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DEFINIÇÕES E ABORDAGEM
I

A recolha de dados so-


bre o sector não lucrativo português aqui
não lucrativo português com as de outros pa-
íses, o CNP começou por formular uma de-
apresentado foi realizada segundo o Projec- finição comum das entidades que integram o
to Comparativo do Sector Não Lucrativo da sector. Por uma série de razões, nenhuma das
Universidade de Johns Hopkins (CNP). O definições de sector não lucrativo existentes
objectivo deste projecto tem sido o de col- – que se focalizam, respectivamente, nas
matar as falhas que existiram durante muito origens dos fundos das organizações, no es-
tempo no conhecimento sobre o sector não tatuto legal e nos propósitos organizacionais
lucrativo ou das organizações da sociedade – se apresentavam como apropriados para
civil, não só em Portugal como em todo o a análise transnacional que conduzíamos.3
mundo, bem como evidenciar as razões para Assim, adoptámos uma abordagem indutiva
as disparidades significativas que existem para definirmos o sector da sociedade civil,
na dimensão, composição, financiamento e construindo a nossa definição a partir das ex-
papel destas organizações em diversos países periências do grande leque de países envolvi-
e regiões. Para concretizar estes objectivos dos no nosso projecto. Em particular, solici-
o projecto recrutou Associados Locais em támos primeiro a todos os Associados Locais,
mais de 40 países, e formulou um conjunto incluindo o Associado Local em Portugal,
de definições e abordagens metodológicas, um mapa de todos os tipos de entidades que
desenhadas de forma a gerarem um corpo razoavelmente seriam incluídos no sector
sistemático de dados comparáveis sobre estas não lucrativo nos respectivos países. Alinhá-
organizações nos diferentes contextos nacio- mos depois esses mapas de forma a perceber
nais. Porque o trabalho em Portugal foi con- onde se sobrepunham e identificámos as ca-
duzido em parte pelas abordagens conceptu- racterísticas básicas das entidades que se situ-
ais e metodológicas desenvolvidas em fases avam nesta zona de intersecção. Finalmente,
prévias do projecto CNP, é útil rever estas registámos as “zonas cinzentas” que existiam
abordagens de forma breve e determinar se se nos limites deste conceito central, e criámos
aplicam às circunstâncias em Portugal. um processo segundo o qual os Associados
Locais nos consultavam de maneira a deter-
O PROJECTO COMPARATIVO minarmos como tratar as entidades que ocu-
DO SECTOR NÃO LUCRATIVO2 pavam essas “zonas”.

Definir o Sector Não Lucrativo. Para com- Deste processo emergiu um consenso em
parar de forma fiável as realidades do sector torno de cinco características estruturais-

2
Esta secção baseia-se largamente em: Lester M. Salamon, S. Wojciech Sokolowski, and Regina List, “Global Civil
Society: An Overview,” in Lester M. Salamon, S. Wojciech Sokolowski and Associates, Global Civil Society: Dimen-
sions of the Nonprofit Sector, Volume Two (Bloomfield, CT: Kumarian Press, 2004), 1- 60.
3
Para mais detalhe sobre estas definições alternativas e as suas limitações, ver: Lester M. Salamon and Helmut K.
Anheier, “In Search of the Nonprofit Sector: The Question of Definitions,” in Lester M. Salamon and Helmut K.
Anheier, eds., Defining the Nonprofit Sector: A Cross-national Analysis (Manchester, U.K.: Manchester University
Press, 1997).

5
O SECTOR NÃO LUCRATIVO PORTUGUÊS NUMA PERSPECTIVA COMPARADA

operacionais que definiam as entidades no a cargo das pessoas envolvidas, seguindo


centro da nossa atenção. Assim, para efeitos a teoria de que se existem pessoas num
deste projecto, definimos o sector da socie- país que apoiam voluntariamente uma or-
dade civil como sendo composto por enti- ganização sem esperança de receber desta
dades que são: qualquer parte dos lucros por ela gerada,
isto é uma prova forte de que devem ver
• Organizadas, i.e., têm alguma estrutura e algum benefício público nesta organiza-
regularidade nas suas operações, o que se ção. Este critério também diferencia de
reflecte através de reuniões regulares, exis- forma útil as organizações não lucrativas
tência de membros, e alguma estrutura das empresas.
de procedimentos de tomada de decisões
que os participantes reconhecem como • Auto-governadas, i.e., elas têm os seus pró-
legítimas, quer sejam ou não formalmen- prios mecanismos de governação interna,
te constituídas ou legalmente registadas. estão aptas a cessar a sua actividade e a
Isto significa que a nossa definição tan- controlar todas as suas operações.
to abarca grupos informais como grupos
formalmente registados. • Voluntárias, i.e., ser membro, participar
ou contribuir em tempo ou dinheiro não
• Privadas, i.e., são institucionalmente se- é exigido por lei, nem uma condição de
paradas do governo, embora possam re- cidadania, determinada por nascença, ou
ceber deste apoio financeiro. Esta carac- de outra forma coagida. Como referido
terística diferencia a nossa abordagem das acima, este critério também ajuda a rela-
definições económicas, uma vez que essas cionar a nossa definição com o conceito
definições excluem as organizações do de benefício público, mas de uma forma
sector da sociedade civil se estas recebem que permite aos cidadãos de cada país de-
um apoio significativo do sector público. finir, por eles próprios, o que consideram
ser um propósito público válido por virtu-
• Não distribuidoras de lucro, i.e., não são de da sua decisão de tomar parte, por sua
primeiramente comerciais no seu propósi- iniciativa, nas organizações em questão.
to e não distribuem lucros aos directores,
accionistas ou gestores. As organizações Estas cinco características definem um sec-
da sociedade civil podem gerar “lucros” tor da sociedade civil que é abrangente, en-
no decurso das suas operações, mas esses volvendo organizações formais e informais,
excedentes têm que ser reinvestidos nos religiosas e seculares,4 organizações com
seus objectivos. Este critério serve como pessoas remuneradas e outras com alguns
uma aproximação ao critério “benefício voluntários, ou só constituídas por volun-
público” utilizado nalgumas definições tários, e organizações a desempenharem
de sociedade civil, mas fá-lo sem ter que funções essencialmente de expressão – como
especificar à partida, e para todos os pa- defesa de causas, expressão cultural, orga-
íses, o que são “benefícios públicos” vá- nização comunitária, protecção ambiental,
lidos. Em vez disso, deixa essas decisões direitos humanos, religião, defesa de in-

