de caçadores surgiram dos cantos sombrios do túnel, empoleirados
nas frágeis e estreitas plataformas que ladeavam o túnel. Eles fitaram Lore e
Castor com seus rostos mascarados, um de cada vez — serpentes, cavalos e
minotauros.
Vê-los ali, enfileirados desta forma, como sentinelas, fez Lore se sentir
como se estivesse perante o início de um combate. Seus cânticos grunhidos
ecoaram, rodopiando no ar como fantasmas.
— Suas chances são péssimas, novo deus — disse um dos caçadores.
— De fato. — Castor ergueu a cabeça, analisando-os com o olhar. — Você
parece estar muito certo quanto a isso.
Cada segundo que passava era como um corte na pele de Lore. Ela ficou na
frente dele, erguendo a égide na direção do brilho vermelho-sangue
do sinalizador.
Esses — pensou ela — são os nossos inimigos.
Ssssssim — sibilou a voz, concordando.
O caçador que estava mais perto dela praguejou, erguendo a máscara,
chocado. Outros começaram a estremecer, descendo das plataformas aos
trilhos, visivelmente amedrontados.
— Acalmem-se… — disse o primeiro caçador. — Não a olhem
diretamente!
Quem estava mais ao fundo protegeu os olhos.
Castor tirou algo do bolso de trás de Lore. Seu celular.
O coração de Lore estava na boca. Ela sabia que não poderia parar nem por
um instante, não com eles tão perto e o tempo tão curto.
— Eu alcanço você. — murmurou ele, com seu corpo poderoso se
preparando, tenso. Seus olhos tinham um lampejo ameaçador quando ele se
voltou aos outros caçadores. Os dois que viram a égide estavam lutando
contra o pânico que ela despertava, mas o resto começou a bater as espadas e
as lanças nos escudos que portavam. O túnel parecia se apertar em volta
deles.
Não — pensou Lore. — Ainda não…
Porque se ela o deixasse ali, contra todos os caçadores… talvez nunca o
visse novamente.
— Vá — sussurrou ele. Então, mais alto: — Última chance de ir embora.
Alguém interessado em sair daqui com vida?
Lore ergueu a égide, respirando fundo. Ao mais leve cheiro de queimado,
de pelo chamuscado, ela preparou a postura de combate. Os caçadores
próximos a ela haviam passado pelo mesmo condicionamento à base de medo
e dor que ela, mas agora choravam de soluçar com o pavor, se encolhendo e
se afastando dela.
Ela olhou para trás para fitar Castor uma última vez. Deixou que a
expressão de determinação e confiança do novo deus ficasse marcada a fogo
em sua memória.
E então começaram os gritos.
Os dois caçadores próximos a ela começaram a queimar de dentro para
fora; o calor do poder de Castor incinerava ossos, tendões, músculos e pele.
Lore se saltou para a frente, sua espada cortava as lanças dos caçadores, que
estavam ganindo, mesmo enquanto morriam. A égide absorveu os golpes
fortes das espadas e armas menores enquanto Lore abria caminho com ela. A
ponta de uma lança passou de raspão em sua nuca, mas Lore seguiu adiante,
entrecortando o caminho pelos golpes que explodiam em volta de si.
Lore olhou para trás a tempo de ver um caçador passar pela fileira de
corpos se reduzindo a cinzas e saltar, descendo a espada em um golpe. O aço
acertou a alça do colete de Castor, cortando o ombro dele.
Castor cambaleou para trás, e sua concentração vacilou momentaneamente
enquanto ele girava a espada e começava a atacar.
Mais caçadores desceram das ruas acima até a estação, infestando a
plataforma atrás dela. A mente de Lore gritava para que ela voltasse, mas a
jovem manteve o olhar adiante, fixo na escuridão, correndo até que a
presença de Castor não aquecesse mais suas costas e a luz do sinalizador de
emergência desaparecesse como uma estrela morrendo.
CINQUENTA E DOIS

SEU TELEFONE NÃO VOLTOU A TER SINAL ATÉ QUE ELA ALCANÇASSE A JUNÇÃO DOS
túneis embaixo da Grand Central Station. Lore não imaginou que o subsolo
seria tão confuso na interseção de três linhas diferentes do metrô com os
trilhos da companhia Metro-North.
— Merda. — Devido às mãos trêmulas, Lore teve dificuldade para abrir as
mensagens. A mais recente era de Miles, dizendo que ele estava a postos, no
prédio acima dela. Faltavam quinze minutos para o meio-dia.
Cas está com problemas — digitou ela no chat com os outros. — Quinta
Avenida, Linha 7. Vou indo na frente.
O mapa do GPS não era detalhado o suficiente para dizer qual túnel pegar,
apenas sinalizava que ela estava na direção certa.
Quando Lore encontrou o último túnel, todo seu corpo estava tenso de
frustração. Enquanto estava em pé na entrada do túnel, olhando para a
escuridão aveludada à frente, Lore hesitou, subitamente incerta.
Lore se perdera tantas vezes que não entendia totalmente como chegou ali.
Por um momento, ela soube como Teseu devia ter se sentido no Labirinto,
mas ela não tinha o fio de Ariadne para guiá-la de volta.
Lore se forçou a respirar. Uma de suas mãos segurava firme o cabo da
Mákhomai e a outra, cerrada em punho por detrás da égide. As vibrações do
escudo alimentavam a massa de pavor no fundo de seu estômago.
Seu primeiro passo à frente demandou tanto esforço quanto o necessário
para se arrastar por uma maré escura. Lore não sabia oração alguma que a
ajudasse agora, nem quem a pudesse ouvir. Ela sentiu o ar se agitar ao redor,
como se seres se movimentassem ali, sem serem vistos, observando,
aguardando.
Ela pressionou a borda curvada da égide na testa, fechando os olhos.
Agarrou o colar, o pingente de pena, até que o metal deixasse uma marca na
palma de sua mão.
Posso ser livre.
Ela não era Teseu no labirinto nem Perseu no covil da Górgona. Não era
Héracles realizando seus trabalhos. Não era Belerofonte, que cavalgou pelo
céu, nem Meléagro na sua caçada, nem Cadmo combatendo a serpente. Não
era nem Jasão, triunfante no limite do mundo com o Velo de Ouro em mãos.
Não lhe havia nada predestinado. Lore não fora escolhida para isto;
escolheu vir por vontade própria. Cada passo que dava e cada erro cometido a
trouxeram até aqui.
Ela estava aqui porque o pai a ensinou a segurar uma espada, porque a mãe
a ensinou a ser forte e orgulhosa, porque as irmãs seriam para sempre pessoas
inacabadas.
Ela estava aqui pela cidade que a criou, e veio com o orgulho de seus
ancestrais e a força de seu coração, e nada disso lhe falharia.
Lore, então, os reconheceu — as sombras se movendo dentro do túnel.
— Fiquem comigo — sussurrou ela, dando o próximo passo. Repetiu as
palavras até que se tornassem a oração da qual precisava e uma armadura
para sua alma. — Por favor, fiquem comigo.
Lore correu, disparando pelo túnel como uma flecha atirada pelas mãos
mais firmes.
— Fiquem comigo…
O ar mudou, e Lore sabia que estava perto. Uma corrente de energia tocou
seus sentidos, guiando-a para fora daquela linha, a um túnel menor.
A concentração de Lore se intensificou enquanto ela corria pelos trilhos e a
água respingava à sua volta. Antes do esperado, a jovem alcançou uma seção
do metrô separada do resto, que levava à estação logo abaixo do Waldorf
Astoria.
Ao som de vozes, ela diminuiu o ritmo e desligou a lanterna.
— Me escute, por favor!
Belen — pensou ela. Lore levou a mão à orelha e tirou um dos fones de
ouvido para escutar melhor.
Formas indistintas foram ficando nítidas ao fim dos trilhos, no espaço
cavernoso que era a Linha 61. Lampiões estavam espalhados ali, iluminando
seções da estação que, sem eles, estaria no breu.
Silhuetas difíceis de distinguir tomavam forma ao final da linha. Lampiões
foram pendurados, iluminando trechos da estação. Um único vagão rebocador
estava estacionado sobre os trilhos; um grande reservatório prateado, tão
grande quanto o próprio vagão, estava preso nele. Se aquilo era uma bomba,
não se parecia com nenhuma que Lore já viu.
— Duvida de mim?
A voz de Fúria chegou até ela, baixa e ameaçadora. Ele deu a volta no
vagão-prancha, ficando visível. Ali perto, um elevador enorme se
aproximava, que sem dúvidas dava para o estacionamento do hotel.
A forma sombria e sublime do deus fazia dele um monstro, e seu corpo era
todo rígido devido aos músculos. Ele superaria até mesmo a altura de Castor,
assim como superava a de Belen.
O jovem se afastou dele e do reservatório, erguendo as mãos. Ele estava
vestido com o que parecia ser um manto cerimonial carmesim bordado em
ouro. Suas duas mãos estavam enfaixadas com uma camada grossa de gaze
branca.
O fulgor na pele de Fúria só podia ser obra de alguma tinta dourada. Ela
cobria todo o seu corpo sob a seda marfim de sua túnica. Ele vestia uma
armadura de bronze sobre o peito, assim como manoplas e grevas. Mas o pior
era a conhecida pele de animal áspera e de tom bronzeado que vestia. A
cabeça da criatura há muito tempo fora fundida em bronze para ser usada
como elmo, assim como Fúria usava agora. A pele pertencia ao leão de
Nemeia e tornava o corpo que cobrisse invulnerável a armas cortantes.
Lore ficou aterrorizada. Se ele estava trajado para a guerra, horas antes do
pôr do sol…
Eles se equivocaram de novo. O plano de Fúria seria executado agora.
Lore sacou o celular, mas ainda estava sem sinal. Cogitou ir embora e tentar
subir à superfície para alertar os outros, caso já não tivessem descoberto por
si só, mas Belen falou novamente, desta vez em um tom mais desesperado.
— O senhor é o ser mais poderoso deste mundo — disse Belen. — O
senhor tem a nós e lhe somos devotos. Todos nós, meu senhor.
— É mesmo? — perguntou Fúria, friamente. Ele rodeou seu filho mortal,
forçando Belen a recuar até o vagão-prancha sem nem ao menos precisar
sacar uma espada.
— Você não precisa dela — continuou Belen, e sua voz foi ficando
esganiçada.
O sangue de Lore gelou nas suas veias com aquela palavra. Ela.
— Pergunte a si mesmo por que ela concordaria em ajudá-lo… por que ela
veio até você agora, quando já está tão perto de obter tudo que sempre
sonhou em ter — disse Belen. — Ela e a irmã planejavam matá-lo e a todos
os outros deuses, e agora ela quer prestar servidão? Ela é traiçoeira… roubará
seu plano, roubará aquilo e o matará… ela o destruirá, Pai. Por favor…
— Pai? — repetiu uma voz suave.
Atena estava parada na borda da luz de um dos lampiões, e seus olhos
brilhavam na escuridão.
O coração de Lore acelerou e ela começou a suar. Belen virou a cabeça
rapidamente na direção da deusa, visivelmente sem fôlego.
— Pai? — repetiu Atena novamente. — Meu grande senhor, eu nunca
imaginaria que alguém tão poderoso como vós teria um filho tão choroso e
sem força de vontade.
Atena se moveu e ficou ao lado do novo deus, segurando uma dory. Ela
também trajava um curto manto cerimonial, impecavelmente branco, e sua
pele estava revestida pelo mesmo dourado reluzente. Sua armadura era tão
robusta quanto a de Fúria, assim como seu elmo, que estava cravejado com o
que pareciam ser diamantes e safiras na extensão de seu penacho branco.
O ódio que Lore sentiu olhando para ambos agora era de tirar o fôlego.
Toda a raiva que ela disse para si mesma que não precisava, que não queria,
veio borbulhando até a superfície.
Ela esqueceu sua calma, esqueceu seu plano, esqueceu a desonra que ele
tentou usar como munição para extinguir sua linhagem e o desejo do novo
deus de tirar-lhe a vida, mesmo quando era apenas uma garotinha. Ela não
viu nada além do rosto do homem que quis destruir sua família e a deusa
impiedosa que havia, de fato, a destruído.
Fúria virou o corpo na direção de Atena, endireitando os ombros largos. Ele
segurava seu elmo com uma das mãos, mas a outra foi até a espada em seu
flanco.
— Ela o trairá… o destruirá, assim como fez com todos os outros — disse
Belen, desta vez com medo de verdade. — Me escute… ela está alimentando-
o com mentiras! O senhor não precisa dela!
— Eu não disse mentira alguma — disse Atena, com frieza. — O grande
Fúria e eu somos destinados a isso… sempre fomos. O encontro dos
costumes antigos e os novos. O primeiro Ares era fraco, suscetível demais a
mudanças de temperamento e à loucura, e o mais odiado dos filhos do meu
pai, mas agora encontrei um parceiro de guerra digno… o equilíbrio da força
à minha estratégia… e um novo rei para que eu me ajoelhe.
Belen balançou a cabeça negativamente.
— Isso… isso não pode ser verdade…
— Está me chamando de mentirosa? — perguntou Atena, rispidamente. —
Eu devo lealdade ao meu senhor Fúria após ele ter benevolentemente me
contado sobre o novo poema, sobre a vontade de meu pai. Estou contente por
servi-lo no momento em que ele faz sua ascensão final e verdadeira.
A bile subiu pela garganta de Lore; mesmo depois de tudo que ela havia
feito, as palavras de Atena, seu tom suave e bajulador, pareciam uma nova
traição. No terraço de sua casa, Lore havia contado tudo a ela, seu passado,
seus medos, e ela acreditou na deusa, sentiu a própria raiva e frustração
suprimidas de Atena.
Você pode chamar isso de complacência, e talvez seja — dissera Atena. —
Eu creio que seja sobrevivência.
Só podia ser uma atuação, mas nela a deusa se rebaixou voluntariamente.
— A Deusa de Olhos Cinzentos é a mais sábia de todos os seres — disse
Fúria, gabando-se das palavras dela e acreditando em todas, do modo que
apenas um homem que não via falha alguma em si mesmo acreditaria. — Ela
se provou digna de me servir… Diga-me, você se provou? Um garoto… que
não pode nem lutar… se atreve a questionar meu julgamento? Atreve-se a
crer que é mais sábio que a própria Atena?
Belen novamente balançou a cabeça em negativa, recuando até esbarrar na
borda do vagão-prancha.
— Meu grande senhor — disse Atena, observando o jovem com um olhar
que Lore reconheceu. Vitória silenciosa. — Como sabe, todas as grandes
empreitadas devem ser iniciadas com um sacrifício em busca da graça de
Zeus para que sejam bem-sucedidas.
O novo deus voltou-se para seu filho mortal.
Cada parte de Lore parecia se atirar para frente, mesmo que ela estivesse
inerte.
Belen teve tempo de sussurrar — Por favor — antes que o pai sacasse uma
pequena faca oculta em uma bainha no antebraço e cortasse sua garganta.
Sangue jorrou no reservatório com a força do golpe. Belen caiu no chão,
sofrendo espasmos em todo o corpo, enquanto seu coração frenético
bombeava o pouco de vida que lhe restava.
Fúria o assistiu morrer, e uma euforia sombria se espalhou por seu rosto.
Quando o jovem finalmente ficou imóvel, ele se abaixou e pôs a mão na
garganta do filho, revestindo-a de sangue.
Atena observou, retraindo o lábio superior.
Erguendo-se novamente, Fúria pôs a palma de sua mão no reservatório,
deixando uma mancha escura nele. Ele recuou, com o olhar fixo nele.
Lentamente, levou os dedos até os lábios. Até sua língua.
Ele não deu meia-volta novamente enquanto falava, mas sua voz carregava
as palavras pela distância entre ambos.
— Filha de Perseu.
Fiquem comigo — pensou Lore uma última vez enquanto segurava firme as
alças da égide e seguia em direção à estação.
Fúria disse:
— Quanta consideração de sua parte por trazer um último presente ao seu
deus.
CINQUENTA E TRÊS

