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mente, mesmo não sendo velhos, estão prestes sam quando se despedem dos outros homens,
a morrer. exatamente porque a morte do outro é uma
Elias pensa a segunda forma, peculiar ao lembrança de nossa própria morte (Elias,
2001:16).
universo das sociedades consideradas "avança-
das", como um modo problemático de convi-
Medo e sentimento de culpa geram uma
vência entre uns e outros; jovens e adultos no
espécie de proibição em relação à expressão de
auge da vitalidade, velhos e doentes que vêem,
tudo que circunda a morte, proibição que se
ao seu redor, o vácuo se formar. Nesse contex-
reflete na sua exclusão, junto com os moribun-
to, aponta para a terceira opção como alternati-
dos, da vida social. Por essa razão, referências a
va capaz de propiciar uma possível identificação
esse conjunto (a morte e o que morre) são oculta-
entre vivos e moribundos, o que livraria os últi-
das, especialmente daqueles que nascem, daque-
mos da morte simbólica - morte social - a que
les que iniciam o processo de viver, das crianças.
estão condenados mesmo em vida.
Quando vêem à tona - morte e moribundo cau-
Ora, quem pode estar imune ou entorpe-
sam embaraço, constrangimento. Como tabu ou
cido o suficiente para não sentir a dificuldade
coisa estranha, o desconforto leva a uma espé-
que é sobreviver diante da ausência ou do afrou-
cie de silêncio ruidoso. A morte, o cadáver, a
xamento dos vínculos sociais e laços afetivos?
sepultura, o corpo em decomposição não po-
dem suscitar outra coisa senão a censura social.
Isso é o mais dificil - o isolamento tácito dos
velhos e dos moribundos da comunidade dos Hospitais se revestem com o design e a
vivos, o gradual esfriameruo de suas relações ambíentação de sbopping centers. Cemitérios são
com pessoas a que eram afeiçoados, a separa- parques, jardins. Nomes e paisagens, aí, tendem
ção em relação aos seres humanos em geral, a evocar a idéia de "paz", "tranqüilidade" e até
tudo que lhes dava sentido e segurança. Os mesmo de "leveza". O ápice dessa ideologia que
anos de decadência são penosos não só para
se coloca contra a lembrança da morte, da me-
os que sofrem, mas para os que são deixados
sós (Elias, 2001:8). lancolia e do luto, está presente num exemplo
que Elias dá sobre uma brochura produzida por
Elias chama atenção também para uma coveiros na qual não se encontra uma só vez a
questão que poucas vezes vem à tona quando palavra "morte".
se pensa na duração limitada de uma vida hu- Atitudes mais enérgicas, seguindo a mes-
mana. Chama atenção para o fato de que não ma orientação, não são difíceis de ser encon-
estamos acostumados a pensar no outro que tradas bem perto de nós, pois há casos de
morre, mas sim no sentimento de falta - ou na cemitérios pintados com cores supostamente
lembrança da nossa própria falibilidade - que "alegres", sob a alegativa de que se tornou
a morte desse outro pode causar em nós. Afi- démodé a estética fúnebre, antes presente em
nal, se tudo concorre para encobrir ou para todo e qualquer espaço de sepultamento dos
nos fazer esquecer que logo mais, logo menos, mortos.
envelheceremos e morreremos, o fim da vida
de um ente querido sempre reavivará a idéia O fato é que:
indesejada de que um dia iremos nós, para a Nunca antes na história da humanidade fo-
cova, certamente. ram os moribundos afastados de maneira tão
asséptica para os bastidores da vida social;
Aqui encontramos, sobforma extrema, um dos nunca antes os cadáveres humanos foram
problemas mais gerais de nossa época - nossa enviados de maneira tão inodora e com tal
incapacidade de dar aos moribundos nossa perfeição técnica do leito de morte à sepultura
ajuda e afeição de que mais que nunca preci- (Elias, 2001:31).
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Isso diz do estágio de civilização peculiar, Até mesmo após o fim de cada uma des-
às sociedades ocidentais sobretudo, pois o con- sas vidas, o cadáver e a sepultura passam aos
tato, não só com a idéia de morte e com o mori- cuidados de profissionais remunerados. A famí-
bundo, mas, mormente, com o próprio corpo do lia se distancia de todo o complexo que envolve
morto, ainda é significativamente observado em a figura do morto. Por essa razão, Elias nos faz
grupos étnicos na América do Sul e América Cen- lembrar que "a Pietà de Michelangelo, a mãe em
tral, além de povos que se encontram na África, prantos com o corpo de seu filho, continua com-
na Ásia e na Oceania. Os bororo, situados no preensível como obra de arte, mas dificilmente
Mato Grosso, são um exemplo de forma radical- imaginável como situação real". Pelo simples fato
mente oposta a que temos no tratamento da ques- de que os vivos, de maneira "semiconsciente",
tão. Seu ritual funerário rendeu escritos que ainda parecem sentir "que a morte é contagiosa e ame-
hoje surpreendem estudiosos em todo o mundo. açadora" (2001:37).
Neste, o contato com o corpo que se decompõe O morto já afastado do convívio familiar,
é intenso, o que causa pavor aos jovens estudan- já entregue às mãos de diversos especialistas do
tes brasileiros ou europeus que lêem ou ouvem leito de morte à sepultura, só pode vir a sobre-
sobre o fato, especialmente porque aqui os ritu- viver na "lembrança dos vivos". Mas, a lembran-
ais religiosos de morte, seculares, "foram esvazi- ça é, sobretudo, palavra que se pronuncia. Para
ados de sentimento e significado", tornando-se lembrar é preciso verbalizar, é preciso dizer,
expressões "pouco convincentes" (Elias, 2001 :36). narrar, pois a memória nunca foi um fenômeno
O pavor começa muito antes. Começa pela que prescindisse da socialização ou da comuni-
indisposição ou incapacidade de expressar o que cação entre indivíduos.