4
As organizações religiosas podem assumir pelo menos duas diferentes formas: (1) locais de culto religioso, e (2)
organizações prestadoras de serviços, como escolas e hospitais com uma afiliação religiosa. Ambas são incluídas
na definição do projecto de organização da sociedade civil, embora quando seja possível diferenciar as duas, as
organizações de serviços afiliadas a uma Igreja são agrupadas com outras organizações prestadoras de serviços e as
organizações de culto tratadas separadamente. Nem todos os países, contudo, conseguiram recolher informação
sobre as organizações de culto.

6
I. DEFINIÇÕES E ABORDAGEM

teresses, e expressão política – bem como Classificar as Organizações Não Lucrativas.


aquelas que desempenham essencialmente Para apresentar a composição do sector
funções de serviço – como serviços de saú- não lucrativo, e compará-la com a de ou-
de, educação, sociais. Obviamente, como tros países, foi necessário complementar
em qualquer definição, esta não pode eli- esta definição comum do sector da socie-
minar todas as zonas cinzentas ou de fron- dade civil com um sistema de classificação
teira. Tendo sido identificadas, foram feitos que a diferenciasse entre eles. Com este ob-
esforços para interpretá-las no contexto da jectivo o projecto CNP partiu do existente
essência da definição, e foram formuladas International Standard Industrial Classifi-
clarificações quando necessário. Assim, por cation (ISIC) utilizado na maioria das es-
exemplo, o critério da “não distribuição tatísticas económicas internacionais, mas
de lucros” foi incluído para diferenciar as elaborou a partir dele de forma a capturar
organizações da sociedade civil das empre- a diversidade do sector da sociedade civil.
sas, bem como as cooperativas e mútuas de Assim, por exemplo, a ampla categoria de
grande dimensão que dominam as indús- serviços de saúde e de acção social do ISIC
trias bancária e seguradora em muitos paí- foi dividido num conjunto de categorias
ses da Europa. Mas quando se tornou claro de maneira a diferenciar melhor o leque
que este critério inadvertidamente ameaça- de serviços de saúde e de acção social que
va excluir também uma importante classe existem no sector da sociedade civil. Tam-
de cooperativas comunitárias ao serviço da bém uma categoria especial de “desenvol-
luta contra a pobreza ou com fins de solida- vimento” foi adicionada para acomodar as
riedade social, incluindo em Portugal, foi “organizações não-governamentais”, ou
adicionada linguagem para clarificar que ONGs, comuns nos países em desenvolvi-
estas instituições deveriam ser incluídas. mento. Estas organizações têm um leque
alargado de fins de desenvolvimento e, fre-
quentemente, recorrem a uma estratégia de
empowerment em que as funções de serviço
e de expressão se diluem.

Deste processo emergiu uma Classifica-


Tabela 1 - Classificação Internacional das Organizações Não Lucrativas*
ção Internacional para as Organizações
Cód. Área Cód. Área Não Lucrativas – a International Classi-
fication of Nonprofit Organizations (ICN-
Cultura e Lazer Participação Cívica e Defesa de Causas
PO) – que, como apresentado na Tabela
Educação e Investigação Intermediários Filantrópicos
1, identifica doze diferentes categorias de
Saúde Internacional
actividade das organizações da sociedade
Serviços Sociais Congregações Religiosas
civil. Aqui incluídas estão essencialmente
Ambiente Empresariais e Profissionais, Sindicatos
funções de serviço (que incluem educação
Desenvolvimento e Habitação Outros
e investigação, saúde e serviços sociais)
* Ver Anexo A para detalhe adicional. bem como funções de expressão (que in-
cluem participação cívica e advocacia;
artes, cultura e lazer; protecção ambien-
tal; e associações empresariais, sindicais
e profissionais). Cada uma destas catego-
rias é, por sua vez, subdividida em sub-
categorias (ver Anexo A para uma maior
especificação do sistema de classificação
resultante).

7
THE PORTUGUESE NONPROFIT SECTOR IN COMPARATIVE PERSPECTIVE

APLICAÇÃO À REALIDADE Recentemente, o termo “sector das orga-


PORTUGUESA nizações da sociedade civil” foi introduzi-
do, embora o seu âmbito tenda a ser mais
A definição estrutural-operacional do sector alargado do que o adoptado por este pro-
não lucrativo ou da sociedade civil demons- jecto, na medida em que pode incluir as or-
trou aplicar-se bem à realidade portuguesa. ganizações privadas com fins lucrativos. É
Consistente com esta definição, o sector da também comum encontrar os termos acima
sociedade civil em Portugal tem uma con- listados utilizados sem distinção.
cepção alargada, abarcando organizações
prestadoras de serviços que suplementam O termo “economia social”, largamente
ou complementam os serviços públicos nas utilizado na União Europeia, é também
áreas da saúde, educação e serviços sociais, e usado comummente em Portugal, embora
organizações que oferecem mecanismos atra- tenha sido mais recentemente alargado para
vés dos quais os indivíduos se podem juntar “economia social e solidária” ou apenas
de forma a fazerem face a necessidades da “economia solidária”. Embora as definições
comunidade, participar na vida política, e de economia social variem, geralmente re-
perseguir interesses individuais e de grupo. ferem-se a organizações que fornecem bens
e serviços públicos e operando num espírito
Existem conjuntos de organizações não lu- de solidariedade e partilha. A maior dife-
crativas que são muito visíveis em Portugal, rença entre o conceito de economia social
e que claramente se diferenciam tanto do e o conceito de sector da sociedade civil ou
sector empresarial (privado com fins lucra- não lucrativo aqui utilizado é a inclusão das
tivos) como do sector público. Os termos mutualidades e das cooperativas no pri-
usados mais frequentemente para descrever meiro e a sua exclusão parcial do segundo
um conjunto destas organizações são “ins- na base de que podem distribuir lucros aos
tituições de solidariedade” e “sector social”, seus membros.
embora estes termos sejam tipicamente usa-
dos para identificar apenas instituições de Bastante distante desta discussão termino-
solidariedade social e não todo o terceiro lógica, as organizações da sociedade civil
sector como apresentado pela definição es- portuguesas assumem uma variedade de
trutural-operacional. formas legais.5 Estas incluem:

Outros termos utilizados com frequência são: • Associações, constituídas no âmbito do


Direito Privado e de certas secções do
• organizações ou instituições sem fins lu- Código Civil e, nalguns casos, sob alçada
crativos ou não lucrativas, do estatuto de Utilidade Pública. Podem
ser associações de bombeiros voluntários,
• economia social e/ou solidária,
de consumidores, de estudantes, de mu-
• organizações não governamentais, lheres, juvenis, de imigrantes, de activis-
• terceiro sector, tas ambientais e de deficientes.

• terceiro sistema, e • Fundações, um tipo de organização lucra-


• economia alternativa. tiva, relativamente recente em Portugal,

5
Para uma discussão mais pormenorizada sobre os principais tipos de organizações não lucrativas em Portugal e o
enquadramento legal destas instituições, ver Raquel Campos Franco, “Defining the Nonprofit Sector: Portugal.”
Working Papers of the Johns Hopkins Comparative Nonprofit Sector Project, No. 43. Baltimore: The Johns Hopkins
Center for Civil Society Studies, 2005.

8
I. DEFINIÇÕES E ABORDAGEM

que foi reconhecido pela primeira vez no desenvolvimento (ex. cooperação para
Código Civil de 1867. Existem cerca de o desenvolvimento, assistência huma-
350 fundações registadas em Portugal, nitária, ajuda em situações de emergên-
das quais cerca de 100 mantêm opera- cia e protecção e promoção dos direitos
ções activas. humanos), embora muitas delas operem
também em Portugal.
• Instituições de Desenvolvimento Local
(IDLs), que operam sobretudo em áreas • Associações mutualistas formadas sob o
rurais com estratégias de empowerment estatuto das Instituições Particulares de
de pessoas e territórios. A forma legal Solidariedade Social para o fornecimen-
das IDL varia e pode incluir entidades to de ajuda mútua aos membros e fami-
públicas, privadas lucrativas e sem fins liares, financiadas essencialmente através
lucrativos. de quotas dos membros.6

• Misericórdias, organizações com liga- • Cooperativas, governadas pela Lei das


ção à Igreja Católica que estão entre as Cooperativas.
mais antigas organizações não lucrativas
em Portugal. A primeira Misericórdia À excepção das cooperativas, que estão au-
— Santa Casa da Misericórdia de Lisboa torizadas a distribuir lucros aos seus mem-
— foi instituída em 1498 e mantém as bros e que, por isso, estão fora do âmbi-
suas operações ainda hoje, embora como to deste estudo, todas estas organizações
instituição pública. Concentram-se na vão de encontro à definição do projecto.
assistência social e na saúde, embora as No entanto, dois tipos de cooperativas
Misericórdias tenham perdido o contro- – Cooperativas de Solidariedade Social e
lo dos seus hospitais para o Estado em Cooperativas de Habitação e Construção
1975. A União das Misericórdias Portu- – estão especificamente proibidas por lei
guesas é uma organização federativa que de distribuir lucros. Ambas estão incluídas
procura representar os interesses destas no âmbito deste estudo.
instituições. Existem hoje cerca de 400
Misericórdias em Portugal. O sistema de classificação utilizado em Por-
tugal é o da Classificação das Actividades
• Museus, legalmente reconhecidos como Económicas (CAE) baseado no sistema de
instituições sem fins lucrativos, sendo Classificação das Actividades Económicas
uma boa parte instituições públicas. (NACE, Revision 1) adoptado pela União
Europeia.7 O sistema NACE aproxima-
• Organizações não-governamentais para se do sistema ISIC descrito acima. Assim,
o desenvolvimento, organizações não lu- a concordância entre CAE, NACE, ISIC
crativas que levam a cabo programas e ICNPO foi realizada de forma simples,
sociais, culturais, ambientais, cívicos ou seguindo os procedimentos estabelecidos
económicos que beneficiam países em no Handbook on Nonprofit Institutions in

6
Para efeitos desta análise fazemos uma distinção entre “mútua” e “associação mutualista”, em que o termo “mú-
tua” se refere a uma organização semelhante a um banco ou a uma companhia de seguros, e o termo “associação
mutualista” se refere a uma associação autorizada por lei para fornecer melhores benefícios , mas não a distribuir
lucros. Porque as mútuas distribuem lucros, saem fora do âmbito deste estudo, enquanto que as associações mutu-
alistas estão incluídas neste estudo.
7
O CAE baseia-se no NACE (Rev. 1), que é uma classificação de actividades por 4 dígitos criado em 1990. Os
códigos CAE são os mesmos do NACE até ao 4º dígito, mas pode adicionar-se um 5º dígito para especificidade
adicional.