A VOZ DELE ERA COMO AS ESCAMAS ESCORREGADIAS DE UM RÉPTIL CONTRA A


pele, causando um medo inconsciente e primitivo.
Inimigosss — sibilou a voz em sua mente.
Lore apertou as alças da égide com ainda mais força, imaginando os deuses
se acovardando perante seu poder. Mas essa ideia não lhe agradou.
Não — retrucou em pensamento. — Preciso de sua ajuda, mas não para
isso.
Lore tinha a própria raiva, a própria força e queria que temessem a ela, que
soubessem que foi ela quem os derrotou.
Seu olhar não vacilou quando encontrou o de Fúria. Ele ria enquanto ela se
aproximava com a égide erguida e uma das mãos repousando sobre o cabo de
sua espada. O som ecoou em volta deles, se ampliando até tornar-se um
rugido. Lore se recusou a olhar para Atena, mas a acompanhou de canto de
olho quando a deusa falou.
— Quanta astúcia de sua parte, meu senhor — disse, em voz baixa e suave
—, por ter mandado seu caçador passar a informação errada para os
descendentes de Odisseu.
A respiração de Lore ficou presa, queimando no peito.
— Fiz o que você não foi capaz de fazer — disse Fúria, inclinando a cabeça
de forma condescendente. — Eu atraí a vadiazinha para fora de seu
esconderijo e fiz com que trouxesse meu escudo até mim.
O movimento foi discreto, mas revelador. Atena se empertigou quando ele
disse meu escudo. No entanto, quando voltou a falar, suas palavras não
revelavam nada além de servidão.
— Certamente. Devo buscá-lo para você?
Os pelos do corpo de Lore arrepiaram com a sutileza da jogada da deusa.
— Não — disse Fúria, com um sorriso arrogante. Ele falava com o tom que
um pai usaria ao mimar uma criança ingênua. — Você não é forte o bastante
para portá-lo. Permitirei que o carregue depois que nosso trabalho estiver
terminado e eu não precisar mais dele.
Lore ergueu a égide para esconder que estava colocando novamente o fone
de ouvido. Ela não mais conseguia ouvir a própria voz.
— Você se rebaixou a ponto de trabalhar com ele agora? — perguntou
Lore, se dirigindo à Atena, não a Fúria, de um jeito que sabia que o
enfureceria. — Com um dos deuses inferiores que sempre disse que
desprezava?
Ele entrou no meio das duas, impedindo que ambas se vissem. Seu peito se
estufou quando ele se empertigou, encarando Lore de cima.
Ela olhava para além dele.
— A Deusa de Olhos Cinzentos reconhece seu mestre — disse Fúria, com
um traço de raiva em suas palavras. — Algo que você se recusou a fazer…
mas você sempre foi empolgadinha, não foi? O diabretezinho que precisava
ser domado. Deste dia em diante, você me servirá de todas as formas que eu
desejar — você e aquela garota Odisseídea. Terei uma em cada joelho. Essa
espera só aumentará a doçura disso.
A ira e o nojo incendiaram em Lore, ameaçando incinerar seu autocontrole.
Concentre-se — pensou Lore. Seu plano ainda podia funcionar, ela ainda
podia jogar um contra o outro.
— Então quer dizer que você e Ártemis entraram nesse Ágon com o plano
de matar os novos deuses — disse Lore para Atena enquanto se movia para a
direita, para longe de Fúria e na direção do reservatório. — E você se
aproximou de mim, na esperança de que eu entregasse a égide e que isso
desse a oportunidade de matar o novo Apolo… talvez até alguns dos outros
novos deuses também, incluindo esse aqui.
Era tudo muito óbvio para Lore agora.
A respiração de Fúria soava como um rugido, e a agitação se espalhou na
face dele quando o deus se colocou novamente entre as duas, fazendo Lore
fitá-lo.
— Ela é leal ao meu poder e o reconhece em mim — disse Fúria. — Eu
poderia ter moldado até mesmo você, uma criaturazinha feroz. Mas você
morrerá da mesma maneira que viveu, como ninguém. Impotente e sozinha.
Concentre-se — pensou Lore outra vez, aguentando a náusea que
aumentava. Ela segurava a égide com tanta força que doía. Cada músculo do
seu corpo se enrijecia, implorando para relaxar.
Ela levou a mão subitamente até o fone de ouvido para ativá-lo. As novas
crueldades sardônicas que ele estava prestes a proferir tornaram-se um
sussurro silencioso e anormal.
O silêncio fazia Lore se concentrar em seus pensamentos, aguçando a fome
em seu coração. Ela queria que eles sentissem sua dor. Queria assistir a esses
deuses sangrando e sofrendo, assim como suas irmãs, e que lhe implorassem
por misericórdia.
O sorriso frio de Atena era intencional, como se ela soubesse cada um dos
pensamentos de Lore.
Lore sabia o que ela esperava — que seu temperamento tomasse conta, que
ela perdesse a cabeça e fosse destruída pela mesma raiva impulsiva que Atena
ajudou a alimentar.
Em vez disso, ela se manteve firme. A égide nunca estremeceria em suas
mãos, nem por medo, nem por raiva. Se ela tinha que usar o ódio para
devorar aquelas últimas dúvidas persistentes, ele seria bem-vindo. Mas Lore
não incineraria o motivo que a fez vir aqui nem se jogaria nele de uma vez
apenas para ser obliterada.
Após anos de prática na Casa Tétis, Lore leu com facilidade a ordem nítida
nos lábios dele. O deus estendeu uma das mãos na direção dela, seu olhar
estava concentrado, sua face, radiante de triunfo, e a jovem soube que ele
estava usando seu poder. Ela fingiu ter dificuldade com o peso do escudo e
cambalear.
Traga-o para mim — dizia ele. Com toda a pintura e as vestimentas que
usava, com a imponência que as sombras o faziam parecer que tinha, ela
apenas via o velho que ele um dia foi, sentado em um trono sem significado.
— Dê-me a égide.
O corpo de Fúria se estremeceu de animação. Lore forçou o seu próprio a
ficar tenso, como se estivesse resistindo à natureza enfraquecedora do poder
dele. Ela fez uma careta retorcida, tensionando o rosto para mostrar que
lutava, mesmo quando deu um passo na direção dele. Mesmo quando usou a
égide para esconder que sacava a lanterna do bolso.
O olhar de Atena se estreitou, a palavra Espere saiu de seus lábios, mas
Fúria nunca foi o tipo de homem que escuta uma mulher, e a imortalidade
não mudou isso.
Ele estendeu o outro braço, bloqueando Atena e a afastando do escudo
enquanto Lore se aproximava.
Dê a égide a mim — disse novamente, com a mão estendida na extremidade
de um braço comprido e poderoso, com a face já exultante de vitória. — Me
dê, me dê, isso… boa menina.
Ela tinha a intenção de cegá-lo momentaneamente com a lanterna na
potência mais alta. Mesmo assim, por mais forte que a sua raiva estivesse
momentos antes, ela se condensou e congelou com aquelas duas palavras:
boa menina.
Lore virou a chave da lanterna para a potência mais alta possível e assistiu
aos dois deuses protegendo os rostos.
Ele nunca a tocaria novamente.
Os segundos se arrastaram quando Lore abandonou a lanterna e
desembainhou Mákhomai, e depois se apressou quando tomou uma decisão.
A pele do leão de Nemeia protegia as costas de Fúria e pendia sobre o
peitoral de bronze que vestia, mas nem a pele, nem as luvas cobriam a
articulação do cotovelo.
Lore desceu a lâmina afiadíssima de sua espada em um corte limpo, que
decepou-lhe o braço.
Fúria cambaleou para trás e sua ferida aberta jorrava sangue.
— Esta boa menina — disse Lore, enfurecida — está esperando que você a
pegue.
Ela protegeu novamente o corpo com a égide, mas quando afastou do deus
agitado, começou a ouvir novamente pelo ouvido esquerdo. O fonezinho
havia caído.
Merda — pensou ela, tentando avistá-lo na superfície da água. Mas sumira.
Fúria, sobre um joelho, soltou um rugido de dor. Seus pulmões trabalhavam
como foles enquanto tentava estancar o sangue com a mão que lhe restava.
Uma veia latejava em sua testa quando a encarou com um olhar que prometia
uma dor que iria além de todos os limites.
— Vadia… — disse ele, ofegante. — Sua vadiazinha…
— Ele é todo seu — disse Lore à Atena. — Melhor acabar com a
competição enquanto ele está no chão. Nós duas sabemos que você nunca vai
deixá-lo portar a égide.
A deusa sorriu, se aproximando de Fúria.
— Não lhe dê ouvidos, meu senhor. Seu intento é nos dividir. Levante-se e
prove o quão forte realmente é.
Fúria fez isso, suando e xingando enquanto o sangue esguichava em seus
dedos. Ao vê-lo exibindo os dentes, lívido, Lore se perguntou se tudo que
fizera de fato foi drenar o pouco de humanidade que restava nele.
— Presumo que o seu falso deus a curou — disse Atena, com um tom de
provocação em sua voz. — Onde ele está agora, Melora? Você o perdeu para
a escuridão?
Ele está vivo — disse Lore para si mesma. — Ele está vivo e virá.
Outro pensamento ocorreu a ela, ultrapassando todos os outros.
Lore presumira que Atena queria o escudo puramente pelo poema e o que
ele revelava, mas a deusa já possuía essa informação agora e mesmo assim
permaneceu ao lado de Fúria e continuou com sua farsa.
Ela ainda a quer — pensou Lore, franzindo as sobrancelhas. — Ainda quer
a égide.
Então por que não usar sua indomável força para arrancá-la das mãos de
Lore, da maneira que tanto ela quanto Lore sabiam que podia?
Porque — sussurrou uma pequena voz na sua mente — ela se tornou parte
do plano dele.
— Por que você quer o escudo? Diga — disse Lore enquanto recuava; não
por medo, mas para se aproximar o suficiente do vagão que carregava o
reservatório, a fim de tentar dar uma olhada nele. Devia haver uma forma de
desativar um eventual motor ligado ao carro.
Um canto da boca da deusa se curvou para cima.
As batidas do coração de Lore ficaram mais altas em seus ouvidos.
— Meu grande senhor — disse Atena, com um claro olhar de deboche em
seu rosto, embora o novo deus não pudesse vê-lo —, descobriu o verdadeiro
significado dos novos versos, e as instruções de meu pai… eu não percebi
sozinha, até que ele me lembrasse da história de Deucalião e Pirra. Você está
familiarizada com ela, eu presumo.
O ar sombrio pareceu pressionar Lore por todos os lados quando as palavras
de Atena alcançaram a mente dela.
Deucalião e Pirra foram os dois únicos sobreviventes do dilúvio que Zeus
enviou para acabar com os mortais hostis da Idade do Bronze, tendo sido
alertados pelo pai de Deucalião, Prometeu. Deucalião e Pirra foram os que
repovoaram o mundo jogando os ossos da mãe — pedras — por cima dos
ombros.
— Você entende agora — disse Atena. — Por muito tempo, eu pensei que
esta caçada era uma punição quando, na realidade, era meramente um teste.
Todo esse tempo, meu pai desejou que provássemos nossa lealdade acabando
com a pior era do homem. Para começar uma nova raça, fiel aos deuses.
Lore balançava a cabeça negativamente, lutando contra a raiva que
ameaçava sufocá-la.
— Você precisaria do poder de Poseidon sobre os mares e rios para
conseguir algo do tipo.
— As águas já não estão se erguendo conforme esta raça de homens
lentamente envenena este mundo? — indagou Atena. — Acha que pararão
com isso, enquanto o deus da guerra incendeia seus corações e os induz a
prosseguir, até que o ar seja tomado completamente pela fumaça e o chão
sangra?
— O medo dela — disse Fúria, surgindo subitamente atrás de Lore — é
como vinho no sangue.
— É apenas uma prova do que está por vir — disse Atena, não se
preocupando em olhar para ele. — Quando o mundo perceber seu destino. —
Ela deu um passo na direção de Lore, e seus olhos fitaram a égide, apenas por
um momento. — Mas não será a água que purificará as terras. Não será a
água que limpará este mundo. Será o fogo.
Lore girou na direção do vagão-tanque, erguendo sua espada.
— Eu não faria isso, se fosse você — provocou Fúria. — O tanque contém
fogo grego e, se tocar a água, vai arder.
Fogo grego. Lore respirou fundo. Uma arma lendária do Império Romano
do Oriente. Uma vez aceso, qualquer coisa que os compostos químicos
tocassem arderia em chamas, e a água, em vez de apagá-lo, ajudaria a
carregá-lo e a aumentar o fogo. Ela ferveria as ruas por baixo, causando
destruição em massa à medida que se alimentasse de qualquer material que
encontrasse pela frente. Em uma cidade inundada, levaria dias, senão
semanas, para ser totalmente apagado. E até lá…
Eles não incendiariam a Grand Central. Incendiariam toda a cidade.
— Sim — sussurrou Fúria. — O fogo se alastrará por baixo das ruas, por
todos os diversos túneis, devorando de baixo para cima.
— Acendê-lo agora também acaba com vocês dois — disse Lore,
preparando a Mákhomai para uma estocada no casco metálico do
reservatório. — Será que isso resolve tudo?
— Resolve — debochou ele —, se você quiser que seus amigos estejam no
inferno que explodirá acima de nós.
CINQUENTA E QUATRO