Elias chama de "emoções fortes", seja na vida públi- Acontece que, aqui, também se encontra
ca ou na vida privada, principalmente em relação um problema: não se quer falar sobre a vida de
ao moribundo. Para o autor, a condenação que quem morre ou sobre a morte de quem vive.
paira sobre o "sentimento espontâneo e forte" tam- Ainda naquela brochura escrita por coveiros, Elias
bém se configura como um tabu crescente da civi- diz que "o silêncio sobre a significação das se-
lização. Assim, torna-se realmente difícil "apertar a pulturas como lugares onde pessoas mortas es-
mão de um moribundo" ou "proporcionar-lhe uma tão enterradas" é "quase total". Eu diria, assim
sensação de proteção e pertencimento". (Idem). como ele, que o silêncio - enquanto sinônimo
Gradativamente, os vivos tratam de isolar de coisa não dita - se coloca como regra diante
do seu espaço aqueles que lembram a vulnera- das mais diversas situaçôes que levam à refle-
bilidade da vida humana, e esse afastamento se xão ou à consciência de que somos mortais ou
dá a partir da criação de certos espaços e ocu- de que, malgrado todo o caminho empreendido
pações - como se pode ver na imagem do do- (o qual muitos chamaram de "evolução"), jamais
ente que permanece no hospital até o último nos livramos desse "aspecto embaraçoso da
dos seus dias, do velho que vive no asilo, da animalidade humana" (2001:40). Ou seja, ape-
enfermeira e do médico que cuidam do primei- sar do tele-encéfalo altamente desenvolvido e
ro ou do assistente que se destina, de maneira do polegar opositor, morremos facilmente como
muito pragmática, a olhar pelo segundo. os animais. Só não fazemos admiti-Ia.
Mas não reconhecer esse processo que leva
Apenas as rotinas institucionalizadas dos hos-
à falência do corpo, da vida do indivíduo, é ates-
pitais dão alguma estruturação social para a
situação de morrer. Essas, no entanto, são em tar que ainda hoje é difícil perceber a relação de
sua maioria destituídas de sentimentos e aca- dependência que há entre pessoas de uma socie-
bam contribuindo para o isolamento dos mo- dade. Em suma, parece que ignoramos o fato de
ribundos (2001:36). que "o sentido de tudo que uma pessoa faz" está
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para a comunidade de viventes circundante. É possível concluir que a morte, em si, não
Ou seja: trata-se de uma existência empurrada é simplesmente um evento, mas um processo so-
para "os bastidores da vida social", uma exis- cial de desapego do indivíduo ao mundo e às pes-
tência solta, no vácuo, sem se ligar a outras. soas, ela é anterior à morte física, essa sim, um
Assim é a vida do moribundo. Uma vida que evento preparado por meio do processo de rom-
só se liga à idéia de negação da própria exis- pimento gradual dos laços sociais que o indivíduo
tência, uma contínua experiência de fim ante- estabeleceu ao longo da sua existência. Em cada
cipado. Uma vida que parece estar sendo momento no qual se dá a exclusão do moribundo
punida por algum crime antes cometido. O no espaço dos vivos, produtivos e ativos, um laço
moribundo é aquele condenado, por si e pe- a mais se desfaz e o desligamento total se aproxi-
los outros, à solitária. Seu crime é lembrar, ma. Nesse sentido, o tempo vivido já não é mais
com as marcas que estão impressas sobre o contemporâneo, mas extemporâneo. O velho, o
seu corpo, que a morte existe, é ameaçar aos moribundo, é, sobretudo, um "outsider" que não
vivos que, ao se alimentarem pelo delírio da se estabelecerá mais entre os vivos como antes.
imortalidade, não suportam a lembrança es-
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tampada no corpo do velho mortal.
Elias afirma que "talvez devêssemos falar Aqui se percebe que Elias é um sociólogo
mais aberta e claramente sobre a morte, mesmo dos processos e não dos eventos. Especificamente
que seja deixando de apresentá-Ia como um neste livro, produzido sob a forma de um ensaio-
mistério". Segundo ele, "a morte não tem segre- conferência, o autor parece deixar ausente, em seu
dos. Não abre portas. É o fim de uma pessoa. O texto, a relação que há entre a noção moderna de
que sobrevive é o que ela ou ele deu às outras morte e o desenvolvimento de uma sociedade
pessoas, o que permanece nas memórias alhei- centrada no tempo presente e na idéia de produ-
as" (Elias, 2001:77). ção. Enfim, Elias parece preferir explicar a exclu-
Na verdade, o tema da morte já foi objeto são da vida social do moribundo por meio de razões
de investigação, diversas vezes, seja na Sociolo- psicológicas como o medo e a culpa diante da
gia ou na Antropologia, do ponto de vista da morte de si e dos outros. Assim, ele deixa de evi-
representação social e da estruturação de um denciar que nas chamadas "sociedades avançadas",
espaço reservado para a mesma nas sociedades os indivíduos valem pela sua capacidade de pro-
ocidentais. Em determinado período, o indiví- duzir mercadorias. A mudança da mentalidade em
duo tinha o seu lugar de entrada e saída na so- relação à morte e ao morto representa a
ciedade através da Igreja. Nascimento e morte complementação de uma sociedade em que o va-
lembravam a idéia de passagem do indivíduo lor da mercadoria, finalmente, alcançou uma es-
de um mundo para outro. pécie de triunfo em todas as suas dimensões.