9
O SECTOR NÃO LUCRATIVO PORTUGUÊS NUMA PERSPECTIVA COMPARADA

the System of National Accounts, das Nações Em segundo, baseámo-nos no Ficheiro de


Unidas.8 Unidades Estatísticas (FUE) do Instituto
Nacional de Estatística (INE) actualizado
O sistema de classificação ICNPO foi por um inquérito de actualização das orga-
testado na realidade portuguesa e verifi- nizações não lucrativas conduzido pelo INE
cou-se a sua adequação, especialmente nas para o ano de 2002. Este inquérito forne-
instâncias em que as fontes de dados usa- ceu dados sobre emprego remunerado por
vam o sistema NACE. Contudo, devido áreas de actividade.9 Terceiro, utilizámos
a limitações nos dados, não foi possível dados sobre salários, despesas, e receitas de
diferenciar totalmente as receitas das or- organizações não lucrativas obtidos através
ganizações da sociedade civil por código de tabelas do Sistema de Contas Nacionais
ICNPO. Em consequência, os dados de fornecidas pelo INE. Finalmente, os dados
receitas aqui apresentados estão classifi- sobre Cooperativas de Solidariedade Social
cados apenas em seis dos doze principais e de Habitação e Construção foram forne-
grupos ICNPO. cidos pelo Instituto António Sérgio do Sector
Cooperativo.10
FONTES DE DADOS E METODOLOGIA

De forma a assegurar um grau razoável de


comparabilidade entre os dados gerados so-
bre o sector da sociedade civil em Portugal
e os gerados sobre outros países cobertos
pelo projecto CNP, o trabalho em Portu-
gal aderiu à abordagem de recolha de dados
utilizada ao longo do projecto. Esta abor-
dagem especificou um conjunto comum
de dados a obter, ofereceu orientação sobre
fontes possíveis de dados e, depois, relegou
nos Associados Locais a formulação de es-
tratégias para a geração da informação ne-
cessária em cada país.

Em Portugal quatro fontes de dados foram


utilizadas. Primeiro, levámos a cabo um in-
quérito aos agregados familiares de forma a
capturarmos a extensão de doações privadas
de tempo e dinheiro (para uma descrição
detalhada da metodologia, ver anexo B).

8
Nações Unidas, Handbook on Nonprofit Institutions in the System of National Accounts (New York: United Nations,
2003), 26-40.
9
Para informação adicional sobre a metodologia, ver Instituto Nacional de Estatística (INE), Departamento de
Metodologia Estatística, Serviço de Ficheiros de Unidades Estatísticas, “Inquérito de Actualização—Instituições
Sem Fins Lucrativos e Organismos da Administração Pública, Documento Metodológico Preliminar”. Novembro
2002. Para os fins deste projecto, as entidades públicas, normalmente cobertas por este inquérito, foram excluídas.
10
O Instituto António Sérgio do Sector Cooperativo é um instituto público que apoia as cooperativas numa variedade
de formas.

10
OS CONTORNOS DO SECTOR
NÃO LUCRATIVO PORTUGUÊS
III UMA VISÃO HISTÓRICA

Como se poderão explicar


estas características do sector da socieda-
difundidas Obras de Misericórdia, e na ideia
cristã de que as pessoas precisam de actu-
de civil? Em termos gerais, três impulsos ar de forma a merecem a misericórdia de
enraizados profundamente na história do Deus. Esta doutrina, inspirada nos evange-
país, assim como um que emergiu mais lhos, estabeleceu um conjunto de imperati-
recentemente, parecem assumir papéis re- vos morais – tanto espirituais (ex. ensinar
levantes. Incluídos estarão primeiro a Igreja os simples, confortar os tristes, perdoar os
Católica; segundo, a longa tradição de mu- que nos ofenderam) como corporais (ex.
tualidade e auto-ajuda do país; terceiro, a curar os doentes, cobrir os despidos, dar de
sua igualmente longa história de controlo comer a quem tem fome).
político; e quarto, o desenvolvimento nas
décadas recentes de elementos-chave de um Uma série de diferentes tipos de instituições
Estado de bem-estar moderno e uma rele- foram inspiradas por estes preceitos, e as
gação crescente do Estado nas organizações Ordens religiosas foram instrumentais na
não lucrativas. Em conjunto, estes impul- fundação de muitas delas. Estas incluíam:
sos criaram uma tensão histórica entre o
Estado e a acção voluntária, estimulando • Hospedarias mantidas por Ordens reli-
a emergência de instituições não lucrativas giosas para darem abrigo aos peregrinos
mas limitando a sua independência e con- e para a redenção de cativos;
finando-as a um campo de actuação rela-
tivamente limitado até recentemente. Na • Mercearias, onde mulheres honradas, viú-
discussão que se segue examinamos cada vas ou mulheres solteiras com mais de 50
um destes impulsos. anos podiam ficar até morrerem, ou onde
as pessoas idosas ou deficientes encontra-
CATOLICISMO E O SECTOR vam apoio;
DA SOCIEDADE CIVIL
• Casas para pobres que davam abrigo a pes-
O sector não lucrativo português é pelo soas pobres;
menos tão antigo quanto o Estado-Nação.
As origens do país remontam a 1143, mas • Gafarias que ofereciam assistência médica
organizações de caridade existem no terri- aos leprosos;
tório mesmo antes dessa data, inspiradas
de forma significativa na Igreja Católica • Hospitais de meninos que davam abrigo a
Romana. órfãos e crianças abandonadas e os prepa-
ravam para a vida profissional.
O impacto da Igreja Católica Romana no
desenvolvimento do sector da sociedade ci- No final do século 15 um novo tipo de ins-
vil em Portugal foi tanto espiritual como tituição relacionada com a Igreja – a Mi-
institucional. Espiritualmente, a influência sericórdia — ganhou terreno reflectindo a
da Igreja foi cedo evidente nas amplamente influência crescente das ideias Franciscanas