A PULSAÇÃO DE LORE FICOU NOVAMENTE ACELERADA, E SUA RESPIRAÇÃO,


ofegante.
— Essa é uma ameaça vazia — ela se forçou a dizer. — Eles vão descobrir
o que está acontecendo assim que virem que os seus caçadores foram embora.
— Criança — disse ele —, quem disse que todos os meus caçadores foram
embora? Eu precisei de apenas dois deles para prender todos os outros aqui e
começar o incêndio.
A perplexidade a açoitou por todas as direções.
— Você… — começou Lore. — Você vai…
— Você vai, você vai, você vai — repetiu ele, por vezes seguidas,
debochando de Lore. Ele ficou novamente ao lado de Atena, usando seu cinto
como um torniquete para o braço. — Todos eles devem, finalmente, morrer
para que o mundo renasça. Eles deveriam se sentir honrados por saber que
serão os primeiros sacrifícios para uma nova e gloriosa era.
Lore voltou-se para Atena, mas a deusa estava impassível.
— Você não pode fazer isso — implorou Lore. — Você não matará apenas
os caçadores… se o plano dele for bem-sucedido, matará pessoas inocentes.
— Não há nenhum mortal inocente — disse Atena, sem emoção alguma.
— Apreciarei acabar com a sua vida e assistir ao verdadeiro fim da
linhagem de Perseu — disse Fúria, rodeando lentamente o vagão. — Ajoelhe-
se perante mim e convoque o Portador das Nuvens com a égide para
testemunhar a chama.
— Você realmente acha que ela evocará Zeus para vir assistir a você
destruir uma cidade? — perguntou Lore. — Não funciona assim, idiota!
— Funciona do jeito que eu quiser que funcione — disse Fúria, por entre os
dentes cerrados.
Lore entrou em postura defensiva quando os dois deuses vieram em sua
direção, e Mákhomai ficou repentinamente pesada em sua mão. Seu braço
tremia ao esforço de mantê-la erguida. Um novo medo rodopiou dentro dela
quando o vagão começou a vibrar repentinamente, com a ativação de um
motor invisível.
— Percebe agora? — perguntou Fúria. Lore tentou achar seu fone de
ouvido perdido de novo, aos tropeços, mas era tarde demais. O poder contido
nas palavras do novo deus transformou seus membros em gelatina.
Lore cambaleava conforme ia perdendo os sentidos. A empunhadura da
égide afrouxou contra sua vontade e, pela primeira vez, ela mal conseguia
suportar o próprio peso.
— Você realmente acha que ela o deixará viver? — indagou Lore a Fúria,
lutando para fazer as palavras saírem. Seu corpo estremeceu quando plantou
os pés no chão sob a água em uma última tentativa de se manter em pé. —
Que Zeus e os outros deixarão que você domine este mundo?
— Tola — resmungou Atena. — Você não sabe de nada.
O verdadeiro motivo para Atena estar ali iluminou-se para ela como um
feixe de luz solar passando entre as nuvens. A razão pela qual a deusa fez
tudo o que podia para recuperar o escudo.
Fúria se esqueceu de sua lesão e tentou bater nela com o braço fantasma.
Lore não vacilou, nem mesmo quando a dory de Atena surgiu entre eles,
impedindo o segundo ataque de Fúria. Seus olhos estavam ardentes na
escuridão.
— Você está certa, eu sou uma tola — disse Lore a ela. — E você estava
certa antes também, ao debochar por eu ter acreditado no que você disse. A
verdade é que eu não somente acreditei no que você disse… eu acreditei em
você. Quando você protegeu aquelas pessoas da explosão e dos escombros.
Quando me contou sobre Palas, sobre sua cidade, sobre a função que nasceu
para exercer e sobre o que queria para si mesma.
Uma hesitação, quase imperceptível, correu pelo corpo de Atena.
— Seus templos foram derrubados. Os homens não mais a temiam. Sua
lenda, contada antigamente, se tornou um sussurro — continuou Lore. —
Mas mesmo assim eu acreditei em você.
Atena estava com as narinas dilatadas e suas mãos estrangulavam a haste da
lança.
— Isso não é um teste, é uma lição — disse Lore. — Por que Zeus iria
querer que você matasse pessoas inocentes… adoradores de outros deuses…
quando esse foi um dos motivos de vocês serem punidos? Mesmo depois de
tudo que ele fez a você e aos outros, eu nunca ouvi você falar dele com raiva
ou ressentimento. No seu ponto de vista, não há ninguém como ele. E ele
nunca daria o mundo para o vencedor do Ágon.
— Silêncio! — rugiu Fúria, dando um tapa nela.
As palavras que Van dissera naquela manhã voltaram à Lore de uma só vez,
e ela prosseguiu, destemida.
— Um sacrifício precisa ter um significado. Você entende sacrifício como
algo feito para você. Mas Zeus falou com os mortais no Olimpo, e nós
sempre entendemos de outro jeito. Nós fizemos sacrifícios para honrar os
deuses, para agradecê-los, para pedir proteção… ou buscando perdão.
— Eu vou arrancar a sua língua — disse Fúria — como eu deveria ter feito
quando você não era nada além de uma cachorrinha.
— Você já fez isso? — perguntou Lore à Atena. — Você já buscou a
penitência pelo que aconteceu tantos séculos atrás? Ou gastou mais de mil
anos tentando justificar o que aconteceu colocando a culpa nas Moiras… tudo
porque não consegue suportar saber que você, e somente você, é a única
culpada por perder o amor do seu pai?
A expressão de Atena estava escondida pela escuridão, mas Lore sabia que
ela era impassível, e isso acabou com o resto de esperança que tinha. Não
havia uma forma de comovê-la, não agora.
— Você deveria ser a protetora das cidades — disse Lore —, não a causa
da destruição delas!
Fúria rosnou quando se projetou para a frente, arremessando Lore para trás
e fazendo a água esguichar em volta deles.
Cada golpe a empurrava para mais longe do reservatório e do vagão-
prancha. Lutando contra o enfraquecimento que o poder de Fúria causava,
Lore se apoiou em um joelho, erguendo o escudo; ela não podia fazer nada
além de deixar que a égide aguentasse o grosso dos turbilhões de golpes.
Seus braços tremiam ao esforço de absorver cada golpe implacável e seus
dentes rangiam.
Me ajude — pensou Lore. — Por favor!
Sim — sussurrou a voz.
Ela bateu com o punho na frente da égide, fazendo-a rugir.
O som abalou as paredes do túnel, fazendo cair sobre eles algumas pedras
que se soltaram. Assim que Lore tomou fôlego, sentiu o poder do escudo
preenchê-la mais e mais, mesmo enquanto Fúria tentava enfraquecê-la.
De uma vez só, tudo parou. De algum modo, Lore sabia o que estava por
vir.
Não havia mais nenhum traço humano no rosto de Fúria.
— Isso não foi o suficiente para você, vadiazinha? Até mesmo seu pai
soube a hora de se render — disse Fúria, se divertindo. — Pelos deuses; o
mar, o fogo e as mulheres são os três grandes males.
Lore odiou aquela frase, mais até do que odiava o novo deus.
Ela avançou na direção de Fúria. Ele ergueu a espada novamente,
inabalável pelo sangue que ainda se esvaía no braço ferido.
Ele está se alimentando da minha força — percebeu Lore. Era a única
forma de Fúria ainda conseguir ficar de pé. O clímax da luta apenas
aumentou sua sede de vingança.
Mesmo que Lore conseguisse forçá-lo a um combate normal…
Ela se acalmou.
Combate normal. Ela não precisava lutar nos termos dele, como se fosse
uma caçadora.
— Eu tenho outro provérbio antigo para você — disse Lore, tirando o braço
das alças internas da égide. — Vai se foder.
Ela jogou o escudo nele. Fúria tentou pegá-lo, mas sua risada eufórica foi
interrompida assim que foi atingido bem no peito, quebrando ossos. Ele ficou
sem ar e caiu de costas no chão, preso momentaneamente sob o peso
insuportável do escudo.
— Você pode ser um deus — disse ela, gostando de vê-lo em dificuldade
—, mas eu sou uma Perseídea.
A adrenalina superou seu bom senso. Lore deu uma estocada com a espada,
seu coração estava borbulhando com o anseio de perfurar o dele.
Fúria empurrou a égide de cima dele, impedindo o golpe com a própria
espada. Atena não estava mais em sua visão periférica, o que a fez ficar
novamente alarmada.
Lore fez mais força para baixo e viu o momento em que os olhos de Fúria
se alargaram quando ela entrou em uma postura que ele não conhecia e, em
vez de continuar forçando, golpeou a parte inferior de seu estômago com os
dois joelhos, bem onde sua armadura peitoral terminava.
— Seu maior erro foi se prender nesta cidade comigo — disse Lore.
— Chega de truques, garota — rosnou Fúria, prendendo os quadris de Lore
com as pernas para forçá-la a cair de costas.
Lore tentou inclinar sua espada para cravá-la no peito de Fúria, mas a
lâmina deslizou na armadura que cobria seu tronco.
Fúria mudou de posição bradando e a prendendo no chão com todo o peso
de seu corpo. Mas sem o outro braço, não havia membro para se defender
quando ela deu uma joelhada com toda a força em sua virilha. Lore teve o
espaço exato para passar a mão por debaixo de suas costas e tirar do bolso de
trás o cilindro de um dedo de comprimento.
— Na verdade… Lore tirou a tampa com o polegar e borrifou o spray de
pimenta nos olhos de Fúria. — Só mais um truque.
Ela saiu debaixo dele se arrastando e, quando se levantou, o fez cair
novamente de costas com um chute. Lore brandiu Mákhomai, erguendo-a
sobre o pescoço exposto do novo deus. Anos de raiva, medo e dor
purificaram sua mente até que um único pensamento restasse.
Acabe com ele.
Ele não merecia nada além do que Lore queria dá-lo. Lore estocou…
Mas freou assim que a ponta estava prestes a perfurar a pele à mostra do
pescoço.
A respiração de Lore estava irregular e ela tentava acalmar seu coração
enfurecido.
Ela poderia matá-lo… e agora sabia disso. Matá-lo e tomar seu poder,
utilizando-o para se equiparar à Atena, golpe a golpe. Poderia marcar seu
nome na memória de todos os caçadores.
Mas ela nunca seria livre.
Saber que ele havia sido derrotado por ela, uma mera garota, era o bastante.
Aquilo, para ele, era um destino pior que a morte. A vingança originou o
Ágon, e não seria a vingança que lhe daria fim. Matar qualquer um deles
apenas faria a caçada continuar por mais um ciclo. Para ela e para Castor.
A pressão se dissipou em seu peito, como uma súbita tempestade se
atenuando em uma leve chuva. Ela recuperou a égide e a ergueu.
Fúria apenas rosnou, dando golpes no ar devido à raiva contida.
Palavras reverberavam dentro dela. Um destino pior que a morte.
Lore voltou-se para Atena lentamente, com essas palavras soando dentro de
si.
De repente, ela soube. Ela entendeu.
O que seria sacrifício para os deuses, senão abrir mão da única coisa que
eles desejavam de verdade além de suas próprias vidas e de poder? Sacrificar
aquilo que eles mais queriam — a temerária e derradeira conquista. As brasas
nos olhos de Atena brilhavam no centro escuro de seu elmo.
Lore soltou o braço da alça do escudo e o estendeu para a deusa.
— Pegue — disse Lore.
A deusa não se moveu. Nem mesmo respirou.
Lore se aproximou de Atena, deixando a égide no chão entre as duas antes
de recuar.
— E se eu te disser que a única maneira de se livrar do Ágon é usar seus
punhos e destruir este escudo? Socá-lo até não sobrar nada além de metal
retorcido e couro?
A deusa não se moveu.
— Você torturou e matou duas garotinhas por ela. Matou meus pais e
inúmeros outros para poder segurá-la novamente — disse Lore. — Estou
entregando-a a você por vontade própria. Pelo menos tenha a coragem de
pegá-la.
Atena deu um único passo à frente, mas parou.
— Não tem nada a ver com o poema, não é? Não mesmo — disse Lore,
tomada por uma calma estranha. — Ela nem mesmo evoca seu pai, como
você fez Fúria acreditar que evocava.
Fúria rosnou atrás dela.
— Isso é verdade?
— Meu senhor… — Atena começou a dizer.
— Você não consegue se livrar dela — prosseguiu Lore, a interrompendo
—, porque é um símbolo do amor do seu pai. O orgulho dele em você. É isso
que você quer de volta, não o escudo. O sentimento que perdeu quando se
voltou contra ele.
— É verdade, então — disse Fúria, saindo da posição ajoelhada e se
erguendo na água. Seu olhar para Atena era mortífero.
A deusa não parecia ouvi-lo. Todo o seu ser estava concentrado na égide
sob a água rasa. A expressão da deusa exibia como o peso de sua escolha a
torturava.
Atena poderia sair do Ágon e talvez extingui-lo para todos eles, mas apenas
se destruísse a única coisa que mais lhe importava.
— Destrua a égide — disse Lore. — Tem que ser você. Você precisa acabar
com isso!
Uma adaga surgiu na mão de Fúria, depois voou dela, girando pela
escuridão.
Não!
Lore teve certeza de sua decisão antes mesmo de tomá-la. No breve
intervalo entre duas batidas de coração, ela entrou na frente da adaga.
A sensação da adaga dilacerando seu peito a devastou, antes mesmo que a
dor tomasse conta e o sangue se derramasse do ferimento. Ela caiu de
joelhos, direto na água, mas, logo antes de tombar, um rosto surgiu em seus
pensamentos.
Castor.
Fúria rugiu enquanto a retirava da água, arremessando com força de volta
ao solo. A água se espalhava ao seu redor, açoitando-a por completo, até que
estivesse se afogando.
Morrendo…
O seu corpo travou, se contorcendo enquanto ela puxava o ar de forma
torturante. A imagem de Atena se partiu como um prisma, girando, até que,
finalmente, Lore vomitasse e sentisse gosto de sangue.
Fúria a retirou da água de novo, forçando o joelho em suas costas, até
dobrar. A coluna lombar de Lore estalou e ela gritou.
Lore não podia lutar. Não podia se mover. A agonia a rasgava por dentro.
— O que você fez? — A voz de Atena soava como se estivesse sendo
carregada pelo vento.
— É o veneno da hidra, Deusa de Olhos Cinzentos — disse Fúria, puxando
a faca do peito de Lore antes de jogar a jovem na água novamente. Ele ergueu
a lâmina sobre o peito dela, sobre o coração. — Tirado de um pedaço do
tecido dado a Héracles. Todas as minhas armas são revestidas por ele.
Gostaria de provar?
— Não — disse Atena, rapidamente. — Pense melhor, meu senhor. Pense
na égide! Ela desaparecerá junto com ela.
— Qual a serventia dela para mim agora — disse ele, fitando-a
ameaçadoramente —, quando minha vitória se aproxima? Não posso
convocá-lo nem serei capaz de portá-la. Deste dia em diante, apenas terei
uma espada.
— Nossa vitória.
As palavras surgiram em meio à névoa do tormento. Lore não teve certeza
se as ouviu ou apenas as imaginou. Não até que Atena falasse de novo.
— Estou certa de que você quis dizer nossa vitória — vociferou ela.
A deusa se aproximou, se curvando sobre a égide. A mão dela ficou no ar
por um segundo, resistindo. Então, com tanta facilidade quanto respirar,
Atena a ergueu da água e a levou a seu flanco.
— Assim como estou certa de que não lhe dei meu consentimento para
matar esta mortal.
CINQUENTA E CINCO

