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A Sabedoria Prática no Édito de Milão

2021.1
Universidade Federal Fluminense
Departamento de Filosofia
Introdução à Filosofia
Professor: Paulo Sergio Faitanin
Aluno: Arthur Gomes
O Édito de Milão, promulgado em 313 d.c, pode ser considerado como um dos mais
importantes e decisivos documentos da antiguidade tardia, exercendo um papel determinante
sobre o rumo da Europa nos séculos que se seguiram. Nele, fica estabelecido que o Império
Romano passaria a ser religiosamente neutro, acabando, assim, com todas as perseguições
oficiais a grupos religiosos, especialmente aos cristãos, e que as propriedades desses seriam
devolvidas. O crédito pela escrita do documento é comumente atribuído ao imperador
Constantino, o Grande. No entanto, grande parte de seu conteúdo se deve à participação
decisiva de sua mãe, Helena, mulher estudiosa e dotada de grande habilidade diplomática.
Ainda que Helena, assim como seu filho, tenha se convertido ao cristianismo, o Édito
não se trata unicamente do reflexo de uma escolha religiosa pessoal. Na verdade, ele pode
também ser compreendido como uma extraordinária demonstração de sabedoria prática, na
medida em que sua concepção partiu de uma análise cautelosa, precavida e pragmática sobre a
realidade dos fatos. No intuito de compreender como o documento pode ser tratado como um
exemplo de prudência, é necessário se ter em mente o contexto histórico no qual ele foi
redigido, com enfoque na situação em que se encontrava o império.
Quando Constantino recebeu, em 306 d.c., o título de Augusto, Roma passava pelos
primeiros anos de uma crise generalizada, que levaria, no século seguinte, à queda do Império
no ocidente e ao início da era feudal. Não é possível apontar, de forma precisa, uma única
causa para a decadência da civilização romana, que Constantino vivenciou. Na verdade, esta
deve ser entendida como o reflexo de uma série de fatores interligados, que promoveram, de
uma maneira ou de outra, a corrosão das bases de sustentação daquela sociedade.
Como descreve Donald Wasson, em “Fall of the Western Roman Empire” ,ao início
do século IV, muitas das principais instituições romanas já estavam, de fato, submetidas a um
processo de enfraquecimento: e economia, carcomida pela inflação, não mais podia financiar
grandes obras públicas, como estradas e aquedutos; a burocracia, responsável pela
manutenção da ordem e das leis, havia se tornado corrupta e ineficiente; o exército, outrora
imponente, havia se transformado em um conjunto anárquico, incapaz, portanto, de guarnecer
as fronteiras contra as investidas cada vez mais frequentes dos povos germânicos. Em outras
palavras, a situação de Roma no momento em que Constantino assumiu o poder favorecia o
pessimismo. Havia, contudo, uma força dentro do Império que parecia tornar-se cada vez
maior: o Cristianismo.
Rebecca Denova, em “Early Christianity”, demonstra que, durante boa parte dos três
primeiros séculos do Império, os cristão foram postos pelas autoridades na ilegalidade, na
medida em que seus valores pacifistas representavam, em muitos aspectos, o simétrico oposto
dos valores tipicamente militaristas da cultura romana. Ainda assim, não tardou para que os
ensinamentos de Cristo, fortemente atraentes para o homem comum, começassem a se
propagar por todo o mundo mediterrêneo. Pouco a pouco, os cristãos começaram a adotar
padrões administrativos do Estado, de modo que pudessem construir para si uma organização
religiosa eficiente e bem estruturada. Além disso, a assimilação de traços específicos de
diferentes religiões e filosofias que existiam na época permitiu com que o cristianismo
exercesse, sobre os diferentes grupos que compunham a sociedade romana, um fascínio quase
universal.
No Édito, está presente o reconhecimento dessa dicotomia - declínio de Roma e
ascensão do cristianismo -, e é justamente isso que faz com que o ele se torne um reflexo da
sabedoria prática de Helena. A mãe de Constantino percebeu, melhor que os césares
anteriores a seu filho, que os cristãos passaram a constituir um dos grupos mais organizados,
influentes e abrangentes de todo o Império. De fato, entre aqueles que se converteram à nova
fé, havia representantes das mais diversas camadas da sociedade romana, desde os
camponeses e escravos até os senadores. Diante desse cenário, ficou claro que a aceitação do
cristianismo poderia contribuir não apenas para a manutenção da combalida unidade de
Roma, mas também para o aumento das arrecadações, visto que muitos cristãos haviam se
tornado proeminentes mercadores e controlavam importantes rotas comerciais.
Nesse sentido, vale destacar, também, outra importante característica desse
documento. Ao contrário do que muitas vezes se pensa, o Édito não apontava que o
cristianismo viria a se tornar a religião oficial do Império, pois isso não ajudaria a solucionar
o problema de desintegração interna. Na verdade, o que ficou estabelecido foi que seria
conferida legitimidade a toda e qualquer forma de manifestação religiosa. Ou seja, cristãos e
não-cristãos teriam a possibilidade de expressar sua fé livremente, de modo a instaurar a
harmonia entre os distintos credos que estavam presentes no mundo romano.
A história demonstra que a unidade imperial romana não foi, no entanto, restaurada.
Em 395, o Imperador Teodósio estabelece, de maneira definitiva, a separação entre as porções
oriental e ocidental de Roma, e as duas viriam a seguir caminhos distintos nos séculos
vindouros. Ainda assim, não se pode ignorar a sabedoria e a relevância contidas no
documento. A noção nele apresentada, de que a tolerância e a laicidade devem ser pilares de
uma comunidade política sadia, foi retomada por diversos pensadores e estadistas ao longo da
história, especialmente em momentos de crise. No momento atual, em que episódios de
intolerância - tanto no campo da religião quanto em outras áreas - se tornam mais frequentes,
a leitura atenta do Édito se mostra necessária.
Considerações

● A imagem na capa representa o imperador romano Constantino e sua mãe, Helena,


fundamentais para a formulação do Édito de Milão. Posteriormente, ambos seriam
canonizados, tanto pela igreja de Roma quanto pela igreja de Constantinopla. Img.
disponível em: https://greekreporter.com/2021/05/21/greeks-worldwide-celebrate-
saints-constantine-and-helen/
● Para a abordagem do conteúdo do Édito e da participação de Helena em sua escrita,
assim como para as considerações feitas sobre a noção de sabedoria prática, foram
utilizadas as informações transmitidas em aula.
● Para a abordagem do contexto histórico no qual o Édito foi redigido, foram utilizadas
as seguintes bibliografias:
○ Wasson, Donald L.. "Fall of the Western Roman Empire." World History
Encyclopedia. World History Encyclopedia, 12 Apr 2018. Web. 03 Aug 2021.
○ Denova, Rebecca. "Early Christianity." World History Encyclopedia. World
History Encyclopedia, 15 Mar 2018. Web. 04 Aug 2021.

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