22
III. OS CONTORNOS DO SECTOR NÃO LUCRATIVO PORTUGUÊS: UMA VISÃO HISTÓRICA

e Dominicanas que promoviama ligação para fazer face ao impacto dos desastres na
entre as “obras de misericórdia” e o alcance vida das pessoas. Estes eram especialmente
da salvação junto dos que enriqueciam com comuns em áreas de actividade perigosas,
os descobrimentos marítimos da época. Este como as actividades marítimas, em que as
desenvolvimento também serviu de resposta perdas no mar criavam de repente pobreza
ao aumento da pobreza que estas aventuras nas famílias e produziam órfãos e viúvas.
produziam entre as muitas mulheres e crian- Membros dessas organizações adoptavam
ças que ficavam para trás. Neste processo as modelos de seguros que foram chamados
Misericórdias estabeleceram uma forte base de compromissos marítimos e confrarias dos
de instituições sociais não lucrativas no país mareantes.
e que persiste ainda hoje.
Estruturas mútuas semelhantes emergiram
Para além de estarem ligadas a iniciativas nas zonas rurais portuguesas. Um exemplo
nas áreas social e da saúde, a Igreja foi tam- foi o dos os celeiros comuns. Estas associa-
bém foco de iniciativas na área educativa. ções de agricultores constituíam uma for-
Exemplos antigos dessa actividade foram as ma de se acumularem cereais fornecidos
escolas capitulares e as escolas conventuais por agricultores nas boas épocas agrícolas, e
dos Beneditinos, dos Cistercienses, e desde que eram depois “emprestados” aos agricul-
o século 13, das Ordens Mendicantes. tores em más épocas. Estes princípios de so-
lidariedade também se difundiram a outras
MUTUALISMO, COOPERAÇÃO actividades como por exemplo a pecuária.
E SOLIDARIEDADE
À medida que Portugal entrava lentamen-
A Igreja Católica foi um elemento constante te na era industrial no primeiro quartel do
no desenvolvimento da sociedade civil por- século 19, estas tradições de mutualidade
tuguesa, mas representa apenas uma parte assumiram uma forma diferente. A falta de
na herança legada à sociedade civil portu- instituições públicas que ajudassem as pes-
guesa, uma parte que teve tendência para soas com necessidades neste novo contexto
um carácter paternalista e assistencialista. socio-económico, levou à emergência de
Bastante diferente foi um segundo impulso “associações de trabalhadores” com o objec-
focado no mutualismo, na solidariedade e tivo da organização dos trabalhadores para
auto-ajuda da parte dos necessitados. As- a defesa dos seus direitos, e como medida
sim, já nos séculos 12 e 13, as corporações de segurança em caso de perda de emprego,
de mesteres e várias confrarias já tinham doença, morte ou incapacidade. De forma
surgido. As corporações de mesteres foram semelhante as associações mutualistas - As-
desenhadas a pensar na preservação dos sociações de Socorro Mútuo - emergiram para
interesses e na assistência aos membros de organizar cuidados de saúde, educação, e
uma profissão específica, sobretudo atra- actividades culturais entre os migrantes
vés da criação de hospitais. As confrarias urbanos. Também associações humanitárias
medievais prestavam serviços sobretudo de bombeiros voluntários se espalharam por
aos confrades mas também prestavam as- todo o país, assim como as mútuas agrícolas
sistência a não-membros.23 Outros tipos de proporcionando crédito e seguros mútuos
organizações de ajuda mútua foram criadas aos agricultores, e sindicatos agrícolas com

23
Ver, Centro de Estudos de História Religiosa da Universidade Católica Portuguesa e União das Misericórdias
Portuguesas, Portugaliae Monumenta Misericordiarum, Antes da Fundação das Primeiras Misericórdias, Volume 2
(2002).

23
O SECTOR NÃO LUCRATIVO PORTUGUÊS NUMA PERSPECTIVA COMPARADA

o objectivo de promoverem a solidariedade comerciantes envolvidos em negócios de ca-


entre agricultores. rácter internacional: a Associação Comercial
de Lisboa e a Associação Comercial do Porto,
Historicamente o mutualismo evoluiu em ambas fundadas em 1834.
torno dos princípios da democracia (um
homem, um voto), da liberdade (segundo AUTORITARISMO
o qual qualquer pessoa é livre de se juntar
ao movimento mutualista ou abandoná- A Igreja e as organizações mutualistas,
lo), independência (cada organização deve constituindo as raízes históricas do sector
manter a sua autonomia) e solidariedade da sociedade civil portuguesa, foram to-
(promovendo o bem-estar dos membros mando forma num ambiente caracteriza-
sem a motivação do lucro individual). do por um forte domínio governamental.
Contudo, a muitas destas novas associa- Portugal foi uma monarquia até ao início
ções faltavam os recursos necessários para do século 20, quando as forças liberais
assegurar a viabilidade económica das suas proporcionaram um breve intervalo de-
actividades. Este facto, em conjunção com mocrático. Em duas décadas, contudo, dá-
a inexistência de um enquadramento legal se início ao regime autoritário de António
e do apoio do Estado, conduziu ao insuces- Oliveira Salazar.
so de muitas destas iniciativas. Os sindi-
catos agrícolas em particular não duraram A Igreja Católica ajustou-se a esta realidade,
muito. A falta de empenho dos agricul- forjando uma aliança com a monarquia que
tores no movimento associativo levou ao durou durante três ou quatro séculos. O re-
enfraquecimento e falhanço destas orga- sultado foi o que um estudioso descreveu
nizações, e resultou num retorno a formas como “uma religião de pendor regalista”24,
prévias de organização, mais tradicionais e uma relação que se reforçava mutuamente,
corporativistas. e que permitiu à monarquia manter-se no
poder, e à Igreja expandir a sua influência
Mais bem sucedidas foram as organizações apoiada no colonialismo patrocinado pelo
mutualistas que emergiram da classe média, Estado. Contudo, no século 19 o Estado in-
nomeadamente pela iniciativa de funcioná- terveio nas associações de fiéis reduzindo-as
rios do Estado, profissionais liberais, e co- ao estatuto de serviços públicos. Em 1834 o
merciantes. Estes procuravam proporcionar Estado chegou a nacionalizar algumas pos-
ajuda em caso de doença e crédito em caso ses da Igreja.
de dificuldades financeiras. As associações
com um perfil de seguradoras foram desig- A relação entre o movimento mutualista
nadas de montepios, enquanto as associa- e o Estado era mais ambígua. Em certos
ções com um perfil de poupanças e crédito aspectos o crescimento das organizações
foram designadas de caixas económicas. Ao mutualistas ao longo do século 19 constitui
mesmo tempo, novos líderes de negócios e um desafio à aliança Estado-Igreja, dando
capitalistas organizavam-se para defender poder aos pobres e a uma classe média de
os seus interesses perante o Governo. Assim profissionais, fora dos domínios da Igreja
emergiram associações empresariais fortes. e do Estado. Uma guerra civil eclodiu nos
Duas eram particularmente importantes, anos 30 do século 19, estabelecendo uma
relacionadas com a exportação de vinho e nova classe média de profissionais e comer-

24
Ver, Paulo Adragão, “Para aquém e para além da Concordata,” Jornal de Notícias, 9.6.2004, and also:
www.ucp.pt/cedc/Paulo_Adragão.html.