A CABEÇA DE LORE ESTAVA UM CAOS DE MEDO E DOR. INCAPAZ DE CONFIAR


totalmente nos próprios olhos, ela se concentrou no clangor de metal contra
metal. Tentou mover o corpo, tentou levantar da água que batia em seu rosto
repetidamente em uma maré frenética.
Os dois deuses se chocavam um com o outro e eram atirados para longe
pela força dos seus golpes.
— Vadia! — vociferou Fúria. — Como ousa!
Atena bateu a égide contra a armadura peitoral dele com tanta força que
criou uma chuva de faíscas. O novo deus foi arremessado quando o escudo
rugiu, e seu enorme corpo derrapou pelos trilhos e pela água. Ela caminhou
lentamente na direção dele, apreciando a maneira como ele rastejava até o
vagão-tanque.
Fúria girou rapidamente, atirando uma faca, depois outra. Atena foi rápida o
suficiente para desviar da primeira, mas Lore não conseguiu ver o que houve
com a segunda antes que caísse na água. A deusa esperou até que ele ficasse
de pé, até que estivesse a poucos centímetros de distância do vagão; perto o
suficiente para acreditar, por um momento, que ele o tocaria.
Atena, envolvida nos laços da escuridão, deu um salto bem alto no ar,
passando acima da cabeça de Fúria, com a dory firmemente empunhada. O
rosto da deusa não apresentava nenhuma emoção ou hesitação, e ela não
precisou olhar para trás de novo após estocar para trás com a sauroter,
atravessando armadura, peito e coluna, saindo do outro lado.
A espada de Fúria caiu no chão quando ele tombou sobre os joelhos, com a
cabeça pendente. Atena pegou a espada do novo deus na água, depois parou
na frente dele. Ela levou a égide até o rosto de Fúria, até que ele fosse forçado
a encarar o olhar da Medusa.
Fúria ergueu a mão. Ele carregava algo escuro.
O novo deus fechou a mão em punho com força. Houve um gemido
metálico quando uma válvula na parte de trás do reservatório se abriu, e dele
se derramaram produtos químicos imundos e oleosos.
O vagão emitiu um clangor alto assim que começou a avançar. Ele formava
ondas enquanto acelerava pelos trilhos, deixando um rastro do fogo grego
atrás dele.
Fúria soltou o dispositivo e lutou para pegar outra coisa dentro de sua
armadura — um isqueiro.
Seus dedos ensanguentados acenderam a pequena chama, e ele rosnou
quando o arremessou nos compostos químicos. Uma trilha de fogo branco-
azulado inflamou na frente dele, incendiando o coração do túnel.
O ar perto de Lore tremeluziu e ficou escaldante. Bem quando o vagão
desapareceu pelo túnel que o conectaria a outras inúmeras linhas, ela viu que
havia uma espécie de escudo antichamas cobrindo a traseira do vagão onde
os compostos queimavam. O escudo era a única coisa que impedia que as
labaredas explodissem o reservatório. Por agora…
O fogo rastejou para perto dela, mas Lore não conseguia se mexer. Aquela
palavra, que ela temera por toda a vida, soou em seus pensamentos.
Impotente.
O ar se encheu de fumaça, mas Lore ainda conseguia ver a forma de Atena,
que erguia a espada de Fúria.
— Você — disse ele, ofegante, com sangue pingando dos lábios. — Você…
perdeu!
— E você morreu — disse a deusa e, com a sua fria precisão típica, o
decapitou.
Lore fechou os olhos diante do calor que aumentava à sua volta. A agonia
descia por sua coluna e suas pernas conforme era arrastada pela água.
Quando abriu os olhos novamente, o mundo estava iluminado pelo fogo e
Atena estava parada, fitando-a de cima.
A deusa não parecia bem para Lore. Sua pele estava pegajosa de suor e
havia um corte ficando escuro em seu maxilar. O próprio brilho dos olhos da
deusa parecia reduzido.
Veneno — pensou Lore. Ela não desviou da segunda faca, afinal.
Atena tossiu, emitindo um ruído úmido e horrível. Ela pareceu se assustar
com aquilo, levando a mão ao peito, incerta. O sangue lhe escorria pelos
olhos, nariz e boca.
— Me diga… o que fazer — ordenou a deusa. — Me diga… como… parar
isso.
Mas Lore estava ruim demais para falar. Sua alma começou a se afastar de
seu corpo, e o mundo estava desaparecendo.
A deusa lançou um último olhar para Lore, com sobrancelhas franzidas, e
se levantou. Lore estava tão certa de que a deusa estava partindo, que estava
se salvando, que ganiu como um animal ferido. Ela lutava para conseguir ar,
com a respiração chiada.
Mas Atena voltou logo depois, empunhando com dificuldade uma das
adagas de Fúria.
Pela primeira vez, uma história era contada no rosto da deusa. A emoção se
agitava em seu semblante plácido. Raiva. Arrependimento. Aceitação.
A deusa passou a adaga para Lore, fechando cuidadosamente seus dedos ao
redor do cabo, e sua própria mão sobre a da jovem.
Os olhos de Lore se arregalaram enquanto a encarava; e seu corpo foi
tomado pelo medo. Pelo pavor.
Ela não… Atena nunca faria isso, e mesmo com seu profundo ódio por ela,
mesmo que estivesse desesperada para achar uma maneira de proteger quem
amava, Lore nunca iria querer que ela fizesse isso. Ela nunca iria querer isso.
— É assim que deve ser — disse Atena, com a voz rouca. O seu corpo
tremia violentamente agora, tentando lutar contra os efeitos do veneno. — Eu
não tenho… salvação… Você nascerá de novo. Terá mais tempo. Lute de
novo… até o fim. Esta… é a única… escolha lógica. A cidade… deve ser
protegida.
A deusa apontou a ponta da lâmina para seu coração. Ela deu à Lore a
escolha final.
Nunca será livre.
Lore estremeceu, apertando os olhos. Ela só queria se agarrar à pequena e
latejante esperança dentro de si, aquela que a carregava como uma tocha
contra escuridões impossíveis. Queria a vida que lutou tanto para construir, e
estava tão desesperada por isso quanto pelo próximo fôlego. Queria chorar
como não chorava desde criança. Queria os seus pais.
Ela queria tudo, mas isso nunca. Isso nunca.
Lore nasceu nesta jaula e agora morreria nela; se não pelo corpo, então pela
alma.
Mas a cidade precisava ser protegida, e ela a protegeria.
Olhou Atena nos olhos e assentiu.
O olhar que deusa a lançou era firme, uma ordem perpétua.
— No coração.
Juntas, afundaram a adaga, o golpe foi forte e certeiro. A deusa tremeu, de
olhos abertos, piscando em prateado enquanto ela via algo, sentia algo, além
de aceitação.
Foi uma morte de guerreira.
O último acerto de contas divino.
CINQUENTA E SEIS

O FÔLEGO EXPLODIU NOS PULMÕES DE LORE, E SEU PEITO SE EXPANDIA


dolorosamente enquanto ela puxava mais ar, tentando aliviar o fervor sob sua
pele. Seu coração trovejava, ameaçando rasgar-lhe as costelas e a pele.
Então, o seu corpo rugiu em fogo.
Uma tempestade de luz girou em torno de Lore, engolindo-a para suas
profundezas. Seu corpo emergiu da água. Veias como relâmpagos traçavam
seus membros.
Os restos mortais de Atena se transformaram em cinzas. O ser que surgiu
delas, flutuando como a luz que nasce, raiando sobre uma terra adormecida,
era quase indescritível, moldada por energia pura e esplendorosa.
A deusa olhou para Lore uma última vez, estendendo a mão para a égide.
No intervalo entre duas batidas de coração, ambas desapareceram, deixando
para trás centelhas que tremulavam na escuridão enquanto se dissipavam.
E então o mundo que Lore conhecia desapareceu com elas.
Ela gritou quando a dor se instalou. Ela estava tomada por energia,
consumindo o seu sangue, músculos e ossos. Era um esvaziamento. A
erradicação de cada pedaço de matéria que já viveu dentro dela.
Os segundos se arrastavam, recuperando lentamente a velocidade normal.
Lore sentiu sua consciência começar a deixá-la, a entrar em deriva. O
relâmpago, aquela energia desenfreada, corria dentro dela, ameaçando
despedaçar seu corpo mortal.
Lore não sabia o que lhe restaria, sabia apenas que talvez não tivesse como
tocar o tanque de fogo grego, quanto mais pará-lo.
— Eu preciso… — Ela precisou gritar mais alto que o turbilhão de vento
chicoteando e forças ressoando à sua volta. — Eu preciso ficar… eu preciso
de um pouco mais de tempo… eu preciso ficar!
Houve uma explosão de energia em sua coluna assim que seu corpo caiu na
água em chamas. Lore cambaleou até ficar de pé. Dentro dela, algo se
debatia, pulsando contra a barreira de sua pele.
Lore olhou para as mãos. Correntes menores do mesmo relâmpago
dançavam sobre os nós de seus dedos e palmas das mãos. Ela não percebera a
intensidade da dormência em seus sentidos até que eles retornaram. O ar, de
repente, parecia uma criatura viva, fria em alguns lugares, úmida em outros,
sempre em movimento, sempre passando por ela.
Suas pernas estavam preparadas quando ela saiu correndo, em uma
explosão de força e velocidade até então desconhecidas.
O vagão voava nos trilhos, e o fogo o seguia. As chamas começaram a
escalar as paredes de pedra, devorando as vigas e os próprios trilhos.
Lore alcançou o vagão logo antes que ele passasse pelo túnel que o enviaria
para baixo da Grand Central Station. Bradando, se colocou na frente dele,
segurando a borda plana do vagão com as próprias mãos. Enterrando os pés
nos trilhos, ela se esforçava para impedir a força do motor.
O vagão estalava e rangia enquanto lutava para seguir adiante. Lore cerrou
a mandíbula, soltando um grito áspero quando ergueu o pé para acertar a roda
frontal do lado direito e depois a do lado esquerdo, até entortá-las. Ela
inclinou o vagão todo para frente, amassando e esmagando o metal como se
fosse papel, até que ele não pudesse mais se mover.
Ela arrebentou as amarras do reservatório, puxando o enorme recipiente
para si. Lore rosnou quando o fogo grego lambeu as suas pernas e braços
desnudos, mas aguentou firme até que pudesse esmagar a válvula aberta e
parar o jorro de fogo grego.
Lore rolou o reservatório para a estação o máximo que sua força permitiu,
para as águas que não estavam pegando fogo.
O fogo não podia ser extinto por água. Seu pai lhe contou sobre fogo grego,
ele disse…
Que só podia ser apagado com terra. Acabando com o oxigênio.
Lore deu meia-volta e olhou para os trilhos abaixo da Grand Central uma
última vez. Para as plataformas distantes que ela poderia usar para escalar
para fora do inferno ardente e encontrar os outros.
Ela respirou fundo, apoiando as mãos contra uma parede do túnel.
Não está livre — esse pensamento a perfurou. — Nunca será livre.
Mas os outros seriam.
Lore despedaçou a parede de pedra, socando até que a entrada do túnel
desabasse e a estação desaparecesse de vista atrás do muro de destroços.
O caminho do fogo estava impedido por enquanto, mas ele não pararia de
queimar enquanto houvesse água. Se o calor se acumulasse demais, faria as
ruas acima desabarem. Ela tinha que encontrar um jeito de extingui-lo. De
acabar com o oxigênio.
Lore correu para o trajeto de onde veio. O calor a dilacerava por todas as
direções, mas ela não parou até alcançar a Linha 61. A estação inteira estava
pegando fogo; aquilo não tinha fim. Nem havia maneira de drenar a água.
Sim — percebeu ela — tem sim.
Ela não era impotente.
Respirando fundo o ar em brasas, Lore seguiu para o centro da estação,
ofegante devido ao fogo grego que se rastejava por suas roupas e sua pele.
Ela caiu de joelhos e pressionou os punhos contra o solo oculto por baixo da
água em chamas.
Ela poderia mandar a água e o fogo para o ventre da terra, onde ele não
poderia se alimentar de ar nenhum, apenas da escuridão.
Por favor — pensou ela, levantando um punho. Aquela sensação elétrica
ainda se acumulava em seu interior, só que dessa vez Lore não resistiu a ela.
Ela a libertou.
A energia se reuniu em sua mão, brilhando como ouro derretido. Lore bateu
com o punho na terra, soltando um grito gutural. O chão rugiu em resposta ao
se partir. Rachaduras como teias de aranha surgiram, emitindo um brilho
dourado sob as chamas e a água.
Lore fechou os olhos, concentrando-se na sensação do calor e da energia se
derramando por ela. Ela sentiu como se estivesse afundando cada vez mais,
conforme seu poder incinerava as pedras embaixo de si. Não havia como
fugir daquilo. Ela seria levada para a escuridão e extinta, junto com as
chamas. Sozinha. Ela estava sozinha…
— Fiquem comigo — bradou Lore, respirando com dificuldade, chorando
copiosamente, tentando respirar e buscando algum alívio com tudo
desabando à sua volta. Não me deixem…
Eles não a deixaram.
Ela sentiu a família em sua volta; seu toque terno, acariciando suas faces,
envolvendo-a. E, além deles, havia uma presença que seus olhos não
conseguiam ver.
A energia irradiava furiosa em seu corpo, tão pura quanto o coração
escaldante do mundo. Tão antiga quanto o Caos e os mundos de nascidos.
— Lore! — A voz de Castor atravessou a estação. — Lore!
Ela olhou para cima, procurando por ele em meio à fumaça e o encontrando
no elevador.
— Saia daqui! — gritou ela, sem ar.
O cheiro de cabelo e pele queimados subiu à sua volta e ela nem percebia
que vinham dela. Escorria suor de seu rosto enquanto socava o chão,
pulverizando o rochedo. A água escaldante se derramava pelas rachaduras
que aumentavam. Estava funcionando. Aquilo estava funcionando.
De soslaio, viu Castor correr para frente, protegendo o rosto das chamas.
— Não faça isso! — gritou ele. — Nós precisamos sair daqui! Não há nada
que você possa fazer!
Sempre havia algo que ela podia fazer.
Centelhas de sua energia flutuavam à sua volta, ficando presas em seu
cabelo e transformando sua pele em um cosmos brilhante. Seus braços
tremiam ao esforço de tentar manter o pouco controle que ainda tinha sobre si
mesma. Suas mãos resplandeceram como ouro quando ela deu um último
soco no chão e finalmente abriu o mundo abaixo dela.
O fogo grego caiu nas profundezas da fenda, que drenou a estação. Ela deu
outro soco no túnel, pulverizando mais pedras a fim de soterrar o fogo. O
túnel estremecia à força de cada golpe, como se estivesse prestes a ceder.
Apenas uma ideia lhe fazia sentido. Ela precisava enterrar o fogo… Mas ela
estava machucada… Todo o seu corpo estava em chamas…
O brilho de suas mãos se intensificou, se espalhando para seus braços,
envolvendo-a inteira, até que Lore não pudesse dizer se a luz que irradiava
vinha dela ou das chamas.
— Pare! — A voz apavorada de Castor a alcançou. — Lore, pare!
Ele lutou contra o calor, forte e fulgurante, enquanto as vistas de Lore
começaram a ser tomada pela escuridão.
— Já é o bastante! — disse ele. — Se a rua ceder, vai arrastar o hotel junto.
— O fogo… — disse ela, rouca.
— Ele já apagou! — disse Castor, segurando os seus braços, tentando
forçá-la a olhar para ele.
As paredes e o chão pararam de tremer, e o restante da água chiava
enquanto caía na fenda que ela criou.
Mas Lore estava além do alcance de qualquer voz; a mesma atração
profunda exercida pelo poder que ela sentiu antes voltou, ameaçando
dilacerar seu corpo enquanto ela ascendia. Suas veias brilhavam como ouro
sob a pele enquanto o restante de seu sangue mortal era consumido pelo fogo.
Ela se sentia tão etérea quanto a fumaça.
Castor a pressionou contra ele, com força.
— Não… não… — suplicou ele. — Não vá!
A energia dela deixou marcas na pele do novo deus. Isso gerou um estímulo
nela, puxando-a para longe da luz abismal na qual ela se dissolvia. Estou
machucando ele.
Castor a beijou. Beijou-a até que aquele poder ofuscante não mais
controlasse a mente e o corpo de Lore. Senti-lo se tornou um vínculo como o
mundo, e ela se apegou a isso com tudo que tinha.
A energia ardente se dissipou em volta deles. Nada parecia real, exceto ele.
— Fique aqui — disse Castor de novo, quando parou de beijá-la. — Não vá
embora sem me levar junto…
Não restava mais nada em sua mente. Não havia restado nada dela neste
corpo. E quando a escuridão finalmente veio buscá-la, não pareceu um fim,
mas um começo.
CINQUENTA E SETE