24
III. OS CONTORNOS DO SECTOR NÃO LUCRATIVO PORTUGUÊS: UMA VISÃO HISTÓRICA

ciantes – a burguesia – contra os detentores sociedade se restabeleceram em torno do


das terras, a Igreja e a monarquia. Os libe- “golpe de Estado” levado a cabo a 28 de
rais tiveram importantes vitórias nesta luta, Maio de 1926 por Oliveira Salazar. Salazar
e iniciaram em 1834 uma série de medidas criou o que foi denominado de Estado Novo
para abolirem os privilégios e as estruturas reflectindo um nacionalismo sólido, pru-
de uma sociedade que tinha sido dominada dente e conciliador”.25 Esta “nova ordem”
pela nobreza e pela Igreja. Uma dessas me- baseava-se na ideia de uma sociedade orga-
didas foi a extinção de todos os conventos, nizada em torno de pilares de interesses que
mosteiros, escolas, hospícios e quaisquer apoiavam o regime político. De acordo com
outros estabelecimentos dos religiosos e to- esta filosofia os trabalhadores, agricultores e
dos os seus bens foram confiscados. Mais pescadores seriam membros de e representa-
tarde nesse século, a autoridade e influência dos por associações — sindicatos corporati-
da Igreja foi colocada sob a pressão do mo- vistas, Casas do Povo, e Casas dos Pescadores
vimento dos sindicatos. — que emanariam dos princípios ideológi-
cos e do enquadramento organizacional de
Foi neste contexto de transformação eco- um “Estado corporativo”. Estas organiza-
nómica e política que a Igreja Católica ções aceitariam e seriam subordinadas ao
procurou uma forma de juntar capitalistas princípio da harmonia e da convergência
e trabalhadores. Os Círculos Católicos Ope- de interesses entre diferentes classes sociais,
rários (CCO) emergiram no final do sécu- o que era a justificação para a abolição de
lo 19 (1878) e foram a primeira tentativa todos os partidos políticos. Adicionalmen-
relevante de criar uma presença católica te, industriais e homens de negócios seriam
organizada no movimento dos trabalhado- representados por grémios, fortemente con-
res portugueses. Estas eram organizações trolados pelas autoridades governamentais.
dominadas por aristocratas e católicos Não havia lugar para mais de um sindicato
conservadores, desenhadas para propor- e grémio por sector, nem lugar para mais de
cionar assistência e espalhar a perspectiva uma Casa do Povo ou Casa dos Pescadores
católica a todos os trabalhadores. Contu- por localidade. Operário, agricultores, pes-
do, os esforços resultantes foram mais fo- cadores, industriais, e homens de negócios
calizados no lazer e na educação cristã do eram obrigados a inscreverem-se na associa-
que na criação de melhores condições de ção do seu sector ou localidade.
trabalho. Actuando mais como um movi-
mento religioso do que social, e gastando A “nova ordem” proporcionou algumas
mais tempo a tentar recuperar a influência oportunidades para a criação de cooperati-
religiosa do que a lutar por necessidades vas, especialmente na agricultura. Contu-
sociais mais relevantes, os CCO depressa do, este movimento estava constantemente
perderam importância. sob vigilância.26 Também as cooperativas
de consumo foram severamente limitadas,
Quando os liberais ganharam terreno no- e as cooperativas agrícolas foram usadas
vamente no início do século 20, depressa como instrumentos para a regulação econó-
foram confrontados com uma resposta mica e para o controlo da subida de salários
conservadora, na medida em que elemen- noutros sectores. A criação de federações
tos conservadores da Igreja, do Estado e da foi proibida. Genericamente, a liberdade de

25
Ver, Oliveira Marques, História de Portugal – das revoluções liberais aos nossos dias (Palas, 1986).
26
Ver, Rui Namorado, “Uma Lógica Produtiva Humanista – Perspectivas do Cooperativismo em Portugal,” Seara
Nova, nº 77, Julho-Setembro 2002.

25
O SECTOR NÃO LUCRATIVO PORTUGUÊS NUMA PERSPECTIVA COMPARADA

associação era encarada como contrária ao cente liberalização e à revolução que termi-
interesse nacional e, assim, proibida e perse- nou com o autoritarismo em Portugal em
guida. Os partidos políticos e os movimen- 25 de Abril de 1974.
tos cívicos eram vistos como a expressão de
interesses estrangeiros ou particulares e não Na sequência da adopção da Constituição
compatíveis com o interesse nacional. da República em 1976 e do restabelecimen-
to da liberdade de expressão e de associação,
Em consequência, o Estado Novo resultou movimentos e instituições defensoras de di-
num declínio das organizações não lucrati- reitos e de representação política cresceram
vas em geral, e do movimento mutualista em rapidamente. Isto conduziu a uma explosão
particular, especialmente depois de 1930, de movimentos associativos preocupados
quando a resistência dos mutualistas à nova com todos os aspectos da vida social, como
ordem política passou a ser combatida com a melhoria das condições de habitabilidade
perseguição política e policial. Os líderes através das associações de moradores, preser-
e promotores do mutualismo eram presos vação do emprego, melhoria das condições
como “activistas comunistas”. Associado de emprego, associações de pais, e serviços
à extensão da segurança social promovida de apoio à infância.
pelo Governo, que foi retirando aos mutu-
alistas uma das suas principais funções, as Ao mesmo tempo, o novo regime pós-Sala-
auditorias públicas realizadas às associações zar não foi totalmente apoiante da sociedade
mutualistas, e a promoção das instituições civil, e a entrada de Portugal na União Eu-
corporativistas da “nova ordem“ resultaram ropeia em 1986 teve implicações ambíguas
no enorme enfraquecimento do movimento para a sociedade civil portuguesa. Por um
mutualista. lado, o facto do acesso a fundos europeus
requerer associação ou cooperação entre
DEMOCRATIZAÇÃO os interessados foi um factor de incentivo
à criação ou reforço de alguns movimen-
O autoritarismo finalmente deu lugar a um tos associativos. Por outro lado os fluxos
novo impulso político em Portugal no fi- de fundos estruturais europeus reforçaram
nal dos anos 60 do século 20, permitindo a responsabilidade do Estado por assuntos
a revitalização e fortalecimento ainda em que tinham no passado sido cobertos pelo
curso das organizações da sociedade civil. movimento mutualista e pelas associações
De forma interessante as organizações da da sociedade civil.
sociedade civil que foram sobrevivendo
tiveram um papel fundamental nestes de- As primeiras acções do Estado em relação à
senvolvimentos. As organizações mutualis- sociedade civil não foram então totalmente
tas, encorajadas por uma nova classe média apoiantes. Assim, por exemplo, o Estado
urbana, começaram a focalizar-se menos centralizou o processo de regulação, im-
em actividades assistencialistas e mais em pondo standards legais que favoreceram al-
acção política. Foi também possível assistir guns sectores da sociedade civil em relação
à fundação de cooperativas com fins inte- a outros. Em semelhança, no seguimento
lectuais pela classe média urbana, à eleição da revolução de 1974, as Misericórdias per-
de líderes de sindicatos conhecidos pela sua deram a gestão dos seus hospitais em favor
oposição ao regime, e a fundação de novas do Estado que os integrou na rede públi-
associações por representantes da oposição ca de saúde. Em 1980 uma lei autorizou o
como forma de ultrapassar a proibição de pagamento de compensações financeiras às
criação de partidos políticos. A morte de Misericórdias pelas perdas provocadas, em-
Salazar em 1970 abriu caminho a uma cres- bora a maioria das Misericórdias não tenha

26
III. OS CONTORNOS DO SECTOR NÃO LUCRATIVO PORTUGUÊS: UMA VISÃO HISTÓRICA

sido compensada até finais dos anos 80 e os necimento de serviços sociais confiando às
valores da compensação sejam ainda objec- Instituições Particulares de Solidariedade
to de debate. Social a sua prestação.27 Princípio pelo qual
a instituição mais próxima do indivíduo é
Lentamente, contudo, o Estado português a que deverá prestar assistência em casos
foi reconhecendo a importância de forjar de necessidade. As IPSS têm-se suportado
uma parceria com o sector da sociedade ci- amplamente no apoio público. Este tipo
vil. Assim, em 1981, foi criada uma lei que de relacionamento também se disseminou
autorizou a devolução às Misericórdias dos a outras arenas da actividade da sociedade
hospitais que lhes tinham sido retirados, civil, como a cultura, lazer/recreação, des-
numa base caso a caso. O Estado promoveu porto, e fins humanitários (ex. associações
também o fortalecimento das Associações de bombeiros voluntários).
Particulares de Assistência, hoje conhecidas
como Instituições Particulares de Solidarie-
dade Social, IPSS. Em 1979, o estatuto das
IPSS foi aprovado, e foi dirigido para todas
as instituições que forneciam serviços de
segurança social. Em 1983, com a revisão
deste estatuto, a acção das IPSS foi alarga-
da para incluir saúde, educação, formação
profissional, e habitação. Adicionalmente,
o Estado português reconheceu recente-
mente o princípio da subsidariedade no for-

27
Para pormenores adicionais referentes a esta alteração de política, ver Lei de Bases nº 32/2002, 20.12, Art. 6º.

27
Q UEST ÕES - C HAVE NO SE C TO R
NÃO LUCR ATI VO E M POR TU G AL
IV

O sector da sociedade ci-


vil em Portugal assenta numa longa história
pos de organizações que constituem o sector
não lucrativo, e entre estas e as cooperativas
de envolvimento na sociedade portuguesa. e as associações mutualistas, que constituem
Ao mesmo tempo, até recentemente, a sua aquilo que pode ser designado de “economia
evolução tem sido severamente constrangi- social”. Uma compreensão mais clara dos
da por uma longa tradição de paternalismo. aspectos comuns entre as organizações não
Em consequência, o sector permanece mais lucrativas, e entre estas e as outras compo-
pequeno do que o de outros países da Eu- nentes da economia social geraria um am-
ropa Ocidental, embora esteja a par da sua biente político mais favorável para o sector
vizinha Espanha e de Itália, países com os como um todo. Assim, também, o tipo de
quais Portugal partilha características his- dados gerados pela investigação que foi le-
tóricas comuns. Neste sentido, a sociedade vada a cabo.
civil em Portugal permanece em “transição”,
de certa forma à semelhança dos países da Felizmente, existe uma excelente oportu-
Europa Central e de Leste, que ainda en- nidade para sustentar este tipo de dados,
frentam uma série de desafios críticos. Nesta graças à recente adopção pela Comissão Es-
secção apresentaremos desafios que o sector tatítica das Nações Unidas (United Nations
da sociedade civil português enfrenta e su- Statistical Commission) do novo Manual
gestões de passos a percorrer de forma a dar- sobre Organizações Não Lucrativas no Sis-
lhes resposta. tema de Contas Nacionais (Handbook on
Nonprofit Institutions in the System of Natio-
AUMENTAR A CONSCIÊNCIA nal Accounts). Este Manual propõe às agên-
DO PÚBLICO SOBRE ESTE SECTOR cias e institutos estatíticos em todo o mundo
a formulação de uma “conta satélite” sobre
Embora existam há vários séculos em Portu- instituições não lucrativas como parte do
gal grupos que correspondem à definição de seu processo regular de recolha e dissemi-
organização da sociedade civil, e certos sub- nação de informação. O Instituto Nacional
sectores da economia social sejam altamente de Estatística (INE) devia ser encorajado a
visíveis, como as Cooperativas e as Institui- implementar este Manual em Portugal de
ções Particulares de Solidariedade Social, é forma a assegurar a visibilidade continuada
limitada a compreensão destas organizações deste sector fundamental e a acompanhar o
como um sector único e coeso. Esta quase seu desenvolvimento futuro de uma forma
ausência de consciência de “sector” limita a sistemática.
capacidade do próprio sector em promover
a filantropia, atrair o apoio do público, e FORTALECER O ENQUADRAMENTO
assegurar políticas favoráveis ao seu futuro LEGAL
desenvolvimento.
A reforma democrática introduzida após a
Um passo útil nessa direcção seria tornar revolução de 1974 criou um ambiente pro-
explícitas as ligações entre os diferentes ti- pício ao desenvolvimento da actividade as-