PARA A SURPRESA DE LORE, ELA ACORDOU NO MUNDO QUE PENSOU TER DEIXADO
para trás.
A cidade cantava para ela a sua velha canção, a princípio, baixinho, mas
aumentando em volume e ritmo. Dezenas de motores roncavam pelas ruas, o
começo do que talvez estivesse por vir nos próximos dias. Equipamentos de
construção tiniam e ressoavam ao esforço da remoção dos escombros. As
pessoas andavam pelas ruas, rindo, e aquele era o som ao qual Lore se
apegou, o ruído que se enfiava em seu coração assim que abria os olhos.
O rosto ansioso de Miles a encarava de volta. Sua mão apertou a da amiga e
ele mordeu o lábio tentando não chorar. Parecia que ele, de algum modo,
conseguiu tomar banho ou dar uma boa limpada no rosto e se barbear.
— Seus olhos — sussurrou ele.
Lore tentou pensar no que dizer a ele. Agora que estava acordada, aquela
sensação desconcertante estava de volta. O poder se movia dentro dela,
inquieto em seu confinamento. Seu corpo, que a havia servido tão bem por
tantos anos, que ela fortaleceu, amou e deixou cicatrizes, parecia
insubstancial demais para Lore agora. Em vez disso, ela olhou em volta.
Eles estavam em casa, no seu quarto.
Lore estava surpresa por esse simples pensamento a deixar à beira das
lágrimas. Ela pigarreou.
— Eu não queria que isso acontecesse.
Ele sorriu para ela, choroso.
— E tudo bem, eu acho.
Miles abriu as cortinas do quarto, convidando a luz do sol da tarde a entrar.
Lore sentiu o calor passar por ela tão vividamente quanto sentia o cobertor
contra a pele.
Ela sentou-se de repente.
— Que dia é hoje?
— Sábado — disse ele. — Você está dormindo desde que Castor curou suas
feridas.
Sábado. O pensamento a preencheu com uma onda de pânico. Restavam
apenas algumas horas para o fim do Ágon.
— Cadê todo mundo? — perguntou ela, com o coração acelerando
enquanto olhava o espaço vazio em volta. — Eles estão bem? — Lore teve a
súbita e vívida lembrança do que havia acontecido na estação de metrô. — O
Castor está…?
— Ele está bem. Todo mundo está bem. Quero dizer… bem sem contar o
trauma levinho que acontece quando a gente não processa direito o que
houve, mas bem. — Miles esfregou a nuca. — Eles subiram para o terraço há
um tempinho para respirar ar fresco.
Um silêncio confortável se estabeleceu entre eles. Lore respirava
calmamente, apreciando a sensação do ar entrando e saindo. Como era fácil.
Ela percebeu que ainda segurava a mão de Miles, mas não a soltou.
— O que vai acontecer com você quando acabar o dia de hoje? —
sussurrou ele. — Você vai sumir? Vai ser caçada como os outros daqui a sete
anos?
Ela balançou a cabeça negativamente.
— Eu não sei. Mas… espero que tudo tenha acabado. De vez.
Lore se sentiu repentinamente desesperada para ver a sua cidade. Levantou-
se lentamente da cama, soltando a mão de Miles para ir até a janela.
Conforme se movia, o poder se movia junto, fluindo por seus músculos e se
enroscando em torno de cada articulação e tendões.
Miles ficou ao seu lado.
— E se o Ágon levar você junto e não puder mais voltar? Atena disse que
os deuses moram em um mundo além do nosso… é para lá que você vai?
— Esta é a minha casa — disse Lore. — Mesmo se eu perder este corpo,
vou encontrar um jeito de voltar. Eu sou determinada, e você sabe o que isso
quer dizer.
— Que você vai correr que nem louca atrás do ônibus para a Terra se o vir
chegando mas estiver longe do ponto? — disse Miles.
— Talvez. — Lore riu com vontade, mas viu que ele precisava de outra
garantia. — Talvez eu precise ficar longe por um tempo, mas nunca vou
deixar você para sempre. Não se eu puder evitar.
— Tá, mas a questão é que eu não quero nem que você vá — disse Miles.
Lore desviou o olhar para a rua abaixo, observando as primeiras cores do
pôr do sol se demorando em seu querido bairro em um momento de
iluminação perfeita. Um casal passeava com o cachorro e um carrinho de
bebê, homens riram em sincronia quando o bebê jogou um brinquedinho em
formato de estrela na rua.
Ele a fitou novamente, encostando a têmpora contra o vidro morno.
— Você realmente parece um pouco diferente, mas ao mesmo tempo não.
Não consigo explicar.
— Eu também não — disse Lore. — Eu só me sinto… leve.
Ela apoiou o braço no ombro de Miles. Ele fez o mesmo.
— Sabe, esta cidade é uma zona — disse Lore depois de um tempo. — Mas
é uma zona lindíssima.

Lore e Miles se juntaram aos outros no terraço. O pôr do sol havia


começado para valer, dando um show em tons ouro-rosado e violeta.
Castor se levantou para pegar as sacolas de petiscos que Miles trouxera.
Quando ele a viu, ela percebeu o lampejo de preocupação que passou pelos
seus olhos, embora ele tenha feito o melhor que pôde para disfarçá-la.
Iro e Van estavam sentados em um cobertor que estenderam na superfície
áspera. O coração de Lore se aqueceu ao vê-los e sentiu uma felicidade tão
límpida que quase a assustou. Os dois trocaram um olhar, como se um
cutucasse o outro silenciosamente para que dissesse alguma coisa.
Então ela ficou subitamente envergonhada; como se o que aconteceu e o
que ela fez fossem um fantasma que todos podiam ver, mas ninguém queria
reconhecer.
Lore odiava muito ficar envergonhada.
— Cara, a gente precisa mesmo colocar uma piscina ou fazer um jardim
aqui em cima — disse Lore, fingindo olhar em volta. — Qual é o sentido de
ter uma casa com acesso ao terraço se você não pode tirar onda com os
vizinhos?
— Acho que o sentido é não violar as normas de construção da cidade —
disse Miles, tranquilamente. — É não ter que pagar uma multa exorbitante.
— Você não tem contatos na prefeitura? — perguntou Lore. — Pense no
seguinte… uma iluminação legal, algumas plantinhas aqui e ali…
— Você matou todas as plantas que trouxe para casa — disse Miles. — E
quando eu fui para Flórida nas férias você matou as minhas plantas, porque
se esqueceu de regar.
— Eu estava ocupada — protestou Lore. — Elas pareciam bem.
— Como fomos parar nesse assunto? — perguntou Castor, pegando um
pacote pequeno de pretzels e jogando para Van.
— Como você sabia que eu estava com desejo de comer isso? — perguntou
Van, tirando um do pacote.
— Porque nós estamos comendo que nem ratos de metrô nos últimos dois
dias e você já comeu o salgadinho de queijo esta manhã.
— Os ratos do metrô pelo menos comem fatias de pizza jogadas no chão de
vez em quando — disse Lore.
— Podemos, por favor, parar de falar de ratos? — pediu Van, incomodado.
Lore e os outros ficaram ao redor das sacolas, espalhados pelo terraço
aquecido pelo sol quando finalmente o astro-rei mergulhou no horizonte.
Enquanto Miles tagarelava sobre as novidades que recebeu de Columbia
sobre o atraso no começo do ano letivo, Lore fitou Iro.
— Tudo bem? — disse Lore, sem emitir ruído.
Iro assentiu. Não havia um único hematoma ou arranhão visível nela, e
aquilo não parecia ser possível, julgando pela batalha que ela provavelmente
travou no hotel. Castor deve ter curado todos depois de cuidar de Lore.
Ela se inclinou para trás e olhou para o céu. Sem a iluminação habitual da
cidade, era fácil ver as estrelas.
Castor, Miles e Van foram para a beirada do telhado, e o novo deus apontou
para as mesmas constelações que Lore havia notado silenciosamente.
O pai de Lore ensinou-as para ela e Castor, contando-lhes os mitos por trás
de cada uma. Como os heróis de outrora e tantos outros, ela acreditava que a
única honra maior que o kleos era os deuses lhe concederem um lugar entre
as estrelas.
Às vezes Lore se pegava procurando sua família naquelas luzes. Quando o
peso do luto a visitava, quando sentia falta deles com a dor que impedia
completamente o sono, ela inventava constelações para cada um deles.
Lore levou a mão ao peito, esfregando-o. Com o tempo, sabia que os veria
novamente, mas não agora. Ela fugiu da morte tantas vezes que parou de
contar, mas não esqueceu que o ser que destruiu sua vida foi o que lhe deu
uma segunda.
Iro veio deitar ao lado dela, observando o céu escuro. Lore voltou-se para
fitá-la.
— Está tudo bem com a sua linhagem? — perguntou Lore. — O que
aconteceu no hotel?
— Os Odisseídeos estão machucados, mas se recuperando — disse Iro. —
Só perdemos um caçador na luta. Depois que os Cadmídeos descobriram o
tanque de fogo grego e que foram trancados lá dentro com a gente, a luta
parou e eles se prontificaram a nos mostrar como extinguir as chamas. Foi
tudo muito estranho, por assim dizer.
— Os Odisseídeos têm sorte de terem você como líder — disse Lore.
Iro balançou a cabeça negativamente.
— Se fosse assim tão simples… Eu quero que eles me escutem, mas ainda
tem uma pequena parte de mim que sente como se… eu não esteja destinada
a liderar.
— Está, sim — disse Lore.
Iro respirou fundo.
— Não sei como convencer os anciões de que temos que encontrar um
novo papel neste mundo, mas espero que minha mãe possa ajudar. Ela nos
encontrará na propriedade de Loire Valley. Vamos lutar pela alma dos
Odisseídeos juntas.
— Que bom — disse Lore. — Isso é bom, Iro. Não sei se tem algo que eu
possa fazer para ajudar, mas vou tentar.
Iro debochou.
— O que você poderia fazer?
— Te derrotar no treino de luta? — sugeriu Lore.
— Nunca se esquece disso — disse Iro. — Não importa quantas eternidades
você viva.
— Se eu tiver sorte de viver esse tanto — disse Lore, baixinho.
— Você… — Iro começou a dizer, parecendo incerta de como fazer a
pergunta. — Você quer isso mesmo?
— Eu não sei o que eu quero nem como me sinto de verdade. Na maior
parte, me sinto triste, acho — disse Lore. — Talvez essa não seja nem a
palavra certa. É como se eu estivesse sentindo falta de tudo e de todos vocês,
mas ainda estou aqui. Não consigo afugentar essa sensação de que ter o poder
de Atena só criará mais problemas. Que não importa o quanto eu tente, vou
perder o contato com a minha humanidade e vou acabar repetindo as mesmas
atitudes destrutivas dos deuses antigos.
Lore não queria que as eras passassem como apenas momentos ou que o
tempo perdesse o significado para ela. Ela não queria decidir como e quando
usar o seu poder e sabia que inevitavelmente cometeria erros.
Ela não queria continuar viva depois que todos os seus amigos morressem.
— Nós não sabemos o que vai acontecer até que chegue a hora — disse Iro,
enquanto os outros voltavam. — Mas até lá, vamos ficar aqui juntos, pelo
tempo que a noite nos permitir.
Lore assentiu, mas as duas sabiam exatamente quanto tempo seria. Até
meia-noite.
Eles comeram e beberam conforme a noite caía. Finalmente, Lore lhes
contou o que aconteceu no túnel e o que Atena fez. Ela respondeu às
perguntas que podia, ainda que também tivesse muitas.
À medida que a hora passava, a noite parecia um sonho. O fluir das
conversas e das risadas, os rostos iluminados por luz de velas. Lore
observava tudo, receosa demais de desviar o olhar e acabar perdendo um
segundo da vida que amava.
CINQUENTA E OITO

LORE SENTIU O MOMENTO EM QUE A LUA SE APROXIMAVA DO VÉRTICE DE SEU


arco no céu.
Desprendendo-se do calor confortável dos braços de Castor, ela se sentou.
Os outros dormiam por ali, esparramados sob as estrelas. Van e Miles, com
as mãos entrelaçadas, Iro com o suave semblante de estar sonhando.
Ela pegou o celular, checando a hora. 23:50.
Lore prometera a Miles e aos outros que ela e Castor os acordariam antes da
meia-noite. Ainda assim, quando sua mão pairava sobre o ombro dele, ela
não conseguiu cumprir a promessa. Ela já havia passado por muitas
despedidas na vida, todas dolorosas, e nenhuma como ela queria.
Em vez disso, pegou o celular de Miles que estava ao lado do amigo, fez
uma careta, tirou uma foto e colocou como papel de parede. Depois, na pasta
de rascunhos do e-mail, deixou instruções de como acessar a conta do banco
intocada que Gil — Hermes — havia deixado para ela e onde estavam as
chaves para a caixa segura com a escritura da casa.
— Por que está sorrindo?
Castor estava cochilando há uma hora, mas ele deve ter sentido a mudança
no mundo também. Ele levantou-se e se alongou, girando os ombros para trás
e balançando os braços, como se quisesse se recordar da sensação de tê-los.
Lore pôs um dedo nos lábios, pedindo silêncio enquanto colocava o celular
ao lado de um dorminhoco Miles. Ela estendeu a mão para pegar a de Castor.
Eles caminharam com dedos entrelaçados até o outro lado do telhado.
Ele olhou para a cidade escura, imóvel, sem suas luzes deslumbrantes.
— Eu lembrei.
Ela o fitou, esperando que continuasse.
— Eu sonhei com isso, agora pouco — disse Castor. — Apolo me deixou
matá-lo, mas ele não morreu. Ele ascendeu.
Exatamente como Atena.
— Era isso o tempo todo? — perguntou Lore. — Eles tinham que dar a vida
voluntariamente para um humano?
— Acho que é mais do que isso. Você se lembra do que o Folião disse? —
perguntou Castor. — Que até Apolo sabia que isso nunca acabaria e que
tudo… o Ágon, a matança, era tudo em vão? Eu vi isso nele. A percepção
que estava destruindo-o. Ele me disse que conseguia sentir a doença em mim
e ficou zangado. Ele quebrou o quarto, destruindo tudo que tocava. Pensei
que fosse porque estava furioso por eu ter ousado olhá-lo nos olhos, ou por
ter sido encontrado, mas não foi isso.
Castor respirou fundo mais uma vez.
— Ele ficou parado. Toda aquela raiva, e depois… silêncio. Uma reflexão.
Ele desembainhou sua adaga e veio até mim.
— Você ficou com medo? — sussurrou Lore.
Castor balançou a cabeça.
— Não. Tinha algo diferente na expressão dele… uma concentração. Ele
me perguntou se eu queria viver. Respondi que não tinha medo de morrer.
Não mais. E ele disse: Se um mero garoto é destemido, me equipararei à sua
coragem. Ele pôs a adaga na minha mão e fechou a dele em volta. Eu não
conseguia puxar a mão. Não consegui me soltar. Ele disse: Não sou
desprovido de poder nem de propósito, e puxou minha mão, enfiando a faca
em seu coração.
Lore não conseguiu falar por um momento.
— Por que ele simplesmente não curou você? Ele podia fazer isso, não?
— Não sei — disse Castor. — O Ágon estava quase no fim. Ele recuperaria
seu poder total em alguns momentos. Mas acho que ele queria se libertar
disso… queria fugir da interminável dor, violência e perda, tanto quanto nós.
— E ele se libertou da única maneira que sabia que funcionaria — disse
Lore. — Deixando que você o matasse.
Ele assentiu, esfregando o rosto.
— Eu não sei se foi um sacrifício genuíno, porque, de certa forma, foi útil
para ele. Acho que eles precisam se lembrar do verdadeiro propósito deles e
só podem fazer isso desistindo do poder que tentavam preservar com tanto
desespero.
Um suspiro suave escapou dos lábios de Lore.
Lore se questionou: onde estarão os outros deuses agora? Livres ou ainda
presos no sombrio mundo inferior?
As mãos dela fecharam em volta das de Castor, precisando de seu toque.
— Vai ser a mesma sensação que tive na estação? Ir embora vai doer?
— Eu não sei — disse Castor, tirando o cabelo do rosto dela. — Não sei
muito bem o que vai acontecer.
Os segundos passavam depressa demais. Lore apertou a mão de Castor. Seu
coração palpitava com força no peito, e ela se perguntou como seria não
senti-lo.
Lore ficou de pé, segurando o rosto dele entre as mãos e se abaixando para
beijá-lo antes que fosse tarde demais.
— Você está com medo? — perguntou ele.
Ela balançou a cabeça negativamente.
— Apenas… preocupada por deixar os outros.
Mas era mais que isso.
— Eu não quero nem ir.
— Se você pudesse escolher — Lore começou a dizer —, com tudo que
você sabe… você ficaria com o seu poder?
Ele pensou na pergunta, acariciando o maxilar dela.
— Não. Eu nunca o quis para sempre. Quando eu estava doente, só queria
um momento a mais. Uma hora a mais. Um dia a mais. Eu queria treinar luta
com o meu pai, continuar meu treinamento para ser um curandeiro e correr
pela cidade com você…
Lore fechou os olhos, se concentrando na sensação que ele provocava nela,
no som de sua voz.
— Eu precisei do poder essa semana, não importando o que eu pensava dele
— disse Castor. — Mas ainda me sentia como antes, quando era um garoto.
Grato pelos dias bons, quando sentia meu corpo forte. Grato por qualquer
momento que passo com você.
Lore abraçou Castor pela cintura. Ele descansou a bochecha no cabelo dela.
Eu não quero ir — pensou ela. — Eu não quero perder isso, nem por um
momento.
Ela não queria a eternidade. Só queria abraçar Castor. Só queria saber que
seus amigos estavam a salvo e por perto. Só queria ouvir o coração da cidade
batendo, ficando mais firme a cada dia.
— Por favor — sussurrou Lore; para o próprio Portador da Nuvem, para
qualquer um que pudesse. — Permita que a gente tenha uma escolha. Permita
que isso acabe.
O ar mudou ao redor deles, como se respondesse. Ela sentiu uma corrente
se espalhando em uma dança selvagem por seus sentidos. Uma presença
cresceu atrás deles, uma parede de imensa e estrondosa pressão. Ela não deu
meia-volta para encará-la.
— Por favor — sussurrou Lore de novo, repetindo a prece desesperada. —
Permita que a gente fique.
Liberte-nos.
O vento subiu, bagunçando o seu cabelo. Cantando uma canção antiga,
carregando tudo que parecia ver através de terras, mares e séculos. Ela
respirou fundo quando passou por ela; um repentino calor que se espalhou
através da sua alma. Lore agarrou Castor com mais força, mas não sentiu
nenhuma dor. Havia apenas uma luz para além de suas pálpebras fechadas.
A implacável pressão cedeu à medida que o poder que cintilava dentro dela
foi removido de seu corpo como um fio se desenrolando. Ela respirou fundo
com a sensação e novamente quando ela passou. O ar ficou sereno e os sons
da cidade voltaram.
Lore abriu os olhos.
— Cas…?
Ele abriu os olhos. Por um momento ela apenas conseguiu encará-lo com
um silencioso espanto. Os olhos de Castor estavam escuros novamente, sem
as centelhas de poder nas íris. Eram os olhos que ela via todos os dias,
quando criança. Os olhos que ela amava.
O corpo mortal de Castor estava quente e próximo ao dela. Ela sentiu o
coração dele começar a bater loucamente no peito. A euforia pura tomou
conta.
Obrigada — pensou ela. — Obrigada.
Castor soltou uma leve e contente risada, e suas mãos tocavam os braços, o
cabelo e o rosto de Lore, como se precisassem se certificar de que não era um
sonho.
No alvorecer do oitavo dia, Lore sorriu e o beijou.

LISTA DE PERSONAGENS

DEUSES

MORTOS NO INÍCIO DO ÁGON


Afrodite — Deusa da beleza, da procriação, do prazer e do amor.
Ares — Deus da guerra, do valor, da brutalidade e da sede de sangue.
Dionísio — Deus das festividades, do êxtase religioso, da agitação, do teatro,
do vinho e da vegetação.
Hefesto (cujos poderes foram removidos do Ágon) — Deus do fogo, dos
ferreiros, da alvenaria e da metalurgia.
Poseidon — Deus do mar, das inundações, da seca, dos cavalos e dos
terremotos.

VIVOS NO INÍCIO DO ÁGON


Ártemis — Deusa da selva, da caça, dos animais silvestres, do nascimento e
das meninas.
Atena — Deusa da sabedoria, da habilidade e da estratégia de guerra;
defensora das cidades.
Hermes — Deus de rebanhos e manadas, dos ladrões, dos mercadores, dos
viajantes e da linguagem; guia dos mortos e mensageiro dos Olimpianos.

COM STATUS DESCONHECIDO NO INÍCIO DO ÁGON


Apolo — Deus da profecia, da música, da poesia, do arco e da flecha, da cura
e da luz, bem como das pragas e doenças.
NOVOS DEUSES
Guardião do Amor, detentor do poder de Afrodite.
O Folião, detentor do poder de Dionísio.
Portadora da Maré, detentora do poder de Poseidon.
Fúria, detentor do poder de Ares.