28
IV. QUESTÕES-CHAVE NO SECTOR NÃO LUCRATIVO EM PORTUGAL

sociativa. Porque tanto as antigas como as ficar a aplicação das leis, e potencialmente a
novas associações forneciam serviços rele- encorajar uma maior transparência e capa-
vantes para a comunidade, muitas vezes em cidade de prestar contas por parte das orga-
substituição do Estado, foi decidido que o nizações.
movimento associativo deveria ser encora-
jado. Assim introduziu-se, por exemplo, a MELHORAR A CAPACIDADE DO
figura das pessoas colectivas privadas de uti- SECTOR DA SOCIEDADE CIVIL
lidade pública de forma a proporcionar às
organizações os meios para melhorarem e A percepção dos trabalhadores remunerados
expandirem a sua actividade.28 das organizações não lucrativas como “mis-
sionários” ou “voluntários profissionais” é
Com a rápida expansão do sector da socie- usada como justificação para os baixos sa-
dade civil, que ocorreu nos últimos 30 anos, lários e longas horas de trabalho, especial-
as leis que o governam aumentaram em nú- mente nas Instituições Particulares de Soli-
mero e complexidade. Da combinação da dariedade Social. Isto conduz a uma baixa
legislação corrente e da lei fundamental – a retenção dos trabalhadores procurando mui-
Constituição -, Portugal tem actualmente tos dos mais qualificados ingressar em or-
pessoas colectivas de utilidade pública, Insti- ganizações públicas ou privadas lucrativas.
tuições Particulares de Solidariedade Social, Numa época de considerável dependência
pessoas colectivas de utilidade pública admi- de subsídios estatais e de apoios da União
nistrativa, e organizações não governamentais Europeia, um número crescente de organi-
de cooperação para o desenvolvimento a mere- zações da sociedade civil em Portugal estão
cerem tratamento especial da parte do Esta- cada vez mais conscientes da necessidade de
do. Ainda, o Código Civil inclui orientações profissionalizarem a gestão das suas institui-
gerais respeitantes às pessoas colectivas, fa- ções de forma a garantirem o melhor serviço
zendo referências específicas às associações e possível aos seus beneficiários.
às fundações. Tudo isto produz um corpo le-
gal difuso e confuso, a governar a formação Outros países responderam a este problema
e actividade dos diferentes tipos de organiza- estabelecendo programas de formação aca-
ções do sector da sociedade civil português. démica ou não académica para os gestores
Isto provoca confusão e uma dificuldade de das organizações da sociedade civil. Esses
compreensão do enquadramento legal, di- programas podem utilmente potenciar a
minuindo o impacto do sector não lucrativo capacidade das organizações da sociedade
em Portugal. civil, melhorando a sua gestão, e contribuin-
do assim para o alcance de importantes be-
Para fazer face a esta situação, Portugal po- nefícios públicos. Um número limitado de
deria levar a cabo alguma consolidação da organizações não lucrativas portuguesas já
estrutura legal do sector da sociedade civil. iniciaram programas de “melhoria de capa-
Isto poderia envolver uma sistematização cidades” (capacity-building), algumas com o
das formas legais que as organizações po- objectivo de se candidatarem a certificação
dem adoptar, e uma maior consistência no por normas internacionais de qualidade. En-
tratamento fiscal destas organizações e das quanto elas constituem apenas uma pequena
doações ao sector. Estas medidas ajudariam parcela do sector, são sem dúvida exemplos a
a dar novas garantias aos doadores, a simpli- seguir pelo sector.

28
Ver Decreto-Lei nº 460/77.

29
O SECTOR NÃO LUCRATIVO PORTUGUÊS NUMA PERSPECTIVA COMPARADA

MELHORAR AS RELAÇÕES da sociedade civil enquanto que se persegue


GOVERNO–ORGANIZAÇÕES a cooperação entre o Estado e os grupos da
NÃO LUCRATIVAS sociedade civil.

Tendo sido ao longo da história de Portugal Felizmente ainda, existe uma experiência
ambígua a relação entre as organizações da considerável na Europa sobre estas questões,
sociedade civil e o Estado, talvez não cons- a qual os políticos, líderes da sociedade civil
titua surpresa o facto do apoio do Estado ao e investigadores podem examinar. Funda-
sector ser inferior ao que se observa noutras mentalmente, existe a necessidade de repen-
nações da Europa Ocidental. O que é notá- sar de forma séria as actividades do Estado
vel no sector da sociedade civil português é para se determinar quais deverão ser levadas
que foi capaz de atingir a escala que tem com a cabo de forma mais flexível e eficaz atra-
um nível de apoio público bem inferior ao vés de uma cooperação público- privada sem
observado na maioria dos outros países da fins lucrativos em alternativa a uma acção
Europa Ocidental. isolada do Estado.

Felizmente, a relação entre o Estado e o


sector da sociedade civil melhorou drastica-
mente desde o derrube do regime autoritá-
rio. Ao mesmo tempo, parece permanecer
alguma ambiguidade acerca das funções que
o Estado deveria não só financiar como levar
a cabo, e acerca das funções que deveria con-
fiar às organizações da sociedade civil com
o apoio do Estado. De forma semelhante,
permanecem algumas incertezas da parte
do sector da sociedade civil e do público em
geral sobre a cooperação apropriada da so-
ciedade civil com o Estado, e sobre a forma
como preservar algum grau de autonomia

30

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