CASA DE PERSEU, FUNDADOR DE MICENAS E MATADOR DA


MEDUSA
Rhea Perseus — Mulher mortal que se tornou a Portadora da Maré, a nova
Poseidon; tem parentesco distante com Lore.
Demos Perseus — Pai de Lore e arconte dos Perseídeos; assassinado ao fim do
último Ágon.
Helena Perseus — Mãe de Lore; nascida na Casa de Odisseu; assassinada ao
fim do último Ágon.
Melora Perseus — Também conhecida como Lore; a última integrante mortal
viva dos Perseídeos.
Olympia Perseus — Irmã de Lore; assassinada ao fim do último Ágon.
Damara Perseus — Irmã de Lore; assassinada ao fim do último Ágon.

CASA DE AQUILES, HERÓI DA GUERRA DE TROIA


Philip Aquileu — Arconte dos Aquilídeos; tem parentesco distante com Castor
e Evander.
Acantha Aquileu — Ex-léaina; esposa de Philip.
Curandeira Kallias — Ex-instrutora de Castor no ofício de curandeiro.
Cleon Aquileu — Pai de Castor; morto.
Phaedra Aquileu — Mãe de Castor; morta em um Ágon anterior.
Castor Aquileu — O amigo de infância mais próximo de Lore e seu antigo
parceiro de treinamento.
Evander Aquileu — Primo distante de Castor; mensageiro dos Aquilídeos.
Orestes Aquileu — Aluno da mesma turma de treinamento de Lore e Castor.
CASA DE CADMO, FUNDADOR DE TEBAS E MATADOR DA
SERPENTE
Aristos Cadmou — Ex-arconte dos Cadmídeos que se tornou Fúria, o novo
Ares.
Belen Cadmou — Filho de Aristos, nascido fora do casamento.

CASA DE ODISSEU,O REI ASTUTO DE ÍTACA


Iolau Odisseus — Pai de Iro e ex-arconte dos Odisseídeos que se tornou o
Guardião do Amor, a nova Afrodite; depois de ascender, sua posição como
arconte foi herdada por um parente distante do sexo masculino.
Dorcas Odisseus — Mãe de Iro, que desapareceu misteriosamente; amiga
próxima da mãe de Lore durante a vida.
Iro Odisseus — Amiga e ex-parceira de treinamento de Lore.

CASA DE HÉRACLES,HERÓI DOS DOZE TRABALHOS


Iason Heracliou — Assassinou o restante de sua linhagem quando se tornou o
Folião, o novo Dionísio.

OUTRAS CASAS
A Casa de Belerofonte, matador da Quimera e cavaleiro de Pégaso (linhagem
extinta).
A Casa de Jasão, líder dos Argonautas, que recuperou o Velo de Ouro
(linhagem extinta).
A Casa de Meléagro, príncipe de Cálidon e matador do javali calidônio
(linhagem extinta).
A Casa de Teseu, rei de Atenas e matador do Minotauro.
AGRADECIMENTOS

MEU PRIMEIRO CONTATO COM A MITOLOGIA GREGA VEIO POR MEIO DE UMA CÓPIA
do D’Aulaires Book of Greek Myths [Livro de Mitos Gregos de D’Aulaire],
que meus irmãos e eu herdamos de nossa mãe, que estava ansiosa para
começar a nos apresentar nossa herança grega. Fui abençoada com uma
grande família grega que é tudo o que os caçadores neste livro não são:
incrivelmente amorosa, solidária, divertida e sempre tendo uma vasta
coletânea de lendas familiares. Eu gostaria de começar agradecendo a todos
eles.
Além da contribuição de minha família quanto ao uso do idioma grego
neste livro, tenho enorme gratidão a Brendon Zatirka e Kiki Hatzopoulou, por
me ajudarem a verificar o uso e a ortografia, e por serem heróis versáteis da
mais alta ordem quando precisei de respostas às minhas várias perguntas.
Eles, junto com Katalina Edwards e Joel Christensen, também foram muito
gentis ao avaliarem as transliterações do grego original e ao discutirem as
diversas maneiras de abordar os nomes das linhagens. (Se você fala qualquer
versão desse idioma, notará que fiquei inclinada a utilizar os nomes
romanizados para deixar as coisas mais claras para o leitor, mas tentei
preservar um pouco da “pureza” da língua, por assim dizer, sempre que
possível.)
Este livro também se valeu muito dos escritos de Mary Beard e Christine
Downing, os quais me ajudaram a refinar minha própria visão de Atenas e
muitos dos mitos discutidos nesta história, bem como o trabalho de tradução
feito por Richmond Lattimore, Emily Wilson, Samuel Butler, Robert Fagles e
Hugh G. Evelyn-White. Fãs da mitologia grega, assim como eu, perceberão
que fiz algumas perguntas sobre quais versões dos mitos eu queria utilizar
(por exemplo, a égide ser um escudo, em vez de um tipo de armadura
peitoral) — acredite em mim quando digo que todas essas decisões foram
difíceis e tomadas para contribuir para a narrativa desta história.
Lore e eu tivemos a sorte de contarmos com várias mentes editoriais
brilhantes avaliando esta história. Obrigada a Laura Schreiber, Hannah
Allaman, Marissa Grossman e Rachel Stark, por me ajudarem a descobrir a
melhor forma de contá-la. Também gostaria de agradecer especialmente a
Kieran Viola, por toda a ajuda.
Tenho muita gratidão a Ashil Lee, pelo feedback maravilhoso e detalhado,
que me ajudou a encarar esta história por um ângulo mais sensível e cheio de
nuances e ampliou muito minha própria compreensão.
Para Emily Meehan, Seale Ballenger, Melissa Lee, Augusta Harris, Dina
Sherman, LaToya Maitland, Holly Nagel, Elke Villa, Andrew Sansone, Sean
Weigold, Jennifer Chan, Guy Cunningham, Meredith Jones, Dan Kaufman,
Sara Liebling, Shane Jacobson, Alexandra Sheckler, Kim Greenberg e toda a
equipe comercial: obrigada por todo o trabalho árduo e pela dedicação em dar
aos livros a melhor vida que eles podem ter. Marci Senders: esta capa ficou
linda, fiquei sem palavras. Eu também gostaria de agradecer a Billelis pela
arte da capa, que é de arregalar os olhos (piada intencional) e a Keith
Robinson pela maravilhosa arte do interior.
Agradeço demais a Merrilee Heifetz por estar ao meu lado; a Rebecca
Eskildsen e à equipe de direitos estrangeiros da Writers House, por ajudar
este livro a encontrar leitores em todo o mundo.
Não consigo descrever o quanto sou grata à minha incrível amiga Anna
Jarzab, por acreditar nesta história e por me ajudar a pensar nela. Obrigada a
Susan Dennard, por sempre estar disposta a pesar quando preciso de outra
opinião confiável e por sua compaixão ilimitada. Finalmente, obrigada a Erin
Bowman, Leigh Bardugo, Victoria Aveyard e Amie Kaufman, por serem um
coro de vozes de apoio!
Uma Educação Mortal
Novik, Naomi
9786555205732
336 páginas

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Orion lake precisa morrer. eu sabia disso desde que ele salvou minha vida
pela segunda vez. Antes, não me importava tanto assim com ele, mas tenho
meus limites. Tudo estaria bem se ele tivesse me salvado um número
considerável de vezes, sei lá, dez ou treze. Treze é um número que chama a
atenção. Orion Lake, meu segurança particular. Eu poderia viver com isso.
Mas o fato é que já se passaram quase três anos que estamos aqui na
Scholomance, e até agora ele não tinha apresentado qualquer inclinação para
me tratar de um jeito diferente ou especial. Você deve me achar egoísta por
contemplar com essas intenções assassinas o herói responsável pela
recorrente sobrevivência de um quarto da nossa turma. Bem, só lamento pelo
bando de perdedores que não conseguem se virar sem a ajuda dele. Seja
como for, não fomos todos feitos para sobreviver mesmo. A escola precisava
se alimentar de alguma forma.

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Prazeres Violentos
Gong, Chloe
9786555205817
464 páginas

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O ano é 1926, e Xangai responde à melodia da devassidão. Uma disputa


sangrenta entre duas gangues tinge as ruas de vermelho, deixando a cidade
totalmente indefesa, nas mãos do caos. No coração disso tudo está Juliette
Cai, uma jovem de dezoito anos e ex-melindrosa que voltou para assumir seu
posto como a orgulhosa herdeira da Sociedade Escarlate — uma organização
criminosa muito acima da lei. Seus únicos rivais à altura são os Rosas
Brancas, que combateram os Escarlates por gerações. Por trás de cada uma de
suas ações está seu herdeiro, Roma Montagov, o primeiro amor de Juliette…
e seu primeiro traidor. Entretanto, quando gangsteres de ambos os lados dão
sinais de instabilidade, culminando no ato de dilacerar o próprio pescoço, as
pessoas começam a murmurar. Sobre uma epidemia, um surto. Sobre um
monstro nas sombras. À medida que as mortes aumentam, Juliette e Roma
precisam deixar suas armas — e seus rancores — de lado e trabalhar juntos.
Afinal, se não puderem impedir essa catástrofe, não sobrará cidade alguma
para dominarem.

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Uma Garota Cubana Chás e Amanhãs
Namey, Laura Taylor
9786555205756
256 páginas

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O SOL DE MIAMI, O ACONCHEGO DE UMA CIDADE PEQUENA DA


INGLATERRA, A DOR DO LUTO, O TÉRMINO DE UM
RELACIONAMENTO NÃO TÃO SAUDÁVEL E… UM ROMANCE
PARA DEIXAR O CORAÇÃO QUENTINHO. Para Lila Reyes um verão na
Inglaterra nunca fez parte de seu plano, que era: 1) assumir o papel de sua
abuela como padeira-chefe na panadería, 2) morar com a melhor amiga após
a formatura, e 3) viver feliz para sempre com o namorado. Mas então A
Grande Tríade aconteceu, e tudo ― incluindo ela própria ― desmoronou.
Preocupados com a saúde mental de Lila, seus pais traçam um novo plano
para ela: passar três meses com amigos da família em Winchester, Inglaterra,
para relaxar e se restabelecer. Mas, com a falta de sol, uma cozinheira
rabugenta da pousada e uma pequena cidade sem o sabor de Miami (tanto a
comida quanto outras coisas), o que seria uma viagem dos sonhos para alguns
parece mais um pesadelo para Lila... Até ela conhecer Orion Maxwell.
Balconista de uma loja de chás com seus próprios problemas, Orion está
determinado a ajudar Lila a superar a tristeza e se autodenomina seu guia
turístico pessoal. Do cenário musical repleto de drama de Winchester
paisagem inglesa do campo, não demorou muito para que Lila ficasse
encantada não apenas com Orion, mas também com a Inglaterra. Logo um
novo futuro começa a se formar na mente de Lila ― um que significaria
abandonar tudo o que ela planejou.

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A Mesa dos Jogadores
Goodman, Jessica
9786555206012
336 páginas

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A Mesa dos Jogadores é um thriller apaixonante sobre poder, privilégio e a


perigosa busca pela perfeição dos jovens do ensino médio. Tudo na vida de
Jill Newman e de seus amigos parece perfeito. Brilhantes, intocáveis,
destinados à grandeza, eles têm as melhores festas, as melhores notas e a
admiração de toda a escola. Este vai ser o ano de sua vida. Ela tem certeza
disso. Até que a memória de um evento trágico ameaça ressurgir… Três anos
antes, a melhor amiga de Jill, Shaila, foi morta pelo namorado, Graham. Ele
confessou, o caso foi encerrado e Jill tentou seguir em frente. Mas quando
começa a receber mensagens de texto anônimas proclamando a inocência de
Graham, a perfeição do ano de Jill se desfaz. Se Graham não matou Shaila,
quem o fez? Ela promete descobrir, mas tem alguém disposto a fazer o que
for preciso para garantir que o passado permaneça enterrado.

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